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fischer, sebastian

Sebastian Fischer foi um médico de clínica geral e investigador científico que viveu algum tempo na Madeira, durante o séc. XIX  e realizou estudos sobre o arquipélago madeirense na área da zoologia. Nasceu a 10 de novembro de 1806, em Munique, onde veio a falecer, a 8 de outubro de 1871. Em 1846, casou-se com Augusta Mulzer, que faleceu em janeiro de 1849. Em abril desse mesmo ano casou-se, em segundas núpcias, com Johanna Behse. Teve seis filhos, um do primeiro casamento e cinco do segundo enlace, dois dos quais sobreviveram apenas alguns meses. Após terminar os estudos, em 1830, na Univ. Ludwig-Maximilian, em Munique, foi para o Egito, onde permaneceu cerca de 10 anos. Durante esse tempo, esteve a trabalhar como médico de regimento no Exército egípcio, tendo participado, em 1835-1836, como chefe dos serviços de saúde, na expedição egípcia contra Hejaz. Foi ainda professor de Anatomia e Cirurgia na escola de medicina de Abu-Zabel. Foi nomeado chefe do corpo médico do exército e exerceu, até 1841, o cargo de diretor do Hospital Central Militar em Kasr El-Aini. De 1843 a 1853, em São Petersburgo, assumiu as funções de médico particular de Maximilian Eugen Joseph Napoleon, duque de Leuchtenberg (1806-1852). Sebastian Fischer acompanhou o duque em quase todas as suas viagens, durante o tempo em que esteve ao seu serviço. Foi numa dessas jornadas, em 1849, que o médico bávaro chegou à Madeira, Ilha que o duque procurara para fins terapêuticos. A fragata da marinha russa Kamtchatka fundeou no Funchal no dia 23 de agosto, mas os passageiros só puderam desembarcar quatro dias depois, devido a o navio ter estado de quarentena (SILVA e MENESES, 1998, 234-235). Na Madeira, S. Fischer permaneceu até 1850 e, como cientista especializado em entomostráceos (uma subclasse dos crustáceos de corpo mole e geralmente parasitas, que inclui os copépodes, as pulgas-de-água, os ostracodes, os trilobites, as cracas e os percebes), realizou investigações na área da zoologia, publicando depois o livro Ueber Entomostraken Madeiras (Munique) e o estudo “Beiträge zur Kenntniss der Entomostraceen”, em Abhandlungen der Mathematisch-Physikatischen Classe der Königlich Bayerischen Akademie der Wissenschaften (Munique). Após a morte do duque, em 1853, Fischer voltou para Munique, onde viveu até ao final da sua vida, dedicando o seu tempo à medicina e às investigações sobre os entomostráceos, tendo sido nomeadas em sua honra as espécies Paradoxostoma fischeri (descrita por Sars em 1866), Loxocorniculum fischeri (descrita por Brady em 1869) e Cypris fischeri (descrita por Lilljeborg em 1883). S. Fischer foi membro da Imperial Society of Naturalists of Moscow; da Academy of Sciences of St. Petersburg, membro correspondente da Royal Bavarian Academy of Sciences e da Royal Bavarian Botanical Society. Entre as suas contribuições para a ciência incluem-se a descrição de 1 novo género (Paradoxostoma Fischer, 1855) e de 31 novas espécies. Da sua vasta bibliografia fazem parte vários estudos científicos, publicados em revistas especializadas e em volume. Obras de Sebastian Fischer: Ueber Entomostraken Madeiras (1855); “Beiträge zur Kenntniss der Entomostraceen” (1860).     Sílvia Gomes (atualizado a 07.12.2017)

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falar(es) na escrita

As duas faces de uma língua viva Constituída por uma vertente oral e outra escrita, uma língua é, por princípio, bifacial. Contudo, nem sempre os dois lados coexistem. Se for uma língua viva, a face oral, tem-na por inerência, mas pode não contemplar a escrita. Os crioulos cabo-verdianos constituirão um caso paradigmático disso mesmo, embora a situação se esteja a alterar com a tendência crescente para a fixação da fala do criouléu cabo-verdiano de Santiago, divergente, por exemplo, do de São Vicente. Se se tratar de uma língua morta, sucederá o inverso. É assim com a língua latina, que, grosso modo, subsiste apenas na escrita. Pela sua prolífera cisão, esta deu origem às línguas românicas, que, inicialmente, eram apenas faladas e que, por razões históricas, ganhando dimensão nacional ou regional, se tornaram, na sua maioria, escritas. A língua portuguesa, com 800 anos de história contados a partir do Testamento de D. Afonso II, datado de 1214, é exemplificativa de uma língua latina com escrita fixada, havendo percorrido um longo percurso para o efeito. Todavia, há línguas que estavam mortas e que voltaram a ganhar vida, ou seja, readquiriram uma vertente oral. Foi o que aconteceu com a hebraica, aquando da criação do Estado de Israel. É possível contar com outras línguas que nunca foram escritas e que desapareceram ad aeternum com a extinção da sua comunidade de falantes (cf., p. ex., DN, 7 fev. 2011, 49). Algumas mantêm-se vivas pontualmente, como os versos sânscritos recitados em exercícios de ioga. Neste conjunto de línguas, seria igualmente viável inserir o latim, já que a Santa Sé o usa ocasionalmente, sendo a sua língua oficial, embora o italiano a substitua em grande parte das ocasiões em que é indispensável recorrer a um registo linguístico de viva voz. Assim sendo, compreende-se que a dinâmica de um idioma é dada pelo facto de ele ser falado, usado na comunicação diária dos membros de uma comunidade. Esta evidência reencontra-se na relação dos termos “comum”, “comunidade” e “comunicação”, ao integrarem a mesma família. Entre línguas naturais mortas (desaparecidas ou conservadas), ressuscitadas e vivas, a relação entre as suas duas faces, os dois registos, é incontestável. Podem esses dois lados (ou apenas um deles) encontrar-se num estado latente/implícito (sem escrita ou sem oralidade) ou patente/explícito (com escrita e com oralidade). No geral, é à comunidade de falantes (os usuários das línguas numa ou nas duas facetas) que cabe decidir o que pretende fazer. Acontece que, nas trocas linguísticas quotidianas, a variedade da língua empregue raramente corresponde, com completude, à que está padronizada nos dicionários e nas gramáticas, nos compêndios e nos prontuários, já que os membros de uma comunidade vão recorrendo quer a diversos níveis da linguagem, consoante as situações de comunicação em que se encontram – das mais formais às mais informais –, quer a variedades sociais ou diatópicas com cunho específico. É preciso ter em conta que estas últimas recebem a influência da área geográfica onde os falantes nasceram e vivem ou onde passaram a residir, sem aí terem nascido. Assim, sucede que na Região Autónoma da Madeira (RAM) se fala de uma maneira que não é integralmente comum à do restante território nacional, embora também se recorra, nesta área geográfica insular, à variedade padrão, de modo mais premente na escrita documental e oficial. Compreende-se, consequentemente, a razão por que a variedade regional tem somente registo oral, não possuindo nenhum registo escrito oficial. É famosa a frase “O grade azougou e foi atupido na manta das tenerifas”, apresentada como um exemplo ilustrativo do falar regional usado pela população, sendo incompreensível a quem seja de fora, isto é, estranho à comunidade. Aliás, vão-se divulgando textos escritos “à madeirense” (incluindo do Porto Santo: cf., p. ex., ROSADO, 2003). É também esta a ideia que perpassa, por exemplo, no texto “Linguagem Popular da Madeira”, da obra homónima (SILVA, 2013, 23-27), e na crónica “Falares Ilhéus” (JARDIM, 1996, 23-24). No arquipélago, é frequente ouvir dizer, mesmo numa situação formal de comunicação, que determinada tarefa leva “horas de tempo” (“Esse trabalho leva duas horas de tempo”), mas a expressão não se deverá escrever, já que, no plano da escrita, vigorará a norma que aceita unicamente “horas” (“Esse trabalho leva duas horas”). Esta discrepância é fácil de entender, visto que as entidades que controlam o idioma, nomeadamente no que se refere ao ensino, para o manterem homogéneo, o mais uniformizado possível, optaram por uma grafia única, a da norma, um padrão imposto às restantes variedades. Assim, a qualidade bifacial do Português assume, do lado da escrita, à partida, a invariabilidade, mas reconhece, do lado da fala, a variabilidade. Infere-se, daí, que a norma é a única variedade com menos variação. Todavia, a este propósito, sublinhe-se que a definição de “norma” pode não ser unânime. Embora este conceito tenha uma base incontestável, quando a definição remete para “que serve de modelo, de padrão”, foi posto em causa, ultimamente, devido à população referencial que a consubstancia. A que falantes corresponde a norma? Reporta-se aos mais instruídos, sejam eles de que parte do país, e do mundo, forem? Tem origem, em exclusivo, nos falantes mais escolarizados (estrato social médio-alto) de uma área geográfica precisa (Lisboa ou Coimbra-Lisboa)? Para o Português Europeu, equivaleu à variedade usada pela classe alta do eixo Lisboa-Coimbra, e para o Português do Brasil, à das classes altas do Rio de Janeiro (CUNHA e CINTRA, 1995). Como já referido, este conceito de cariz social e geográfico tem sido alvo de alguma refutação, estando, claramente, a ser reequacionado (cf., p. ex., EMILIANO, 2009), o que é compreensível numa sociedade do séc.XXI que, pesem embora as enormes desigualdades sociais, tende para a existência de uma classe média mais forte, com diminuição dos extremos no que toca ao poder económico. Este é, pelo menos, o cenário generalizado na sociedade ocidental. Esquecendo, momentaneamente, a problemática colocada pelo conceito de “norma linguística” e centrando a temática na questão das variedades, sabe-se que, habitualmente, os falantes regionais dominam, pelo menos, duas variedades linguísticas: a exógena (a normativa) e a endógena (a nativa). Diz-se, então, que existe um fenómeno de diglossia, muito semelhante ao bilinguismo. Torna-se evidente, porém, que isso se aplica em exclusivo ao registo oral, uma vez que, na escrita, predominará a ortografia estabelecida para a língua oficial. Por exemplo, num bilhete para um familiar, um madeirense poderá escrever algo como “Vamos ir lalá lalém com Maria. Junta a mochilha!”, hesitando na grafia de “lalá”: “lá-lá”/“lá lá” e de “lalém”: “l’além”/“lá-além”/“lá além”. Todavia, se ele tivesse de transmitir esta mensagem a alguém que não fosse da mesma variedade diatópica, encontrando-se, além disso, numa situação de comunicação que requeresse adequação linguística, deveria alterá-la, adaptando-a com uma proposta como “Vamos dar um passeio acolá com a Maria. Apanha a mochila!”. Numa comparação geral destas duas possibilidades, observa-se que as divergências existentes entre o registo exógeno e o endógeno são substanciais e mereceriam a elaboração de um dicionário (Regionalismos Madeirenses) e de uma descrição gramatical (REBELO, 2014a). Esta deveria dar conta de todas as marcas linguísticas que individualizam a variedade regional a nível da Fonética, da Morfologia, da Sintaxe e da Semântica, incluindo os outros campos dos Estudos Linguísticos, o que os vários trabalhos existentes, de que fazem parte as dissertações académicas, tenderam a fazer de modo parcial. Fica claro que a norma de uma língua viva tem uma vertente oral e uma escrita, mas tal não sucede com as variedades diatópicas, uma vez que possuem unicamente, em termos oficiais, registo oral. Pontualmente, quando se vê escrita nas mais diversas situações de comunicação, nem sempre, por diversas razões, é evidente a variante a fixar (REBELO, 2014b). Aliás, as corruptelas, ou seja, “pronúncia ou escrita de palavra, expressão, etc. distanciada de uma linguagem com maior prestígio social” (HOUAISS, 2001), presentes nas entradas de vocabulários e glossários são prova disso mesmo. Com frequência, surgem na imprensa (cf. os jornais regionais publicados diária ou semanalmente na RAM) hesitações. É o caso de “persiana”, um vocábulo que não se usa no arquipélago e que é, sistematicamente, substituído pelo termo tido como regional “tapa-sol” ou “tapassol”, parecendo difícil escolher entre uma ou outra variante. Acontece de igual modo com muitos outros termos registados nos vocabulários existentes (cf. RIBEIRO, 1929; SILVA, 1950; SOUSA, 1950; PESTANA, 1970; e CALDEIRA, 1993, entre outros). Esta variação gráfica assinala-se, inclusive, nos estudos linguísticos, como os de Käte Brüdt (1938) e de Millet Rogers (1940, 1946 e 1948), que anotaram as palavras da forma como as ouviram pronunciadas pela população. A audição com apontamento foi a metodologia seguida por grande parte dos estudiosos da variedade insular madeirense. Aliás, estes dois investigadores, como quase todos os outros dos três primeiros quartéis do séc. XX, arranjaram uma transcrição sui generis para grafar a dinâmica da fala madeirense (REBELO, 2002b). Este método de registo do(s) falar(es) faz lembrar o da “pronúncia figurada” (REBELO e SANTOS, 2013, submetido), que se empregou extensivamente antes de haver alfabeto fonético internacional. Veja-se o seguinte exemplo para “vinho”, evidenciando a diferença entre a pronúncia figurada, como a expressa em “vâinho” (BRÜDT, 1937-1938), e uma transcrição fonética que se poderá considerar equivalente: ['vɐjɲu]. Sinteticamente, a expressão “pronúncia figurada” significa aquilo que os termos constituintes evidenciam, ou seja, é a representação escrita (figurada), através das letras do alfabeto latino e de determinados sinais adicionais, como acentos gráficos, usada para poder ser reproduzido por meio da leitura (articulação) um modo de dizer (pronúncia) de uma língua estrangeira ou de uma variedade geográfica. A única face visível da variedade diatópica madeirense A variedade insular madeirense, no seu todo, tem, consequentemente, patente a face oral, uma vez que é exteriorizada através da verbalização, e latente (invisível) a faceta escrita, dado que não possui gramática oficial, nem ortografia definida. O mesmo se verifica para as restantes variedades regionais portuguesas ou para as outras realidades não diatópicas lusófonas, como as africanas ou as asiáticas. Podem existir estudos que descrevam ou registem particularidades da oralidade das variedades, mas são restritos e pontuais. Aliás, a “transcrição alinhada” que acompanha as gravações dos CD’s Português Falado (BACELAR DO NASCIMENTO, 2001) normaliza consideravelmente a vitalidade da fala, distanciando-a bastante da grafia que surge a acompanhar o registo oral dos falantes gravados. Porém, esta situação tem vindo a ser alterada, dando-se visibilidade ao registo da variedade, como aconteceu para São Vicente (cf. FREITAS, 1994), embora não se tenha acesso às gravações realizadas pela pesquisadora. Quase todos os trabalhos, incluindo os académicos, curiosamente, facultam o registo escrito (transcrição), mas não dão o registo oral gravado que motivou a transcrição, sucedendo o mesmo com os trabalhos dos atlas linguísticos (REBELO e NUNES, 2009), em que apenas se publica a transcrição fonética dos termos cartografados. É assim desde o início das investigações, mas ressalva-se que, antigamente, os meios técnicos eram praticamente inexistentes. Leite de Vasconcelos, Paiva Boléo e Lindley Cintra interessaram-se pelo estudo da variação diatópica portuguesa, procurando atestar (por escrito) estas realidades linguísticas ultradinâmicas. Quanto à existência de uma única variedade madeirense ou de muitas, uns preferem o singular (VASCONCELOS, 1901, 1970) e outros o plural (CINTRA, 1990, 2008). Escreveu Lindley Cintra que “[...] não parece certo afirmar sem hesitação que o grupo de dialetos madeirenses (como, aliás, os açorianos) pertence ao grupo dos dialetos meridionais do continente, como também será inexato associá-los sem reservas ao grupo dos setentrionais. Misturam-se neles características próprias de ambos os grupos, o que obriga a situá-los num grupo à parte – ‘insular’. Dentro desse grupo os dialetos madeirenses isolam-se dos restantes devido à existência, que procurei rapidamente apresentar, de fenómenos raros, ausentes dos dialetos de outras ilhas, do continente e por vezes até – podemos acrescentar – do resto daquilo a que chamamos România” (CINTRA, 2008, 104). No entanto, apesar de optar pelo plural, não os identifica, nem os localiza. Indicar, unicamente, diversas particularidades não parece suficiente para justificar a existência do plural “dialetos madeirenses”. Foi testado o reconhecimento auditivo da variação na variedade insular madeirense (REBELO, 2011) e comprovou-se que dificilmente os ouvintes conseguem identificar, simplesmente pelo falar, a origem regional dos falantes. Assim, por falta de provas e de estudos consistentes sobre este assunto, opta-se por referir a variedade no geral e, consequentemente, no singular. Aliás, a designação “madeirense” (até prova em contrário) serve perfeitamente para o efeito, fazendo equivaler a linguagem regional ao identificativo do habitante (língua e gentílico), como acontece com a maioria das línguas vivas (REBELO, 2014a). Antes de os estudos pós-saussurianos centrarem a análise linguística na parole (fala), em vez de se concentrarem na langue (língua), os filólogos debruçavam-se sobre os textos escritos, em especial os literários. Deles colhiam informações pertinentes para o estudo da langue, em particular da sua diacronia e história. Criando-se a Linguística como disciplina científica, o que passa a interessar não são os textos fixados em suportes deterioráveis como o papel, mas a riqueza sincrónica da fala multivariável, com um suporte físico “imaterial” (o ar). Este afastamento da escrita levou os especialistas da linguagem, sobretudo os dedicados à análise da fala, num plano sincrónico, a olvidarem totalmente os registos literários. Ora, para os linguistas que têm procurado estudar o português falado na RAM, através de transcrições e de gravações, é de todo conveniente observar, igualmente, os contributos dos escritores regionais. No séc. XX, sobremaneira na primeira metade, indo mesmo aproximadamente até à déc. de 70, as transcrições linguísticas presentes em dissertações de licenciatura, e noutros trabalhos académicos, como se referiu, não diferiam muito das propostas presentes em textos literários, nos diálogos de personagens tipicamente regionais, estando ambos (trabalhos académicos e textos literários) muito próximos do método da “pronúncia figurada”. A descrição da fala regional importa aos estudiosos da linguagem e a um número considerável de escritores, embora numa abordagem menos científica do que a que orienta um linguista. Logo, é a Literatura que vai permitir registar a escrita do modo regional de falar, mesmo se algumas produções literárias não têm seguido esta via, o que aconteceu na recolha de contos populares (FREITAS, 1996) ou de rimances (FERRÉ e BOTO, 2008). Não se almeja, no entanto, abordar a questão da “Literatura Madeirense” (cf., p. ex., HOMEM, 1999 e SANTOS, 2007, 2008), mas tão-somente valorizar, para o falar da variedade madeirense na escrita, o contributo de textos literários de alguns escritores, mais ou menos conhecidos, consagrados ou não, relevantes ou insignificantes quanto ao cânone literário (SANTOS, 2008). A escrita da variedade madeirense: a relevância do texto literário Em termos linguísticos, se o português falado na RAM é apenas unifacial por possuir exclusivamente a face oral, quando olhado sob o prisma literário, torna-se bifacial. Contudo, a dimensão escrita que adquire não é ortográfica, mas fonográfica ou grafofónica (REBELO, 2013 e 2014, no prelo). Estes dois últimos termos estabelecem uma íntima relação entre a dimensão “gráfica” (representação escrita) e a “fonia” (produção oral) para dar conta das características regionais ou locais de um modo de falar. Consistem, por assim dizer, no mesmo processo empregue no registo da “pronúncia figurada”. Posto isto, convém, todavia, clarificar que as representações escritas do registo oral regional vão variando consoante os escritores e a maneira como captaram as sonoridades insulares, não havendo, portanto, uma relação unívoca entre estas duas faces. As causas para este fenómeno serão múltiplas e não se equacionam de momento. A poligrafia literária faz lembrar o polimorfismo próprio do Português Arcaico (cf., por exemplo, VÁZQUEZ CUESTA e LUZ, 1988). Por exemplo, o Dicionário Houaiss apresenta a evolução histórica dos significantes e verifica-se que nem sempre um determinado vocábulo (ex.: “igreja”) se escreveu da mesma maneira, tendo tido, num mesmo período ou em mais, várias formas (ex.: “egreja” e “ygreja”, entre outras possibilidades). Em parte, isso verifica-se porque os diversos autores tidos como regionais foram fixando e dando corpo gráfico, visibilidade impressa, às sonoridades insulares, segundo a sua própria captação da fala. Este processo de materialização dos diversos níveis da variedade insular (como o social: calão, gíria, etc.) na escrita literária sucedeu no plano internacional (p. ex., em França, com Raymon Queneau, e em Moçambique, com Mia Couto) e nacional, com escritores como Lídia Jorge ou Aquilino Ribeiro. Aliás, é sabido que já Gil Vicente procurara conferir um estilo linguístico a determinados tipos de personagens, moldando a grafia segundo traços de pronúncia. Logo, esta especificidade não se observa unicamente na RAM, uma vez que é comum a outras variedades, registos ou línguas. Deste modo, não é uma estratégia exclusiva do espaço criativo madeirense. Contudo, é aqui que a interessa observar, esboçando-lhe os contornos para a configurar. São, sobretudo, as personagens representativas das camadas sociais mais baixas, tipicamente populares, que, nos textos literários, vão “falar à madeirense”. O valor científico da linguagem popular (BOLÉO, 1942) e a problemática da relação entre “popular” e “regional” (VERDELHO, 1982) são tópicos prementes para o estudo do registo escrito das variedades. A escrita ficcional tende a querer assumir traços de realismo linguístico (REBELO, 2008, 2013, 2014 no prelo). Portanto, as personagens, enquanto entidades literárias intratextuais, ganham pujança extratextual, representando um modo de falar de um povo de uma região. Têm entidade individual, muitas vezes com nome próprio, mas identificam o conjunto, a comunidade. O texto adquire, então, um colorido regional quando estas personagens populares, quer iletradas quer pouco ou nada instruídas, falam, sendo recriadas pelos autores. A grafia da fala representada passa a ser desviante porque é uma “transgressão ortográfica”, visto corresponder a uma transcrição gráfico-fónica. As letras do alfabeto latino são usadas para escrever a pronúncia regional que se afasta da representação ortográfica normativa (como no processo da “pronúncia figurada” e de modo distinto da transcrição alinhada, representação ortográfica que acompanha linha a linha a produção de um texto oral). São, assim, as sonoridades específicas da variedade diatópica madeirense que passam a ser escritas. É complexo saber quem terá sido o primeiro autor a procurar registar o falar regional madeirense na escrita, nomeadamente literária, uma vez que a tendência foi quase sempre a de normalizar a grafia. Sem considerar o registo pontual de Mariana Xavier da Silva (1884), Ricardo Jardim, que passou alguns anos em Inglaterra, apresenta-se, com Saias de Balão, como o percursor, até que se descubra outra referência. Este autor regista a fala na escrita de maneira muito incipiente e de forma esporádica. Esta acontece, essencialmente, quando os “criados” falam, como se verifica no seguinte excerto: “Menêina, nã vaia p’ra riba!... Menêina, vai-se pisar!... Menêina, aprante-se p’ra aí! Esteja quètinha!... Credo! Abrenúncio!” (JARDIM, 1946, 32). Desta deixa, sobressai, entre mais particularidades, a ditongação do <i> tónico (êi), considerada como tipicamente madeirense. Em contraponto com Ricardo Jardim, indubitavelmente, um dos autores que mais empregaram este processo da escrita do falar terá sido, por certo, Horácio Bento de Gouveia (SANTOS, 2007). Se não o fez em todos os contos, usou-o, pelo menos, sistematicamente nos seus romances (ALMEIDA, 2000). Apresenta-se um excerto da obra Torna-Viagem: o Romance do Emigrante (GOUVEIA, 1995, 56): - Q’ aconteceu? - O navoeiro matou mê filho! - Aonde? - Na beira da rocha. - Antão ’tá no fundo da ribeira. – E chamou, repentinamente, com toda a força da arca do peito: - Manel? Manel? - O quia, mê pai? - Vem cá. Neste breve diálogo, além de outros fenómenos, regista-se a ditongação com crase em “quia” (que é), sendo notória, no início do diálogo, a ausência do artigo definido antes do possessivo (Sintaxe) com a frequente monotongação deste (“mê filho”). Estes traços são correntes na variedade madeirense, embora, como se sabe pelos trabalhos de vários estudiosos e linguistas como, p. ex., Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos, Paiva Boléo ou Lindley Cintra, comuns a outras variedades portuguesas. Entre estas duas tendências extremas (usar pouco – Ricardo Jardim – e empregar muitíssimo – Horácio Bento de Gouveia), diversos autores foram escrevendo a variedade diatópica madeirense. No entremeio, estará, p. ex., António Marques da Silva, com a “crónica romanceada” Minha Gente, obra póstuma, mas cuja finalização data de 1951. Dando voz às gentes da zona de São Jorge (Santana), reproduz o autor o falar do povo local, como evidencia a citação que se transcreve (SILVA, 1985, 13): – O mê digosto é nã poder botar-me desta terra pá rua. Ainda cum queira mercar um casaco pá missa, nã se pode. Anda-se atolado em lameiro todo loi dias e o que se ganha mal dá pá barreiga... – E si que dê graças a Deus em ter uma buxada para meter na boca... – acrescentou o outro, no mesmo tom melancólico. – Si amode canda reinando ca vida, Man’leinho? – soltou de lá um mais folgazão. – Ora! Cadmiração! Por aquei é com ’um porco que tá dentro do chequeiro. No há com’as outras terras! O Rodrigues, porém, insistia: – Poi sim... Mas si que veja o prove do João Perfeiro, do Farrobo, um homem como um teil, que veio arrebentado daquelas terras do fasteio!... Destaca-se também nesta amostra da escrita da fala a ditongação de <i> tónico (“Man’leinho” – Manuelinho, “barreiga” – barriga, “aquei” – aqui, “teil” – til, “fasteio” – fastio). Este ditongo, com semivogal divergente da palatal ou da velar normativas, reencontra-se, p. ex., no estudo acústico sobre o falar do Porto Santo (REBELO, 2005). Sobressai o uso da forma de tratamento com “si”, entre vocabulário típico (“mercar”, “um lameiro” ou “reinando”) e diversos fenómenos fonéticos, como mudanças de timbres, supressões, etc. Realça-se a forma do artigo definido masculino plural “loi” e a monotongação do possessivo “mê” (meu), mas, aqui, antecedido do artigo (“o mê”). Como se verifica, a exploração das particularidades linguísticas registadas deveria ser alvo de uma investigação aprofundada, podendo, crê-se, ter um considerável interesse para o linguista. A reaproximação da Linguística à Literatura merece, assim, para o estudo da variedade insular, uma atenção especial. Além destes três autores mencionados, apontam-se outros por serem, porventura, os que mais ilustram esta estratégia linguístico-literária, recorrendo a uma transcrição linguística reconstruída (ficcionada) que aproxima a grafia da fonia. Decerto, os autores que viveram o período da Revolução dos Cravos, em meados da déc. de 70 do séc. XX, experimentaram uma revalorização de tudo o que se relacionava com o povo. Textos publicados nesse período tenderam, por isso, a sobrevalorizar o falar regional, na sua vertente popular e regional. É o que acontece com Pernas Ceifadas, de Maurício Melim Teixeira, com prefácio de Horácio Bento de Gouveia. Nesta obra, o autor, conferindo-lhe um cunho de realismo, afirma que “[...] a história apresentada se baseia em factos reais [...]. À parte algumas criações minhas, outros arranjos e outra disposição, ela sustenta-se num (entre tantos) caso real, bem funesto da sociedade madeirense” (TEIXEIRA, 1975, 9-10). O pendor realista é ainda salientado por Horácio Bento de Gouveia no prefácio da obra: “A prova evidentíssima reside no conteúdo da novela, no realismo das cenas, no aspecto fónico do linguajar das personagens”. Acrescenta Gouveia, a propósito: “Nota-se uma natural preocupação de gosto pelo termo raro, muitas vezes forçado. Infere-se, da sintaxe, muita leitura, bem que não completamente escoimada dos prejuízos inerentes à busca da verdade linguística” (Ibid., 12-13). Reencontra-se esta tendência nos diálogos que dão conta de um falar divergente do registo normativo (Ibid., 153-154): – Olhe nã repare nesta desarrumação qu’ at’ ia ûa vergonha! ’Tava [sic] acabande d’almoçar, sabe cuma ia... Mas antão o qu’ ia qu’ a trai pro cá? Precisa dalgûa coisa, ia? S’ iu puder ajudar ia só dezer, faça-se de casa, nã faça cirmónia! [...] – Eu gostava de tilfonar... Hesitava. – Pôs ia tilfonar... ora venha daí... largue lá esses acanhamentes... por ’quei, por ’quei... – e balançava-se, afanada. – Sabe qu’ o nosso... quer dizer... o mê pai trancou o tilfone e iu preciso muito tilfonar... desculpe vir incomodar... – Ora essa! Ora essa! Incomodar, proquia? Nã incomoda nada, nem um belisque... Ah, mas o sê pai trancua? Ora essa! – repetia – Mas antão proquia? – [...] – Tudo por causa do mê namorado... O qui é que quer? Ele é assim! Embirrou e agora? É teimoso que nem um jerico! Vá lá entender-se isto! O diabo do homem pendeu prá ‘li e tirem-lho da carcaça! – Ah, e iu a pensá qu’o sinhô Francisque era um home compreensive, honeste! Olhe que nem parece ser o qu’ ia! – estava despeitada – Sabe o qu’ ia: a gente vê, fala, mei nunca ia cuma se vivesse cum ele, nã se lhe conhece ei manhas. Aparências... Olhe menina: nem tude o que luz ia oure! Ora, são todes bons! Homes! Todes iguais, nem um só s’ escapa! Ia tude ûa súcia de bandides, ûa canhalha! Concluía por fim: – Mei vá lá, vá lá, nã demore mais aquei, qu’a meinha c’riosidade já lhe tirua munte tempe. Ia aquei, ia aquei! Pegue, ‘teija à vontade! Neste diálogo, assinala-se, de novo, a ditongação de <i> acentuado (“aquei”, “meinha”), que, porém, nem sempre ocorre (“compreensive”, “bandides”), assim como a de “é” (“ia”), entre múltiplas outras especificidades, como a mudança de timbre de <o> em posição final absoluta ou não (“todes”, “tempe”). Certos traços ocorrem igualmente no conto de Jorge Sumares “Mai Maiores qu’ essei Serras”, que data também do mesmo período de mudança política, assim como de paradigma estético-literário e linguístico, já que foi escrito em finais da déc. de 60 e publicado, parcialmente, em 1974, no Diário de Notícias da Madeira. Não sendo escritor de profissão, Sumares redigiu este texto aproximando os grafemas dos fonemas, ou melhor, as letras dos fones, como se constata da leitura do passo que se recortou da integralidade textual (um diálogo em que se “ouve” apenas uma das duas vozes, um dos dois interlocutores, o idoso popular, marcadamente regional): “Filhos? Tive nove. Seis homes e três melheres. Tudo se criua à conta de Deus. Inté a nossa Rosaira já tava criada cando Deus a chamua à sua devina presença. Já andava nui vinte. Veio-le um bicho no estâmego – lá foi” (SUMARES, 2005, 177). Curiosamente, a ditongação de <i> tónico não se verifica neste excerto, mas ocorre no decorrer do conto (REBELO, 2013). Porém, o fenómeno da ditongação sucede, p. ex., com o fonema [o] (<ou>) em “criua” (criou), “chamua” (chamou). Também sobressai a mudança de timbre vocálico por, na maioria dos casos, assimilação ou dissimilação, o que é evidente em “melheres” (mulheres), “devina” (divina) e “estâmego” (estômago). Dá-se ainda, e apenas, relevo ao plural “nui” (nos), assinalando um traço que é identificado como madeirense, isto é, o plural em <i>. Este fenómeno gerou controvérsia quanto à sua explicação, nomeadamente entre Millet Rogers e Eduardo Antonino Pestana (PESTANA, 1970) (Sintaxe). É indispensável referir que, antes destes autores, Ernesto Leal, no conto com o título homónimo da obra O Homem que Comia Névoa, de 1964, experimentara este exercício, mesmo se, como Ricardo Jardim, não lhe conferiu grande relevo na sua obra. No entanto, não se pode deixar de mencionar, ilustrando esta escrita fónica com um breve trecho (LEAL, 1964, 68-69): Na Portela das Mantas, à hora da névoa da manhã, o vilão grita assim e os sons ficam no ar, a baloiçarem-se: – Ó Maruia!... […] E a viloa responde: – Qu’é? […] – Onde estás, que não te vejo, ca névoa? […] – Estou no poio pequeno das couves, por ruiba do chiqueiro. Mais uma vez, o <i> tónico surge ditongado (“Maruia” – Maria, “ruiba” – riba) e sobressai enquanto marca madeirense perante fenómenos populares geograficamente mais amplos, como a elisão em “Qu’é?” ou a aglutinação presente em “ca”. Estranhamente, as formas verbais “estás” e “Estou” mantêm-se intactas, quando correntemente se reduzem a “tás” e “Tou”. O mesmo acontece com o ditongo de “não”, que tende a monotongar na oralidade (“nã”). O vocábulo “couves” é, popularmente, por certo, mais empregue com a variante do ditongo “oi”, mas, neste excerto, mantém-se inalterado. Esta observação, aplicada a outros fenómenos e vocábulos, é válida para os restantes autores que seguem o processo de escrever o falar, já que, por vezes, não assinalam traços que se sabe serem comuns no registo da fala. Aliás, isso é notório em Francisco de Freitas Branco, que, embora não tenha escrito textos literários, seguiu esta estratégia em crónicas com alguma literariedade. Orientou-se este autor por uma transcrição alfabética do falar madeirense (da Madeira e do Porto Santo) inconstante e cambiante, muito versátil, como o comprovam a leitura das crónicas “Sobre Habitantes da Ilha: Apontamento Linguístico”, “Ê Tenho esta Ideia Comeio (Crónica Literária)” e “Ainda nam Teinha Trêzianes, Comecei Cêde: Tentativa para Reprodução Escrita da Fala Viva” (REBELO, 2002a, 2004, 2008, 2013, 2014 no prelo). O processo terá desagradado aos falantes que se sentiram desvalorizados por considerarem que aquela escrita estava repleta de “erros”. Ora, o facto de as transcrições de Freitas Branco se reportarem a pessoas (reais – entidades extratextuais) e não a personagens (de papel e palavras – entidades intratextuais) terá criado equívocos difíceis de resolver, já que estas transcrições queriam sublinhar a riqueza da dinâmica da fala. Parece, então, que, se se sair do plano ficcional, a variedade diatópica continua a ser unifacial. Caberá aos linguistas ultrapassar esta dificuldade, se se pretender que a variedade endógena seja bifacial fora dos limites da Literatura, que, porém, tem continuado a alimentar o processo de transcrição da fala. Mais recentemente, um dos últimos autores que procuraram passar para a escrita o falar dos ilhéus do arquipélago terá sido Lídio Araújo, que recorre, abundantemente, ao processo em Filhos do Mar. A leitura deste livro é animada pelos diálogos recriados, que, além de serem muito enfáticos, como à partida o são os reais, transmitem um colorido local. As marcas do nível popular preenchem o discurso dialógico, como o seguinte excerto o evidencia (ARAÚJO, 2002, 83-84): – Pedro, acorda! Al’vãta-te O [sic: sem ponto] pae leiva-t’ô maar! [...] – O qu’ia pae, ô maar? – Seim! Êu t’prom’tei, um deia. Hôje vaes c’agênte! [...] – Ia ve’dade, pae? – interrogou, incrédulo, arregalando os olhos. – Ia seim! – E a mãe já saabe? – Já! D’spacha-te! Ao ler-se estas deixas das personagens, é como se se ouvisse as pessoas a expressarem-se nos seus modos de falar marcadamente sincopados e com múltiplos fenómenos estudados pela fonética combinatória (Fonética). A supressão de fonemas é assinalada pelo apóstrofo, como em “Al’vãta-te” (Levanta-te) e “t’prom’tei” (te prometi/prometi-te). A duplicação vocálica poderá indiciar vogais longas e/ou com um grau de abertura considerável, representando para o leitor a necessidade de as “dizer” duas vezes (“maar” – mar, “saabe” – sabe), como se houvesse duas vogais/duas sílabas. Este último fenómeno confere melodia ao falar, alongando os vocábulos por parecerem ganhar uma sílaba. Como para os autores já mencionados, além de o nível popular se destacar, surgem também nesta obra de Lídio Araújo particularidades regionais, como a ditongação de <i>, quer oral – “deia” (dia) –, quer nasal – “seim” (sim). Regista-se ainda a da vogal anterior semiaberta, que se encontra, p. ex., em “qu’ia” (que é) e em “leiva” (leva). Poderia alargar-se a exemplificação, mas esta parece ser suficiente para comprovar o valor deste livro, que, através da recriação do autor, reproduz o falar das gentes do mar madeirense de Câmara de Lobos. Nesta síntese, fica claro ser inviável referenciar todas as obras de cunho madeirense (que começam a ser em número considerável) em que o recurso da escrita da fala ocorre. Pelo traço característico que as permite reagrupar aqui, os escritores mencionados e as obras citadas, além de todos os restantes não referidos, aguardam um estudo linguístico aprofundado. Seguindo as pegadas dos filólogos do passado, o linguista do presente, dedicado à variação regional, terá todo o interesse em analisar as diversas transcrições literárias para a representação gráfica do falar insular, que revelam constituir um rico património (REBELO e GOMES, 2014). Muitas vezes, são dados impressionistas (REBELO, 2003, 2011) e intuitivos, já que, p. ex., a palatalização da lateral antecedida de [i] nem é comum (ANDRADE, 1994) nos textos transcritos. No entanto, não se distanciam substancialmente dos que as dissertações de licenciatura apresentaram (MACEDO, 1939; ROGERS, 1940, 1946, 1948; MONTEIRO, 1945, 1950; PEREIRA, 1952; PESTANA, 1954; NUNES, 1965). A título meramente exemplificativo, veja-se, em baixo, a Tabela 1, com algumas representações literárias da autoria de Ricardo Jardim, Ernesto Leal, Jorge Sumares e Francisco de Freitas Branco. A variação no modo de grafar a vogal indica uma pronúncia particular que cada autor escreve à sua maneira, como a ouve. A tabela foi elaborada a partir de um levantamento de dados anteriormente realizado (REBELO, 2008) e nela facultam-se exemplos, destacando-se a negrito os segmentos a considerar. [table id=95 /] Assim, constata-se que há todo um trabalho de sistematização linguístico-literário a realizar para dar visibilidade à face escondida (a escrita da fala) da variedade insular madeirense, que, todavia, figura em vários textos literários, segundo os critérios individuais dos seus autores. É urgente compará-los para compreender em que pontos são credíveis, ou não, as suas propostas de escrita da fala da variedade diatópica madeirense. Enquanto isso não suceder e não houver interesse em escrever o falar madeirense (os falares madeirenses?), a variedade insular continuará a ser apenas unifacial, sobrevivendo no registo oral, até a comunidade regional assim o desejar.   Helena Rebelo (atualizado a 07.12.2017)  

Linguística Literatura

abreu, jaime césar de

Filho do Dr. José Sabino de Abreu, Jaime César de Abreu (1899-1967) nasceu na freguesia do Estreito de Câmara de Lobos. Licenciou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra, em 1922, com a tese Infecção Puerperal, vindo a fixar-se no Funchal. Ocupou as funções de radiologista e de médico no antigo Hospital da Santa Casa da Misericórdia. Palavras-chave: Associações de Socorros Mútuos; Hospital da Misericórdia do Funchal; Medicina; Trabalhos científicos.     Filho de José Sabino de Abreu, médico natural de Lisboa, e de sua mulher, Augusta Matilde Figueira César de Abreu, Jaime César de Abreu nasceu na freguesia do Estreito de Câmara de Lobos, a 16 de fevereiro de 1899. Licenciou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra, curso que terminou em 1922, fixando-se no Funchal, onde casou com Cecília Tolentino da Costa, filha de Lúcio Tolentino da Costa (1870-1939) e de Maria Assunção Pereira. Deve ter sido o sogro, médico pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e antigo capitão médico do Exército, entretanto afastado por ter aceitado a presidência da Câmara Municipal do Funchal na sequência da Revolução da Madeira de 4 de abril de 1931 (Revolução da Madeira), que lhe abriu alguns caminhos profissionais no Funchal. Embora fosse oftalmologista, Lúcio Tolentino da Costa tinha sido o impulsionador e o responsável pela montagem de um aparelho de raios X na Associação de Socorros Mútuos 4 de Setembro de 1852, onde era médico, vindo aquela associação mutualista, através desta aparelhagem, a prestar relevantes serviços à comunidade naquela área. Jaime César de Abreu começou por ajudar o sogro na Associação e, em breve, ali desempenharia as funções de radiologista e de médico. Durante vários anos, foi também médico e diretor dos serviços de radiologia do Hospital da Santa Casa da Misericórdia (Santa Casa da Misericórdia do Funchal), no edifício que seria depois sede da Junta Geral e mais tarde do Governo regional. Durante alguns anos, foi igualmente presidente da comissão administrativa do Recolhimento do Bom Jesus e professor provisório do Liceu Nacional do Funchal  então chamado Jaime Moniz, em homenagem a Jaime Constantino de Freitas Moniz (1837-1917). Do seu casamento teve quatro filhos: José Tolentino da Costa César de Abreu, capitão da Marinha Mercante; Nicolau Tolentino da Costa César de Abreu, casado com Maria Dulce Leal Moniz César de Abreu; Maria Cecília Tolentino da Costa Cesar de Abreu, casada com João Tolentino da Costa César de Abreu, empregado bancário, com descendência. Escreveu e publicou Infecção Puerperal, tese de licenciatura que o Visconde do Porto da Cruz, Alfredo de Freitas Branco (1890-1962) regista como “indubitavelmente um trabalho de especialidade, mas [que] está escrito com elegância e clareza de frase” (PORTO DA CRUZ, 1953, 126). Foi sócio da Sociedade Portuguesa de Radiologia Médica e faleceu no Funchal, a 31 de dezembro de 1967, com 68 anos. Obras de Jaime César de Abreu: Infecção Puerperal (1922).   Rui Carita (atualizado a 14 de julho de 2017)

Ciências da Saúde

vasconcelos, joão da câmara leme homem de, visconde e conde do canavial

A vida política, económica e social madeirense foi marcada no último quartel do séc. XIX pela personalidade conflituosa do futuro conde do Canavial, Dr. João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos. Filho do morgado António Francisco da Câmara Leme Homem de Vasconcelos e de Carolina Moniz de Ornelas Barreto Cabral, nasceu no Funchal a 22 de junho de 1829, foi simultaneamente clínico, professor, funcionário público, homem de ciência, jornalista e escritor, político e industrial, em todas essas ocupações revelando interessantes qualidades e capacidade e de trabalho, mas também uma personalidade algo conflituosa. Foi autor de uma vastíssima produção literária, quer científica, quer política, que é difícil trabalhar de forma científica, pois nem sempre se consegue separar o que era polémica científica e industrial do que eram atitudes políticas e pessoais. Concluídos os estudos secundários no Funchal, veio a formar-se em medicina pela Universidade de Montpellier, em França, bacharelando-se em 1852 e doutorando-se em 1857, colaborando ali em vários periódicos, fazendo traduções e tendo obtido o lugar de membro da Academia das Ciências e Letras daquela cidade. Começou assim logo por desenvolver um notável trabalho científico na sua área de especialidade a que, regressado à Madeira, juntou também a de investigador da área científico-industrial de tratamento do vinho da Madeira, de que era um dos mais importantes produtores. O Dr. João da Câmara Leme, regressado de França, fez em 1859 repetição dos seus atos académicos na Escola Médica de Lisboa, sendo no ano seguinte nomeado demonstrador de anatomia da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal e, em 1867, professor proprietário. No ano seguinte, editava logo um Relatório e Projecto de Regulamento para a Escola Médico-Cirúrgica do Funchal (1868), entrando de imediato em conflito com o Dr. António da Luz Pita (1802-1870), então deputado em Lisboa, polémicas que se prolongaram pelos anos seguintes. Escrevem os autores do Elucidário Madeirense, que o conheceram pessoalmente, que “teve de sustentar algumas lutas com os seus colegas no magistério, publicando a tal respeito dois grandes volumes, que, apesar da parcialidade com que possam porventura estar escritos, são trabalhos de incontestável valor” (SILVA e MENESES, 1998, I, 232). Paralelamente à sua atividade como médico e diretor da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal, promoveu ainda a fundação da Companhia Fabril de Açúcar Madeirense (CFAM), com sede junto à ribeira de São João, onde introduziu notáveis aperfeiçoamentos nos processos destinados ao fabrico da aguardente, essencialmente no sentido de um melhor aproveitamento da matéria-prima empregue. Registou de imediato patente da sua invenção, o que deu lugar a uma série de contestações e polémicas, voltando a, sobre esse assunto, publicar inúmeros folhetos. Na polémica viria a entrar outra das grandes figuras da Madeira do seu tempo, o depois comendador William Hinton (1817-1904), a qual polémica, embora não só, veio a inviabilizar alguns anos mais tarde a Companhia da ribeira de São João. A constituição e vida da CFAM, liderada pelo futuro visconde do Canavial, foi um bom exemplo do quadro geral em que se desenvolveu a atrasada revolução industrial na Madeira. Beneficiando do inegável espírito empreendedor do promotor, mas também da sua teimosia e, inclusivamente, de um experimentalismo algo deslumbrado, sempre à procura de uma nova tecnologia, e sem bases técnicas e científicas para tal, a vida da Companhia foi confrontada com a concorrência feroz dos comerciantes britânicos instalados na Madeira. A todo este quadro, juntaram-se as dificuldades de associação e de entendimento dos proprietários madeirenses, muito provavelmente ainda politicamente agudizadas pelos antigos morgados, entretanto radicados no espaço continental. Os estatutos da CFAM só foram aprovados em 1867, arrastando-se a constituição da Companhia por mais de 10 anos, o que implicou que a fábrica de São João só entrasse em funcionamento em 1871. O futuro visconde apetrechou-a com sofisticada aparelhagem, a que ainda associou outros aperfeiçoamentos da sua autoria, de que imediatamente registou a patente. No entanto, não só William e o filho Harry Hinton (1859-1948) vieram a contestar o registo dessa patente, como a sofisticada aparelhagem acabou por não se mostrar rentável. A 26 de agosto de 1878 foi solicitada a intervenção do Banco de Portugal por insolvência financeira da CFAM. A ideia voltou a aparecer em 1892, tomando como exemplo a Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal, chegando-se mesmo a propor em reunião camarária, de 11 de outubro desse ano, um subsídio anual de 100 mil réis e que a nova associação fosse presidida pelo conde do Canavial. Mas tal como já se inviabilizara o anterior projeto da fábrica de São João, também a associação se extinguia em 1902. Em 7 de setembro de 1876, organizava-se a partir do Pacto da Granja, no continente, uma nova fusão, então entre elementos das antigas formações histórica e reformista, de que nasceu o Partido Progressista, de Anselmo José Braamcamp, que foi o primeiro partido no sentido moderno do termo com programa, apresentando um regulamento interno, com assembleia geral e centros locais. O líder na Madeira viria a ser o Dr. João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos, depois visconde do Canavial, aderindo ao partido parte dos antigos membros do Partido Fusionista e do Regenerador. O Partido Fusionista teve como órgão o Correio do Funchal, substituído depois pelos periódicos A Fusão, A Voz do Povo e A Imprensa Livre. Em meados de 1879, com a queda do executivo, saía da Madeira o governador e conselheiro Afonso de Castro, logo assinando, a 21 de julho, a correspondência do governo civil, como membro do conselho do distrito, João da Câmara Leme, como visconde do Canavial, embora a 28 de agosto já não o faça, só voltando a assumir-se como visconde a partir de agosto do ano seguinte. Estranhamente, não se encontra qualquer documentação oficial da sua nomeação como visconde, mas apenas o dec. de 22 de abril de 1888, que o nomeia como conde, citando-se ainda a carta de 28 de março e o alvará de “mercê nova” de 15 de dezembro de 1888 (CLODE, 1983, 107), não havendo contudo confirmação alguma na chancelaria régia. A partir de então, desenvolveu o futuro visconde uma verdadeira campanha para vir a ocupar o lugar de governador civil do Funchal, assim como para passar a utilizar o título de visconde do Canavial. A luta política deve ter sido terrível, a avaliar logo pelos membros do conselho do distrito que assinam alternadamente a correspondência como governador substituto: o visconde do Canavial a 21 de julho e o morgado Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880) a 30 do mesmo mês. Luta que deve ter tido eco também nos corredores do poder em Lisboa, até pela utilização então intensiva do telégrafo submarino, através da Madeira Station no Funchal da Brazilian Submarine Telegraph Company Limited. A nomeação de João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos como governador substituto para o distrito do Funchal só viria a ser assinada a 30 de julho de 1879. O decreto terá chegado ao Funchal poucos dias depois e o futuro visconde, a 8 de agosto, logo emite proclamação impressa e inflamada ao sabor de alguns dos governadores anteriores, que eram, no entanto, efetivos, pois nenhum até então tinha feito especial alarido com o facto de ser “governador substituto” (ARM, Alfândega do Funchal, liv. 683). O novo governador substituto teria alguns curtos meses de estado de graça, pois em breve O Direito o acusava de se encontrar a receber três ordenados: o de governador substituto, o de professor da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal e o de delegado de Saúde. A 15 de fevereiro, o governador distribuía um comunicado com um desmentido atestado pelo delegado do Tesouro em como, passando a receber o ordenado de governador substituto, suspendera os outros. O futuro visconde do Canavial não seria confirmado naquela altura, pois, caindo o gabinete progressista em Lisboa, o novo gabinete regenerador demitiu de imediato os governadores civis progressistas e, a 26 de abril de 1881, já assina a correspondência do Funchal o vogal do Concelho do Distrito servindo de Governador Civil, João Maria Curado de Vasconcelos (1825-1896). A breve trecho, um autêntico terramoto político varreria o país, com epicentro na Madeira: a eleição do Dr. Manuel de Arriaga, candidato pelo Partido Republicano às cortes, a 26 de novembro de 1882, em eleições suplementares, dado o falecimento do deputado madeirense Dr. Luís de Freitas Branco (1819-1881). Ainda antes do anúncio oficial do apoio dos regeneradores ao líder do Partido Progressista, já O Direito alardeava não poder haver qualquer compromisso com os progressistas, temente, talvez, de ver candidatar-se pela Madeira o visconde do Canavial, até há pouco governador civil substituto do Funchal. Numa intensa campanha ao longo do ano entre os partidos monárquicos, acabou por ser eleito na Madeira o candidato republicano. Nos inícios do ano 1886, o presidente do ministério Fontes Pereira de Melo propunha um adiamento das eleições, para poder organizar uma série de diferendos, o que se estava a tornar um crescente motivo de tensão entre governo e oposição. O rei D. Luís não acedeu à proposta do chefe do governo, pelo que Fontes se viu na contingência de ter de pedir a demissão do gabinete. Foi então chamado ao governo o Partido Progressista, liderado por José Luciano de Castro, mas o início do novo governo progressista foi ocupado com as complicadas negociações que levaram ao casamento do príncipe herdeiro D. Carlos, atrasando uma série de nomeações. Teria sido o caso da nomeação do governador civil do Funchal, para o então líder dos progressistas, visconde do Canavial, lugar que só foi preenchido por dec. de 1 de julho de 1886. Após as eleições de março de 1887, o governador civil, visconde do Canavial, iniciou a convocação das eleições das juntas de paróquia, que somente ocorreram no Funchal e em Machico. O visconde do Canavial insistiu nas convocatórias por três vezes, sem resultado, essencialmente pelos custos que mais uma estrutura política acarretava, mas também por causa da conotação com a divisão eclesiástica tradicional e da ideia rural de que a paróquia era dirigida pelo “senhor pároco” ou “senhor vigário” e não por um elemento eleito entre os “senhores morgados”. A pressão do visconde do Canavial conduziu a um levantamento geral na ilha, que, começando nos meios rurais, quase envolveu o Funchal: a Parreca. Perante a contestação geral, mas só depois de muito pressionado, o visconde do Canavial veio a apresentar demissão a 26 de março de 1888, tendo sido entregue o governo ao visconde da Calçada, Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa (1812-1902). Apesar das dificuldades do seu governo e dos resultados da comissão de inquérito à Parreca, seria elevado a conde do Canavial no final desse ano de 1888, embora se desconheça a documentação oficial, como mencionámos acima. O conde do Canavial viria a falecer na sua residência, à rua da Carreira, a 13 de fevereiro de 1902. Quase 20 anos depois, surgiu a ideia de se levantar um monumento à sua memória, iniciativa de Abel Capitolino Batista; o trabalho foi entregue ao jovem escultor macaense Raul Xavier (1894-1964) e erguido sobre plinto de mármore branco, projeto do arquiteto Fernando Pires. A primeira pedra foi lançada a 1 de dezembro de 1921 e o monumento inaugurado a 2 de março de 1922, no passeio público, frente à sé do Funchal, tendo usado da palavra Horácio Bento de Gouveia (1901-1983), em nome dos alunos do liceu (Diário de Notícias, 22 fev. 1922). A inauguração do monumento naquela altura e naquele local levantou enorme celeuma, dado o seu enquadramento monárquico, vindo a ser transferido para o Campo da Barca, a 6 de dezembro de 1932.     Rui Carita (atualizado a 31.12.2016)

Ciências da Saúde História Económica e Social História Política e Institucional Personalidades

energia elétrica

Antes de se poder usar eletricidade para a iluminação, o azeite era o combustível mais utilizado para esse fim. Até ao final do séc. XIX, os madeirenses utilizaram velas ou candeeiros alimentados a azeite (e posteriormente a petróleo) para a iluminação. À noite, as ruas e os espaços públicos mergulhavam numa completa escuridão. “De longe em longe, um traço de luz coado pelas vidraças das habitações ou uma lanterna guiando algum transeunte noctívago, vinham quebrar momentaneamente as trevas em que a cidade [do Funchal] se achava sepultada” (SILVA e MENESES, 1998, II, 268). A iluminação pública do Funchal surgiu em 1846, numa iniciativa do governador civil José Silvestre Ribeiro, que mandou colocar alguns candeeiros a azeite em pontos centrais da cidade, como forma de melhorar a segurança da população madeirense. A esta iniciativa juntaram-se outras de carácter privado, de pessoas abastadas e de alguns britânicos estabelecidos no Funchal, que contribuíram para a iluminação das ruas com candeeiros instalados nas suas próprias habitações. Os candeeiros teriam dois ou três bicos e tinham como combustível o azeite, o óleo de peixe ou de purgueira. Em 1849, chegaram a existir cerca de 70 candeeiros para a iluminação da cidade do Funchal. Mais tarde, em 1870, a Câmara do Funchal assumiu os encargos com a iluminação e instalou candeeiros em mais alguns pontos da cidade. “Da extremidade de umas hastes de ferro horizontais, de pouco mais de um metro de comprimento, pendiam os candeeiros, sendo os mais antigos amarrados a uma corrente, que, ao longo da haste e da parede, se vinha prender numa fechadura que era aberta para fazer subir ou descer o depósito do combustível e assim proceder-se à sua limpeza e também acender-se ou apagar-se o candeeiro. Depois passaram a estar fixos na extremidade de varas de ferro, sendo preciso o auxílio de escadas para todo o serviço de iluminação” (SILVA e MENESES, 1998, II, 138). Por esta altura, o petróleo começou a ser utilizado como alternativa ao azeite, por gerar uma chama mais intensa. Acompanhando o desejo de progresso que se verificava noutras cidades europeias, houve algumas tentativas, aliás sem sucesso, de mobilização para a implementação da iluminação pública do Funchal a gás. No entanto, o passo decisivo, em termos de progresso, deu-se com a instalação da luz elétrica. A 22 de maio de 1895, a Câmara fez uma concessão ao engenheiro portuense Eduardo Augusto Kopke para a iluminação pública do Funchal. Passado um ano, este engenheiro transferiu o seu contrato para a empresa inglesa The Madeira Electric Lighting Company Limited, conhecida na Madeira como Companhia da Luz Elétrica. Esta empresa implementou a primeira rede de iluminação elétrica e procedeu à instalação da Central Térmica do Funchal, para a produção de energia elétrica. Em 1897 inaugurava-se a luz elétrica no Funchal. A primeira central tinha apenas um grupo gerador a vapor, com potência de 35 cv. No período de 20 anos que se seguiu à inauguração da Central Térmica do Funchal, o uso da energia elétrica foi-se tornando essencial no quotidiano dos madeirenses. O objetivo do contrato de concessão com a empresa inglesa foi totalmente cumprido. Existiam “em toda a cidade e subúrbios 14 arcos voltaicos e 1400 lâmpadas, estendendo-se a mesma iluminação até o Lazareto, quinta Reid, no Caminho do Meio, Conceição, em S. Roque, Quinta do Leme, em Santo António, Nazaré, em São Martinho, e Confeiteira, no Monte” (SILVA e MENESES, 1998, II,269). Para dar resposta às exigências do crescente consumo de eletricidade, a empresa inglesa ampliou, por diversas vezes, a pequena central elétrica do Funchal, já conhecida como Casa da Luz. Em 1925, foi alargado o prazo do contrato de concessão à Madeira Electric Light Company, de 45 para 50 anos. A empresa construiu uma nova central, num espaço contíguo ao anterior, onde foram instalados, ao longo de 11 anos, 6 grupos eletrogéneos. A potência total nominal era, então, de 1890 kW. Mas a Segunda Guerra Mundial trouxe muitas dificuldades à empresa inglesa no que diz respeito ao abastecimento de combustível. Um pouco por toda a Ilha, nasciam iniciativas privadas para a produção hidroelétrica, com vista a responder às necessidades de energia elétrica em locais mais remotos. Entretanto, o Governo português enviou à Madeira uma missão técnica, liderada pelo Eng.º Rafael Amaro da Costa, para estudar o aproveitamento das águas da Ilha para rega e energia elétrica. Foi aprovado em 1943 o plano dos novos aproveitamentos hidráulicos da Madeira e constituída a Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira (CAAHM), que se instalou no Funchal em 1944 e deu imediatamente início à execução do novo plano. Findo o prazo do contrato de concessão à empresa inglesa, e apesar do seu manifestado interesse em não a renovar, aquele foi novamente alargado por mais cinco anos. Em abril de 1949, o município do Funchal assumiu a substituição das funções da Madeira Electric Lighting Company pelos Serviços Municipalizados de Eletricidade. A produção e o fornecimento de energia elétrica do arquipélago, essenciais para o seu desenvolvimento, são assim transferidos para o sector público. Nos anos 50, foram atribuídas à CAAHM as funções de produção, transporte e distribuição de energia elétrica em toda a Ilha. Em 1953, começaram a funcionar as centrais hidroelétricas da Serra de Água e da Calheta, que garantiram energia elétrica a zonas rurais. A Ribeira Brava foi a primeira vila a receber energia elétrica. A aprovação do plano de eletrificação rural, que se veio a estender à ilha do Porto Santo, alargou a rede elétrica a todo o arquipélago. No Funchal, foi construída a sede da CAAHM, na Av. do Mar, e reequipou-se a sua central térmica com novo grupo eletrogéneo de 1000 kW. Edificou-se a Central Térmica do Porto Santo, que foi inaugurada a 9 de agosto de 1954. O consumo crescente de energia elétrica esteve na origem da construção de uma nova sala de máquinas, que ficava localizada a leste da anterior, onde foram colocados três grupos, um de 5145 e dois de 4320 kW. Na déc. de 70, conquistada a autonomia para a Madeira, o Governo regional transformou a CAAHM, então responsável pela produção, transporte e distribuição de eletricidade, numa empresa pública, a Empresa de Electricidade da Madeira (EEM). A EEM lançou-se a grandes obras com vista à eletrificação de toda a ilha da Madeira: foi construída a Central da Vitória, em 1980; a rede de baixa tensão estendeu-se por 456 km; e foram instalados 786 postos de transformação e 8498 focos de iluminação pública. Foram também criados mais três grupos de 5145 e 4329 kW para dar resposta à maior necessidade de consumo derivada do acelerado ritmo de desenvolvimento socioeconómico da Região. A produção de energia hidroelétrica, a partir de 1951, e a produção de outras energias renováveis, em finais do séc. XX, fizeram do arquipélago da Madeira um exemplo de inovação na diversificação de fontes de energia e de sustentabilidade energética. Nos anos 90, a EEM passou a sociedade anónima de capitais exclusivamente púbicos (dec. leg. regional n.º 14/94/M, de 3 de junho).   Casa da Luz O edifício sede da EEM, situado na Av. do Mar, foi sempre conhecido pelos madeirenses como Casa da Luz. Este edifício foi construído em 1956, tendo sido projetado pelo Arqt. Chorão Ramalho. Nele funcionam os serviços administrativos e técnicos da EEM e a subestação do Funchal. É frequente ouvir a população falar da necessidade de ir à Casa da Luz para tratar de demandas administrativas relacionadas com a conta da eletricidade. Neste edifício estava situada a Central Térmica do Funchal, que foi desativada em 1989, após um século de funcionamento. Para não deixar cair no esquecimento o esforço de muitos madeirenses que, desde o fim do séc. XIX, se empenharam nos primeiros passos da eletrificação da ilha da Madeira, foi inaugurado o Museu Casa da Luz, a 24 de novembro de 1997, por altura das celebrações do centenário da introdução da eletricidade na Ilha. Este Museu, situado no antigo espaço da Central Térmica do Funchal, ocupa cerca de 2000 m2 de exposição e concentra uma valiosa coleção de materiais e equipamentos, que contam a história da eletricidade na Madeira.     Ana Londral Cátia Teles (atualizado a 23.03.2017)

Física, Química e Engenharia

clima e meteorologia

O arquipélago da Madeira situa-se na região subtropical do Atlântico oriental, centrado aproximadamente a 32 ° 45 ’ de latitude norte e 17 ° 00 ’ de longitude oeste, a cerca de 900 km de Portugal continental (Sagres) e dos Açores (Santa Maria). É formado pelas ilhas da Madeira e de Porto Santo, com áreas da ordem dos 730 km2 e 23 km2, respetivamente, e pelos ilhéus das Desertas e das Selvagens, estes últimos a cerca de 300 km a sul da Madeira. A orografia é bastante acidentada, com as formações de maior altitude na parte oriental (pico Ruivo, com 1862 m) e na parte ocidental (planalto do Paul da Serra, com altitude da ordem dos 1300 m). De acordo com a classificação climática de Köppen-Geiger, as ilhas da Madeira e de Porto Santo apresentam clima temperado húmido, com zonas de verão seco e quente e outras zonas de verão seco e suave, dependendo da proximidade ao mar, da exposição solar e principalmente da altitude. Em intervalos de tempo regulares, com base em instrumentos específicos, é feita no arquipélago a observação à superfície dos principais descritores meteorológicos, designadamente a pressão atmosférica, o vento, a temperatura e a humidade relativa do ar. A respetiva difusão sincronizada aos níveis regional, nacional e internacional constitui a informação primária para a descrição do tempo presente e, por acumulação sucessiva, do conhecimento do clima. As primeiras observações meteorológicas à superfície, executadas com regularidade e de forma continuada no Funchal remontam a meados do séc. XIX, tendo sido executadas até meados do séc. XX no Palácio de S. Lourenço, e posteriormente no sítio dos Louros, na orla costeira leste da cidade, onde foi instalado o Observatório Meteorológico do Funchal. Graças à observação regular efetuada, no mínimo diariamente, às 09.00 h, estava disponível, em 2015, uma série longa de dados para o Funchal, o que permitia conhecer, e.g., a variação da temperatura média do ar e da quantidade de precipitação dos 151 anos anteriores e da temperatura da água do mar à superfície dos 65 anos anteriores, executada no porto do Funchal. Fig. 1 – Gráfico com a média anual da temperatura do ar à superfície, registada no Funchal entre 1865 e 2015 (151 anos) (Palácio de S. Lourenço e sítio dos Louros); e a média anual da temperatura da água do mar registada na Pontinha entre 1951 e 2015 (65 anos). Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera. Dos registos anuais, destaca-se a subida da média anual da temperatura do ar a partir do início dos anos 70 do séc. XX. Desde 1971 até 2015, a temperatura média anual subiu cerca de 2,2 °C, o que corresponde a um valor médio da ordem de 0,5 °C por década. No entanto, entre 1996 e 2015, período em que as observações foram feitas sempre com o mesmo equipamento, devidamente calibrado, verificou-se que a temperatura do ar subiu cerca de 0,3 °C, o que corresponde a um valor da ordem de 0,15 °C por década, tendo a subida sido mais acentuada entre 1996 e 2004 (8 anos) do que entre 2005 e 2015 (11 anos). À semelhança da temperatura média do ar, a temperatura média da água do mar começou a subir no início da déc. de 70 do século XX, embora de forma menos significativa entre 1995 e 2015. Desde o início da déc. de 70, a diferença entre a temperatura média do ar e da água do mar variou entre 1,3 °C e 0,5 °C, embora nos últimos anos do intervalo essa diferença se tenha mantido próxima dos 0,5 °C. Entre 1995 e 2015, a temperatura média anual do ar variou entre 20,0 °C e 20,4 °C, e a temperatura da água do mar entre 20,4 °C e 21,1 °C. Fig. 2 – Gráfico com a evolução da precipitação média anual registada no Funchal entre 1865 e 2015, desde 1865 no Palácio de S. Lourenço e desde 1951 no sítio dos Louros (Observatório Meteorológico do Funchal). Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera. A partir de uma análise simples da fig. 2, conclui-se que a quantidade de precipitação apresenta variabilidade interanual significativa. No 65 anos que medeiam entre o momento em que começou a haver registos no Observatório Meteorológico do Funchal e 2015, a precipitação anual mais baixa foi registada em 2015 (299,5 mm), correspondendo ainda ao quarto valor mais baixo desde 1865 (em 151 anos). O maior valor da quantidade de precipitação anual ocorreu em 2010 (1477 mm) e um valor próximo deste foi registado em 1895 (1420 mm). Entre 2010 e 2015, registou-se o maior período de anos consecutivos com os valores mais baixos da quantidade de precipitação no Funchal. Rede de observação A rede meteorológica do Funchal começou a ser construída em meados dos anos 30 do séc. XX, com a instalação de vários postos meteorológicos. Nos anos 50, a rede meteorológica era constituída por 15 postos, tendo 7 sido desativados durante a déc. de 80; restaram as estações do Funchal (1865), do Areeiro (1936), de Santana (1937), do Porto Santo (1939), do Lugar de Baixo (1941), do Santo da Serra (1942), da Bica da Cana (1950) e de Santa Cruz/Aeroporto (1958). No acompanhamento da modernização tecnológica registada particularmente durante a déc. de 80 do séc. XX, iniciou-se em 1995 a modernização da rede meteorológica do arquipélago da Madeira, com a instalação de duas estações meteorológicas automáticas em Porto Santo/Aeroporto (78 m) e no Funchal/Observatório (58 m); em 2002, foram instaladas cinco estações: Funchal/Lido (25 m), São Jorge (257 m), Chão do Areeiro (1590 m), Lugar de Baixo (40 m) e Ponta do Pargo (298 m); em 2009, e para reforçar a melhoria da previsão meteorológica, foram ainda instaladas duas estações automáticas no Caniçal/Ponta de São Lourenço (133 m) e nas Achadas da Cruz/Lombo da Terça (931 m). Posteriormente, e após o violento temporal de 20 de fevereiro de 2010, reconheceu-se a necessidade de aumentar a densidade de estações, pelo que foram instaladas, em finais de 2010, mais cinco estações automáticas em Quinta Grande (580 m), São Vicente (97 m), Santana (380 m), Bica da Cana (1560 m) Santo da Serra (660 m), tendo as três últimas substituído as estações clássicas existentes, das quais havia apenas uma observação diária, às 09.00 h. Posteriormente, e para completar a rede planeada em 2010, foram instaladas, em 2013, uma estação no Pico do Areeiro (1799 m), e em 2014 três estações: Porto Moniz (35 m), Pico Alto (1118 m) e Santa Cruz/Aeroporto (58 m), aqui para substituir a estação clássica. Estas 18 estações estão equipadas com instrumentos de observação da temperatura e humidade relativa do ar, precipitação e radiação solar global, estando 12 – Funchal/Observatório, Funchal/Lido, São Jorge, Areeiro, Lugar de Baixo, Ponta do Pargo, Caniçal/Ponta de São Lourenço, Santo da Serra, Porto Moniz, Pico Alto, Santa Cruz/Aeroporto e Porto Santo/Aeroporto – equipadas com instrumentos de medição do vento. Três destas estações estão ainda equipadas com instrumentos de medição da pressão atmosférica: Funchal/Observatório, Santa Cruz/Aeroporto e Porto Santo/Aeroporto. Assim, para a Madeira, a densidade de estações meteorológicas é da ordem de uma estação por cada 45 km2 para a temperatura e humidade relativa do ar e radiação solar global, e uma estação por 65 km2 para o vento. Para ilustração, apresenta-se na fig. 3 a distribuição e a localização das estações meteorológicas no arquipélago da Madeira, em 2015. Fig. 3 – Mapa com a distribuição e localização das estações meteorológicas no Arquipélago da Madeira em 2015. A redução na densidade de estações decidida para o arquipélago da Madeira resultou, em particular, da necessidade de melhoria da vigilância meteorológica, sentida após vários episódios de tempo rigoroso, em particular associados a precipitação forte, registados a partir do início de 2009, dos quais se apresentam alguns mais significativos: 27 fevereiro 2009: Funchal 82,7 mm/Areeiro 145,1 mm; 18 de dezembro de 2009: Funchal 36,7 mm/Areeiro 130,1 mm; 2 de fevereiro de 2010: Funchal 42,5 mm/Areeiro 184,7 mm; 20 de fevereiro: Funchal 144,3 mm/Areeiro 389,6 mm; 21 de outubro de 2010: Funchal 82,7 mm/Areeiro 147,0 mm; 26 de novembro de 2010: Funchal 155,1 mm, tendo sido o maior valor diário registado desde sempre/Areeiro 185,2 mm; 28 de dezembro de 2010: Funchal 50,7 mm/Areeiro 95,7 mm; 26 de janeiro de 2011: Funchal 103,4 mm/Areeiro 321,0 mm; 30 de outubro de 2012: Funchal 55,7 mm/Areeiro 258,1 mm; 6 de novembro de 2012: Funchal 19,3 mm/Areeiro 201,1 mm; 3 de março de 2013: Funchal 40,9 mm/Areeiro 274,4 mm; e muitos outros episódios em toda a ilha da Madeira, sendo de registar também os da Ribeira da Janela no dia 5 de novembro de 2012: 186 mm no Lombo da Terça/Porto Moniz; e de Porto da Cruz a 29 de novembro de 2013: 325 mm no Santo da Serra durante dois dias.   Fig. 4.1 – Fotografia de balão meteorológico com radiossonda. A rede de observação no arquipélago da Madeira inclui ainda um sistema de radiossondagens para observação da pressão atmosférica, do vento, da temperatura e da humidade relativa do ar, desde a superfície até cerca de 30 km de altitude, recorrendo ao lançamento de balão com radiossonda (fig. 4.1), executado uma vez por dias às 12.00 h, e ainda quatro estações de tempo presente, instaladas no Funchal/Observatório Meteorológico, em Chão do Areeiro, Pico do Areeiro e São Jorge, para observação da visibilidade horizontal e identificação do tipo de meteoros (chuva, chuvisco, granizo, saraiva e neve).   Fig. 4.2 – Estação meteorológica automática, em teste no Observatório Meteorológico do Funchal, para ser instalada nas Selvagens. Para completar a rede do arquipélago da Madeira, foi instalada uma estação meteorológica automática nas ilhas Selvagens no verão de 2016 (fig. 4.2), a qual permitirá essencialmente acompanhar a evolução de sistemas meteorológicos que se formem a sul da Madeira, para além de que os dados registados nestes ilhéus permitirão o estudo do clima local e o apoio de estudos científicos nos domínios dos ecossistemas locais.     Condições meteorológicas caraterísticas na região da Madeira Fig. 5.1 – Imagem de aproximação de superfície frontal fria As condições meteorológicas predominantes na região do arquipélago da Madeira são principalmente determinadas pela intensidade e localização do anticiclone dos Açores e pelas perturbações da superfície frontal polar que se fazem sentir especialmente de novembro a março, quando se deslocam do Atlântico Norte em direção à Europa, vindas de oeste. Durante o inverno, o anticiclone dos Açores está geralmente deslocado para sul da sua posição média, a sudoeste dos Açores. Importantes também na determinação das condições meteorológicas nesta época do ano são as depressões frontais que se deslocam sobre o Atlântico, que dão origem à aproximação e passagem de superfícies frontais, em particular de superfícies frontais frias (fig. 5.1), mais frequentes e mais ativas do que as superfícies frontais quentes, as quais dão origem a grande nebulosidade, chuva e aguaceiros por vezes fortes, em particular nas zonas montanhosas, e a ventos fortes dos quadrantes de sul. Fig. 5.2 – Imagem de localização do anticiclone dos Açores em dia de verão. Durante o verão, o anticiclone dos Açores, desloca-se frequentemente para nordeste relativamente à sua posição média anual, a sudoeste dos Açores, fortalece-se e estende-se com uma crista de altas pressões, que atinge o Nordeste da Europa (fig. 5.2). Fig. 5.3 – Imagem de depressão estacionária centrada entre Portugal Continental e os arquipélagos dos Açores e da Madeira. Também de outubro a março, estabelecem-se por vezes, entre a Península Ibérica, os Açores e a Madeira, depressões frias estacionárias que afetam as condições meteorológicas nesta região e podem permanecer cerca de uma semana, dando origem, na região da Madeira, a grande nebulosidade com ocorrência de períodos de chuva ou aguaceiros por vezes fortes (fig. 5.3). Importantes são também as situações em que se observa um anticiclone muito desenvolvido, centrado a norte da latitude da Madeira, e orientado na direção oeste-leste, por vezes associado a baixas pressões sobre o continente africano, e em que a região da Madeira é atingida por vento de leste, muito quente e seco, vindo do deserto do Sahara, com poeira fina que dá origem a bruma. Nesta situação, a temperatura do ar na Madeira pode chegar aos 35 °C e a humidade relativa do ar descer para valores da ordem de 5 % nas regiões montanhosas. O clima da Madeira Para a caraterização do clima da Madeira, recorreu-se à classificação climática de Köppen-Geiger, a qual divide os climas em cinco grandes grupos, identificados por letras maiúsculas, e na qual o arquipélago da Madeira se integra no grupo [C], definido como clima temperado húmido. Para cada grande grupo, o tipo de clima é ainda especificado através de uma letra minúscula que refere o regime da precipitação, que para o arquipélago da Madeira, definido como húmido, é [s]; e uma segunda letra minúscula, que está relacionada com a temperatura média mensal, que para o arquipélago da Madeira é [a] ou [b], correspondendo a verão seco e quente (VSQ) ou verão seco e suave (VSS). No fig. 6, apresenta-se a metodologia utilizada com os limites relativos às temperaturas e precipitações mensais, de acordo com a classificação climática de Köppen-Geiger. [table id=88 /] Recorrendo à série de dados de 1971-2000 (30 anos), em particular às normais climatológicas, da temperatura do ar e da precipitação média mensal, para as estações do Funchal (costa sul, 58 m), do Areeiro (montanha, 1590 m), de Santana (costa norte, 380 m) e da ilha de Porto Santo (78 m), representadas graficamente na fig. 7, e aplicando a classificação de Köppen-Geiger, temos para o Funchal e para Porto Santo clima do tipo Csa (temperado húmido com verão seco e quente) e para o Areeiro e Santana clima do tipo Csb (temperado húmido com verão seco e suave). Fig. 7 – Gráficos com a temperatura do ar e a precipitação média mensal no período de 1971-2000, registadas nas estações meteorológicas do Funchal (58 m), do Areeiro (1590 m), de Santana (380 m) e de Porto Santo (78 m). Aplicando a mesma classificação para as estações que se apresentam na fig. 8, com séries de dados de cinco anos (2011-2015), verifica-se que no Funchal (58 m), no Lugar de Baixo (40 m), na Ponta do Pargo (298 m), em São Vicente (97 m), no Caniçal (133 m) e em Porto Santo (78 m) o clima é Csa (temperado húmido com verão seco e quente) e nas estações de Quinta Grande (580 m), São Jorge (257 m), Santana (380 m), Santo da Serra (660 m), Areeiro (1590 m), Bica da Cana (1560 m) e Lombo da Terça (931 m) o clima é do tipo Csb (temperado húmido com verão seco e suave). [table id=89 /] Legenda: H – Altitude T1 – Temperatura média do ar do mês mais frio I1 – Grupo climático R1 – Precipitação no mês mais seco R2 – Precipitação no mês mais chuvoso I2 – Indicador de tipo T2 – Temperatura média do ar do mês mais quente I3 – Indicador de subtipo TC – Tipo de clima Csa – Clima temperado húmido com verão seco e quente Csb – Clima temperado húmido com verão seco e suave   Na fig. 9 apresenta-se de forma gráfica, para nove das estações indicadas na fig. 8, os valores médios mensais da temperatura do ar e da precipitação para o período 2011-2015. Fig. 9 – Gráficos com a temperatura do ar e a precipitação média mensal no período de 2011-2015, registadas nas estações meteorológicas de São Vicente (97 m), São Jorge (257 m), Ponta do Pargo (295 m), Bica da Cana (1560 m), Santana (340 m), Lugar de Baixo (40 m), Funchal (58 m), Caniçal (133 m) e Porto Santo (78 m). Dos resultados anteriores, conclui-se que, para além da latitude, os fatores determinantes do clima da Madeira são a altitude e a proximidade ao mar. Assim, toda a faixa costeira sul até à cota de 500 m (a avaliar pelos valores da Quinta Grande), a faixa costeira norte até à cota de 100 m, aproximadamente (a avaliar pelos valores de São Vicente e de São Jorge), e o Porto Santo apresentam clima temperado húmido com verão seco e quente, e as restantes regiões clima temperado húmido com verão seco e suave. Resumo de apuramentos estatísticos (1971-2000) A fim de se conhecer com mais detalhe a variação dos vários parâmetros climáticos, apresenta-se uma descrição dos apuramentos estatísticos, também conhecidos por normais, para o período 1971-2000, relativos às estações do Funchal (58 m, costa sul), do Areeiro (1590 m, montanha), de Santana (380 m, costa norte) e do Porto Santo (78 m). (Todos estes dados foram recolhidos no Instituto do Mar e da Atmosfera.)   Temperatura do ar Nas regiões costeiras da ilha da Madeira e em Porto Santo, a temperatura mínima do ar raramente desce abaixo de 10 °C no inverno e a temperatura máxima poucas vezes ultrapassa 30 °C no verão. No entanto, nas terras altas da ilha da Madeira, consideradas acima dos 1000 m, observam-se com frequência valores da temperatura mínima do ar inferiores a 0 ºC. A região do Lugar de Baixo, na vertente sul, a jusante dos ventos dominantes, é a mais quente da ilha da Madeira. Os valores médios anuais da temperatura do ar na ilha da Madeira são maiores na costa sul do que na costa norte e diminuem para o interior da ilha, com a altitude. A temperatura média anual é de 19,0 °C no Funchal (58m), 8,8 °C no Areeiro (1590 m), 15,5 °C em Santana e 18,6 °C na ilha de Porto Santo (78 m). A temperatura média mensal varia pouco ao longo do ano, sendo maior no verão – 22,6 °C no Funchal, 14,3 °C no Areeiro, 19,0 °C em Santana e 22,5 °C em Porto Santo – e menor no inverno: 16,1 °C no Funchal, 4,9 °C no Areeiro, 12,8 °C em Santana e 15,6 °C em Porto Santo. As amplitudes térmicas diárias são pequenas, com valores médios mensais que variam de 5,7 °C a 6,5 °C no Funchal, de 5,9 °C a 8,5 °C no Areeiro, de 4,8 °C a 6,2 °C em Santana e de 4,8 °C a 6,1 °C em Porto Santo. O número médio de dias de verão, definidos como dias em que a temperatura máxima do ar é superior ou igual a 25 °C, é de 72 no Funchal, 7 no Areeiro, 7 em Santana e 39 no Porto Santo; o número de noites tropicais, ou seja, dias de temperatura mínima do ar superior ou igual a 20 °C, é de 28 no Funchal, 1 no Areeiro, 1 em Santana e 37 em Porto Santo. Os dias quentes, com temperatura máxima do ar superior ou igual a 30 °C, podem ser registados tanto nas regiões costeiras como nas regiões montanhosas da ilha da Madeira e também em Porto Santo, mas são bastante reduzidos; em média, inferiores a um dia por ano. As temperaturas máximas absolutas registadas foram 38,5 °C no Funchal, 30,6 °C no Areeiro, 34,1 °C em Santana e 35,3 °C em Porto Santo; e as temperaturas mínimas absolutas foram 7,4 °C no Funchal, -7,0 °C no Areeiro, 5,1 °C em Santana e 6,4 °C no Porto Santo. O número médio de dias do ano com temperatura mínima inferior a 0 ºC é praticamente nulo, exceto no Areeiro onde é de cerca de 40 dias. Precipitação De todos os elementos climáticos, a precipitação é a que apresenta maior variabilidade, existindo um contraste significativo entre a vertente norte e as zonas mais altas, onde ocorrem valores muito elevados de precipitação, e a vertente sul e o Porto Santo, com valores baixos de precipitação. No inverno, a precipitação ultrapassa os 1000 mm nas zonas mais altas, enquanto na costa sul é inferior a 300 mm. Nos meses de verão, a quantidade de precipitação varia entre os 150 mm nas zonas mais altas e menos de 50 mm na costa sul da ilha. O facto de chover mais na parte norte da Madeira durante o verão está claramente associado à direção dominante do vento do quadrante norte nesta estação do ano, e ao facto de a precipitação ser essencialmente de origem orográfica. Os valores médios anuais da precipitação na ilha da Madeira são maiores na costa norte do que na costa sul, aumentando com a altitude, sendo em regra maiores nas encostas voltadas a norte do que nas encostas voltadas a sul para regiões da mesma altitude. Os valores variam de 596 mm no Funchal a 2620 mm no Areeiro, com 1383 mm em Santana. No Porto Santo, o valor médio anual da quantidade de precipitação é 361 mm. Os valores médios mensais da quantidade de precipitação variam muito durante o ano, sendo os meses de outubro a março os mais chuvosos, com valor médio mensal mais elevado nos meses de novembro a janeiro. As maiores quantidades de precipitação diárias variam de local para local, desde o máximo de 215,0 mm no Areeiro, passando por 194,0 mm em Santana, até aos 97,7 mm no Funchal; em Porto Santo, o maior valor diário registado foi 73,0 mm. O número médio anual de dias em que a quantidade da precipitação é igual ou superior a 10 mm é máximo no Areeiro (70) e mínimo em Porto Santo (9), sendo 19 dias no Funchal e 40 dias em Santana. A assimetria norte-sul do número anual de dias com precipitação (≥0,1 mm) é muito significativa. Com efeito, na região do Funchal e noutros pontos da costa sul, ocorrem menos de 90 dias com precipitação por ano, enquanto na costa norte se observam mais de 150 dias por ano. Por outro lado, nas zonas mais altas registam-se mais de 200 dias por ano com precipitação, dos quais mais de 70 são dias com precipitação elevada, superior a 10 mm. Insolação A insolação (número de horas diárias de exposição solar) mensal varia durante o ano com bastante regularidade, Fig. 10 – Gráfico da insolação mensal no Funchal, no Areeiro e em Porto Santo.Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera. tendo o valor mínimo em dezembro: 134 h no Funchal, 102 h no Areeiro e 133 h na Ilha de Porto Santo. O máximo mensal é 231 h em agosto no Funchal, 241 h em agosto no Porto Santo e 285 h em julho no Areeiro. A insolação apresenta uma ligeira descida em junho no Funchal e em Porto Santo, mas que não se observa no Areeiro. A insolação mensal média tem assim, para o Funchal e para Porto Santo, uma distribuição bimodal, com máximos em maio e em agosto (fig. 10). Anualmente, o Porto Santo totalizou, neste período, 2157 h de sol e o Funchal 2057 h, estando o maior número de horas de sol em Porto Santo associado à menor orografia, que não favorece tão fortemente a formação de nebulosidade local. O Areeiro totaliza 2053 h de insolação, apresentando uma amplitude mensal de 183 h; o Funchal, com um número anual de horas de sol quase igual ao do Areeiro, tem uma amplitude mensal de 96 h. O número anual de dias sem insolação é de 11 no Funchal, 9 em Porto Santo e 42 no Areeiro; para este valor, contribui essencialmente o número de dias com muita nebulosidade que se registam nos meses de outubro a março. Evaporação (mm) Os valores médios mensais da evaporação nas regiões costeiras da ilha da Madeira e em Porto Santo variam pouco e com bastante regularidade durante o ano. Em geral, os máximos ocorrem em julho e agosto. A quantidade média anual de evaporação é maior em Porto Santo, com 1423 mm, seguindo-se, por ordem decrescente, na ilha da Madeira, o Funchal, com 1109 mm, o Areeiro, com 970 mm, e Santana, com 753 mm. A amplitude mensal é de 23 mm no Funchal, 117 mm no Areeiro, 19 mm em Santana e 36 mm em Porto Santo, sendo de concluir que a evaporação é máxima nas regiões montanhosas.   Humidade relativa do ar A humidade relativa do ar é em regra maior na costa norte do que na costa sul da ilha da Madeira, sendo a variabilidade mensal maior nas regiões montanhosas. Fig. 11 – Gráfico dos valores médios mensais da humanidade relativa do ar no Funchal, no Areeiro e em Porto Santo.Fonte dos dados: Instituto do Mar e da Atmosfera.   Nas regiões costeiras da ilha da Madeira, os valores médios mensais da humidade relativa do ar apresentam pequena variação durante o ano, sendo menores no inverno do que no verão. Com efeito, o mês mais seco é abril no Funchal, com 69 %, e fevereiro e março em Santana, com 80 %. No Areeiro, os valores médios são mais altos no inverno, 85 %, do que no verão, 64 %. Também na ilha de Porto Santo a humidade relativa é maior no inverno, com 80 %, sendo nos meses de abril a julho da ordem dos 76 %. Na fig. 11, apresentam-se os valores médios mensais da humidade relativa do ar no Funchal, no Areeiro e em Porto Santo.   Vento O regime anual do vento é diferente na costa norte e na costa sul da ilha da Madeira, sendo os ventos predominantes de NE (10 %) e SW (10 %) no Funchal, de NE (38 %) no Areeiro, de WNW (14 %) e SE (10 %) em Santana/São Jorge, e de N (20 %) em Porto Santo. A frequência de calma é de 13,4 % no Funchal, 1,7 % no Areeiro, 4,0 % em Santana/São Jorge, e 2,3 % no Porto Santo. As rajadas superiores a 40 km/h ocorrem no Funchal com frequência de 1 % e muito raramente são registadas rajadas superiores a 70 km/h. Rajadas superiores a 70 km/h são registadas no Areeiro em 5 % das observações, em Santana/São Jorge em 0,6 % das observações e em Porto Santo em 0,2 %. Entre 1995 e 2015, a maior rajada do vento no Funchal foi de 86 km/h, em março de 2010; no Areeiro, foi de 160 km/h, em Santana/São Jorge, de 159 km/h e em Porto Santo, de 104 km/h, todas no mês de fevereiro de 2010. Assinale-se que os ventos fortes e muito fortes a que por vezes correspondem temporais, particularmente nas terras altas da Madeira e em Porto Santo, estão associados normalmente aos valores mais baixos da pressão atmosférica que em regra ocorrem entre novembro e março.   Temperatura da água do mar Os valores médios mensais da temperatura da água do mar à superfície variam com regularidade durante o ano. Os valores máximos ocorrem em agosto ou em setembro e os mínimos em fevereiro ou março. A temperatura média mensal é relativamente alta ao longo do ano, variando entre 17,8 °C em março e 23,3 °C em setembro no Funchal, e entre 17,3 °C em fevereiro e março e 22,4 °C em setembro no Porto Santo. A temperatura média anual é 20,2 °C no Funchal e 19,5 °C em Porto Santo. A amplitude média da variação mensal é 5,5 °C no Funchal e 5,1 °C em Porto Santo. Os valores observados na região raramente descem abaixo dos 15 °C e raramente ultrapassam os 25 °C.   Ondulação A ondulação na região da Madeira é geralmente fraca ou moderada, com rumos predominantes de NW a NE, exceto junto ao litoral sul da ilha da Madeira, em que predominam rumos de SE a SW. As situações que ocorrem mais frequentemente nos meses de inverno, e que correspondem à ocorrência de depressões no Atlântico Norte em latitudes entre 35° e 55° N, conduzem à geração de ondulação do quadrante NW na região da Madeira. A ondulação do quadrante NE é proveniente, em geral, de áreas de geração localizadas no bordo SE do anticiclone dos Açores, quando este se estende sobre a Europa Ocidental. Durante os meses de verão, cresce a importância desta situação relativamente à anterior, quer pela localização habitual nestes meses do anticiclone dos Açores, quer pelo menor número de depressões a atravessar o Atlântico Norte a latitudes suficientemente baixas para que a ondulação por elas provocada atinja a Madeira.   Pressão atmosférica Os valores da pressão atmosférica ao nível da estação apresentam diferenças quase constantes de local para local, resultantes das diferenças de altitude. Os valores médios mensais reduzidos ao nível médio do mar, registados no Funchal e em Porto Santo, variam pouco durante o ano – 3 hPa no Funchal e 3,3 hPa no Porto Santo –, sendo maiores no inverno e no verão, com diferença de cerca de 1 hPa, e menores na primavera e no outono. A variabilidade interanual dos valores médios mensais nos vários anos é maior durante o inverno e menor durante o verão: 15,0 hPa em janeiro e fevereiro e 2,4 hPa em agosto. Os valores mínimos ao nível médio do mar observados em anos recentes foram 985,9 hPa no Funchal, em 20 de fevereiro de 2004, e 985,8 hPa em Porto Santo, em 4 de março de 2013; os valores máximos foram 1037,2 hPa no Funchal, em 1 de janeiro de 2007, e 1039,3 hPa, em 25 de Janeiro de 2014, em Porto Santo.   Trovoada, granizo, neve e nevoeiro O número de dias com trovoada é de 7 no Funchal, 4 no Areeiro, 4 em Santana e 5 em Porto Santo, sendo a frequência maior no outono e na primavera. O número de dias com precipitação de granizo e saraiva é de 1 no Funchal, 14 no Areeiro, 2 em Santana e inferior a 1 no Porto Santo; a frequência é maior desde meados do outono até à primavera. O número médio de dias do ano com precipitação de neve e com geada é praticamente nulo na Madeira, exceto no Areeiro, em que são registados 7 e 16 dias, respetivamente, com maior frequência em janeiro e março. O número de dias com nevoeiro tem valores desde 1 no Funchal e em Porto Santo, 8 em Santana e 227 no Areeiro, sendo pouco nítida a variação ao longo do ano. É muito nítida e acentuada a variação em altitude. Victor Prior (atualizado a 29.01.2017)

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