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Em termos de contabilidade, devemos considerar a Conta do Ano Económico, a Conta de Gerência e a Conta Geral de Administração Financeira do Estado (CGAFE), que engloba as duas. Ao nível das diversas operações orçamentais, podemos, ainda, definir as contas ordinária, extraordinária, dos serviços autónomos e uma exceção, a chamada “conta excecional”, resultante da guerra, que existiu nos períodos de 1914-15 e de 1927-28, tendo sido criada pela Lei n.º 372, de 31 de agosto de 1915. A CGAFE é o resultado da execução do orçamento. De acordo com a constituição de 1822, estas deveriam ser apresentadas para aprovação em Cortes, juntamente com o orçamento do ano seguinte. Na Carta Constitucional de 1926 e na Constituição de 1838, alude-se ao mesmo, sendo referido como o balanço geral da receita e despesa do tesouro público. Por lei de 18 de setembro de 1844, foi determinado que a Conta deveria ser submetida a parecer do Tribunal do Conselho Fiscal de Contas. A partir do ato adicional à Carta de 1852, ficou definida a separação entre a Conta e o orçamento. Durante a República, não tivemos qualquer alteração, o que só veio a ocorrer com a Constituição de 1933, que determinou que a sua submissão ao Parlamento deveria ser acompanhada de relatório e decisão sobre a mesma exarados pelo Tribunal de Contas (TCo). A CGAFE foi substituída, a 21 de novembro de 1936, pela Conta Geral do Estado. De acordo com a lei de 20 de março de 1907, existiam dois tipos de conta: a Conta do Ano Económico e a Conta de Gerência do mesmo. Enquanto a primeira ficava aberta por um período de cinco anos, a segunda deveria ser encerrada a cada ano e ser o registo de todas as operações financeiras realizadas. Esta segunda conta deveria igualmente ser publicada no prazo de quatro meses após o final do ano, enquadrada na CGAFE, que englobava as duas. Como já referido, a partir de 1936, esta Conta passou a designar-se Conta Geral do Estado (CGE). Com o Dec. n.º 3519, de 8 de maio de 1919, somos confrontados com a falta de cumprimento desta determinação que estabeleceu normas, no sentido de simplificar o processo, reduzindo para dois anos o período em que as contas dos anos económicos estariam abertas e o alargamento do prazo de publicação da conta para sete meses. Mesmo assim, não foi solução, e, em novo decreto, com força de lei, n.º 18381, de 24 de maio de 1930, estabeleceram-se novas regras, no sentido de obviar esta situação. Assim, o ano económico ficaria aberto apenas por 45 dias e acabava-se com as duas contas, passando a figurar apenas a Conta de Gerência. Em 1935, alargou-se o prazo da sua publicação para 12 meses e, no ano seguinte, insistiu-se na prioridade que deveria ser dada à publicação da CGE. A publicação regular das contas iniciou-se com as do ano económico de 1833-34, mas a agitação política levou, por vezes, ao não cumprimento desta ordem, como sucedeu nos anos económicos de 1845-46 a 1859-1950. Antes disso, deveremos assinalar a apresentação de três contas à Câmara dos Deputados juntamente com o orçamento respeitante aos anos económicos de 1926, 1832 e 1832-33. A partir de 1850, juntaram-se à Conta do Tesouro as contas dos Exercícios, as dos Ministérios e a da Junta de Crédito Público. Como já referido, a CGE surgiu, a 21 de novembro de 1936, para substituir a CGAFE, sendo o resultado da execução financeira do orçamento. A conta é preparada pela Direção-Geral de Contabilidade, que deveria apresentar, até 15 de março de cada ano, os mapas de execução e publicar a conta até 31 de dezembro do ano seguinte. Esta, depois de parecer do TCo, é apresentada à Assembleia para votação. A Constituição de 1976 refere, a exemplo da de 1933, que a submissão ao Parlamento deveria ser acompanhada de relatório e decisão sobre a mesma, exarados pelo TCo, e acrescenta o prazo de 31 de dezembro para a sua apresentação à Assembleia. A partir de 1977, a lei determinou a publicação mensal de contas provisórias, o que, em 1991, passou a ter uma periodicidade trimestral. A Conta da Região é a conta das regiões autónomas, tendo surgido para o ano fiscal de 1976. De acordo com a Lei n.º 98/97, de 27 de agosto, o Governo Regional é obrigado a submeter, à Secção Regional do TCo, esta Conta, que, depois de julgada, é submetida à aprovação da Assembleia Legislativa Regional, conforme lei n.º 28/92, de 1 de setembro. A Conta da Região assinala a execução orçamental da Região Autónoma da Madeira (RAM) e apresenta, detalhadamente, os valores constatados em agrupamentos como as Receitas e as Despesas do Arquipélago. Dados da Direção Regional de Orçamento e Contabilidade permitem identificar a evolução favorável das receitas, tanto as correntes como as de capital. Em 1977, o total de receitas correntes era de 8932 milhões de euros, sendo que o total de receitas de capital cifrava-se em 232 mil euros, fazendo com que a receita total se quantificasse em 9374 milhões de euros. Em 1981, o total de receitas de capital aumentou para 44.348 milhões de euros, um crescimento de cerca de 191 vezes quando comparado com o valor verificado em 1977. Ainda no mesmo ano, foi igualmente notória a evolução das receitas correntes, já que no seu total somaram o valor de 26.325 milhões de euros. Em 1985, a receita total atingiu o valor de 139.023 milhões de euros, e, no ano seguinte, o valor quase duplicou, passando para 252.542 milhões de euros, muito por conta de as receitas de capital terem passado de 32.955 milhões de euros, em 1985, para 130.162 milhões de euros, em 1986, quase igualando o valor da receita total do ano anterior. Todavia, cabe destacar que as receitas correntes aumentaram, neste período, em 14.211 milhões de euros. Para a déc. de 90, os montantes verificados foram reflexo de um aumento das receitas da RAM, tendo especial destaque o ano de 1990, em que a receita total assumiu o valor de 733.975 milhões de euros. Este valor justifica-se pelo montante assumido pelas receitas de capital, que no seu total foi de 500.346 milhões de euros, valor que atingiu tais proporções devido a um passivo financeiro assumido pela RAM de 439.473 milhões de euros. Em 1991, embora inferior à do ano anterior, que não constitui um bom elemento de comparação por conta da excecionalidade verificada, a receita total foi superior à de 1989, devido ao aumento das receitas correntes, impulsionado pelo incremento das receitas fiscais. A partir de 1995, a receita total da RAM superou os 700 milhões de euros, assumindo, nesse ano, o valor de 703.678 milhões de euros, sendo que o valor das receitas correntes foi de 337.777 milhões de euros e o das receitas de capital de 214.729 milhões de euros. Em 1996, a receita total foi de 822.373 milhões de euros, sendo que no ano seguinte o valor diminuiu para 765.446 milhões de euros, voltando a aumentar, em 1998, para 782.498 milhões de euros. No início do novo século, as receitas da RAM atingiram valores nunca antes verificados. Em 2001, a receita total da RAM foi de 1105.302 milhões de euros, aumentando no ano seguinte para 1129.110 milhões de euros e tomando o valor de 1167.048 milhões de euros em 2003. As receitas correntes em 2001 foram de 545.424 milhões de euros, tendo-se verificado um aumento das mesmas em 2002 e 2003 para 671.637 e 672.472 milhões de euros, respetivamente. As receitas de capital, pelo contrário, reduziram de 2001 para 2002, na medida em que no primeiro ano as mesmas somavam o valor de 364.151 milhões de euros e no segundo diminuíram para 271.664 milhões de euros. 2008 marca a primeira década do século no que concerne à receita total, que se cifrou em 1317.770 milhões de euros, ano em que as receitas correntes foram de 931.883 milhões de euros e as receitas de capital de 385.887 milhões de euros. Os anos seguintes foram marcados por diminuições constantes. A partir de 2009, inicia-se uma tendência que é caracterizada pelo decréscimo das receitas totais, sendo que, para esse ano, o valor das mesmas foi de 1074.878 milhões de euros. Em 2010, com uma receita total de 1201.411 milhões, é claro o aumento em relação ao ano anterior, situação que não se verificou em 2011, com uma diminuição para 1076.962 milhões de euros. Em 2012, a receita total cifrou-se em 1597.936 milhões de euros, um aumento significativo relativamente ao do ano anterior, ocasionado pelo valor assumido pela rubrica das receitas advindas de passivos financeiros, de 635.070 milhões de euros. Em 2013, os dados provisórios apontavam para um valor das receitas totais de 2492.607 milhões de euros. Para o mesmo ano, as receitas correntes eram de 1091.643 milhões de euros e as receitas de capital de 1400.964 milhões de euros. No que diz respeito à estrutura da receita, cabe destacar o peso que as receitas fiscais foram assumindo ao longo do tempo. Para 1977, as receitas fiscais eram de 6721 milhões de euros, representando 75,2 % das receitas correntes e 71, 7% das receitas totais. O ano seguinte deu início a um período que se prolongou até 1981, caracterizado pela diminuição da proporção das receitas fiscais nas receitas totais. Note-se que, em 1981, as receitas fiscais representaram 21,6 % do total das receitas e 67,7 % das receitas correntes, sendo que as mesmas mantiveram uma percentagem relativamente baixa no que concerne à receita total em 1982 e 1983, com 28,7 % e 31,0 %, respetivamente. 1989 é um ano de destaque para as receitas fiscais, já que as mesmas ascenderam aos 155.862 milhões de euros, o que se traduziu em 92,3 % das receitas correntes e 55,4 % das receitas totais. A déc. de 90 apresentou receitas orçamentais com um peso superior a 40 % das receitas totais, com exceção de 1990, ano em que a receita fiscal representou apenas 23,8 % das receitas totais. De destacar o ano de 1992, em que as receitas fiscais foram de 293.702 milhões de euros, cerca de 61,0 % da receita total desse ano. No novo século, a proporção das receitas fiscais nas receitas totais aumentou significativamente. Esta situação é identificada com maior realce no período compreendido entre 2008 e 2013. Em 2008, as receitas fiscais foram de 786.249 milhões de euros, e, embora nos anos seguintes o valor absoluto das mesmas tenha sido inferior, tomando os valores de 643.499, 682.954, 666.690 e 651.970 milhões de euros em 2009, 2010, 2011 e 2012, respetivamente, o impacto nas receitas totais foi superior em algumas ocasiões. Isto porque, se em 2008 as receitas fiscais representavam 59,7 % das receitas totais, em 2009 a proporção aumentava para 59,9 %. Em 2010, a proporção diminuía para 56,8 %, voltando a aumentar no ano seguinte, representando 61,9 %. As previsões para 2013 deixavam antever um aumento do valor absoluto das receitas fiscais, já que a estimativa apontava para um valor a rondar os 847.255 milhões de euros, substancialmente superior ao verificado no ano anterior. Todavia, e apesar do aumento do valor da mesma, a sua influência na receita total decresceu para 33,99 %. Cabe destacar que, desde 1977 até 2012, para cada um dos anos em apreço a receita fiscal apresentou-se sempre superior à receita fiscal do ano imediatamente anterior, com exceção de 1994, 2003, 2007, 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013. Nesse espaço temporal, o valor mais elevado da receita fiscal, considerando os dados definitivos, foi constatado em 2008, ano em que foi verificada, de igual forma, a maior receita total, que ascendeu aos 1317.770 milhões de euros. No que concerne à componente de capital, as receitas associadas à mesma ganharam uma importância relativa bastante significativa, já que, enquanto em 1977 representavam aproximadamente 2,5 % da receita total e assumiam o valor de 232.000 mil euros, em 2012, o valor absoluto ascendia aos 703.562 milhões de euros, com um peso de 44,0 %. Não obstante, é de ressaltar que a conjuntura com a qual a RAM se viu confrontada a partir de 2008, com a crise financeira, e especialmente desde 2012, ano em que foi assinado o PAEF-RAM – Programa de Ajustamento Económico e Financeiro da RAM, deturpou, em certa medida, os pesos das receitas de capital nas receitas totais verificados em anos anteriores. Se foi notável o aumento das receitas da RAM, a evolução das despesas foi semelhante. Em 1977, a despesa total da RAM rondava os 7490 milhões de euros, passando no ano seguinte a ser de 16.827 milhões de euros, ultrapassando o dobro do ano anterior. O total da despesa aumentou anualmente até ao fim da déc. de 80, com exceção de 1984, ano em que tomou o valor de 106.213 milhões de euros, e de 1987, ano no qual a despesa total foi de 224.099 milhões de euros. Na déc. de 90, sobressai o valor verificado em 1990, em que a despesa ascendeu aos 728.808 milhões de euros. Contudo, e apesar de em 1991 se ter verificado uma diminuição do total da despesa para 392.018 milhões de euros, o período entre 1991 e 1996 apresentou um crescimento anual da mesma, tomando o valor de 816.206 milhões de euros no último ano considerado. No início do séc. XXI, a despesa total assumiu um valor nunca antes verificado, de 1100.651 milhões de euros. Não obstante o facto de em 2001 se ter atingido tal patamar, nos três anos seguintes foram constatados aumentos de tal variável, chegando, em 2004, a ser de 1306.510 milhões de euros. Os anos seguintes são caracterizados por uma diminuição da despesa total, quando comparada com a constatada em 2004, salvo em 2008, em que foi atingido um novo máximo de 1317.102 milhões de euros. 2012 marca um novo máximo da variável de 1533.094 milhões de euros, sendo que os dados provisórios de 2013 permitem vislumbrar um aumento significativo, que situa a despesa total em 2368.748 milhões de euros. A estrutura da despesa total modificou-se parcialmente ao longo dos anos em apreço, embora continue a ser maior o peso das despesas correntes, comparativamente com o das despesas de capital. Em 1983, as despesas correntes representavam, aproximadamente, 52,55 % da despesa total, sendo de cerca de 62,12 % em 2012, enquanto o peso das despesas de capital variou de 33,33 % para 37,79 % no mesmo período. Analisando as componentes que conformam cada um dos agregados da despesa, é possível constatar o peso significativo das despesas afetas ao pessoal. As mesmas cresceram cerca de 24,43 vezes entre 1983 e 2012, chegando a tomar o valor de 375.070 milhões de euros, o seu valor mais elevado, em 2009. Relativamente às despesas de capital, a rubrica que se apresenta com maior relevância é aquela que diz respeito às aquisições de bens de capital, embora em 2012 se tenha verificado uma situação na qual a despesa referente aos ativos financeiros, e que em si engloba as operações financeiras com a aquisição de títulos de crédito e com a concessão de empréstimos e subsídios reembolsáveis, foi superior à referente às aquisições de bens de capital. Não obstante, não é possível subestimar a evolução desta última rubrica, já que em 1983 a mesma tomava o valor de 2.422 milhões de euros, enquanto em 2012 o mesmo era de 217.947 milhões de euros, o que representa um aumento de cerca de 89,99 vezes. Em 1983, representava 2,18 % da despesa total, e em 2012, 14,22 %. Para efeitos da análise efetuada anteriormente, foram consideradas as despesas e as receitas orçamentais executadas afetas ao subsector do Governo Regional da Madeira, por permitir uma análise temporal mais ampla. O saldo efetivo, que reflete a diferença entre as receitas e as despesas efetivas, permite verificar a relação entre ambas as variáveis. Entre 1977 e 2012, o saldo foi negativo, com exceção dos anos: 1977, com 1896 milhões de euros; 1989, com 167 mil euros; 1992, com 1694 milhões de euros; e 2005, 2006 e 2007, com um saldo de 1302, 1070 e 1105 milhões de euros, respetivamente. Os valores deficitários mais importantes, pela expressividade que assumiram, foram os constatados nos anos: 2012, com as despesas a superarem em 491.703 milhões de euros as receitas; 2008, quando o saldo efetivo foi de -255.113 milhões de euros; e 1990, em que o diferencial entre as receitas efetivas e as despesas efetivas foi de -220.349 milhões de euros. O saldo efetivo calculado não inclui a utilização do produto da emissão de empréstimos, nem os encargos com a amortização da dívida pública.   Alberto Vieira  Sérgio Rodrigues (atualizado a 30.12.2016)

Economia e Finanças História Económica e Social

tutela administrativa

A figura jurídica da tutela representa, no âmbito do direito administrativo, uma forma de controlo administrativo que uma pessoa coletiva pública, através dos seus órgãos considerados legalmente competentes para o efeito, pode exercer sobre outra pessoa coletiva pública. Esta figura jurídica releva particularmente em ordenamentos jurídicos que consagram um sistema de organização administrativa descentralizado, pressupondo a existência de diversas pessoas jurídicas públicas. A tutela administrativa implica uma relação entre duas pessoas coletivas públicas, em que uma tem a posição de entidade tutelar e a outra de entidade tutelada. No âmbito dessa relação, a entidade tutelar acompanha e verifica o desempenho funcional da entidade tutelada, promovendo ou concorrendo para a adequação ou correção desse desempenho. A existência de uma relação tutelar entre duas pessoas coletivas públicas não se presume, dependendo de lei que, de modo inequívoco, a preveja. Estando prevista legalmente, só acarreta para a entidade tutelar os poderes sobre a entidade tutelada que resultarem, expressa ou implicitamente, da lei, não se admitindo a consagração tácita da tutela ou dos poderes tutelares respetivos. Acresce que, por definição, o legislador, ao consagrar um regime de tutela administrativa de uma pessoa coletiva pública sobre outra, deverá no limite fazê-lo de tal modo que daí não resulte a anulação da autonomia da entidade tutelada, sob pena de ficar em causa a sua personalidade jurídica e de, consequentemente, deixar de ser possível falar de uma relação entre entidades distintas, como é próprio da tutela. As limitações que por essa via se impuserem à autonomia da entidade tutelada devem restringir-se ao estritamente necessário para que se realizem os fins que o ordenamento jurídico considera que a podem justificar. Esta figura jurídica não se confunde com outras que relevam também para o direito administrativo. Assim, distingue-se desde logo da hierarquia administrativa, porque esta toma como referência uma relação entre órgãos de certa pessoa coletiva pública e não – como é próprio da tutela administrativa – uma relação entre distintas pessoas coletivas públicas. Distingue-se também da superintendência administrativa, na medida em que esta se traduz numa interferência juridicamente relevante de uma pessoa coletiva pública na gestão de uma outra, correspondendo tal interferência não a uma situação de mero controlo intersubjetivo, como é próprio da tutela, mas antes, especificamente, ao exercício de poderes tais como os de dirigir orientações, de emitir diretivas ou de solicitar informações aos órgãos dirigentes de outra pessoa coletiva pública sobre os objetivos a atingir na gestão desta e sobre as prioridades a adotar na respetiva prossecução. A tutela administrativa também não se confunde com a figura da fiscalização administrativa sobre entidades privadas que exerçam poderes públicos que é exercida por pessoas coletivas públicas. Neste caso, a diferença está em que a tutela administrativa pressupõe uma relação entre pessoas coletivas públicas, sendo que, diferentemente disto, nesta outra figura agora em referência está presente uma relação entre uma pessoa coletiva pública e uma entidade privada. Noutro aspeto, cabe referir que a tutela administrativa pode ter expressões muito distintas, variando consoante, nomeadamente, o seu alcance finalístico e material ou ainda em razão dos poderes de controlo que se lhe associam. A tutela administrativa, em razão das finalidades a que se vincula, pode configurar-se como tutela de legalidade ou como tutela de mérito, envolvendo, no primeiro caso, um controlo do cumprimento das determinações legais por parte da entidade tutelada e, no segundo caso, um controlo sobre a conveniência e a oportunidade dos comportamentos realizados pela entidade tutelada. Por sua vez, considerando o seu alcance material, distingue-se a tutela administrativa stricto sensu da tutela administrativa financeira: a primeira tem incidência sobre a autonomia administrativa da entidade tutelada; a segunda interfere com a autonomia financeira da entidade tutelada. Com referência aos poderes abrangidos, podem ainda ser identificados os seguintes tipos de tutela administrativa: tutela integrativa, em que o controlo administrativo se concretiza por via da aprovação ou da autorização da prática de determinados atos pela entidade tutelada; tutela inspetiva, que se exprime no poder de a entidade tutelar averiguar da regularidade da atuação da entidade tutelada; tutela sancionatória, que traduz o poder de aplicar sanções que se devam fazer corresponder a irregularidades verificadas no funcionamento da entidade tutelada; tutela revogatória, que envolve o poder de fazer extinguir os efeitos de regulamentos e/ou atos administrativos produzidos pela entidade tutelada e tutela substitutiva, que implica o poder de a entidade tutelar praticar atos legalmente devidos, em caso de inércia do órgão responsável da entidade tutelada. No que respeita particularmente ao ordenamento jurídico português vigente em 2016, importa ter em consideração que a Constituição, no n.º 2 do seu art. 267.º, determina que a lei estabelecerá adequadas formas de descentralização administrativa, devendo tal ocorrer sem prejuízo, nomeadamente, dos poderes de tutela dos órgãos competentes. Cabe depois esclarecer como é concebida a tutela administrativa nas situações de descentralização territorial, associativa e institucional operadas no ordenamento jurídico português. Neste sentido, com referência à descentralização territorial, impõe-se distinguir entre a que respeita às Regiões Autónomas e a que se relaciona com as autarquias locais. Quanto à descentralização em favor das regiões autónomas, será de relevar que a Constituição não prevê que seja acompanhada da consagração de correspondentes poderes de tutela estaduais. Tal descentralização é de natureza político-administrativa e não meramente administrativa, entendendo-se, por isto, que não se aplica às regiões autónomas a previsão sobre tutela administrativa contida no citado n.º 2 do art. 267.º da Constituição. Será assim de entender que, por falta de base constitucional, não será admissível a consagração, por via estatutária ou outra via legislativa ordinária, de tutela estadual sobre as Regiões Autónomas. A propósito da descentralização relativa às autarquias locais, diferentemente, a Constituição determina, no n.º 1 do seu art. 242.º, que sobre estas será exercida tutela, a qual consiste estritamente na verificação do cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos, sendo exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei. A tutela administrativa a exercer sobre as autarquias locais é, neste sentido, apenas, uma tutela inspetiva de legalidade, não cabendo aos órgãos tutelares, desde logo, o poder de apreciação do mérito dos atos praticados pelos órgãos autárquicos. Mais se determina constitucionalmente, no referido artigo, que as medidas tutelares restritivas da autonomia local devem ser precedidas de parecer de um órgão autárquico, nos termos a definir por lei (n.º 2), admitindo-se que a determinação da dissolução de órgãos autárquicos apenas possa ter por causa ações ou omissões ilegais graves (n.º 3). Tal tutela administrativa incumbe ao Estado, no caso das autarquias locais do continente, competindo ao Governo da República (art. 199.º, al. d) da Constituição); por sua vez, pertence às regiões autónomas, no caso das autarquias locais existentes nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, competindo ao respetivo Governo regional, como resulta da al. m) do art. 227.º da Constituição e dos Estatutos Político-Administrativos das Regiões Autónomas. Ainda a propósito do regime da tutela administrativa sobre as autarquias locais, importa considerar, especificamente, o que resulta da lei n.º 27/96, de 1 de agosto (alterada pela lei orgânica n.º 1/2011, de 30 de novembro), a qual se aplica também às regiões autónomas, sem prejuízo da publicação de diploma regional que identifique especificamente os membros dos Governos regionais que são competentes para o exercício da tutela administrativa; e.g., em relação à Madeira, o dec. leg. regional n.º 6/98/M, de 27 de abril. Neste diploma, entre outros aspetos, definem-se os regimes de realização de ações inspetivas e de aplicação de sanções resultantes da prática, por ação ou omissão, de ilegalidades no âmbito da gestão das autarquias locais (perda de mandato e dissolução de órgãos). No que respeita à tutela administrativa relacionada com a descentralização associativa que se concretiza em favor de associações públicas, cabe logo considerar a realidade das entidades intermunicipais (áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais), que se regem pelo disposto nos arts. 63.º e seguintes da lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, e estão sujeitas ao mesmo regime da tutela administrativa que se aplica às autarquias locais e se encontra consagrado na citada da lei n.º 27/96, de 1 de agosto. Por seu turno, as associações públicas profissionais beneficiam, nos termos da legislação que define o seu regime (lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro), do reconhecimento de uma ampla autonomia que se traduz logo na determinação legal de que não estão sujeitas a superintendência governamental nem a tutela de mérito, ressalvados quanto a esta, os casos especialmente previstos na lei (art. 45.º, n.º 1 da citada lei). Estão sujeitas a tutela de legalidade idêntica à exercida sobre as autarquias locais, sendo essa tutela de carácter inspetivo, salvo quanto aos regulamentos que versem sobre os estágios profissionais, as provas profissionais de acesso à profissão e as especialidades profissionais, os quais só produzem efeitos após a sua homologação por parte da respetiva entidade tutelar (art. 45.º, n.os 2 a 5 da citada lei). Com referência às situações de descentralização institucional relativa a institutos públicos – serviços ou fundos personalizados (neste último caso, também designados como fundações públicas de direito público) do Estado ou das regiões autónomas –, importa sublinhar que estas entidades, gozando de autonomia administrativa e financeira, se sujeitam todavia a superintendência administrativa e a tutela – consoante os casos – do Estado ou da região autónoma respetiva. A tutela administrativa que pode ser exercida sobre os institutos públicos pode ser de legalidade e de mérito, configurando-se como tutela inspetiva, integrativa, sancionatória e substitutiva, nos termos do que resulta do art. 41.º da respetiva Lei-Quadro (aprovada pela lei n.º 3/2004, de 15 de janeiro, alterada e republicada pelo dec.-lei n.º 105/2007, de 3 de abril). A propósito considerem-se, ainda, as adaptações legislativas regionais constantes do dec. leg. regional n.º 17/2007/M, de 12 de novembro (alterado e republicado pelo dec. leg. regional n.º 2/2013/M, de 2 de janeiro) e do dec. leg. regional n.º 13/2007/A, de 5 de junho (alterado e republicado pelo dec. leg. regional n.º 13/2011/A, de 11 de maio). Por último, deverá cuidar-se da tutela administrativa que se realiza com referência às entidades públicas empresariais e às entidades administrativas independentes. As entidades públicas empresariais sujeitam-se à tutela administrativa que for consagrada nos atos legislativos que determinarem a sua criação. No caso das entidades administrativas independentes e, em particular, de entidades que exercem funções de regulação e de promoção e defesa da concorrência respeitantes às atividades económicas dos sectores privado, público, cooperativo e social, deverá ser considerado o disposto na Lei-Quadro da Entidades Reguladoras (aprovada pela lei n.º 67/2013, de 28 de agosto). Trata-se de entidades que, dispondo de uma ampla autonomia administrativa e financeira, se caracterizam por não se encontrarem sujeitas a superintendência ou a tutela administrativa, sujeitando-se, todavia, ao poder governamental de solicitação de informações e de aprovação e autorização prévia de alguns atos (art. 45.º da citada Lei-Quadro).   Afonso d’Oliveira Martins (atualizado a 04.01.2017)

Direito e Política

buch, christian leopold von

Christian Leopold von Buch, filho de Adolf Friedrich von Buch II, barão de Gehmersdorf, e de Charlotte von Arnien-Suckow, nasceu em Stolpe an der Order, Brandenburg, Prússia (1774), e faleceu em Berlim (1853). Foi um proeminente geólogo e paleontólogo e dedicou-se ao estudo do vulcanismo, dos fósseis e da definição do sistema jurássico. Fez a escola secundária em Freiberg, Saxónia, e frequentou as universidades de Halle e Göttingen. Foi considerado por Humbolt o melhor geólogo do seu tempo e, em 1842, recebeu a medalha Wollaston, o mais importante prémio concedido pela Sociedade de Geologia de Londres. No campo da mineralogia, conta-se a sua obra Versuch einer Mineralogischen Beschreibung von Landeck (Breslau, 1797), traduzida para francês (1805) e inglês (1810), seguida dos estudos sobre a Silésia, Entwurf einer Geognostischen Beschreibung von Schlesien (1802). A observação da erupção vulcânica do Vesúvio, em 1805, feita com Humboldt e Gay Lussac, permitiu-lhe corrigir interpretações erróneas sobre o vulcanismo. O resultado das suas viagens geológicas originou a obra Geognostische Beobachtungen auf Reisen durch Deutschland und Italien (Berlin, 1802-09). Na Escandinávia, pôde obter os dados que lhe permitiram publicar Reise durch Norwegen und Lappland (Berlin, 1810). Em 1815, na companhia do botânico norueguês Christian Smith, visitou as ilhas Canárias, cuja origem vulcânica constituiu o ponto de partida para o estudo da sua atividade sísmica, atestada na obra Physicalische Beschreibung der Canarischen (Berlin, 1825), na qual manifesta a convicção de que estas e outras ilhas atlânticas estiveram na base de um continente pré-existente. Nesta viagem, de Londres às Canárias, teve oportunidade de visitar a Madeira em abril de 1811, na companhia de outro norueguês, Chetien Smith, e descreve o deslumbramento sentido perante a vegetação desconhecida que contemplava: “après une heureuse traversée, nous mîmes pied à terre le 21 avril à Funchal dans l’île de Madère. Nous restâmes douze jours sur cette île fortunée, occupés à faire de petites courses sur les montagnes et à étudier, en tant que pût le permettre la pluie qui tomba continuellement pendant notre séjour, la végétation nouvelle, et pour nous inconnue, qui se développait sous nos yeux [após uma travessia sem incidentes, pusemos pé em terra a 21 de abril, no Funchal, ilha da Madeira. Permanecemos 12 dias nesta ilha afortunada, fazendo pequenas excursões pelas montanhas e estudando, tanto quanto nos permitiu a chuva, que não parou de cair durante toda a nossa estadia, a vegetação nova, para nós desconhecida, que se apresentava diante dos nossos olhos]” (BUCH, 1836, 1). Nesta obra, insere a lista de plantas da Madeira, organizada pelo botânico britânico Robert Brown, resultante da sua visita à Ilha em 1802. Segundo o Elucidário Madeirense, “é de Robert Brown, e não de Leopold von Buch, o trabalho intitulado Vermzeichniss der auf Madeira Wiedwachsenden Pflanzen, que quase todos atribuem a este último autor, por razão de ter sido incluído na obra que publicou, em 1825, sob o título de Physicalische Beschreibung de Canarishen Inseln” (SILVA e MENESES, 1978, I, 341).   Obras de Christian Leopold von Buch: Versuch einer Mineralogischen Beschreibung von Landeck, 1797; Entwurf einer Geognostischen Beschreibung von Schlesien, 1802; Geognostische Beobachtungen auf Reisen durch Deutschland und Italien, 1802-09; Reise durch Norwegen und Lappland, 1810; Psysicalische Beschreibung der Canarischen, 1825; Physicalische Beschreibung de Canarishen Inseln, 1825; Îles Canaries (1836); Narrative of an Expedition to Explore the River Zaire, usually, Called the Congo, in South Africa in 1816, under the direction of Captain J. K. Tuckey (coautoria) (1818).     António Manuel de Andrade Moniz (atualizado a 13.10.2016)  

Biologia Terrestre Madeira Global Geologia

área(s) marinha(s) protegida(s)

As áreas marinhas protegidas (AMP) correspondem, numa aproximação jurídica de carácter genérico, à aplicação de um regime jurídico específico e reforçado de proteção ambiental a um espaço marítimo delimitado. Quando o âmbito de aplicação espacial é o oceano circundante ao território terrestre da RAM (nos termos do art. 3.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira – EPARAM: o “arquipélago da Madeira é composto pelas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Desertas, Selvagens e seus ilhéus”), uma adequada compreensão do seu regime jurídico implica que se tenha simultaneamente em consideração uma multiplicidade de fontes de direito, dado que o enquadramento jurídico-internacional aplicável aos oceanos condiciona a regulamentação proveniente de fontes internas. Assim sendo, no que respeita às AMP existentes na RAM, a sua regulamentação é o resultado da conjugação das fontes aplicáveis de direito regional, de direito interno português, de direito da União Europeia e de direito internacional, com destaque para o direito internacional aplicável aos espaços marítimos. Com efeito, as AMP, ao determinarem quais são os usos permitidos e proibidos num espaço marítimo delimitado e ao pretenderem simultaneamente conformar os comportamentos de todos os potenciais utilizadores do mar, sejam estes nacionais ou estrangeiros, devem respeitar o direito internacional relevante, na medida em que este é o fundamento último de legitimação da atuação do Estado costeiro e das suas divisões ao nível da organização política e administrativa. A qualificação de uma determinada zona de oceano como AMP é recente na prática dos Estados, coincidindo com a progressiva relevância dada às questões ambientais a partir da déc. de 70 do século passado. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), comummente designada como a Constituição dos Oceanos, não fornece um conceito jurídico-internacional para este instituto jurídico, nem contém identicamente um regime jurídico-internacional dedicado especificamente às AMP, não obstante a sua parte XII ser dedicada à “[p]roteção e preservação do meio marinho” e o art. 192.º proclamar expressamente que os “Estados têm obrigação de proteger e preservar o meio marinho”. O n.º 5 do art. 194.º, com a epígrafe “medidas para prevenir, reduzir e controlar a poluição do meio marinho”, estabelece que os Estados devem tomar as medidas “necessárias para proteger e preservar os ecossistemas raros e frágeis, bem como o habitat de espécies e outras formas de vida marinha em vias de extinção, ameaçadas ou em perigo”, o que tem sido utilizado como o fundamento jurídico para a evolução que se deu neste domínio no final do séc. XX e no princípio do séc. XXI. Importa salientar que, ao nível do direito internacional geral, as AMP não constituem um espaço marítimo específico, em paralelo aos restantes espaços marítimos reconhecidos pelo direito internacional do mar (tal como o mar territorial, a zona contígua, as águas arquipelágicas, a zona económica exclusiva, a plataforma continental, o alto mar e a Área [veja-se a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, art. 1.º d, n.º 1, 1)]), mas antes a sujeição de áreas do mar com uma qualificação jurídica-internacional específica a um regime jurídico particular distinto daquele que é normalmente aplicável ao espaço marítimo em questão, nomeadamente ao nível do reforço da proteção ambiental. Nestes termos, a criação de uma AMP pela RAM num espaço sujeito à soberania ou à jurisdição do Estado português, como na zona económica exclusiva, deve ter simultaneamente em consideração os direitos e os deveres do Estado costeiro e os direitos e os deveres que são reconhecidos aos terceiros Estados, nomeadamente pela parte V da CNUDM e pelo direito internacional costumeiro. Embora o direito internacional geral não forneça um conceito de AMP, podem ser encontradas definições em outros documentos de direito internacional, nomeadamente naqueles que têm vindo a ser produzidos no âmbito da Convenção sobre a Diversidade Biológica (1992), no âmbito da Convenção para a Proteção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste, também denominada Convenção OSPAR (1992), e nos trabalhos que foram sendo desenvolvidos sobre a matéria no seio da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Sendo os “parques naturais” uma matéria de interesse específico da RAM, nos termos da alínea jj) do art. 40.º do EPARAM, a regulamentação aplicável às AMP é, na sua base, de natureza regional. Em 2016, existiam cinco AMP na RAM, sendo duas de carácter exclusivamente marinho e três com áreas mistas, marinhas e terrestres. As AMP cujo âmbito de proteção é exclusivamente marinho são a Reserva Natural Parcial do Garajau e a Reserva Natural do Sitio da Rocha do Navio. As AMP cujo âmbito de proteção é simultaneamente marinho e terrestre são a Reserva Natural das Ilhas Selvagens, a Reserva Natural das Ilhas Desertas e a Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo. A Reserva Natural Parcial do Garajau, que foi a primeira área exclusivamente marinha a ser criada em Portugal, é regulada pelo dec. leg. regional n.º 23/86/M, de 4 de outubro, com modificações introduzidas pelo dec. leg. regional n.º 38/2006/M, de 4 de agosto. Em conformidade com o n.º 1 do seu art. 2.º, a “área da Reserva Natural Parcial do Garajau tem como limites: a) A oeste, o plano perpendicular à linha de costa na Ponta do Lazareto até à intersecção do plano definido pela linha batimétrica dos 50 m; b) A leste, o plano perpendicular à linha de costa na Ponta de Oliveira até à intersecção do plano definido pela linha batimétrica dos 50 m; c) A norte, a linha definida pela máxima preia-mar de marés vivas; e d) A sul, o plano definido pela vertical da linha batimétrica dos 50 m e, em caso de dúvida, uma linha a uma distância nunca inferior a 600 m do limite norte”. O corpo do n.º 4 do art. 1.º do Regulamento do Plano Especial do Ordenamento e Gestão da Reserva Natural Parcial do Garajau, aprovado pela resolução n.º 882/2010, de 5 de agosto, esclarece que a “área de intervenção (…) é o leito do mar, com uma dimensão total de 376 hectares, e uma linha de costa de aproximadamente sete quilómetros”. O n.º 1 do art. 3.º antes citado estipula que na área do Reserva Natural Parcial do Garajau é proibido: “a) Exercer quaisquer atividades de pesca, comercial ou desportiva, incluindo a caça submarina; b) Colher exemplares animais e vegetais, exceto para fins científicos, quando devidamente justificados e autorizados; c) Extrair areias e outros materiais de origem geológica; d) Vazar quaisquer tipos de sólidos ou líquidos, quer sejam provenientes de terra ou de embarcações; e) Instalar condutas de efluentes provenientes de instalações industriais e domésticas; e f) Navegar dentro dos limites da reserva, com exceção da abicagem de pequenas embarcações às praias, aplicando-se, neste caso, a legislação em vigor”. Concretizando a alínea a) do n.º 3 do art. 3.º, o dec. reg. regional n.º 1/97/M, de 14 de janeiro, regula o exercício do mergulho amador na área da Reserva Natural Parcial do Garajau, entendido como a atividade prosseguida por “um amador, quando se desloca, submerso ou à superfície, equipado com um aparelho respiratório de mergulho”. A Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio foi criada pelo dec. leg. regional n.º 11/97/M, de 30 de julho, e abrange uma área de 1822 ha, sendo 1820 ha de área marítima e 2 ha correspondentes ao Ilhéu da Viúva (de acordo com a informação disponibilizada pelo Programa de Medidas de Gestão e Conservação do Sítio da Rede Natura 2000 do Ilhéu da Viúva). Em conformidade com o seu art. 2.º, a Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio está “definida e delimitada […] no sítio da Rocha do Navio, entre a ponta do Clérigo a leste e a ponta de São Jorge a oeste e entre a linha definida pela preia-mar máxima e a batimétrica dos 100 m, incluindo os seus ilhéus e respetivas áreas marítimas” (sendo a batimétrica uma linha que une pontos da mesma profundidade no mar). O art. 4.º estabelece que na área da Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio é expressamente proibido: “a) O uso de redes de emalhar ou outras, exceto as empregues na captura de isco vivo e o peneiro, empregue na captura da castanheta; b) A colheita, captura, detenção e ou abate de quaisquer espécies de aves ou plantas; c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos; d) A extração de quaisquer inertes, quer de origem marinha, quer terrestre; e) A apanha de lapa e caramujo de mergulho; e f) A caça submarina”. Através da resolução n.º 751/2009, de 2 de julho, o Conselho do Governo regional determinou a classificação do Ilhéu da Viúva como Zona Especial de Conservação (ZEC), ao abrigo da legislação da União Europeia sobre a conservação das aves selvagens e a preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens. A Reserva Natural das Ilhas Selvagens foi inicialmente estabelecida pelo dec. n.º 458/71, de 29 de outubro, como reserva, ao abrigo da lei n.º 9/70, de 19 de junho, e representou o primeiro exemplo de AMP em Portugal. Nos termos do seu art. 1.º, passou a “constituir uma reserva toda a área das Ilhas Selvagens e também a orla marítima que as rodeia até à batimétrica dos 200 m”. Posteriormente, foi classificada como reserva natural pelo dec. regional n.º 14/78/M, de 10 de março. Ao abrigo do n.º 2 do seu art. 1.º, a “reserva natural é definida pelo território das ilhas e pelos fundos marinhos até à batimétrica dos 1000 m.” O limite exterior da reserva natural foi reduzido à linha dos 200 m de profundidade, pelo dec. regional n.º 11/81/M, de 15 de maio, tendo uma área total de 9455 ha, em conformidade com a resolução n.º 1408/2000, de 19 de setembro. Relativamente aos usos do espaço marítimo, o art. 4.º estabelecia que na área da Reserva Natural das Ilhas Selvagens eram proibidos: “g) A colheita de material geológico ou arqueológico ou a sua exploração sem autorização do Governo Regional; h) A caça submarina; i) A pesca de arrasto e outras artes que colidam com o fundo até à batimétrica fixada pela reserva, ressalvando-se as artes de anzol e rede”. Em conformidade com o art. n.º 11, com a epígrafe “atividades condicionadas” do Regulamento do Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Selvagens, aprovado pela resolução n.º 1292/2009, de 25 de setembro, ficaram “sujeitas a autorização da Entidade Gestora, os seguintes atos e atividades: b) A recolha de amostras biológicas, geológicas ou arqueológicas quer de origem marinha quer terrestre; k) A pesca recreativa; e l) A caça submarina”. Pelo edital n.º 15/2011, de 29 de novembro, da Capitania do Porto do Funchal, está “interdita toda a atividade de pesca na faixa litoral das Ilhas Selvagens até à batimétrica dos 200 (duzentos) metros, por período indeterminado”, em razão da “suspeita da eventual presença de uma microalga produtora de uma biotoxina suscetível de provocar alterações ao nível da saúde humana”. As Ilhas Selvagens são uma área classificada de Zona Especial de Conservação e de Zona de Proteção Especial (o dec. reg. regional n.º 3/2014/M, de 3 de março, estabeleceu a Zona de Proteção Especial das Ilhas Selvagens, com uma extensão de 124.530 ha), estando inscritas na categoria 1.a de gestão de áreas protegidas da União Internacional da Conservação da Natureza como “área de reserva natural integral gerida prioritariamente para fins de pesquisa científica, assegurando que os habitats, ecossistemas e as espécies nativas se mantenham livres de perturbação, tanto quanto possível”. A Reserva Natural das Ilhas Desertas foi criada pelo dec. leg. regional n.º 14/90/M, de 23 de maio, como Área de Proteção Especial das Ilhas Desertas, sendo posteriormente o seu estatuto jurídico alterado pelo dec. leg. regional n.º 9/95/M, de 20 de maio. Nos termos do art. 2.º, a Reserva Natural das Ilhas Desertas é “delimitada pela linha batimétrica dos 100 m em volta das Ilhas Desertas, incluindo todas as suas ilhas e ilhéus e a respetiva área marítima”, tendo uma área total de 9455 ha (em conformidade com a informação disponível no Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Selvagens). Relativamente aos usos do espaço marítimo, o art. 4.º, após as alterações introduzidas pelo segundo dos diplomas antes citados, estabelece que nos locais a sul “do marco geodésico da doca e da Ponta da Fajã Grande, nela se incluindo o ilhéu Chão” são proibidos: “a) A pesca comercial e a pesca sem fins comerciais, designadamente a desportiva; b) A prática de caça submarina; e c) A colheita de exemplares vegetais e animais, exceto para fins científicos, desde que devidamente autorizada; e d) O acesso de pessoas e embarcações, salvo as que hajam sido autorizadas e credenciadas pelo Parque Natural da Madeira”. Em conformidade com o art. 5.º, na sua versão alterada, aplicável a toda à área protegida, é ainda proibido: “a) O uso de artes de redes de emalhar, cercar e arrastar, com exceção das que são empregues na captura de isco vivo; (…), c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos; d) A extração de quaisquer inertes, quer de origem marinha, quer terrestre; e e) A prática de caça submarina”. Em conformidade com o art. 11.º, com a epígrafe “atividades condicionadas”, do Regulamento do Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Desertas, aprovado pela resolução n.º 1292/2009, de 25 de setembro, ficaram “sujeitas a autorização da Entidade Gestora, os seguintes atos e atividades: b) A recolha de amostras biológicas, geológicas ou arqueológicas quer de origem marinha quer terrestre; k) A pesca recreativa; e l) A caça submarina”. As Ilhas Desertas são uma área classificada de Zona Especial de Conservação e de Zona de Proteção Especial (o dec. reg. regional n.º 3/2014/M, de 3 de março, estabeleceu a Zona de Proteção Especial das Ilhas Desertas, com uma extensão de 76.462 ha). A Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo foi criada pelo dec. leg. regional n.º 32/2008/M, de 11 de agosto. Nos termos do n.º 1 do art. 2.º, é “constituída pela parte terrestre de todos os seus ilhéus e pelas zonas marinhas circundantes do Ilhéu da Cal ou de Baixo e do Ilhéu de Cima, incluindo a zona onde se encontra afundado o navio O Madeirense”, sendo ainda acrescentado no número seguinte, relativamente às áreas marítimas, que integra, em conformidade com a alínea b) a “área marinha limitada a oeste pela batimétrica dos 50 m e pelo azimute verdadeiro 315º a partir da extremidade oeste da Ponta do Focinho do Urso, a sul pela batimétrica dos 50 m, a norte pela linha da preia-mar máxima de marés-vivas equinociais da costa da ilha do Porto Santo e a este pela batimétrica dos 50 m e pelo azimute verdadeiro 135º a partir do enfiamento do Pico de Ana Ferreira” e, nos termos da alínea c), pela “área marinha limitada a oeste pelo azimute verdadeiro 160º a partir da extremidade oeste do Porto de Abrigo, a sul e este pela batimétrica dos 50 m e a norte pela linha da preia-mar máxima de marés-vivas equinociais da costa da ilha do Porto Santo e pelo azimute verdadeiro 90º a partir da Ponta das Ferreiras”. Em toda a área da Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo, em conformidade com o n.º 1 do art. 5.º, é interdito: “a) O exercício da pesca para fins comerciais, exceto a captura de isco vivo destinado à pesca de tunídeos (…); b) A apanha de lapa e caramujo de mergulho; c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos, quer sejam provenientes de terra ou de embarcações; d) A instalação de condutas de efluentes provenientes de instalações industriais e domésticas; e) A extração de areias ou de outros recursos geológicos; f) As atividades náuticas, com exceção das necessárias ao exercício das atividades autorizadas […]; g) A colheita, captura, abate ou detenção de exemplares de quaisquer espécies vegetais ou animais sujeitas ou não a medidas de proteção legal ou efetuar outras atividades intrusivas ou perturbadoras do seu desenvolvimento”. Em contraponto, no art. 6.º, relativo a “atos ou atividades sujeitos a autorização”, está previsto que, desde que devidamente autorizados pela entidade gestora, são permitidos: “a) A pesca marítima sem fins comerciais ou lúdica, com exceção do Ilhéu de Cima, onde é proibida toda e qualquer atividade de pesca (…); b) A apanha de lapa e caramujo no calhau; c) O mergulho de escafandro; d) Caça submarina, com exceção da área do ilhéu de Cima, onde é proibida toda e qualquer atividade de pesca; (…); e f) As atividades marítimo-turísticas (…) que não sejam suscetíveis de pôr em risco a proteção ambiental da Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo”. O n.º 3 do artigo citado ainda prevê que é “permitida a travessia de embarcações pelos boqueirões do Ilhéu de Cima e do Ilhéu de Baixo ou da Cal, incluindo a passagem, com esse fim, das respetivas áreas da Rede de Áreas Marinhas Protegidas de Porto Santo”. O n.º 3 do art. 7.º determina que “poderá ser dada prioridade às comunidades locais dependentes da pequena pesca” quando sejam “estabelecidas condições específicas para o exercício da pesca lúdica e para a captura de isco vivo destinado à pesca de tunídeos”. Os Ilhéus do Porto Santo são uma área classificada de Zona Especial de Conservação. No que concerne especificamente ao espaço marítimo, importa realçar que uma adequada compreensão do regime jurídico aplicável às AMP implica que tenham em consideração três questões de natureza jurídico-internacional, na medida em que os poderes que os Estados costeiros podem exercer nos mares e nos oceanos não são equivalentes aos poderes de soberania que os Estados exercem no âmbito do seu território terrestre, em razão de estes serem por natureza exclusivos e excludentes. Em primeiro lugar, deve ser posto em destaque que os mares e os oceanos, apesar da sua unidade física, estão divididos em espaços marítimos com estatutos jurídico-internacionais diferenciados. Em termos gerais, importa distinguir entre espaços marítimos sujeitos à soberania ou à jurisdição dos Estados costeiros (com destaque para o mar territorial, a zona económica exclusiva e a plataforma continental) e os espaços marítimos internacionais (alto mar) ou com um regime jurídico de internacionalização (Área). Os poderes dos Estados variam em função dos espaços marítimos em questão, pelo que a apreciação de qualquer comportamento levado a cabo por um Estado ou pelos seus nacionais, seja pelo Estado costeiro, seja por terceiros Estados, importa uma prévia localização geográfica no espaço em que ocorrem. Daqui resulta que as referências às batimétricas nas zonas marítimas abrangidas pelas AMP na RAM, como forma de delimitação das áreas especialmente protegidas do ponto de vista ambiental, não tenham de estar necessariamente compatibilizadas com os poderes que os Estados costeiros podem exercer nos espaços marítimos sob a sua soberania ou jurisdição, tendo em consideração os diferentes poderes que são reconhecidos aos Estados nas águas interiores, no mar territorial, na zona económica exclusiva e na plataforma continental. Em segundo lugar, importa salientar que a atuação dos Estados nos mares e nos oceanos se encontra genericamente enquadrada pelo princípio da liberdade dos mares, em conformidade com o qual todos os Estados, sejam ou não costeiros, podem prosseguir atividades nos diferentes espaços marítimos, sujeitos às limitações que decorrem do direito internacional. As utilizações específicas que podem ser prosseguidas pelos diferentes Estados e pelos seus nacionais estão dependentes do espaço marítimo em questão, mas a ideia básica que subjaz à atuação nos mares e nos oceanos é a de conciliação entre os diversos usos possíveis. Assim, a título de exemplo, embora os Estados costeiros exerçam poderes muito alargados no mar territorial, com a extensão máxima de 12 milhas marítimas (ou milhas náuticas, equivalentes a cerca de 22,22 km), os navios com a bandeira de terceiros Estados podem circular pelas suas águas ao abrigo do direito de passagem inofensiva, sem a necessidade de obterem a anuência ou a autorização desses Estados (arts. 17 a 19 da CNUDM). Finalmente, em terceiro lugar, deve ser tido em consideração que, salvo em situações muito circunscritas, como a colocação de instalações para a exploração de petróleo ou de gás natural ou a construção de ilhas artificiais, os usos dos mares e dos oceanos são temporários e prosseguidos por navios. Daqui decorre a necessidade de se autonomizar os usos que estão reservados para os Estados costeiros, nos casos em que estes tenham lugar num espaço sujeito à soberania ou à jurisdição dos Estados costeiros, como nos casos do mar territorial, das zonas económicas exclusivas ou das plataformas continentais, e daqueles outros usos, como a navegação, que constituem uma prerrogativa de todo e de qualquer Estado, seja ou não um Estado costeiro, podendo ser prosseguidos em qualquer lugar, com a exceção das águas interiores do Estado costeiro. A necessidade de ser respeitada a liberdade de navegação dos navios com o pavilhão ou bandeira de um terceiro Estado é particularmente relevante em algumas das AMP existentes na RAM, em razão da sua dimensão, com particular destaque para a Reserva Natural das Ilhas Selvagens.   Fernando Loureiro Bastos (atualizado a 14.12.2016)

Biologia Marinha Ciências do Mar Ecologia

aluviões

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, o termo “aluvião” pode significar inundação muito grande, grande cheia ou enxurrada. Este é o significado atribuído na ilha da Madeira. A rede hidrográfica da Madeira, composta por ribeiras que se desenvolvem da cordilheira montanhosa central para a costa, em vales profundos, estreitos e de declive acentuado, com regime de escoamento intermitente e torrencial, quando associada a eventos de precipitação intensa dá origem a inundações repentinas designadas por aluviões, correntes de detritos ou debris flow. Estas cheias caracterizam-se por concentrações elevadas de material sólido, incluindo blocos de grandes dimensões, que conferem ao escoamento um enorme poder destrutivo. As características geológicas e geomorfológicas das bacias hidrográficas, e das respetivas ribeiras, potenciam a ocorrência de fluxos muito significativos de materiais sólidos, os quais constituem o componente mais perigoso das aluviões. Esta produção de sedimentos é desencadeada pela ação da precipitação e da consequente ocorrência de escoamentos líquidos que mobilizam grandes quantidades de material sólido com elevado potencial geomórfico. A produção dos fluxos de material sólido resulta de diferentes processos, tais como a erosão distribuída nas vertentes, a erosão em sulco e ravinamento, movimentos de massa, e a erosão fluvial nos fundos e margens dos leitos das ribeiras. Segundo a bibliografia, ocorreram no arquipélago da Madeira, desde o início do séc. XVII até 2013, 42 aluviões de intensidade significativa, constituídas por cheias rápidas e violentas com transporte de concentrações elevadas de material sólido. É de destacar, neste contexto, o ano de 1803, no qual se verificaram inundações catastróficas em toda a Ilha, particularmente na região sudeste, entre o Funchal e Machico, tendo perecido cerca de 1000 pessoas. Em consequência desta aluvião, as ribeiras da cidade do Funchal foram canalizadas, sob a direção do Brig. Reinaldo Oudinot, entre 1804 e 1806, continuando uma considerável extensão desta obra a cumprir, no início do séc. XXI, a sua função de canalização dos cursos de água. Já no séc. XXI, merece destaque o dia 20 de fevereiro de 2010, em que, na sequência de um prolongado período chuvoso na ilha da Madeira, aliado a um cenário meteorológico adverso, se gerou uma aluvião excepcional que atingiu, com elevada intensidade, alguns concelhos da vertente Sul da Ilha, em particular o Funchal e a Ribeira Brava. São de lamentar 51 vítimas mortais, bem como os elevados danos materiais e a destruição de muitas infraestruturas públicas e privadas. O quadro que apresentamos (fig. 1) compila os registos históricos de aluviões ocorridas no arquipélago da Madeira entre o início do séc. XVII e o ano de 2013, e as suas principais consequências. [table id=75 /] Sucessivos eventos da mesma natureza têm ocorrido por toda a ilha da Madeira desde o início da sua história geológica, há cerca de sete milhões de anos, até a atualidade. Testemunhos de fluxos concentrados ou torrentes de escoamento bifásico com uma fase sólida muito abundante são visíveis em todos os complexos vulcânicos que constituem a Ilha. Como diz Susana Nascimento, “trata-se de espessos depósitos de enxurrada, bastante compactados e cimentados que se encontram intercalados nos complexos vulcânicos. [...] Formado em clima caracterizado por abundantes e concentradas chuvadas, estes depósitos conglomerático-brechóides, são constituídos por, aproximadamente, 95 % de clastos, em geral mal calibrados, com dimensões que vão, desde escassos milímetros, até cerca de 2 metros” (NASCIMENTO, 1990, 36). O fenómeno das aluviões na Madeira tem sido referenciado em vários trabalhos de carácter mais ou menos científico. Ao abordar os cursos de água da ilha da Madeira, Eduardo Pereira, em Ilhas de Zargo, sublinha a quase ausência de caudal das ribeiras na estação do verão, sendo que no inverno “crescem torrencialmente, transbordam das margens e arrastam das montanhas toneladas de penedos, rolando-os e batendo uns contra os outros num ruído sinistro e aterrador, ao mesmo tempo que arrebatam terrenos de cultura, derrubam pontes e chegam por vezes a causar enormes prejuízos em habitações, pessoas, terras e animais” (PEREIRA, 1989, I, 283) Orlando Ribeiro, ao comentar o regime das águas na ilha da Madeira, refere algumas “inundações catastróficas” que assolaram a Ilha. Tais calamidades estão associadas a “chuvas excepcionais [...] frequentemente desastrosas, que enchem as ribeiras, arrastam blocos com algumas centenas de quilos, destroem pontes, danificam casas, inundando a parte baixa das aglomerações situadas à beira-mar, e pondo em perigo bens e pessoas” (RIBEIRO, 1985, 33). Merece ainda destaque a descrição feita por Cecílio Silva de um cenário de aluvião num texto intitulado “Eu Tive Um Sonho”, publicado no Diário de Notícias da Madeira. Traumatizado pelo estado de desertificação das serras do interior da ilha da Madeira, nomeadamente da região a norte do Funchal, que constitui a cabeceira das bacias hidrográficas das três ribeiras que confluem para a capital, aliado a recordações da infância passada junto à margem de uma dessas ribeiras (Santa Luzia), o mundo dos seus sonhos, frequentemente tomado por pesadelos sempre ligados às enxurradas invernais e infernais dessa ribeira, descreve: “Tive um sonho […], subia a escadaria do Pico das Pedras, sobranceiro ao Funchal. Nuvens negras apareceram a Sudoeste da cidade, fazendo desaparecer o largo e profundo horizonte, ligando o mar ao céu… […] De repente, tudo escureceu. Cordas de água desabaram sobre toda a paisagem que desaparecia rapidamente à nossa volta. […] Repentinamente, como começou, tudo parou; as nuvens dissiparam-se, o vento amainou e a luz voltou. Só o ruído continuava cada vez mais cavo e assustador. Olhei para o Sul e qualquer coisa de terrível, dantesco e caótico se me deparou. A Ribeira de Santa Luzia, a Ribeira de S. João e a Ribeira de João Gomes eram três grandes rios, monstruosamente caudalosos e arrasadores. […] As águas efervescentes, engrossando cada vez mais em montanhas de vagas espessas, tudo cobriram até à Sé – único edifício de pé. Toda a velha baixa tinha desaparecido debaixo de um fervedouro de água e lama. [...] Acordei encharcado. Não era água, mas suor. Não consegui voltar a adormecer…” (SILVA, DN, 13 jan. 1985). O impacto que as aluviões têm no imaginário coletivo dos madeirenses é por demais evidente, ou não fossem estas um dos principais perigos naturais que os habitantes da Ilha enfrentam, sendo responsáveis pela maioria dos prejuízos, humanos e materiais, provocados por catástrofes desde o início da ocupação humana.   Susana Prada Celso Figueira (atualizado a 14.12.2016)

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acordos e tratados internacionais (participação da madeira na negociação de)

A participação da Região Autónoma da Madeira (RAM) na negociação de acordos e tratados internacionais traduz-se na intervenção no procedimento de vinculação internacional do Estado português desta pessoa coletiva territorial, dotada de personalidade de direito público ao abrigo do direito português (art. 2.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (EPARAM)). Trata-se de uma intervenção inserida no âmbito do processo de conclusão de tratados em Portugal, ou treaty-making power, ao constituir uma questão relacionada com os poderes conferidos às diferentes entidades públicas portuguesas e às competências atribuídas aos órgãos do poder político para intervirem na assunção de um compromisso internacional pelo Estado português. Tendo em consideração os efeitos internos e internacionais que serão potencialmente produzidos pelos compromissos internacionais, a referida intervenção deve ser analisada tendo por base uma abordagem que tenha simultaneamente em conta os contributos do direito regional, do direito interno português e do direito internacional. Os acordos e os tratados internacionais são acordos de vontade entre sujeitos de direito internacional. Nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 2.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 (CVDT69), a “expressão ‘tratado’ designa um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo direito internacional, quer esteja consignado num instrumento único, quer em dois ou vários instrumentos conexos, e qualquer que seja a sua denominação particular”. Daqui decorre serem determinantes, para a qualificação de um compromisso internacional como acordo internacional ou tratado internacional, a intervenção de, pelo menos, dois sujeitos de direito internacional e a sua sujeição ao direito internacional. O modo como os acordos de vontade entre sujeitos de direito internacional são designados não é, assim, decisivo para os efeitos jurídicos que estes venham a produzir nos planos nacional e internacional, sendo “acordo (internacional)”, “tratado (internacional)”, e “convenção (internacional)” as denominações mais correntemente encontradas na prática dos Estados. Ao nível do direito internacional, relativamente à menor ou maior complexidade do procedimento de vinculação internacional utilizado, entende-se que a distinção entre acordo internacional e tratado internacional resulta da existência de ratificação ou da necessidade da manifestação de vontade a estar vinculado através de assinatura ser confirmada por um órgão do poder político distinto daquele a quem está confiada a negociação dos compromissos internacionais. A Constituição da República Portuguesa (CRP), no seguimento do direito internacional, utiliza os conceitos de convenção (internacional), de tratado (internacional) e de acordo internacional em diversas disposições do seu articulado. As convenções (internacionais) correspondem a compromisso internacional enquanto género (CRP, art. 8.º, n.º 2), enquanto os tratados internacionais são a espécie de vinculação internacional carecida de ratificação pelo Presidente da República (CRP, art. 135.º, alínea b)) e os acordos internacionais correspondem aos compromissos internacionais que não exigem a prática de um ato discricionário de confirmação por parte desse órgão de soberania. O EPARAM, por seu turno, faz expressa referência a tratados e acordos internacionais em quatro disposições distintas: (i) na alínea r) do art. 69.º, relativamente à competência do Governo regional para participar na negociação de compromissos internacionais; (ii) na alínea c) do art. 93.º, no que respeita à conclusão de protocolos de colaboração permanente sobre matérias de interesse comum entre o Estado e a RAM; (iii) no art. 95.º, sobre a representação na negociação de tratados e acordos internacionais que incidam sobre matérias de interesse específico da RAM; e, finalmente, (iv) na alínea e) do art. 108.º, no que concerne às receitas da RAM que sejam geradas por tratados e acordos internacionais respeitantes à Região. A potencialidade de assumir compromissos internacionais é uma prerrogativa reconhecida aos sujeitos de direito internacional, com destaque para os Estados soberanos. Nesse sentido, o art. 6.º da CVDT69 prevê expressamente que “todo o Estado tem capacidade para concluir tratados”. A possibilidade de entidades que integram a organização política e administrativa de um Estado soberano concluírem compromissos com natureza e efeitos jurídico-internacionais é algo que resulta da sua organização interna e exige a expressa concordância do outro ou dos outros sujeitos de direito internacional intervenientes (nesse sentido, o n.º 3 do art. 225.º da CRP, ao estabelecer que a “autonomia político-administrativa não afeta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição”, conduziu o Tribunal Constitucional a afirmar, no ac. n.º 403/2009, de 30 de julho, que os “poderes das regiões autónomas, em matéria de política externa, não as transformam, portanto, em entidades autónomas e diferenciadas do Estado Português, do ponto de vista do Direito Internacional Público”). O procedimento de vinculação internacional do Estado português consiste no conjunto de regras jurídicas e de práticas que são seguidas em Portugal na assunção de um compromisso internacional. Trata-se de um procedimento muito complexo, em resultado de a capacidade de Portugal para a conclusão de compromissos internacionais se ter alterado substancialmente em consequência da sua integração na União Europeia (UE). Daqui decorre que uma adequada compreensão desta matéria implique, por um lado, ter-se em consideração que se trata de uma matéria simultaneamente regulada pelo direito interno, pelo direito internacional e pelo direito da UE e, por outro lado, que a liberdade de atuação internacional do Estado português está limitada em virtude de ser um Estado-membro da União Europeia. O procedimento de vinculação internacional dos Estados vai buscar a sua estrutura básica ao direito internacional, nomeadamente às normas de direito consuetudinário codificado e de direito estritamente convencional que integram os arts. 6.º a 25.º da CVDT69. No direito dos Estados encontram-se, por seu turno, as regras jurídicas que desenvolvem essa estrutura fundamental, com destaque para os órgãos com competência para atuar em cada uma das fases do procedimento de vinculação internacional e os termos em que é feita a publicitação internacional das convenções internacionais que tenham sido assumidas pelos Estados. A participação de Portugal na UE, ao implicar a aceitação de um estatuto genérico de capacidade internacional limitada, integra a obrigação de atuar de forma coordenada ou conjunta com as Comunidades ou com a UE ao nível da vinculação internacional. A conclusão de tratados e de acordos internacionais deixou, em conformidade, de ser uma atividade livre do Estado português, para passar a ser uma atuação em que este só se poderá vincular individualmente se tiver capacidade internacional para o fazer. Em conformidade com a alínea t) do n.º 1 do art. 227.º da CRP, a RAM deve “participar nas negociações de tratados e acordos internacionais que diretamente lhes digam respeito, bem como nos benefícios deles decorrentes”. Em sentido concordante, no art. 95.º do EPARAM, integrado na secção IV (“Participação da Região em Negociações Internacionais”) do capítulo II (“Relações entre os Órgãos de Soberania e os Órgãos de Governo Próprio”) do título III (“Relações entre o Estado e a Região”), está expressamente previsto que a “participação nas negociações de tratados e acordos que interessem especificamente à Região realiza-se através de representação efetiva na delegação nacional que negociar o tratado ou o acordo, bem como nas respetivas comissões de execução ou fiscalização”. Da leitura conjugada destas duas disposições resultam três perguntas, a que importa dar resposta quando se pretende saber qual é o significado da participação da RAM no procedimento de vinculação internacional do Estado português: (i) quais são as matérias em relação às quais a RAM deve participar na negociação de um compromisso internacional a celebrar pelo Estado português; (ii) como se concretiza o direito constitucional de participação da RAM nas negociações jurídico-internacionais que sejam prosseguidas pelo Estado português; (iii) por último, quando deve ter lugar a participação da RAM na assunção de um compromisso internacional por parte de Portugal. Em primeiro lugar, antes de mais, importa delimitar os compromissos internacionais que integram o direito constitucional de participação na negociação de um compromisso internacional do Estado português por parte da RAM. Para alcançar esse desiderato devem-se ter em consideração três disposições do EPARAM. Em primeiro lugar, o art. 40.º, que apresenta um longo elenco das matérias de interesse específico que são relevantes como “motivos de consulta obrigatória pelos órgãos de soberania”. Em segundo lugar, o art. 94.º do EPARAM, que elenca as matérias de direito internacional que podem constituir o objeto de protocolos de colaboração permanente que venham a ser celebrados entre o Governo da República e o Governo regional e que integram os “trabalhos preparatórios, acordos, tratados e textos de direito internacional” (alínea c) do art. 93.º do EPARAM), e, ainda, os “benefícios decorrentes de tratados ou de acordos internacionais que digam diretamente respeito à Região” (alínea d) do art. 93.º do EPARAM). E, finalmente, a alínea e) do art. 108.º do EPARAM, ao prever que constituem receitas da Região os “benefícios decorrentes de tratados e acordos internacionais respeitantes à Região, tal como definida nos artigos 1.º, 2.º e 3.º deste Estatuto”, em razão da referência, no n.º 2 do art. 3.º do EPARAM, ao “mar circundante e seus fundos, designadamente as águas territoriais e a zona económica exclusiva”. O art. 94.º do EPARAM é particularmente relevante neste domínio, ao prever que constituem “designadamente matérias de direito internacional […] respeitando diretamente à Região”: “a) Utilização do território regional por entidades estrangeiras, em especial bases militares; b) Protocolos celebrados com a NATO e outras organizações internacionais, em especial sobre instalações de natureza militar ou paramilitar; c) Participação de Portugal na União Europeia; d) Lei do mar; e) Utilização da zona económica exclusiva; f) Plataforma continental; g) Poluição do mar; h) Conservação, investigação e exploração de espécies vivas; i) Navegação aérea; e j) Exploração do espaço aéreo controlado”. O Tribunal Constitucional, no ac. n.º 800/2014, de 26 de novembro de 2014, a propósito do dever de audição dos órgãos regionais, avança, em termos muito gerais, que, de acordo com uma jurisprudência “que remonta ao Parecer n.º 20/77 da Comissão Constitucional […], sendo reiterada posteriormente em acórdãos do Tribunal (v. Acórdão n.º 174/2009 e jurisprudência aí referida e, por último, o Acórdão n.º 747/2014), ‘[…] são questões de competência dos órgãos de soberania, mas respeitantes às regiões autónomas, aquelas que, excedendo a competência dos órgãos de governo regional, respeitem a interesses predominantemente regionais ou, pelo menos, mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para esses territórios’”. Assim sendo, das disposições citadas, em conjugação com a alínea s) do n.º 1 do art. 227.º da CRP (“participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos”), decorre que um domínio em que a RAM terá um interesse reforçado em participar em negociações visando a assunção de compromissos internacionais pelo Estado português será o relacionado com as matérias relativas às atividades que podem ser prosseguidas no espaço aéreo e nos espaços marítimos adjacentes e circundantes ao território terrestre do arquipélago da Madeira. Em segundo lugar, importa esclarecer como se concretiza o direito constitucional de participação da RAM na negociação jurídico-internacional, tendo em consideração que o art. 95.º do EPARAM estipula que esta se deve realizar através “de representação efetiva na delegação nacional que negociar o tratado ou o acordo”. Ao Governo regional, em conformidade com o art. 69.º do EPARAM, é atribuída competência para “participar na negociação de tratados e acordos internacionais que digam diretamente respeito à Região bem como nos benefícios deles decorrentes” (alínea r)) e para “participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos”. A orgânica da presidência do Governo, aprovada pelo dec. reg. regional n.º 11/2016/M, de 6 de abril, estipula, no n.º 3 do art. 2.º, que o “Presidente do Governo Regional exerce os poderes que a lei confere ao Governo Regional” relativamente a “tratados e acordos internacionais que digam diretamente respeito à Região”, sem fornecer qualquer outro elemento relevante neste domínio. No ac. n.º 403/2009, de 30 de julho, antes citado, e a propósito das alterações ao Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, o Tribunal Constitucional não avançou com qualquer elemento relevante neste domínio, dado que se limitou a transcrever um passo de Rui Moura Ramos quando este afirmava que “precisa-se, no que respeita à sua concretização, que tal participação traduzir-se-á na representação efetiva dentro da delegação nacional que negociará o tratado ou acordo”. Em termos que merecem concordância, Maria Luísa Duarte defende que a “participação compreende a representação na delegação da República Portuguesa incumbida da negociação, o direito de ser notificada de toda a documentação relevante e ainda a oportunidade de ser ouvida e de se pronunciar, de modo efetivo, sobre as questões da negociação com incidência regional direta” (DUARTE, 2014, 236). Importa realçar, no entanto, como o fez o presidente do Tribunal Constitucional, conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro, na sua declaração de voto no ac. n.º 136/2016, de 29 de fevereiro, a propósito de uma questão próxima, ao apreciar os poderes das regiões autónomas ao nível do ordenamento do espaço marítimo, em termos particularmente adequados ao seu esclarecimento, que a posição reconhecida à RAM é corporizada por “poderes cuja natureza e alcance permitem apenas estabelecer ‘fluxos de comunicação e manifestação de vontade’ por parte desses órgãos, mas não dão qualquer garantia de que essa vontade seja minimamente tida em conta ou respeitada na decisão final”. Finalmente, em terceiro lugar, importa esclarecer quando deve ter lugar a participação da RAM no âmbito do procedimento conducente à assunção de um compromisso internacional por parte de Portugal. O Tribunal Constitucional, no ac. n.º 800/2014, de 26 de novembro, antes citado, refere, em termos relevantes para a questão em análise, que em “procedimentos legislativos complexos em que as decisões fundamentais quanto ao regime a definir se não tomam em um só momento mas se vão tomando em fases consecutivas, importa assegurar que a audição regional ocorra naquela fase do procedimento em que mais ampla é a liberdade de conformação do legislador nacional”. No procedimento de vinculação internacional do Estado português podem ser distinguidas cinco fases: (i) a negociação; (ii) a assinatura; (iii) a aprovação interna ou aprovação interna conducente à manifestação definitiva do consentimento a estar vinculado internacionalmente; (iv) a ratificação ou manifestação definitiva do consentimento a estar vinculado internacionalmente; e (v) a publicitação, interna e internacional. Sendo a negociação a primeira fase do procedimento de vinculação internacional, é nela que importa garantir a efetividade da participação da RAM, dado que, sendo uma competência do Governo central negociar compromissos internacionais, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 197.º da CRP, no seu âmbito podem ser autonomizados dois momentos distintos: por um lado, uma subfase prévia, anterior à negociação, que consiste na decisão de vinculação internacional; por outro lado, a negociação propriamente dita, que é uma concretização da decisão de vinculação internacional. Tendo o procedimento de vinculação internacional do Estado português o seu momento propulsor com a decisão de vinculação internacional, deverá ser este o momento a partir do qual a intervenção da RAM é jurídica e factualmente relevante, na medida em que é nesta ocasião que o decisor português deve fazer o cruzamento entre o interesse ou a necessidade de ser assumida uma determinada vinculação internacional e a possibilidade de esta ser concluída, tendo em consideração o preenchimento de determinadas condições de natureza jurídica. Com efeito, antes de mais, o decisor português tem a obrigação de confrontar a intenção de assumir uma determinada vinculação internacional com um conjunto de condicionamentos de natureza jurídica, de carácter interno e externo. De carácter interno, de uma banda, para analisar a compatibilidade da vinculação internacional que pretende assumir com determinadas normas de natureza constitucional, nomeadamente as que regulam o treaty-making power e as que estabelecem princípios relativos à atuação externa do Estado. De carácter externo, de outra banda, para ter em consideração os limites à decisão de vinculação internacional do Estado português que resultam da sua subordinação às normas de ius cogens, do respeito pelos compromissos anteriormente assumidos que estejam em vigor e, finalmente, da participação de Portugal na União Europeia. Entre os condicionamentos de carácter jurídico tem especial importância a questão da apreciação da capacidade de vinculação internacional do Estado português, em resultado da extensão das limitações impostas pela União Europeia à capacidade de vinculação internacional dos Estados-membros. Esta matéria assume, além disso, uma prioridade lógica na decisão de vinculação internacional, na medida em que, nas situações de incapacidade, o Estado português não terá, enquanto tal, e isoladamente, legitimidade para assumir a vinculação internacional em causa. Confirmada a existência de capacidade para a assunção de um compromisso internacional, a decisão de vinculação internacional deverá ainda ponderar a questão da opção pelo tipo de procedimento a ser utilizado. Como referido anteriormente, a CRP utiliza, nesta matéria, a contraposição entre tratado internacional e acordo internacional: o primeiro é um compromisso internacional sujeito a ratificação ou a uma manifestação semelhante do consentimento a estar vinculado; o segundo é um compromisso internacional que não está sujeito a ratificação ou a um tipo semelhante de manifestação reforçada do consentimento a estar vinculado. Vigora em Portugal, em termos gerais, um princípio de liberdade de escolha do procedimento ou da forma que irá assumir a vinculação internacional, do que resulta ser a opção pelo procedimento a utilizar, na maioria das situações, uma decisão dos contratantes em presença. Existem, no entanto, algumas situações em que é imposta a forma de tratado em Portugal, em resultado da alínea i) do art. 161.º da CRP. Daqui resulta só ser exigida a utilização de um procedimento de vinculação solene nos casos dos compromissos internacionais expressamente previstos na segunda parte do primeiro segmento da alínea i) do art. 161.º da CRP, isto é, relativamente aos “tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, os tratados de amizade, de paz, de defesa, de retificação de fronteiras e os respeitantes a assuntos militares”. Nas outras situações de vinculação internacional poderá ser indiferentemente utilizado o procedimento solene ou simplificado, algo que é distinto da exigência da submissão, à aprovação da Assembleia da República, de um conjunto alargado de compromissos internacionais, em conformidade com a alínea i) do art. 161.º da CRP, anteriormente mencionada. Assim sendo, não existe uma justificação jurídico-constitucional para se defender uma distinção material entre tratados e acordos internacionais, nem uma argumentação convincente para defender, em consequência, uma qualquer subordinação hierárquica do acordo internacional (em forma simplificada) ao tratado internacional. A negociação internacional será levada a cabo por intermédio do Ministério dos Negócios Estrangeiros ou dos diversos ministérios ou departamentos sectoriais que integram a administração central do Estado, devendo ser prosseguida com uma efetiva intervenção dos órgãos competentes da RAM. Ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, enquanto “departamento governamental que tem por missão formular, coordenar e executar a política externa de Portugal” (nos termos do art. 1.º do dec.-lei n.º 121/2011, de 29 de dezembro), cabe a apreciação das matérias políticas e técnicas de natureza jurídico-internacional, em conformidade com o que se encontra previsto na sua lei orgânica. Nesse sentido, a alínea j) do n.º 1 do art. 2.º do diploma antes citado prevê que são atribuições do Ministério dos Negócios Estrangeiros “conduzir as negociações e os processos de vinculação internacional do Estado português, sem prejuízo das competências atribuídas por lei a outras entidades públicas”. Em sentido idêntico, os n.os 1 e 2 da resolução do Conselho de Ministros n.º 17/88, de 7 de abril, estabelecem que cabe ao Ministério dos Negócios Estrangeiros a coordenação das negociações conducentes à aceitação de vinculações internacionais. Aos restantes ministérios ou departamentos sectoriais, por seu turno, caberá intervir nas negociações relativamente à matéria técnica que constitui o objeto da vinculação internacional. Importa acrescentar que o direito de participação da RAM deve também abranger o modo como os objetivos e os resultados que estiverem a ser alcançados nas negociações dos compromissos internacionais de maior relevância são objeto de informação por parte do Governo ao Presidente da República, aos partidos políticos representados na Assembleia da República e que não façam parte do Governo e aos grupos parlamentares, nos termos, respetivamente, da alínea c) do n.º 1 do art. 201.º, do n.º 3 do art. 114.º e da alínea j) do n.º 2 do art. 180.º da CRP.   Fernando Loureiro Bastos (atualizado a 25.11.2016)

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