Mais Recentes

demerara

O território da costa norte da América do Sul integrou a Guiana inglesa desde 1838 até 1966, altura em que se tornou país independente e passou a designar-se República Cooperativa da Guiana. A sua capital, Georgetown, encontra-se na foz do rio Demerara, pelo que a região também ficou conhecida como Demerara. O território compreende uma faixa costeira pantanosa, conhecida, no séc. XIX, dos madeirenses pelos pântanos, onde terão morrido muitos destes emigrantes ilhéus. A América Central e do Sul surge como o principal porto de destino da emigração madeirense no séc. XIX, pois 98 % dos emigrantes saídos da Madeira rumaram a essas paragens, nas suas três vertentes: Antilhas, América do Norte e Brasil. As Antilhas inglesas destacam-se como o principal mercado recetor da mão de obra madeirense, recebendo 86 % dos saídos legalmente do arquipélago. Estes distribuíram-se, de forma irregular, por St. Kitts, Suriname, Jamaica e Demerara, áreas sobejamente conhecidas do madeirense e ligadas à Ilha por força do comércio do vinho. Na déc. de 40 do séc. XIX, Demerara foi o principal destino dos emigrantes, porque existiam facilidades com o custeamento da viagem e havia a perceção de que ali se enriquecia de forma rápida. A emigração para Demerara deverá ter começado em 1834, com a abolição da escravatura na colónia inglesa. Desta forma, a 3 de maio de 1835, 40 madeirenses foram trabalhar nas plantações de La Pénitance, Liliendaal e Thomas. Desses, 30 não se adaptaram às plantações, tendo regressado à Madeira. Todavia, partir de 1840, os madeirenses acabam por se fixar na cidade de Georgetown, vindo a assumir uma posição destacada no comércio, de tal forma que, em 1890, metade das lojas comerciais eram portuguesas. Para o período de 1841 a 1889, Demerara manteve uma posição dominante na emigração madeirense, tendo recebido 36724 emigrantes, maioritariamente de Machico e Santo António. É também com Demerara que se ensaia o processo da emigração clandestina, mantida através de uma cadeia de engajadores. Desde 1792 que temos medidas para combater este flagelo, mas faltam meios para o fazer num espaço como a Madeira. O movimento de clandestinos acontecia em toda a costa sul, nomeadamente no Caniço, na Praia Formosa, no Paul do Mar e na Ponta do Pargo. Na déc. de 40 do séc. XIX, volta-se a reforçar a legislação, apesar de a falta de meios não evitar este tipo de emigração. Em 1845, surge o primeiro caso de emigração clandestina para Demerara, com o aprisionamento de 31 indivíduos no Porto Moniz, quando se preparavam para embarcar no iate Glória de Portugal. Em 1847, temos a situação do bergantim português Mariana que, 15 dias após a sua saída do Funchal, ainda estava na Ponta do Pargo com o pretexto de fazer aguada. A bordo, encontrou-se 187 passageiros, sendo apenas 34 com passaporte (VIEIRA, 1993, 118). Muitos mais se seguiram, sendo de referir, ainda em 1846, a barca inglesa Palmira, que saiu do Funchal com 23 emigrantes com passaporte, e que chegou a Georgetown com 410 passageiros oriundos da Ilha. Em 1893, o Diário de Noticias do Funchal refere que António André Martins, aprendiz de tipógrafo, tinha embarcado clandestinamente, referindo que “o pobre rapaz fugiu com a ideia de melhorar de sorte e conta ser empregado em Georgetown no estabelecimento de bebidas que pertence a um seu tio” (DNM, 1 mar. 1893, 1). Apenas em princípios do séc. XX parou esta vaga de emigração de madeirenses para Demerara. Desta forma, em 1904, a polícia de emigração informa que “a corrente emigratória para Demerara acha-se paralisada há muito tempo” (DNM, 6 abr. 1904, 1). Todavia, em 1906 (DNM, 14 jun. 1906, 1), encontramos um pedido de barbeiro para este destino. A ideia dominante em muitos testemunhos, desde a déc. de 40 do séc. XIX, é de que era elevada a mortalidade entre os emigrantes madeirenses. A febre-amarela é o principal inimigo dos madeirenses em Demerara. Em 1842, há notícias de que, nos 4 anos anteriores, haviam fixado morada aí cerca de 5800 madeirenses, que acabaram por morrer desta enfermidade. A 25 de novembro de 1842, afirmava-se em O Defensor que “alvejam nos pântanos de Demerara os ossos de 5000 desgraçados que a fome afugentou dos nossos lares, e tu ó governo és responsável perante o Céu e perante os homens por tão funestos resultados” (O Defensor, 25 nov. 1842, 4). Daí o epíteto de “matadouro de Demerara”, atribuído aos pântanos desta área da América do Sul. No decurso do séc. XIX, as cartas de emigrantes foram usadas como meio de propaganda e publicadas na imprensa madeirense, com o objetivo de combater a emigração clandestina e denunciar os problemas e as dificuldades que se encontravam no destino. Algumas destas cartas testemunham a ilusão das promessas feitas à partida da Ilha, e apontam as condições difíceis em que viviam os madeirenses em Demerara. Numa carta de 26 de agosto de 1846, de Felicidade Chaves a José Teixeira, refere-se que o milho cozido chegou azedo, mas mesmo assim o comeram (VIEIRA, 2011, 758). Também o Echo da Revolução dá conta das dificuldades: “já não se ganha um vintém e da muita mortandade de portugueses que estão morrendo povo. Já não estão das partes um de portugueses vivos” (Echo da Revolução, 17 out. 1846, 4). Associaram-se a esta campanha de denúncia das condições que esperavam os madeirenses nos destinos de emigração outros jornais, sendo de realçar o Correio da Madeira (1850) e o Progressista (1851) onde este movimento emigratório surge sob o epíteto de “escravatura branca”. De acordo com o cônsul português em Demerara, os emigrantes “são tratados como verdadeiros escravos, e mesmo pior do que são os negros da costa d’ África”. A resposta a esta carta não se fez esperar, pela voz de Diogo Taylor, cônsul inglês e agente da emigração para estes destinos, que realça os mútuos benefícios da emigração (VIEIRA, 2011, 759). A isso se junta o testemunho abonatório de um grupo de Portugueses residentes na Guiana inglesa. Numa proclamação do administrador geral do Funchal, Domingos Olavo Correa de Azevedo, refere-se que “Demerara [...] é uma possessão inglesa, cujo clima por extremo ardente e doentio, terminara em pouco tempo, com a existência da maior parte dos emigrantes que para ali vão, e onde estes infelizes, reduzidos, durante sua vida, a uma situação desesperada, vendo-se em total desamparo, e privados de meios de regressarem, se sujeitam a uma sorte tão cruel como a que em outro tempo ali experimentavam escravos negros” (VIEIRA, 1993, 126). O Progressista, porta-voz do Partido Regenerador, que se publicou entre 28 de agosto de 1851 e 15 de maio de 1854, é o periódico que dedica maior atenção à problemática da emigração, atribuindo-lhe com insistência o designativo de escravatura branca, considerando Demerara e o Brasil como matadouros. O Imparcial, publicado de 14 de abril de 1840 a 20 de junho de 1846, refere, a propósito: “Parece que a cidade do Funchal se converteu de repente numa grande feira d'escravos brancos, destinados a irem perecer no clima mais infeto dos domínios britânicos – Demerara”. E diz que “A emigração para Demerara é uma infame lotaria cujos bilhetes contendo raríssimas sortes em preto são comprados com as vidas dos nossos concidadãos” (Id., Ibid., 129). Qual o balanço possível destas levas de emigrantes para Demerara? Poder-se-á considerar positivo para a Ilha e para as gentes emigradas? Não obstante subsistir, no séc. XIX, o epíteto de demerarista, como sinónimo de riqueza dos retornados da colónia inglesa, podemos concluir que o saldo foi negativo, como provam os dados quantitativos. Assim, dos 418 emigrantes orientados para este destino até 1849, só 5 (1 %) regressaram à Ilha, enquanto 224 (45 %) pereceram com a febre ou as agruras do calor tropical. Para o ano imediato, dos 2199 madeirenses que saíram rumo a esse destino, morreram 254 (12 %) e apenas 221 (10 %) regressaram, 120 dos quais doentes. Por outro lado, a fortuna acumulada não era aliciante, como comprovam os números: apenas 107 (48 %) conseguiram melhorar a sua situação económica, enquanto 50 (23 %) nada lucraram com a deslocação, antes pelo contrário, viram-se em apuros. Apesar disto, esta emigração teve algum retorno positivo na economia rural da Ilha, que se torna notado nas décs. de 50 e 60 do séc. XIX. Desta forma, em 1868, em informe do governo civil, diz-se que “pela desvinculação que trouxe a liberdade da terra, tem prosperado ali a cultura, muito auxiliada com os capitais circulantes, de milhares de pessoas que têm regressado de Demerara e outros lugares das West Indias, com muito mais de mil contos, e quase todo esse dinheiro está empregado nos Concelhos rurais. É por essa razão também, que a propriedade urbana nesses Concelhos tem dobrado e triplicado nos últimos anos” (ABM, Governo Civil, n.º 573, fls. 53v-66v). É evidente o impacto da emigração para Demerara na sociedade madeirense. Assim, eram habituais as notícias sobre esta comunidade, e o DNM chegava a publicar, na primeira página, uma rubrica intitulada “Noticias de Demerara”, transcrevendo diversas notícias do jornal Portuguez. Também era frequente outro tipo de notícias que atestam esta saída para Demerara, como os leilões de mobília e os anúncios de despedida dos que partiam para os que ficavam e não haviam tido condições de o fazer de forma particular. Assim, em 8 de outubro de 1889, Abel Maria de Silveira e mulher anunciam a partida para Demerara e despedem-se de todos os conhecidos (DNM, 8 out. 1889, 2). Temos, ainda, as notícias da última página, anunciando os vapores para os diversos destinos, que, até 1926, continuam a incluir Demerara. Ainda devemos notar a ação benemérita destes emigrantes face às situações de catástrofe que ocorriam na Ilha, como foi o caso com as inundações de 1895, com subscrições de donativos. Desta forma, podemos afirmar que, entre a déc. de 40 do séc. XIX e os primeiros anos do séc. XX, a presença de Demerara na sociedade funchalense é evidente, sendo o DNM, a partir de 1873, o seu porta-voz. A forte presença da comunidade portuguesa em Georgetown conduz a que esta comunidade adquira importância e visibilidade na sociedade local. Os Portugueses unem-se em torno das tradições de origem, com a proteção ou presença da estrutura da Igreja Católica, como na igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde celebram o Corpus Christi, assim como as festas do Espírito Santo. Em 1842, num relatório do governador da colónia, se refere que os emigrantes portugueses sentem a falta de “padres da sua religião que lhes administrem os confortos dela” (O Defensor, 19 fev. 1842, 4). O espírito associativo desta comunidade está evidenciado com a criação, em 1872, da Portuguese Benevolent Society, e do Portuguese Recreative Club, em 1923. Temos, ainda, uma escola portuguesa, que adquiriu algum renome no séc. XX. E, nesta comunidade, pratica-se desporto. A importância da comunidade portuguesa pode ainda ser atestada pela imprensa que se publica em português: o Voz Portuguez, a Uniao Portugueze, a Chronica Semanal, o Lusitano, o The Watchman e o The Liberal. Alguns jornais da Ilha eram aí vendidos, figurando, no cabeçalho, o preço da assinatura, como sucedia em 1868 com a Imprensa Livre, cuja anuidade era de 1$000rs. A par disso, deveremos referir que muitos madeirenses adquiriram importância na sociedade local como comerciantes e profissionais liberais, alargando a sua atividade à banca, como funcionários do The East Bank, Demerara, do Meadow Bank, Ruimveldt, etc.. De entre estes, temos notícia de Francisco Rodrigues, João A. de Sousa, José F. de Freitas, considerados abastados comerciantes em Georgetown, com múltiplas referências que atestam esta situação. Em 1896, o filho de José F. Freitas concluiu o curso de Medicina em Cambridge (DNM, 31 jul. 1896, 1). Em 1906, trabalhava no Hospital Publico de Georgetown um cirurgião de nome Quirino de Freitas, filho de madeirenses (DNM, 16 jul. 1906, 1). Neste mesmo ano, sabemos que Francisco Dias, também filho de madeirense, foi eleito membro do Parlamento de Georgetown, cidade onde exercia advocacia (DNM, 19 nov. 1906, 2). Temos ainda Peter D'Aguiar, que fundou o United Force Party, que alcançou 16.3 % do eleitorado nas eleições de 1961; em 1964, de coligação com The African, dominou o Congresso Nacional. A presença portuguesa continuou ainda a ser notada em Georgetown pelo séc. XXI, com empresas como G. Bettencourt & Co; D'Aguiar's Imperial House; Demerara Pawnbroking & Trading Co; The Eclipse, D. M. Fernandes Ltd; J. P. Fernandes; Ferreira & Gomes Ltd; Guiana Match Co Ltd; J. P. Santos & Co Ltd; e Rodrigues & Rodrigues. Fazendo jus a esta realidade da emigração e presença portuguesa em Demerara, temos a produção literária em torno dos emigrantes que conseguiram regressar, conhecidos como demeraristas. Assim, tivemos as peças teatrais A Família do Demerarista (1859), de Álvaro Rodrigues d’ Azevedo, O Alliciador (1859) de João de Andrade Corvo, A Virtude Premiada (1862), de João de Nóbrega Soares, e os romances Os Ibis Vermelhos da Guiana (2002), de Helena Marques, e O Fotógrafo da Madeira (2012), de António Breda Carvalho. Mas as relações da Madeira com Demerara não se resumiram à mobilidade humana. Por força da existência desta relação humana e de uma rota comercial que ligava o Funchal a Georgetown, tivemos o comércio assíduo de vinho, feijão-verde, tomate, cebola, alho, batata-doce, semilha, como, ainda, de figos, castanhas, azeitonas, passas, peros, cuscus, obras de vimes e bordados. Nesta relação de produtos que acompanhavam os emigrantes madeirenses no percurso até Demerara, muitos iam por solicitação desta comunidade, com o objetivo de garantir a sua subsistência; no mês de dezembro, seguiam os chamados géneros para o Natal que, em 1903, foram conduzidos pela escuna Esperança. No retorno ao Funchal, em visita à família, aparecem emigrantes com alguns produtos da produção local, como mel e açúcar mascavo, conhecido como açúcar demerara, assim como melaço para o fabrico de aguardente, também importado pelo engenho do Hinton. Note-se que até os bolos de mel madeirenses eram feitos com mel de Demerara. A este movimento de pessoas e mercadorias entre os dois destinos, junta-se a mobilidade de animais e plantas. Assim, de Demerara, trouxe João Duarte da Silva, de Câmara de Lobos, uma nova planta de batata-doce, que anuncia, em 1858, nos jornais (Semanário Oficial, 3 nov. 1858, 4). Tivemos, ainda, a aportação de diversas variedades de cana de açúcar, promovidas por iniciativa do visconde de Canavial, quando foi governador civil (1886-1888). Da Ilha para Demerara, temos informação de que se levou cerejeiras e pés de morangos, por iniciativa de Manuel Augusto Pereira, que ficou na história de Georgetown como o primeiro que aí produziu e vendeu morangos (DNM, 6 abr. 1904, 1). Existem, ainda, algumas curiosidades desta partilha entre Georgetown e o Funchal. Em 1895, os emigrantes encomendaram ao Caseiro, popular artista funchalense, uma escultura do Senhor Morto (DNM, 10 mar. 1895, 10). E, em 1911, a imagem de Nossa Senhora da Conceição da capela das Amoreiras, no Arco da Calheta, foi uma dádiva de emigrantes de Demerara (DNM, 12 jan. 1911, 1).     Alberto Vieira (atualizado a 07.12.2017)

História Económica e Social Madeira Global

california

É certo que foi um português, João Rodrigues Cabrilho, a primeira pessoa a desembarcar na baía de San Diego, em 1542, ao serviço dos Reis de Espanha. Mais tarde, já em 1769, surgiu o primeiro assentamento, mas foi a partir de 1848, com a descoberta do ouro, que propriamente se iniciou o povoamento do território e que a Califórnia começou a ganhar importância como destino de emigração europeia. A corrida do ouro naquela região aconteceu a partir de 24 de janeiro de 1848, quando este foi encontrado, pela primeira vez, em Sutter’s Mill. A presença de madeirenses nesta região não resulta de uma ligação direta à Madeira, o que só sucedeu muito mais tarde. As primeiras abordagens acontecem de forma indireta, através doutras regiões norte-americanas da costa leste ou do Havai. Desta forma, no primeiro momento, serão madeirenses já assentes no continente americano que fazem a travessia de costa a costa, e só depois chegam aqueles que são atraídos pelos efeitos da notícia e que levam à loucura da busca pelo ouro californiano. Esta notícia espalhou-se rapidamente na Europa e chegou também à Madeira. E parece que todos seguem, de forma cega, o apelo, como o testemunha um poeta madeirense: “Sim, apronta o teu baú,/E, sem perda de um momento,/Lá da bela Califórnia/Vai primeiro ao Sacramento” (TEIXEIRA, 1848, II, 202). Um dos primeiros madeirenses a serem atraídos por esta corrida ao ouro é John Pereira, que percorreu mais de 25.000 km desde Nova Orleães até Jamestown, onde criou um império à custa das primeiras pepitas de ouro que conseguiu, em 1849. Nesse mesmo ano, a notícia do ouro californiano chegava à Madeira e os jornais madeirenses faziam eco da descoberta, motivando a partida de muitos madeirenses para tão longínquo destino. Todavia, a maior valorização deste espaço aconteceu a partir da déc. de 30 do séc. XX, com emigrantes da costa leste, nomeadamente de New Bedford, apanhados pelos efeitos nefastos da depressão norte-americana. Foi o que sucedeu, e.g., a Pedro Prudêncio da Costa. Já a partir do Havai, uma diversidade de madeirenses tentou a sorte na costa californiana, como foi o caso de Manuel e Francisco dos Ramos, da Serra de Água, que haviam saído em 1885 com destino ao Havai. A pesca e a indústria atraíram muitos destes madeirenses a New Bedford ainda no princípio do séc. XIX, e daí foram partindo para outros destinos considerados mais promissores. De entre esta mobilidade interna dos madeirenses nos Estados Unidos, podemos assinalar uma diversidade de situações, de que também podemos dar alguns exemplos. Em 1890, José Abreu Silva parte de Nova Iorque rumo à Califórnia. Já António Vieira de Freitas Jr. morre aos 81 anos, a 13 de maio de 1972, na Califórnia, depois de passar muito tempo em New Bedford, onde havia chegado em 1914. Neste contexto, é ainda de referir os pescadores do Paul do Mar, que formaram um grupo significativo de emigrantes nos Estados Unidos. Muitos foram atraídos pela atividade do mar, primeiro na costa leste e depois na costa oeste. “São de lá os emigrantes, pescadores de grande nomeada, que se fixam na América do Norte, sobretudo na Califórnia, e que formam uma comunidade muito abastada” (COUTINHO, 1962, 214). Eduardo Pereira atribui mesmo o declínio do núcleo piscatório do Paul do Mar à emigração dos seus pescadores: “[a] população deste já reduzido núcleo piscatório decresce devido à emigração dos seus mais válidos, corajosos e ativos pauleiros que debandam fascinadoramente para terras estranhas como Estado da Califórnia, Panamá e África do Sul, onde enriquecem. Os velhos e os novos é que se dedicam às campanhas do atum” (PEREIRA, 1989, II,  125). No séc. XIX, surgem, na imprensa madeirense, referências às diligências efetuadas no sentido de providenciar o transporte de comboio para aquele destino. Assim, no Diário de Notícias de 13 de janeiro de 1886, encontramos um anúncio de viagem de embarcações de Cardiff para São Francisco, na Califórnia, mas, entre 1903 e 1916, encontramos anúncios de barcos para a costa leste americana, possibilitando-se o destino californiano por via terrestre. Todavia, nestes primeiros anos do séc. XX, é reduzido o número de madeirenses que embarcam nesta aventura. De acordo com o registo de passaportes para o período de 1875 a 1915, sabemos que só entre 1902 e 1913 foram feitos pedidos para viagens com destino à Califórnia. Estão registados 13 casos, sendo 4 do Funchal, 3 dos Canhas e 1 de cada uma das seguintes localidades fora do Funchal: Arco da Calheta, Estreito da Calheta, Machico, Ribeira Brava, Santa Cruz, Faial e Prazeres. Por outro lado, a atestar a importância que os madeirenses começam a ter nesta área, temos o enraizar de tradições de origem madeirense, que se assume como fator de coesão social e da sua valorização como comunidade. Em 1913, um grupo de madeirenses radicados em Oakland, na Califórnia, funda a Associação Madeirense do Estado da Califórnia. Além do mais, em 1918 e 1926, estes mesmos madeirenses criam uma comissão para reunir dinheiro para distribuir aos pobres na ilha da Madeira. No ano de 1918, reuniram 420 escudos, que enviaram para o Funchal. Parece que esta comunidade madeirense de Oakland adquiriu desusada importância nos primeiros anos do séc. XX. Não há muita informação sobre a forma como esta emigração aconteceu, mas a imprensa madeirense atesta, de forma clara, a pujança desta comunidade. E parece existir uma ligação muito direta ao Funchal, pois vimos muitas vezes, na imprensa funchalense, notícias sobre ela. Um exemplo disso é o caso de Maria de Jesus Rebelo, irmã de Joaquim Franco, de Machico, que em 1916 apresenta justificação junto ao Tribunal da Ponta do Sol para a herança dos bens do irmão, que falecera em Oakland. Em 1918, a imprensa refere aspetos da vida social desta comunidade, como foi o caso dos casamentos de Jaime Menezes, do Porto Santo, com Bela Drumond, e de Nicolau Tolentino, de São Gonçalo, com Rose Correia, descendente de madeirenses de Honolulu. Também o monumento à paz, que se ergueu em 1927 no Terreiro da Luta, por iniciativa do P.e José Marques Jardim, teve um valioso contributo financeiro destes emigrantes na Califórnia. E, em 1946, foi nesta comunidade que surgiu a iniciativa de reunir o dinheiro necessário para a compra de uma ambulância para o serviço da Cruz Vermelha no Funchal. A comunidade madeirense na Califórnia apresenta, em diversos momentos, um grande dinamismo, não só por esta constante lembrança e apoio aos que ficaram na Ilha, como pela ação de madeirenses de nome destacado na arte do espetáculo, como foram os casos de Max e de Nuno Lomelino Silva. O primeiro esteve em Oakland em 1957 e 1958, enquanto do segundo temos notícia de um espetáculo em 1957. A comunidade dispunha também, por iniciativa do madeirense Armando Santos, de um posto emissor de rádio. O facto de, a partir 1919, o P.e António de Sousa, também ele madeirense, assumir a coordenação da paróquia de East Oakland contribuiu ainda mais para essa coesão social da comunidade. Por fim, não podemos esquecer o facto de João da Silva Pita, natural de São Gonçalo, ter sido eleito, em 1918, deputado às cortes de Washington. A tradição refere a importância das festas de S.to Amaro para os emigrantes madeirenses na cidade de San Diego. Estas festividades, ligadas à evocação de S.to Amaro, relacionam-se com a freguesia de Santa Cruz e foram iniciadas em 1943 por Manuel da Mata Fernandes, natural da referida freguesia, e Manuel Gonçalves, do Paul do Mar. Estes são dois locais que muito terão contribuído para a emigração madeirense para a Califórnia nesta primeira fase. Os madeirenses de Oakland ficaram conhecidos pela jardinagem e floricultura, transpondo para esta região um pouco da realidade dos jardins floridos da Ilha. Por outro lado, no campo da botânica, temos indicações que conduzem a uma aproximação entre a Madeira e a região geográfica da Califórnia. Assim, registam-se algumas espécies botânicas daí oriundas: palmeira-de-leque-da-califórnia (Washingtonia filifera), papoila-da-califórnia (Eschscholzia californica) e cipreste-da-califórnia ou cipreste-de-monterey (Cupressus macrocarpa). Contudo, não sabemos se a sua rota de chegada à Madeira aconteceu de forma direta ou se terão passado por outros destinos antes de serem plantadas na Ilha. O The Portuguese Historical Museum de São José, na Califórnia, é um repositório e testemunho desta diáspora portuguesa para a costa californiana e faz referência a muitos insulares e madeirenses que emigraram para os Estados Unidos da América. Além disso, a primeira geminação da cidade do Funchal foi com a de Oakland, no início na déc. de 1970. Foi na sequência desse protocolo que surgiram, no Funchal, as seguintes designações toponímicas: Trav. de Oakland, R. Cidade de Oakland e impasse 1 da R. da Cidade de Oakland.   Alberto Vieira (atualizado a 27.10.2017)

Madeira Global

antígua

É uma das chamadas Antilhas pequenas do mar do Caribe, com 280 km², que integra o Estado de Antígua e Barbuda, composto por estas ilhas, 6 ilhotas (Great Bird, Green, Guinea, Long, Maiden e York) e outras 29 não habitadas, tendo como capital Saint John’s, na Antígua. Em termos geográficos, esta ilha é muito parecida com a Madeira, tendo começado, em 1684, por ser uma área de produção de cana-de-açúcar, por iniciativa dos Ingleses, situação que rapidamente terminou, devido à limitação e ao condicionamento do território. A ilha de Antígua, conhecida como Wa’ladli pelos Arawaks, foi encontrada em 1493 por Cristóvão Colombo, que lhe deu o nome de ilha de Santa María La Antigua. Foi ocupada pelos Ingleses de Saint Kitts, em 1632. A partir do séc. XVII, adquiriu importância no conjunto das Antilhas, sendo considerada a porta de entrada no arquipélago. A ligação de Antígua à Madeira começa com a ocupação inglesa, no séc. XVII. A partir desta centúria, desenvolveu-se contactos estreitos com as Antilhas. As colónias inglesas das Antilhas e da América do Norte afirmaram-se como espaços consumidores do vinho. Note-se que, a partir de finais do séc. XVII, os portos de Pernambuco, Rio de Janeiro e Baía juntaram-se aos de Nova Inglaterra, Nova Iorque, Pensilvânia, Virgínia, Maryland, Bermuda, Barbados, Jamaica, Antígua e Curaçau como recetores do vinho madeirense. Para a época entre 1695 e 1714, dispomos de informação abundante, nas cartas de W. Bolton, sobre o comércio de vinho da Madeira com as Antilhas Inglesas. Assim, regista-se, em 1699, o envio de 270 pipas e, para o período de 1701 a 1714, a chegada de 780 pipas; de 1791 a 1795, temos notícia do envio de 647 pipas. Na primeira metade do séc. XIX, entre 1823 e 1850, são notificadas 298 pipas de vinho madeirense. Regista-se depois, ainda no séc. XIX, a primeira grande leva da emigração madeirense para o referido arquipélago, que teve como principal motivo a questão religiosa em torno de Robert Reid Kalley. Este pastor protestante e distinto médico, que se fixara na Madeira, em 1838, com o intuito de encontrar cura para a tuberculose de sua mulher, tornou-se o principal chefe do movimento anglicano, arrastando consigo as gentes de Santa Cruz e de Machico. As hostilidades, originadas pelo clero tradicional do Funchal, levaram à sua saída forçada em 1846, acompanhado de mais de 2000 madeirenses: primeiro, dirigiram-se às Antilhas menores (Trinidad, Antígua e Saint Kitts) e daí alguns passaram ao Illinois, na América do Norte. A segunda fase, mais importante do que a primeira, surge a partir de 1847, resultando da grave crise vitivinícola. Perdidas as esperanças de uma imediata recuperação do mercado do vinho, os colonos ou lavradores deixaram-se aliciar por propostas enganosas, de trabalho e bem-estar, nas colónias britânicas. Na déc. de 1850, uma vez que estava irremediavelmente perdida esta fonte única de trabalho, o madeirense só tinha como alternativa a emigração. As gentes do Norte abandonaram as terras e as suas habitações, dirigindo-se para a cidade, onde esperavam uma oportunidade para o salto até às promissoras Antilhas. Assim, para o período de 1846 a 1851, regista-se a saída de pelo menos 7213 madeirenses, 610 dos quais com destino a Antígua. A partir de 1854, parece ter acontecido uma paragem no movimento, nomeadamente de clandestinos, mercê de uma melhoria das condições de vida na Ilha, propiciada por iniciativa das autoridades. Mas o interesse em sair não acaba e, nesse mesmo ano, temos notícia da saída de um número significativo de emigrantes para Antígua, situação que se repete em 1857, 1861 e 1864. Neste último ano, regista-se a saída, em fevereiro, de 6 adultos e 12 crianças. Mas, paulatinamente, este destino perde importância, em favor de outros nas Caraíbas e do continente americano. Todavia, em 1912, a imprensa funchalense ainda anunciava as ligações dos vapores da The East Asiatic Company Ltd. para Saint Thomas, Barbados, Trinidad, Demerara, Suriname, Dominica, Saint Eustatius, Saint Kitts, Antígua, Saint Lucia, Saint Vincent e Grenade, mas este era já um destino perdido para os madeirenses, que procuravam mais o Brasil ou a América do Norte.     Alberto Vieira (atualizado a 14.07.2017)

Madeira Global

bolton, william

William Bolton (c. 1650-1750) foi um comerciante em Warwickshire que, beneficiando de uma lei britânica de 1663 cujo objetivo era aumentar o capital proveniente do comércio com as colónias, se transferiu para a Madeira por volta de 1695, onde se instalou como comerciante e banqueiro. William Bolton mantém desde a sua chegada à Ilha, e nos 20 anos em que aí permanecerá, uma constante correspondência com os seus associados em Londres, Robert, William e Gyles Heysham. Escritas entre 1695 e 1714, as cartas originais foram depositadas na Kenneth Spencer Research Library da Universidade do Kansas, nos EUA. Em 1928, André L. Simon, fundador e presidente da Wine & Food Society, publicou em Londres parte do acervo, com o título The Bolton Letters: The Letters of An English Merchant in Madeira, 1695-1714. O autor planeava publicar dois volumes, mas deu à estampa apenas o primeiro, que inclui as cartas datadas de 1695 a 1700. Em 1960, Graham Blandy faz uma edição a stencil do restante conjunto de cartas, que compreende o período de 1701 a 1714. Alguns pequenos excertos das cartas do volume editado por André L. Simon foram traduzidos e publicados por António Marques da Silva, em Passaram pela Madeira, em 2008. As cartas de William Bolton são consideradas pelos historiadores muito importantes como documentos primários para o conhecimento do comércio atlântico e da economia da Madeira, mas também para o quotidiano da época, do qual o autor dava conta. Richard W. Clement afirma que o conteúdo da correspondência é fundamental para a investigação, já que constitui um testemunho não só para a história económica do arquipélago, mas também dos “day-to-day details of political news, naval movements, and trade gossip [pormenores das notícias políticas do dia a dia, da atividade naval e dos mexericos do comércio]” (CLEMENT, 1989, 196). As cartas de Bolton são também importantes para o estudo da cultura do vinho, sendo citadas no livro do prestigiado enólogo inglês Richard Mayson, Madeira: The Islands and Their Wines, pelas informações sobre a qualidade e quantidade das colheitas em diferentes anos (MAYSON, 2015, 7). Falta, no entanto, como sublinha Clement, uma edição crítica e académica da totalidade das cartas. O estudioso aconselha também a leitura cruzada com o Letter-Book de Daniel Prior, capitão do brigue Abigail, de Boston, que na déc. de 1790 se dedicou ao comércio no Atlântico, podendo os investigadores, assim, adquirir uma imagem mais completa e documentada do comércio que unia a Europa à América. Bolton dá conta de um comércio florescente que passava pela Madeira: o vinho seguia da Ilha para as Índias Ocidentais, para as colónias americanas, a Inglaterra e a Irlanda, sendo também na Ilha abastecidos os navios com produtos alimentares frescos e manufaturados; da Inglaterra, chegavam o trigo e os produtos de lã, seda e algodão, o mobiliário e produtos manufaturados; da Irlanda, provinham a carne e os lacticínios; da Terra Nova, o peixe; de Boston e Nova Iorque, o óleo de baleia e as madeiras; da Virgínia e das Carolinas, o arroz e o milho; das Índias Ocidentais, o açúcar. É igualmente interessante a rivalidade existente entre os comerciantes ingleses de que dá conta, chegando mesmo Bolton a ser preso por problemas criados pelos seus rivais (SILVA, 2008, 43-47). Obras de William Bolton: The Bolton Letters: The Letters of An English Merchant in Madeira, 1695-1714, (vol. I 1928); The Bolton Letters: The Letters of an English Merchant in Madeira, 1695-1714, (vol. II 1960).   Luísa Paolinelli (atualizado a 27.10.2017)

Literatura Madeira Global

blanchard, pierre

Autor, editor e educador, Pierre Blanchard nasceu em Dammartin em 1772 e faleceu em Angers em 1856. Dedicou-se às letras desde cedo, publicando os primeiros textos no período da Revolução Francesa com o pseudónimo “Platon Blanchard” e “P. B**”. Em 1800, inaugurou em Paris uma instituição para jovens. Estabeleceu-se como livreiro em 1809, a fim de comercializar e divulgar as obras de educação de sua autoria. Trabalhou em associação com Alexis Eymery durante os anos de 1811 e 1812. Em 1834, passa a outro editor a licença da livraria. Dedicou-se à escrita de textos de teor didático, tendo como principal finalidade a educação das crianças e dos jovens. No conjunto da sua obra, destacam-se Les Accidents de l’Enfance; Le Trésor des Enfants: Divisé en Trois Parties la Morale, la Vertu, la Civilité, com tradução portuguesa, que em 1879 já ia na 36ª edição; e Le Voyageur de la Jeunesse dans les Quatre Parties du Monde; Ouvrage Élémentaire, em seis volumes. Também deste último texto foram muitas as edições, contando-se numa década cerca de quatro. A divulgação dos conhecimentos que transmitia foi por isso muito vasta, servindo durante largos anos para a educação dos jovens franceses. No quarto volume desta última obra, Blanchard começa a viagem no Indostão, passa pela Pérsia, pelas Arábias, por algumas ilhas do Mediterrâneo, pelas ilhas da Ásia, pela África, pela Abissínia, pelo que denomina Estados Barbáricos ou Barbárie (nos quais inclui Tripoli, Tunísia, Argélia, o Império de Marrocos e Biledulgerid), pelo Sahara e, finalmente, do grande deserto chega às “Ilhas da Madeira”, com as quais fecha o tomo (BLANCHARD, 1818, 438). O autor transmite o que considera ser a informação mais pertinente sobre o arquipélago: a constituição e dimensão das ilhas; a história do descobrimento e a caracterização da sua economia. Apesar de se enganar na data da descoberta, provavelmente fruto de uma gralha, situando assim a chegada dos Portugueses em 1519, Blanchard parece conhecer bem a bibliografia sobre as ilhas. Refere o incêndio no início do povoamento, a forte arborização e fertilidade dos terrenos, o papel da cana-de-açúcar na economia da ilha e o seu papel na difusão desta cultura no Brasil. Considera o açúcar da Madeira muito bom e afirma que deixa na boca um odor de violeta, forte e agradável. Em relação ao vinho, afirma que a cultura da vinha ultrapassou as esperanças dos cultivadores, produzindo-se na ilha da Madeira diversos vinhos que estão a par dos melhores que existem, sendo os seus nomes Madeira, Malvasia e Alicante. A Madeira, segundo o autor, exportava cerca de 20.000 barricas por ano para as colónias ocidentais e para os Barbados. Além do açúcar e do vinho, a Ilha era famosa pela comercialização do mel, da cera, do couro e de frutas frescas e tratadas. Estas últimas, em compotas, são consideradas das melhores do mundo, tendo um excecional odor, especialmente as de laranja e de limão. Segundo o autor, os bosques têm muita caça, como javalis e outros animais selvagens, não existindo nenhum animal venenoso. As casas, no meio das vinhas e das plantações, criam um efeito “encantador”, e a única cidade da Madeira, “Fonchal”, situa-se na costa sul, “essa bela encosta”, numa grande baía (Id., Ibid., 440). Porto Santo é referido como uma ilha pequena e as outras apenas como rochedos estéreis, sem importância. Blanchard, de forma resumida, dá aos seus jovens leitores uma imagem da Madeira como um lugar agradável (um locus amoenus), simples, mas de uma grande riqueza baseada nos produtos da terra. A descrição da Ilha e do que exporta é pautada pelo elogio e pelo carácter superlativo, em comparação com outros lugares e produtos. O autor repete, assim, os topoi da fertilidade e da excelência ligados à Madeira e o deslumbre do europeu continental.   Obras de Pierre Blanchard: Le Voyageur de la Jeunesse dans les Quatre Parties du Monde; Ouvrage Élémentaire (1804); Les Accidents de l’Enfance, Présentés dans des Petites Historiettes, Propres à Détourner les Enfants des Actions que leur Seraient Nuisibles, (1813); Le Trésor des Enfants: Divisé en Trois Parties la Morale, la Vertu, la Civilité (1814).   Luísa Paolinelli (atualizado a 27.10.2017)

Literatura Madeira Global

japão

Antes do séc. XX, as relações entre a Madeira e o Japão terão sido efémeras. A ligação entre os dois territórios reforçou-se, num primeiro momento, com o interesse nipónico pelo vinho da Madeira e, depois, por múltiplos aspetos mediáticos, aos quais não é alheia a figura do futebolista madeirense Cristiano Ronaldo. As diversas séries e os documentários alusivos à Madeira, produzidos pela cadeia de televisão NHK, consolidaram esse interesse da sociedade japonesa, atraindo múltiplos turistas desse território. Por outro lado, as informações que temos sobre as relações e influências em ambos os sentidos são escassas e não sabemos se muitas destas aconteceram de forma direta ou por via indireta. Ainda assim, apresentar-se-á o conjunto de informações consideradas de maior interesse, que expressa esse relacionamento através de diversas influências na botânica, no quotidiano e na atividade económica. Uma das mais evidentes presenças da cultura nipónica encontra-se no Jardim Tropical Monte Palace de José Berardo, aberto ao público desde 1991. A visita a este jardim revela o interesse e a paixão do seu proprietário pela cultura material oriental, nomeadamente do Japão e da China. De entre os vários aspetos, temos a considerar o painel A Aventura dos Portugueses no Japão, uma estrutura de ferro onde, em 166 placas de cerâmica, se conta a história das relações entre Portugal e o Japão. A outro nível, destaque-se a existência, desde 1998, no Museu da Qt. das Cruzes, de um escritório namban, do Japão do final do séc. XVI. São peças isoladas, que remetem para uma possível relação com este território do extremo Oriente. No plano da história da Igreja Católica, são percetíveis as ligações a estas ilhas orientais desde o séc. XVI. Nos princípios deste século, com a criação, a 12 de junho de 1514, da Diocese do Funchal, a Igreja Católica abrangia todas as terras conhecidas até ao Oriente, ficando o Japão, obviamente, na sua alçada. Este estado de coisas manteve-se até 1533, altura em que D. João III solicitou ao Papa Clemente VII a criação de novas dioceses (em Angra, São Tiago, São Tomé e Santa Catarina [Goa]), bem como a elevação da Catedral do Funchal à categoria de metropolitana e primaz. A partir de 31 de janeiro de 1533, é criado o arcebispado do Funchal, que se manteve até 1551; entre 1514 e 1551, há pois um laço institucional que liga as ilhas daquelas dioceses à Madeira. Ainda no campo da Igreja, podemos assinalar outros vínculos. Assim, o Jesuíta madeirense Sebastião de Morais (1534-1588) foi o primeiro bispo do Japão, com o título da cidade de Funai, confirmado pelo Papa Xisto V a 19 de fevereiro de 1587, tendo a sua morte prematura a 18 de agosto de 1588, ao largo de Moçambique, impedido o Jesuíta de tomar posse do lugar. Entretanto, os missionários que tinham chegado a estas ilhas em 1549 foram expulsos. Neste intervalo de presença portuguesa, ocorreram influências que se tornaram mais notadas no vocabulário. É a partir daqui que podemos estabelecer uma ligação à Madeira, pois há referências ao fabrico de alfenim (aruheitou em japonês) – a primeira de 1569, com várias notícias do seu consumo nos séculos seguintes – e outros doces, como os confeitos (komfeiton). O arheitou era e continuaria a ser um doce nanban oferecido em momentos especiais. Ficou célebre o alfenim madeirense que Vasco da Gama ofereceu ao Samorim de Moçambique. Foi também pela rota da Índia que terá chegado ao Japão a arte da confeitaria madeirense, que perdurou sob a designação de “alfeito”. Os estudos de M. Arao reforçam a ideia desta influência portuguesa, estabelecendo uma ponte com a Madeira. O mercado do Japão foi um dos conquistados tardiamente para o vinho Madeira – afirmou-se desde a déc. de 60 do séc. XX –, mas em 1989 suplantou o então tradicional mercado americano, uma vez que os Japoneses preferem vinhos secos e meio secos. A Casa de Vinhos Barbeito, fundada em 1946, foi pioneira naquela rota, mas o mercado viria a interessar a todos os produtores. Esta ligação do Japão à Casa de Vinhos Barbeito fez-se através da Kinoshita International Company. Em 1967, iniciou-se uma ligação entre as duas empresas que levou a que, em 1991, ficasse fortalecida esta parceria, através da aquisição pela Kinoshita International de metade da empresa madeirense. Note-se que, no séc. XXI, o vinho da Madeira ganhou nome no mercado de vinhos licorosos do Japão e assumiu o papel principal no brinde que sucede à cerimónia de casamento. Por múltiplas influências e intervenções, a Madeira foi um viveiro de plantas de todo o mundo, plantas que depois se expandiram para outras regiões. Os jardins públicos e privados são um repositório deste legado, que começou a ganhar importância na segunda metade do séc. XVII, por mão dos Ingleses. Em 1844, E. Wateley destacava esse trabalho e a presença de espécies da China, da Austrália e do Japão, nomeadamente no Jardim da Serra. Uma destas influências está relacionada com a flora das quintas e dos jardins, públicos e privados, da cidade do Funchal e arredores, onde se podem encontrar várias espécies de flora originárias desta região: Acer palmatum (ácer), Angiopteria evecta (feto craca), Ardisia crenata (ardísia), Aucuba japonica (aucuba), Elaeagnus macrophylla (oliveira do paraíso), Camelia japonica (camélia), Chamaecypares obtusa (camacípares), Cinnamomum camphora (canforeira), Cryptomeria japonica (criptoméria), Cyca revoluta (cica), Elaeagnus pungens (eleagnos), Eriobotrya japonica (nespereira), Euonymus japonica (Euonimus), Eurya japonica (euria), Fatsia japonica (arália), Ficus radicans (pastinha), Hibiscus chizoptalus (cardeal bailarina), Hibiscus rosa-sinensis (cardeal), Hovenia dulcis (passas do Japão), Ligustrum japonicum (ligustro), Ligustrum ovalifolium (ligustro), Magnolia obovata (magnólia), Magnolia stellata (magnólia), Pittosporum tobira (incenseiro), Raphiolepsis ovata (espinheiro da Índia), Sophora japonica (acácia do Japão), Trachelospermum jasminoides (jasmins de estrela), Trachycarpus fortunei (palmeira moinho de vento), Ulmus parvifolia (ulmeiro).   Alberto Vieira (atualizado a 03.02.2017)

Madeira Global