Mais Recentes

vínculos (morgadios e capelas)

Surgidos em Portugal no séc. XIII e consolidados na Baixa Idade Média, os morgadios – ou morgados – foram instituições características da península Ibérica e da nobreza, servindo como instrumentos jurídicos para salvaguardar e conservar os alicerces materiais dos grupos sociais nobres. Desta forma, através dos morgadios, prescrevia-se a inalienabilidade e indivisibilidade dos bens da família ou da casa, impedindo-se assim a sua fragmentação, por partilhas, após o falecimento do instituidor. A propriedade era transmitida, preferencialmente por ramo varonil, ao primogénito, de modo a alcançar uma sucessão perpétua no seio da família. Estas instituições acabaram, afinal, por contribuir para a manutenção de uma agricultura de natureza feudal. Em íntima relação com a questão económica, os vínculos tinham ainda por objetivo a manutenção de um estatuto social baseado na conservação de privilégios e de uma memória coletiva partilhada pelos membros da linhagem. No cômputo geral, uma propriedade vinculada – ao invés de uma propriedade livre ou alodial – implicava a prerrogativa da apropriação de uma porção dos seus rendimentos. Por vezes, nos documentos (testamentos, geralmente) que instituíam vínculos – morgadios ou capelas –, não era clara ou fácil de destrinçar a tipologia do vínculo criado, além de que ambas as palavras chegavam a ser usadas indiferentemente. O articulado das Ordenações Manuelinas, no parágrafo 49 do título 35 do livro II, estabelece a distinção entre morgadios e capelas, diferença que se passa a apresentar. Existe um morgadio quando, após cumpridos os encargos estipulados por vontade do fundador – comummente, missas pela sua alma –, o remanescente do rendimento dos bens do vínculo pertencer aos administradores ou quando o instituidor legar os bens com a condição de os herdeiros realizarem ou mandarem realizar missas e outras obras pias; existe uma capela, por outro lado, quando ficar estabelecido que, da totalidade dos rendimentos dos bens vinculados, os administradores terão direito a uma parte – 1/3, 1/4 ou 1/5 –, e o restante será usado em missas e outras obras de cariz piedoso. Pode dizer-se que, no primeiro caso, o que estava em causa, sobretudo, era uma dimensão secular – os bens materiais e a perpetuação do capital social e simbólico da linhagem –; no que concerne à capela, o mais importante era a dimensão espiritual – traduzida nos encargos pios. Tem sido apontado que, no quadro português, a ilha da Madeira foi uma das regiões onde a existência de instituições vinculares atingiu maior expressão. Cabral do Nascimento, no seu estudo “Capelas e morgados da Madeira” (1935), asseverou que, na Ilha, as capelas tiveram preponderância sobre os morgadios. Assim, na história deste espaço insular, o fenómeno da vinculação da propriedade assume uma importância de tal ordem que o seu desconhecimento compromete uma compreensão cabal do passado e do presente. Porém, a sua história global ainda está por fazer. Os vínculos foram precedidos pelas sesmarias – ou tiveram, na sua maior parte, origem nestas –, surgindo a partir de finais do séc. XV e, mormente, do séc. XVI. Instituídos no séc. XV, houve, e.g., os vínculos de Água de Mel, na freguesia de Santo António, que foi agregado à casa Carvalhal; de Consolação, na freguesia do Caniço, da família Ornelas e Vasconcelos; de João Afonso, em Câmara de Lobos, incorporado na casa Torre Bela; e de Vasco Moniz, em Machico, do qual José Bettencourt e Freitas foi o derradeiro representante. Na primeira metade da centúria quinhentista, foram criados vários vínculos de relevo na história da Madeira, de entre os quais se referenciam (em conjunto com os instituidores e as localidades) os seguintes: o da Lombada dos Esmeraldos, fundado por João Esmeraldo, na Ponta do Sol; o dos Lomelinos, por Urbano Lomelino, em Santa Cruz; o dos Franças, por João de França, na freguesia do Estreito da Calheta; o de São João de Latrão, por Nuno Fernandes Cardoso, em Gaula; o da Penha de Águia, por António Teixeira, na freguesia do Porto da Cruz; e o de São Gil, por D. Brites Escórcio, em Santa Cruz. Será útil fornecer ainda um exemplo pormenorizado de um vínculo que apresenta algumas das características gerais já apontadas e outras de índole diversa: o morgadio das Desertas, instituído no início da segunda metade do séc. XVI. Luís Gonçalves de Ataíde, filho do segundo casamento do 3.º capitão do donatário do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, celebrado com Isabel de Ataíde, era proprietário da ilha Deserta e recebeu de sesmaria, a 24 de março de 1546, o ilhéu Chão. Obedecendo a uma determinação de sua mãe, instituiu, por uma escritura de compromisso de 3 de setembro de 1552, os referidos bens em morgado perpétuo, obrigando a sua terça. Um alvará régio de 28 de janeiro de 1576 confirmou e aprovou este morgadio. Por vontade do instituidor, ficou estabelecido que: depois do seu falecimento e do da sua consorte, a sucessão recairia no filho varão mais velho ou no neto ou bisneto – seguindo, no plano geral e em regra, a primogenitura varonil legítima, em detrimento das linhas secundogénita e feminina; todos os herdeiros sucessores ficavam obrigados a ampliar os bens vinculados, mediante a inserção no morgadio de metade da sua terça; de igual modo, era-lhes imposto o uso dos apelidos e das armas das linhagens; era-lhes ainda interdita a venda, a troca, o escambo ou a alienação dos bens do morgadio; e teriam de ser cumpridos vários encargos pios – quatro missas anuais pela alma dos pais do instituidor. As duas pequenas ilhas nomeadas – Deserta e ilhéu Chão – fizeram parte do património dos descendentes de Luís Gonçalves de Ataíde até 1864. Tradicionalmente considerados como instrumentos jurídicos usados pela fidalguia ou pequena nobreza da Madeira, diga-se, no entanto, que indivíduos houve, de outros grupos sociais menos privilegiados, que também instituíram vínculos. A tutela judicial sobre estas instituições pertencia, desde o séc. XV até ao final do Antigo Regime, ao Juízo dos Resíduos e Provedoria das Capelas. O primeiro juiz de que há menção, João do Porto, foi indigitado no ano de 1486. As atribuições deste organismo incluíam, nomeadamente, a fiscalização da observância dos encargos pios. Desta incumbência ficaram, posteriormente, encarregados o corregedor da comarca do Funchal (de 1820 a 1837), a comissão da Santa Casa da Misericórdia do Funchal e, finalmente, os administradores dos concelhos (consoante o que foi estabelecido no Código Administrativo de 1842). O desenvolvimento económico e a riqueza criados pela transformação e comercialização do açúcar, desde o séc. XV, conduziram a um fenómeno alargado de vinculação de propriedades e ao absentismo dos proprietários. Diz Álvaro Rodrigues de Azevedo (em palavras sobejamente conhecidas e amiudadas vezes citadas) que “O sesmeiro, rico, enfastiou-se da vida campesina, ufanou-se de sua originária fidalguia, e apeteceu vivenda de mais aparato e bulício; desprezou, por isso, a terra; vinculou-a, na mira de assegurar-se dos réditos dela; contratou-lhe a cultura com os colonos livres” (FRUTUOSO, 1873, 678). Como seria de esperar, as conjunturas económicas de crise também tinham influência nas instituições vinculares. Na primeira metade do séc. XVII, devido ao decréscimo da produção açucareira e dos movimentos comerciais, vários administradores de capelas viram-se incapazes de cumprir os encargos pios nos moldes em que haviam sido instituídos e solicitaram a sua diminuição. Outro tempo de crise, em meados do séc. XIX, por causa do declínio do comércio e da produção de vinho, e de uma carestia de víveres, foi o contexto no qual eclodiram propostas atinentes à abolição dos vínculos, como se verá adiante. Vários documentos – de teor algo crítico quanto à existência e às consequências dos vínculos, ressalve-se – fazem alusão à proliferação destas instituições na Madeira. O Gov. Luís Beltrão de Gouveia, em ofício datado de 22 de abril de 1814, a propósito do imposto de sisa, faz uma série de considerações sobre a propriedade. Nesse sentido, refere que a Madeira “é verdadeiramente a Pátria dos Morgados” e divide o espaço insular em quatro partes, de molde a demonstrar que as transações de propriedades seriam de pouco relevo, não justificando a existência de um imposto: uma parte “de rochedos escarpados improdutivos”; duas “possuídas, administradas, e amortizadas nos grandes e pequenos Proprietários” (em que se inseriam os vínculos); e a última composta de bens alodiais (ALMEIDA,1907, 244). Em 1847, o governador civil José Silvestre Ribeiro, ao arrolar as várias razões que obrigavam os madeirenses à emigração – para ele, um fenómeno deveras nefasto –, referencia, no domínio da propriedade, os vínculos e o contrato de colonia. Neste sentido, calcula, porventura com algum exagero, que 2/3 das terras agricultáveis da ilha da Madeira estavam vinculadas. Esta realidade, ao manter muitas propriedades inalienáveis, imunes a reformas e fora do mercado, constituía um fator de bloqueio do mundo agrícola, beneficiando os proprietários absentistas e prejudicando os colonos. O cálculo de José Silvestre Ribeiro tem sido mencionado em vários trabalhos posteriores sobre a história da Madeira para demonstrar a grande disseminação, neste espaço insular, das instituições vinculares. O juiz de direito José Pereira Sanches e Castro, em 1856, ao pronunciar-se sobre as perversidades que tinham lugar com o contrato de colonia e sobre a relação deste com a instituição vincular, afirma que “a maior parte dos terrenos aproveitáveis para a cultura são vinculados” e que era imperativo extinguir os vínculos (CASTRO, 1986, 232 e 236). Com o marquês de Pombal, principiou uma vaga, que durou quase um século, de normas que restringiram a existência e a criação de vínculos. Este foi um processo gradual e de longo prazo que começou por visar as instituições vinculares de menor valor ou rendimento e que culminou, finalmente, na sua extinção completa, em 1863. Apontem-se os diplomas mais relevantes. Assim, por intermédio de legislação datada de 9 de setembro de 1769 e de 3 de agosto de 1770, estabeleceu-se a abolição ou anexação de vínculos que não chegassem a 200$000 réis de rendimento nas províncias da Estremadura e do Alentejo, e a 100$000 réis nas restantes; acresce que a instituição de morgadios ficou dependente de licença régia. Posteriormente, o decreto de 4 de abril de 1832, de Mouzinho da Silveira, aboliu os vínculos cujos rendimentos não montassem a pelo menos 200$000 réis. A carta de lei de 30 de julho de 1860 – em articulação com o decreto regulamentar de 19 de janeiro de 1861 – suprimiu os morgadios que não tivessem, no mínimo, 400$000 réis de rendimento líquido anual e tornou, ainda, a extinção facultativa para os conjuntos de vínculos que, anexados e sob o mesmo administrador, totalizassem 600$000 réis de rendimento por ano; ademais, sob pena de abolição, estabeleceu a obrigatoriedade, num período de dois anos, do registo de morgadios e capelas existentes e a existir. No fim deste processo histórico está a carta de lei de 19 de maio de 1863, a qual estabeleceu, no art. 1.º, que ficavam “abolidos todos os morgados e capelas atualmente existentes no continente do reino, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas, e declarados alodiais os bens de que se compõem” (VASCONCELLOS, 1864, 200), com exceção da casa de Bragança. É muito significativo que, no séc. XIX, várias propostas para a completa supressão de vínculos tenham provido das ilhas (Madeira e Açores) – terras onde havia uma maior proliferação destas instituições e onde, conexamente, os seus efeitos estruturais perniciosos para a economia e sociedade eram mais prementes (ou como tal sentidos). Logo na sessão de 8 de março de 1822 das Cortes Constituintes, o deputado João Bento de Medeiros Mântua, de São Miguel, apresentou um projeto para a extinção dos vínculos nos Açores. Outras iniciativas se seguiram. Aquelas que aqui interessa explorar diretamente, por serem relativas à Madeira, são as de António Correia Herédia e do barão de São Pedro, em época de profunda crise. O barão de São Pedro, Daniel de Ornelas de Vasconcelos, apresentou, na sessão de 15 de fevereiro de 1850, na Câmara dos Pares do Reino, um projeto de lei com o propósito de abolir todos os vínculos no arquipélago da Madeira. Esta proposta foi antecedida pela defesa, em 1847, na imprensa do Funchal, por António Correia Herédia, da extinção destas instituições. Herédia redigiu ainda um manifesto, datado de 1849, intitulado Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira, que encontrou uma viva oposição de vários morgados e administradores da Madeira, os quais responderam com um outro panfleto – Resposta ao Folheto Intitulado Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira, de 1850. Esta guerra panfletária teve ainda mais desenvolvimentos, com novas publicações de António Correia Herédia: As Contradições Vinculadas pelo A. das Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira e Duas Palavras sobre a Representação ou Exposição dos Morgados e Immediatos Successores, ambas igualmente de 1850. O barão de São Pedro, no seu projeto legislativo, referenciava o estado de crise que imperava na Madeira e defendia, como medida necessária e salutar, a supressão dos vínculos, considerados ineficazes e prejudiciais, porquanto não permitiam o progresso da agricultura e o incremento financeiro e comercial. A iniciativa foi muito bem aceite na Madeira e originou uma grande vaga de apoio em órgãos de imprensa e por parte de organismos de poder local (várias câmaras municipais e juntas de paróquia) e inclusive de vários indivíduos (proprietários e membros da elite) – organismos e indivíduos que redigiram petições com argumentos a defender a extinção. Entre os defensores desta medida estavam, como seria de esperar, proprietários de bens livres, lavradores ricos, comerciantes, funcionários públicos, clérigos seculares e ainda diversos administradores de vínculos. Por outro lado, vários morgados opositores, em exposição remetida à Câmara dos Pares do Reino, pretendiam contraditar os argumentos do barão de São Pedro. A realidade, todavia, é que o projeto não chegou a ser aprovado em sede parlamentar. Foi necessário esperar por 1863, ano em que foram abolidos os vínculos em Portugal, como se viu. Na sequência da lei de 30 de julho de 1860 e do decreto regulamentar de 19 de janeiro de 1861, foi redigido o Tombo do Registo Vincular do Funchal, em três volumes. Esta fonte documental apresenta, em virtude do que foi prescrito nas duas normas, somente uma amostra dos vínculos que existiram na Madeira; ainda assim, contém informações relevantes que não devem ser ignoradas. A partir das análises de Cabral do Nascimento, no seu estudo já referido, e sobretudo de Miguel Jasmins Rodrigues, em “Abolição dos morgadios: o caso da Madeira” (2013), fica-se a conhecer um tanto do seu conteúdo. Foram registados, deste modo, de 1862 a 1865, os bens de vínculo de 15 casas, através de traslados de documentos que suportavam juridicamente a existência das instituições vinculares (títulos de instituições, anexações, desanexações, hipotecas, sub-rogações ou expropriações, sentenças de supressão, descrições de valores e encargos). Neste âmbito, foram inscritas as seguintes informações: as várias parcelas que compunham cada vínculo; o rendimento anual das mesmas; a identidade e a situação – foreiro ou colono – de quem as cultivava; os produtos agricultados; e o usufruto de água por direito. Os administradores e representantes das 15 casas, preponderantemente absentistas, eram João José de Bettencourt e Freitas, o marquês de Castelo Melhor, João Cabral de Noronha, o visconde de Torre Bela, Urbano Egídio da Costa Campos, Sebastião Francisco Falcão de Melo Trigoso, João Facundo Alves Spínola de Freitas, João de Bettencourt Baptista, o visconde do Amparo, Agostinho de Ornelas Vasconcelos Rolim de Moura, Luís da Câmara Leme, José Cupertino da Câmara, Remígio António da Silva Barreto, Laureano Francisco da Câmara Falcão e Manuel Raimundo Telo de Meneses Torresão. Os vínculos criados nos dois primeiros séculos da história da Madeira – sécs. XV e XVI – perfazem 67% dos vínculos inventariados; os restantes – 33% – representam obviamente os que foram instituídos em época subsequente. A importância das duas centúrias mais remotas sai reforçada quando se apura que 85% do rendimento anual da totalidade dos vínculos registados pertence aos que foram fundados em Quatrocentos e em Quinhentos. É percetível também uma ligação estreita entre a instituição vincular e o contrato de colonia, porquanto a maioria dos morgados – i.e., detentores ou administradores de morgadios – referidos no Registo Vincular faz explorar as suas terras recorrendo a colonos. Três categorias de morgadios podem ainda ser percecionadas nesta fonte: a que consistiu na transformação de um senhorio banal em propriedade, facto que ocorreu com o morgadio dos marqueses de Castelo Melhor; a dos morgadios compostos por propriedades dispersas por toda a ilha da Madeira, como os de Agostinho de Ornelas Rolim de Moura, do visconde de Torre Bela e de Luís da Câmara Leme; e, enfim, os morgadios que abarcavam propriedades somente em uma ou duas freguesias, e.g., os de João de Bettencourt Baptista (no Porto da Cruz e em Santa Cruz) e João Facundo Spínola de Freitas (na Ponta do Pargo e Calheta). Os morgados que detêm um maior número de vínculos e de parcelas são os intervenientes finais num processo transecular de concentração de propriedade, quer por via de heranças, quer através de estratégias matrimoniais. Sirvam de exemplo João José de Bettencourt e Freitas (com pouco mais de 140 parcelas) e, de novo, os viscondes de Torre Bela (com mais de 170) e Agostinho de Ornelas Rolim de Moura (com quase 140). Na sequência, ainda, das normas de 1860 e 1861, foram depositados na Torre do Tombo processos de registo vincular provenientes de vários distritos, entre eles o do Funchal (10 processos). Alfredo Pimenta, na sua obra Vínculos Portugueses. Catálogo dos Registros Vinculares Feitos em obediência às Prescrições da Lei de 30 de Julho de 1860, e Existentes no Arquivo Nacional da Tôrre do Tombo, catalogou essa documentação. Partindo desse trabalho, dá-se aqui nota de um processo constituído pela cópia de registos de vários vínculos criados na ilha da Madeira e administrados por João Correia Brandão Henriques de Noronha, 2.º visconde de Torre Bela. Pretende-se ilustrar a confluência de várias instituições vinculares nas mãos de um mesmo administrador. Mencionem-se, assim, os seguintes instituidores de vínculos (acompanhados das datas dos documentos de criação, quando conhecidas): João Afonso Correia, a 11 de maio de 1490; António Correia, o Grande, a 29 de dezembro de 1572; D. Isabel de Bettencourt, a 2 de dezembro de 1561; D. Maria Vieira, a 23 de julho de 1592; António Correia Bettencourt e primeira mulher, D. Joana Henriques, a 21 de abril de 1624 e a 21 de julho de 1643, e ainda pelo dito e sua segunda consorte, D. Maria da Câmara, a 10 de dezembro de 1670; D. Mécia da Câmara, a 2 de outubro de 1676; D. Guiomar Correia; D. Isabel Abreu, a 29 de outubro de 1545; D. Maria Pestana, a 2 de janeiro de 1566; António Gonçalves da Câmara, a 2 de novembro de 1545; D. João Henriques e mulher, D. Joana; D. Isabel Fernandes, a 27 de novembro de 1546; Pedro de Brito, a 2 de dezembro de 1586; D. Isabel Afonso, anteriormente a 1561; D. Joana Cabral, a 12 de junho de 1598; D. Ana Murante, a 2 de novembro de 1569 até 29 de fevereiro de 1570; Pedro de Bettencourt Henriques, a 27 de dezembro de 1688; António Correia Bettencourt Henriques e mulher, D. Antónia Joana Francisca Henriques, e Henrique Henriques de Noronha e mulher, a 17 de fevereiro de 1706; D. Antónia Joana Francisca Henriques, a 20 de maio de 1746; João de Bettencourt Henriques, a 27 de novembro de 1649; António da Silva Barreto; Fr. Francisco Bettencourt e Fr. Pedro de Noronha; D. Beatriz Chamorra, a 27 de abril de 1565; Inácio da Câmara Leme e mulher, D. Isabel de Castelbranco; Filipe Gentil de Limoges e mulher, D. Isabel Achiaioli de Vasconcelos, a 23 de novembro de 1674 e em datas posteriores. De 1834 até 1878, prolongando um fenómeno que vinha do Antigo Regime, no conjunto das elites municipais do Funchal, continuava a avultar o grupo dos proprietários – morgados e administradores de morgadios e capelas. A título de exemplo, podemos nomear Aires de Ornelas e Vasconcelos, António Caetano Aragão, Tristão Joaquim da Câmara Júnior, António Bettencourt da Silva Favila, Francisco Araújo Bettencourt Esmeraldo, João de Freitas Correia e Silva, João José Bettencourt e Freitas, João José de Ornelas Cabral, Manuel de Gouveia Rego, Nuno de Freitas Lomelino, António de Carvalhal Esmeraldo (2.º conde de Carvalhal, tido como o homem mais abastado na sua época), Diogo França Neto (visconde de São João) e Diogo Frazão Figueiroa (visconde da Calçada).   Filipe dos Santos     artigos relacionados colonia documentário "Colonia e Vilões" capelas morgado dos piornais elites madeirenses e sua reprodução

História Económica e Social

bettencourt, edmundo

Edmundo Bettencourt De seu nome completo Edmundo Alberto de Bettencourt (Funchal, 7 de agosto de 1899-Lisboa, 1 de fevereiro de 1973), revelou-se como poeta quando era ainda aluno do Liceu do Funchal, tendo publicado o primeiro poema (sonetilho) no Diário de Notícias. Findo o curso liceal, partiu, em 1918, com 19 anos, para Lisboa, onde, por pouco tempo, frequentou a Faculdade de Direito da Univ. de Lisboa, transferindo-se, mais tarde, para a de Coimbra, cidade da sua sagração como poeta-cantor, mas sem chegar a licenciar-se.   Colaborador assíduo da imprensa insular e continental, destacou-se como membro fundador da revista Presença (1927), tendo-se-lhe juntado mais tarde Casais Monteiro e Miguel Torga. Conhecida também como Folha de Arte e Cultura, congregou um movimento vanguardista, digno herdeiro do Orpheu. Edmundo de Bettencourt colaborou também noutras importantes revistas, com destaque para Bysâncio, Vértice, Ocidente e Seara Nova. Foi incluído por António Pedro no Cancioneiro do 1º Salão dos Independentes, por Campos de Figueiredo, na Breve Antologia de Poesia Moderna e, por João Carlos, no Cancioneiro de Coimbra. O seu estro refletiu-se ainda na Gacete Literaria de Madrid, bem como noutras revistas estrangeiras, tendo sido incluído por Vitorino Nemésio e Carlos Queirós noutras antologias. Em 1930, rompeu definitivamente com o movimento presencista, no que foi secundado por Branquinho da Fonseca e Miguel Torga, por achar que os presencistas se haviam demitido da defesa de valores sociais e políticos pelos quais sempre se batera e ainda por desejar seguir um caminho novo, eminentemente moderno. Recusou-se, também por isso, a colaborar na revista dissidente Sinal, mantendo-se, a partir de então, à margem de grupos literários, deixando igualmente de cantar e gravar discos e fixando-se definitivamente em Lisboa. Republicano, laico e anarquista convicto, pautava a sua vida pela vivência de ideais, tendo sempre recusado servir-se da política para benefício pessoal. Repudiava abertamente o salazarismo, tendo sido perseguido, sobretudo quando, por altura da Segunda Guerra Mundial, apôs a assinatura num abaixo-assinado de reivindicação sindical. Era então trabalhador na Comissão Reguladora do Comércio de Metais, na capital. Exerceu ainda outras profissões, a última das quais foi a de delegado de propaganda médica. Por haver, nos seus tempos de Coimbra, ousado cantar “Samaritana”, de Álvaro Leal, foi altamente atacado pela hierarquia da Igreja Católica, mas debalde, pois a sua voz de “rouxinol da Madeira” ou “bicho canoro” (como era conhecido) celebrizou para sempre esta canção. Publicou em vida quatro livros de poesia, nos quais reuniu poemas de vários anos, a saber: O Momento e a Legenda (1917-1930); Rede Invisível (1930-1933), que Herberto Helder muito elogiou; Poemas Surdos (1934-1940) e Ligação (1936-1962). Anos mais tarde, em 1963, o poeta Herberto Helder, de quem se tornou grande amigo e com o qual participou nas tertúlias dos cafés Gelo, Royal e Montanha, reuniu a sua poesia toda sob o título Poemas de Edmundo de Bettencourt, prefaciou-a e fê-la publicar pela Portugália Editora, na coleção Poetas de hoje. Por sua vez, a Assírio & Alvim, em 1981, procedeu a uma reedição de Poemas Surdos, livro no qual o poeta revela a sua faceta surrealizante. Herberto Helder considerou-o, com toda a justiça, uma das mais importantes vozes do modernismo português, bem como precursor do surrealismo em Portugal. João de Brito Câmara, outro poeta “madeirense” próximo da Presença, na importante entrevista que lhe fez para a separata literária do semanário Eco do Funchal, em 1944, aquando de uma breve passagem pela Madeira, levou-o a discorrer sobre a modernidade, afirmando-se então Bettencourt como um poeta 100% moderno. Não fora a sua natural timidez e o seu progressivo afastamento dos meios literários, mais cedo teria sido reconhecido como o grande poeta que efetivamente foi. Revelou-se também um exímio intérprete da canção de Coimbra, que revolucionou, e de canções populares, ombreando com António Menano, Paradela de Oliveira e Armando Góis, entre outros. Foi na república do Funchal, em Coimbra, que estilizou a arte canora, acompanhado, à guitarra, por Artur Paredes, mestre neste desempenho. Com ele e António Menano, realizou digressões a Espanha, atuando em Valhadolid, Salamanca e Madrid, e ao Brasil. Teve um retumbante êxito. Gravou na altura muitos discos, que lhe renderam bom dinheiro. Entusiasmado com o seu estro, o maestro Fernando Lopes Graça transformou o seu poema“Liberdade” num canto heróico. Foi elogiado por Manuel Alegre e Zeca Afonso, que o considerou o maior cantor de fados de sempre e precursor da canção de intervenção em Portugal. Edmundo de Bettencourt foi ainda crítico de cinema, tendo tentado introduzir, em Portugal, a fotografia experimental, no que foi pioneiro. Pelo seu alto valor como poeta-cantor, mereceu as caricaturas que dele fizeram vários artistas. Em 1999, aquando do centenário do seu nascimento, o Governo Regional da Madeira o homenageou com uma sessão pública e a colocação de uma placa de metal na casa onde nasceu, à R. dos Murças, no Funchal. No mesmo ano, a então Direção Regional dos Assuntos Culturais editou, em parceria com a Assírio & Alvim, a sua obra completa, Poemas de Edmundo de Bettencourt, bem como o livro de António Nunes, intitulado No Rasto de Edmundo de Bettencourt. Uma Voz para a Modernidade. Pela mesma altura, publicaram-se alguns estudos, mormente na revista Islenha, sobre a sua poesia. Obras de Edmundo Bettencourt: O Momento e a Legenda (1930); Rede Invisível (1933); Poemas Surdos (1940); “Liberdade” (1946); Ligação (1962); Poemas de Edmundo de Bettencourt (1963).     Fátima Pitta Dionísio     artigos relacionados poetas cancioneiro geral (poetas madeirenses no) música joão cabral do nascimento  

História da Educação Literatura

atlântico, revista

Revista Atlântico O primeiro número da Atlântico. Revista de Temas Culturais, publicação periódica de cariz cultural e científico, veio a lume na primavera de 1985. A revista, de assinatura anual, teve uma vigência temporal de cinco anos e uma periodicidade trimestral – deste modo, cada edição, com cerca de 80 páginas, correspondia a uma estação do ano. Saíram do prelo 20 números, à razão de quatro por ano, sendo o último o do inverno de 1989. As suas dimensões eram de 24 x 17 cm e a paginação iniciava-se a cada novo ano. A redação e administração da publicação estavam sediadas no Funchal e a fotocomposição, o fotolito, a montagem, a impressão e o acabamento processavam-se em Lisboa. O editor e diretor foi António E. F. Loja, que assinou os editoriais de todas as edições (e, inclusive, diversos artigos). As fichas técnicas apresentam um elenco de colaboradores cujos nomes e número (37 na 1.ª edição, 41 na 20.ª) não variaram substancialmente ao longo do tempo. Alguns destes colaboradores elaboraram artigos e providenciaram ilustrações. Na contracapa e no interior – mormente no início, no fim e na separação dos artigos – de todas as revistas podem ser encontradas páginas com anúncios publicitários a produtos e serviços do arquipélago da Madeira. O número inaugural, publicado em 1985, nascia, segundo o editorial do mesmo, “como tentativa sincera de criar na Madeira um local de encontro de ideias, um ponto de confluência de opiniões”. Através de uma análise breve, não exaustiva, dos editoriais, no sentido de apreender os propósitos e a filosofia da revista Atlântico, percebe-se que por meio dela se propunha instaurar um espaço de comunicação aberto e livre, informado pela relevância do conhecimento do passado e do presente, com vista a edificar o futuro. Era veiculada a esperança de que esta publicação fosse considerada útil e, assim, usada amiúde. Desde cedo, foram acolhidos colaboradores de outras geografias, de modo a estreitar as relações com o exterior. Usavam-se igualmente estas páginas para denunciar o clima de mediocridade e para defender maior fulgor e riqueza culturais, afirmando a ligação recíproca e necessária entre cultura e liberdade. A necessidade do conhecimento do passado passava por respeitar e preservar o património – cultural e natural; nesse sentido, foi denunciada e criticada a indiferença, a falta de proteção, o desaparecimento e a intervenção desadequada no mesmo por parte de entidades públicas. A este respeito, afirmava-se a premência da recuperação dos centros históricos e a relevância da inventariação do património natural e construído (criticou-se, e.g., a ação de instituições governamentais no que tocava ao lobo-marinho). A revista era composta de artigos – estudos e ensaios – sobre múltiplas temáticas atinentes, principalmente, ao arquipélago da Madeira; repertórios de literatura (poesia, crónicas, etc.) e de fotografia; e antologias de fontes históricas de diversa índole, reproduzidas no final de cada número (em certos casos, anotadas, traduzidas e com considerações introdutórias e críticas). Contribuíram para a revista os seguintes autores (com estudos e ensaios sobretudo relativos à Madeira): Manuel José Biscoito (mares); Maria dos Remédios Castelo Branco (viajantes estrangeiros – Jean Mocquet); Teresa Brazão Câmara (empedrados, bonecas de “maçapão”, mobiliário); Celso Caires (fotografia); Zita Cardoso (expostos); Rui Carita (litografia – Andrew Picken, defesas de Santa Cruz, embutidos, remates de teto, arquitetura religiosa); Fátima Maria Fernandes Machado de Castro (literatura – Raul Brandão); Jorge de Castro (natureza); Luísa Clode (pintura flamenga, bordado); Marcelo Costa (habitação, arquitetura ); João Couto (escultura – Francisco Franco); Sérgio António Correia (literatura – Bernardo Soares); Silvano Porto da Cruz (museologia e património); Fátima Pitta Dionísio (literatura – Camões e análise de soneto, Revolta da Madeira); João Ferreira Duarte (filosofia); Pedro M. P. Ferreira (eleições no século XIX); António Luís Alves Ferronha (Revolta da Madeira, republicanismo); Paulo Fragoso Freitas (cultura, fontes históricas, azulejos); Maurício Fernandes (escultura – Francisco Franco, fotografia, vídeo); José Luís de Brito Gomes (a Madeira e a Rússia); Fátima Freitas Gomes (comércio interno no Funchal, hotéis e hospedarias); Maria de Fátima Gomes (festas – romarias); José Laurindo de Góis (Ateneu Comercial do Funchal, indumentária e indústria, imprensa); David Ferreira de Gouveia (madeirenses no Brasil, história do açúcar); Emanuel Janes (implantação da Primeira República); Luís Sena Lino (função social do corpo); João Lizardo (arte do renascimento, arte mudéjar); António Loja (história social, económica e política, arquitetura); Castro Lourdes (pintura); Armando de Lucena (escultura – Francisco Franco); Irene Lucília (poesia, ruas); Diogo de Macedo (Francisco Franco); Maria Elisa Basto Machado (filatelia e maximafilia); João Medina (história cultural – Zé Povinho, arte – I República); Luís Francisco de Sousa Melo (teatro, o texto “Alcoforado”), com a colaboração de Maurício Fernandes num dos seus artigos; Anabela Mendes (cultura e museologia); Mary Noel Menezes (madeirenses na Guiana britânica); António Montês (escultura – Francisco Franco); Teresa Pais (Visconde da Ribeira Brava); Jaime Azevedo Pereira (vimes, o Jardim Botânico da Ajuda e a Madeira, Padre Eduardo Clemente Nunes Pereira, João Fernandes Vieira); António Jorge Pestana (história militar); Fernando Pessoa (serras); Gabriel de Jesus Pita (decadência e queda da I República); Raimundo Quintal (turismo, paisagem, ambiente, jardins, quintas, património natural, geografia); Adriano Ribeiro (tratado de Utrecht); Miguel Rodrigues (Madeira nos finais do século XV); José de Sainz-Trueva (heráldica, ex-librística, quintas, arte, arquitetura civil e religiosa); Joel Serrão (cultura e filosofia – Antero de Quental); António Ribeiro Marques da Silva (viajantes estrangeiros, imprensa, quotidiano das freiras de Santa Clara, arquitetura doméstica, ecologia, política e literatura – o Conde de Abranhos e o desembargador José Caetano); Jorge Marques da Silva (arqueologia industrial, computador e arte, arte naïve); Amândio de Sousa (museologia, ourivesaria); João José Abreu de Sousa (povoamento, emigração, história político-institucional, social e económica, rural e urbana, capitania de Machico, rua da Carreira, convento de Santa Clara, escravos, corsários, levadas); Maria José Soares (madeirenses no Curaçau); Francisco Clode de Sousa (Francisco Franco); Luís de Sousa (Quirino de Jesus); Manuel Rufino Teixeira (numismática); Ana Paula Marques Trindade e Teresa Maria Florença Martins (administração nos séculos XV e XVI); Nelson Veríssimo (história da autonomia, festa do Espírito Santo, o Funchal e a aluvião de 1803, presépios e Meninos Jesus, literatura – Bulhão Pato e a Madeira); Maria Francisca Favila Vieira (mito no discurso platónico sobre a alma, ética em Verney); Rui Vieira (Jardim Botânico da Madeira, Carlos Azevedo de Menezes); Eberhard Axel Wilhelm (alemães na Madeira, Max Römer); Manuel Zimbro (cultura). No que concerne a repertórios literários, encontram-se: crónicas (algumas de pendor evocativo e memorialístico) de Amaro Amarante, António Ribeiro Marques da Silva, Jorge Sumares e José Pereira da Costa; poemas de Edmundo Bettencourt, Manuel Vilhena de Carvalho, Fátima Pitta Dionísio, Carlos Alberto Fernandes, Carlos Fino, São Moniz Gouveia, Irene Lucília, João Cabral do Nascimento, António Manuel Neves, Gualdino Avelino Rodrigues e José de Sainz-Trueva; prosa poética de Ângela Varela. Vários artigos e repertórios beneficiaram de ilustrações (fotografias e desenhos) dos próprios autores. Outros foram acompanhados de fotografias de Rui Camacho, Mota Pimenta, Photographia – Museu Vicentes, Maurício Barros, Carmo Marques, Perestrellos, João Pestana, Sanches Almendra, Gilberta Caires, José Ivo Correia, João Vasconcelos, Teresa Brazão, Celso Caires, Manuel Valle e Vicentes e José de Sainz-Trueva. Outros, ainda, apresentaram desenhos de Maurício Fernandes, Sá Braz e Vieira da Silva. O início da publicação de Atlântico inaugurou, em meados da década de 80 do século XX, tempos de mudança e de renovação no panorama cultural, científico e historiográfico da Madeira. Esta transformação foi também corporizada pela criação, em 1985, do Centro de Estudos de História do Atlântico, pela realização, em 1986, do I Colóquio Internacional de História do Atlântico, e pelo aparecimento, em 1987, da revista Islenha.   Filipe dos Santos   artigos relacionados revistas sobre arte revistas de tradições populares periódicos literários poetas  

Cultura e Tradições Populares História Económica e Social

poetas

A Madeira é alfobre de poetas: afirmou-o, em 1953, Horácio Bento de Gouveia, no artigo “A Madeira e a Poesia”, publicado na Voz da Madeira de 28 de maio de 1953. Na verdade, um olhar sobre o texto poético escrito na Madeira ou sobre os autores que nasceram no arquipélago permite-nos apreciar a quantidade de poetas cujos textos foram publicados em livro, em antologias, coletâneas, jornais e revistas. Por outro lado, parece claro que, nas obras que o tempo guardou, se encontram as características que marcaram a literatura portuguesa ao longo dos séculos, nomeadamente traços dos movimentos literários, os seus modelos, os seus temas, as suas formas de sentir e de dizer o mundo e a vida. Num artigo publicado em Das Artes e da História da Madeira (17 jul. 1949), um autor que assina com a letra F. faz uma resenha dos poetas que, do seu ponto de vista, mereceriam constar de uma antologia de autores madeirenses, desvendando os seus nomes ao percorrer as coletâneas até então publicadas: Cancioneiro Geral (Garcia de Resende), Romanceiro do Archipelago da Madeira (Álvaro Rodrigues de Azevedo), Flores da Madeira (Alfredo César de Oliveira e José Leite Monteiro), Álbum Madeirense (Francisco Vieira), Álbum Literário, Almanach de Lembranças Madeirenses e a coleção de poesias de Manuel Gonçalves, o Feiticeiro do Norte. Numa espécie de organização inicial, os poetas da Ilha são distribuídos por “géneros poéticos”, o que contribui, de algum modo, para marcar um caminho das letras madeirenses: epopeia, na qual, com as devidas ressalvas, inclui Francisco Paula de Medina e Vasconcelos; tragédia ou “os poemas trágicos”, cultivados por Manuel Caetano Pimenta de Aguiar, José Anselmo Correia Henriques e Alberto Figueira Jardim; poemas religiosos, com relevo para António Veloso Lira, cónego da Sé, e Troilo Vasconcelos da Cunha; autos e comédias, que, tendo como principal cultor Baltazar Dias, têm outros representantes: José António Monteiro Teixeira, Carlos Acciaioly Ferraz de Noronha, Francisco Clementino de Sousa e Francisco António Ferreira; elegia, representada sobretudo por Francisco Paula de Medina e Vasconcelos. O autor destaca, depois, as “Poetisas” – que não insere em nenhum género poético – que considera merecerem estar representadas, tendo todas elas como modelo D. Joana de Castelo Branco e Maria Helena Jervis de Atouguia e Almeida (Berta de Ataíde). Segue-se um último capítulo, intitulado “Lirismo”, destinado às peças que não cabem nos compartimentos anteriores. De entre os poetas, o autor cita Francisco Álvares de Nóbrega, Francisco Vasconcelos Coutinho, Luís António Gonçalves de Freitas, Joaquim Pestana, Luís de Ornelas Pinto Coelho e João Gouveia. A par destes poetas, outros são apresentados como dignos da designação “poetas madeirenses”: António Policarpo dos Santos Sousa, Viscondessa das Nogueiras, Alfredo César de Oliveira, Alfredo Paula Sardinha, Cândido Álvaro da Câmara, António Feliciano Rodrigues, Vitorino José dos Santos. No período da poesia palaciana portuguesa, as capitanias do arquipélago – Machico, Porto Santo e Funchal – são cortes em miniatura, onde se imita o que se passa em Lisboa. Os primeiros poetas residentes no arquipélago estão, de algum modo, associados aos primeiros capitães e donatários, encontrando-se representados no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, ao lado de outros autores continentais. Desses “poetas da ilha”, destacam-se, nos primeiros séculos de povoamento da Madeira (sécs. XV e XVI): Tristão Teixeira (m. 1506), filho de Tristão Vaz, conhecido, em Machico, como Tristão das Damas e, na corte de D. Manuel, por Tristão da Ilha, João Gonçalves da Câmara (1414-1501), filho de João Gonçalves Zarco, João Gomes (m. 1495), escudeiro de D. Henrique, Pedro Correia, um dos principais poetas da Madeira, genro de Bartolomeu Perestrelo, Duarte de Brito (m. 1514), casado com uma das netas de Zarco, que terá sido um dos primeiros poetas a introduzir o lirismo bernardiniano (de Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro) na literatura portuguesa, Manuel de Noronha (m. 1535), neto de João Gonçalves Zarco, Rui Dias de Sousa, casado com uma neta de Zarco, João Gomes de Abreu, casado com uma neta de Tristão Vaz, ou, ainda, Rui Gomes da Grã. O Funchal havia sido elevado à categoria de cidade em 1508, e tudo acontecia na azáfama de construções, de novidades que vinham do lado de lá do mar, do movimento do porto, por entre trocas comerciais e gente que se encontrava, a pretexto do comércio e das trocas que, ali, na babugem do mar, se operavam. Neste ambiente novo, a poesia dramática foi muito bem aceite. Talvez por esse motivo Baltazar Dias tenha sido tão admirado, quer pelo povo, quer pela nobreza, admiração para a qual também concorreu o facto de as suas obras serem herdeiras do humor de Gil Vicente, autor que agradava ao gosto popular, não obstante algumas só terem sido publicadas no séc. XVII: Auto da Malícia das Mulheres; História da Imperatriz Porcina, Mulher do Imperador Lodonio de Roma; Trovas sobre a Morte de D. João de Castro. A partir do séc. XVII, a cultura literária madeirense ganha um novo fôlego. Entretanto, aos poucos e sempre na esteira das modas do reino, vão escasseando os escritores eclesiásticos, dando-se lugar a uma liberdade de espírito que a literatura francesa preconizava. A Ilha recebe, deste modo, a influência das ideias e instituições literárias que chegam de França, a partir da corte de Luís XIV, modelos esses seguidos por Portugal, entre o reinado de D. João V e meados do séc. XVIII. Por esta época, as letras da Madeira são fortemente influenciadas pelo academismo e pelo arcadismo. De entre os poetas desta altura, destaca-se Manuel Tomás (1585-1665), que, apesar de não ser natural da Madeira – nascera em Guimarães –, se destacou com um poema épico de influência camoniana – A Insulana (Antuérpia, 1635) – que o liga à história da Ilha, onde viveu grande parte da sua vida e onde se crê ter sido cónego capitular da Sé. É um poema em 10 cantos, com os artifícios da escola gongórica, num tempo em que o classicismo já tinha perdido a sua pujança. Manuel Tomás é, assim, pioneiro da épica madeirense, escrevendo este longo poema sobre a descoberta da ilha da Madeira. No reinado de D. João V, duas coletâneas pretendiam recolher o que de melhor se escrevia em Portugal: Fénix Renascida e Postilhão de Apolo. Nelas encontramos poemas de alguns poetas da Ilha, do séc. XVII: Francisco Vasconcelos Coutinho (1665-1723), autor de Feudo do Parnaso (1729); Troilo Vasconcelos da Cunha (1654-1729), poeta e teólogo filho de Bartolomeu da Cunha, capitão general da Madeira, e autor do longo poema O Espelho do Invisível, no qual opta por um estilo que já foge da escola gongórica então dominante; António de Carvalhal Esmeraldo e Câmara, que ficou célebre pela Cythara de Aonio, uma única compilação poética, de 626 páginas, encontrada no convento de S.ta Clara. O movimento do porto do Funchal ganha uma atividade intensa no séc. XVIII, com o comércio e com os visitantes que prometem o turismo que há de vir. É nesta época que a estética da Arcádia Lusitana, fundada em 1755 em oposição ao academismo literário, e do contramovimento Nova Arcádia influenciam, na Ilha, funcionários e pequenos burgueses que começam a despontar para a literatura. Nesta linha, surge o poeta Francisco Manuel de Oliveira (1741-1819), autor de dois volumes de poesia, Escolhas de Poesias Orientais e Colecção Poética. Outro poeta que se destaca neste século é Francisco Paula Medina de Vasconcellos (1768-1826), que, na senda de Manuel Tomás, nos deixou os poemas heroicos Zargueida, Descobrimento da Madeira (1806) e Georgeida (1819). Ainda nesta viragem do século, surge um outro poeta nascido na Ilha, em Machico, Francisco Álvares de Nóbrega (1772-1806). Revela-se um arcádico de transição, apesar de escrever sobre a sua consciência e o mau fado que o persegue, afastando-se, por esse motivo, das linhas básicas dessa escola literária. Foi apelidado “Camões pequeno” e ficou conhecido pelos seus sonetos, alguns deles satíricos, outros anticlericais, que lhe valeram a prisão. Em 1804, publicou Rimas. Muitos dos seus outros poemas foram queimados pela Inquisição, depois da sua morte. Mónica Teixeira insere-o no grupo dos poetas pré-românticos. Entre finais do séc. XVIII e o séc. XX, surgem poetas que João Fortunato de Oliveira reuniu na antologia Flores Agrestes. Desses, nomeiam-se apenas, a título exemplar: José António Monteiro Teixeira (1795-1876), com obras publicadas em Portugal e em França, na medida em que desempenhou as funções de cônsul deste país no Funchal; Jacinto Augusto de Sant’Ana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt (1824-1888), Visconde das Nogueiras, e João da Câmara Leme (1829-1902). Nas últimas décadas do séc. XVIII, o romantismo proliferava na Europa, caracterizando-se por uma visão do mundo contrária ao racionalismo e ao iluminismo e pela procura de um nacionalismo que viria a consolidar os Estados. No contexto romântico da ilha da Madeira, destacam-se alguns poetas, alguns dos quais pioneiros nas letras portuguesas, com colaborações frequentes em importantes revistas literárias regionais e nacionais, ao lado de grandes nomes da literatura portuguesa: Luiz da Costa Pereira (1819-1893), autor que fez parte da coletânea O Trovador, de Coimbra – e do grupo com o mesmo nome –, com os poemas “Recordação” e “O Orphão”; João de Nóbrega Soares (1831-1890), um assíduo colaborador da imprensa funchalense que revela uma arte poética muito pessoal e que, segundo Cabral do Nascimento, era o mais artista de todos os poetas desta altura; Luiz d’Ornellas Pinto Coelho (1843-1920) e Francisco Vieira (1849-1889), o compilador de Álbum Madeirense (1884), um romântico saudosista e nacionalista, ao gosto de Soares dos Passos, mas também de António Nobre. [caption id="attachment_14953" align="alignleft" width="192"] Fonte: Blog da Biblioteca Municipal do Funchal[/caption] As mentalidades começavam a mudar. É assim que, na aristocracia ou no seio da alta burguesia, surgem mulheres a participar de atividades e eventos ligados à arte e à literatura, a traduzir escritores estrangeiros e a organizar saraus artísticos no teatro ou em casas particulares. É o caso de Matilde de Sant’Ana e Vasconcelos (1824-1888), Viscondessa das Nogueiras, que tem poemas inseridos nas coletâneas Flores da Madeira, Album Madeirense e Prelúdios Poéticos; Matilde Olympia Sauvayre da Câmara (1871-1957), senhora ligada às artes – à música, ao teatro e à poesia; Berta de Ataíde, nome autoral de Maria Helena Jervis de Atouguia e Almeida (1847-1928), que editou Mosaicos, o seu livro principal; Joana da Piedade Velosa de Castel-Branco (?-1920), que colaborou em diversos jornais e revistas e editou, em Lisboa, As Minhas Flores, em 1905, e Fluctuações, em 1910; Eugénia Rego Pereira (1875-1947) e o seu livro Folhas Perdidas, em 1929; Maria Emília Acciaiuoli Rego e Georgina de Almeida, que têm poemas em Flores Agrestes, uma antologia de João Fortunato de Oliveira, poeta que organizou as primeiras coletâneas de autores madeirenses. Em 1883, Mariana Xavier da Silva publica Na Madeira. Offerendas, que merece da parte de Guiomar Torrezão, escritora e diretora do Almanach das Senhoras (1870), na “Introducção” que assina, um louvor também pelo facto de [ainda] ser rara a publicação da escrita feminina. No Funchal, entretanto, organizavam-se algumas associações de caráter cultural onde se liam os jornais nacionais e estrangeiros: o Clube Funchalense, o Clube dos Estrangeiros e o Clube da Associação Comercial do Funchal. Aí se lia, se conversava, se sabia do mundo. Não nos podemos esquecer de que a Ilha recebia influências das culturas de quem a ela chegava, sobretudo ingleses e franceses à procura da beleza da terra, da doçura do clima. Por outro lado, as famílias mais abastadas enviavam os seus filhos para a França, para a Inglaterra e para a Guiana Inglesa, a fim de estudarem nos melhores colégios. Em 1870, Joaquim Pestana (1840-1909) estreia-se na imprensa regional, no jornal Imprensa Livre, como poeta. O Diário de Notícias, onde publica quase diariamente – poemas e prosa poética – entre outubro de 1876 e outubro do ano seguinte, é o grande divulgador dos poetas românticos madeirenses. Escrevendo e publicando no contexto da ilha da Madeira, Joaquim Pestana é um dos poetas do seu tempo que mais se relaciona com o meio insular. Em Espinhos e Flores, o autor manifesta a sua natureza espiritual e a temática religiosa da sua produção literária. Foi o autor romântico que mais publicou no seu tempo, quer na ilha, quer no espaço nacional. Publicou em quase todos os jornais e nos principais almanaques nacionais: Almanaque Literário, Alagoano das Senhoras, Almanaque D. Luiz, Almanaque Insulano dos Açores e Almanaque da Madeira. Mónica Teixeira considera-o um “romântico insular”, na medida em que é coerente com a natureza e com a história da Ilha. O final do séc. XIX prima pelo aparecimento de algumas coletâneas literárias que reúnem os poetas da Ilha, nomeadamente aqueles cuja publicação se fazia nos jornais e nas revistas da altura, que se tornaram um meio eficaz de divulgação dos poetas da Madeira, dentro e fora da Ilha. O Diário de Notícias permite-nos, por exemplo, perceber as preferências literárias do público madeirense, que demonstra um gosto especial pelo texto poético. Em 1871, surge a primeira série da coletânea romântica Flores da Madeira (a segunda série há de aparecer em 1872), pela mão do Dr. José Leite Monteiro e do Cón. Alfredo César d’Oliveira. Nos poetas representados, é possível percorrer os valores locais do romantismo vivido na Madeira. Vários estudiosos se manifestaram acerca das duas séries desta compilação: Cabral do Nascimento e Teófilo de Braga, tecendo o primeiro uma crítica pouco abonatória aos poemas aí representados. Quase todos os poetas aí presentes seguem o rasto de Soares dos Passos, nas suas características ultrarromânticas, no seu tom fatalista, no ritmo muitas vezes laudatório, se bem que, nos poetas da Ilha, o estado de alma romântico seja atenuado pela beleza e pela doçura da natureza insular. Em 1874, uma outra coletânea poética surge, na Madeira, pela mão do poeta Francisco Vieira, Álbum Madeirense. Deve salientar-se que ter um poema integrado numa destas compilações era garantia do prestígio dos poetas. Nesta obra, estão publicadas 69 poesias, assinadas por 34 poetas, entre os quais 5 mulheres, alguns repetentes das coletâneas anteriores, recolhendo, desta forma, e uma vez mais, a produção literária local. No género almanaque, aparece, ainda, em 1883, o Álbum Poético e Charadístico que, além de poesias, inclui pensamentos, charadas e enigmas e recebe autores da Ilha e do continente. Da lista dos poetas aí representados, consta o nome de Joaquim Pestana. No entanto, na Ilha mais rural, surge uma outra voz, menos erudita e mais popular, um poeta que encontra eco junto das populações: Manuel Gonçalves (mais conhecido pelo Feiticeiro do Norte), nascido na freguesia do Arco de São Jorge, em 1858, onde veio a falecer em 1927. Foi agricultor, pedreiro e poeta. Era um homem do povo, analfabeto, com muita facilidade em fazer rimas. A sua poesia, dita sobretudo nos arraiais, ganhou adeptos por toda a Ilha: advoga as suas causas, não tem medo de contar a sua vida (igual à vida de outros camponeses que tinham, na terra, a base do seu sustento), é porta-voz dos anseios e das preocupações das gentes e reclama a atenção de quem governa. Emigrou para o Brasil em 1910, chegando a editar, naquele país, dois poemas. A maior parte da sua bibliografia está impressa em folhetos avulsos. O Funchal do primeiro quartel do séc. XX apresenta-se como uma cidade cosmopolita, onde, à semelhança do que acontecia no continente, se formavam tertúlias literárias. Mais uma vez, há que realçar o papel da imprensa. O Diário da Madeira projeta, então, outros autores do arquipélago, associados sob o nome de “os cinco vagabundos” – João Cabral do Nascimento, Luís Figueira de Castro, Álvaro Manso de Sousa, Rodolfo Ferreira e Visconde do Porto da Cruz, grupo esse que se alargará a Ernesto Gonçalves e a António da Cunha de Eça. Desfeita esta agremiação de intelectuais, forma-se outra com o Antonino Pestana, Manuel Pestana Reis, Eduardo Pereira, Fernando de Menezes Vaz e Juvenal de Araújo, entre outros. O séc. XX é de uma produção literária significativa na ilha da Madeira. Aí, com base no que se passa no continente, sobretudo nos centros culturais do país – Lisboa, Coimbra, no início do século, e Porto, na segunda metade de novecentos –, os autores experimentam as escolas em voga e adaptam-nas à sua insularidade: o romantismo, o modernismo e o grupo da Presença são exemplos deste caminho. A maioria dos poetas da época, apesar de, em alguns casos, publicarem livros individuais, faziam-se representar em coletâneas, em almanaques, como, por exemplo, o Almanaque Ilustrado do Diário da Madeira ou o Almanaque de Lembranças Madeirense, ou ainda na Revista Literária. Ressalte-se, aqui, alguns poetas que marcaram presença na vida literária do séc. XX: José Cruz Baptista Santos (1887-1959), jornalista que deixou, por entre a sua obra poética, Horas de Inspiração (1906), Rosas e Jasmins (1913) e Baladas, um inédito; Elmano Vieira (1892-1962), que deixou Livro Azul (1959) e muitos poemas dispersos em múltiplas publicações e antologias; António Feliciano Rodrigues (Castilho), que publicou, entre outros, Versos da Mocidade (1903), Versos Para os Meus Filhos (1910), Colar de Vidrilhos (1911) e Sonetos (1916). Na passagem para o modernismo, movimento para o qual a Madeira contribuiu com algumas páginas da sua literatura, um outro autor, João Gouveia (1880-1947), há de revelar-se muito importante para a história das letras madeirenses, na medida em que inaugura aquilo que, no entendimento crítico contemporâneo, pode ser considerado literatura regional, dado o seu sentir ilhéu e as marcas insulares da sua poesia. Fazem parte da sua obra, os livros de poemas Breviário (1900), Atlante (1903) e Almas do Outro Mundo (1908). De acordo com Mónica Teixeira, o poeta bebe a sua inspiração nos autores nacionais – António Nobre, Cesário Verde e Camilo Pessanha, assim como no poeta inglês Lord Byron, com quem partilha o seu amor à(s) ilha(s). A mundividência insular tem, no modernista Albino de Menezes (1889-1949), um seu representante. Por ele, apercebemo-nos das desigualdades (também culturais) entre a Ilha e o resto do país. A sua personalidade – e a sua escrita, obviamente – releva um sentimento de autor isolado, insulado, guardado pelo mar, que lhe cerra as portas do mundo, mas isolado por outras ilhas que se erguem dentro da própria Ilha. De entre todos os colaboradores de Orpheu, indicador das tendências literárias do seu tempo, foi Albino Menezes que figurou ao lado dos grandes nomes da literatura portuguesa desta época – Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros –, integrando-se nas expectativas sensacionistas dos dois primeiros. A sua vertente de poeta surge mais tarde: primeiro com quadras de natureza popularizante, publicadas no Diário de Notícias (27 jan. 1921) sob o título “Mulheres”, e, depois, com sonetos que reúnem características românticas, modernistas e decadentistas. O poema “Olá Vadio!”, publicado na Presença (n.º 5, 4 jun. 1927), é um dos mais conhecidos do autor, um texto claramente modernista que, apesar de descrever o movimento num cais de Lisboa, faz lembrar, pelos pormenores, a sua origem insular. Outros autores madeirenses da mesma geração inserem-se ainda nesta corrente, como Cabral do Nascimento (1897-1978), que revela um sentido renovador, inspirado numa sensibilidade lírica nacional, chamando a atenção para os perigos de uma ameaçadora rutura com os valores da cultura portuguesa. Teve um papel muito importante na cultura literária da Ilha e do país, como tradutor e organizador de coletâneas, nomeadamente de Líricas Portuguesas e O Livro de Cesário Verde. Como poeta, publicou, em Lisboa, no ano de 1916, o seu primeiro livro de poesia, As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruinas, obra essa elogiada por Fernando Pessoa pelo seu caráter sensacionista. No entanto, havia de se distanciar das linhas do movimento de Orpheu, chamando-lhe Mónica Teixeira um “clássico moderno”, um autor com um caminho muito próprio que define a poesia dos seus livros: Além-Mar (1917), onde se denota um certo patriotismo insular, Descaminho (1926), Arrabalde (1928), Litoral (1932), Confidência (1945) e Digressão (1953). Filósofo Y, Príncipe d’Arcádia ou Cavaleiro do Cisne são os nomes autorais de outro poeta que se destaca na Ilha, sobretudo a partir dos anos 20 da centúria: Octávio José dos Santos ou Octávio de Marialva. Nascido no Funchal em 1898, onde viria a falecer a 3 de junho de 1992, da sua obra versátil, na medida em que toca vários temas – filosofia, teosofia, astronomia e esoterismo –, destaca-se a poesia, género no qual revela a sua permanente procura de harmonia com o universo. Publicou, entre outros livros de poesia, A Morte do Cisne (1923), A Sinfonia do Eu (1937) e Olimpo – 25 Poemas da Grécia (1991). Da geração da Presença, destaca-se, na Ilha, o escritor João Brito Câmara (1909-1967), delegado da Associação Portuguesa de Escritores (APE) na Madeira, entre 1956 e 1958. Foi diretor da página literária do semanário Eco do Funchal, o “Eco Literário”, que se revelou importante na divulgação de autores contemporâneos: Edmundo Bettencourt, Herberto Helder, Florival de Passos, Rogério Correia, Horácio Bento de Gouveia, Octávio de Marialva, Luís Marino e Baptista Santos. Foi, porém, como poeta que este advogado mais se distinguiu. Cabral do Nascimento assinou o prefácio do seu primeiro livro de poesia: Manhã (1927). Publicou, ainda, Relance (1942), Auto da Lenda (1943), um poemeto nacionalista com características épicas, Ilha (1940) e Poesias Completas (1967), cujo prefácio é da autoria de Fernando Namora. Edmundo de Bettencourt (1899-1973) foi, também, um dos fundadores da Presença, juntamente com José Régio, Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca. Colaborou em diversos jornais e revistas e consagrou-se um dos grandes poetas da época, na Madeira e no continente. Em 1930, publica O Momento e a Legenda, a sua primeira e solitária obra em mais de 30 anos. Só em 1963, Bettencourt volta a evidenciar-se com a publicação de toda a sua obra. Os Poemas de Edmundo Bettencourt integram, além de O Momento e Legenda, Rede Invisível, de 1930-31, Poemas Surdos, de 1934-40, e Ligação, escrito entre 1936 e 1962, e são prefaciados por Herberto Helder. Um outro poeta com algum significado nesta época é Carlos Agapito Camacho (1903-1994), que assina os seus textos sob o pseudónimo Santiago de Melo. Como poeta e ensaísta, colabora na imprensa, nomeadamente no Diário da Madeira e no semanário Trabalho e União, onde assina, sobretudo, artigos de crítica literária e crítica social, assumindo um discurso provocatório e fantástico e demarcando-se pela sua originalidade, pela ironia e pelo ritmo das frases, levando o Visconde do Porto da Cruz a chamá-lo “o ritmador da ironia”. Em 1928, surge integrado no segundo grupo da Presença, com quem politicamente mais se identifica, e publica os poemas “Insolação”, “Senti Saudades de Mim” e “Claro-Escuro” na Presença (n.º 28, vol. 2, ago.-set. 1930). “Insolação” virá a ser publicado, a 13 de dezembro desse ano, em Trabalho e União e Luís Marino publica-o na coletânea Musa Insular, caraterizando-o como um poeta modernista com estilo próprio. Octávio de Marialva dedica-lhe o soneto “Don Juan” que o Diário da Madeira publica no dia 10 de agosto de 1930. Em Musa Insular, Luís Marino reúne uma plêiade de 372 poetas madeirenses, entre o séc. XV e a data da publicação (1959) deste “espicilégio popular madeirense”, como lhe chama o próprio autor no prólogo da obra: desde João Gonçalves da Câmara (1414-1501) a Carlos Maximiliano Alves de Menezes Cabral (1942-), o último poeta referenciado nesta obra. Luís Marino é o nome literário de Luís Gomes da Silva (1909-1996). De entre a sua vasta produção literária, destacamos: Revoada de Sonhos (1932), Cardos e Papoilas (1944), O Pobre e o Rico (1950), O Canto do Cisne. Poemas (s.d.) e Bolas de Sabão (s.d.). [caption id="attachment_14724" align="alignleft" width="218"] António Aragão[/caption] Os anos 50 são essencialmente ligados à poesia e a uma certa afirmação do meio insular. Por esse motivo, à semelhança do que já havia acontecido no séc. XIX com Flores da Madeira, alguns dos poetas madeirenses são reunidos em coletâneas. Surge, de facto, em 1952, Arquipélago, uma publicação do jornal Eco do Funchal, na qual se destacam poetas como António Aragão, Carlos Cristóvão, Florival de Passos, Jorge Freitas, Rebelo Quintal, Rogério Correia e Silvério Pereira. É este o primeiro palco de Herberto Helder. Nascido no Funchal, em 1930, cedo se afastou da Ilha e abriu o seu mundo a outros mundos. Desde cedo, também, manifestou interesse por determinadas culturas que, ao longo do tempo, sofreram grandes mutações. É lá que o poeta vai beber a sua linguagem (quase) ritualística, a ideia de uma metamorfose contínua e a noção de poeta como alquimista, como um deus ou um mago possuído pela força animista da linguagem. O autor, considerado, hoje, um dos maiores vultos da literatura portuguesa, participa também num opúsculo, Poemas Bestiais, em 1954, com Carlos Camacho e Jorge Freitas, uma publicação que passa praticamente em silêncio pelo Funchal. Esta é uma obra provocatória, um pouco na linha de Arquipélago e de Aerópago, que aparece como uma resposta bem-disposta à primeira coletânea. Estas coletâneas permitiram desencadear uma certa consciência literária madeirense, pela mão de escritores como António Aragão (1921-2008), Cabral do Nascimento ou Edmundo Bettencourt (1899-1973). Os suplementos literários dos jornais continuam a desempenhar um papel fundamental na vida cultural e literária da Madeira na segunda metade do séc. XX. Pedra é um desses casos. Surge em duas séries: a 25 de março de 1965, no jornal Eco do Funchal, e a 22 de janeiro de 1967, no Comércio do Funchal. Um olhar descomprometido permite-nos perceber nomes até então desconhecidos no panorama literário madeirense: Vicente Jorge Silva, Luís Manuel Angélica, José de Sainz-Trueva, entre outros. Alguns dos autores do séc. XX deixaram a sua poesia dispersa na imprensa ou referenciada em coletâneas: César Pestana (1904-1986), por exemplo, ou João França (1908-1996), mais conhecido pela sua prosa. A partir dos anos 70, alguns poetas madeirenses são integrados em antologias organizadas no continente. É o caso de Poesia 70 (Porto, 1970), Poesia 71 (Porto, 1971) e Poemografias (Lisboa, 1985). Na Ilha, José António Gonçalves (1954-2006) é o responsável pela divulgação literária de muitos dos poetas insulares. Pelas suas mãos, também se organizaram antologias de poesia: Ilha (1975), Ilha 2 (1979), Ilha 3 (1991), Ilha 4 (1994) e Ilha 5 (2006), esta última organizada pelo seu filho depois da sua morte, Cadernos Ilha, que contou com 12 volumes publicados a partir de 1988, e Livros de Cordel, que teve 10 números. Para além disso, o poeta integrou, em 1973, o Caderno de Poesia & Crítica Movimento, lado a lado com António Ramos Rosa, Eugénio de Andrade, Pedro Tamen, José Bento, A. J. Vieira de Freitas, José Agostinho Baptista e Gualdino Avelino Rodrigues. Nos anos 70, foi o responsável pela página literária do Jornal da Madeira, “Poesia 2000”, e, nos anos 90, pelo suplemento cultural do jornal Notícias da Madeira. A ele se deve também uma vasta criação poética, de que salientamos: Os Pássaros Breves (1995), Pedra Revolta (2000), Esquivas São as Aves (2001), Memórias da Casa de Pedra (2002) e As Sombras no Arvoredo (2004). Verifica-se, nestes anos, a tendência para juntar os poetas da Madeira com os dos Açores numa antologia insular, um ensaio das afinidades entre poetas de ilhas, na medida em que alguns poetas refletiram sobre eventuais pontos de contacto das escritas ilhoas, ainda que as respostas dos dois arquipélagos pareçam ter sido diferentes ao longo dos tempos: por um lado, os Açores reagem mais facilmente às correntes que se erguem na Europa e na América; por outro, a Madeira aproxima-se mais do que vai acontecendo em território português. Surge, assim, Pontos Luminosos. Açores e Madeira, uma antologia de poesia do séc. XX que abriga também alguns poetas do início do séc. XXI: João Carlos Abreu (n. Funchal, 1935); Irene Lucília Andrade (n. Funchal, 1938); António Aragão (n. São Vicente Madeira, 1924); José Agostinho Baptista (n. Funchal, 1948); Isabel Aguiar Barcelos (n. Funchal, 1958); Edmundo Bettencourt (n. Funchal, 1889); João David Pinto Correia (n. Funchal, 1939); Ana Margarida Falcão (n. Funchal, 1949); A. J. Vieira de Freitas (n. Madeira, 1940); São Moniz Gouveia (n. Santo António da Serra, Madeira, 1967); Octávio de Marialva (n. Funchal, 1898); José Tolentino Mendonça (n. Machico, Madeira, 1965); José Viale Moutinho (n. Funchal, 1945); João Cabral do Nascimento (n. Funchal 1987); José de Sainz Trueva (n. Funchal, 1947); Ângela Varela (n. Camacha, Madeira, 1938), e alguns poetas açorianos. A Ilha continua a inspirar poetas. Os que mais se têm destacado no panorama literário são, sobretudo, aqueles que conseguiram ultrapassar as fronteiras basálticas da Ilha, alguns dos quais com grande projeção nacional e mesmo internacional. Organizados cronologicamente pela data do seu nascimento, ressaltamos alguns autores: Herberto Hélder (1930-2015), a sua vasta obra, que se iniciou como uma procura surrealista, experimenta o poder da palavra e propõe uma reflexão sobre a escrita. De entre a sua poesia, sublinham-se as obras seguintes: Poemacto (1961), Retrato em Movimento (1967), O Bebedor Nocturno (1968), Cobra (1977), O Corpo o Luxo a Obra (1978), Photomaton & Vox (1979), A Cabeça entre as Mãos (1982), As Magias (1987), Última Ciência (1988), Do Mundo (1994) e Poesia Toda (1973 e 1996). Irene Lucília Andrade (n. 1938) publicou O Pé Dentro d’Água (1980), Ilha que é Gente (1986), A Mão que Amansa os Frutos (1991), Estrada de um Dia Só (1995), Protesto e Canto de Atena (2002), Água de Mel e Manacá (2002). Ao longo do tempo, integrou coletâneas dedicadas à poesia insular: Ilha 2, Ilha 3 e Ilha 4, Duplo Olhar (1997), Poetti Contemporanei dell'Isola di Madera, (Itália, 2001), Saudades da Ilha – Evocações Poéticas da Ilha da Madeira (2003) e Pontos Luminosos – Açores e Madeira: Antologia de Poesia do Século XX (2006). Ângela Varela (n. 1938) é uma poetisa representada em jornais e revistas da Ilha e do continente, bem como nas antologias Ilha 3, com “Espaços de Passagem”, de 1991, e Ilha 4, com “Corpo – Ilha”, de 1994. João David Pinto-Correia (n. 1939), docente universitário na área da literatura, escreveu, entre outras obras, Este Branco Silêncio (1991) e Onze Mais um Poemas e Lugares (2001). A. J. Vieira de Freitas (1940-1982) publicou A Palavra que Somos (1971), Habitar o Tempo (1975) e Erosão (1982). A ele se deve, também, a coordenação da antologia Da Ilha que Somos (1977), que pretendeu transmitir a voz poética da insula. No prefácio que assina, o poeta explica que o insular intui a poesia a partir da limitação geográfica da Ilha. A obra reúne, assim, um conjunto de “jovens poetas”, alguns dos quais não madeirenses, que pretendem traduzir o complexo mundo do ilhéu. De entre os autores aí representados, destacam-se Fátima Dionísio, A. Brito Figueiroa, Carlos Alberto Fernandes e Laurindo Gois, estes três últimos ligados ao grupo Ilha. José de Sainz-Trueva (n. 1947) manteve, desde muito jovem, uma produção poética regular na imprensa regional e de Lisboa, bem como em revistas literárias e várias antologias publicadas no Funchal, no Porto e em Lisboa. Em 2013, publicou O Lento Arder das Coisas. José Viale Moutinho (n. 1945) é um dos poetas da Ilha que viveu grande parte da sua vida fora dela. Jornalista, cronista, investigador, contista e poeta, tem, entre muitas outras, as seguintes obras poéticas publicadas: Urgência (1966); Atento Como um Lobo (1975); Os Laços (1979); Quarteto de Viagens e Paixões (1980); Correm Turvas as Águas Deste Rio (1982); Piano Bar (1986); Máscaras Venezianas. Poemas (1987); Tretze Quadres de Mário Botas (1987); As Portas Entreabertas: Poesia 1975 – 1985 (1990); Un Caballo en la Niebla (1992), que foi considerado pela revista Leer (Madrid) um dos 100 melhores livros da déc. de 90; Caderno de Entardecer (1996); O Amoroso (1997 e 2004); Nomes de Árvores Queimadas (1997); Areias Onde Gregos se Perdem (1998); Poemas Tristes (2001); A Ilha do Ogre (2003); Outono: Entre as Máscaras (2003); Sombra de Cavaleiro Andante: Antologia Poética 1975-2003 (2004); Por um Bosque tão Sombrio e Outros Poemas (2007); São Coisas Tais Efeitos Só do Acaso? (2009). João Dionísio (n. 1947) foi um dos três madeirenses (com José de Sainz-Trueva e António Aragão) a participar numa nova vertente do experimentalismo apresentado nas antologias portuenses Poesia 70 e Poesia 71. Tem a sua obra poética dispersa por antologias várias. Recorrendo, com frequência, ao poema em prosa, publicou, por exemplo, A Cidade de Álea (1981), Os Açúcares ou o Ruído do Silêncio (1996), Uma Inquestionável Distância (1999) e Os Construtores da Memória (2000). José Agostinho Baptista (n. 1948) foi jornalista e tradutor, tendo sido responsável pela tradução em português de alguns autores de língua inglesa, como Walt Whitman e Tennessee Williams. Assumiu-se como um dos grandes poetas dos sécs. XX e XXI. Da sua vasta obra publicada, destacam-se os livros: Deste Lado Onde (1976); O Último Romântico (1981); Morrer no Sul (1893); Auto-Retrato (1986); Paixão e Cinzas (1992); Canções da Terra Distante (1994); Agora e na Hora da Nossa Morte (1998); Biografia (2000); Anjos Caídos (2003), que lhe mereceu o Prémio PEN de Poesia; Esta Voz é Quase o Vento (2004), que lhe valeu o Grande Prémio de Poesia APE/CTT; Quatro Luas (2006); Além-Mar (2007); Assim na Terra como no Céu (2014). José Tolentino Mendonça (n. 1965) é dos mais reconhecidos poetas da sua geração, tendo sido distinguido por diversos prémios literários, como o Cidade de Lisboa de Poesia, em 1998, e o PEN Clube Português, em 2004. À semelhança de José Agostinho Baptista, foi distinguido com o grau de comendador da Ordem do Infante D. Henrique, tendo sido considerado um dos 100 portugueses mais influentes em 2012 pela Revista do jornal Expresso. Da sua vasta obra literária, destacamos: Os Dias Contados (1990); Longe Não Sabia (1997); A Que Distância Deixaste o Coração (1998); Baldios (1999); De Igual Para Igual (2001); A Estrada Branca (2005); A Noite Abre Meus Olhos (2006); O Viajante Sem Sono (2009); A Papoila e o Monge (2013). A atividade poética da ilha da Madeira mostra-se, assim, intensa. Talvez a sua condição insular e os singulares fatores geográficos e culturais façam dela uma terra de poetas. Registe-se, pois, outros nomes que fazem parte da história literária da Ilha: Carlos Alberto Fernandes, Eurico de Sousa, Gualdino Avelino Rodrigues, Guilhermina Luz, Isabel Aguiar Barcelos, Jorge Freitas, Luís Viveiros, Laura Moniz (nome com que passou a assinar São Moniz Gouveia após alteração do nome civil), João Carlos Abreu, entre muitos outros poetas que terão, certamente, lugar na história da literatura que se faz na Ilha. Há outros poetas, porém, que, não tendo nascido na Ilha, dela fizeram a sua casa. De entre os muitos que se deixaram inspirar pela Madeira, sublinham-se alguns pela importância que o tempo lhes tem dado: João de Brito Câmara (1909-1967) nasceu em Lisboa, mas foi viver para o Funchal com quatro anos. Advogado, foi sócio do Instituto Cultural da Madeira e pertenceu à Associação Portuguesa de Escritores (de que foi delegado na Ilha, entre 1956 e 1958). Colaborou na imprensa regional. Escreveu Manhã (1927), Relance (1942), Auto da Lenda (1943), Ilha (1950) e Poesias Completas (1967). Maria Aurora Carvalho Homem (1937-2010), natural da Beira-Alta, escolheu a Madeira para viver a partir de 1974. Como poeta, publicou Raízes do Silêncio (1982), Ilha a Duas Vozes, com João Carlos Abreu (1988), Cintilações, poesia sobre aquarelas de Mellos (1995), Uma Voz de Muda Espera (1995) e 12 Textos de Desejo (2003). Carlos Nogueira Fino (n. 1950), apesar de ter nascido em Évora, residiu na Madeira desde 1959, optando pela Ilha como sujeito nos seus poemas. Dos seus livros de poesia, destacamos XXIII Poemas de Ilhamar (1987), Simbiose (1988), Este Cais Vertical (1989), Contemplação do Olhar (1992), (Pre)Meditação (1992), Segundo Livro de Ishtar (1994), Arco e Promontório (1997), Inquietação da Água (1998), O Deus Familiar (2001), Funchal (2004) e 39 poemas (2006). A poesia é voz antiga na Madeira. As suas raízes (con)fundem-se com as origens humanas da Ilha. No princípio, destacaram-se os poetas palacianos, depois os que beberam a sua arte no colégio religioso, seguidos dos que foram nascendo dos salões onde as tertúlias literárias aconteciam e nas páginas dos jornais. A Madeira foi acompanhando, ao longo da história da literatura, as correntes estéticas e ideológicas do resto do país. No entanto, muitos dos poetas de origem madeirense deixaram que a Ilha entrasse nos seus versos. Basta percorrer os títulos de algumas obras já citadas para perceber que o imaginário da Ilha está, de algum modo, presente nos poetas que citamos. Veja-se, por exemplo, as coletâneas Flores da Madeira, Álbum Madeirense e Ilha, ou nomes de obras como A Divina Ilha, de Albino Menezes, ou XXIII Poemas de Ilhamar, de Carlos Fino. A partir dos finais do séc. XX, os poetas madeirenses procuraram o estatuto de cidadãos do mundo, mais preocupados com os temas e os problemas que se colocam à humanidade do que propriamente com temas locais e regionais. A Ilh a, porém, parece continuar a desencadear vocações poéticas, na medida em que todos os anos aparecem novos poetas e novos livros de poesia, dando conta da importância deste espaço para a literatura.   Graça Maria Nóbrega Alves (atualizado a 11.12.2018)

Literatura

contacto linguístico

A coexistência de línguas é um facto. Existe desde sempre e desempenha um papel importante na variação inerente a qualquer sistema linguístico, nomeadamente quando esta variação ocorre ao longo do tempo. A publicação de Languages in Contact (1953), de Uriel Weinrich, constitui um marco nesta área de estudos linguísticos e na investigação sobre multilinguismo. Os principais temas relacionados com o contacto linguístico tinham sido abordados já na sua tese de doutoramento, Research Problems in Bilinguism with Special Reference to Switzerland (1951), obra que teve por base o trabalho de campo feito pelo autor na Suíça e que contém uma descrição detalhada da situação linguística naquele país, sobretudo nos espaços de fronteira e de contacto linguístico. O contacto entre línguas mereceu, desde então, a atenção de vários investigadores, que procuraram observar e descrever, de modo sistemático, as suas propriedades – origens, processos e resultados. Contacto linguístico (conceitos) Uma situação de contacto linguístico pode ser definida como “aquela em que pelo menos algumas pessoas usam mais do que uma língua” (THOMASON, 2001, 1). Tal acontece em várias situações do quotidiano, e.g., por via de vários tipos de mobilidade humana (emigração e imigração, turismo, etc.), em que os falantes de uma determinada língua materna se encontram em contacto com falantes de outras línguas. Este fenómeno ocorre também na escola, em situações de aquisição formal de uma segunda língua, não materna, ou L2, e ainda na comunicação digital (Internet). Na era da globalização, podemos entender que, de acordo com Maria Antónia Mota (1996), as sociedades de começos do séc. XXI são, na sua maioria, plurilinguísticas e que as línguas são sistemas marcados por grande variação interna, pois a relação comunicacional entre comunidades linguísticas é tão grande que é quase impossível não se influenciarem umas às outras. Trata-se de um processo que decorre da coexistência temporal e espacial de duas ou mais línguas ou variedades linguísticas, para o qual é necessário não só “definir a natureza [como também] a escala e o grau desse contacto e determinar quem entra em contacto com quem, se indivíduos, famílias, comunidades ou sociedades inteiras”, como observam René Appel Pieter Muysken, em obra citada por Glaucia Santos (SANTOS, 2008, 23). A dinâmica do contacto pode ser descrita como a passagem de uma situação de monolinguismo para uma de bilinguismo, existindo ainda a possibilidade de um regresso ao monolinguismo (manutenção da língua de origem, anterior ao contacto). Os processos e resultados linguísticos envolvidos nesta dinâmica, descritos na bibliografia de referência e referidos por Amália de Melo Lopes (2011), são os seguintes: (i) manutenção da língua de origem (LO) como única língua da comunidade; (ii) mudança de língua (language shift, FISHMAN, 1964), em que a LO é substituída pela língua de outro grupo em contacto, pelo facto de a comunidade considerar a língua adotada mais funcional ou mais prestigiada socialmente, ou por outro tipo de circunstâncias; (iii) mistura de línguas (language mixing), que pode dar origem a outros produtos linguísticos, marcados pela influência mútua das duas línguas, tais como: bilinguismo, pidgins e crioulos. Vários fatores, tais como a quantidade de migrantes e a duração da coabitação, o prestígio ou o poder económico e político das comunidades migrantes e daquelas que as recebem, intervêm nos resultados do contacto. Este assunto tem sido particularmente debatido no âmbito da ecologia do contacto de línguas, que faz parte da disciplina de ecolinguística, que consiste no estudo das relações entre língua e meio ambiente (ou território), e foi detalhadamente discutido, e.g., por Jean-Louis Calvet e Salikoko Mufwene. Assim, nem todas as comunidades respondem ao contacto linguístico da mesma forma. Há aquelas nas quais ocorrem processos de hibridismo, quando os falantes não diferenciam os diferentes códigos, constituindo-se então uma mistura de línguas – de tipo code-switching ou alternância de códigos e/ou de tipo code-mixting – que resultam de um maior e mais permanente contacto linguístico. É o caso dos crioulos e dos pidgins, que resultam do “surgimento de uma nova entidade linguística qualitativamente distinta de todas as línguas envolvidas na situação de contacto de onde ela emergiu” (LUCCHESI, 2004, 157). Noutras situações, podemos assistir à coabitação entre duas línguas na mesma comunidade linguística – bilinguismo – ou de duas variedades da mesma língua – diglossia. Bilinguismo O bilinguismo, situação muito comum no mundo dos alvores do séc XXI, corresponde ao conhecimento e uso de duas ou mais línguas por um indivíduo – bilinguismo individual – ou por uma comunidade – bilinguismo social –, quando esta se caracteriza pela existência de um número significativo de falantes bilingues. Os falantes bilingues podem apresentar diferentes graus de proficiência e uma grande variedade de uso das duas línguas, manifestando, na sua fala, interferências e alternâncias de línguas. Assim, o code-switching é uma manifestação de bilinguismo e consiste em trocar de língua no decurso de uma mesma produção linguística, mesmo que não haja mudança de interlocutor ou de situação. Em alguns casos, esta influência pode criar uma dualidade dentro de uma comunidade linguística, que, sendo “monolingue pode tornar-se bilingue pela conservação da sua língua autóctone e da língua forasteira” (LOPES, 2011, 14). Relativamente ao bilinguismo social, é de assinalar que um país pode ser bilingue ou multilingue/plurilingue, mas parte da sua população ser monolingue, assim como pode ser predominantemente monolingue sem que tal signifique que todos os cidadãos desse país falem só uma língua ou que todos os que vivem nesse país tenham essa língua como materna. Podem configurar-se situações estáveis de bilinguismo, de bilinguismo mútuo ou assimétrico, e outras situações que se situam entre esses dois extremos. Diglossia A diglossia é uma variante de bilinguismo, sendo um termo usado para classificar situações de comunicação em comunidades que recorrem ao uso complementar de variedades e/ou línguas distintas na vida quotidiana. Nestas circunstâncias, uma variedade/língua só pode ser usada em situações em que a outra variedade/língua está excluída. Esta definição abrange muitas situações que ocorrem na maioria das sociedades. A ilha da Madeira, e.g., no âmbito do português europeu (PE), poderá ser caracterizada, do ponto de vista linguístico, por uma situação de diglossia, uma vez que os falantes madeirenses usam uma variedade falada do português, distinta da variedade padrão e excluída das trocas comunicacionais em que é exigido o uso da variedade padrão (conferências, escrita). Este tipo de situação poderá gerar um conflito, uma vez que as duas variedades não gozam do mesmo prestígio, sendo a variedade falada e informal (conversas com familiares próximos etc.) objeto de maior estigma. Interlíngua A probabilidade de ocorrer uma ou outra das três situações referidas pode estar relacionada com condições socio-históricas e políticas específicas, com as atitudes dos falantes em relação à variação linguística observada, e com as relações de força que se estabelecem entre as comunidades de falantes de línguas ou variedades distintas. A estes fatores extralinguísticos juntam-se fatores de natureza linguística, tais como a importância da distância tipológica entre a língua materna (LM) e a língua não materna, ou língua alvo (LA), e os que estão relacionados com os efeitos linguísticos da interferência na LA, dando origem ao surgimento de uma outra variedade nessa língua. Assim, no processo de aquisição de uma segunda língua, como destaca Sara Thomason (2001), os falantes podem permanecer numa fase de interlanguage (ou “interlíngua”, SELINKER, 1972), um processo de variação linguística no qual se incluem os empréstimos lexicais e mesmo interferências estruturais, resultado da transposição de alguns traços da LM para a LA. Este processo poderá dar também origem à mudança linguística; tal ocorre quando traços de interferência são conservados e transmitidos às gerações seguintes, construindo-se, assim, uma nova versão da LA. No entanto, estar em contacto com outras línguas não implica necessariamente mudança. De assinalar também que todos os níveis dos sistemas linguísticos – fonológico, morfossintático e lexical – podem ser afetados (SANKOFF, 2001). O contacto linguístico é, normalmente, mais saliente ou dinâmico em zonas fronteiriças, onde duas línguas interagem constantemente, em comunidades onde a afluência de estrangeiros é grande, e ainda em espaços marcados pela ocorrência de fluxos migratórios (emigração para o estrangeiro e o seu regresso), bem como naqueles que foram objeto de colonização ou de ocupação por parte de outros países e, como anteriormente referido, em situações de aprendizagem de outra língua (MOTA, 1996). A língua portuguesa, e.g., tal como hoje se apresenta no começo do séc. XXI, resulta de séculos de contacto com o latim vulgar e com línguas de outros povos. Emergiu no Noroeste da península Ibérica, por volta do séc. IX, numa comunidade linguística que incluía também a língua falada na Galiza. A língua escrita continuou a ser o latim, e a primitiva produção escrita em português de que há conhecimento, de natureza notarial, data do séc. XIII. A partir da constituição do reino de Portugal, em 1143, o português foi acompanhando a configuração de novas fronteiras para o reino, passando a ser falado em espaços cada vez mais alargados. O repovoamento do Sul do território reconquistado aos árabes e a situação de contacto linguístico com os falares moçárabes que dele resultou criaram novas condições para a transformação e mudança na língua. A norte e a sul desenharam-se variedades distintas: nas áreas dialetais setentrionais, a norte, a mudança tinha levado, e.g., à perda da oposição etimológica entre /b/ e /v/; no centro e sul, emergiram variantes inovadoras, como foi o caso da monotongação do ditongo [ej] em [e] em palavras como “ceifar” [sefar] e “feito” [fetu]. Estabelecidas as novas fronteiras, também a capital do reino se mudou para sul do rio Mondego, fixando-se em Lisboa. Esta mudança histórica iria determinar novos caminhos para a língua: o modelo unificador do português desloca-se, a partir do séc. XVI, para esta região, que se torna pólo inspirador da sua norma culta e ponto de partida do padrão linguístico posterior. A partir do séc. XV, a língua conquistadora foi povoando ilhas e sendo também acolhida em sociedades distintas, em África, na Ásia e na América. As diferentes situações de contacto com as línguas faladas pelos nativos nos novos espaços ocupados enriqueceram o português, tendo tido um papel muito relevante na construção das suas variedades geográficas extra-europeias – brasileiras e africanas. No âmbito do PE, as variedades insulares, afastadas do contacto com as variedades peninsulares, desenvolveram traços linguísticos próprios. Deles fazem parte a manutenção de traços conservadores nas suas variedades populares, como no caso da variante nasal [õ] nas finais verbais de terceira pessoa do plural (“comeram” [kumerõ]) – também atestada em variedades peninsulares setentrionais –, que correspondem a uma fase da língua na qual ainda não tinha ocorrido a ditongação em [Œ)w)], variante que viria a ser integrada na norma do português apenas no séc. XVI. As variedades insulares ostentam também aspetos inovadores, como a mudança manifesta na ditongação das vogais altas acentuadas /i/ e /u/, em palavras como “aqui” e “rua”, pronunciadas [Œ’kŒj] e [{’ŒwŒ], respetivamente. Tal como a estrutura sonora da língua, também o léxico está em permanente renovação, com ganhos e perdas de palavras, e com outras a gerarem novos sentidos. No português, a herança lexical latina incorporou, no início da sua formação, os contributos de povos colonizadores – germânicos (nomes como “guerra”, “luva”, “roupa”) e árabes (“alcatifa”, “arroz”, “açúcar”, “atum”, “armazém”, “aldeia”). Mais tarde, na sua expansão marítima, os contactos com outras comunidades linguísticas enriqueceram a língua portuguesa e as suas variedades, sendo introduzidos novos itens: empréstimos das línguas ameríndias (“canoa”, “amendoim”, “tapioca”, “mandioca”, “goiaba”, “pitanga”), africanas (“banana”, “berimbau”, “cachimbo”, “cubata”) e asiáticas (“leque”, “chá”, “bengala”, “azul”, “bambu”, “chávena”, “xaile”). Em diversos momentos da sua história, provenientes de outras línguas europeias de cultura e de prestígio, outros empréstimos foram importados e integrados, sendo de notar, e.g., os galicismos (“monge”, “joia”, “blusa”, “soutien”, “envelope”), os italianismos (“soneto”, “aguarela”, “bússola”, “piano”, “violoncelo”) e os anglicismos (“pudim”, “bife”, “lanche”, “futebol”, “andebol”, “penalti”). Aspetos socio-históricos dos contactos linguísticos no espaço insular atlântico Na altura dos Descobrimentos, como referido, os Portugueses levaram a língua para as terras por onde passavam, que conquistavam e povoavam. Tal aconteceu na ilha da Madeira, descoberta em 1418. Os primeiros colonos, oriundos tanto do Norte como do Sul do reino, terão chegado pouco depois, por volta de 1420 ou 1425. Sendo as suas fronteiras traçadas pelo mar, poder-se-ia pensar que, quando comparada com outros espaços não insulares, a ilha da Madeira, e assim as suas comunidades de falantes, se caracteriza pelo isolamento e a falta de qualquer tipo de contacto. Porém, historicamente, a Madeira estabeleceu, desde o seu povoamento, no séc. XV, vários tipos de contacto linguístico, não só com falantes de outras variedades regionais do português europeu continental, como também com falantes de outras línguas, graças a fatores relacionados com o seu desenvolvimento socioeconómico (comércio, turismo, emigração). Assim, tal como outras ilhas situadas em alto mar, mas localizadas no centro de rotas marítimas, a ilha da Madeira nunca ficou completamente isolada, porque, beneficiando das condições económicas internas oferecidas pelas culturas da cana-de-açúcar, primeiro, e da vinha, mais tarde, constituiu-se num lugar de passagem obrigatório nos caminhos traçados no oceano Atlântico. O Funchal, uma cidade portuária, era um lugar de paragem quase obrigatória para a maioria das pessoas que viajavam pelas principais rotas do Atlântico. Esta situação manteve-se quase inalterada até ao séc. XIX, tornando a Ilha, na periferia da Europa, um ponto estratégico de ancoragem, um microcentro atlântico. A sociedade madeirense pode ser vista como resultado de fluxos migratórios constantes desde o início da sua história, regulados pelos ciclos económicos. Para além da presença de comerciantes, sobretudo europeus, e de escravos vindos inicialmente das Canárias (os guanches) e, mais tarde, do Norte de África (árabes) e da Costa da Guiné (negros), é de assinalar o alto nível de mobilidade social dos madeirenses. Povoamento do arquipélago da Madeira Aquando do descobrimento do arquipélago da Madeira, no séc. XV, houve a necessidade de o povoar, tal como aconteceria posteriormente noutros espaços atlânticos portugueses: os arquipélagos dos Açores e de Cabo Verde. Inicialmente, foram enviadas para a Madeira pessoas de variadas origens sociais. Como afirma Joel Serrão, “o primeiro grupo de povoadores da pequena nobreza, pelo menos, uns catorze, e os restantes, gente de condição modesta, entre a qual, antigos presos das cadeias do Reino, e aos quais se destinavam as tarefas mais humildes e ingratas” (SERRÃO, 1961, 2). As origens geográficas da população madeirense teriam sido, como observado por Luís de Sousa Melo, sobretudo as “províncias do Minho e do Algarve” (MELO, 1988, 20). Pinto e Rodrigues (1993) apresentam também evidências de que os distritos a norte de Portugal terão contribuído em maior quantidade para a ocupação humana do espaço insular. [table id=108 /] Apesar do decréscimo de matrimónios de imigrados ao longo dos decénios, podemos observar que Faro tem uma representação mais baixa, comparativamente aos imigrantes provenientes das zonas mais a norte de Portugal. Crê-se que a importância dos indivíduos oriundos do Algarve estivesse ligada à atividade marítima e a dos emigrantes do Norte de Portugal à atividade agrícola. Por outro lado, registou-se a presença de Espanhóis na ilha da Madeira entre os anos de 1539 e 1600, como podemos comprovar no gráfico apresentado por Luís de Sousa Melo no mesmo artigo: [caption id="attachment_16108" align="aligncenter" width="661"] Fig. 2 – Gráfico representativo do movimento migratório para a Madeira no séc. XVI.Fonte: MELO, 1988, 26.[/caption]   A presença espanhola na Madeira estaria ligada sobretudo à chegada de indivíduos da Galiza. Talvez tenha sido significativa anteriormente, sobretudo pelo comércio de escravos com o arquipélago das Canárias. O povoamento teve início no perímetro entre Machico e Calheta, portanto, na costa sul, por ser mais apropriada para o arroteamento. Porém, é à cidade do Funchal que se manifesta uma maior afluência de falantes vindos de todas as partes, uma vez que ali se encontrava o porto de embarque e de desembarque. Presença de escravos (canários e africanos) A chegada dos primeiros colonos à Madeira não pareceu ser suficiente para a mão-de-obra necessária ao desenvolvimento agrícola, bastante exigente no seu início, devido à orografia e densidade florestal da Ilha. Julgou-se então necessário recorrer, para esse fim, à introdução do escravo na região. No fim do séc. XV, a população de escravos ascendia a cerca de 2 milhares, perfazendo 12 % da população total da altura. Veja-se, na fig. 3, a evolução global da população madeirense entre os finais do séc. XV e o séc. XVI: [table id=109 /] Foram, aliás, os escravos, os negros do Golfo da Guiné, os mouros cativos do Norte de África e ainda os canários quem mais contribuiu para o desenvolvimento do arroteamento de terras e, mais tarde, para a produção de cereais e de açúcar. Crê-se que até da Índia foram escravos, pois, segundo se lê no Elucidário Madeirense, “Tristão Vaz da Veiga, que foi governador-geral do arquipélago em 1582 tinha doze escravos indianos para serviço particular da casa” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Alberto Vieira, citando Alberto Sarmento, adianta que a escravatura na Madeira se apresenta como “um regresso à História Antiga, ao tempo patriarcal, com o escravo doméstico; à velha Grécia, com o escravo lavrador do Império Romano, com o escravo industrial” (VIEIRA, 1996). Os escravos guanches, marroquinos e africanos foram os primeiros a chegar à Ilha, porque a localização geográfica da Madeira, perto do continente africano, a posicionava idealmente para a receção do mercado escravo, sendo também de referir a intervenção de escravos vindos do Brasil e das Antilhas. Aos escravos deve-se, na sua maioria, o crescimento e o desenvolvimento da economia do arquipélago, que podem ser vistos por duas perspetivas: primeiro, como uma “economia de aproveitamento imediato daquilo que se apresenta com valor mercantil (madeiras, pastel, urzela) ou valor alimentar (peixe); segundo, como uma economia de produção (trigo, gado, mais tarde açúcar e vinho)” (PINTO e RODRIGUES, 1993, 408). A afluência de escravos foi tão acentuada na Ilha que muitos terão aí casado e permanecido. Inventariam-se 593 casamentos, dos quais uns ocorriam entre escravos da mesma condição, outros entre escravos e forros ou libertos, e outros ainda entre escravos ou ex-escravos e não escravos. O primeiro casamento no seio desta comunidade teria ocorrido em 1539, na igreja da Sé, e o último em 1830. Influência europeia através da história económica e social (comércio e turismo) A presença de estrangeiros na Ilha remonta ao seu povoamento. Os primeiros mercadores estrangeiros que aí apareceram eram florentinos, genoveses e venezianos, todos comerciantes do açúcar, o que originava muitas vezes na sua naturalização. Assim, refere o Elucidário Madeirense: “Os estrangeiros contribuíam consideravelmente, embora com proveito próprio, para o estado de prosperidade a que chegou esta ilha desde os fins do século XV até meados do século seguinte. Entregaram-se a diversos ramos de negócio, montaram muitos engenhos de açúcar e era por seu intermédio que se fazia uma boa parte da exportação desse produto para os países estrangeiros” (SILVA e MENESES, 1998, 422). Os Ingleses adquiriram um lugar de relevo na burguesia cosmopolita da cidade desde o séc. XVII, e a ilha da Madeira transformou-se numa escala obrigatória nas rotas marítimas da Inglaterra. A expansão do comércio, através dos negócios de exportação de produtos diversos, como o trigo, as madeiras, o açúcar, o vinho e o bordado Madeira, foi uma forma de a comunidade madeirense entrar em contacto, não só com os escravos, mas também com estrangeiros europeus que pela Madeira passavam. O comércio açucareiro terá tido início logo no dealbar do séc. XV, acentuando-se a sua produção depois da crise económica na última metade do séc. XVI, que decorreu da falta de trigo e, consequentemente, de pão. Os madeirenses viram-se para a produção do açúcar, uma vez que a produção cerealífera não prosperava nas frondosas e acentuadas montanhas da Ilha. A produção subiu, assim, em grande escala, não só para consumo próprio, como também para exportação, sendo de registar, a este propósito, o despacho enviado em 1461 ao Rei de Portugal, D. Fernando, a pedir autorização para “carregar vinhos açuquares madeyra pam e todo ho q avees de vosas nouidades pera hu vos mais prouuer sem me pagardes dizima da carregaçam”, acrescentando ainda: “taes carregações […] pera fora destes reynos” (PEREIRA, 1991, 91). Durante algum tempo, a produção e a exportação de açúcar seguiram bom porto e estenderam-se pelas cidades mediterrânicas e nórdicas, bem como para o reino, fomentando um grande interesse da burguesia estrangeira pelo comércio do açúcar. O mercado açucareiro, e principalmente a exportação deste produto para Flandres, Inglaterra, Ruão, Rochela e Bretanha, deram grande visibilidade à Madeira, sobretudo entre 1450 e 1550. Contudo, o comércio do açúcar não vingou nos séculos seguintes, devido à forte concorrência de outros locais, com maior produção. A Madeira, por ser uma ilha de pequenas dimensões, não conseguiu competir, pelo menos em grande escala, com os novos produtores da América do Sul (Caraíbas e Brasil). Com o declínio do açúcar, é a vinha que, enquanto cultura, passa a predominar, já nos fins do séc. XVI. O clima da Madeira, ameno em qualquer estação do ano, para além de favorecer as culturas, também não passou despercebido aos estrangeiros do Norte da Europa, cujos invernos eram muito mais rigorosos. De acordo com Albert Silbert, citado por António Marques da Silva, as características peculiares do clima da Madeira devem-se à “presença dos ventos alísios que emolduram o arquipélago da Madeira” (SILVA, 2007, 35). Apesar da grande afluência de Ingleses à Madeira, não foram apenas estes que tiveram interesse na beleza, no clima e no comércio que a Ilha podia oferecer. Os Alemães também mostraram essa vontade. A presença alemã na Madeira, tal como a inglesa, remonta ao seu povoamento, no séc. XV; com efeito, há registo de duas figuras lendárias, Henrique e André Alemão, tendo este etnónimo por referência “um indivíduo natural de Além-Reno” (VERÍSSIMO, 2012, 17). Henrique Alemão, cavaleiro de Santa Catarina, recebeu terras na ribeira da Madalena, em sesmaria de Gonçalves Zarco; uma outra terra, situada entre a Madalena e o Arco da Calheta, teria sido doada a André Alemão. A presença alemã nesta zona da Ilha “ficou assinalada através do topónimo Fajã do Alemão, hoje designada, por corruptela, Fajã do Limão” (VERÍSSIMO, 2012, 16). Mais tarde, já no séc. XVI, o comércio internacional do açúcar fica associado aos Alemães da família Paumgarther de Augsburg e à sua companhia, que mantinha relações entre a Madeira e as Canárias. Outros nomes associados à companhia são Welser Lucas Rem, Hans Rem e os feitores Leo Ravensburger e Hans Schmid. No século posterior e até ao séc. XIX, sabe-se que a presença alemã em território português vigorou principalmente nos Açores. A partir do séc. XVIII, a Madeira recebe um outro tipo de visitantes europeus: cientistas, sobretudo britânicos, mas também franceses e alemães. De facto, no séc. XIX, a permanência de Alemães na Ilha relaciona-se sobretudo com a chegada de cientistas cujos estudos incidem sobre a Madeira e têm como objeto o clima e a tuberculose; Alemães como Karl Mittermeier (que esteve na Madeira em 1855) e Rudolph Schultz (que ali esteve em 1864), entre outros, acreditavam que a Ilha possuía condições favoráveis para a sua cura. De acordo com Eberhard Wilhelm (1997), durante o período de 1815 a 1915, foram imensos os visitantes de língua alemã na Madeira, sobretudo naturalistas e médicos, que mostraram grande interesse pela botânica insular, sendo de referir, e.g., Johann Reinhold Foster e Johann George Adam Foster, e ainda, na área geológica, Leopold Von Buch. Na fig. 4, apresentam-se alguns nomes importantes de figuras alemãs que estiveram na Madeira e que em muito contribuíram para o seu desenvolvimento em diversas áreas: [table id=110 /] No séc. XIX, devido à vasta literatura científica e de viagem que inclui a ilha da Madeira, é possível reconstruir a situação da mesma nessa altura. Os viajantes que por lá passavam descreviam vários aspetos, como a natureza, a topografia, o relevo, as tradições, as vestimentas e os hábitos alimentares, e acrescentavam detalhes muito significativos, que representavam as suas ideias sobre determinadas situações do quotidiano madeirense: “De facto, o século XIX trouxe à Madeira muitos viajantes que julgaram oportuno proceder em termos dum ‘fifty-first’ e, assim, o número dos que deixaram registado em livro o seu ‘glimpse’ madeirense ascende a umas boas dezenas. Entre eles e para mencionar apenas os mais representativos em campos literários diferentes e perseguindo também diferentes objetivos temos Robert Steele, James Edward Alexander, o Dr. Wilde, James Golman, John Osborne, Wiliam Hadfield, Henry Vizetelly” (BRANCO, 1989, 201). Para além do grande número de estrangeiros interessados no arquipélago da Madeira, inicialmente pelo comércio do açúcar, do vinho, do bordado Madeira, e pelas características naturais do território (clima, botânica, geologia, medicina), na viragem do séc. XIX para o séc. XX, a Madeira começou a ser pensada como um espaço de lazer. É nesta altura que tem início o turismo na Madeira, uma nova era em que se começa a desenvolver um ciclo económico ligado a esta atividade. Se, por um lado, o turismo pode ser visto como algo motivador e revitalizador de práticas estagnadas, através do processo de aculturação, por outro, podemos inferir que o mesmo processo poderá influenciar e motivar a comunidade linguística a que se destina. Esta atração pelo turismo permitiu que houvesse, a nível económico e urbanístico, principalmente na cidade do Funchal, um grande investimento na construção de hotéis, levado a cabo sobretudo por Ingleses, que fez surgir na cidade uma realidade nova. A atividade turística transforma, assim, a capital insular num centro cosmopolita e num palco de muitas culturas. A emigração madeirense entre os séculos XV e XX Desde o séc. XV que a Madeira viu os filhos da sua terra partirem em busca de novos rumos, num movimento normalmente associado a crises socioeconómicas. A primeira crise do trigo, logo no séc. XVI, forçou os madeirenses a partirem, sendo a falta de cereais, que perdurou pelos séculos seguintes, responsável pelo facto de a Madeira se ter tornado refém da importação cerealífera vinda dos Açores. Nos sécs. XVI e XVII, os madeirenses foram essenciais no Brasil, pois contribuíram com as suas aptidões como lavradores e mestres de engenho, bem como na exportação de cana-de-açúcar, tendo tido um papel relevante no comércio açucareiro do Brasil. No séc. XVII, com a invasão holandesa do Brasil, o comércio teve dificuldades. Houve necessidade de enviar novamente madeirenses para a reconstrução dos engenhos, e eles contribuíram para a expulsão dos Holandeses do Maranhão em 1642, em particular o madeirense António Teixeira Mello; em Pernambuco, em 1645, a organização de resistência foi feita pelo madeirense João Fernandes Vieira. No séc. XVIII, a fome e a crise persistiam, consequência, ainda, da falta de trigo, como afirma Maria Licínia dos Santos: “logo nos primeiros anos do século XVIII, ou seja, 1806, a Madeira foi intensamente ameaçada pelo espectro da fome” (SANTOS, 1999, 16). A emigração para o Brasil foi, portanto, uma fuga à fome e uma forma de ascender social e economicamente. Por esta razão, os madeirenses optam por levar os seus cônjuges, decisão que beneficiou e garantiu as terras do Sul do Brasil, que estavam quase à mercê dos Espanhóis com o Tratado de Madrid. Daqui resultou uma grande afluência de madeirenses para as regiões de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Maranhão e Rio de Janeiro. A chegada dos madeirenses ao Brasil foi difícil, tendo esta situação ficado conhecida como “escravatura branca” (VIEIRA, 2004a). Na tabela seguinte, apresentam-se os dados fornecidos por Alberto Vieira relativamente ao número de emigrantes para este destino, entre os anos de 1835 e 1860. [table id=111 /]   A par do Brasil, outro destino procurado pelos madeirenses foi o sul de África, nomeadamente a extensa colónia angolana, onde se regista presença madeirense desde 1664. Até ao séc. XIX, a emigração (imigração/emigração) para esta região não se fazia de forma acentuada, quando comparada com esse século e os seguintes. O processo de emigração, resultado da continuada crise económica e das várias calamidades naturais que afetaram a agricultura, especialmente a vinícola, levou os insulares a procurarem em massa, comparativamente aos séculos anteriores, outros destinos para obterem melhores condições de vida. Para além dos problemas acima enunciados, a Madeira sofreu ainda o impacto do conflito político entre liberais e absolutistas, tornando o arquipélago vulnerável e dando aso às investidas de ocupação por parte dos Ingleses, em 1801 e em 1810. A crise permitiu que as diferenças sociais aumentassem e as classes sociais se diferenciassem mais umas das outras, levando a que as classes mais baixas, famintas, procurassem outros rumos. A meio do século (1846 e 1847), a Madeira sofre nova crise, desta vez no cultivo da semilha, o meio de sustento dos pobres, levando a mais um surto de fome e, consequentemente, a nova vaga de emigração. As Antilhas britânicas foram um dos locais procurados pelos madeirenses para emigrar, até porque, na altura, os ingleses tinham falta de mão de obra para as suas plantações. Assim, os destinos de emigração mais frequentes dos madeirenses foram as Antilhas, Demerara, os países da América Central, o Brasil, o Havai e Angola. Nas tabelas seguintes, podemos observar o número de emigrantes distribuídos pelos vários países entre 1834 e 1847 (fig. 6) e pelas colónias britânicas entre 1843 e 1866 (fig. 7): [table id=112 /] [table id=113 /]   No outro lado do oceano, a colonização de Angola era um assunto premente, pelo que, em 1884, se fixaram nessa terra os primeiros 222 colonos saídos do porto do Funchal. Ainda no mesmo ano, chegariam mais 349 emigrantes e, até 1890, registaram-se mais de 704 indivíduos. Ainda no séc. XIX, outro destino procurado pelos madeirenses foi o Havai, que, na segunda metade da centúria, recebeu 400.000 emigrantes de todo o mundo. A emigração madeirense deveu-se em grande parte ao trabalho de Wilhem Hillebrand. Em 1978, este promoveu uns panfletos denominados “Breve notícia acerca das ilhas Sandwich – e das vantagens que elas oferecem à emigração que as procure”. Segundo Susana Caldeira, “Primeiro, foram os chineses, em 1852. A emigração portuguesa começou com o primeiro grupo de 120 madeirenses que chegaram lá [ao Havai] no dia 29 de setembro de 1878, a bordo do navio Priscilla, respondendo [ao apelo de] mão de obra [para as] plantações de açúcar”. A predominância dos madeirenses durou até ao início do séc. XX, e “o português, que foi ensinado, na universidade do Havai, até 1956 e, mesmo depois, por alguns tutores privados, ainda é falado por alguns descendentes, sendo que o sotaque e os termos utilizados podem denotar-se de origem madeirense” (CALDEIRA, 2011). Se, por um lado, a emigração madeirense se acentuou no séc. XIX em países da América Central e nas colónias ingleses, já no séc. XX os destinos emigratórios serão predominantemente o Brasil, Curaçau, a África do Sul e a Venezuela. No início do séc. XX, com as guerras mundiais à porta, a emigração viu-se fechada e será apenas a partir de 1940 que irá acentuar-se, consequência dos danos colaterais provocados pela Segunda Guerra Mundial. Neste período, o turismo diminuiu, assim como a exportação do vinho, o que fez agravar a situação económica na Ilha e aumentar a necessidade de saída dos madeirenses. Na fig. 8, podemos ver o número de emigrantes para a Venezuela e para o Brasil no período compreendido entre 1943 e 1954.   [table id=114 /]   No séc. XIX, apesar de muitos madeirenses terem saído da Madeira, muitos regressaram também; já no séc. XX, e segundo os censos 2011, a população de nacionalidade portuguesa residente na Madeira que já tinha residido no estrangeiro é de 18,2 %; a maior fatia corresponde aos que tinham emigrado para a Venezuela (37,1 %), seguindo-se os indivíduos que tinham estado no Reino Unido (17,5 %). A Madeira é, portanto, uma porta aberta para o mundo, para o fluxo de entradas e saídas de várias comunidades linguísticas e culturais, caracterizada por um contacto persistente e acentuado com outras comunidades linguísticas ao longo do tempo. Desta forma, é possível entender o contacto linguístico na Madeira como um facto que poderá estar na origem de vários fenómenos linguísticos variáveis, sobretudo a nível lexical, mas também fonético, morfológico e, porventura, sintático. Os produtos resultantes dos contactos etnolinguísticos no arquipélago da Madeira serão exemplificados a seguir.   Produtos linguísticos resultantes do contacto linguístico Os estrangeirismos correspondem a empréstimos, porque são termos importados de outras línguas, podendo ou não sofrer adaptações para se adequarem às características fonéticas e morfológicas da língua de acolhimento; surgem por necessidades denominativas e comunicativas. Um dos empréstimos mais usados e generalizados no arquipélago será, sem dúvida, o nome “semilha” (batata), empréstimo do espanhol “semilla” (semente), a partir do qual surgem as formas derivadas “semilheira” (de “semilha” + sufixo -eira), para designar a planta que dá a semilha, e “semilhal” (de “semilha” + sufixo -al), para denominar uma grande quantidade de semilhas. Património linguístico ligado à presença britânica No séc. XVII, uma considerável comunidade inglesa afirma-se na Madeira. Para tal contribuiu também a conjuntura favorável ao comércio colonial inglês, definida em 1663 por D. Carlos II, que lança o vinho madeirense como um importante produto do Atlântico. O vinho ganha hegemonia na cultura madeirense, substituindo o açúcar, tal como refere, em 1727, António Cordeiro, citado por Alberto Vieira: “a abundância de frutos já não é tanta, como nem é tanto açúcar, […] mas a principal de todas é a dos muitos, e excelentes vinhos” (VIEIRA, 2004a, 44). O vinho da Madeira ganha grande relevo e atrai investidores estrangeiros, nomeadamente Ingleses, à Ilha. Aliás, António Ribeiro Marques da Silva, falando da perspetiva de um estrangeiro, afirma que: “Hancock parece ter razão em referir o vinho Madeira como um dos mais importantes motivos da deslocação do comércio atlântico” (SILVA, 2007, 38). Nos séculos que se seguem ao ciclo do açúcar, a Madeira continua a receber imensos estrangeiros, na sua maioria Ingleses, que se fixaram na Ilha e que contribuíram significativamente para o comércio vinícola. Estas comunidades estrangeiras terão provavelmente começado a influenciar linguisticamente a comunidade madeirense. A língua inglesa é, assim, depois da portuguesa, a que é mais falada e a que detém mais prestígio na Ilha. Os elementos da comunidade britânica aí assentaram primeiro como comerciantes e, mais tarde, como naturalistas. No séc. XVIII, a Madeira era vista como um centro político e social em transformação, o que se deveu à presença de duas comunidades linguísticas diferentes. Aliás, a comunidade inglesa na Madeira contribuiu maioritariamente para o desenvolvimento da economia insular, desde o séc. XVII até ao séc. XX, tendo estabelecido uma organização conhecida como British Factory. A narrativa segundo a qual a descoberta da ilha da Madeira é tributária dos Ingleses, ou a lenda de Machim, reforça a ideia da ligação mítica e histórica à cultura anglicana, ideia que tem sido explorada sobretudo na literatura britânica. Alberto Gomes (1950) menciona que uma revista britânica sugere que a conservação da Cruz do túmulo de Anne d’Arfet e Robert Machim na capela da Ordem de Cristo em Machico poderá ser um sinal de que os madeirenses consentem na tese de que o descobrimento foi feito pelo casal inglês. Esta lenda poderá também explicar a forte adesão de Ingleses ao arquipélago. De acordo com David Hancock (2012), a comunidade inglesa fixada na Madeira no início do séc. XIX deveria rondar os 500 indivíduos, muitos deles a viverem nas suas quintas, próximas ao Funchal. Embora a comunidade britânica tivesse poucos membros, a sua influência na construção e no desenvolvimento da sociedade insular foi enorme. Na verdade, não foi só o vinho que os interessou. No séc. XIX, em 1850, apareceram numa exposição no Funchal uns bordados madeirenses que chamaram a atenção de Elisabeth Phelps. No mês de junho do mesmo ano, nos dias 29 e 30, o Cons. Silvestre Ribeiro promoveu os bordados numa feira com o objetivo de fomentar o comércio interno, feira que, de acordo com Luísa Clode (1968), foi visitada por 15.000 pessoas. Posteriormente, Elisabeth Phelps deu a conhecer o bordado madeirense aos Ingleses e, a partir 1854, deu-se início à produção de bordados em larga escala. Com o continuar dos anos, e apesar dos altos e baixos que a sua produção conheceu, pode considerar-se que, de um modo geral, houve um aumento significativo do número de bordadeiras e da sua produção, que se refletiu numa maior afluência de estrangeiros, em especial de Ingleses, ao Funchal para a compra do bordado, assim como na exportação. O património natural insular também resulta, em grande parte, da atividade científica conduzida por naturalistas britânicos que viveram na Ilha, tal como o Rev. Lowe, ou que nela permaneceram algum tempo, e.g., sir Joseph Banks, no séc. XVIII e, no séc. XIX, Morgan Lemann, James Yate Johnson, sir Dalton Hooker, entre outros, a fim de coletar dados que integram várias taxonomias científicas (botânica, fauna, geológica, etc.). Os Ingleses estiveram, assim, ligados à história socioeconómica da Madeira nas suas diferentes fases (açúcar, vinho, bordados e turismo). Logo no final do séc. XVII, a economia da Madeira beneficiou da sua integração no sistema comercial do Atlântico inglês, através do acordo conhecido como Lei da Navegação de 1660, usufruindo, posteriormente, do Tratado de Methuen. No entanto, é de salientar que, apesar da influência da comunidade inglesa na economia insular, os contactos com os ilhéus eram superficiais. Como afirma David Hancock “Interactions between strangers and natives […] were more restrained. […] The Portuguese had ‘a strong aversion’ to the British in particular, specially British Protestants, and the British held a similar view in reverse [As interações entre os estrangeiros e os nativos […] eram mais contidas. […] Os Portugueses tinham ‘uma forte aversão’ aos Britânicos em particular, especialmente aos protestantes britânicos, e os Britânicos tinha uma visão semelhante, simétrica]” (HANCOCK, 2009, 18). Destes tipos de contacto linguístico e intercultural há a registar vários produtos linguísticos, entre os quais regionalismos como “bambote” e “bamboteiro” (de “bum boat”). Aline Bazenga, João Adriano Ribeiro e Miguel Sequeira (2012) referem também o uso de etnónimos, tais como “inglês” e “britânico”, tanto no domínio da antroponímia como da toponímia. No que concerne ao primeiro caso, são de sublinhar os registos da alcunha “o inglês” em arquivos notoriais da Região; no caso dos topónimos, são de assinalar a antiga R. dos Ingleses, a igreja inglesa e o cemitério dos Ingleses. O etnónimo “inglês” também integra nomes de estabelecimentos comerciais, e.g., Botica Inglesa. Os patrónimos de figuras de prestígio da comunidade britânica insular foram também celebrados através do seu uso na toponímia regional. É o caso de Blandy (levada do Blandy), de Phelps (Lg. do Phelps) e de Murray (fontanário Carlos Murray, na freguesia do Monte, no Funchal). O legado da comunidade britânica contempla referências onomásticas de naturalistas britânicos nas descrições taxonómicas de plantas endógenas da ilha da Madeira, e.g. nomes de espécies, como Arachniodes webbiana (A. Braun) Schelpe, de Philip Barker Webb (1793-1854); Dryopteris aitoniana Pic. Serm., de William Aiton (1731-1793); Limonium lowei R. Jardim, M. Seq., Capelo, J.C. Costa & Rivas Mart.; Monanthes lowei (A. Paiva) P. Pérez & Acebes; Lotus loweanus Webb & Berthel; Peucedanum lowei (Coss.) Menezes; Scrophularia lowei Dalgaard; Phagnalon lowei DC.; Koeleria loweana Quintanar, Catalán & Castrov., todas dedicadas ao Rev. Thomas Lowe (1802-1874), naturalista britânico que viveu alguns anos na ilha da Madeira, Convolvulus massonii F. Dietr. e Cheirolophus massonianus (Lowe) A. Hansen & Sunding, ambas em nome de Francis Masson (1741-1805), e ainda Musschia wollastonii Lowe 1856, do mesmo autor, cujo naturalista celebrado é T. Vernon Wollaston (1822-1878). Influência do castelhano na variedade insular madeirense O arquipélago madeirense possui, ainda no séc. XXI, um grande número de emigrantes a residir na Venezuela. As segundas e terceiras gerações, já de nacionalidade venezuelana, quando regressam, esporádica ou definitivamente, à terra natal dos pais ou avós apenas falam castelhano. O bilinguismo é raro nesta comunidade, que, mesmo a residir no espaço insular, conserva a língua daquele país da América do Sul. Quem emigrou jovem fala, normalmente, português com muitas interferências castelhanas, mas o inverso também acontece, porque há quem opte pelo castelhano com, inevitavelmente, interferências portuguesas. De qualquer modo, sucede que, quando regressam para residir no arquipélago, formam comunidades, essencialmente familiares, mas também de vizinhança, mantendo tradições venezuelanas e conservando o idioma que falam entre si. Diz-se que o hábito madeirense de cozer milho terá origem venezuelana, mais precisamente na polenta; não será por acaso que muitas marcas de farinha de milho usadas neste prato madeirense têm nomes castelhanos. Estes “madeirenses venezuelanos” são reconhecidos e identificados pelos locais como “mira”, a exclamação castelhana usada para chamar a atenção de outrem. Congregando a comunidade, o Consulado da Venezuela joga um papel determinante na valorização da mesma, que inclui madeirenses casados com venezuelanos de outras origens que não a madeirense, havendo, portanto, outros contactos linguísticos. Esta influência castelhana é notória, e.g., nos nomes próprios de muitos madeirenses, sobretudo os de dupla nacionalidade, que se destacam no conjunto dos nomes próprios tipicamente portugueses dos madeirenses que não emigraram. Quando se ouvem nomes como “Melita”, “Reina”, “Estefani”, “Nancy”, “Juan” e “Juan Carlos”, reconhecem-se, sobretudo, lusodescendentes, cujos pais passaram por aquele país da América Latina. Para além disto, é na culinária que se destaca a ocorrência de vocábulos de origem castelhana; assim, a empanada, que se reencontra em restaurantes da ilha da Madeira, é um exemplo claro deste contacto linguístico motivado pela aquisição de novos hábitos culturais. Apesar do forte peso que tem, não se deverá, contudo, apenas à Venezuela a influência castelhana na variedade insular madeirense. Segundo Deolinda Macedo, tal influência remontará ao séc. XVII, aquando do domínio filipino; é uma convicção da autora, embora não exemplifique: “Em algumas regiões, nomeadamente, no norte, existem certos vocábulos que parecem acusar influência espanhola. O caso não deve parecer-nos muito estranho, porquanto é facto averiguado que durante o domínio filipino se foram estabelecer, na Madeira, várias famílias daquela nacionalidade. É natural, pois, que a estada dessas famílias na ilha tivesse deixado entre os seus habitantes alguns vestígios” (MACEDO, 1939, 3). Quando enuncia, e.g., “particularidades fonéticas”, a autora refere que “no norte, especialmente em S. Vicente, é vulgaríssima a pronúncia de tu e su para designar respetivamente os pronomes teu e seu ou tua e sua, o que denota certamente influência espanhol [sic]” (Id., Ibid., 14). No entanto, não fica bem demonstrada esta influência. Aliás, Helena Rebelo (2007), procurando influências do castelhano na variedade insular madeirense pela consulta de alguns vocabulários madeirenses, realça isso mesmo. O exemplo mais flagrante é o caso de “semilha”, que, comprovadamente, tem origem castelhana, mas pelo contacto, de novo, com a América Latina. Contudo, a presença de falantes de castelhano no arquipélago madeirense vai sendo, pontualmente, referida. Na narrativa “Prophetas” (1884), de Mariana Xavier da Silva, e.g., é mencionada a presença de um castelhano a viver no Porto Santo: “Um aventureiro espanhol servia-lhes de sacristão, e tocava todos os dias a campainha lançando pregão para a prática”; “servindo-lhes de porteiro o espanhol, que era fino e astuto, e muito dedicado aqueles impostores” (SILVA, 1884, 167-168). Esta presença não será, decerto, caso isolado e isso terá consequências na língua falada. Num dos textos de “populismos madeirenses”, o subintitulado “origens”, escreve Alberto Artur Sarmento: “A corrente de famílias estrangeiras que acudiu à Madeira pouca influência teve, a não ser a castelhana e depois mais durante o domínio em que foi estabelecido no Funchal o presídio com tropas vindas de Espanha. [...] Além dos nomes de origem algarvia, grande número de vocábulos dos árabes e castelhanos andam de mistura com termos corrompidos do inglês que atropelam os primitivos numa contínua variedade de palavras introduzidas, especialmente no Funchal, coração de todo o comércio, e onde o negociante de bordo ou bomboteiro tem uma linguagem muito sua própria” (SARMENTO, 1914). Esta quase ausência de dados, como se não houvesse grandes relações entre o castelhano e a variedade insular, deixa, no entanto, sérias dúvidas. Sabe-se que os arquipélagos da Madeira e das Canárias mantiveram desde muito cedo contactos estreitos, existindo, inclusivamente, famílias mistas; talvez por isso, gerou-se o hábito de passar férias no outro arquipélago, quer para madeirenses, quer para canários. Os investigadores do arquipélago espanhol procuram atestar influências recíprocas entre o português e o castelhano falado nas ilhas. Além disso, residirá no arquipélago da Madeira um número considerável de galegos, que se foram misturando com a população. Terá sucedido o mesmo com alguns gibraltinos, espanhóis, bolivianos, peruanos, mexicanos, etc. Mas o que se conhece, no começo do séc. XXI, sobre os contactos linguísticos entre o castelhano e o português falado no arquipélago madeirense é muito pouco; a deteção dos vestígios linguísticos de uma influência castelhana carece de trabalho de campo, faltando aprofundar a investigação no terreno.   A presença árabe na Madeira A presença árabe no arquipélago da Madeira deve-se, sobretudo, à contribuição dos madeirenses para a conquista e proteção das praças marroquinas, assim como ao desenvolvimento das relações comerciais e culturais entre as ilhas atlânticas, neste caso entre a Madeira e as Canárias, como resultado principalmente da produção açucareira. Alberto Artur Sarmento, no seu artigo acerca dos mouros na Madeira transcrito no Elucidário Madeirense, afirma: “O mouro era mais trabalhador do que o escravo da Guiné e da Mina, por isso a preferência dos senhores das terras em importá-lo para as suas fazendas de cultivo. Este comércio escandaloso […] originou o clamor do chefe dos mouros que lamenta em carta a D. Manuel, o que fazia Azambuja, apanhando a torto e a direito e de todas as classes, para enviar de contrato aos capitães da Madeira. Os mouros formaram núcleos importantes, reunindo-se em grupo ou bairro à parte, como o atesta a Mouraria, uma das ruas mais antigas do Funchal. […] Tiveram grande comércio nas vilas, especialmente em Ponta do Sol e Santa Cruz” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Acrescenta ainda que foi grande o número de mouros existentes no arquipélago da Madeira, nos primitivos tempos da colonização, nomeadamente no Funchal, na Ponta do Sol, no Curral das Freiras e em Machico. Os escravos mouros surgem das várias expedições guerreiras dos madeirenses a Marrocos e este grupo servil teve grande importância na sociedade madeirense no séc. XV. No Elucidário Madeirense, pode ler-se: “Em Santa Cruz, mostrava-se ainda há anos um retábulo existente na igreja paroquial, onde figuravam escravos mouros usando um pequeno turbante afunilado, com uma ponta caída, de que derivaram a carapuça do vilão e a toalhinha pendente da cabeça, antigos trajes característicos da camponesa da Madeira” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Sobre a carapuça madeirense, Wuellerstorf-Urbair, citado por Eduardo Pereira, em Ilhas de Zargo, afirmava em 1857: “O capuz mourisco também se modificou, desfigurando-se em gorra semelhante ao barrete frígio e desceu aos ombros em tapa-nuca; reduziu-se depois a carapuça limitada à cabeça, elevada em esboço de ponta cónica no cocuruto e sobreposta a um curto pano de linho, contra o sol, descaído até o pescoço; aguçou em apêndice a parte superior retesada em rabo-de-gato, adelgaçando para cima até acabar em ponta. Em sua forma atual não oferece abrigo nem contra o frio nem contra o calor; não parece mais do que um fragmento de touca mourisca” (PEREIRA, 1989, II, 569). Acrescenta que os habitantes das costas africanas, com quem os primeiros colonos madeirenses tiveram estreitas relações, usavam carapuças semelhantes, as quais eram à maneira de turbantes, circundadas dum pano branco fino, referindo também a igreja de Santa Cruz, onde apareciam alguns escravos árabes com estas carapuças (Id., Ibid.). Voltando ao Elucidário Madeirense, na transcrição do texto de Sarmento, o autor explicita: “Dos mouros, a dolência dos cantares, mas a dança repisada é movimento de negro. Dos mouros as lengas-lengas serranas, os populares: lengi lengi o nevoeiro corriqueiro, a formiga que o seu pé prende” “Entre as brumas, princesas encantadas, as histórias de palácios e riquezas entesouradas, ladrões e varas de condão, são influências e assuntos do povo, migrados nesta corrente de longe subordinada” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408). Francisco Lacerda, na sua enumeração de influências mouras no arquipélago, também regista os contos de princesas mouras encantadas, bem como os tapetes mágicos, as varinhas de condão e as lengalengas (lingue-lingue). Afirma também que certos sítios têm na sua toponímia reminiscências mouriscas, como a Fajã da Moura (Serra de Água) e a Cova do Mouro (Monte), acrescentando que “aonde hoje se encontra a Capela de Nossa Senhora da Penha de França, no Faial, existiu uma pequena mesquita, com entrada disfarçada, aonde os mouros secretamente se reuniam” (LACERDA, 1993, 102). O autor menciona ainda que os corsários mouros rondavam os mares do arquipélago e que, muitas vezes, assaltavam povoações, como o Caniçal e a Fajã dos Padres (no Campanário), e salienta que o Porto Santo foi assolado muitas vezes, ficando em escombros e a ilha quase desabitada. Refere ainda a expressão “vai-te p’ra Argel” como praga popular que relembra o saque e cativeiro em terras da moirama. Ao fazer o estudo das tradições orais populares, Lacerda documenta o romance de conde Claro (ou Claros), variante de D. Carlos de Mont’Alvar, recolhido no Porto Santo, no qual podemos encontrar uma referência aos mouros ou moiros: “– Aonde vais tu, conde Claro,/que assim vais tão arreiado?/ – Se eu venho muito arreiado,/É p’ra com moiros brigar” (LACERDA, 1993, 24). A forma “arreiado”, provavelmente de “arrear”, significa “pôr os arreios, peças do aparelho das cavalgaduras” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Nas cantigas, regista uma referência à moirama nos seguintes versos: “Fui cativo p’ra moirama,/pelo triste azar da guerra;/que por mim moneta desse,/não houve perro nem perra [?]” (LACERDA, 1993, 62). “Moirama” ou “mourama”, “terra de muçulmanos” e “os mouros”; “moneta”, possivelmente “moeda” (de monetário); “perro” e “perra”, respetivamente “cão” e “cadela”, “pessoa vil, canalha, patife, sacana” (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). O autor documenta ainda, na parte denominada “Cantigas d’amor”, a composição “Pretidão de amor”, onde também há uma clara referência aos mouros: “Passei pela tua porta/Pedi-te água, não me deste./Tu passaste pela minha/Bebeste quanta quiseste./Nem os moiros da moirama/Faziam o que tu fizeste!” (LACERDA, 1993, 153). Outra relação entre a ilha da Madeira, o Norte de África e Portugal diz respeito à lenda da ilha de Arguim, que Lacerda regista da seguinte forma: “Em certas tardes brumosas, aparece, ao pôr do sol, para os lados do Porto Santo uma ilha, também envolta em bruma, onde o Desejado (Rei D. Sebastião) dorme e espera, desde a desastrosa jornada de Alcácer-Quibir. Espera, até que uma alma forte consiga abordar a misteriosa ilha de Arguim” (LACERDA, 1993, 80). Arguim é uma ilha na baía de Arguim, na Mauritânia, onde teria sido construída a primeira feitoria portuguesa na costa ocidental africana, por ordem do infante D. Henrique, senhorio do arquipélago da Madeira. Foi um importante centro de comércio, estabelecendo ligações com Safim, depois Marrocos. O Rei D. Sebastião, derrotado pelos mouros na batalha de Alcácer-Quibir, teria fugido para uma ilha no oceano Atlântico, que seria Arguim; na rota para esse lugar, teria passado pela ilha da Madeira, tocando o cabo do Garajau, e na rocha teria espetado a sua espada, que aí ficou encantada, a aguardar que um dia ele voltasse para a conquista do território português que, entretanto, tinha sido submetido aos Filipes de Castela. Outra versão da lenda diz que o Rei enterrou a sua espada na encosta mais árida e escarpada da Penha de Águia, no Porto da Cruz. Marco Livramento refere ainda a lenda da construção do templo a S.to António, na freguesia de Santo António da Serra (concelho de Santa Cruz), que, curiosamente, teve como interlocutor preferido um escravo mouro (Lendas e mitos fundadores). A presença árabe parece estar patente na música e nas tradições populares madeirenses, e.g. na mourisca, como o próprio nome indica. Lacerda, a propósito da presença moura no arquipélago da Madeira, diz que mourisca é o nome de uma dança que perdeu todo o seu carácter mouro (LACERDA, 1993, 103). Carlos Santos afirma tratar-se de uma canção que se popularizou, adquirindo variantes de freguesia para freguesia, sendo cantada sobretudo na cultura do trigo do trabalhador mouro ou madeirense (SANTOS, 1937, 39). No entanto, não há nenhuma certeza sobre a herança árabe no folclore madeirense, i.e., não há dados concretos que provém esta influência. Carlos Santos refere que “A canção popular revela fielmente a vida e os trabalhos do homem rural, as alegrias e dores, esperanças e incertezas, o amor e a fé. As ilhas da Madeira e Porto Santo, colonizadas por gentes vindas do Norte ao Algarve de Portugal continental, assim como escravos mouros, negros e outros, naturalmente reflete o modo de ser, pensar, agir e reagir, a mentalidade dos povos que as precederam […]. A influência árabe, que mais do que qualquer outra se manifesta no nosso povo, não é já árabe, senão portuguesa na sua origem, para nós. Essencialmente portugueses são a nossa gente e o nosso carácter” (Id., Ibid., 8). O autor escreve: “Igualmente não é crível que as primeiras gerações madeirenses fossem todas puras e assimilassem unicamente os hábitos e costumes dos seus progenitores. […] Não esqueçamos, igualmente, que aos escravos nunca foi proibido dançar e cantar” (Id., Ibid., 39), tal como aconteceu no Brasil. No entanto, isto não invalida que haja traços de música continental portuguesa, i.e., parecenças entre a música da Madeira e a do Minho, do Alentejo e do Algarve. Mas, segundo o autor, o estilo é madeirense, produto de uma miscelânea em que prepondera o árabe; e questiona: “E se no Minho há muitas canções alegres, porque haviam de ficar na Madeira só as monótonas?” (Id., Ibid., 40-41), para concluir que, na Madeira, “tanto nas populações ribeirinhas como nas serranas usam-se as mesmas músicas – o charamba, a mourisca e o bailinho. […] Se o estilo preponderante e generalizado mais se aproxima do mouro, segue-se que eles o deixaram por cá como aconteceu em várias províncias continentais. […] Há de haver de tudo um pouco; mas o estilo musical, não sendo o característico do continente, convida a uma reflexão demorada. A sua pobreza melódica aproxima-se da música árabe tanto quanto se afasta das ricas melodias portuguesas” (Id., Ibid., 44-45). Posto isto, o charamba, a canção mais conhecida no folclore madeirense, possivelmente deixada pelos árabes, foi adotada com variação de freguesia para freguesia. Com um ritmo arrastado e sentimental que revela a alma do povo madeirense, é o género musical mais antigo da tradição popular ou rural. Na Madeira é cantado, enquanto nos Açores é uma dança. Para Carlos Santos, o charamba parece traduzir o lamento de escravo ou ser uma melodia árabe; os camponeses madeirenses identificaram-se com esta melodia, devido à sua dura vida rural. O autor observa que, sempre acompanhado com a viola de arame, o charamba entrou no ouvido dos madeirenses, como provam as seguintes quadras: “O charamba pelo meio/Toda a vida m’agradou/Depois que o charamba veio/Outra moda não se usou” e “O Charamba foi às lapas/A mulher aos caranguejos/A filha ficou em casa/A dar abraços e beijos” (Id., Ibid., 49). Maria de Lurdes de Oliveira Monteiro, ao descrever o baile da meia-volta do Porto Santo, aponta as “características irrefragáveis dos árabes, com os quais a ilha, durante séculos, teve intercâmbio populacional: [...] não há ninguém que, vendo estas rodas e meneios lentos, em noites de luar e ouvindo as toadas melancólicas e trinadas que os acompanham não chegue instantaneamente a essa conclusão, tão grande é a semelhança” (MONTEIRO, 1945, 48). Adalberto Alves (1999) afirma que grande parte dos instrumentos musicais usados em Portugal, como o violino, a guitarra, o alaúde, a gaita, o pandeiro e o adufe, deriva diretamente dos instrumentos árabes. Jorge Torres e Rui Camacho (2015), a propósito dos instrumentos musicais populares, citam Gaspar Frutuoso, que, por volta de 1590, na descrição da ilha da Madeira, referindo-se à romaria de N.ª Sr.ª do Faial, diz congregar mais de 8000 pessoas, “que se deixam estar dois, três e mais dias em Nossa Senhora […] e juntos fazem muitas festas de comédias, danças e músicas de muitos instrumentos de violas, guitarras, flautas, rabis e gaitas de fole” (FRUTUOSO, 1873, 99). Os autores não nos dão nenhuma indicação sobre o que seria(m) este(s) instrumento(s) denominado(s) rabis, talvez por ser(em) desconhecido(s). Nem Torres e Camacho (2015) nem Torres (2015) fazem qualquer referência à influência árabe, pelo facto de não existirem dados que a comprovem, como já referido. Sobre o violino popular, o grupo de folclore do Porto Santo escreve: “Mais conhecido por rebeca foi sempre um acompanhante inseparável das danças e cantares mais característicos e tradicionais do Porto Santo, como o Baile da Meia Volta e Ladrão. Assim, pode-se concluir que o seu aparecimento no Porto Santo esteja ligado à chegada dos mouros a esta ilha, tal como as danças referidas. Posteriormente, este instrumento passou a acompanhar todas as festas populares, tanto religiosas como profanas” (GRUPO DE FOLCLORE DO PORTO SANTO, 1999, 10). Relativamente à influência árabe na alimentação madeirense, os autores do Elucidário Madeirense citam Sarmento, que chama a atenção para o cuscuz dos mouros, “massa granulada de farinha de trigo, tão apreciada pelas classes pobres e que só a comem nas ocasiões solenes, com um naco de carne de porco, pelos batizados e casamentos, não faltando o ramo de segurelha e coentro que encima o prato e o aromatiza” (SILVA e MENESES, 1998, II, 408-409). A palavra “cuscuz” (do ár. “kuskus”) surge em Luís de Sousa com a grafia “cuscus”, definida como “produto de confeção mourisca, fabricado principalmente em Marrocos e na Madeira. Notas. I. Z.” (SOUSA, 1950, 57), que se utiliza geralmente como arroz; com efeito, na Madeira, o trigo, convertido em farinha, além de ser usado para fazer pão e doces, também é usado para fazer cuscuz. Veríssimo refere que, no Convento da Encarnação do Funchal, “No Dia de Jesus ou nos Reis nunca faltava o picado de carneiro com cuscuz” (VERÍSSIMO, 1987, 39). O trigo era empregue em pão, bolos, doces, empadas, pastéis e cuscuz. No ano de 1769, e.g., as freiras consumiram 6,5 alqueires de cuscuz (Id., Ibid., 40). O Visconde do Porto da Cruz escreve: “O cuscus – parece que foi introduzido na culinária madeirense pelos escravos mouros do tempo dos povoadores – é dos pratos mais divulgados”. Diz-nos que há dois pratos: “o cuscus vulgar e o cuscus rico. O primeiro come-se só com água, sal, um raminho de segurelha, manteiga e serve-se quente e o segundo é feito do mesmo modo mas come-se com passas de uva, azeitonas, pedaços de chouriço, de carne de porco, de carne de galinha e até conservas de pepino, couve-flor, etc.” (PORTO DA CRUZ, 1963, 43). Lacerda nota que o cuscuz é “receita e uso deixado pelos mouros, muito usado nos conventos e entre seculares, nos casamentos e batizados” (LACERDA, 1993, 96); Zita Cardoso menciona que o cuscuz é servido como arroz, especialmente na quadra do Natal e na Páscoa, com pratos de carne: “Trazido do Norte de África, depois muito usado na Madeira e Porto Santo, foi alimento dos pobres muito vulgarizado na Ponta do Sol, Ponta do Pargo e Calheta. Foi também manjar senhorial. Daí haver o cuscuz rico, quando adicionado com pedaços de carne de porco, vaca, galinha, chouriço, passas, legumes e azeitonas em conserva” (CARDOSO, 1994, 134). O cuscuz é característico da zona oeste da Madeira, mas a tradição de fazer e cozinhar cuscuz não era desconhecida na parte leste da ilha, onde, como já se referiu, também houve uma importante presença moura. Élvio Sousa mostra que o cuscuz constava do receituário tradicional das cozinhas dos solares da Vila de Machico, ou seja, o seu fabrico e consumo seria frequente apenas nas casas abastadas, ao contrário do que acontecia noutras partes da Ilha (em que o seu uso era generalizado); talvez tenha sido por isso que desapareceu da parte leste da Ilha. Normalmente, era um prato confecionado em dezembro, antecedendo a matança do porco. A Revista Folclore informa que o cuscuz de trigo, na alimentação tradicional madeirense de São Vicente, era utilizado todo o ano, mas principalmente entre novembro e junho, porque se cozinhava com linguiça de porco e esta era feita com a matança do porco (GRUPO DE FOLCLORE DA CASA DO POVO DE SÃO VICENTE, 1998, 31). Segundo o Elucidário Madeirense, os habitantes da ilha do Porto Santo dão o nome de escarpiada ao pão de fina espessura feito com farinha de milho moída em moinho de mão ou de vento, sem fermento, que só terá sobrevivido nessa ilha. A massa do pão, achatada e muito fino, é cozida numa pedra de barro (o caco), untada com azeite ou banha de porco, sendo voltada de um lado e do outro (GRUPO DE FOLCLORE DO PORTO SANTO, 1998, 13). Parece tratar-se de um pão de origem árabe, característico do Porto Santo, onde a influência moura teria sido maior; contudo, segundo Alberto Vieira (2004a), consumia-se escarpiada, no séc. XVIII, no Convento da Encarnação, no Funchal. Alberto Vieira, em “A mesa e a cozinha na história madeirense” (2004b), afirma que o cuscuz, a escarpiada e o bolo do caco terão origem no Norte de África, devido ao contacto entre as duas áreas geográficas e aos escravos mouros; a escarpiada ou escrapiada teria sido introduzida no Porto Santo pelos árabes; igualmente de origem árabe será, como já se disse, o bolo do caco, pão elaborado à base de farinha de trigo, podendo levar batata-doce para ficar mais fofo e doce, tendo igualmente um aspeto achatado e de bordas arredondadas. O bolo do caco deve o nome ao facto de ser cozido a lenha, numa pedra de basalto, denominada caco de pedra, colocada sobre o lar. A presença árabe no Arquipélago da Madeira também passa pela influência berbere dos escravos guanches das Canárias. Segundo o Elucidário Madeirense, o gofe ou gófio, papa que se fazia no Porto Santo com cevada moída depois de torrada, terá sido introduzido no arquipélago no séc. XV pelos guanches, oriundos de Gran Canária, de La Palma, de Tenerife e de La Gomera (SILVA e MENESES, 1998, II, 92-93). Em Ilhas de Zargo, Eduardo Pereira informa que ainda se fabricava gófio no Porto Santo, mas em diminuta quantidade, somente para uso particular na alimentação de crianças, débeis e doentes (PEREIRA, 1989 II, 580). Destaque-se ainda a tanarifa ou abóbora moira, também conhecida por moganga com a variante boganga/o, que parece ser simultaneamente de influência canária e moura. Trata-se de uma abóbora branca que, na Madeira, serve sobretudo para fazer sopa. Os vocábulos “tanarifa” e “abóbora moira” apresentam pouca vitalidade no concelho do Funchal e na zona leste da ilha, enquanto no concelho da Ponta do Sol e Calheta (zona oeste) parecem ser muito conhecidos. O termo “tanarifa” surge em Fernando Augusto Silva (1950), em Luís de Sousa (1950), em Antonino Pestana (1970) e em Marques da Silva (2013) como sinónimo de “abóbora moira”. Helena Rebelo (2007) refere a possível origem espanhola ou canária do termo, também registado como “tenerifa” por Luís de Sousa (1950). J. M. Barcelos (2016, 392), além de registar este termo como “abóbora, o m. q. boganga/moganga”, explica que a tanarifa também é conhecida como “abóbora de Tenerife”, indicando que “Tanarife era forma antiga de Tenerife, de onde terão vindo algumas dessas espécies de legumes, em caixas de madeira, nas quais vinha escrito o nome dessa ilha das Canárias”. O estudo destas palavras e coisas da cultura madeirense mostra-nos a herança das inter-relações históricas, linguísticas e etnográficas, cuja presença se prolongou na cultura madeirense. O francesismo linguístico na realidade insular: o regionalismo “tratuário”/“trotoario” Contrariamente às situações de contacto já referidas, que remetem para a presença de comunidades linguísticas e culturais distintas no mesmo espaço insular, o contacto do português falado na Madeira com o francês pode ser visto como sendo à distância, uma vez que não pressupõe a presença de uma comunidade francesa apreciável. A influência francesa no léxico regional deve-se, tal como ocorre com a variedade padrão do português, ao facto de ser grande o prestígio da cultura francesa em geral no final do séc. XVIII e durante o séc. XIX. Esta situação, de tipo unidirecional (no sentido do francês para o português), difere, e.g., da que caracteriza o contacto com o espanhol, sobretudo nas variedades das ilhas Canárias, as quais integram um número considerável de portuguesismos, sendo por este motivo considerada uma situação de contacto bidireccional A terceira fonte em número de vocábulos no português é o francês, que, durante séculos, primeiro na Idade Média, e mais tarde, nos sécs. XVIII e especialmente XIX, foi a língua de cultura da Europa. Muitas das palavras de origem francesa recolhidas nos dicionários tornaram-se de uso culto, literário, sendo outras arcaísmos; contudo, uma parte apreciável continuou a ser utilizada, integrando-se na linguagem diária portuguesa, “abajur”, “afazeres”, “agrafo”/“agrafar”, “berma”, “betão”, “creche”, “écran”, “ancestral”, “apartamento”, “assassinato”, “avenida”, “banal”, “bicicleta”, “bobina”, “boné”, “cabine”, “cabotagem”, “camuflagem”, “chance”, “conduta”, “constatar”, “crachá”, “departamento”, “detalhe”, “eclosão”, “elite”, “embalagem”, “emoção”, “evoluir”, “fetiche”, “governante”, “greve”, “maquete”, “restaurante”, “revanche”, “revoltante”, “silhueta”, “sabotagem”, “vitrine”, etc. Algumas foram integradas no português sem alterações (“fantoche”), outras adaptaram-se às propriedades morfológicas e fonológicas do português, obedecendo também a alguns ajustes de tipo gráfico (“chauffeur”>“chofer”). Este processo de empréstimo de palavras a outras línguas pode ocorrer com alteração de propriedades gramaticais, e.g., o género, como, na passagem do francês para o português, em: “une robe”>“um robe”; “une envelope”>“um envelope”; “le courage”>“a coragem” (VILLALVA, 2008). A variedade urbana insular (Funchal) integra no seu léxico a palavra “tratuário”, que tem a sua origem no termo francês “trottoir”, nome masculino derivado do verbo “trotter” (de *“trotton”>“trotten”, correr , forma intensiva de “treten”, dar um passo, andar). Palavra atestada nesta língua desde o séc. XVI, destaca-se ainda, na sua etimologia, o uso da expressão “être sur le trottoir” (1577), com o significado ser tema de conversa; “se mettre sur le trottoir”, com o sentido figurado de produzir-se, mostrar-se (1592); o termo designa a pista na qual trotam cavalos (1660). A referência a passeio, ou “chemin élevé le long des quais et des ponts pour les gens qui vont à pied [percurso elevado, ao longo dos cais e das pontes, destinado aos transeuntes] ”, surge já no séc. XVIII (1782) (REY, 2005). Do ponto de vista das suas propriedades semânticas, integra-se, enquanto nome locativo, na categoria de objetos dimensionais de superfícies de duas dimensões; nesta categoria, pertence à classe dos nomes de passagem, caracterizados pelas correlações com deslocação, ao lado de uma via urbana, no domínio da vida quotidiana (LE PESANT, 2000). “Tratuário” aparece, assim, no léxico regional madeirense, variedade do PE, entre peregrina e empréstimo, acompanhada de uma outra, “trotoário” (como em O Amor Que Purifica e Trotoário Azul, Fotonovelas Feitas na Ilha da Madeira). Estas duas formas gráficas revelam opções de adaptação distintas: a primeira procura conformar-se à fonologia do português e a uma das suas propriedades (redução do vocalismo átono), dando conta, no seu radical *trat-, da realização da vogal central, média-alta (VELOSO, 2012) em posição pretónica, afastando-se da representação gráfica da palavra francesa; já na segunda, reconhece-se o radical nominal trot- (de “trote”, nome masculino), com diferentes realizações fonéticas nas duas línguas em relação. Ambas opções recebem, através da vogal final -o, índice temático com valor de género (masculino), de acordo com as regras morfológicas do português. De notar que os sufixos -ário e -oir, português e francês, respetivamente, têm a mesma origem latina (-arius e -orium), sendo utilizados na formação de nomes de agente, com valores instrumental e locativo, mas com propriedades morfológicas distintas: o primeiro anexa-se a radicais nominais, o segundo a radicais verbais. “Tratuário” e “trotoário”, configuram-se então como hibridismos (CUNHA e CINTRA, 1984, 115). Palavras não registadas nos vocabulários regionais de referência, não é possível datar a sua entrada no léxico regional. No entanto, atendendo à data em que surgem atestadas no léxico de origem, é provável que o momento em que passaram a ser utilizadas na comunidade insular se situe nos finais do séc. XIX, altura em que se procede à edificação e calcetamento da praça do Rossio, em Lisboa, em que surge a calçada-mosaico e em que, “nas ilhas, o seixo rolado em abundância floresce num tratuário urbano para os peões” (MATOS, 2014), época coincidente com a do francesismo – iniciado a partir dos meados do séc. XVIII até aproximadamente à Segunda Guerra Mundial, período marcado pela influência cultural de França em vários aspetos da vida portuguesa (literatura, política, ideias) e também na língua, em diversas componentes do seu sistema, como refere Paul Teyssier (1994).     Catarina Andrade Aline Bazenga Helena Rebelo Naidea Nunes     artigos relacionados: cintra, luís filipe lindley gramáticas provérbios e outros ditos populares regionalismos madeirenses  

Linguística

ovington, john

Nascido em Melsonby, Yorkshire, em 1653, entrou aos 15 anos para o Trinity College de Dublin, obtendo o bacharelato em 1675 e a licenciatura em 1678. Finalizou a sua formação no John’s College de Cambridge, onde ingressou em 1779. Não se sabe quando foi ordenado, mas muito provavelmente terá sido no mesmo ano de ingresso no John’s College. Integrou a Companhia das Índias Orientais 10 anos depois, partindo a 11 de abril de 1689 do porto de Gravesend, no navio inglês Benjamim daquela Companhia, como capelão de bordo, dentro do costume dos navios ingleses, de guerra ou mercantes, de contratar um capelão. Foi nessa viagem que passou pelo Funchal, tendo como destino Surat, na província de Guzerate, na Índia, onde aquela Companhia inglesa se havia instalado em 1608 e consolidado a sua presença após a batalha de Swally, a 29 e 30 de novembro de 1612, contra uma armada portuguesa enviada de Goa para os desalojar. O Rev. John Ovington domiciliou-se em Surat durante dois anos e meio, mas a cidade entrava em decadência com a transferência da sede da Companhia para Bombaim, em 1687, cidade que entrara para a Coroa inglesa em 1662 no dote de casamento de D. Catarina de Bragança (1638-1701) com Carlos II (1630-1685). A Rainha D. Catarina de Bragança introduzira o chá na corte inglesa, pelo que essa bebida passou a gozar de certa divulgação, sendo um dos principais negócios da Companhia das Índias Orientais. Regressado John Ovington a Inglaterra por volta de 1692, veio a editar as memórias da sua viagem em 1696, sendo estas, posteriormente, sucessivamente reeditadas e traduzidas. No entanto, à época, foi o folheto que escreveu a divulgar o chá, editado em 1699, que lhe deu renome, para o bem e para o mal. Até essa data, o chá era considerado uma bebida somente de senhoras, o que lhe veio a causar alguns problemas, tendo sido o seu principal delator um capitão de navio concorrente da Companhia, Alexander Hamilton, que não se escusou de o apelidar de “fêmea Ovington” e “mole hermafrodita” (SILVA, 1981, 177-178). No entanto, os trabalhos de Ovington já haviam sido reconhecidos antes de 1696, tendo sido nomeado capelão do Rei Guilherme III (1650-1702), ensinando na Universidade de Dublin e acabando os seus dias, solteiro, como reitor de St. Margaret, Lee, no condado de Kent e Diocese de Rochester, em finais de junho de 1731. Alguns anos depois, especialmente após a tradução francesa de Jean-Pierre Niceron (1685-1738), editada como Voyages Faits à Surate & en d'Autres Lieux de l'Asie & de l'Afrique (Paris, 1725), a sua obra passa a ser conhecida como apresentando franca influência mongol e aspetos do ascetismo indiano e persa deveras interessante. Seguiremos a tradução de António Ribeiro Marques da Silva, feita a partir da edição da responsabilidade da Oxford University Press, editada em Londres em 1929 e incluída em A Madeira Vista por Estrangeiros, 1455-1700. A sua descrição da ilha da Madeira começa pela habitual abordagem histórica inglesa, na base da mítica viagem de Machim e Ana de Arfet, a que, com alguns anacronismos, se segue a viagem dos primeiros capitães, não nomeados, que, desembarcados depois para o povoamento, “em pouco tempo, transformaram a região num paraíso” (OVINGTON, 1981, 196). Ovington deve ter consultado a descrição de Cadamosto (1432-1488), pois utiliza termos e medidas iguais, elogiando a fertilidade do solo da Ilha e ressaltando “que todos os seus produtos, pela notável beleza e abundância, fizeram-na ganhar o título de ‘Rainha das Ilhas’” (Id., Ibid.). O capelão refere também que dali se exportava vinho e açúcar, sendo este “considerado o melhor do mundo” (Id., Ibid., 197). No entanto, o principal produto de exportação da Ilha era o vinho, tendo as videiras vindo de Creta e sendo então três ou quatro castas, com as quais aquele era produzido. Um, menos apreciado, era da cor do champanhe; outro, mais forte e de cor mais clara, era semelhante ao vinho branco; a terceira espécie, rica e deliciosa, era designada por Malvasia; a quarta espécie era o tinto, mas era muito inferior em gosto. O texto de Ovington é um dos primeiros textos a descrever o tratamento do vinho madeirense: “Para fermentar e tratar o vinho, trituram e cozem uma pedra chamada gesso, da qual atiram nove ou dez libras para dentro de cada pipa”. O reverendo cita igualmente que, por aquela data, se começou a perceber as qualidades da fermentação ao calor do sol, informando que se desviava o batoque “da abertura da pipa e, desta maneira, o vinho ficar exposto ao ar” (Id., Ibid., 197-198). John Ovington refere que eram “muito vulgares os citrinos, dos quais os nativos fazem um doce delicioso” (Id., Ibid., 198) chamado sucket, que era anualmente exportado para França, em dois ou três pequenos barcos. O açúcar com que realizavam a cristalização de frutos, “muitas vezes receitado como remédio para a tuberculose pulmonar”, raramente era exportado devido à sua escassez, pois mal chegava para as necessidades da Ilha (Id., Ibid.). O termo “sucket” utilizado por Ovington deve corresponder a qualquer doce que se chupava, a uma espécie de rebuçado de funcho que deve ter visto apenas na Ilha, pois, na época, os doces de exportação seriam chamados de compotas, doces e casquinha, uma conserva feita com cidra cristalizada, conforme consta da documentação local. No entanto, este negócio de doces era mais importante do que Ovington pensava, exportando-se muito mais do que os três citados pequenos barcos para França. O informador de António Jorge de Melo (c. 1640-1704) afirmava mesmo que poderiam estar envolvidos nos cômputos gerais anuais cerca de 20 embarcações só de um tipo destes doces. As bananas devem ter estarrecido o puritano reverendo, que refere: “são tão apreciadas e até veneradas que ganharam, entre os nativos, a crença de serem o fruto proibido. E parecendo confirmar esta crença, as plantas exibem as vastas folhas que sendo tão grandes os levaram a dar crédito à sua utilidade na proteção da nudez de Adão e Eva. É considerado quase crime sem perdão cortar com uma faca este fruto que, depois do corte, apresenta leve semelhança com o Nosso Salvador crucificado; e isto, segundo dizem, é ferir a sua sagrada imagem” (Id., Ibid., 199). Seguindo a descrição de Ovington, lemos igualmente: “os negociantes ingleses, que se calcula não ultrapassarem uma dúzia, seguem a maneira de viver inglesa característica das suas cidades e da casa de campo. Enfastiados da cidade, recreiam-se nas suas propriedades rurais, para as quais nos convidaram solenemente levando-nos a nós, forasteiros, a um fresco lugar onde borbulhavam fontes à sombra da ramagem de laranjeiras e limoeiros. A Natureza aqui oferecia-nos um quadro de alegria e amor e esperava-nos com toda a pompa, amenidade e beleza de paisagem campestre. As colinas e vales abafados de vinha, ofereciam-nos o penetrante odor das uvas maduras” (Id., Ibid., 199). O vinho da Madeira ocupa uma boa parte do texto referente à Ilha, escrevendo com certo espanto Ovington que os madeirenses “quando bebem em companhia não impõem aos outros o vinho que devem beber. O criado empunha a garrafa entregando ao convidado o copo e lentamente verte a quantidade que aquele deseja. Deste modo, cada um toma a quantidade que lhe apetece, não sendo, por isso, os mais sóbrios forçados a beber de mais contra sua vontade” (Id., Ibid., 200). Acrescenta ainda que urinar na rua é considerado indecente e pode fazer com que “as pessoas sejam censuradas por embriaguez” (Id., Ibid.). Esta passagem de Ovington leva-nos a pensar que os excessos de consumo de álcool vigentes na Madeira nos séculos seguintes não eram então notórios. As apreciações mais complexas do reverendo anglicano vão para a forma de viver e vestir dos madeirenses, que lhe deve ter inspirado algum receio e que, a par de informações vinculadas provavelmente pelos comerciantes ingleses, o fez esboçar um quadro quase tenebroso da Madeira daquele tempo, a que é necessário dar o desconto devido à sua condição de puritano e estrangeiro. Escreveu, assim, que as pessoas optavam por uma maneira de vestir extremamente solene, trajando todas de negro, à semelhança, segundo entendeu, dos elementos eclesiásticos, “para melhor captarem as boas graças dessa classe que disfruta de tanta autoridade entre eles” (Id., Ibid.). Acrescenta ainda que não conseguiam deixar de viver sem “a galhardia que atribuem ao uso de uma espada ou punhal. Esses apêndices inseparáveis são até usados pelos criados que servem à mesa e que orgulhosamente se pavoneiam com os pratos, naqueles trajes solenes, com os punhos de uma espada de, pelo menos, uma jarda de comprimento (quase um metro) e isto em pleno verão” (Id., Ibid.). Esse e outros pormenores levaram o capelão anglicano a escrever que “o execrável pecado do homicídio ganhou também, não apenas impunidade, mas até reputação. Mergulhar as mãos em sangue tornou-se característica de qualquer cavalheiro de posição social e distinção” (Id., Ibid., 203), acrescentando: “são muito propensos a este crime, caindo frequentemente nele, devido ao fácil acolhimento das igrejas que os resguardam de qualquer ação judicial e aonde acorrem sempre que se lhes ofereça oportunidade” (Id., Ibid.), o que, embora fosse verdade, não era assim tão linear (Alçadas). O capelão anglicano atribuía esta situação à Igreja Católica, dizendo que “o número de clérigos aumenta aqui, assim como em outros países papistas, até para opressão de leigos com os quais parecem rivalizar em quantidade. Custa a crer como tantos ricos eclesiásticos podem ser sustentados com o labor de tão escassa população” (Id., Ibid.). Acrescentava ainda: “reduz-se este espanto sabendo que – segundo nos dizem – com o fim de evitar uma sobrecarga para a igreja, ninguém neste país é admitido na clerezia, se não conseguir possuir algum património” (Id., Ibid.). As apreciações mais difíceis de Ovington apontam para uma certa promiscuidade sexual que encontrou na Ilha e que, mais tarde, também apontará a Bombaim. Embora seja de colocar algumas reservas às suas observação, parece não haver dúvidas quanto à existência de uma certa libertinagem na Ilha, já confirmada, e.g., com Giulio Landi (c. 1510-1578) nos anos 30 do século anterior. Ovington cita que “a inconstância do marido encoraja (embora sem o direito de desculpar) a mesma leviandade da esposa, cujo sexo é dotado de uma fraqueza que não lhe dá resistência contra os encantos de sedutoras tentações. Portanto, são aqui as mulheres tão capazes de enganar os maridos como estes de enganar as mulheres, uns aos outros igualmente acessíveis a forasteiros, especialmente as mulheres, cuja disposição nesse sentido é mais excitada pelo facto de viverem enclausuradas, guardadas e afastadas de qualquer convívio” (Id., Ibid., 202). Ovington aponta como uma das principais razões de tal situação os arranjos matrimoniais efetuados pelas famílias, à semelhança, e.g., do que era praticado na Índia, onde as crianças de tenra idade se comprometiam, através de contrato, aos cinco ou seis anos. Ao preparar-se um casamento, as primeiras informações procuradas eram sobre a ascendência e posição económica do pendente, procurando-se evitar a “detestada afinidade com os mouros e judeus, entre eles muito numerosos” (Id., Ibid.). No âmbito deste tema, ressalta ainda que uma das atitudes que mais o “surpreendeu foi a proibição que uma certa velha dama levantou às pretensões de um jovem candidato à mão de sua filha, informada da saúde e vigor da constituição do jovem, assim como da moderação e castidade nos seus costumes dos quais constava nunca ter sofrido qualquer doença venérea” (Id., Ibid., 203), concluindo a senhora que tal se devia à fraqueza da constituição física do jovem, pois “pensava não haver necessidade de objeções de consciência para pecados tão veniais cuja prática, em sua opinião, era meritória” (Id., Ibid.). As apreciações gerais sobre a cidade são sumárias, registando Ovington que “as casas são feitas sem grande dispêndio ou esplendor, nem se distinguem pelo embelezamento artístico nem interiormente se apresentam ricas de ornamentos e mobiliários. Algumas atingem uma razoável altura” – por certo as típicas torres do Funchal para se ver o mar – “mas sem outra característica de grandeza. Geralmente são de telhados baixos, permitindo todas a ventilação através de janelas que, sem vidros, ficam abertas durante o dia e fechadas com postigos de madeira, à noite” (Id., Ibid., 200-201). No entanto, o reverendo deixou-se extasiar perante a igreja dos Jesuítas, que considerou “de longe o mais belo de todos os seus templos” (Id., Ibid., 204), descrevendo principalmente as iluminações e festas por ocasião do dia de S.to Inácio. Informa, então, que se cantou “uma série das mais escolhidas antífonas com o acompanhamento melodioso de instrumentos e música coral, suficientes, se a sua doutrina lhes correspondesse, para nos cativar e levar à conversão” (Id., Ibid.). Conta, por último, que “algumas capelas, assim como as casas, são construídas sobre colinas tão íngremes que parecem ameaçar de quedas graves os que saem delas, os quais certamente não deixarão de invocar a proteção dos santos, para afastamento desses perigos” (Id., Ibid.). O texto de John Ovington encontra-se logicamente eivado de referências anticatólicas, dada a época em que foi escrito, na qual não havia, e.g., nenhum cemitério ou igreja anglicana. Para tal também concorreu um problema que terá havido com alguns marinheiros do navio da Companhia inglesa, que Ovington e os companheiros entenderam que teriam sido presos em terra pelos padres do Colégio dos Jesuítas, que serão acusados pelo reverendo de serem profundamente incultos, “de grande incapacidade cultural, facilmente denunciada na sua ignorância”, de tal forma que apenas um em cada três com quem conversou “compreendia o latim” (Id., Ibid., 204). Isto não pode, no entanto, ser verdade, salvo se, em vez de padres, tivesse estado à conversa com leigos. Também acusa os cónegos da Sé de profunda indolência e de atrasarem o relógio da torre uma hora para não rezarem as matinas às 4 h da manhã. Como o “levantar-se cedo representa uma grande maçada, especialmente para homens corpulentos, decidiram que o relógio, de manhã, nunca bateria as quatro horas senão quando fossem realmente cinco” (Id., Ibid., 206), o que era explicado como uma pontual avaria. Para resolver o assunto dos seus homens presos em terra, o capitão do navio optou por sequestrar uma embarcação vinda das zonas rurais para o Funchal, que transportava um abade e um vigário. O capitão escreveu então uma carta ao cônsul britânico, que pensamos ser John Carter, para interceder junto do governador, então Lourenço de Almada (1645-1729), propondo a troca dos prisioneiros. Ao contrário do que esperava, recebeu a bordo alguns dos comerciantes britânicos, “trazendo consigo dinheiro para uma viagem” (Id., Ibid., 208), tal era a situação de insegurança sentida em terra com o sequestro dos eclesiásticos. Face à situação, o capitão optou por enviar todos para terra, incluindo o abade e o vigário, “até porque pensava que os padres seriam tão inúteis para ele no mar, como geralmente o são em terra, constituindo um pesado fardo em terra como no mar” (Id., Ibid.), esquecendo-se John Ovington que também era padre, pelo que o mesmo, em princípio, também se aplicava a ele. Esta memória terá sido escrita algum tempo depois do referido acontecimento, pois acrescenta que, dia e meio depois da partida do navio, chegavam ao Funchal dois navios de guerra franceses e que, mal tinham deitado a âncora, a tornavam a levantar, seguindo para as Canárias, informados de ter sido esse o destino do navio inglês. O Benjamim, no entanto, torneou a ilha da La Palma, a leste, e seguiu diretamente para a ilha de Santiago, em Cabo Verde, malogrando assim a perseguição francesa (Id., Ibid., 209). Na sequência do texto sobre a Madeira, descreve ainda os peixes-voadores que observou a bordo e um tornado que sofreram. Obras de John Ovington: A Voyage to Suratt, in The Year 1689 (1696); An Essay upon the Nature and Qualities of Tea (1699).   Rui Carita (atualizado a 15.12.2017) artigos relacionados: açúcar banana vinho

Religiões Literatura