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pautas aduaneiras

As pautas aduaneiras podiam ser únicas ou múltiplas (ou seja, o objeto era alvo de uma tributação única ou variável, de acordo com a sua origem ou condições de importação), ou mistas. A partir da década de 30 do séc. XIX, ocorreram diversas alterações nas pautas, as quais foram apontadas por vários madeirenses como responsáveis pelas dificuldades comerciais do arquipélago. Palavras-chave: Alfândegas; Pautas.   As pautas aduaneiras eram tabelas de mercadorias, com as respetivas taxas de importação e exportação. Estas pautas podiam ser únicas ou múltiplas, ou seja, o objeto era alvo de uma tributação única ou variável, de acordo com a sua origem e as suas condições de importação. Havia, ainda, as chamadas pautas mistas, que contemplavam as duas situações. A necessidade da sua quase permanente adaptação às novas circunstâncias do mercado obrigou as autoridades a criarem comissões para a sua revisão. As alfândegas foram criadas na Madeira em 1477 e o seu funcionamento em termos de regulamentação das taxas foi estabelecido por regimentos (1499). Na documentação da antiga Alfândega do Funchal, existem: as avaliações de artigos de produção e indústria inglesa (1811); a Pauta Geral da Alfândega grande de Lisboa – impresso, cópia e emolumentos (1782-1836); e a Pauta Geral e inglesa para a avaliação das mercadorias (1834). A Pauta Geral da Alfândega era um documento onde se estabeleciam as normas precisas para avaliação dos géneros, sob o ponto de vista fiscal. Foi estabelecida em 1782, por D. Maria I, para a Alfândega de Lisboa, e tornou-se aplicável a todas as do reino, tendo-se mantido até 1832. Entretanto, em 1818, D. João VI, no Brasil, determinou, por alvará régio de 25 de abril, alterações aos direitos pagos nas Alfândegas de Portugal e do Brasil. O facto de as pautas terem sido estabelecidas, de forma geral, para o país, ignorando as especificidades, nomeadamente dos arquipélagos insulares, criou várias situações penalizadoras que fizeram levantar a voz dos insulares. O debate político local, nomeadamente após a revolução liberal, será muitas vezes alimentado em torno destas pautas e dos seus efeitos positivos ou negativos para a vida económica local, insistindo-se na necessidade de adaptações ou de uma pauta específica. Pelo dec. n.º 14, de 20 de abril de 1832, fez-se a reforma da Pauta Aduaneira, a que se seguiu outra, pelo dec. de 10 de Janeiro de 1837. A partir desta data, a Pauta passou a ser geral para todo o país, deixando de existir pautas específicas para cada Alfândega. É nítida uma intenção livre-cambista, mas a necessidade de receita impediu um maior progresso. A 4 de julho de 1835, foi criada uma comissão para proceder à revisão da Pauta. A nova Pauta entrou em vigor pelo decreto de 10 de janeiro de 1837. A Madeira não foi ouvida e apenas foram considerados os interesses da burguesia comercial do Porto e Lisboa. Por essa razão, a referida Pauta revelou-se danosa para as demais regiões, nomeadamente para a Madeira, tendo por isso merecido a contestação dos madeirenses, por permitir a entrada livre de vinhos e aguardentes do continente. Mesmo assim, alguns artigos considerados ruinosos para a Madeira foram suspensos pelas Cortes, por influência do deputado Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, que fora governador e era então deputado eleito pela Madeira. No séc. XIX, a cobrança dos direitos de exportação no Funchal estava regulamentada por duas Pautas: a geral e a inglesa. A última, feita de acordo com o tratado de comércio com Inglaterra (1810), determinava privilégios especiais aos Ingleses. Diogo Teles de Menezes (1788-1872), diretor da Alfândega, decidiu, por sua iniciativa, fundir ambas e criar uma nova Pauta Alfandegária, que motivou um aceso protesto da Associação Comercial do Funchal, que fora criada em 1836. Em 1839, a Associação Comercial submeteu à Câmara do Funchal uma proposta de alteração da Pauta, que não foi contemplada. Todavia, na revisão da Pauta de março de 1841, a Madeira continuaria a manter o regime de exceção para os vinhos aguardentes e os cereais. Neste mesmo ano, surgiu, no Funchal, uma comissão auxiliar da comissão permanente da Pauta Geral das Alfândegas. As diversas alterações e reformas da Pauta Aduaneira que tiveram lugar ao longo do séc. XIX (em 1837, 1841, 1850, 1852, 1856, 1860, 1870, 1882, 1885, 1887, 1892, 1924 e 1926) sempre mereceram reparos dos madeirenses, que a apontaram como responsável pelas dificuldades comerciais do arquipélago, nomeadamente devido à falta de competitividade com os portos vizinhos das Canárias. Com efeito, a Pauta será motivo de permanente reclamação, porque a Madeira está numa situação distinta dos demais portos do reino e as medidas protecionistas apenas ponderam as condições de Portugal continental. A este propósito, diz-nos Paulo Perestrelo da Câmara: “Finalmente deve-se contemplar, na massa dos males, que, ultimamente mais tem pesado sobre a Madeira, a lei das Pautas, que com os seus efeitos proibitivos, nada mais tem feito, senão aperfeiçoar a ciência do contrabando, dando cabo de um comércio já tão enfraquecido. A mania de tudo mudar, levou esses novos legisladores á demencia de por a Madeira na mesma escala de produções e interesses que Portugal, com quem esta ilha não pode comerciar, pois abundando em vinhos excelentes, não os consome aquela, a quem também não pode fornecer os artefactos, de que carece. A Madeira só pode negociar com países não vinhateiros, e deles receber os artigos de que carece, mas com direitos suaves” (CÂMARA, 1841, 95-96). Assentando a economia da Ilha apenas no comércio do vinho e, sendo este o principal alvo das tributações, era difícil conseguir algum lucro e competitividade no mercado externo. Por outro lado, a Madeira necessitava de importar tudo aquilo de que precisava para a sua manutenção, desde manufaturas a cereais. Na mesma linha, a possibilidade de trazer para a Madeira parte da navegação oceânica, como forma de animar o movimento do porto comercial, passaria por medidas que favorecessem essa situação, face às melhores condições oferecidas por outros portos como os das Canárias. Neste caso, existiria a necessidade de estabelecer condições mais favoráveis à entrada e saída no porto do Funchal, através da criação de infraestruturas e de medidas fiscais que não fossem penalizadoras, nomeadamente quanto à entrada e saída do carvão, o principal meio de combustível a partir desta centúria. O grande objetivo era fazer do Funchal a principal estalagem do oceano. Uma pauta penalizadora destas importações era, portanto, prejudicial para a Madeira, fazendo aumentar o clamor por soluções aduaneiras que tivessem em conta esta situação específica, que raras vezes merecia a aprovação e o entendimento dos pares e das autoridades da metrópole. As Pautas necessitavam de permanente atualização, criando-se para o efeito comissões específicas. A Comissão Revisora foi criada para aceitar as reclamações sobre as mesmas e propor a sua reforma, de acordo com a situação da indústria nacional e com as alterações das pautas estrangeiras. Reorganizada por decreto de 31 de março de 1845, foi extinta em 28 de dezembro de 1852, para dar lugar à Comissão para as Pautas Aduaneiras que, por sua vez, deu lugar, por decreto de 25 de outubro de 1859, à Comissão Revisora da Pauta Geral da Alfândega, que estava incumbida da missão de proceder à realização da estatística das fábricas e oficinas do país, à recolha de informações sobre a produção, o consumo e a exportação dos seus produtos e, ainda, ao estudo sobre a importação de produtos das indústrias estrangeiras. Foi substituída, a 3 de novembro de 1861, pelo Conselho Geral das Alfândegas. As reformas das Alfândegas foram estabelecidas pela portaria de 14 de outubro de 1864 e pelos decretos de 7 de dezembro de 1864, bem como de 28 de agosto e de 23 de dezembro de 1869, tendo o corpo auxiliar das Alfândegas sido transformado num serviço de rondas volantes. O decreto de 7 de dezembro de 1864 estabelece a reorganização das Alfândegas, com a extinção da Administração Geral do Pescado, e constitui duas circunscrições: a marítima e a da raia. Na Alfândega do Funchal, a regulamentação de toda a atividade da repartição, bem como o cômputo e a arrecadação dos direitos de entrada e saída regulavam-se através das Pautas de 1843, 1850, 1856, 1860, 1885 e 1887, e por meio das cartas de lei de 1844-1845. Os serviços da Alfândega diferenciavam-se dos do Almoxarifado por estes apenas poderem proceder à cobrança, funcionando, assim, como recebedoria. Com a Pauta de 1892 foram consideradas algumas especificidades locais das ilhas, com salvaguarda o comércio do açúcar na Madeira, nos Açores e no continente, com uma taxa reduzida de 1/4 do seu valor monetário. Com a implantação da República, introduziram-se alterações na cobrança dos direitos, sendo de destacar que apenas em 9 de fevereiro de 1915 se suspendeu a cobrança do imposto de farolagem no porto do Funchal, uma medida reclamada havia muito tempo, que ganhou força de lei pela intervenção do visconde da Ribeira Brava. Por força da desvalorização da moeda e da Primeira Guerra Mundial, ficou determinado, pelo dec. n.º 41.333, de 18 de abril de 1918, que os direitos de importação seriam pagos em ouro. Criaram-se, assim, dificuldades à exportação, assim como à entrada de mercadorias. Por outro lado, o dec. n.º 4682, de 27 de abril de 1918, estabeleceu sobretaxas relativas à importação de diversas mercadorias. A oneração fiscal das importações continuou, pois, pelo dec. n.º 6263, de 2 de dezembro de 1919, e foram duplicados todos os direitos e sobretaxas de importação estabelecidos em 1918, permanecendo a exigência do pagamento em ouro, mas aplicada apenas de metade do valor. Posteriormente, o dec. n.º 1193, de 31 de agosto de 1920, determinou que o quantitativo integral dos direitos e sobretaxas fosse exigido em ouro. A Pauta única nacional vigorou, por todo o séc. XIX, dando lugar, com a reforma de 1921, ao regime de pauta múltipla. Em 1922, insiste-se na falta de funcionários, mas a principal reclamação recaía sobre o quase permanente aumento das pautas, numa altura de grave crise económica, marcada por descidas, quase contínuas, da moeda portuguesa. Pelo dec. n.º 8747, de 31 de março de 1923, foi aprovada nova Pauta Aduaneira em que foram abolidas algumas sobretaxas. Ao mesmo tempo, em 17 de março, criou-se um adicional de 2 % sobre todos os direitos de importação para acudir às despesas com a Misericórdia do Funchal. Depois, a 10 de março do ano seguinte, surgiu mais um adicional de 5 % para o serviço de incêndios. A Pauta foi revista pela lei n.º 1668, de 9 de setembro de 1924, e não gerou consensos; era uma forma de regularizar o comércio externo no pós-Primeira Guerra Mundial. A 12 de outubro de 1926, os combustíveis sólidos ou líquidos passam a ser taxados a 0,5 % sobre o seu valor. No quadro da lista de produtos das pautas alfandegárias, os valores cobrados pelas farinhas e os cereais mereceram, por parte dos madeirenses, uma atitude de permanente repulsa, tendo em conta a dificuldade que tinham em se prover dos mesmos. Com o regime da Ditadura Militar, ocorreu uma reforma da Pauta, consoante o dec. n.º 17.823, de 31 de dezembro de 1929, que era já a expressão plena da mudança das conjunturas mundiais, política e económica. Todavia, as medidas protecionistas continuaram a marcar presença, como se poderá verificar pelos decs. n.º 20.935, de 26 de fevereiro de 1932, que impunha um adicional de 20 % aos direitos de importação, e n.º 24.115, de 29 de junho de 1934, por meio do qual foi estabelecido o regime de proteção de bandeira, ao serem taxadas, através de um adicional de 13,5 %, as mercadorias exportadas em navios estrangeiros. Já o dec.-lei n.º 30.252, de 30 de dezembro de 1939, duplicou o valor dos direitos de exportação específicos e fez incidir 2,5 % sobre a taxa dos direitos de exportação ad valorem. Esta situação perdurou até 1947. No período da guerra, a principal atenção foi para a exportação de volfrâmio.A partir de 1948, com a entrada de Portugal na Organização Europeia de Cooperação Económica, e depois em 1959, com a adesão à Associação Europeia do Comércio Livre, foram operadas outras mudanças nas pautas, pelo dec.-lei n.º 42.656, de 18 de novembro de 1959. Este processo culmina, em 1962, com a adesão de Portugal ao Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio. Entretanto, em 1961, havia sido criada uma zona de comércio livre entre Portugal e as colónias que, por ter sido um fracasso, foi abolida em 1971. Em 1972, Portugal assinou um tratado de associação à Comunidade Económica Europeia que seria o início de uma caminhada para a sua integração nesta comunidade em 1986, com reflexos evidentes, também, nas pautas aduaneiras, como expressado no dec.-lei n.º 19/92, de 5 de fevereiro, que aprovou a Pauta dos Direitos de Importação que conduziu à aplicação da Pauta Aduaneira comum, a partir de 1 de janeiro de 1993. Com a entrada de Portugal na CEE, houve uma alteração das pautas alfandegárias. Assim, a Pauta Aduaneira comum, um dos elementos constitutivos da união aduaneira, é publicada anualmente por regulamento comunitário, que altera o regulamento de base (regulamento CEE n.º 2658/87 do Conselho, de 23 de julho de 1987, relativo à nomenclatura pautal e estatística e à Pauta Aduaneira comum). A Pauta Aduaneira compreende, entre outros elementos, os direitos de importação e a nomenclatura combinada das mercadorias. Além desta, existe a Pauta de Serviço, que é o documento onde se estabelecem as informações sobre a tributação das mercadorias importadas de países terceiros. Constam ainda da mesma as medidas de política comercial comum, nomeadamente restrições quantitativas, direitos aduaneiros, direitos anti-dumping, suspensões e contingentes pautais, bem como as medidas de âmbito nacional, tais como o imposto sobre o valor acrescentado, os impostos especiais de consumo e as informações complementares sobre as condições de desalfandegamento das mercadorias. A Pauta de Serviço é elaborada com base nos elementos integrados da Pauta Integrada das Comunidades Europeias (TARIC) que são recebidos, diretamente, de Bruxelas. Contém, igualmente, informações de carácter nacional (taxas do IVA e informações sobre as condições a respeitar na importação e exportação de mercadorias). Por fim, existe a Pauta Integrada da Comunidade Europeia, que é a Pauta Aduaneira comum, em sentido lato, atendendo a que o regulamento anual não contém diversos elementos essenciais para o desalfandegamento das mercadorias, nomeadamente taxas dos direitos aduaneiros a aplicar no âmbito de regimes pautais preferenciais, suspensões de direitos de importação, direitos anti-dumping, licenças de importação, medidas de vigilância, proibições, etc.   Alberto Vieira (atualizado a 19.12.2017)

Direito e Política Economia e Finanças História Económica e Social

partido socialista

A implantação do Partido Socialista (PS) na Região Autónoma da Madeira (RAM), após a Revolução de 25 de abril de 1974, segue o movimento geral da criação dos partidos a nível nacional e o seu alargamento a todo o território. Com efeito, logo após o 25 de Abril, as diferentes correntes ideológicas e partidárias do centralismo, por um lado, e da autonomia, por outro, vão dirimir os seus argumentos e lograr a sua implantação social e política. Com a entrada em vigor da Constituição de 1933, os partidos então existentes tinham sido todos ilegalizados. A reintrodução do sistema partidário em Portugal, no novo regime implantado após o 25 de Abril, segue o figurino internacional, com correntes que vão da extrema-direita à extrema-esquerda. O PS tinha sido fundado em 1973, na Alemanha, por socialistas no exílio, entre eles Mário Soares, seu primeiro Secretário-Geral, e pretendia retomar a linha ideológica do antigo Partido Socialista Português, fundado por José Fontana no séc. XIX, situando-se à esquerda do espetro partidário. Esse Partido Socialista Português reivindicava-se como marxista, primeiro, e depois como proudhoniano e federalista. O novo PS de Mário Soares, na mesma linha de afastamento das correntes conservadoras, demarcou-se, reiteradamente, da social-democracia dos países nórdicos, quer antes, quer depois do 25 de Abril, por considerá-la gestora do capitalismo, afirmando que o exemplo a seguir em Portugal era o dos partidos socialistas do sul da Europa, nomeadamente do Partido Socialista francês e do Partido Socialista Operário Espanhol. A base ideológica e sociológica dos socialistas portugueses entronca, remotamente, nos liberais, que se opuseram aos absolutistas no séc. XIX, e, de entre estes, nos setembristas – a ala esquerda dos liberais, por oposição aos conservadores cartistas. Tendo como referência o período da primeira República, o PS liderado por Mário Soares revia-se no Partido Democrático de Afonso Costa, que resultou da ala esquerda do primitivo Partido Republicano, já existente nas últimas décadas da monarquia, e cuja ala direita viria a dar lugar aos unionistas de António José de Almeida. Este alargamento à Madeira dos partidos nacionais após o 25 de Abril tem, assim, precedentes na história, quer na Primeira República, quer ainda na monarquia, desde o início do séc. XIX, com as lutas liberais Para compreender a posterior evolução dos partidos na RAM, é necessário ter em conta dois fatores: o posicionamento ideológico e a relação entre o poder insular e o poder central, que se traduz nas ideias dicotómicas de centralização e descentralização do poder. A ideia de descentralização, que é comum ao território continental e insular do país, mas se exprime com especial acuidade no caso insular, sobretudo nos finais do séc. XIX, evolui para o conceito de autonomia, primeiro administrativa e depois política. A forma como o PS, na Madeira, se vai relacionar com estes dois vetores, o ideológico e o autonómico, aliada à realidade sociológica da RAM, é determinante para a compreensão da sua evolução política. Estabelecidos os vetores da filiação e identificação do PS com a sua base histórica, para a compreensão da sua inserção posterior na realidade sociológica das ilhas da Madeira e do Porto Santo, é necessário ainda conhecer os antecedentes imediatos do PS nacional, sobretudo seguindo os passos do seu fundador e líder histórico, Mário Soares. Desde o momento da fundação do PS em Bad Munstereifel, na então República Federal da Alemanha, a 19 de abril de 1973, até as primeiras inscrições de militantes madeirenses no PS, a 19 de setembro de 1974, e à visita de Mário Soares à Madeira, a 15 de fevereiro de 1975, há uma série de acontecimentos que vão condicionar decisivamente a vida futura do PS na Madeira e o colocarão, politicamente, entre uma extrema-esquerda, que o empurra para a direita, e uma direita sociológica que aceita abrigar-se sob a égide de um partido ideologicamente situado no centro-esquerda, o PSD, que vai retirar ao PS o lugar que, tradicionalmente, cabe aos partidos sociais-democratas, trabalhistas e socialistas europeus. Se, pela prática governativa – como a aplicação da reforma agrária, com a extinção do regime de colonia, e a implantação do estado social nas áreas da saúde e da educação –, os sociais-democratas na Madeira ocupam o espaço do PS, já do ponto de vista ideológico, o PSD situa-se, naturalmente, à direita dos socialistas. Como resultado, as classes médias e médias-altas urbanas e as populações rurais, veem no PSD a força política que pode servir de barreira à esquerda marxista, característica que o próprio PS reivindicava para si em manifestações de rua no Funchal Há um acontecimento que vai contribuir para conotar o PS local com as forças revolucionárias de extrema-esquerda. No dia 1 de março de 1975, um grupo de socialistas ocupou um edifício que tinha pertencido a uma instituição bancária, que será a sede do PS na Madeira até 1980. Este ato foi identificado pela população com as ocupações que, no mesmo ínterim, se faziam no Sul do País. Assim, e apesar de o PS nacional ser um partido historicamente defensor da descentralização, e garante constitucional das autonomias, que ficam consagradas na Lei Fundamental de 1976, o seu posicionamento ideológico na Madeira vai coloca-lo do lado do poder central e de setores de extrema-esquerda, visto que a autonomia aparece como uma das formas de resistir à deriva revolucionária que entusiasmava a esquerda e amedrontava a direita. É com este fundo histórico-ideológico que se deve perspetivar o percurso do PS na Madeira desde o 25 de Abril de 1974. A sua implantação dá-se entre 1976 e 1978, no auge da dicotomia entre o poder central e o poder regional, numa altura em que o PSD detém o poder na Região, ao passo que o PS é o partido maioritário na Assembleia da República Por outro lado, a permanente rotação na liderança constante também não ajudou à sua consolidação eleitoral, o que faz com que, entre 1974 e 2015, tendo embora exercido funções a nível municipal, este partido nunca tenha exercido funções de governo.       Miguel Luís da Fonseca (atualizado a 19.12.2017)  

Direito e Política

ribeiro real, visconde do

Visconde do Ribeiro Real. 1885. Arquivo Rui Carita João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo nasceu no Funchal, a 21 de dezembro de 1841, filho do morgado Francisco António de Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo e de Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo. Casando-se, a 24 de junho de 1882, já com mais de 40 anos, com Teresa da Câmara Carvalhal, filha do 2.º conde de Carvalhal, recebeu o título de visconde do Ribeiro Real. Passara, entretanto, pela Junta Geral e depois pela presidência da Câmara do Funchal, onde defendeu o caminho de ferro do Monte e acabou a construção do Teatro Municipal D. Maria Pia. Na sua vereação camarária ainda se fundou o corpo de bombeiros voluntários e procedeu-se a reformas urbanas na área do cemitério britânico, tendo hoje o seu nome o largo que fica mais a sul. Foi ainda cônsul de França e elevado a conde do Ribeiro Real, título que parece não ter usado. Faleceu em 1902. Palavras-chave: bombeiros voluntários; Câmara Municipal do Funchal; cemitério britânico; caminho de ferro do Monte; Teatro Municipal.     João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo nasceu no Funchal, a 21 de dezembro de 1841, filho do morgado Francisco António de Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo, de São Pedro, no Funchal, e de Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo, de Ponta Delgada. Casando-se, a 24 de junho de 1882, com Teresa da Câmara Carvalhal (1857-c. 1925), filha do 2.º conde de Carvalhal (1831-1888), recebeu o título de visconde do Ribeiro Real por decreto de 23 de março desse ano, sendo depois elevado a 1.º conde, por decreto de 16 de fevereiro de 1899, após a sua passagem pelo governo civil do Funchal, em 1897, como interino. Para além do cargo que ocupou na Junta Geral e da presidência da Câmara do Funchal, onde defendeu o caminho de ferro do Monte e acabou a construção do Teatro Municipal D. Maria Pia (Teatro Municipal), ocupou também o lugar de cônsul de França. O futuro visconde do Ribeiro Real deveria ser uma figura muito discreta e reservada, não sendo fácil recuperar o seu percurso político e social. Casou-se bastante tarde para a época, já passando dos 40 anos, não havendo descendência do seu casamento. A primeira referência política a seu respeito é como procurador da Junta Geral, quando se pronuncia sobre a lei de 13 de maio de 1872, que criara as bases da nova regulamentação. Como vogal, João Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo esteve na reunião de 11 de março de 1874 e na de 11 de abril seguinte, aprovando as alterações que o vogal do conselho de distrito, visconde de S. João, Diogo Berenguer de França Neto (1812-1875) mandou imprimir a 14 de abril desse ano. A sua ação mais relevante foi à frente da Câmara Municipal do Funchal, onde sucedeu ao sogro, 2.º conde de Carvalhal, que somente ocupara o lugar no quadriénio de 1882-1885 por ser, ainda, o maior proprietário latifundiário do Funchal, mas cujas funções tinham sido desempenhadas pelo vice-presidente, morgado João Sauvaire da Câmara e Vasconcelos (1828-1890). A partir de 1886, a Câmara do Funchal teve uma interessante atividade, entre outras coisas, acabando as obras do Teatro Municipal, apresentado aos funchalenses a 29 de julho de 1887, e inaugurado oficialmente a 11 de março de 1888. Nessa altura, teve o visconde de se defrontar com o primo, João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos (1829-1902), conde de Canavial e então governador civil, que queria ocupar o camarote da presidência, o que veio a acontecer, mas como convidado, pois o Teatro era propriedade da Câmara. A questão do camarote do Teatro ocupou então as primeiras páginas da imprensa da cidade. Foi durante a presidência do visconde do Ribeiro Real, quando tinha o pelouro dos incêndios o Dr. José Joaquim de Freitas (1847-1936), então também médico do hospital da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, que se fundaram os bombeiros voluntários do Funchal, serviço inaugurado oficialmente a 24 de setembro de 1888. A apresentação pública do inúmero material adquirido para esse serviço, de que existe abundante documentação fotográfica, foi feita junto à fachada do referido hospital, a 7 de abril de 1889. O primeiro quartel foi construído na antiga R. do Príncipe (assim designada em homenagem ao príncipe, depois D. João VI (1767-1826)), posteriormente R. 31 de Janeiro, passando, duas décadas depois, para a R. da Princesa (em referência a D. Carlota Joaquina (1775- 1830)), posteriormente R. 5 de Outubro. José Joaquim de Freitas era um republicano de arreigadas convicções (República), mas tal não obstou ao apoio que sempre lhe foi dado pelo visconde do Ribeiro Real, tendo-se registado, inclusivamente, um forte apoio das mais destacadas famílias funchalenses à criação dos bombeiros voluntários, existindo fotografias destes anos de inúmeros dos seus elementos fardados de bombeiros, independentemente da sua filiação partidária e, inclusivamente, nacionalidade; há mesmo fotografias de comerciantes britânicos, o que só se explica pelo apoio dado à iniciativa pelo visconde. João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo foi igualmente um dos principais impulsionadores do projeto do caminho de ferro do Monte, numa altura em que o projeto poderia ter sucumbido ao conflito de interesses entre os comerciantes britânicos radicados na Ilha e os financeiros alemães, que o apoiavam. Ao nível do Governo central, o apoio ao projeto não foi muito evidente, exceto na isenção de impostos que concedeu à Companhia do Caminho-de-Ferro do Monte, aquando da entrada na Alfândega do Funchal do material fixo e circulante para a via-férrea. O grande apoio partiu da Junta Geral, que adquiriu algumas ações, e, especialmente, da Câmara do Funchal, através do vereador João Luís Henriques e do presidente, o visconde do Ribeiro Real, tendo a Câmara adquirido 250 obrigações. As transformações ocorridas na malha urbana da cidade permaneceram e decorrem da urbanização envolvente do traçado da via-férrea e da montagem de uma série de instalações turísticas de apoio, como o Hotel do Bello Monte, e depois das instalações do Terreiro da Luta, consolidando a estruturação da freguesia de Santa Luzia e a ligação da cidade à freguesia do Monte, e contribuindo para a visão geral de anfiteatro que da encosta do Funchal. Foi também a vereação do visconde de Ribeiro Real que permitiu e apoiou a ampliação do cemitério britânico (Cemitério britânico), como contrapartida pela expropriação de uma faixa do terreno do mesmo. Foram então demolidas duas das vielas anexas entre aquele espaço e a R. dos Aranhas, do que resultou a R. 5 de Junho, depois R. Major Reis Gomes, onde viria a ser construído o largo com o seu nome. Os viscondes do Ribeiro Real habitaram o palácio de S. Pedro que, desde 1883, era partilhado com o Colégio de S. Jorge, dirigido pela futura M.e Mary Jane Wilson (1840-1916). Também ali faleceu, a 4 de fevereiro de 1888, o 2.º conde de Carvalhal, António Leandro Carvalhal Esmeraldo e, em 1897, ainda se instalou em parte do palácio o Clube Internacional. O visconde do Ribeiro Real seria elevado a conde do Ribeiro Real, a 16 de fevereiro de 1899, mas parece nunca ter usado o título, falecendo a 22 de março de 1902, altura em que se encontrava já retirado da vida pública, não havendo, por exemplo, qualquer referência a seu respeito na visita régia de junho de 1901. A condessa do Ribeiro Real, em 1921, deu início ao processo de venda do palácio, mas a mesma foi contestada pelos coproprietários, conde de Resende e família de Eça de Queiroz, descendentes de sua irmã, Maria das Dores Carvalhal (1855-1910). A a 20 de janeiro de 1923, a condessa mandou vender em leilão o recheio do palácio, momento em que se dispersou aquele importante espólio. Deverá ter falecido pouco depois dessa data. O espadim de honra do visconde do Ribeiro Real, como fidalgo da Casa Real, deve ter sido logo entregue à Câmara Municipal do Funchal, por legado do mesmo. A sua liteira, no entanto, com as armas de visconde envolvidas pelos atributos utilizados pela Câmara, um ramo de videira e outro de cana-de-açúcar, tal como o seu monograma, encimado por coroa de visconde, deve ter ido então a leilão, tendo passado a mãos particulares e depois ao Museu Quinta das Cruzes, sendo dos poucos exemplares deste tipo de transporte que sobreviveu. É provável que do leilão de 1923 tenha sobrevivido uma fotografia, onde aparece um dos dois óleos de Tomás da Anunciação (1818-1879), encomendados pelo 2.º conde de Carvalhal em 1865, e que fazem igualmente parte do acervo do Museu Quinta das Cruzes. No mesmo leilão deve ter sido vendido o retrato das duas filhas do 2.º conde de Carvalhal, depois depositado na Fundação Eugênia de Canavial.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

Direito e Política História Militar História Política e Institucional

grabham, george walter

George Walter Grabham foi um cientista madeirense reconhecido internacionalmente. Nasceu na freguesia de Santa Luzia, no Funchal, a 28 de junho de 1882. Era filho do médico Michael Comport Grabham, autor de vários livros, entre os quais um sobre a Madeira, e de Mary Anne Blandy Grabham, que pertencia a uma família ligada à produção e exportação de uma reputada marca do vinho madeirense. Estudou Geologia no University College School e no Saint John’s University College de Cambridge. Trabalhou na Geological Survey of Great Britain, na Escócia (1903-1906), e foi para o Sudão anglo-egípcio como geólogo oficial (1906-1930). Tornou-se membro da Royal Society of Edinburgh e da Geographical Society e foi agraciado com a Ordem do Império Britânico. Colaborou no Geology of Edinburgh and East Lothian, com o artigo “The Geology of the Neighbourhood of Edinburgh” (1910), no The Geology of the Glasgow District, (1911), no The Journal of Geology, na Geological Magazine, com o artigo “The Geology of Knapdale, Jura, and North Kintyre” (1911), no The Geology of Ben Nevis and Glen Coe – Memoirs of the Geological Survey, Scotland (1916), e na revista Nature. Publicou o seu trabalho “Esboço da Formação Geológica da Madeira” no Boletim do Museu Municipal. O seu interesse pela botânica levou-o a estudar as árvores da serra da Encumeada, em S. Vicente, na ilha da Madeira, concluindo que a sua antiguidade excedia os cinco milhões de anos. Faleceu no Sudão, a 29 de janeiro de 1955, tendo merecido notícia nos obituários do Geographical Journal, publicado por The Royal Geographical Society (com o Institute of British Geographers), no Stanford, K. S. Obituary, Proceedings of the Geological Society e no Proceedings of the Geologists Association. Obras de George Walter Grabham: “The Geology of the Neighbourhood of Edinburgh” (1910); “The Geology of Knapdale, Jura, and North Kintyre” (1911); “Esboço da Formação Geológica da Madeira” (1948).   António Manuel de Andrade Moniz (atualizado a 13.12.2017)

Biologia Terrestre Geologia

topografia marinha

A topografia marinha, também denominada relevo oceânico, refere-se aos diferentes relevos da crosta terrestre que se encontram debaixo do nível do mar. Os oceanos possuem uma estrutura comum e foram criados, sobretudo, por movimentos das placas tectónicas que cobrem a superfície da Terra e que são as mesmas que deram origem aos continentes. Na Terra, existem 15 placas principais e muitas mais placas pequenas. Estas placas são de dois tipos: as placas oceânicas – que estão totalmente cobertas pela crosta marinha – e as placas mistas – que estão cobertas em parte pela crosta oceânica e em parte pela crosta continental e que, ao se elevarem por cima do nível do mar, formam os continentes. Assim, a estrutura dos oceanos começa com a plataforma continental – a parte da placa continental que se encontra debaixo do nível do mar até aos 200 m de profundidade –, continua pelo talude continental – compreendido entre os 200 e os 4000 m de profundidade e que apresenta muitas formas de relevo: vales, montanhas e desfiladeiros submarinos – e termina na planície abissal com mais de 4000 m de profundidade. Existem, ainda, as dorsais oceânicas, grandes cadeias de montanhas submarinhas que atravessam os oceanos no meio dos continentes e que resultam do lento afastamento das placas tectónicas. Estas dorsais submarinas atingem elevações entre os 2000 e 3000 m por cima dos fundos oceânicos e possuem um sulco central, conhecido como rift, ao longo do qual são produzidas emissões de lava provenientes do magma que se encontra debaixo da superfície da terra.   Ilhas vulcânicas Ao contrário das dorsais oceânicas, que se originam nos limites das placas tectónicas, a origem das ilhas oceânicas é vulcânica, o que quer dizer que se formam através de um ponto quente (hotspot) devido à ascensão de magma, à maneira de um vulcão, resultando na formação de um monte submarino que depois cresce em virtude da atividade vulcânica até ultrapassar o nível do mar. Os arquipélagos são conjuntos de ilhas que se formam quando o mesmo hotspot origina uma cadeia de vulcões devido ao movimento da placa oceânica. As ilhas oceânicas, por definição, nunca estiveram em contacto com o continente, já que se originam da atividade vulcânica submarina, sendo assim diferentes das ilhas continentais, que têm uma conexão com o continente, embora estejam rodeadas de água. As maiores ilhas da Terra são de origem continental, e.g., a Grã-Bretanha, a Irlanda, a Gronelândia, Madagáscar, etc. As ilhas vulcânicas comportam-se de maneira similar a organismos biológicos, no sentido em que nascem, crescem, envelhecem e desaparecem. Assim, pode distinguir-se as seguintes fases no ciclo de vida das ilhas oceânicas: i) nascimento e construção submarina – o monte submarino forma-se no fundo oceânico como resultado do hotspot; ii) emersão e construção sobre o nível do mar – a ilha cresce pela sucessiva atividade vulcânica até atingir a sua máxima altura e área; iii) erosão e desmantelamento – os processos destrutivos, como a erosão, modificam fortemente o relevo e a ilha começa a diminuir o seu tamanho; iv) planície – devido à forte erosão, a ilha aparece como uma planície de baixa altitude sobre o nível do mar; v) desaparecimento – a ilha fica quase submersa; vi) guyot – torna-se num monte plano submarino. As ilhas que compõem um arquipélago, ao serem originadas pelo mesmo hotspot, têm diferentes idades e, por isso, encontram-se em diferentes fases deste ciclo de vida. Além da erosão, outros eventos catastróficos, como grandes escorregamentos de terra, colapso de caldeiras e/ou atividade vulcânica, também modificam a superfície e o tamanho de uma ilha.   Os arquipélagos da Madeira e Selvagens Os arquipélagos da Madeira e das Selvagens formam parte da região biogeográfica conhecida como Macaronésia, nome que provém do grego makarios, feliz ou afortunado, e nessos, ilhas. Esta região é composta por um conjunto de cinco arquipélagos localizados no oceano Atlântico: Açores, Madeira, Selvagens, Canárias e Cabo Verde, que possuem características ecológicas, florísticas e faunísticas comuns. Estes arquipélagos localizam-se na placa continental africana, com exceção dos Açores, que se encontram situados na confluência das placas africana, euro-asiática e americana. O arquipélago da Madeira é composto pelas seguintes ilhas: Madeira (com uma superfície de ca. 730 km2), Porto Santo (69 km2), situada 45 km a nordeste da Madeira, e três ilhas conhecidas como Desertas (15 km2 no total): Chão, Deserta Grande e Bugio, localizadas mais de 60 km a sudeste da Madeira. Este arquipélago está situado sobre uma crosta oceânica datada de cerca de 140 Ma de antiguidade, com cerca de 2000 m de profundidade e uma elevação máxima sobre o nível do mar que atinge os 1862 m no Pico Ruivo (Madeira). O arquipélago das Selvagens, por seu lado, é composto por três ilhas (cerca de 3 km2 no total): Selvagem Grande, Selvagem Pequena e ilhéu de Fora, e 16 ilhéus. Embora estes dois arquipélagos, Madeira e Selvagem, assentem na plataforma continental africana, o arquipélago da Madeira pertence à província vulcânica da Madeira, enquanto o arquipélago das Selvagens pertence à província vulcânica das Canárias (fig. 1). Isto quer dizer que a Madeira, o Porto Santo e as Desertas foram formados por um só hotspot, enquanto as Selvagens foram originadas pelo mesmo hotspot que deu origem às Ilhas Canárias. Fig. 1 – Mapa das províncias vulcânicas da Madeira e das Canárias, indicando as ilhas e os montes submarinos mencionados no texto. As linhas brancas transparentes mostram a provável rota do movimento do hotspot em cada província. Foto do Google Earth, modificada com base no trabalho de Fernández-Palácios et al., 2011. A província vulcânica da Madeira inclui, além das ilhas que atualmente compõem o arquipélago, outros montes submarinos, mais antigos, que outrora foram ilhas e que agora se encontram novamente submersos debaixo do nível do mar. Estes montes submarinos são: Ormonde, o mais antigo da província, com uma idade estimada de cerca de 60 Ma, Ampere e Coral Patch, de cerca de 30 Ma, e Unicorn e Seine, de cerca de 20 Ma (figs. 1 e 2). Durante o Terciário, estes montes submarinos eram ilhas que constituíam um arquipélago (Paleo-Madeira), podendo ter desempenhado um papel importante na dispersão da fauna e flora do continente para as ilhas e para o arquipélago canário. Atualmente, a ilha mais antiga desta província é Porto Santo, que se encontra já no estado de planície. A sua superfície tem sido bastante erodida, e a parte superior da ilha é plana, atingindo uma altitude máxima de 517 m (Pico do Facho). Aliás, calcula-se que o edifício vulcânico desta ilha possua uma volumetria total de 5000 km3, embora só cerca de 0,1 % seja visível sobre o nível do mar. As primeiras atividades vulcânicas na crosta oceânica, que deram origem ao Porto Santo, terão acontecido há 19-18 Ma, durante o Mioceno, embora a ilha só tenha emergido há 14-11 Ma. As Desertas, por seu lado, são um prolongamento do edifício vulcânico da Madeira, apesar de a ponte que as conecta estar debaixo do nível do mar e de a profundidade entre as ilhas ser de 200 m, dando a impressão de serem ilhas diferentes. A Madeira e as Desertas são as ilhas mais jovens do arquipélago com cerca de 5 Ma e encontram-se na fase de erosão e desmantelamento. As suas áreas e elevações foram maiores no passado, sendo atualmente os processos destrutivos mais fortes do que os processos construtivos, o que faz com que reduzam o seu tamanho cada vez mais. Atualmente, a volumetria deste edifício calcula-se em cerca de 9000 km3, embora a parte emersa constitua, em termos percentuais, só cerca de 4,2 %. O edifício Madeira-Desertas é diferente do edifício de Porto Santo e, apesar de estas ilhas estarem separadas por uma distância de só 45 km, o oceano entre elas apresenta profundidades superiores aos 2000 m.   Fig. 2 – Ilhas e montes submarinos da província vulcânica da Madeira. Os números entre parêntesis indicam os intervalos de atividade vulcânica e os números romanos, na parte inferior, indicam a fase do ciclo de vida em que cada elemento se encontra. Figura baseada no trabalho de Fernández-Palácios et al., 2011. Outro dos elementos da topografia marinha da província vulcânica da Madeira é, e.g., a ocorrência da denominada crista do Funchal, uma série de cones vulcânicos submarinos de 1,5-3 km de diâmetro e alturas até 600 m, alinhados a sul da ilha da Madeira, à altura da longitude do Funchal. Assim mesmo, é importante salientar a planície abissal da Madeira, localizada a uma distância de cerca de 600 km a oeste da Madeira, com uma extensão aproximada de 68.000 km2 e uma profundidade na ordem dos 5000 m. As Selvagens, por seu lado, são muito mais antigas do que as ilhas que compõem o arquipélago da Madeira e, como mencionado anteriormente, pertencem à província vulcânica das Canárias. As Selvagens assentam numa crosta oceânica datada de há cerca de 135 Ma, embora se calcule que as ilhas tenham emergido há cerca de 30 Ma e ainda tenham tido duas fases posteriores de atividade vulcânica, uma há 12-8 Ma e a última há cerca de 3 Ma. A Selvagem Grande é a maior ilha deste conjunto, apresentando uma superfície de cerca de 2,5 km2 e uma altitude máxima de 163 m (Pico da Atalaia). Esta ilha encontra-se na fase de planície. A Selvagem Pequena está na fase de desaparecimento, tendo uma superfície e uma altura variáveis consoante o nível do mar. Em média, a altitude desta ilha é de 10 m, embora o seu ponto culminante seja 49 m sobre o nível do mar (Pico do Veado). A sua superfície atinge os 0,65 km2 em baixa-mar. O ilhéu de Fora está localizado a oeste da Selvagem Pequena e, assim como esta ilha, também se encontra na fase de desaparecimento. A sua superfície é igualmente variável e o seu ponto mais alto está na cota dos 18 m.   Pamela Puppo (atualizado a 07.12.2017)  

Geologia Ciências do Mar

lei regional

O sistema vigente de repartição de competências legislativas entre o Estado e as regiões com autonomia político-administrativa Distribuição horizontal de competências: recomposição do modelo de lista plural Em termos de modelo de repartição de competências entre o Estado e as regiões autónomas (RA), o paradigma da lista plural conservou‑se com a revisão constitucional de 2004, mas com um retorno parcial à arquitetura primitiva consagrada em 1976, no sentido da equação de duas “listas” constitucionais de poderes, uma estadual e outra regional, às quais acresce uma terceira lista subconstitucional de enumeração de poderes regionais (com reservas ao sistema de listagem no período que antecedeu a revisão constitucional de 2004, veja-se Maria Lúcia Amaral, “Questões regionais e jurisprudência constitucional…”; já no sentido da admissão de um sistema de listas, no período posterior a esse ato de revisão, com uma lista regional desconstitucionalizada, veja-se a obra, da mesma autora, A Forma da República). Tratou‑se de um retorno apenas parcial à versão constitucional de 1976, na medida em que se passou, com a revisão constitucional de 2004, a atribuir expressamente aos Estatutos Político-Administrativos (EPA) das Regiões Autónomas um papel central na discriminação de matérias das respetivas competências, nas quais incidirão os poderes legislativos autonómicos de tipo comum. Deste modo, foi conservada na Constituição da República Portuguesa (CRP): uma listagem de matérias de competência estadual, exclusivamente reservadas aos órgãos de soberania (exceção feita a certas matérias da reserva de competência legislativa do Parlamento que são delegáveis nas regiões); uma listagem, por via remissiva, de matérias de competência legislativa regional com carácter delegado (art. 227.º, n.º 1, alínea b))complementar (alínea c)) do mesmo preceito, bem com um elenco de matérias de competência mínima (art. 227.º, n.º 1, alíneas i), j), l), n), p), e q)); e uma remissão importante das restantes matérias de virtual competência autonómica para uma terceira lista regional de natureza subconstitucional inscrita nos Estatutos (art. 227.º, n.º 1, alínea a) e art. 228.º, n.º 1), a qual coexiste num universo concorrencial com competências dos órgãos de soberania integradas numa reserva móvel. É neste domínio de concorrência paralela que confluem, em binários diferentes dentro de uma mesma matéria, o exercício das competências regionais comuns e o exercício de poderes soberanos. Há, contudo, que separar nessa mesma matéria do domínio concorrencial uma esfera ou nível de poder regional e uma outra esfera atribuída aos poderes do Estado.   Taxatividade da enumeração estatutária das matérias respeitantes à competência legislativa regional comum ou primária Outra regra estruturante da revisão constitucional de 2004, que reforçou a listagem das competências regionais comuns, resultou, no nosso entendimento, da imposição de uma taxatividade da enumeração constitucional e estatutária dos poderes legislativos das regiões (refira-se que Jorge Miranda, que sempre militou em favor de uma lista aberta, alterou posteriormente a sua posição em favor de uma enumeração estatutária taxativa). Essa taxatividade parece decorrer: (i) do proémio do n.º 1 do art. 227.º da CRP, confirmado pelo n.º 1 do art. 228.º, que reza: “A autonomia legislativa das regiões autónomas incide sobre as matérias enunciadas no respetivo estatuto político‑administrativo [adiante designado por Estatuto] que não estejam reservadas aos órgãos de soberania”. Ora, semelhante fórmula não deixa grande margem para o exercício de poderes legislativos de tipo comum fora do limite positivo e negativo do Estatuto. Isto, sem prejuízo dos poderes legislativos de tipo mínimo – referimo‑nos às escassas matérias de competência legislativa regional que se encontram dispersas no n.º 1 do art. 227.º e que se designam, por vezes, de “competências mínimas” e da faculdade de as regiões poderem desenvolver leis de base estaduais e regionais em domínio de competência concorrencial (alínea c) do n.º 1 do art. 227.º); (ii) da supressão da antiga alínea o) do art. 228.º, que permitia expressamente legislar fora das listagens constitucional e estatutária. Em face do exposto, crê‑se que será organicamente inconstitucional um ato legislativo das regiões que incida sobre uma matéria que, fora dos domínios respeitantes às alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 227.º da CRP, não seja previamente definida como de âmbito regional no Estatuto, já que não existe, diversamente do que sucedia no período que mediou entre as revisões constitucionais de 1997 e 2004, uma norma constitucional que habilite o exercício de poderes legislativos comuns fora das matérias que se encontram elencadas no marco estatutário. O n.º 2 do art. 67.º do Estatuto, na redação dada pela sua terceira revisão, “testou” essa taxatividade, estabelecendo uma cláusula residual habilitante do exercício de competências na área concorrencial fora do marco estatutário. O Tribunal Constitucional (TC), numa primeira argumentação translúcida, esquivando-se a uma pronúncia clara sobre a admissibilidade de uma cláusula residual e sobre a taxatividade estatutária (que passou a ser uma realidade à luz do n.º 1 do art. 228.º da CRP), acabou por admitir de algum modo essa mesma taxatividade mediante uma formulação lateral, aludindo ao novo papel central dos Estatutos na definição das competências regionais. Para o ac. n.º 402/2008, “o Tribunal entende, pois, que a cláusula geral do artigo 67.º, n.º 2, do Estatuto não cumpre satisfatoriamente o mandato constitucional a ele cometido, no que diz respeito à competência da Assembleia Legislativa, de definir e enunciar as matérias por ela abrangidas. Pelo seu teor irrestrito e indeterminado, com total omissão de qualificações materiais delimitadoras, ela não atinge o grau de densificação constitucionalmente exigível. Temo-la por ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da CRP”. Posteriormente, outros arestos do TC (acs. n.º 304/2011 e n.º 187/2012) tornaram ainda mais claro o papel incontornável dos Estatutos na definição das matérias de âmbito regional atribuídas à competência legislativa regional comum.   Cláusulas gerais Para o efeito dessa separação ou delimitação de domínios numa mesma matéria, torna‑se relevante o uso de limites à competência regional sediados em cláusulas gerais. Tal é o caso dos conceitos jurídicos indeterminados do “âmbito regional” e, segundo o entendimento do TC, da “reserva de competência dos órgãos de soberania” na sua variante móvel ou não expressa.   A substituição do limite positivo do interesse específico pelo conceito constitucional de “âmbito regional” A revisão constitucional de 2004 extinguiu o limite positivo do interesse específico (cláusula geral que operava como pauta de repartição horizontal ad casum dos poderes legislativos das regiões em matérias onde também incidiam os poderes do Estado), cessando um conceito indeterminado que permitia à justiça constitucional invalidar diplomas regionais que não dispusessem sobre matérias que apenas ocorriam na RA ou que aí tivessem uma especial configuração. A grande maioria das declarações de invalidade de atos legislativos regionais desde 1976 fundou‑se, precisamente, no vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação do interesse específico. Doravante, as regiões passam a legislar relativamente às matérias do universo concorrencial paralelo, no “âmbito regional”, uma medida de valor constitucional igualmente indeterminada que configura um novo critério de delimitação competencial. De acordo com o n.º 4 do art. 112.º, todos os decretos legislativos, independentemente do tipo de competência ao abrigo do qual são aprovados, “têm âmbito regional”. A expressão “âmbito regional” constitui, ainda assim, um conceito inovador indeterminado que se encontra sujeito ao teste da descodificação jurisprudencial.   O conceito comporta um elemento espacial e um elemento substancial. Trata-se de um limite mais linear do que o da noção de “interesse específico”, dado aludir fundamentalmente à projeção de uma dada matéria no âmbito geográfico ou espacial de uma RA. Assim, uma política pública que ocorra num domínio como o turismo deve decompor‑se, sob o ponto de vista legislativo, numa esfera geral de incidência estadual e numa esfera especial de carácter regional, sendo as mesmas reguladas por leis distintas. Apenas se a lei regional for revogada sem substituição ou se ostentar lacunas é que a lei geral aprovada pelo Estado poderá aplicar‑se na RA, já que aí vigora supletivamente (art. 228.º, n.º 2 da CRP) – no sentido de uma circunscrição predominante da noção de “âmbito regional” à dimensão espacial dada pelo elemento geográfico ou territorial são de referir Jorge Miranda e Rui Medeiros, que decantam a existência do que afirmam ser um “elemento institucional” que impeça, salvo disposição constitucional em contrário, os atos normativos dos parlamentos regionais de se projetarem em outras pessoas coletivas (MIRANDA e MEDEIROS, 2007, III, 351). O conceito pode sofrer um alargamento no plano substancial, ditado por exigências de especialidade. Na verdade, certos bens jurídicos e imperativos institucionais de alcance unitário e relevo imediato para todos os cidadãos, mas com repercussão no âmbito geográfico das regiões, podem carecer de um denominador comum à luz dos princípios da unidade e solidariedade nacionais (art. 225.º, n.º 2 da CRP), denominador que poderá ser negativamente afetado por legislação regional antitética passível de inviabilizar ou depreciar os próprios objetivos da lei do Estado e os interesses de toda a população residente em Portugal. Nessas circunstâncias, não seria improvável que o TC viesse a enxertar, na noção de “âmbito regional”, um limite simultaneamente negativo e positivo, soldado, no plano substancial, à ideia de especialidade regional dos bens e interesses tutelados. E que viesse a julgar a inconstitucionalidade de decretos legislativos regionais que projetassem indiretamente os seus efeitos fora desse âmbito. Ora, efetivamente, com o emblemático ac. n.º 258/2007, o TC procurou fixar o seu entendimento sobre a descodificação do conceito indeterminado de âmbito regional, em termos não muito distantes da sua primitiva noção de interesse específico. Assim, em primeiro lugar, o TC fez caber no conceito de “âmbito regional” a componente mais ampla da noção póstuma de “interesse específico”, na sua dimensão de interesse especial (como referimos em “As competências legislativas das regiões autónomas….”); o interesse específico desdobrava‑se numa componente de interesse exclusivo (matérias que apenas ocorrem nas RA) e numa componente de interesse especial (matérias que podem ocorrer nas demais partes do território, mas têm neste uma especial configuração). Reza a este propósito o acórdão citado: “Crê‑se não ser abusivo associar a expressão ‘âmbito regional’, para além de uma referência territorial, às expressões ‘matérias que dizem [digam] respeito às Regiões Autónomas’, constantes dos Projetos de revisão constitucional n.os 2/IX e 3/IX, definidas ‘em função da especial configuração que as matérias assumem na respetiva região’ (como se lê na exposição de motivos do Projeto de revisão constitucional n.º 1/IX), e surgindo aquela expressão como sucedânea da anterior menção a ‘matéria de interesse específico para as respetivas regiões’, ainda utilizada nos Projetos de revisão constitucional n.os 4/IX e 6/IX”. Em segundo lugar, o TC considerou que o critério geográfico deveria ser completado por um critério material. Segundo o ac. n.º 258/2007, “há, na verdade, que atender aos fundamentos, aos fins e aos limites que a Constituição assinala à autonomia regional, no seu artigo 225.º: os fundamentos dessa autonomia assentam nas características geográficas, económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da Madeira e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares; os fins consistem na participação democrática dos cidadãos, no desenvolvimento económico‑social, na promoção e defesa dos interesses regionais, mas também no reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses; os limites derivam da não afetação da integridade da soberania do Estado e do respeito do quadro constitucional. Assim, a circunstância de a legislação regional se destinar a ser aplicada no território da Região não basta, só por si, para dar por verificado o apontado requisito”. Ora, segundo o mesmo aresto, na componente material, avulta um critério negativo de acordo com o qual as leis regionais não podem afetar a ordem jurídica nacional “atentas as pessoas (designadamente, pessoas coletivas públicas) envolvidas e os interesses e valores em jogo”. Do que resulta que, mesmo que o ato legislativo regional se aplique apenas na RA, de acordo com o critério geográfico, violará o limite configurado pelo âmbito regional caso se projete sobre interesses e fins qualificados de ordem geral e unitária prosseguidos pelos órgãos de soberania, sendo para o efeito irrelevante que a matéria não figure expressamente na reserva de competência dos mesmos órgãos.   O limite da reserva de competência implícita dos órgãos de soberania O posicionamento do TC acabado de referir implicou uma retoma da tradicional construção de recorte centralista, tecida pelo mesmo órgão previamente à revisão constitucional de 2004 (ac. n.º 711/97), retoma essa que pressupõe o entendimento segundo o qual se se concluir, por aplicação do critério substancial da noção de âmbito regional, que as normas regionais dispõem sobre um domínio que se repercute ou projeta em questões de interesse ou fim público geral, elas serão organicamente inconstitucionais, na medida que invadem um domínio implícito da reserva de competência dos órgãos de soberania. O TC mantém a sua controvertida jurisprudência, no sentido de integrar, na reserva não expressa dos órgãos de soberania, os domínios materiais que requeiram a intervenção legislativa estadual em razão de exigências soberanas. Com efeito, a alínea a) do n.º 1 do art. 227.º da CRP veda às RA o poder de legislarem sobre matérias reservadas aos órgãos de soberania (sendo o mesmo preceito alterado pela revisão de 2004, que modificou a primitiva fórmula, “reserva própria” dos órgãos de soberania). Ora, tal como é sabido, o TC, antes da revisão constitucional de 2004, através de uma jurisprudência não isenta de polémica, integrava, na referida reserva, quer matérias expressamente reservadas aos órgãos de soberania (mormente nos arts. 164.º e 165.º da CRP, entre outros), quer matérias e domínios materiais não enumerados na CRP, sempre que, em nome dos princípios da unidade e da solidariedade nacional, aqueles detivessem um relevo imediato para todos os cidadãos (ac. n.º 348/93). Tratou‑se, no segundo caso, de um domínio móvel da reserva, que permitia, casuisticamente, ao Tribunal integrar, no binário soberano da concorrência paralela entre o Estado e as RA, áreas que ia entendendo serem de relevo unitário e, como tal, subtraídas à competência regional. Ter‑se‑á verificado uma jurisdicionalização subtil de um critério de mérito soldado à noção de interesse nacional ou de interesse coletivo unitário. O ac. n.º 258/2007 sustenta que “há que atentar que a matéria em causa, tendo uma natureza relacional, não se esgota nem pode ser perspetivada isoladamente a propósito da definição dos estatutos de cada uma das entidades envolvidas. O que ocorre é que, englobando nesse tratamento relacional titulares de órgãos de soberania, o órgão legislativo para tal competente não pode deixar de ser o legislador nacional, por ser o único que se situa numa posição de supraordenação relativamente a todas essas entidades. Trata‑se, assim, de matéria que, mesmo que se considere não incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, sempre reclamará a intervenção do legislador nacional, justamente por afetar o posicionamento institucional de entidades pertencentes a distintos poderes do Estado e outros corpos públicos, sendo certo que as reservas assinaladas a este entendimento ‘amplo’ da ‘reserva da República’, que padeceria de um ‘sincretismo de critérios’, se esbateram face ao desaparecimento do critério reportado ao respeito das leis gerais da República”. À luz dessa jurisprudência, haveria que considerar, uma vez mais, a existência, a par da reserva explícita ou listada dos órgãos de soberania, de uma reserva implícita dos mesmos órgãos, a qual incide sobre domínios materiais indeterminados da esfera concorrencial paralela entre o Estado e as RA, que se encontram subtraídos ao âmbito regional. Daqui se retirará que o conceito constitucional de “âmbito regional”, previsto no n.º 4 do art. 112.º da CRP, como limite fixado à legislação das RA, assume uma relação de estreita conexão com outro limite, também ele constitucional, que é o da reserva dos órgãos de soberania na sua dimensão implícita. Com efeito, relativamente a cada matéria da esfera de uma concorrência paralela ou complementar entre Estado e Região Autónoma existem dois âmbitos, um estadual e outro regional, cuja delimitação é operada através do recurso à convocação e à harmonização de medidas de valor, como o conceito de âmbito regional e os princípios da unidade e da solidariedade nacionais, que sustentam o recorte da reserva soberana. E, na verdade, se uma dada disciplina exceder os limites espaciais ou materiais do âmbito regional, enfermará de inconstitucionalidade orgânica por invasão de uma reserva (móvel) de competência dos órgãos de soberania, cujas fronteiras são recortadas por cláusulas gerais fixadas na CRP.   A distribuição vertical de competências legislativas regionais: a tipologia das competências legislativas das RA A distribuição vertical de poderes reporta‑se às modalidades de competências legislativas que as regiões podem exercer numa relação de observância dos limites de natureza unitária que as vinculam. Quanto a esses mesmos limites, verifica‑se que parâmetros da legislação autonómica que se retiram do processo de distribuição horizontal de poderes (como os do “âmbito regional” ou da “subsidiariedade”) se combinam com outros limites próprios da distribuição vertical e que resultam da projeção da hierarquia material de certas leis estaduais (estatutos, leis de autorização, leis de bases, leis‑quadro e regimes gerais) sobre diferentes categorias de leis regionais. Assim, cada tipo de competência legislativa regional se encontra pautado por limites gerais (como é o caso do âmbito regional) e limites específicos (o tipo e o regime operativo das leis parâmetro do Estado que os correspondentes atos legislativos regionais devem observar).   A competência legislativa comum Noção O poder legislativo em epígrafe encontra‑se previsto na alínea a) do n.º 1 do art. 227.º, em conjugação com o n.º 4 do art. 112.º e o n.º 1 do art. 228.º da CRP. Trata‑se da competência que tem por objeto o maior acervo de matérias sujeitas ao exercício de poderes legislativos regionais, e que uma parte da doutrina designa por competências “primárias” (MIRANDA e MEDEIROS, 2007, III, 307).   Critérios reitores do exercício da competência legislativa regional comum Os decretos legislativos regionais aprovados ao abrigo deste tipo de competência devem incidir sobre matérias enumeradas nos EPA, devem conter-se no “âmbito regional” e, ainda, respeitar a reserva explícita ou implícita de competência dos órgãos de soberania da república. Procurando explicitar esta asserção, importa destacar que a competência legislativa em epígrafe se exerce no respeito dos seguintes critérios: (i) a RA pode legislar apenas no “âmbito regional” (CRP, art. 112.º, n.º 4) decantado nas matérias enumeradas no correspondente EPA, o qual, depois de 2004, passou a constituir‑se inequivocamente como um ato‑condição dessa categoria de legislação regional, já que só os Estatutos podem definir o objeto material do exercício da competência legislativa comum; (ii) essas matérias disponíveis à regulação regional não podem invadir a reserva de competência dos órgãos de soberania; (iii) existindo, nestes termos, um fenómeno de confluência legislativa em domínios territoriais e substanciais da mesma matéria (concorrência paralela entre leis do Estado e da RA em matérias não reservadas expressamente aos órgãos de soberania), verifica‑se que, no contexto de uma dessas matérias (v.g., turismo, comércio ou artesanato), os decretos legislativos regionais disciplinam um domínio parcelar da mesma que corresponda ao seu “âmbito regional” e a legislação da República domínio remanescente situado fora do correspondente âmbito; (iv) a densificação do âmbito regional, em situações concretas e dilemáticas de fronteira com as competências soberanas, pode justificar a convocação do princípio da subsidiariedade, o qual permite que a regulação de um domínio em particular possa ser cometida às regiões no caso de se demonstrar que a lei regional (e o respetivo sistema de execução – cf. conexão entre a lei e a sua execução administrativa no plano da incidência do princípio da subsidiariedade na sentença n.º 303 de 2003, do TC italiano) exibe uma maior eficácia e adequação do que uma lei da república, na disciplina jurídica desse domínio; (v) a enumeração estatutária daquilo que eram, antes da revisão constitucional de 2004, matérias de interesse específico foi elaborada de forma excessivamente generalista e indeterminada (facto que não permitiu assegurar uma salvaguarda efetiva dos direitos regionais contra a compressão do poder legislativo estadual concorrente), parecendo não se ter apercebido o legislador autonómico que, caso consagrasse um mínimo de definição do núcleo de competência regional na lei estatutária, essa definição constituiria um defeso com eficácia relativa contra legislação invasiva de leis concorrentes do Estado (já que as leis estaduais devem respeitar os direitos regionais expressos em estatuto, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 281.º da CRP); (vi) a aprovação da terceira revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro), pese as suas graves deformidades constitucionais, corrigiu a insuficiência referida na alínea precedente, a qual sempre foi por nós sublinhada, tendo pormenorizado o objeto de cada matéria da reserva de competência legislativa regional, do que resultou uma maior garantia contra a intromissão indevida de leis da república; (vii) contudo, se é certo que a forma concreta como o âmbito de uma dada matéria atribuída ao poder legislativo regional se encontra definido no Estatuto Político-Administrativo pode assegurar uma maior garantia do exercício dos poderes regionais contra legislação estadual excessivamente densa ou intrusiva, certo é, também, que essa densificação estatutária deverá, ela própria, ser compatível com a noção constitucional de “âmbito regional”, não consistindo a enumeração estatutária uma salvaguarda absoluta em relação à contenção de cada diploma no limite positivo representado pelo referido âmbito – se as leis da república não podem revogar decretos legislativos regionais que disponham sobre matérias elencadas estatutariamente como de “âmbito regional” (sob pena de ilegalidade), o facto é que a própria definição do referido âmbito de uma dada matéria, no estatuto, deve ser conforme ao conceito constitucional de âmbito regional, o qual já foi objeto de uma caracterização exploratória por parte da justiça constitucional; assim, se a definição estatutária atribuir às regiões o poder de emitir legislação que exceda a esfera geográfica da RA e se repercuta, sem credencial constitucional habilitante, na esfera de poder de outras instituições não regionais ou, ainda, se puser em causa regimes jurídicos estatais que devam ter repercussão igual e mediata em todos os cidadãos, à luz dos princípios constitucionais da unidade, solidariedade nacional e subsidiariedade, ela será inconstitucional; (viii) embora as leis do Estado da esfera concorrencial possam circunscrever o seu âmbito de aplicação ao território continental, o facto é que não estão obrigadas a fazê-lo, podendo dispor em geral para todo o território nacional, não sendo por esse facto organicamente inconstitucionais com fundamento em invasão de domínios reservados à competência regional – um pouco à semelhança dos ordenamentos espanhol e italiano, a nova regra da supletividade acabou por afastar a relação de desvalor de inconstitucionalidade das leis estaduais que incidam sobre domínios materiais reservados à competência regional, em sede de concorrência paralela, já que, podendo os órgãos de soberania legislar para todo o território nacional, a sua legislação que incida sobre domínios de “âmbito regional” será apenas desaplicada pelo operador administrativo e jurisdicional, quedando‑se no status de direito supletivo; contudo, é defensável que legislação especial do Estado reportada às RA que intente revogar expressamente legislação regional emitida no âmbito reservado à competência dos entes autónomos poderá ser ilegal, com fundamento em violação de direitos regionais constantes do EPA (art. 281.º, n.º 1, alínea d)) –, devendo aplicar‑se nas RA como direito supletivo ou subsidiário (art. 228.º, n.º 2 da CRP); (ix) a aplicação subsidiária do direito dos órgãos soberanos terá lugar: sempre que a Assembleia Legislativa regional não fizer uso do seu poder legislativo; caso se verifique a revogação não substitutiva ou a caducidade de diplomas regionais em domínios que requeiram regulação; ou sempre que numa dada disciplina legislativa regional se registarem vazios regulatórios e lacunas em leis regionais (embora estas, a serem integradas pelos tribunais, devam ter em conta, preferentemente, o espírito da lei regional ou a reconstituição do pensamento do legislador regional).   As competências delegadas Objeto das autorizações legislativas à RA Os pressupostos constitucionais das autorizações legislativas oriundos da revisão constitucional de 2004 permitem às RA aceder a algumas das matérias da reserva relativa de competência da Assembleia da República previstas no art. 165.º da CRP, mediante delegação legislativa parlamentar, o que, na generalidade, representou um acréscimo de poderes legiferantes sobre matérias de indiscutível relevo político. Trata‑se de uma derrogação ao quadro geral do sistema de repartição horizontal de competências, dado que permite a disponibilização, às regiões, de algumas áreas da competência expressa dos órgãos de soberania. Muitas das matérias integradas na reserva relativa da Assembleia da República não se encontram disponibilizadas às RA. De acordo com a alínea b) do n.º 1 do art. 227.º da CRP, por força de remissão para disposições do n.º 1 do art. 165.º, excluiu‑se do objeto deste tipo de autorizações matérias da reserva relativa da Assembleia da República de mais evidente recorte unitarista ou relevo imediato e geral para todos os cidadãos, v.g.: estado e capacidade de pessoas; direitos, liberdades e garantias; definição de crimes, penas e medidas de segurança; regime geral do ilícito disciplinar; bases do sistema de Segurança Social e do Serviço Nacional de Saúde; criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas; composição do Conselho Económico e Social; sistema monetário e padrão de pesos e medidas; organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respetivos magistrados, bem como de entidades não jurisdicionais de composição de conflitos; estatuto das autarquias locais e regime das finanças locais; associações públicas, garantias dos administrados e responsabilidade civil da administração; bases do regime e âmbito da função pública; definição e regime dos bens do domínio público; regime dos meios de produção integrados no setor cooperativo e social de propriedade; regime e forma de criação das polícias municipais.   Trâmites e vicissitudes da autorização legislativa Nos termos do n.º 2 do art. 127.º da CRP, que, segundo alguma doutrina, integra o critério ou “cláusula de junção” (GOMES CANOTILHO, 2003, 813), as propostas de lei de autorização devem ser acompanhadas do anteprojeto do decreto legislativo regional a autorizar, o que representa um forte condicionamento do processo de delegação. As leis delegantes devem, nos termos da remissão feita pelo mesmo preceito para os n.os 2 e 3 do art. 165.º, conter os requisitos típicos das leis de autorização legislativa. De todo o modo, considera‑se, tal como já foi antecipado, que o legislador regional não se encontra vinculado a editar uma normação legal idêntica à do anteprojeto, contanto que o diploma legal por si aprovado se contenha nos limites da autorização. O anteprojeto constitui apenas uma formalidade instrutória de natureza obrigatória, que permite ao legislador parlamentar estadual balizar os parâmetros da delegação legislativa requerida pela RA. As autorizações caducam com o termo da legislatura ou a dissolução da Assembleia da República ou da Assembleia Legislativa da RA a que tenham sido concedidas (CRP, art. 127.º, n.º 3). Os decretos legislativos regionais autorizados devem invocar a correspondente lei de autorização e podem, ainda, ser sujeitos a apreciação da Assembleia da República, nos termos do art. 169.º com as devidas adaptações para efeitos de cessação de vigência (de acordo com o n.º 4 do art. 227.º). Considera‑se que não será admissível que a apreciação parlamentar nacional envolva alterações, já que tal implica uma intromissão constitutiva do Estado no exercício de uma competência reservada à RA, com a depreciação desta última, devendo entender‑se que a aplicação do art. 169.º da CRP às leis regionais delegadas, ao operar com adaptações, envolve a exclusão da possibilidade da apreciação parlamentar com emendas. Sendo a Assembleia da República o órgão normalmente competente e titular primário das competências delegadas nas RA e sendo a autorização legislativa uma delegação legislativa e não uma transferência de poderes, entende‑se que o Parlamento da República pode alterar a sobredita lei de autorização antes de a mesma ter sido esgotada e revogar o diploma autorizado, no quadro de uma avocação de poderes, idêntica ao que sucede com as autorizações legislativas ao Governo. Considera‑se, no entanto, que não poderá alterar o diploma regional. Na verdade, uma coisa será avocar os poderes delegados e proceder ao seu exercício pleno e outra, modificar o diploma regional, descaracterizando‑o e procedendo a uma estatização parcial de uma disciplina jurídica regional. O modelo horizontal e vertical de distribuição e repartição de competências entre Estado e RA revela ser incompatível com leis mistas, editadas pelas regiões no âmbito regional e alteradas pelo Estado no uso de uma espécie de “tutela corretiva” adaptava à função legiferante. Se a Assembleia da República fosse o órgão normalmente competente para revogar os decretos legislativos regionais por ela autorizados, deveria fazê‑lo expressamente, pois a simples emissão, pela mesma Assembleia, de legislação geral que seja superveniente à aprovação de um decreto legislativo regional autorizado não supõe a revogação deste, nos termos do princípio da especialidade que determina que lei geral não revoga lei especial, salvo vontade inequívoca do legislador nesse sentido. Do mesmo modo, a mera emissão de legislação geral do Estado, depois de aprovada uma lei de autorização à RA ainda não utilizada, não determina, só por si, a revogação tácita dessa autorização, podendo assumir a natureza de normação legal supletiva.   A competência complementar A competência a que se refere a alínea c) do n.º 1 do art. 227.º da CRP reporta‑se ao desenvolvimento para o âmbito regional dos “princípios” ou das “bases gerais dos regimes jurídicos” contidos em leis que aos mesmos se circunscrevam. Corresponde a mesma à faculdade de desenvolver e concretizar o conteúdo de leis de bases e leis de enquadramento e ditar disciplinas legais de conteúdo especial não contrárias a regimes gerais da reserva da Assembleia da República. No texto constitucional anterior à revisão de 2004, as Assembleias regionais poderiam desenvolver, quer leis de bases relativas a um domínio concorrencial indeterminado (matérias não reservadas à competência da Assembleia da República), quer as bases gerais reportadas a algumas matérias da reserva relativa daquela Assembleia. O novo regime constitucional permite, em abstrato, o desenvolvimento para o âmbito regional de qualquer base geral, sem aceção de matéria, abrangendo, em tese, quer as áreas concorrenciais, quer os domínios da reserva absoluta ou relativa da Assembleia da República, quer ainda matérias cobertas por decretos legislativos regionais de bases. Doravante haverá a considerar as seguintes leis parâmetro, para efeito do exercício de competências legislativas regionais complementares: (i) leis de bases (bem como leis de enquadramento e regimes gerais) da reserva dos órgãos de soberania de alcance geral e aplicáveis a todo o território nacional; (ii) leis de bases respeitantes a matérias não reservadas aos órgãos de soberania, com âmbito geral; (iii) decretos legislativos regionais de bases, nomeadamente os habilitados por uma lei de autorização legislativa dos órgãos de soberania. O presente enunciado permite, em tese, o desenvolvimento de bases em todas as matérias relativamente às quais estas sejam passíveis de edição, nomeadamente as matérias de reserva absoluta. Não se exclui, e.g., que, no âmbito regional, os entes autonómicos desenvolvam as bases gerais da reserva absoluta de competência da Assembleia da República, tais como as “bases gerais da organização, do funcionamento, do reequipamento e da disciplina das Forças Armadas” e as bases do Sistema de Ensino (cf. o ac. n.º 262/2006, onde se reconhece esta faculdade). Embora, no primeiro caso, razões lógicas de ordem unitária (excedência do “âmbito regional”) mandem que se tenha como proibido esse desenvolvimento, o mesmo já se não passa no segundo, pese o facto de causar alguma perplexidade a admissibilidade de diversos regimes legais de detalhe entre o continente e os territórios dos arquipélagos, em relação a uma matéria de evidente interesse e relevo para a unidade nacional. O desenvolvimento das bases do art. 164.º da CRP deveria encontrar‑se vedado às RA. Considera‑se, contudo, que, depois da revisão constitucional de 1997, as RA não poderão, na falta de bases gerais previamente editadas pelos órgãos de soberania sobre matérias reservadas à Assembleia da República, legislar apenas com referência a princípios gerais decantados ou deduzidos pelos órgãos regionais da legislação estadual comum, dado que essas leis de bases são legislação‑pressuposto dos atos legislativos complementares autonómicos que as deverão necessariamente invocar (CRP, art. 227.º, n.º 4). O contraponto desta ampliação dos poderes regionais no desenvolvimento das bases gerais dos regimes jurídicos consiste na faculdade de os órgãos de soberania ditarem leis de bases fora da respetiva reserva, ou seja, no universo concorrencial, as quais, no nosso entendimento (que, no entanto, não foi seguido na terceira revisão do EPARAA), deverão ser respeitadas por toda a legislação regional emitida ao abrigo da competência comum.   As competências residuais ou mínimas Trata‑se das faculdades legislativas diretamente exercitáveis a partir de diversas alíneas do n.º 1 do art. 227.º da CRP, encontrando‑se os mesmos poderes misturados com outros de natureza administrativa. Uma destas responsabilidades regionais assume carácter tendencialmente primário, tendo a CRP como uma base fundamental de referência: é, numa primeira leitura, o caso da elevação de povoações à categoria de vilas ou cidades (art. 227.º, n.º 1 alínea m)). Outras exercem‑se no respeito de leis estaduais paramétricas: é o caso de leis relativas à disposição do património, as quais são instrumentais em relação à lei prevista na alínea v) do art. 165.º da CRP no respeitante ao regime dos bens do domínio público (art. 227.º, n.º 1, alínea h)); da criação, extinção e modificação da área das autarquias, a qual deve observância à lei prevista na alínea n) do art. 164.º; do exercício de poder tributário próprio, de acordo com as leis previstas na alínea i) do n.º 1 do art. 165.º (art. 227.º, n.º 1, alínea i)); e da aprovação do orçamento regional, na observância do regime legal constante da alínea s) do art. 164.º (art. 227.º, n.º 1, alínea p)).   A competência relativa à transposição de diretivas da União Europeia Com a revisão constitucional de 2004, corrigiu‑se o excesso da revisão constitucional de 1997, que vedava a transposição de diretivas da União Europeia por ato legislativo regional e depreciava a sua esfera de competência legislativa. A nova redação do n.º 8 do art. 112.º da CRP permite à RA transpor, mediante decreto legislativo regional, diretivas em matérias situadas fora da reserva de competência dos órgãos de soberania que sejam reconhecidas, através das listagens constitucional e estatutária, como fazendo parte do âmbito regional.   Síntese sobre as relações de tensão entre atos legislativos do Estado e da RA Volvida a eliminação das leis gerais da república, as quais geraram complexas dúvidas sobre o seu regime de prevalência em relação aos atos legislativos regionais, o quadro das relações inter-legislativas entre o Estado e as RA ficou simplificado com a revisão constitucional de 2004.   Solução de antinomias no plano jurisdicional Os tribunais comuns dispõem de uma ampla margem de competência para solucionar antinomias derivadas das relações entre as leis do Estado e das RA, a qual lhes é dada pelo art. 204.º da CRP, que os investe no direito‑dever de desaplicar normas inconstitucionais, e pelo art. 280.º, que confirma a mesma regra e a alarga à faculdade de desaplicarem leis estaduais e regionais violadoras de normas legais com valor reforçado. Caem, nomeadamente, no âmbito das desaplicações legais fundadas em juízos de inconstitucionalidade: (i) a violação do objeto e extensão (inconstitucionalidade orgânica) e duração (inconstitucionalidade material) das leis de autorização legislativa por decretos legislativos regionais autorizados); (ii) a incursão de norma legal do Estado ou de decreto legislativo regional, na reserva do Estatuto (inconstitucionalidade formal); (iii) a violação do limite positivo do “âmbito regional” por decreto legislativo regional que invada no campo vedado das competências expressamente reservadas aos órgãos de soberania, ou do âmbito da concorrência entre o Governo e a Assembleia da República ou no âmbito da competência da outra RA (inconstitucionalidade orgânica). Os tribunais podem, no quadro de antinomias que impliquem uma violação ao conteúdo de leis com valor reforçado, julgar a ilegalidade de: (i) decretos legislativos regionais que ofendam as normas paramétricas constantes das bases gerais dos regimes jurídicos, leis de enquadramento, regimes gerais da reserva da Assembleia da República ou de outras leis com valor reforçado que os vinculem especificamente; (ii) normas que definem o sentido das leis de autorização legislativa (sem prejuízo de, discutivelmente, o TC aferir esta antinomia em sede de inconstitucionalidade orgânica, em cumulação com a violação do objeto e da extensão); (iii) leis dos órgãos de soberania que ofendam direitos regionais constantes dos Estatutos de autonomia e decretos legislativos regionais que violem o disposto nos referidos Estatutos. Colocam‑se dúvidas a respeito de colisões entre decretos legislativos regionais que incidam sobre matérias do âmbito regional e leis dos órgãos de soberania respeitantes a matérias situadas fora da sua reserva explícita de competência legislativa. Os tribunais devem, de acordo com o critério da especialidade, articulado com o critério da competência, dar aplicação preferencial, nas RA, à lei que contenha uma disciplina particular e cuja esfera de aplicação se circunscreva necessariamente ao âmbito das RA, sendo essa lei o decreto legislativo regional. Em consequência, a lei do Estado terá a sua eficácia bloqueada ou suspensa nas RA sempre que tiver preferência um decreto legislativo regional sobre a mesma matéria. Contudo, nos termos do n.º 2 do art. 228.º da CRP, a lei estadual vigorará supletivamente nas RA e poderá ser aplicável na falta de legislação regional (caso de não emissão de legislação autonómica, caducidade, revogação puramente supressiva ou declaração de invalidade sem repristinação de diplomas regionais antecedentes).   Solução de antinomias legislativas pelo operador administrativo A Administração Pública, estadual e regional, não tem competência para solucionar antinomias impróprias, ou seja, para desaplicar leis com fundamento em inconstitucionalidade ou ilegalidade, sem prejuízo de, num quadro de antinomia, a administração estadual periférica se dever abster de aplicar leis regionais que disponham sobre as matérias da reserva expressa de competência da Assembleia da República e do Governo, onde não existe concorrência e os atos regionais se encontram absolutamente vedados. Daí que, salvo situações excecionais, em que as normas da CRP se apliquem diretamente, e na falta de cláusulas constitucionais de solução imediata de conflitos, a Administração Pública deva conferir, nas RA, como decorrência do princípio da especialidade, aplicação prevalecente aos diplomas regionais sobre os estaduais, no âmbito das matérias situadas fora da esfera da reserva.     Carlos Blanco de Morais (atualizado a 11.02.2017)

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