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Álvaro Rodrigues de Azevedo foi um advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador, que viveu na Madeira durante cerca de 26 anos e que contribuiu para a valorização do panorama literário e cultural da Ilha. É autor de uma bibliografia diversificada e, do seu legado, destaca-se a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), de Gaspar Frutuoso, que inclui 30 extensas notas da sua autoria, que complementam e esclarecem alguns pontos acerca da história da Madeira. Palavras-chave: Madeira; literatura; jornalismo; história; historiografia; cultura. Álvaro Rodrigues de Azevedo foi advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador. Nasceu em Vila Franca de Xira, a 20 de março de 1825, e faleceu em Lisboa, a 6 de janeiro de 1898, dois meses antes de completar 73 anos. Apesar de ter nascido no continente, viveu na Madeira durante muitos anos e considerava a Ilha a sua pátria adotiva. Chamava-se José Rodrigues de Azevedo, mas terá mudado de nome quando ingressou na universidade. Era filho de António Plácido de Azevedo, natural de Benavente, e de Maria Amélia Ribeiro de Azevedo. Casou-se com Maria Justina, de quem teve geração. Concluiu o curso de Direito, em 1849, na Universidade de Coimbra, e foi para Lisboa, onde residiu durante cerca de seis anos. Seguiu posteriormente para a ilha da Madeira, onde exerceu funções de professor, ocupando uma vaga através de concurso público. Anteriormente, tinha tentado um lugar na magistratura judicial, mas não teve sucesso. Alguns anos mais tarde, na introdução do livro Esboço Crítico-Litterário (1866), explicava a razão pela qual não tinha conseguido aquele emprego e se considerava injustiçado. No Liceu do Funchal, teve a seu cargo a cadeira de Oratória, Poética e Literatura, que regeu durante 26 anos. Também no mesmo Liceu, foi professor de Português e Recitação e fez parte, como sócio e secretário, da Associação de Conferências, inaugurada a 9 de maio de 1856, com a finalidade de promover o desenvolvimento dos princípios da educação popular e de elaborar uma discussão com vista à escolha dos melhores métodos de ensino. A Associação de Conferências era composta por professores do ensino público e particular da capital do distrito da Madeira. Em 1856, por ocasião da epidemia de cólera (cólera-mórbus), que se propagou na Ilha, causando uma elevada taxa mortalidade, prestou relevantes serviços no desempenho do cargo de administrador do concelho do Funchal. A 24 de julho de 1856, escrevia no periódico A Discussão, revelando as medidas tomadas pela Câmara Municipal que, no sentido de tentar combater a epidemia, concedeu 150$000 reis mensais para que o administrador do concelho estabelecesse uma sopa económica, a ser distribuída, uma vez por dia, aos mais necessitados. Referia ainda que medidas idênticas tinham extinguido a cólera em algumas regiões continentais. Mencionando nomes de personalidades e respetivos donativos para a causa, reforçava a ideia da importância da alimentação no combate daquele flagelo e considerava que os mais afetados pela doença eram geralmente pobres, pois a principal causa do seu desenvolvimento era a fome e a miséria. Foi procurador à Junta Geral e membro do conselho de distrito e da comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, tendo recusado, em 1870, o cargo de secretário-geral do distrito e a comenda da Conceição. Foi ainda membro do Partido Reformista, participando ativamente na política madeirense e revelando aspirações liberais, sobretudo num período agitado da vida local, iniciado em 1868. Como jornalista, Álvaro Rodrigues de Azevedo colaborou na imprensa periódica madeirense, sendo redator nos jornais A Discussão, A Madeira, A Madeira Liberal, O Oriente do Funchal e Revista Judicial, e tendo redigido também alguns artigos no Diário de Notícias da Madeira. Publicou ainda o Almanak para a Ilha da Madeira para os anos de 1867 e de 1868. Os artigos publicados na imprensa foram de natureza variada, desde folhetins e artigos de crítica literária até assuntos de interesse social, relacionados com a vida no arquipélago e com o quotidiano dos madeirenses. Em janeiro de 1856, no periódico A Discussão, inicia a publicação de um artigo de crítica literária, sob o título “Bosquejo Histórico da Literatura Clássica Grega, Latina e Portuguesa, por A. Cardoso B. de Figueiredo”. Este texto saiu, naquele jornal, nos n.os 50, 51, 53 e 55, entre janeiro e março de 1856. Em 1866, edita um estudo em volume, intitulado Esboço Crítico-Litterário (do Bosquejo Histórico da Literatura Clássica, Grega, Latina e Portuguesa do Sr. A. Cardoso Borges de Figueiredo), no qual menciona o seu primeiro artigo crítico à obra daquele autor. No Diário de Notícias da Madeira, em 1877, nos n.os 181 a 183, publicou, como folhetim, um estudo histórico intitulado “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira”, identificando e descrevendo a casa de Cristóvão Colombo no Funchal. Álvaro Rodrigues de Azevedo é autor de uma vasta obra, de temas diversos. Ainda na juventude, escreveu um drama sob o título Miguel de Vasconcelos, que não chegou a ser editado. No entanto, este texto originou uma polémica na imprensa, em 1852, nos n.os 2924, 2927 e 2942 da Revolução de Setembro, com o bibliógrafo e publicista, Inocêncio Francisco da Silva, autor do Diccionario Bibliográphico Portuguez (1858). Na nota bibliográfica elaborada a Álvaro Rodrigues de Azevedo no referido Dicionário, Inocêncio Francisco da Silva afirma que terá confundido uma crítica desfavorável a outro texto com o mesmo título de Miguel de Vasconcelos, mas de outro autor, que terá lido nas Memórias do Conservatório Real de Lisboa, tomo II, 1843, p. 114. Tendo conhecimento do texto escrito por Azevedo, que este lhe havia dado a ler, anos antes, julgou tratar-se do mesmo texto, pois tinham o título idêntico, mas apenas um foi publicado nas Memórias do Conservatório, tendo outro ficado em arquivo. Este equívoco terá desencadeando a referida controvérsia, suscitando uma troca de correspondência entre ambos, através da imprensa periódica. Nas suas produções literárias encontram-se, entre outros, A Familia do Demerarista. Drama em um Acto (1859), uma crítica de costumes madeirenses, e Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869), no qual pretende desenvolver competências de produção linguística. Como escritor e historiador, produziu importantes trabalhos sobre o arquipélago da Madeira. O seu legado mais importante para a historiografia madeirense foi a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), redigido por Gaspar Frutuoso, em 1590, na ilha de S. Miguel, Açores. Álvaro Rodrigues de Azevedo redigiu 30 notas que acrescentou ao manuscrito, na parte que diz respeito à Madeira, com o intuito de esclarecer alguns pontos da história do arquipélago. O trabalho de investigação, de pesquisas e de consultas em livros, manuscritos ou outras fontes, que empreendeu para a elaboração das anotações presentes na edição de As Saudades da Terra (1873) contribuiu para o desenvolvimento do seu gosto pelo estudo da história da Madeira. Segundo Alberto Vieira, Álvaro Rodrigues de Azevedo “poderá ser considerado o pioneiro da historiografia hodierna na ilha. O seu trabalho publicado em anotação a As Saudades da Terra, em 1873, é modelar e surge como uma peça-chave para todos os que se debruçam sobre a história da ilha” (VIEIRA, 2007, 13). Álvaro Rodrigues de Azevedo confessou que teve muitas dificuldades na elaboração destas notas, que foi um processo moroso, fruto de muito trabalho de investigação, de dia, e de escrita, à noite, acumulado com a sua profissão. A obra, encetada em meados de 1870, demorou cerca de três anos a completar. Os trabalhos de investigação foram feitos nos arquivos da Ilha, nas Câmaras do Funchal, de Santa Cruz e de Machico, na Câmara Eclesiástica, na Câmara Militar e no cabido da Sé. Também foram relevantes os textos que reuniu de cronistas como Zurara, João de Barros e Damião de Góis, e os manuscritos do P.e Netto. Teófilo Braga, seu amigo, com quem se correspondia, teve uma grande influência no seu pensamento e na sua escrita, sendo através deste que tomou contacto com a teoria da história positivista, em voga na época. Contou ainda com a colaboração de João Joaquim de Freitas, bibliotecário da Câmara do Funchal, que o ajudou nos trabalhos de revisão textual. Apesar de todas as dificuldades que teve de ultrapassar, e da obra inédita que deu à estampa, em 1873, não obteve o devido valor e reconhecimento por parte dos seus coevos. Só muitos anos mais tarde é que o seu trabalho foi valorizado pelos eruditos madeirenses. Na verdade, esta obra pioneira na historiografia insular abriu caminho para que outros madeirenses começassem a interessar-se pelo estudo da sua história, do seu passado e das suas raízes. As suas anotações constituíram uma fonte importante para outros estudiosos, sobretudo para os intelectuais da primeira metade do séc. XX e para os homens da chamada Geração do Cenáculo, que recorreram com frequência às investigações do seu antecessor. Antes do trabalho feito nas anotações de Álvaro Rodrigues de Azevedo, os estudos relativos à história do arquipélago eram muito vagos, circunscrevendo-se a breves notas e estudos. A sua obra teve, assim, um grande impacto em estudiosos como, entre outros, Alberto Artur Sarmento, Fernando Augusto da Silva, Eduardo Pereira, Visconde do Porto da Cruz, sendo mesmo uma base de referência para a elaboração de obras como o Elucidário Madeirense (1921). De facto, são muitas as referências aos apontamentos e ao nome de Álvaro Rodrigues de Azevedo nos três volumes que compõem o Elucidário, tendo os seus autores confessado que “são as Saudades da Terra, e sobretudo as suas valiosas e abundantes notas, o mais rico, copioso e seguro repositório de elementos que possuímos para a história do nosso arquipélago” (SILVA e MENESES, vol. II, 1998, 126). Neste sentido, também outros autores terão consultado e referenciado as notas a Saudades da Terra, entre os quais o Visconde do Porto da Cruz, na elaboração dos três volumes de Notas e Comentários para a História Literária da Madeira (1949-1953). Ainda relativamente à história da Madeira, Álvaro Rodrigues de Azevedo foi o autor de uma série de artigos, nomeadamente, “Machico”, “Machim”, “Madeira” e “Maçonaria na Madeira”, publicados em 1882 no Dicionário Universal Português Ilustrado, dirigido por Fernandes Costa. Em 1880, trouxe à luz da publicidade o Romanceiro do Arquipélago da Madeira, um volume de 514 páginas, resultado das suas recolhas da tradição oral em diversas freguesias da Madeira e do Porto Santo, para o qual terão contribuído as influências de Teófilo Braga. As composições foram classificadas por géneros, a saber, “Histórias”, “Contos” e “Jogos”, os quais, por sua vez, foram divididos em espécies. Nas “Histórias”, Álvaro Rodrigues de Azevedo incluiu as seguintes espécies: “Romances ao divino”; “Romances profanos”; “Xácaras” e “Casos”. No género “Contos”, incluiu as seguintes espécies: “Contos de fadas”; “Contos alegóricos”; “Contos de meninos”; “Lengas-lengas” e “Perlengas infantis”. Finalmente, no género “Jogos”, contemplou os “Jogos pueris” e os “Jogos de adultos”. Terá coligido, igualmente, elementos para a elaboração do cancioneiro, que, porém, não chegou a publicar. No ano seguinte à publicação do Romanceiro, em janeiro de 1881, já jubilado, mas desiludido com a ingratidão dos madeirenses pelo seu trabalho dedicado à cultura e ao progresso da Ilha, acabou por retirar-se para Lisboa, onde fixou residência até ao fim da sua vida. Deixou uma coleção de apontamentos avulsos sobre a história, o romanceiro e o cancioneiro da Madeira, que foi coligindo ao longo do tempo que ali passou, os quais foram adquiridos pela Biblioteca Nacional de Lisboa, após a sua morte. No distrito de Lisboa, concelho de Oeiras e freguesia de Paço de Arcos, existe uma rua com o seu nome, a “Rua Álvaro Rodrigues de Azevedo”. Na Madeira, além da reedição das suas notas, em 2007, não houve, até 2016, qualquer homenagem a este homem que se empenhou pelo progresso da Ilha. Obras de Álvaro Rodrigues de Azevedo: O Comunismo. Discurso proferido na Aula de Practica Forense da Univ. de Coimbra, em Que Se Expõe e Combate esta Doutrina (1848); O Livro d’Um Democrata (1848); A Familia do Demerarista. Drama em Um Acto (1859); Esboço Crítico-Litterário (1866); Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869); As Saudades da Terra. Pelo Doutor Gaspar Fructuoso. História das Ilhas do Porto-Sancto, Madeira, Desertas e Selvagens. Manuscripto do Século XVI Annotado por Alvaro Rodrigues de Azevedo (1873); Corografia do Arquipélago da Madeira (1873); “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira” (1877); Romanceiro do Archipelago da Madeira (1880); Benavente: Estudo Histórico-Descritivo, Obra Póstuma, Continuada e Editada por Ruy d'Azevedo (1926).   Sílvia Gomes (atualizado a 14.12.2016)

Antropologia e Cultura Material História Económica e Social Literatura Personalidades

aluviões

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, o termo “aluvião” pode significar inundação muito grande, grande cheia ou enxurrada. Este é o significado atribuído na ilha da Madeira. A rede hidrográfica da Madeira, composta por ribeiras que se desenvolvem da cordilheira montanhosa central para a costa, em vales profundos, estreitos e de declive acentuado, com regime de escoamento intermitente e torrencial, quando associada a eventos de precipitação intensa dá origem a inundações repentinas designadas por aluviões, correntes de detritos ou debris flow. Estas cheias caracterizam-se por concentrações elevadas de material sólido, incluindo blocos de grandes dimensões, que conferem ao escoamento um enorme poder destrutivo. As características geológicas e geomorfológicas das bacias hidrográficas, e das respetivas ribeiras, potenciam a ocorrência de fluxos muito significativos de materiais sólidos, os quais constituem o componente mais perigoso das aluviões. Esta produção de sedimentos é desencadeada pela ação da precipitação e da consequente ocorrência de escoamentos líquidos que mobilizam grandes quantidades de material sólido com elevado potencial geomórfico. A produção dos fluxos de material sólido resulta de diferentes processos, tais como a erosão distribuída nas vertentes, a erosão em sulco e ravinamento, movimentos de massa, e a erosão fluvial nos fundos e margens dos leitos das ribeiras. Segundo a bibliografia, ocorreram no arquipélago da Madeira, desde o início do séc. XVII até 2013, 42 aluviões de intensidade significativa, constituídas por cheias rápidas e violentas com transporte de concentrações elevadas de material sólido. É de destacar, neste contexto, o ano de 1803, no qual se verificaram inundações catastróficas em toda a Ilha, particularmente na região sudeste, entre o Funchal e Machico, tendo perecido cerca de 1000 pessoas. Em consequência desta aluvião, as ribeiras da cidade do Funchal foram canalizadas, sob a direção do Brig. Reinaldo Oudinot, entre 1804 e 1806, continuando uma considerável extensão desta obra a cumprir, no início do séc. XXI, a sua função de canalização dos cursos de água. Já no séc. XXI, merece destaque o dia 20 de fevereiro de 2010, em que, na sequência de um prolongado período chuvoso na ilha da Madeira, aliado a um cenário meteorológico adverso, se gerou uma aluvião excepcional que atingiu, com elevada intensidade, alguns concelhos da vertente Sul da Ilha, em particular o Funchal e a Ribeira Brava. São de lamentar 51 vítimas mortais, bem como os elevados danos materiais e a destruição de muitas infraestruturas públicas e privadas. O quadro que apresentamos (fig. 1) compila os registos históricos de aluviões ocorridas no arquipélago da Madeira entre o início do séc. XVII e o ano de 2013, e as suas principais consequências. [table id=75 /] Sucessivos eventos da mesma natureza têm ocorrido por toda a ilha da Madeira desde o início da sua história geológica, há cerca de sete milhões de anos, até a atualidade. Testemunhos de fluxos concentrados ou torrentes de escoamento bifásico com uma fase sólida muito abundante são visíveis em todos os complexos vulcânicos que constituem a Ilha. Como diz Susana Nascimento, “trata-se de espessos depósitos de enxurrada, bastante compactados e cimentados que se encontram intercalados nos complexos vulcânicos. [...] Formado em clima caracterizado por abundantes e concentradas chuvadas, estes depósitos conglomerático-brechóides, são constituídos por, aproximadamente, 95 % de clastos, em geral mal calibrados, com dimensões que vão, desde escassos milímetros, até cerca de 2 metros” (NASCIMENTO, 1990, 36). O fenómeno das aluviões na Madeira tem sido referenciado em vários trabalhos de carácter mais ou menos científico. Ao abordar os cursos de água da ilha da Madeira, Eduardo Pereira, em Ilhas de Zargo, sublinha a quase ausência de caudal das ribeiras na estação do verão, sendo que no inverno “crescem torrencialmente, transbordam das margens e arrastam das montanhas toneladas de penedos, rolando-os e batendo uns contra os outros num ruído sinistro e aterrador, ao mesmo tempo que arrebatam terrenos de cultura, derrubam pontes e chegam por vezes a causar enormes prejuízos em habitações, pessoas, terras e animais” (PEREIRA, 1989, I, 283) Orlando Ribeiro, ao comentar o regime das águas na ilha da Madeira, refere algumas “inundações catastróficas” que assolaram a Ilha. Tais calamidades estão associadas a “chuvas excepcionais [...] frequentemente desastrosas, que enchem as ribeiras, arrastam blocos com algumas centenas de quilos, destroem pontes, danificam casas, inundando a parte baixa das aglomerações situadas à beira-mar, e pondo em perigo bens e pessoas” (RIBEIRO, 1985, 33). Merece ainda destaque a descrição feita por Cecílio Silva de um cenário de aluvião num texto intitulado “Eu Tive Um Sonho”, publicado no Diário de Notícias da Madeira. Traumatizado pelo estado de desertificação das serras do interior da ilha da Madeira, nomeadamente da região a norte do Funchal, que constitui a cabeceira das bacias hidrográficas das três ribeiras que confluem para a capital, aliado a recordações da infância passada junto à margem de uma dessas ribeiras (Santa Luzia), o mundo dos seus sonhos, frequentemente tomado por pesadelos sempre ligados às enxurradas invernais e infernais dessa ribeira, descreve: “Tive um sonho […], subia a escadaria do Pico das Pedras, sobranceiro ao Funchal. Nuvens negras apareceram a Sudoeste da cidade, fazendo desaparecer o largo e profundo horizonte, ligando o mar ao céu… […] De repente, tudo escureceu. Cordas de água desabaram sobre toda a paisagem que desaparecia rapidamente à nossa volta. […] Repentinamente, como começou, tudo parou; as nuvens dissiparam-se, o vento amainou e a luz voltou. Só o ruído continuava cada vez mais cavo e assustador. Olhei para o Sul e qualquer coisa de terrível, dantesco e caótico se me deparou. A Ribeira de Santa Luzia, a Ribeira de S. João e a Ribeira de João Gomes eram três grandes rios, monstruosamente caudalosos e arrasadores. […] As águas efervescentes, engrossando cada vez mais em montanhas de vagas espessas, tudo cobriram até à Sé – único edifício de pé. Toda a velha baixa tinha desaparecido debaixo de um fervedouro de água e lama. [...] Acordei encharcado. Não era água, mas suor. Não consegui voltar a adormecer…” (SILVA, DN, 13 jan. 1985). O impacto que as aluviões têm no imaginário coletivo dos madeirenses é por demais evidente, ou não fossem estas um dos principais perigos naturais que os habitantes da Ilha enfrentam, sendo responsáveis pela maioria dos prejuízos, humanos e materiais, provocados por catástrofes desde o início da ocupação humana.   Susana Prada Celso Figueira (atualizado a 14.12.2016)

Física, Química e Engenharia Geologia

quercus-madeira

A Quercus-Madeira, fundada a 28 de janeiro de 1995, é o Núcleo Regional da Associação Nacional de Conservação da Natureza (Quercus), uma das principais organizações não-governamentais de ambiente em Portugal, e é constituída pelos sócios residentes no Arquipélago da Madeira. O Núcleo Regional da Quercus na Madeira, tal como os restantes núcleos desta Associação, organiza-se internamente numa Assembleia de Núcleo, que reúne pelo menos uma vez por ano os associados residentes, e numa Direção de Núcleo, eleita em Assembleia de Núcleo e composta, no mínimo, por presidente, tesoureiro e secretário. A Quercus-Madeira tem como objetivos os que decorrem dos Estatutos da organização em que se insere, destacando-se os de alertar e apoiar os cidadãos em relação às disfunções ambientais, fomentar e promover a educação cívica e ambiental, defender e promover a conservação dos valores naturais, e desenvolver estudos que contribuam para o conhecimento e a defesa dos valores do património natural e cultural. Decorrente da sua Declaração de Princípios, a Quercus norteia a sua intervenção cívica e política pelos valores da independência e da autonomia, sendo uma organização apartidária, liberta de qualquer tutela económica, religiosa ou racial, e consubstanciando a sua ação no lema “Pensar Globalmente, Agir Localmente”. A Quercus-Madeira, como toda a estrutura nacional da Associação, aborda as mais variadas áreas essenciais à sustentabilidade ambiental, tendo dado particular atenção à educação ambiental, à gestão dos resíduos, à escassez e qualidade da água, à conservação da natureza, ao ordenamento do território, à poluição, à eficiência energética e à energias renováveis. A origem do Núcleo Regional da Quercus na Madeira está diretamente associada à vontade de um grupo alargado de alunos que, no ano letivo de 1994/1995, frequentava o 3.º ano do curso de Biologia na Universidade da Madeira. Estes jovens, que tinham vontade de se organizar e constituir uma associação de defesa do ambiente, fizeram-se sócios da Quercus e constituíram o Núcleo Regional. A reunião preparatória que resultou no pedido formal à Direção Nacional da Quercus para a constituição de uma estrutura regional na Madeira ocorreu a 27 de outubro de 1994. Face à vontade subscrita por 15 alunos da licenciatura em Biologia e ao apoio do professor Jorge Paiva, a Direção Nacional autorizou a constituição do Núcleo Regional da Madeira a 28 de janeiro de 1995. A primeira Direção da Quercus-Madeira foi eleita a 15 de fevereiro de 1995 numa Assembleia de Sócios do Núcleo que decorreu no Colégio dos Jesuítas, Universidade da Madeira, tendo Hélder Spínola sido eleito Presidente, Maria Cristina de Matos Niza Secretária, Dília Maria Góis Gouveia Menezes tesoureira, e Odília Maria Freitas Garcês e Irene Gomez Câmara vogais. A apresentação pública da constituição da Quercus-Madeira ocorreu a 12 de abril de 1995, numa sala do Ateneu Comercial do Funchal, tendo suscitado uma forte curiosidade por parte da comunicação social regional. A Quercus-Madeira, sem sede, abriu um apartado na estação de correios e começou por usufruir de algum apoio logístico da própria Universidade da Madeira: dispunha de um armário para o seu arquivo, utilizava as salas para reuniões e fazia uso dos serviços de telecópia da instituição para contatos com a comunicação social. Em maio de 1996, com a eleição do primeiro Reitor da Universidade da Madeira, foi perdendo este apoio, passando a manter o seu arquivo em casa dos dirigentes e estabelecendo contactos com a comunicação social via serviço de telecópia dos Correios de Portugal. À medida que a Quercus na Madeira vincava a sua discordância com as opções que considerava desviadas da sustentabilidade – nomeadamente o atraso na aprovação dos Planos Diretores Municipais e outros instrumentos de ordenamento do território, a gestão da Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos Urbanos, que estava a criar problemas de contaminação das águas subterrâneas, os despejos de terras para dentro das ribeiras e diretamente para o mar e a falta de medidas para evitar os efeitos sobre a saúde pública da aplicação de materiais contendo amianto –, foi dando a conhecer o seu trabalho e atraindo novos sócios. Passado o primeiro ano desde a sua fundação, este Núcleo Regional deixou de ser um projeto de um grupo de estudantes de Biologia para passar a integrar elementos de outras proveniências da sociedade madeirense. Efetivamente, aquando da constituição de uma nova direção, a 27 de fevereiro de 1997, a maioria dos dirigentes eleitos já não pertencia ao grupo inicial de fundadores. No início de 1997, a Quercus-Madeira, ainda sem sede própria, passou a contar com um espaço na Escola da APEL para manter o seu arquivo e fazer as suas reuniões de trabalho. A utilização deste novo espaço resultou dos contactos estabelecidos entre a nova Secretária da Direção da Quercus-Madeira, Carina Martins Nunes, e o diretor da escola, Mário Casagrande (1930-2009). Um ano depois, também este espaço ficou indisponível e até ao ano 2000 a Quercus-Madeira funcionou sem sede, fazendo as suas reuniões em cafés, na casa dos dirigentes ou em espaços solicitados à Câmara Municipal de Machico. No ano 2000, fruto de uma colaboração que vinha a ser mantida com a Câmara Municipal de Machico, foi estabelecido um protocolo para a constituição de um centro de educação ambiental que passou a ser também a sede da Associação. A Quercus-Madeira passou assim a ter sede fixa num antigo quiosque, onde iniciou também a dinamização do novo Centro de Educação Ambiental de Machico. Em 2004, o Centro de Educação Ambiental e a sede da Quercus-Madeira passaram a funcionar no Mercado Municipal de Machico. A partir de 2011, por indisponibilidade da autarquia local, o Centro de Educação Ambiental de Machico cessou funções, mas a sede da Quercus-Madeira manteve-se no local. A Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza é uma Organização Não Governamental de Ambiente que se formalizou a 31 de outubro de 1985, mas que já desenvolvia atividade desde finais de 1984. A sua constituição resultou da união de esforços entre vários ativistas e associações ambientalistas, que sentiram a necessidade de uma organização mais forte e de âmbito nacional dedicada à conservação da natureza. A base da sua fundação foi determinante na definição do tipo de estrutura interna que adotou, a qual, além dos órgãos nacionais, é marcada pelas existência de Núcleos Regionais espalhados de norte a sul do país, incluindo os arquipélagos dos Açores e da Madeira. Os primeiros Núcleos Regionais da Quercus foram constituídos a partir da integração de associações locais de defesa do ambiente previamente existentes, algumas que participaram na fundação da Associação e outras que se juntaram mais tarde. Numa segunda fase, já na década de 90 do século XX, e à semelhança do que aconteceu na Madeira, a organização local dos sócios deu origem a Núcleos Regionais nascidos dentro da própria Quercus. O facto de os Núcleos Regionais da Quercus constituírem estruturas democráticas, com dirigentes eleitos pelos seus sócios, e possuírem autonomia de funcionamento, proporcionou a esta Associação uma grande agilidade de atuação que é, em grande medida, responsável pela forte implantação e influência em todo o território português. Apesar de estes Núcleos Regionais possuírem autonomia estatutária para definir a sua estrutura organizativa, nomeadamente criando delegações na sua área geográfica, são muito raros os exemplos de concretização dessa faculdade. O Núcleo Regional da Madeira chegou a aprovar, em outubro de 1995, a criação de uma Delegação no Concelho de Santana, mas, à semelhança de tentativas para o Estreito de Câmara de Lobos e para o Porto Santo, essas estruturas acabaram por não vingar. A Quercus possui como órgãos sociais a Assembleia-Geral, a Mesa da Assembleia-Geral, a Direção Nacional, o Conselho Fiscal e a Comissão Arbitral, possuindo ainda um Conselho de Representantes que reúne os membros da Direção Nacional e os presidentes dos Núcleos Regionais. Se os Núcleos Regionais permitem à Quercus uma forte implantação geográfica, os órgãos nacionais, em particular a Direção Nacional, apoiados em estruturas como os grupos de trabalho e os projetos nacionais, garantem uma atuação global coerente e sólida. Ambas as estruturas, nacionais e regionais, na sua ação concertada, completam um modelo de organização que consubstancia de forma eficaz o lema: “Pensar Globalmente, Agir Localmente”. Apesar de a Quercus ter atualmente uma intervenção muito diversificada, abrangendo áreas temáticas como a gestão dos resíduos, a qualidade do ar, a eficiência energética, as energias renováveis, a qualidade e escassez dos recursos hídricos, entre muitas outras, a preocupação predominante dos seus fundadores centrou-se essencialmente nas questões associadas à conservação da natureza. Esse foi justamente o motivo para a adoção do nome Quercus, o nome científico do género a que pertencem os carvalhos, sobreiros e azinheiras, que são as árvores predominantes do coberto vegetal primitivo do território continental português, e do símbolo da organização, uma folha e uma bolota de carvalho-negral (Quercus pyrenaica). Os dirigentes da Quercus são eleitos para mandatos de dois anos de entre os sócios da Associação e exercem os seus cargos de forma não remunerada. Tendo em conta as estruturas nacionais e regionais definidas estatutariamente, o número de dirigentes necessários para completar todos os cargos é superior a 80. Além dos dirigentes, o funcionamento da Associação requer também a ocupação de outros cargos, nomeadamente na coordenação de grupos de trabalho e de projetos. Entre 1995 e 2000, 0 presidente do Núcleo Regional da Quercus na Madeira foi Hélder Spínola, biólogo e um dos fundadores deste núcleo, que mais tarde, entre 2003 e 2009, foi também presidente da Direção Nacional desta Associação. A segunda Direção do Núcleo foi eleita a 27 de fevereiro de 1997, tendo Hélder Spínola sido acompanhado por uma equipa maioritariamente constituída por sócios não pertencentes ao núcleo de fundadores: Carina Martins Nunes, como Secretária, Élvio Duarte Martins de Sousa, como Tesoureiro, e Élia Maria Basílio Rodrigues, Idalina Perestrelo Luís, Joselino Humberto Henriques Silva, Maria Conceição Andrade Silva, Odília Maria Freitas Garcês e Ysabel Margarita Amaro Gonçalves, como vogais. Idalina Perestrelo Luís foi a segunda presidente da Quercus-Madeira, tendo iniciado funções a 5 de agosto de 2000, por nomeação da própria Direção do Núcleo, e sido eleita para o cargo a 28 de outubro de 2000. Desde 2000, e ao longo dos sete mandatos sucessivos para os quais foi eleita, Idalina Perestrelo Luís foi sempre acompanhada na Direção do Núcleo por Elsa Maria Freitas Araújo, como vice-Presidente. A partir de outubro de 2013, Elsa Araújo passou a ser a Presidente do Núcleo Regional da Quercus na Madeira. Desde 1995, o Núcleo Regional da Quercus na Madeira envolveu-se em inúmeras atividades com o objetivo de contribuir para a melhoria da qualidade ambiental e para uma mudança de paradigma na sociedade madeirense. À semelhança da matriz que caracteriza a ação nacional da Quercus, toda a atividade do Núcleo Regional foi marcada por duas formas principais de atuação, os projetos e a intervenção pública, em ambas abrangendo os mais diversos temas ambientais. A mudança de atitudes e comportamentos para com os valores ambientais foi um dos objetivos em que a Quercus-Madeira apostou desde início, tendo desenvolvido várias iniciativas e projetos com esse fim. Nesse âmbito, destaca-se uma parceria com a Câmara Municipal de Machico e a criação do Centro de Educação Ambiental de Machico (CEAM), cuja abertura oficial, em julho de 2000, contou com a presença do Presidente da Direção Nacional da Quercus. Ao longo dos seus 13 anos de funcionamento, o Centro de Educação Ambiental dinamizado pelo Núcleo Regional da Quercus desenvolveu largas centenas de ações de sensibilização, em particular nas escolas da Madeira, tendo abordado temáticas tão diversas como a defesa do património natural, os incêndios florestais, o ordenamento do território, a redução, reutilização e reciclagem de resíduos, a gestão sustentável dos recursos hídricos, e a eficiência energética, entre muitos outros. Além de palestras e debates, a Quercus-Madeira dinamizou, através do CEAM, atividades de reflorestação e manutenção no Parque Ecológico do Funchal, editou publicações, preparou exposições e promoveu passeios a pé. De entre os vários recursos de divulgação e educação ambiental publicados pela Quercus-Madeira é de particular realce a revista Raízes, uma publicação periódica que lançou o seu primeiro número em outubro de 2001. Ao longo de sete anos e de 34 números, a revista Raízes apresentou em capa uma grande variedade de temas, como o património malacológico do Porto Santo e dos seus ilhéus, a fauna cavernícola de Machico, a avifauna da lagoa do Lugar de Baixo, as florestas da ilha da Madeira, a qualidade ambiental das ribeiras e o problema dos incêndios florestais. Associados a estes e outros temas, muitos foram os cidadãos que deram o seu contributo voluntário na preparação de conteúdos, em particular profissionais da área da biologia, mas também juristas, professores e estudantes, entre outros. Um dos temas a que o Núcleo Regional da Quercus na Madeira tem dedicado especial atenção tem sido a gestão de resíduos, não só ao nível da educação e sensibilização ambiental, nomeadamente com o projeto Ponta de Sol Mais Brilhante em 2004 e 2005, mas também através da implementação de projetos iminentemente práticos. Exemplo disso foi a recolha de pilhas usadas, um projeto nacional da Quercus que o Núcleo Regional estendeu à Madeira logo no início de 1995, reunindo mais de 10 quilos de pilhas, as quais se juntaram, em 1998, às 11 toneladas recolhidas em todos os Núcleos da Associação para serem encaminhadas para reciclagem em França. Ainda em 1998, com a ajuda de algumas dezenas de jovens voluntários, esta estrutura regional da Quercus fez um levantamento exaustivo da quantidade e do tipo de resíduos existentes nas praias e calhaus da Madeira, tendo encontrado um litoral pejado de lixo com origem na própria ilha. A disponibilidade de bebidas em embalagens retornáveis, como forma de prevenir a produção de lixo, foi um assunto constante nas preocupações da Quercus-Madeira, que insistiu sempre na fiscalização e cumprimento da Lei. Em fevereiro de 2009, a Quercus trouxe à Madeira mais um projeto pioneiro, tendo, primeiro em parceria com o centro comercial Dolce Vita e depois com os hipermercados Continente, iniciado a recolha seletiva de rolhas de cortiça para posterior reciclagem no âmbito do projeto Green Cork, cujos lucros são utilizados para a reflorestação. Nos primeiros dois meses, o projeto Green Cork conseguiu reunir na Madeira mais de meia tonelada de rolhas de cortiça. Ainda na mesma área, uma das batalhas em que a Quercus-Madeira mais investiu foi a oposição à opção pela incineração como destino final dos resíduos sólidos urbanos produzidos no Arquipélago da Madeira. Em 1998, assim que o governo regional anunciou a intenção de construir uma central de incineração, a Quercus-Madeira promoveu uma petição para que o projeto não fosse concretizado, tendo recolhido mais de 700 assinaturas, que foram entregues na Assembleia Legislativa da Madeira. Quando, em janeiro de 1999, o Governo Regional da Madeira iniciou a discussão pública do estudo de impacte ambiental da obra de Ampliação e Remodelação da Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos da Meia Serra, o Núcleo Regional da Quercus foi a única organização que se opôs a este projeto. A 22 de Agosto de 1999, a Quercus-Madeira organizou a iniciativa Ar Puro que, junto à igreja do Rochão, na Camacha, reuniu cidadãos e representantes de partidos na sensibilização para os perigos decorrentes das emissões de uma central de incineração. A 7 de dezembro de 1999, ao início da noite, devido à queda de um muro que ameaçava ruir já há algum tempo, ocorreu uma derrocada de resíduos do aterro sanitário da Estação da Meia Serra para o interior da lagoa de arejamento dos lixiviados, provocando uma enxurrada que desceu ao longo da ribeira da Cerejeira, destruiu por completo uma habitação e danificou três viaturas no sítio do Ribeiro Serrão. O sobressalto causado por esta calamidade terá estado na origem do ataque cardíaco que vitimou, no decorrer dessa mesma noite, um residente, o senhor José Arnaldo das Neves Vieira, com 39 anos, que, ao longo desse ano, vinha colaborando abertamente com a Quercus-Madeira por uma solução diferente para a gestão dos resíduos. Este facto levou a um envolvimento maior da população da Camacha, em particular dos moradores dos sítios do Ribeiro Serrão e Rochão, que, juntando-se à Quercus, se manifestaram contra o projeto à entrada da Estação a 27 de dezembro de 1999, reunindo perto de uma centena de pessoas. A manifestação repetiu-se a 2 de janeiro de 2000, envolvendo cerca de 300 pessoas. Nesse dia, as barreiras metálicas e a Brigada de Intervenção Rápida da Polícia de Segurança Pública, liderada no local pelo próprio comandante regional da PSP, não foram suficientes para demover a população de entrar na Estação para constatar in loco a estabilidade dos resíduos depositados no aterro e o que estava a ser feito para garantir a sua segurança. Apesar destas iniciativas, o projeto foi avante e a incineradora foi inaugurada em 2004. Possuindo o Arquipélago da Madeira um património biológico extraordinariamente importante, a conservação da natureza foi outra área onde o Núcleo Regional da Quercus mais interveio. Além dos contributos que deu na divulgação do património natural insular, a Quercus-Madeira agiu inúmeras vezes na tentativa de alterar o curso de algumas ações que entendia serem lesivas à biodiversidade. Desde a sua fundação, insistiu na retirada do gado ovino, caprino e bovino que pastoreava em regime livre nas serras da Madeira e impedia a regeneração da vegetação, deixando as serras escalvadas e à mercê dos processos erosivos, pondo em causa a biodiversidade e a segurança das populações pelo risco de aluvião. Também por insistência do então Vereador do Ambiente da Câmara Municipal do Funchal, Raimundo Quintal, mentor da criação do Parque Ecológico do Funchal, onde implementou essa medida, o Governo Regional da Madeira acabou por aceitar a retirada do gado das serras, tendo dado por concluído esse processo em 2003. Outra ameaça à biodiversidade que a Quercus-Madeira sempre combateu foi o flagelo dos incêndios florestais, tendo desenvolvido o projeto Vigilância Contra Fogos Florestais em 1997 e 1998 e, nos anos seguintes, criado uma rede informal de vigilância com mais de 100 voluntários no âmbito do projeto De Olhos na Floresta. Para minimizar o problema dos incêndios florestais, esta Associação insistiu constantemente numa estratégia para a Madeira apostada na prevenção, na vigilância e numa primeira intervenção rápida e eficaz. Em 1999, em colaboração com a Câmara Municipal de Machico, a Quercus-Madeira elaborou a candidatura do projeto Recuperação da Floresta Laurissilva das Funduras ao programa LIFE Natureza, projeto que foi submetido em nome da Direção Regional de Florestas e obteve um financiamento europeu superior a meio milhão de euros. A execução do projeto teve início em janeiro de 2000 e decorreu até ao fim de 2003, tendo a Quercus-Madeira assegurado a implementação das medidas de educação ambiental que ficaram à responsabilidade da Câmara Municipal de Machico. A Quercus-Madeira também se mobilizou várias vezes para tentar evitar a concretização de alguns projetos no coração da floresta Laurissilva. Por exemplo, no início do século XXI, quando o Governo Regional avançou com a asfaltagem da estrada do Fanal, entre a Ribeira da Janela e o Paul da Serra, a Quercus, além das intervenções públicas, procurou, sem sucesso, que a UNESCO, que em 1999 reconheceu o estatuto de Património Natural Mundial à floresta Laurissilva, negasse essa pretensão. Ainda assim, a contestação à asfaltagem levou a que, a partir do Fanal e até ao Paul da Serra, a largura da estrada fosse reduzida. Já em 2008, unindo esforços com a Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal e com um conjunto alargado de cidadãos, a luta foi contra a pretensão do Governo Regional da Madeira de viabilizar a construção de um teleférico no Rabaçal, na cabeceira da ribeira da Janela, em plena floresta Laurissilva, tendo pedido a intervenção da UNESCO e da Comissão Europeia, às quais enviou uma petição com mais de 5000 assinaturas. Adicionalmente, em Março de 1999, estas duas associações de defesa do ambiente interpuseram em Tribunal uma ação judicial a pedir a nulidade da Declaração de Impacte Ambiental favorável assinada pelo Secretário Regional do Ambiente. Devido a esta forte contestação, a construção do teleférico não avançou e a Declaração de Impacte Ambiental acabou por caducar por ter sido ultrapassado o prazo da sua validade, situação que levou o Tribunal Administrativo e Judicial do Funchal, em setembro de 2011, a encerrar o processo. Ao longo do tempo, a Quercus-Madeira alertou para inúmeras situações e opções que constituíam ameaças ao ambiente: Contestou as ações de abate ao Pombo Trocaz (Columba trocaz), espécie protegida e exclusiva da Madeira, , iniciadas pelo Governo Regional em 2004; opôs-se, a partir de 2002, à construção de um Radar Militar no Pico do Areeiro, em Sítio da Rede Natura 2000, junto ao único local no mundo onde nidifica a Freira da Madeira (Pterodroma madeira), uma ave marinha fortemente ameaçada; alertou insistentemente para as consequências negativas sobre os ecossistemas marinhos costeiros decorrentes dos despejos de terras provenientes de obras públicas e privadas; colocou na ordem do dia os perigos para a saúde pública decorrentes da inalação de fibras de amianto, presentes em materiais utilizados na construção de inúmeros edifícios no Arquipélago da Madeira; insistiu na necessidade de melhorar os transportes públicos de modo a garantir uma alternativa válida ao transporte individual e reduzir a poluição dentro da cidade do Funchal; defendeu uma maior aposta na eficiência energética e nas energias renováveis; pressionou inúmeras vezes para o cumprimento da Lei no que diz respeito à realização de análises e divulgação dos resultados relativos à água para consumo humano; insistiu na necessidade de serem adotados e respeitados os instrumentos de ordenamento do território previstos na legislação portuguesa, em particular os Planos Diretores Municipais, os Planos de Ordenamento da Orla Costeira e a Reserva Ecológica Nacional; cooperou com a organização internacional Save the Waves na contestação contra a destruição das ondas para a prática de surf no Jardim do Mar; cooperou com a Sociedade de Desenvolvimento Ponta Oeste numa solução para a preservação da Lagoa do Lugar de Baixo na Ponta do Sol; e, entre muitas outras iniciativas, tentou impedir o avanço de projetos turístico-imobiliários sobre o litoral.   Hélder Spínola (atualizado a 11.10.2016)

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culto mariano

A Virgem Maria, a mãe de Jesus, é venerada desde os tempos da descoberta e povoamento da Madeira sob os mais variados títulos, a maioria dos quais constituíam devoções enraizadas nas terras de origem dos primeiros que cá chegaram. Dessa devoção ancestral falam as respetivas capelas, ermidas, e depois as igrejas, que se vão erguendo ao longo de quase seis séculos. Umas convertem-se em sedes paroquiais, ao serviço das respetivas comunidades, na medida em que se vão criando para responder às necessidades sempre crescentes da população, que, por sua vez, também se vai multiplicando; outras perdem-se no tempo, entrando em ruína, e ainda outras são destruídas propositadamente para dar lugar a templos com maior capacidade de acolhimento. Os titulares das ermidas também dão nome aos padroeiros locais e, em muitas circunstâncias, ao sítio e à freguesia e paróquia. No caso particular da Virgem Maria, ela é invocada em todo o território madeirense, recebendo as honras de padroeira em muitas comunidades; e onde ainda permanece a ermida de determinada invocação, embora não seja a padroeira da comunidade paroquial, também ali é festejada. Onde a capela caiu em ruínas, as celebrações passaram a ser realizadas nas sedes paroquiais ou passaram ao esquecimento. Títulos da Virgem Maria celebrados na Madeira Estes são os títulos com que os madeirenses têm vindo a prestar culto à mãe de Jesus: N. S.ª Auxiliadora, da Ajuda, da Alegria, da Apresentação, da Assunção, da Boa Esperança, da Boa Hora, da Boa Morte, da Boa Nova, da Boa Viagem, da Cadeira, da Conceição, da Consolação, da Encarnação, da Estrela, da Fé, da Glória, da Graça, da Luz, da Natividade, da Nazaré, da Paz, da Pena, da Penha, da Piedade, da Quietação, da Serra, da Saúde, da Vida, da Visitação, da Vitória, das Angústias, das Brotas, das Dores, das Maravilhas, das Mercês, da Salvação, das Neves, das Preces, das Virtudes, das Vitórias, de Belém, de Jesus, de Jesus Cristo, de Fátima, do Amparo, do Bom Caminho, do Bom Despacho, do Bom Sucesso, do Calhau, do Carmo, do Descanso, do Desterro, do Guadalupe, do Monserrate, do Livramento, do Loreto, do Monte, do Monte e Santana, do Parto, do Pilar, do Pópulo, do Rosário, do Socorro, do Sorriso, do Terço, do Vale, dos Anjos, dos Milagres, dos Prazeres, dos Remédios, dos Varadouros, Imaculado Coração de Maria, Mãe de Deus, Mãe dos Homens, Medianeira de Todas as Graças e Rainha do Mundo. Registamos 77 títulos. Uns relacionam-se diretamente com a pessoa da Virgem Maria, com factos reais da sua vida terrena ou do seu mistério como Mãe de Jesus, como são a Senhora da Natividade, da Graça, da Apresentação, da Encarnação, da Conceição, Mãe de Deus, Mãe dos Homens, da Assunção, Medianeira de Todas as Graças, Rainha do Mundo; outros dizem respeito a situações concretas das necessidades sentidas pela pessoa humana, tais como Senhora dos Remédios, da Boa Hora, da Boa Morte, da Boa Nova, da Boa Viagem, do Bom Despacho, do Descanso, do Desterro, do Bom Caminho, do Parto, da Luz, da Saúde, do Livramento, do Bom Sucesso, da Vitória, das Vitórias; e ainda há os que relembram o lugar onde a mãe de Jesus se tenha manifestado, como a Senhora do Monte, do Guadalupe, de Fátima, etc. De todos os títulos com que os madeirenses têm vindo a prestar culto à Virgem Maria, estes são declarados padroeiros das seguintes comunidades paroquiais: Imaculado Coração de Maria: paróquias do Imaculado Coração de Maria no Funchal e Fajã do Penedo na Boaventura; N. S.ª da Ajuda: paróquia da Serra de Água; N. S.ª da Assunção: Sé Catedral do Funchal; N. S.ª da Conceição: paróquias de Machico, Porto Moniz e Conceição na Ponta do Sol; N. S.ª da Encarnação: paróquias da Ribeira da Janela e da Encarnação no Estreito de Câmara de Lobos; também é padroeira do Seminário da Encarnação e do extinto Convento da Encarnação; N. S.ª da Graça: paróquias do Estreito da Calheta, do Estreito de Câmara de Lobos e da Achada em Gaula; N. S.ª da Luz: paróquias da Ponta do Sol e de Gaula; N. S.ª da Natividade: paróquia do Faial; N. S.ª da Nazaré: paróquia da Nazaré; N. S.ª da Paz: paróquias das Eiras no Caniço e das Feiteiras em São Vicente; N. S.ª da Piedade: paróquias dos Canhas e de N. S.ª da Piedade no Porto Santo; N. S.ª das Dores: paróquia da Assomada no Caniço; N. S.ª da Saúde: paróquia dos Lameiros em São Vicente e João Ferino no Santo da Serra; N. S.ª da Visitação: paróquia da Visitação em Santo António; N. S.ª da Vitória: paróquia da Vitória-Santa Rita em São Martinho; N. S.ª Medianeira de todas as graças: paróquia da Graça em Santo António; N. S.ª das Neves: paróquia dos Prazeres; N. S.ª das Preces: paróquia das Preces na Ribeira de Machico; N. S.ª de Fátima: paróquias de N. S.ª de Fátima no Funchal, do Carvalhal nos Canhas e da Lombada em Santa Cruz; também é padroeira do Seminário Maior do Funchal; N. S.ª do Amparo: paróquias do Amparo na Ponta do Pargo e da Ribeira Seca em Machico; N. S.ª do Bom Caminho: paróquia do Bom Caminho no Santo da Serra; N. S.ª do Bom Sucesso: paróquias do Bom Sucesso, altos de Santa Maria Maior e Garachico no Estreito de Câmara de Lobos; N. S.ª do Carmo: paróquias do Carmo em Câmara de Lobos e do Rochão na Camacha; também é padroeira da Ordem Carmelita, Igreja do Carmo, Funchal; N. S.ª de Guadalupe: paróquia do Porto da Cruz; N. S.ª do Livramento: paróquias do Curral das Freiras e do Livramento no Funchal e Achadas da Cruz; N. S.ª do Loreto: paróquia do Loreto no Arco da Calheta; N. S.ª do Monte: padroeira principal da diocese e da paróquia de N. S.ª do Monte no Funchal; N. S.ª do Rosário: paróquias do Rosário em São Vicente, da Ilha em São Jorge e do Jardim do Mar; N. S.ª do Socorro: paróquia de S.ta Maria Maior, ou do Socorro; N. S.ª dos Remédios: paróquia da Quinta Grande; N. S.ª Rainha do Mundo: paróquia dos Romeiros no Monte. O culto mariano na Madeira engloba 31 títulos da Virgem Maria como padroeira de 50 paróquias, celebrados com toda a solenidade, alguns no mesmo dia litúrgico e a maioria no transcurso do verão. Além disso, ainda há outras celebrações marianas em que a Virgem Maria não tem a função de padroeira, mas cuja devoção lhe é tributada como se o fosse de facto, recebendo a visita de muitos devotos, tal como nas festas da Piedade no Caniçal, do Livramento no Caniço, Ponta do Sol e Estreito da Calheta, da Ajuda em São Martinho, da Apresentação na Ribeira Brava, da Boa Esperança e das Neves em São Gonçalo, da Boa Hora em Santa Cecília, do Bom Despacho no Campanário, da Boa Viagem no Amparo, da Graça no Porto Santo, da Mãe de Deus na Assomada, da Boa Morte em São João e na Ponta do Pargo, do Bom Despacho no Campanário, da Graça no Porto Santo e Machico, da Senhora do Monte em Cristo-Rei, dos Remédios em Santa Cruz, da Assunção no Coração de Jesus, dos Bons Caminhos na Calheta, da Piedade no Convento da Caldeira, paróquia do Carmo, das Preces no Piquinho, de N. S.ª dos Anjos nos Canhas, etc. Registamos cerca de 195 padrões do culto mariano, entre as igrejas, capelas e ermidas erguidas ao longo de quase seis séculos em honra da Virgem Maria, seja padroeira ou simples titular, disseminadas pelo território da Madeira e Porto Santo. O mais expressivo é o título da Imaculada Conceição com 24, seguindo-se a Senhora da Piedade com 15, a Senhora das Dores e a Senhora do Rosário com 7 cada uma, a Senhora do Socorro com 6, a Senhora da Boa Marte, da Penha de França e de Fátima com 5 cada uma, a Senhora da Graça, das Preces, da Consolação, do Livramento com 4 cada uma, registando os restantes títulos, 3, 2 e 1, respetivamente, repartidos por 64 títulos atribuídos à Virgem Maria. Nesta contagem não esquecemos os títulos de N. S.ª da Apresentação como padroeira das Irmãs da Apresentação de Maria; de N. S.ª Auxiliadora como padroeira dos Salesianos; de N. S.ª das Vitórias como padroeira da Congregação das Irmãs Franciscanas de N. S.ª das Vitórias. Desenvolvemos o culto à Mãe de Jesus através dos títulos mais significativos e representativos, como a Imaculada Conceição, padroeira de Portugal, o culto com maior número de capelas e igrejas, a Senhora do Monte, padroeira exclusiva da diocese, a Senhora do Parto, devoção única na Madeira, N. S.ª da Piedade e das Dores, herança do franciscanismo, como a da Conceição, a Senhora do Livramento, que responde ao sentimento de fraqueza e impotência ante as intempéries, o Imaculado Coração de Maria, que desponta e cresce singularmente na Madeira e N. S.ª de Fátima, como fenómeno religioso mais recente, mas não menos enraizado. Imaculada Conceição O culto a N. S.ª da Conceição na Madeira remonta às origens. É sabido como os reis portugueses sempre defenderam o dogma da Imaculada Conceição e a consideraram sua protetora, desde o nascimento da monarquia. Fé e devoção entranhada na vida dos portugueses, que foram por todo o mundo dilatando a fé e o império. Igreja Matriz de Machico. BF. A devoção e o culto à Imaculada Conceição são trazidos para a Madeira pelo mesmo descobridor e colonizador João Gonçalves Zarco, que manda construir a Igreja de N. S.ª da Conceição de Baixo, junto ao mar, para servir de fundamento à vila do Funchal e, posteriormente, a de Conceição de Cima, junto à sua residência, integrada no Convento de S.ta Clara. É ele também que manda apartar o lugar para a construção da ermida dedicada a N. S.ª da Conceição, também conhecida por “do Espirito Santo”, em Câmara de Lobos. Por sua parte, Tristão Vaz, o donatário da capitania de Machico, edifica a Capela de N. S.ª da Conceição em Machico e Francisco Moniz na terra a que legou o seu nome, Porto Moniz. Terão sido construídas 24 capelas em toda a diocese do Funchal desde a chegada de Zarco até aos nossos dias, três das quais são sedes paroquiais e dão origem ao respetivo padroado: a de Machico, a do Porto do Moniz e a da Conceição, na Ponta do Sol. Por conseguinte, a devoção à Imaculada Conceição é a mais universal das devoções das comunidades madeirenses; o dia litúrgico da sua festa é 8 de Dezembro. A igreja de N. S.ª da Conceição de Baixo é a primeira igreja mandada construir por Zarco, para ser princípio e fundamento da vila do Funchal, “à beira do mar, no cabo do vale do Funchal, ao longo da primeira ribeira deste prado, onde fazia o mar contínuo à corrente da ribeira uma abra de muitos calhaus e seixos miúdos, lavados da continuação das ondas dele que nela batiam” (SILVA e MENESES, 1965, II, 431). Embora vulgarmente conhecida por N. S.ª do Calhau, é dedicada a N. S.ª da Conceição, como indica o seu primeiro nome por que é conhecida: Conceição de Baixo em oposição à Conceição de Cima. O mesmo Zarco funda uma igreja de N. S.ª da Conceição, a que vulgarmente chamam N. S.ª de Cima, para a distinguir da Conceição de Baixo, e destina-a para sua sepultura e de seus descendentes. Com a fundação do Convento de S.ta Clara adjunto à capela da Conceição, vai caindo em desuso o primeiro nome da igreja e perdura o do convento que, passados anos, se estende às duas construções, ficando ambas com uma só denominação: Convento e Igreja de S.ta Clara. Da construção de Zarco nada resta; a capela sofreu várias modificações e na segunda metade do séc. XVII foi demolida. É em Machico que aportam os descobridores João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira no dia 1 de julho de 1419. Desembarcam no dia seguinte, improvisam um altar, e o sacerdote franciscano celebra uma eucaristia de ação de graças. Para efeitos de povoação e exploração agrícola, a Madeira é dividida em duas capitanias: a do Funchal e a de Machico. Aquela pertence a Zarco e esta a Tristão. Machico torna-se um dos primeiros lugares povoados, formando-se aí um núcleo de população que rapidamente se desenvolve. Tristão estabelece-se em Machico, com sua mulher e filhos, no mês de maio de 1425. São dados muitos terrenos de sesmaria a fidalgos e colonos vindos do continente, tornando-se numa povoação importante que chega a ombrear com o Funchal. Tristão Vaz e sua esposa Branca Teixeira erigem uma capela em honra da Imaculada Conceição logo no começo do povoamento e arroteamento de terras, onde, depois de melhorada e acrescentada, funciona a sede da paróquia, que é criada por meados do séc. XV, tendo D. Pedro Vaz, prior da Ordem de Cristo, enviado à Madeira Fr. João Garcia como vigário da paróquia de Machico, em 1450. A fundação da paróquia de Machico é coeva da primeira paróquia criada no Funchal. A sua jurisdição paroquial estende-se a toda a área da capitania, estabelecendo-se depois capelanias curadas, dependentes da igreja matriz, que, pouco a pouco, se vão libertando e tornando paróquias autónomas. A igreja de N. S.ª da Conceição de Machico não é certamente o primitivo templo em que se estabelece o centro da nova paróquia. De acordo com um manuscrito antigo, foi construída em 1499 e terá sofrido melhoramentos e restauros através dos tempos. O rei D. Manuel I ofereceu a imagem de N. S.ª da Conceição, o órgão de tubos, peças de ourivesaria e algumas pinturas. Uma certeza nos transmite a história: a devoção a N. S.ª da Conceição vem nas caravelas dos descobridores e enraíza no povo que se vai renovando através dos séculos. A paróquia do Porto Moniz nasce sob a proteção de N. S.ª da Conceição. É criada nos princípios do terceiro quartel do séc. XV e tem como sede a capela desta invocação mandada construir por Francisco Moniz, o Velho, um dos primeiros povoadores que possui terras de sesmaria e constitui um núcleo importante de moradores com a fazenda povoada que estabelece. Em volta da capela e da fazenda, a população vai-se adensando e forma-se em breve a nova paróquia, como aliás acontece geralmente por toda a ilha. Após ter sido fundada a Capela de N. S.ª da Conceição, esta localidade passa a ter o nome de N. S.ª da Conceição da Ponta do Tristão, pois assim é designada na carta régia de 12 de março de 1574. Mas na carta de 1 de março de 1577 já lhe é dado o nome de Porto do Moniz, que prevalece até aos nossos dias. Francisco Moniz ergue esta capela não longe do mar e dá o seu apelido ao porto, que fica próximo, o qual se estende às imediações e, mais tarde, aos terrenos circunvizinhos. Tendo ele falecido em 1533 ou 1535, segundo os historiadores, a capela é certamente fundada em ano anterior, embora se ignore a data exata. Ao longo do tempo, passa por algumas modificações e é demolida após a construção da nova igreja em sítio diferente. Aliás, esta mudança de local deve-se à necessidade de abrigar o templo dos corsários que por vezes infestavam estas paragens. A nova construção começa em 1660, mas só é terminada em 1688. É também dedicada a N. S.ª da Conceição, que continua assim a ser a padroeira do Porto Moniz até aos nossos dias. Posteriormente, em 1960, aquando da criação das 52 novas paróquias, é criada a paróquia da Conceição na Lombada da Ponta do Sol, tendo como padroeira a Imaculada Conceição e como sede provisória a capela da Lombada. Esta capela, construída por João Esmeraldo, é sagrada pelo bispo D. João Lobo no ano de 1508. É chamada Capela do Espírito Santo, mas também é conhecida por Capela da Conceição, donde se depreende a secular devoção dos habitantes a estas duas invocações. O templo que aqui existe em começos do séc. XXI é uma reedificação da primeira metade do séc. XVIII sendo, no dizer do historiador Pe. Fernando Augusto da Silva, “a capela mais vasta, mais elegante e mais rica de toda a diocese” (SILVA e MENESES, 1965, II, 267). A Imaculada Conceição e o Espírito Santo constituem, portanto, as duas grandes devoções da piedade popular das gentes da Lombada da Ponta do Sol. A festa da Imaculada Conceição é solenemente celebrada também no dia 8 de Dezembro. No Estreito da Calheta, é construída uma capela dedicada a N. S. da Conceição por André de França e Andrade, pelos anos de 1672. Na freguesia da Ribeira Brava, é construída uma ermida em honra da padroeira de Portugal, cujo fundador e ano de construção são desconhecidos. Em de São Roque do Funchal, um sítio ao tempo considerado já de densidade populacional assinalável, o cónego António Lopes de Andrade constrói uma capela dedicada a N. S.ª da Conceição, no ano de 1700, na propriedade que possui em S. Roque, tendo a escritura de dotação a data de 8 de julho do mesmo ano. Aqui se celebra a Festa da Imaculada Conceição no dia 8 de dezembro, com missa e procissão, precedida de novenário adequado. Próximo do ilhéu da Lapa, na costa marítima da freguesia do Campanário, fica um baixio conhecido por Baixa da Conceição, que deverá guardar relação com alguma ermida aí construída em tempos remotos. Imagem de Nossa Senhora da Conceição, Capela das Babosas. Arqui. Rui Carita. O comendador Luiz Bettencourt Miranda manda construir no largo das Babosas, no Monte, uma capela dedicada a N. S.ª da Conceição, que também dá o nome ao lugar: largo da Conceição. É erigida no ano de 1906, especialmente destinada a comemorar o semicentenário da definição do dogma da Imaculada Conceição. Por isso fica sendo conhecida pelo nome de capela-monumento. A catástrofe que desaba sobre a Madeira no dia 20 de fevereiro de 2010 destrói por completo a capela, encontrando-se nos seus escombros a imagem da Imaculada Conceição totalmente intacta, facto que vem aprofundar a fé nos seus devotos. Estão em curso as necessárias diligências, sobretudo a adquisição dos meios financeiros necessários à reedificação da capela, segundo projeto já aprovado pelas autoridades competentes. Existe ainda no Monte uma capela em honra de N. S.ª da Conceição, fundada por Tristão da Cunha em ano que se ignora. O capitão José Sotero e Silva também manda edificar uma capela em honra de N. S.ª da Conceição no sítio da Igreja, na freguesia do Monte. Mesmo à beira-mar, na entrada para o cais de Câmara de Lobos, existe uma capela dedicada à Imaculada Conceição, também chamado do Espírito Santo. Presume-se ter sido levantada pelo povo, mas também se diz que foi o próprio Gonçalves Zarco a delimitar os terrenos. No decorrer dos tempos sofre várias reparações, sendo o culto entregue à classe piscatória. Na rua da Carreira, entre as ruas do Conde de Canavial e da Alegria, o capitão Luís Bettencourt de Albuquerque e Freitas funda uma capela dedicada a N. S.ª da Conceição em 1770, junto da sua casa de moradia, tendo sido benzida a 7 de dezembro do mesmo ano. Rui Dias de Aguiar e sua mulher, Leonor de Ornelas de Andrade, fundam no ano 1662, em lugar que se ignora, uma capela da mesma invocação, que tem a escritura de dotação de 11 de dezembro do mesmo ano. Diogo Afonso de Aguiar funda uma capela na Tabua, em 1688, dedicada à Senhora da Conceição, construída muito próximo do litoral. É reconstruída em 1910 por José da Silva Novita, tendo sido benzida por D. Manuel Agostinho Barreto a 31 de julho do mesmo ano. Foi fundada pelo pároco José Marcelino de Freitas uma capela da mesma invocação no Arco da Calheta, construída com dinheiro dos fiéis no sítio das Amoreiras, sendo benzida a 27 de dezembro de 1911. Ainda na freguesia do Arco da Calheta, na margem e próximo da foz da ribeira da Serra de Água, Gonçalo Fernandes levantou uma capela consagrada à mesma Senhora da Conceição. Tendo Gonçalo Fernandes falecido a 15 de junho de 1539, e tendo sido nela sepultado, supõe-se que a capela deverá ter sido erguida na década de 30. Bartolomeu Telo Moniz de Meneses, em 1600, terá construído uma capela dedicada à mesma Senhora na freguesia de Santa Cruz. Nuno de Freitas da Silva reconstrói em 1754, em Ponta Delgada, uma capela dedicada à Senhora da Conceição, cujo ano de construção primitiva se ignora. No sítio da Fajã dos Padres, no Campanário, é construída uma pequena capela dedicada a N. S.ª da Conceição que pertence aos jesuítas e que os corsários argelinos destroem no ano de 1626. O visconde Cacongo faz edificar na sua quinta da Choupana, na freguesia de Santa Maria Maior, no ano de 1930, uma capela da mesma invocação, que é benzida a 12 de outubro desse ano. A fortaleza de N. S.ª da Conceição do Ilhéu tem uma capela que é mandada construir por alvará régio de 9 de novembro de 1682. É seu primeiro capelão o P.e José de Andrade, nomeado por alvará de 31 de julho de 1692. Entre estas duas datas se deve contar a da edificação da capela. Estes padrões da fé e devoção dos madeirenses à Imaculada Conceição, a cheia de graça, estão plantados de Norte a Sul, de Oeste a Leste, possibilitando um culto celebrativo em todos os quadrantes da Madeira. São testemunhos eloquentes da fé e devoção de um povo legados à geração presente, que continua a celebrar, com convicções próprias, a Imaculada Conceição no dia 8 de dezembro de cada ano. N. S.ª do Monte N. S.ª do Monte é padroeira principal da diocese e secundária da cidade do Funchal, da paróquia de N. S.ª do Monte e titular da capela do Monte, paróquia de Cristo-Rei, na Ponta do Sol. A romaria de N. S.ª do Monte, tanto na freguesia do Monte como na de Cristo-Rei, é celebrada a 15 de agosto, dia litúrgico da Assunção da Virgem Maria ao Céu. No entanto, a Festa em Honra do Patrocínio de N. S.ª do Monte, instituída após a aluvião de 8 de outubro de 1803, celebra-se a 9 de outubro. A devoção a N. S.ª do Monte é originariamente madeirense. Não é importada de qualquer rincão de Portugal nem de país algum estrangeiro que tenha exportado nobres ou plebeus para trabalhar as férteis terras da Madeira. Já existia então no Monte a ermida de N. S.ª da Incarnação, mandada construir por Adão Gonçalves Ferreira em 1470. Imagem de Nossa Senhora do Monte por Alfredo Rodrigues. Arqui. Rui Carita. A devoção a N. S.ª do Monte tem origem numa aparição a uma pastorinha, cerca do Terreiro da Luta, que para muitos tem foros de lenda. Diz-se que essa lendária aparição poderia ter sucedido no reinado de D. João II (1477-1495). O relato vem narrado no verso das gravuras que representam a pequenina e a veneranda imagem. Reza assim: “Há mais de 300 anos, no Terreiro da Luta, cerca de 1 quilómetro acima da igreja de Nossa Senhora do Monte, uma Menina, de tarde, brincou com certa pastorinha, e deu-lhe merenda. Esta, cheia de júbilo, refere o facto à sua família, que lhe não deu crédito, por lhe ser impossível que naquela mata erma e tão arredada da povoação aparecesse uma Menina. Na tarde seguinte reiterou-se o facto e a pastorinha o recontou. No dia imediato, à hora indicada pela pastorinha, o pai desta, ocultamente foi observar a cena, e viu sobre uma pedra uma pequena imagem de Maria Santíssima, e à frente desta ‘a inocente pastorinha que, a seu pai, inopinadamente aparecido, afirmava ser aquela imagem a Menina de quem lhe falava’. O pastor, admirado, não ousou tocar a Imagem e participou o facto à autoridade que mandou colocá-la na capela da Incarnação, próxima da atual igreja de N.ª S.ª do Monte” (Id. Ibid., 435). Monte é o verdadeiro nome porque se conhece a paróquia de N. S.ª do Monte, que desde então foi dado àquela pequenina e veneranda imagem que galvaniza o olhar e o coração dos madeirenses. Paróquia de N. S.ª do Monte é o seu verdadeiro nome, que o povo designa simplesmente por Monte. Não se trata verdadeiramente de um monte, mas de meia encosta das elevadas montanhas que circuitam os arredores da cidade do Funchal. O importante núcleo de população que, logo nos primeiros tempos, se constitui no Funchal, junto das margens do oceano, vai-se gradualmente estendendo e alargando pelas lombas e outeiros circunvizinhos, procurando por vezes lugares ínvios e quase inacessíveis. Não tarda que o desbravamento dos arvoredos e matagais, e o correlativo arroteamento das terras, alcance as alturas desta paróquia, ao menos nos limites que a confinam com o primitivo Funchal. Os casais vão lentamente avançando pela escalada da abrupta serrania, e lá mais no alto encontra-se já a pequena e devota ermida de N. S. do Monte, que dá o nome ao sítio e depois à paróquia. A origem desta paróquia e devoção à Senhora do Monte prende-se com a fazenda povoada que ali tem Adão Gonçalves Ferreira, o primeiro madeirense genuíno, porque nascido na ilha, filho de Gonçalo Aires Ferreira, o mais distinto companheiro de Zarco na descoberta do arquipélago, que vem depois a dar o seu nome à nova paróquia de S. Gonçalo. Como geralmente acontece, é uma pequena capela o centro em torno do qual se agrupam os primeiros povoadores. Também aqui, Adão Ferreira, pelos anos de 1470, constrói uma modesta ermida, que parece ter tido o nome de N. S.ª da Encarnação, passando depois a chamar-se de N. S.ª do Monte. Alguns historiadores opinam que a milagrosa aparição da imagem da Santíssima Virgem, que logo começam a chamar de N. S.ª do Monte, é que dá origem a que a capela tome este nome, que por sua vez se transmite ao sítio e mais tarde a toda a paróquia. A capela fundada por Adão Gonçalves Ferreira é a sede da paróquia, quando criada por alvará régio de 7 de março de 1565. Tem seu capelão privativo, e quando se estabelece aí a sede da paróquia, já ali se exercem desde há muito as funções cultuais. Para sede de paróquia, são diminutos os seus espaços. Por isso, logo a seguir fazem-se alguns acrescentamentos. Em 1688, o Conselho da Fazenda autoriza gastar 900$000 réis na construção de um novo templo, o que parece não se ter realizado, pois, em 1739, autoriza-se dar de arrematação a quantia de 6.742$000 réis para a construção de uma nova igreja (cf. Id. Ibid., 438). A capela primitiva é demolida em 1741, tendo sido lançada a primeira pedra do novo templo a 10 de junho desse ano. A veneranda imagem é levada em procissão para a Sé do Funchal, tendo regressado após a conclusão das obras em 1747. A nova igreja dá-se por concluída em 1747, com um custo de 3454$292 réis provenientes de diversos donativos dos fiéis, além da mencionada cifra de 6742$000 réis, concedida pelo erário público.   ] Igreja do Monte. BF. Um ano depois, o terramoto de 1 de abril de 1748 deixa bastante danificada esta igreja, que exige reparações imediatas, as quais acusam alguma lentidão, tendo o dispêndio total das obras, incluindo o templo com o adro e escadarias, muralhas, as casas anexas e diversos ornamentos e alfaias, sido de 200.445$500 réis, segundo os arquivos paroquiais, o que é considerado bastante elevado para a época. Entretanto, a imagem espera de novo na Sé Catedral o fim das obras, tendo regressado para a dedicação do templo. Para o efeito, também muito contribui a Confraria dos Escravos de Nossa Senhora, criada pelo bispo D. Fr. João do Nascimento em 1750, cujas quotas e donativos são quase exclusivamente ali aplicados. A igreja de N. S.ª do Monte é então sagrada pelo bispo Fr. Joaquim de Meneses e Ataíde a 20 de dezembro de 1818. É, portanto, muito antiga a devoção a N. S.ª do Monte, em toda a diocese. Desde o segundo quartel do séc. XVII começam a aparecer nos registos paroquiais referências a este culto, narrando-se sucessos extraordinários atribuídos à intercessão de Nossa Senhora, por intermédio da piedosa imagem que ali se venera. Ao que parece, o culto divulga-se sobremaneira a partir da fundação da Confraria dos Escravos de Nossa Senhora do Monte, por meados do séc. XVIII. O culto torna-se mais intenso e generalizado em todas as paróquias da Madeira, começando então as peregrinações e romarias ao respetivo templo a ser de maior afluência de fiéis, que ao longo dos anos vão sempre crescendo e aumentando consideravelmente, até constituir nos nossos dias a mais concorrida romaria de toda a ilha, nos dias 14 e 15 de agosto. Certamente também terá contribuído para esta expansão a Festa do Patrocínio de N. S.ª do Monte que começa a celebrar-se a 9 de outubro de 1804, segundo o rescrito do papa Pio VII, de 21 de julho desse ano, e que se celebrará no mesmo dia e mês de cada ano. Aquela devoção, que já constituía tradição secular entre a população madeirense, é corroborada, oficializada e intensificada a partir da aluvião de 9 de outubro de 1803. Trata-se da maior aluvião que assola a Madeira, e sobretudo o Funchal, nos cinco séculos da sua história. Chuvas intermitentes caem nos 10 ou 12 dias anteriores. No dia 9, porém, chove copiosa e intermitentemente desde as 8 da manhã até às 20 horas da noite. As águas galgam as margens, inundam a cidade e provocam destruição e morte, em autêntico dilúvio. O bairro de Santa Maria Maior é o mais afetado, pois a aluvião leva para o mar muitos prédios, entre os quais grande parte da Igreja de N. S.ª do Calhau, destruindo algumas ruas e ceifando vidas humanas, (cerca de 200 pessoas). No total estima-se que cerca de 600 pessoas tenham falecido devido à tormenta desse dia. Prédios marginais das ruas de Santa Luzia, na Ponte do Bom Jesus, na rua dos Ferreiros, dos Tanoeiros, na rua Direita e no Lago do Pelourinho, são desfeitos e arrastados para o mar. Ante tamanha desolação, sofrimento e morte, o bispo diocesano, o cabido, o clero e os fiéis, reunidos no coro da catedral no dia 13 do mês de novembro, colocam a ilha sob a proteção de N. S.ª do Monte, o que é corroborado e confirmado pelo supracitado rescrito apostólico do papa Pio VII, sendo então instituída a Festa do Patrocínio de N. S.ª do Monte. Nos primeiros tempos fazia-se procissão da catedral para a igreja paroquial de Santa Maria Maior, e 9 de outubro era dia santo de guarda, precedido de vigília própria com jejum. Posteriormente, a celebração passou a fazer-se apenas com eucaristia solene presidida pelo bispo diocesano, com a participação do cabido, de alguns sacerdotes e de muitos fiéis que enchem a catedral. Também na igreja do Monte é celebrada a mesma festa, no domingo seguinte ao dia 9 de outubro. A devoção ao patrocínio de N. S.ª do Monte também é celebrada durante alguns anos na paróquia de S. Martinho, tradição que o pároco empossado em 2013 retomou, celebrando-a na vigília do padroeiro. A devoção e a romaria da Senhora do Monte remontam, portanto, aos primitivos tempos da exploração agrícola e do povoamento da Madeira. As festas populares são celebradas com foros de romaria, a que se associam as levas de emigrantes, que as celebram também em quase todos os países de acolhimento. De regresso à sua terra, de visita ou definitivamente, os madeirenses regressam também à igreja do Monte, a louvar e a agradecer os favores recebidos por essas terras dalém. De toda parte, o povo acorre em romaria a visitar a Senhora do Monte na tarde do dia 14 e no dia 15 de agosto. Aliás, as festividades começam nove dias antes com a celebração das Novenas, promovidas por devotos dos diversos sítios, cada uma com a sua designação própria. Feita uma visita à igreja, alguns romeiros passam a noite em passeios entre os jardins e o largo das Babosas, visitam as barraquinhas e deleitam-se com as iguarias e expressões musicais tradicionais. Os transportes públicos têm facilitado a deslocação. No dia 15, pela manhã, é a vez da celebração eucarística solene, com participação das autoridades regionais, locais e muito povo. Segue-se a procissão que desce da igreja, passa pelo largo da Fonte, percorre as ruas do jardim e sobe à igreja pela rua paralela ao templo. Nela se incorporam os que estiveram na eucaristia, somando-se-lhes uma longa fila de devotos no cumprimento das suas promessas portando velas acesas e os seus ex-votos demonstrativos das graças e favores alcançados por intercessão da padroeira e protetora, a Senhora do Monte. O povo, crente, fiel e grato, avança em silêncio atrás da pequenina imagem de N. S.ª do Monte e a filarmónica ajuda a elevar da Terra ao Céu.   “Os moradores dos sítios do Lombo das Adegas e Terças da Ponta do Sol, pediram licença no ano de 1750, para construir uma capela, alegando a distância a que moravam da igreja paroquial e o desejo que tinham de edificar um pequeno santuário destinado a guardar a veneranda imagem de Nossa Senhora do Monte, e prestar-lhe culto, que se achava num pequeno oratório coberto de colmo e sem a decência devida à mesma imagem. Teve escritura de dotação celebrada a 7 de julho de 1750, sendo concedida licença para a respetiva bênção, a 15 de setembro de 1751. Vinte e quatro anos depois foi acrescentada, procedendo-se à sua nova bênção a 10 de junho de 1775” (SILVA e MENESES, 1965, II, 437). Nesta capela de N. S.ª do Monte é instalada a sede da nova paróquia de Cristo-Rei, criada pelo decreto de D. David de Sousa, a 24 de novembro de 1960. A festa popular celebra-se também no dia 15 de agosto. Esta capela foi alvo de profanação: na noite de 1 de julho de 1810, forçaram as suas portas e dali retiraram a imagem de Nossa Senhora, que colocaram a certa distância, despojando-a de todas as joias que a ornavam, causando profundo sentimento de pesar na população. Levada para a igreja paroquial, e depois de diversos atos de desagravo, é reconduzida em procissão e com a maior solenidade para a mesma capela a 6 de agosto de 1810. N. S.ª do Monte também é venerada na paróquia da Santa, freguesia do Porto Moniz, onde também se celebra a festa popular no dia 15 de agosto, na Capela de S. Pedro, ao sítio dos Lamaceiros. Por alvará de 15 de setembro de 1733 do bispo do Funchal, D. Frei Manuel Coutinho, concedido a Manuel Rodrigues de Canha, morador no Funchal, mas com residência de verão no Lombo do Outeiro, Canhas, é construída uma capela dedicada a N. S.ª do Monte e Santana, que a edifica na sua propriedade. As razões invocadas são precisamente as de servir a população residente que fica distante da igreja paroquial e também a devoção pessoal aos protetores. N. S.ª do Parto N. S.ª do Parto é venerada e celebrada em todas as comunidades paroquiais, como preparação próxima à Festa do Natal, tendo como expressão máxima as denominadas “Missas do Parto”. Elas são exclusivas da tradição natalícia madeirense. Devem começar a ser celebradas a partir do dia 16 de dezembro e terminar no dia 24, como manda a liturgia cimentada na tradição. Nossa Senhora do Parto. Arqui. Rui Carita. Outra característica inerente às Missas do Parto é a hora da sua celebração: antes do nascer do Sol, para daí haurir toda a espiritualidade destas missas que honram a Virgem Maria, denominada a Aurora da Redenção, aquela que vai dar à luz o Sol Divino a toda a humanidade. Também aqui só por razões pastorais se justificam as Missas do Parto vespertinas ou noturnas. A igreja universal celebra a 17 de dezembro a festa litúrgica de N. S.ª do Ó, ou seja, a Festa da Expectação de Maria pelo nascimento do seu divino Filho. A mesma denominação de “Festa do Ó” tem origem nas antífonas de Vésperas do Ofício Divino, que, a partir do dia 17 e até ao 24, começam pelo vocativo “Ó”: “Ó Sabedoria do Altíssimo…, Ó Chefe da Casa de Israel…, Ó Rebento da raiz de Jessé…, Ó Chave da Casa de David…; Ó Emanuel…, Ó Rei das Nações…, Ó Sol nascente…”. Na sua sensibilidade, raciocínios e deduções, o povo madeirense associa o “Ó” destas antífonas ao estado de gravidez da Virgem Maria, que dará à luz o seu divino Filho ao findar dessa semana. Daí chamar-se a estas novenas do Menino Jesus as Missas do Parto. Desde o séc. XIX, temos registo de que a Senhora do Ó é conhecida na Madeira como a Virgem do Parto. Mas presume-se que a sua devoção venha de mais longe, muito provavelmente dos inícios do povoamento, até porque à Senhora do Ó ou Virgem do Parto os madeirenses associam também o culto à Senhora da Conceição, tema obrigatório nos cantos das Missas do Parto, assim como também a Senhora do Rosário. As Missas do Parto mantêm desde há muito um esquema tradicional; em O Natal na Madeira, o P.e Pita Ferreira assinala três tempos fortes na vivência das Missas do Parto: a véspera, a madrugada e a participação da missa propriamente dita. Localizada a véspera em Câmara de Lobos, o referido autor descreve-a como uma autêntica véspera de festa patronal, com a salva e a girândola de fogo ao meio-dia, a presença da filarmónica que toca os hinos aos festeiros e os visita ao domicílio, vivendo essa tarde como um dia de festa, mas dormindo cedo para poder levantar-se às duas da madrugada, com novos toques de filarmónica e estoirar de foguetório, acordando o povo que se deve dirigir, em autêntica romaria, para a igreja. O mesmo autor localiza na Ribeira Brava a sua brilhante descrição desta descida, desde os sítios mais distantes, a duas ou três horas de caminho. Por isso mesmo o búzio toca às duas da madrugada, fazendo juntar as pessoas das redondezas, que, tocando instrumentos regionais, como búzios, castanholas, machetes, rajões, violas e braguinhas, vão descendo ladeiras e veredas, avançando e engrossando a multidão, como um “bando de grilos”, até à vila, onde “os Senhores da Vila” também acabam por abrir os olhos. Todos, ricos e pobres, senhores e plebeus, estão na igreja às quatro e meia da manhã, para começarem, com todo o calor a cantar o invitatório: “Ao Menino nascer / que gosto teremos! Oh! quanto felizes / Todos nós seremos. / Anjos e pastores, Vinde em harmonia / Louvar o Parto / da Virgem Maria”. Quanto à celebração propriamente dita, o referido escritor evoca a tradição do Porto Moniz. Após a entrada solene na igreja, o padre, junto dos degraus do altar, entoa o “Deus in adjutorium meum intende”, que o povo continua: “Domine, ad adjuvandum me festina”, para logo começar o Invitatório em português, cantado por toda a gente: “Ó meu Menino, / ó meu Redentor, / Meu doce Jesus, / Salvai-nos, Senhor”, o qual consta de seis estrofes. Segue imediatamente a segunda parte da novena. Enquanto o sacerdote se senta e começa a rezar o breviário, o povo canta sozinho a invocação ao Espírito Santo: “Vinde Espírito Santo / Lá das celestes alturas, / E da vossa luz, um raio,/ Infundi nas criaturas”. Logo canta-se o Retrato de Nossa Senhora, obrigatório em todas as Missas do Parto, que consta de 20 estrofes. Segue-se a Ladainha, que termina com a Antífona: “Salve, ó mãe do Salvador, / Brilhante estrela do mar / Deste o Salvador ao Mundo / Fazei-nos no céu entrar”. Após a Ladainha, canta-se ainda seis jaculatórias à Virgem Maria, sendo a última a seguinte: “Virgem do Parto, / Ínclita Maria, / Atendei propícia / Os devotos deste dia”. Terminada a novena que todos cantam a bom cantar enquanto o padre reza o breviário, começa então a missa, onde o Pai-Nosso, a Ave-Maria, a Salve Rainha e o Bendito são cânticos obrigatórios. Por seu turno, Rufino Silva refere ainda que antes da reforma litúrgica conciliar do Vaticano II, o uso do latim obriga a uma liturgia paralela entre o altar e o povo. Este, que ao longo do ano se mostra geralmente passivo, gosta de participar ativamente e com grande e singular entusiasmo. Como são sabe latim, utiliza o português, rezando o terço, entoando entre cada mistério cânticos a N. S.ª do Parto, com referências à Imaculada Conceição e à Senhora do Rosário. Entretanto, no altar, o sacerdote reza a missa em latim. As Missas do Parto são momentos exclusivos para cantar versos populares em honra da Mãe do Menino Jesus, alguns deles remontando aos primeiros povoadores da ilha. As orações e o catecismo em verso estavam, nessa época, muito em voga, tendo o próprio Francisco Xavier usado este método na evangelização dos orientais. Eram obrigatórios os cânticos do Pai-Nosso, da Ave-Maria, da Salve Rainha, da Conceição Imaculada, da Maternidade e do Retrato de Nossa Senhora. Muitos desses cânticos foram transmitidos por tradição oral ou por recolhas organizadas e publicadas, como as do P.e Pita Ferreira e de Rufino da Silva, acompanhados da respetiva transcrição musical e de muitas das suas variantes. Uma análise, ainda que superficial, destes cânticos religiosos tradicionais fala-nos da sua imensa riqueza como expressões catequéticas, para além de constituírem profundas orações de louvor, de ação de graças e de súplica, transmissoras de uma verdadeira mensagem de alegria, enlevo, gozo, gratidão, anelos de paz, justiça, arrependimento e salvação. É, portanto, rica e profunda a mensagem haurida nos cânticos populares tradicionais madeirenses. São, ao mesmo tempo, oração e catequese, correspondendo, assim, a características da música sacra. Uma pequena leitura às três variantes do Retrato de Nossa Senhora, obrigatório em algumas comunidades paroquiais, mostra-nos um hino de louvor à pessoa da Virgem Maria, tanto às suas qualidades físicas como espirituais. Neles se fala da “cabeça modesta coroada de estrelas”, dos “finos cabelos” que são “madeixas de aurora”, da “testa brilhante” que “reflete sabedoria”, dos “olhos tão belos que centelham piedade”, das “faces angélicas” que “atraem os corações”, da “garganta” que é “harpa de harmonia”, do “braço esquerdo” convertido em “trono de misericórdia, onde está Jesus a sorrir”, do “braço direito” que “abençoa os pecadores”, da “cintura casta e delicada” que a torna “Virgem das Virgens, pura, imaculada”, dos “joelhos” que “ensinam a oração”, dos “passos” que conduzem à glória. A cada louvor segue uma petição. E a concluir, reza: “A beleza da vossa alma / Ao Senhor agradou tanto / Que vos escolheu para esposa / Do divino Espírito Santo”. Todos os outros cânticos seguem quase à risca o mesmo esquema: uma verdade teológica, cristocêntrica, um louvor à Virgem, a Cristo ou a Deus e uma respetiva petição e consequente aplicação prática à vida quotidiana. São assim os cânticos sobre a maternidade e a conceição o Exultai, a Salve Rainha, a Ave-Maria, e ainda o Pai-Nosso, o Nome de Maria, em todas as suas variantes. As igrejas da diocese do Funchal registam casa cheia durante nove dias, para cantar efusivamente: “Virgem do Parto, ó Maria / Senhora da Conceição. / Dai-nos as festas felizes, / A paz e a salvação”. // “Senhora Virgem do Parto, / Pela vossa Conceição, / Ouvi a quem Vos implora / Com vozes de coração”.   N. S.ª da Piedade N. S.ª da Piedade é o título mariano mais venerado na Madeira, depois da Imaculada Conceição. Com efeito, ao longo dos tempos, são 15 as capelas que lhe são dedicadas: paróquias dos Canhas (1581-1593) e de N. S.ª da Piedade no Porto Santo (anterior a 1529), onde é constituída padroeira; paróquia do Caniçal no Monte Gordo ou da Piedade (séc. XV), largo da Igrejinha no Funchal (1613), Estreito da Calheta (1641), Calheta (1657), São Jorge (1598/1638, posteriormente pertencente à paróquia do Arco de São Jorge), Quinta das Cruzes (1692), São Gonçalo (1722), Porto da Cruz (reconstruída e benzida em 1724), Monte (1728), Jardim do Mar (1736), São Vicente (1784), Mosteiro das Irmãs Clarissas da Caldeira, paróquia do Carmo em Câmara de Lobos, onde também é padroeira (1800) e, ainda, Ponta do Sol (data desconhecida, mas melhorada e benzida em 1879). Algumas destas capelas são posteriormente sedes provisórias das paróquias quando criadas, como acontece nos Canhas, no Porto Santo, no Arco de São Jorge, Jardim do Mar e Porto da Cruz. Algumas destas são ampliadas e melhoradas para responderem às necessidades dos tempos coetâneos, transformando-se nas igrejas paroquiais que perduram até aos nossos dias; outras simplesmente desaparecem na voragem da erosão dos tempos ou da incúria humana; finalmente outras, ainda, existem onde também se celebra a festa popular anual, como é o caso do Mosteiro das Irmãs Clarissas na Caldeira e da comunidade do Caniçal. As festas populares em honra de N. S.ª da Piedade são celebradas ao longo do verão, em dias diferentes: nos Canhas, no primeiro domingo de agosto; no Porto Santo, no último domingo de agosto; no Caniçal no terceiro domingo de setembro; no Mosteiro da Piedade na Caldeira, no 2.º domingo de julho. A festa litúrgica de N. S.ª da Piedade é criada por Bento XIII, calendarizada na sexta-feira da quinta semana da Quaresma, para honrar todos os sofrimentos de Maria que podem ser englobados nas chamadas sete dores: a profecia de Simeão, a fuga para o Egito, a perda de Jesus no Templo, o levantamento da Cruz, a crucifixão, a descida da Cruz e a sepultura. Esta celebração litúrgica, porém, já não consta do calendário litúrgico, após a reforma conciliar. Os sofrimentos da Virgem Maria passam a ser celebrados agora na Festa de N. S.ª das Dores, no dia 15 de setembro. A invocação de N. S.ª da Piedade enraíza na cena evangélica da descida da Cruz e na entrega do filho morto nos braços da mãe. O hino “Stabat mater dolorosa” recorda este momento crucial. Os cristãos sentem que essa piedade, essa compaixão da mãe junto à cruz é motivo suficiente para se compadecerem e darem valor infinito ao sofrimento e à dor humana, e por cuja intercessão podem obter graças e favores para abraçar também o seu sofrimento e angústia nas horas amargas da vida, especialmente perante a morte dos seus queridos. Imagem de Nossa Senhora da Piedade - Igreja Antiga Caniçal. Arqui. Rui Carita. Os portugueses que se radicam na Madeira trazem essa devoção na sua equipagem cultural e religiosa, pois o Portugal de Santa Maria também o é da Senhora da Piedade, desde o Minho ao Algarve, e desde os tempos mais remotos, com muitos padrões e testemunhos em igrejas, capelas e imagens. Devoção que é levada a bordo das caravelas para o mundo aonde chegam os marinheiros portugueses. Na Índia, por exemplo, erguem 48 templos à Senhora da Piedade. A Madeira, minúscula parcela em relação àquele país, não é exceção. Daí também os madeirenses, e sobretudo os homens do mar, homenagearem com tanto empenho N. S.ª da Piedade, como acontece por toda a diocese, pois organizam-se romarias a algumas festas da Senhora da Piedade, como nos Canhas, no Mosteiro da Caldeira e, de forma acentuada, no Caniçal.   Procissão Senhora da Piedade, Caniçal. Arqui. Rui Carita. A capela dedicada a N. S.ª da Piedade no Caniçal encontra-se no Monte Gordo, no alto de uma rocha escarpada sobranceira ao mar. Antigamente havia adjunta uma casa para romeiros, sinal da grande afluência de peregrinos ou devotos à Senhora da Piedade. Diz a tradição que esta capela é construída por um voto de um grupo de marinheiros que, vendo o seu navio prestes a despedaçar-se contra os fraguedos da costa, prometem erigir na cumeada do monte uma pequena ermida dedicada à Virgem Santíssima. Também atribui a sua construção a Garcia Moreno, primeiro administrador do morgadio do Caniçal, ou a algum dos seus sucessores. A imagem existente nesta capela é objeto de culto na festa anual de N. S.ª da Piedade no Caniçal. A imagem de N. S.ª da Piedade é trazida na véspera em procissão pelo mar, acompanhada de alguns barcos engalanados e pescadores agradecidos, para a igreja paroquial. Ao terminar a celebração eucarística, no domingo, a imagem regressa à sua capela, também por mar. Para além da novena, da eucaristia da vigília e da missa da festa no domingo, estas duas procissões constituem o ponto alto das celebrações. É no Caniçal que a devoção a N. S.ª da Piedade cobra maior expressão; trata-se de uma terra de pescadores e muitos vão para o alto mar, para a faina da pesca, com os olhos postos na capelinha do monte Gordo, a pedir proteção para os perigos, as vicissitudes e os imprevistos do mar. A sua devoção, porém, tem foros de globalidade diocesana, pois são muitos os peregrinos ou romeiros que se apresentam na festa a cumprir votos ou promessas e a agradecer favores.   N. S.ª das Dores O título de N. S.ª das Dores está intimamente ligado ao de N. S.ª da Piedade. Com efeito, tem o idêntico objetivo de celebrar as dores da Virgem Maria. A sua imagem apresenta a mãe de Jesus com uma seta a trespassar-lhe o coração. Evoca, portanto, a profecia de Simeão, aquando da circuncisão e apresentação do Menino Jesus no Templo: “Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição; uma espada trespassará a tua alma”, diz o “justo e piedoso” Simeão a Maria (Lc 2, 33-35). A festa litúrgica realiza-se no dia 15 de setembro, oito dias após a Natividade. Já os servitas de Nossa Senhora a celebram no séc. XVII e Pio VII estende a toda Igreja em 1817, com o fim de lembrar os sofrimentos que a atormentam na pessoa do seu chefe supremo, prisioneiro e exilado por Napoleão, mas restituído à liberdade por intercessão especial da Santíssima Virgem. Em Portugal há muitos padrões dessa devoção em todas as dioceses. É muito difícil encontrar uma igreja onde não haja uma imagem de N. S.ª das Dores. São muitas as romarias a esta Senhora, nomeadamente aos seus santuários no Paul da Covilhã, em Póvoa de Varzim e em Ponte de Lima. Não admira, portanto, que tenha também uma forte expressão na Madeira. Aliás, podemos considerá-la uma herança do franciscanismo, assim como das invocações de N. S.ª da Piedade e N. S.ª da Conceição. Esta celebra a alegria, o contentamento, a satisfação e o louvor, e a Senhora da Piedade e das Dores recordam e sacralizam os sentimentos opostos de dor, sofrimento, angústia e aflição, uns e outros tão queridos e vividos pela espiritualidade franciscana que marca os primeiros anos do povoamento e o consequente crescimento da população madeirense. A imagem de N. S.ª das Dores existe praticamente em todas as paróquias, faz parte do cortejo da procissão do Senhor dos Passos na Quaresma e também do Enterro do Senhor na Sexta-feira Santa, sendo portanto universal a sua devoção na Madeira. Além das procissões e atos litúrgicos da Semana Santa, a devoção a N. S.ª das Dores cristaliza-se também nas capelas dos cemitérios, nomeadamente em Santa Cruz, Câmara de Lobos, Angústias, São Martinho, São Gonçalo, e ainda na capela do Hospício da Princesa D. Amélia.   Imagem da Senhora das Dores - Igreja da Assomada. Arqui. Rui Carita. Apenas no séc. XX encontramos o registo de uma paróquia onde a Senhora das Dores é padroeira, a paróquia da Assomada. Aliás, a festa litúrgica de N. S.ª das Dores é posterior à de N. S.ª da Piedade. Vem do primeiro quartel do séc. XIX. Desmembrada da comunidade paroquial do Caniço, por decreto de D. David de Sousa, de 24 de novembro de 1960, a paróquia da Assomada entra em atividade no dia 1 de janeiro de 1961, com sede provisória na Capela da Mãe de Deus, sendo o P.e Florentino de Sá o seu primeiro pároco. N. S.ª das Dores é desde o princípio a sua padroeira. As razões deste padroado fundamentam-se em diversos fatores, onde predomina o histórico. É uma devoção muito antiga no sítio da Tendeira, de quando este sítio pertencia à paróquia mãe. As pessoas cotizam-se mensalmente para prestar homenagem a N. S.ª das Dores, com a celebração de uma eucaristia, na igreja paroquial do Caniço; acima da igreja da Assomada existe um lugar denominado Calvário, de referência obrigatória para os devotos da paixão de Cristo, onde terá falecido, por acidente, um pároco do Caniço, segundo uma tradição oral. Onde há Calvário, ai está, de pé, junto à cruz, a pessoa da Virgem Santa Maria, ou seja, neste caso, N. S.ª das Dores. Por razões de ordem pastoral, a Festa que guarda relação com o dia litúrgico de N. S.ª das Dores, celebrada pela Igreja universal a 15 de setembro, é trasladada para o último domingo desse mês. É custeada pela Confraria de N. S.ª das Dores, coadjuvada pela comunidade paroquial. A construção de uma nova igreja começa imediatamente, pois a bênção e lançamento da primeira pedra ocorrem a 24 de junho de 1961. Segundo alguns paroquianos, a construção terá demorado apenas dois anos, tal é o entusiasmo e empenho do pároco e dos paroquianos. A 24 de junho de 2011, aos 50 anos do lançamento da primeira pedra, é comemorado o 50.º aniversário da criação da paróquia, único padrão paroquial da devoção e do culto a N. S.ª das Dores.   N. S.ª do Livramento Quem vive numa ilha, cercada de mar por todos os lados, cheia de encostas e montanhas agrestes e majestosas, sujeita a catástrofes naturais frequentes e intensas, sente necessidade de um ente superior que o proteja. Ninguém controla as nuvens, os trovões, os relâmpagos, a chuva torrencial, as quebradas, os deslizamentos de terras e as enxurradas. O madeirense tem uma larga experiência em de repente se sentir fragilizado, diminuído, impotente, ou ver a própria vida ameaçada. Um dos recursos que tem vindo a utilizar nestas horas amargas da vida é a mãe de Deus, sob o título de Senhora do Livramento. Um título que considera a grandeza de Maria, mas que ao mesmo tempo nasce da fraqueza humana. Não é sem razão que o lugar mais expressivo desta devoção é precisamente o Curral das Freiras, uma cratera de vulcão plantada no fundo do vale, rodeada de altas, agrestes e imponentes montanhas que, vistas de longe, extasiam os turistas, mas, contempladas do vale, amedrontam os residentes.   Igreja do Curral das Freiras. Arqui. Rui Carita. N. S.ª do Livramento é padroeira das comunidades paroquiais do Curral das Freiras, Achadas da Cruz e Livramento, do Funchal. Também é devoção tradicional de suma importância celebrada de forma extraordinária nas paróquias do Caniço e Ponta do Sol. A Festa de N. S.ª do Livramento no Curral das Freiras é celebrada no último domingo de agosto; nas Achadas da Cruz e no Caniço, no 2.º domingo de setembro; na Ponta do Sol, no segundo domingo de outubro; na paróquia do Livramento, no 2.º sábado de setembro. Enquanto na Madeira a devoção à Senhora do Livramento aparece no séc. XVII, consolidando-se nos sécs. XVIII e XIX, aparece no continente só no séc. XVIII. Divulga-se por todo o Portugal, tornando-se a Senhora do Livramento também padroeira de algumas paróquias e titular de muitas capelas no restante país. A devoção à Senhora do Livramento na Madeira remonta aos primórdios do povoamento, muito embora não possamos precisar datas. Uma das orações mais antigas à Virgem Maria reza assim: “Livrai-nos da tristeza dos tempos presentes”, onde já transparece a ideia de Livramento. Esta devoção não é exclusiva do Curral das Freiras, mas foi levada a toda a Madeira, como provam as capelas construídas em sua honra aqui e além, dando origem aos respetivos topónimos. Assim acontece no Caniço (meados do séc. XVII), no Monte (1684), na Ponta do Sol (1656), em São Vicente (1683), no Estreito da Calheta (vistoriada em 1860) e Achadas da Cruz (1848), sendo, portanto, muito antiga a romaria à Senhora do Livramento nas respetivas paróquias, transladando-se a romaria das capelas para as igrejas paroquiais, entrando aquelas em ruína.   Imagem de N. Senhora do Livramento - Curral das Freiras. Arqui. Rui Carita. A Senhora do Livramento é padroeira da paróquia do Curral das Freiras desde a sua fundação. Por isso, é lógico pensar que é a maior devoção da comunidade ali residente, já nessa data. Não admira que assim seja, pois a Virgem teria livrado a população de muitos males físicos e morais, sobretudo quando as forças da natureza ali expressam a sua força dominante, e, por vezes, destruidora. A pequena Capela de S.to António, existente no Curral e pertencente ao Convento de S.ta Clara, serve para a instalação e sede da nova paróquia, quando é criada por alvará régio de 17 de março de 1790. Presume-se que a nova igreja tenha sido edificada nos primeiros anos do séc. XIX. A festa da padroeira é objeto de uma romaria realizada no último domingo de agosto. A romaria continua nos nossos dias com o mesmo entusiasmo e a mesma devoção, de tal forma que é conhecida em todos os quadrantes por “Festa do Curral”, sendo massiva a participação nas cerimónias, bem como a incorporação na procissão, onde vemos muitos devotos a caminhar descalços sobre o alcatrão ardente, portando ex-votos ou grandes velas acesas. Muitos devotos oferecem ouro, pois que cada grama simboliza, por um lado, a máxima expressão de gratidão e, por outro, o reconhecimento de que a Virgem Maria é a sua Rainha do Céu, a quem se deve oferecer do melhor que há e do que se tem. “Na história de cada partícula de ouro está a história, rica, maravilhosa, de contrastes, de alegria, de sofrimento, de cada pessoa, de cada um dos problemas que tiveram” (GAMA, 2014, 269). Singular é também, como aliás em outras comunidades madeirenses, mas aqui de forma mais expressiva, a presença de muitos emigrantes, filhos da paróquia, nas festas do Curral. É uma forma de marcarem a sua identidade, ausentes nos países de acolhimento durante o resto do ano. Para muitos, é comum marcarem as férias para esta data, pois fazem questão de participar ativamente na festa da padroeira da sua paróquia de origem. Igreja do Livramento, Funchal. BF.   Embora se desconheça a data, alguns historiadores colocam no séc. XVII a construção da Capela de N. S.ª do Livramento que Sebastião de Oliveira manda erigir no Caniço e que dá nome ao sítio e a uma romaria muito antiga, que é talvez a festa celebrada com maior pompa e solenidade, não só pelos residentes, mas também pelos emigrantes que a levam para as terras de acolhimento. A festa celebra-se no segundo domingo de setembro. Na prática, a Senhora do Livramento tem sido celebrada através dos séculos como se fosse realmente a padroeira do povo canicense, muito embora o sejam o Espírito Santo e Santo Antão. A mais antiga capela dedicada à Senhora do Livramento de que há memória é a que foi mandada construir por Diogo Pereira de Mesquita em 1656 na Ponta do Sol. Terá sido restaurada no séc. XIX. A festa popular é celebrada com pompa e solenidade habitualmente no segundo ou terceiro domingo de outubro, sob a responsabilidade de festeiros nomeados para o efeito no ano anterior e com a presença de numerosos devotos vindos das paróquias vizinhas. É hábito fazer-se um novenário de preparação espiritual intensa, onde participa também a juventude paroquial. Para os enfeites e decoração da capela e andor de Nossa Senhora, vai-se em romaria aos altos da serra colher as chamadas “Açucenas de Nossa Senhora” (beladonas) em ambiente de festa e de alegria. Muitos devotos marcam presença nos atos religiosos cumprindo promessas, agradecendo favores e louvando a Senhora do Livramento. O arraial típico madeirense também é realidade nestes dias com expressões cívico-culturais, onde não falta a filarmónica nem o conjunto musical, a par da gastronomia tradicional. A Capela de N. S.ª do Livramento, que também dá nome a um sítio da freguesia do Monte, é edificada em 1684 por Inácio Ferreira Pinto e reconstruída um século depois por João José Bettencourt de Freitas. Por decreto de D. David de Sousa de 14 de novembro de 1960, é criada a paróquia do Livramento, com sede provisória na referida capela, continuando desta forma o culto mariano ali enraizado desde o séc. XVII. Posteriormente, foi ali construída uma igreja majestosa, como testemunho da fé e devoção que as populações e seus pastores nutrem por essa devoção secular. A igreja do Livramento, obra do arquiteto Luís Jorge Santos, é dedicada por D. Teodoro de Faria, no dia 20 de junho de 2004, com grande solenidade. A nave tem a cobertura em forma de tenda. A igreja assenta sobre 12 pilares, que simbolizam os 12 apóstolos e as 12 tribos de Israel. Singular também é a posição do crucifixo, que “está numa posição central, não vertical, mas no sentido da gravidade, colocado de modo que a noção de entrega aos homens se faça virada para os homens e não numa posição totalmente vertical. O Cristo não está pregado na cruz, mas soltou-se da cruz e está naturalmente sob o efeito da força da gravidade e entregue exatamente nessa mesma posição” (GAMA, 2014, 274). “Outros pormenores também estão cheios de simbolismo, como os esticadores que partem da terra e sustentam simbolicamente a estrutura que eleva da terra ao céu. Na iluminação exterior os archotes representam a iluminação das tendas” (Id. Ibid.). Toda a assembleia fica numa penumbra de luz indireta, e só o altar recebe luz direta que vem do alto, constituindo um polo centralizador da atenção dos presentes. Os terrenos da paróquia das Achadas da Cruz constituem os limites da capitania do Funchal, que ficou sob a administração e exploração do descobridor João Gonçalves Zarco. Os seus habitantes primitivos terão pertencido à freguesia da Ponta do Pargo, pois, em 1592, o bispo diocesano ordena que passem a ser paroquianos do Porto Moniz e ali cumpram as obrigações religiosas. Ali foi edificada uma pequena capela sob a invocação da Vera Cruz, no terceiro ou último quartel do séc. XVI. É nesta capela da Vera Cruz que se estabelece um curato dependente da colegiada da Calheta, no terceiro quartel do séc. XVI, cuja duração é muito curta, sendo extinto em 1577 pelo bispo D. Jerónimo Barreto, argumentando o pequeno incremento da população. Em 1587, já o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos, em visita pastoral à igreja do Porto Moniz, constata que a capela se encontra em “lamentável estado de conservação e asseio, sendo a sua cobertura de palha e não tendo no altar o painel do orago” (Id. Ibid.), exortando os habitantes a devolver-lhe a dignidade adequada à celebração dos atos de culto. Em 1611, o bispo pede a restauração do antigo curato e, em 1638, é secundado pela comunidade local, pedidos que são satisfeitos 100 anos depois da extinção do primeiro. Com efeito, pelo decreto de 28 de dezembro de 1676, o bispo D. António Teles da Silva é autorizado a “criar o curato de Nossa Senhora da Conceição do Porto Moniz, com a obrigação de residência nas Achadas da Cruz” (Id. Ibid.). Desta forma, as Achadas da Cruz são sempre um curato filial do Porto Moniz, com variantes de menor ou maior dependência até ao ano de 1848, quando, por decreto de 24 de julho, é constituída como paróquia independente, ou um curato autónomo com vida civil e religiosa próprias. Contrariamente ao que seria de esperar, a antiga capela da Vera Cruz, localizada nas proximidades do sítio do Calvário, não deu o nome da sua invocação ao orago da paróquia. O orago ou padroeira da paróquia das Achadas da Cruz passa então a ser N. S.ª do Livramento, com sede na nova capela que mais tarde se levanta, em data que se ignora. Posteriormente sofre acrescentamentos e melhorias, constituindo, até aos nossos dias, a sede paroquial. N. S.ª do Livramento é celebrada nas Achadas da Cruz como sua eficaz padroeira, com grande solenidade e foros de romaria, no segundo domingo de setembro. Na freguesia de São Vicente, a capela dedicada à Senhora do Livramento, que foi mandada edificar pelo P.e Manuel Gomes Garcês, remonta ao ano de 1685. No Estreito da Calheta também houve uma capela do Livramento, mandada construir por D. Inácia Bettencourt Perestrelo no ano de 1858.   O Imaculado Coração da Virgem Santa Maria Os Padres da Igreja primitiva sempre destacam as virtudes do Imaculado Coração de Maria. Em plena Idade Média, entre os grandes místicos, santos, teólogos e ascetas, há imensos devotos do Coração de Maria. Igreja da Imaculada da Conceição de Maria, autoria de Raul Chorão Ramalho. Arqui. Rui Carita. O culto litúrgico, porém, começa com S. João Eudes (1601-1680), em França. Movido de grande amor para com os Corações de Jesus e Maria, é o primeiro que pensa em tributar-lhes culto público litúrgico, de cuja devoção deve ser considerado “autor, pai, doutor, apóstolo e promotor” (FONTOURA, 2002, 137). Em 1643, 20 anos antes de celebrar a festa do Coração de Jesus, já festeja, com os seus monges, a do Coração de Maria, que se torna pública em 1648, entrando na liturgia universal. A partir desta data, muitos bispos autorizam o culto do Coração de Maria nas suas dioceses e os papas concedem aprovação e favores a confrarias e a diversas práticas de piedade em sua honra. No séc. XVIII, Bento XIV erige a primeira confraria do Santíssimo Coração de Maria. Pio VII, no século seguinte, enriquece-a com privilégios e procura difundi-la. O grande impulso, porém, desta instituição parte de Paris. Em 1838, o papa Gregório XVI eleva a confraria à categoria de arquiconfraria, conferindo-lhe o direito de agregar outras confrarias do mesmo nome. No séc. XIX (1805), Pio VII enriquece-a com privilégios e maior difusão, concedendo a festa às dioceses e institutos religiosos que a pedissem. Em 1855, Pio XI aprova missa e ofício próprios, unicamente para algumas localidades. A comemoração litúrgica na Igreja universal celebra-se no sábado da Oitava do Corpo de Deus, ou seja, no dia seguinte à festa do Coração de Jesus. Em Portugal, a mais antiga confraria do Imaculado Coração de Maria é estabelecida no mosteiro da Encarnação dos Comendadores de Avis, em Lisboa, no tempo de Pio VII, no séc. XIX, ficando agregada à arquiconfraria de Paris. Mas é sobretudo a partir das aparições de Fátima que se divulga por todo o mundo católico a devoção ao Imaculado Coração de Maria. O culto ao Imaculado Coração de Maria na Madeira é anterior a Fátima. Já se o vive com bastante devoção no séc. XIX. E, na primeira metade do séc. XX, pratica-se mais do que nas restantes dioceses de Portugal, como resposta ao pedido que a Virgem terá feito à madre Virgínia Brites da Paixão. Com efeito, esta religiosa clarissa terá tido revelações especiais, quer do Coração de Jesus, quer do Coração de Maria; segundo os seus hagiógrafos, serão quatro as revelações mais importantes, duas do Coração de Jesus e as outras duas do Imaculado Coração de Maria, recebidas a 16 de abril de 1913, na festa do Corpo de Deus de 1913, em agosto de 1913 e a 3 de maio de 1914. A mensagem que a Virgem Maria terá transmitido à madre Virgínia pode resumir-se na devoção e culto público ao Imaculado Coração de Maria e nos meios a utilizar para atingir esse objetivo: constituição de confrarias do Imaculado Coração de Maria, uso do respetivo escapulário, prática da devoção dos primeiros sábados, construção de um templo dedicado ao Imaculado Coração de Maria e definição da Assunção da Santíssima Virgem ao Céu como dogma de fé. Embora nada respirasse publicamente acerca destas revelações, o P.e João Prudêncio, confessor da madre Virgínia, começou imediatamente a infundir na sua paróquia, de Santo António, a devoção ao Imaculado Coração de Maria: escolheu “doze discípulas do Coração Imaculado de Maria” (Id. Ibid., 132), a quem confiou esta missão; repartiu entre elas os 12 meses do ano, e em cada mês cada uma promovia a devoção. Também começou a celebrar-se a eucaristia no primeiro sábado de cada mês em desagravo e reparação do Imaculado Coração de Maria. “A Guarda de Honra é também um desejo da Virgem. Doze pessoas em cada freguesia estariam constantemente em desagravo e reparação” (Id. Ibid., 133), consagrando uma hora do dia ou da noite a esse desagravo. A prática dos primeiros sábados criou na paróquia um ambiente de piedade e de abertura ao culto do Imaculado Coração de Maria que desembocou, no último domingo de agosto de 1915, numa festa mariana em que participou toda a freguesia de Santo António, que encerrou com uma procissão com a imagem do Imaculado Coração de Maria percorrendo as principais ruas de Santo António. O P.e Prudêncio funda, em 1916, a confraria do Santíssimo e Imaculado Coração de Maria, que fica agregada à arquiconfraria de Paris. D. António Manuel Pereira Ribeiro aprova a sua ereção canónica e aprova os estatutos, por decreto de 18 de janeiro. A 2 de fevereiro encontra-se ereta canonicamente em Santo António e no Hospício D. Maria Amélia. Nesse mesmo dia, celebra-se a festa da Apresentação do Senhor no Templo, são admitidas as primeiras associadas, cujas inscrições vão aumentando dia a dia. A 19 de novembro de 1921, é ereta na paróquia de São Pedro do Funchal, irradiando posteriormente para quase todas as paróquias da diocese. A 2 de julho de 1915, e “por ordem de Jesus” (Id. Ibid., 135), a madre Virgínia escreve ao papa Bento XV, transmitindo-lhe a mensagem recebida. Algum tempo depois, o P.e Prudêncio é enviado ao Vaticano a informar Bento XV. Logo escreve um texto, onde constam os pedidos que a Virgem terá feito por intermédio da madre Virgínia: culto público ao puríssimo e Imaculado Coração de Maria, uso do escapulário do Imaculado Coração de Maria, definição da Assunção da Santíssima Virgem ao Céu em corpo e alma como dogma de fé católica. Mais tarde, a 24 de setembro de 1920, o P.e João Prudêncio, por ordem do bispo diocesano, envia uma longa carta ao papa Bento XV, dando a conhecer o que sentia sobre a madre Virgínia. O escapulário branco do Imaculado Coração de Maria desperta grande entusiasmo popular, e é recebido com devoção por muitas famílias, sendo levado por emigrantes para os Estados Unidos e outros países, nomeadamente Espanha, através da família de Carlos de Áustria, após a sua morte. Um dos desejos que a Virgem Maria terá expressado à madre Virgínia é o da construção de um templo dedicado ao Imaculado Coração no Funchal. Os primeiros esforços neste sentido acontecem em 1921, mas só mais tarde o desejo se torna realidade. Entretanto, surge em Roma o primeiro templo dedicado ao Imaculado Coração de Maria. Bento XV, quem fora informado deste desejo da Virgem pelo P.e Prudêncio, adquire o terreno e, após a sua morte, Pio XI entrega-o aos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria, os claretianos, com a responsabilidade de ali construírem um templo votivo internacional. É construído só no pontificado de Pio XII, com apoio de todo o mundo cristão, e João XXIII confere-lhe a dignidade de basílica. Está situado na praça Euclides, no Parioli, em Roma. A 26 de agosto de 1926, é feita a consagração da diocese do Funchal ao Imaculado Coração de Maria, a qual é renovada a 28 de maio de 1933, no Terreiro da Luta. O Imaculado Coração de Maria é orago de duas paróquias na diocese do Funchal: a paróquia do Imaculado Coração de Maria, no arciprestado do Funchal, e a da Fajã do Penedo (Boaventura) no arciprestado de S. Vicente. Na rua da Levada de Santa Luzia, foi erguida uma igreja dedicada ao Imaculado Coração de Maria, fruto da devoção preconizada pela madre Virgínia, que dá a conhecer as visões que terá tido ao bispo do Funchal, D. António Manuel Pereira Ribeiro; uma das decisões consequentes do bispo foi cristalizar essa devoção na criação de uma paróquia e igreja paroquial a que chama precisamente do Imaculado Coração de Maria – decisão aliás secundada pelas autoridades civis, que nesses terrenos constitui também uma freguesia com o mesmo nome. O decreto da ereção canónica tem a data de 26 de novembro de 1954, tendo a igreja sido construída paulatinamente, consoante as ofertas dos fiéis. D. António Manuel Pereira Ribeiro afirma nesse decreto que “de há muito alimentamos o desejo de fazer erguer, nesta cidade, um templo dedicado ao Imaculado Coração de Maria”, acrescentando que “como preito de filial gratidão da Nossa querida Diocese para com a sua Celestial Padroeira, para maior glória de Deus e bem das Almas que nos estão confiadas […] havemos por bem criar a nova paróquia do Imaculado Coração de Maria” (GAMA, 2014, 158). Imagem da Imaculada Conceição de Maria, Igreja da Fajã do Penedo. Arqui. Rui Carita. A primeira pedra do templo fora já benzida e lançada no dia 21 de julho de 1948, com a presença da imagem peregrina de N. S.ª de Fátima que, a bordo do navio Império, na sua viagem inaugural, se dirigia para Luanda. Benze a primeira pedra o bispo do Funchal, D. António Manuel Pereira Ribeiro, acolitado por vários cónegos, com a presença das autoridades civis e militares e milhares de devotos, vindos de todas as paróquias da diocese. A construção da igreja demora mais alguns anos; visto ser oneroso o projeto, opta-se por construir primeiro uma pequena capela, que é benzida a 4 de dezembro de 1954 pelo núncio apostólico, D. Fernando Cento, de visita à diocese. Feitas as obras principais, o templo é solenemente benzido pelo bispo D. João Saraiva a 13 de outubro de 1967; a igreja será a maior da Diocese, depois da catedral. A devoção ao Imaculado Coração de Maria, concretizada nas devoções dos primeiros sábados de cada mês, é celebrada com muito fervor pelas comunidades madeirenses durante quase todo o séc. XX, tendo esmorecido no último quartel. A festa popular, com características de arraial madeirense, acontece no último sábado de agosto. Também é celebrada em muitas outras paróquias, nomeadamente a Camacha e o Caniço. Outra paróquia dedicada ao Imaculado Coração de Maria é a da Fajã do Penedo, criada por decreto de D. David de Sousa de 24 de novembro de 1960, com sede na capela existente no local, dedicada ao Imaculado Coração de Maria e centro de uma devoção ancestral. Na origem da construção desta capela está Maria dos Anjos Ribeiro, nascida no sítio da Fajã do Penedo a 13 de abril de 1885, que conheceu a madre Virgínia da Paixão. Tendo herdado dos pais o Solar dos Regos e as propriedades circundantes, empenhou-se em erguer um pequenino templo ao Imaculado Coração de Maria, tendo doado o terreno em que é implantado junto à casa de sua residência. Angariou os fundos necessários a esse efeito e, no ano de 1918, lançou as fundações da capela, que foi benzida por D. António Manuel Pereira Ribeiro a 23 de agosto de 1919. Estes dois padrões, localizados em lugares quase opostos, perfazem um enlace afetivo e eficaz entre as comunidades paroquiais madeirenses disseminadas pela geografia insular.   N. S.ª de Fátima O título de N. S.ª de Fátima não pode constar do registo de títulos que desde o séc. XV integram o culto mariano dos madeirenses, porquanto tem origem no fenómeno das aparições da Mãe de Jesus na Cova da Iria, de 13 de maio a 13 de outubro de 1917. No entanto, há acontecimentos que interligam a Madeira a Fátima e contribuem para o nascimento e crescimento dessa devoção nas comunidades eclesiais da diocese funchalense, nomeadamente as revelações que terão sido feitas à madre Virgínia Brites da Paixão cerca de 4 anos antes de serem apresentadas aos pastorinhos em Fátima. De certa forma, a Madeira antecipa-se a Fátima no que concerne a esta devoção e a este culto. Em 1948, a Madeira volta a receber a visita da imagem peregrina, que é acolhida por algumas comunidades paroquiais com entusiasmo e espírito de fé. Arraiga-se tanto e vive-se tão intensamente o fenómeno de Fátima na Madeira, que em 1960, aquando da criação de várias novas paróquias, três delas a adotam como padroeira: a Paróquia de Fátima no Funchal, a do Carvalhal nos Canhas e a da Lombada em Santa Cruz. Como resultado deste processo, ainda é construído o Santuário de N. S.ª de Fátima no Cabo Girão, que funciona como centro de peregrinações. Antes fora uma capela dedicada a N. S.ª de Fátima, mandada erguer pelo P.e António de Abreu Vieira com donativos aportados pelos paroquianos, a qual foi benzida a 11 de outubro de 1931.   Imagem Peregrina, Lar da Bela Vista. Arqui. Rui Carita.   A imagem peregrina visita novamente a Madeira em 2010, circulando por várias comunidades e sendo objeto do culto dos fiéis. Como se referiu, N. S.ª de Fátima foi dada como orago à nova paróquia do Carvalhal, na freguesia dos Canhas, criada por decreto de D. David de Sousa, a 26 de novembro de 1960. A sede provisória é constituída na Capela de S.to André Avelino, para onde já fora levada a eucaristia em procissão solene, no dia 19 de março de 1960, celebrando-se aí o culto a partir dessa data. O acontecimento fica assinalado numa inscrição gravada no cálice então oferecido pelo povo para a celebração dessa primeira eucaristia: “lembrança dos futuros paroquianos, 19 de março de 1960”. A 6 de fevereiro de 1962, iniciam-se as obras de desaterro e construção dos alicerces da nova igreja no terreno que fora adquirido a expensas dos paroquianos, contiguo à Capela de S.to André Avelino. A igreja é implantada à direita da Capela, tendo esta sido destruída para dar lugar à sacristia, ao salão e à torre sineira. A nova igreja será, na prática, custeada pelos paroquianos dos Canhas e do Carvalhal, cujos donativos permitirão sufragar os gastos da construção da igreja e o respetivo recheio. O templo tem um só corpo, para a assembleia, encimado pelo presbitério. Aqui assinala-se a padroeira, N. S.ª de Fátima, com as habituais celebrações dos dias 12 e 13 de maio. Outro edifício confiado à proteção de N. S.ª de Fátima é o Seminário Maior do Funchal, instalado em 1958 no antigo Hotel Bela Vista, adquirido pela diocese para esse fim. Para comemorar o jubileu das suas bodas de ouro, o mesmo Seminário colocou nos seus jardins, em frente à porta da entrada do edifício, uma imagem de N. S.ª de Fátima, corroborando desta forma o seu padroado. Santuário de Nossa Senhora de Fátima, Cabo Girão, Câmara de Lobos. BF. A Capela de N. S.ª de Fátima situada nas imediações do Cabo Girão, no Pico do Galo, freguesia de Câmara de Lobos, tornou-se conhecida, em primeira mão, por Cruz de Fátima. A capela primitiva foi mandada construir em 1931 pelo P.e Agostinho Abreu Vieira, natural de Câmara de Lobos, que era na altura missionário em Cabo Verde. Em abril de 1931, este sacerdote visita a Cova da Iria e, perante a imagem da Virgem de Fátima, promete erigir uma ermida da sua invocação no Cabo Girão caso a revolta que então estala na Madeira termine sem grandes estragos materiais ou morticínios. Alcançada a graça, inicia a sua construção, sendo lançados os alicerces a 5 de agosto do mesmo ano e ficando a obra concluída a 5 de outubro. É benzida no dia 11 seguinte por D. António Manuel Pereira Ribeiro, com a presença de cerca de quatro mil pessoas, número que é superado nos dois dias seguintes, 12 e 13 de outubro. Santuário do Cabo Girão, Câmara de Lobos. BF. A capela passa a constituir um centro de importantes peregrinações não só por parte das populações limítrofes, mas também de outros pontos da ilha da Madeira. Nos dias 12 e 13 de cada mês, passam a realizar-se diversos atos de culto que mobilizam sempre milhares de peregrinos, chegando a ser publicado, em 1933, um folheto denominado Fátima Madeirense, que reflete o desejo do seu promotor de fazer daquele local um centro de culto similar ao da Cova da Iria. Infelizmente, em março de 1934 a ermida foi encerrada ao culto pela autoridade diocesana. Depois de cerca de 20 anos sem culto, em finais dos anos 50 do séc. XX, a Capela de N. S.ª de Fátima voltou a abrir as suas portas, desta vez sob a jurisdição da paróquia de S. Sebastião de Câmara de Lobos, situação que terá permanecido até 31 de dezembro de 1960. Depois desta data, devido à criação de novas paróquias em Câmara de Lobos, passa a ficar dependente da Quinta Grande. Todavia continua sem condições para albergar os inúmeros devotos e a necessidade de ampliação volta a impor-se. A 1 de agosto de 1964, o P.e Manuel de Nóbrega é nomeado pároco da Quinta Grande, múnus que exerce até 25 de setembro de 1992; a sua obra principal será a reconstrução da Capela ou Santuário de N. S.ª de Fátima, que voltou a receber devotos de todas as comunidades paroquiais no dia 13 de cada mês, sobretudo em maio e outubro, bem como peregrinações de caráter diocesano e promovidas por diversos agrupamentos.   Igreja da Paróquia de Nossa Senhora de Fátima, Funchal. Arqui. Rui Carita. A paróquia de N. S.ª de Fátima no Funchal foi criada por decreto de D. David de Sousa, de 24 de novembro de 1960, com entrada em vigor a 1 de janeiro de 1961, em terrenos pertencentes a Santa Maria Maior. A sua sede provisória seria na igreja paroquial da paróquia mãe e o seu primeiro pároco foi também o pároco daquela, o P.e Alfredo Ponte Lira. A 16 de julho de 1962, é nomeado pároco o P.e Manuel Marques Luís, que passou a usar como capela um edifício privado. Em 1975, a paróquia é entregue aos cuidados pastorais dos Salesianos, que adquirem um terreno para construção da igreja, que será edificada pelo Governo Regional. A cerimónia da bênção e inauguração realiza-se a 23 de dezembro de 1989; é presidida pelo bispo D. Teodoro de Faria e conta com a presença das entidades regionais e locais, muitos sacerdotes, seminaristas e paroquianos. Também no sítio da Maiata, no Porto da Cruz, existe um centro dedicado a N. S.ª de Fátima, destinado fundamentalmente à implementação da catequese, à recitação do terço nos meses de maio e outubro e à celebração periódica da eucaristia. Foi construído em 1993, pelos alunos do curso de alvenarias e concluído em 1994 a expensas da fábrica da igreja, a um custo de 1500 contos. A 12 de junho de 1994, por ocasião da visita pascal, o Centro é benzido e é celebrada pela primeira vez a eucaristia, com a presença de muitos habitantes da zona. A paróquia da Lombada, outra das 52 paróquias criadas pelo decreto de D. David de Sousa de 26 de novembro de 1960, também tem como padroeira N. S.ª de Fátima.    Manuel Gama (atualizado a  02.09.2016)

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