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vasconcelos, joão da câmara leme homem de, visconde e conde do canavial

A vida política, económica e social madeirense foi marcada no último quartel do séc. XIX pela personalidade conflituosa do futuro conde do Canavial, Dr. João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos. Filho do morgado António Francisco da Câmara Leme Homem de Vasconcelos e de Carolina Moniz de Ornelas Barreto Cabral, nasceu no Funchal a 22 de junho de 1829, foi simultaneamente clínico, professor, funcionário público, homem de ciência, jornalista e escritor, político e industrial, em todas essas ocupações revelando interessantes qualidades e capacidade e de trabalho, mas também uma personalidade algo conflituosa. Foi autor de uma vastíssima produção literária, quer científica, quer política, que é difícil trabalhar de forma científica, pois nem sempre se consegue separar o que era polémica científica e industrial do que eram atitudes políticas e pessoais. Concluídos os estudos secundários no Funchal, veio a formar-se em medicina pela Universidade de Montpellier, em França, bacharelando-se em 1852 e doutorando-se em 1857, colaborando ali em vários periódicos, fazendo traduções e tendo obtido o lugar de membro da Academia das Ciências e Letras daquela cidade. Começou assim logo por desenvolver um notável trabalho científico na sua área de especialidade a que, regressado à Madeira, juntou também a de investigador da área científico-industrial de tratamento do vinho da Madeira, de que era um dos mais importantes produtores. O Dr. João da Câmara Leme, regressado de França, fez em 1859 repetição dos seus atos académicos na Escola Médica de Lisboa, sendo no ano seguinte nomeado demonstrador de anatomia da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal e, em 1867, professor proprietário. No ano seguinte, editava logo um Relatório e Projecto de Regulamento para a Escola Médico-Cirúrgica do Funchal (1868), entrando de imediato em conflito com o Dr. António da Luz Pita (1802-1870), então deputado em Lisboa, polémicas que se prolongaram pelos anos seguintes. Escrevem os autores do Elucidário Madeirense, que o conheceram pessoalmente, que “teve de sustentar algumas lutas com os seus colegas no magistério, publicando a tal respeito dois grandes volumes, que, apesar da parcialidade com que possam porventura estar escritos, são trabalhos de incontestável valor” (SILVA e MENESES, 1998, I, 232). Paralelamente à sua atividade como médico e diretor da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal, promoveu ainda a fundação da Companhia Fabril de Açúcar Madeirense (CFAM), com sede junto à ribeira de São João, onde introduziu notáveis aperfeiçoamentos nos processos destinados ao fabrico da aguardente, essencialmente no sentido de um melhor aproveitamento da matéria-prima empregue. Registou de imediato patente da sua invenção, o que deu lugar a uma série de contestações e polémicas, voltando a, sobre esse assunto, publicar inúmeros folhetos. Na polémica viria a entrar outra das grandes figuras da Madeira do seu tempo, o depois comendador William Hinton (1817-1904), a qual polémica, embora não só, veio a inviabilizar alguns anos mais tarde a Companhia da ribeira de São João. A constituição e vida da CFAM, liderada pelo futuro visconde do Canavial, foi um bom exemplo do quadro geral em que se desenvolveu a atrasada revolução industrial na Madeira. Beneficiando do inegável espírito empreendedor do promotor, mas também da sua teimosia e, inclusivamente, de um experimentalismo algo deslumbrado, sempre à procura de uma nova tecnologia, e sem bases técnicas e científicas para tal, a vida da Companhia foi confrontada com a concorrência feroz dos comerciantes britânicos instalados na Madeira. A todo este quadro, juntaram-se as dificuldades de associação e de entendimento dos proprietários madeirenses, muito provavelmente ainda politicamente agudizadas pelos antigos morgados, entretanto radicados no espaço continental. Os estatutos da CFAM só foram aprovados em 1867, arrastando-se a constituição da Companhia por mais de 10 anos, o que implicou que a fábrica de São João só entrasse em funcionamento em 1871. O futuro visconde apetrechou-a com sofisticada aparelhagem, a que ainda associou outros aperfeiçoamentos da sua autoria, de que imediatamente registou a patente. No entanto, não só William e o filho Harry Hinton (1859-1948) vieram a contestar o registo dessa patente, como a sofisticada aparelhagem acabou por não se mostrar rentável. A 26 de agosto de 1878 foi solicitada a intervenção do Banco de Portugal por insolvência financeira da CFAM. A ideia voltou a aparecer em 1892, tomando como exemplo a Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal, chegando-se mesmo a propor em reunião camarária, de 11 de outubro desse ano, um subsídio anual de 100 mil réis e que a nova associação fosse presidida pelo conde do Canavial. Mas tal como já se inviabilizara o anterior projeto da fábrica de São João, também a associação se extinguia em 1902. Em 7 de setembro de 1876, organizava-se a partir do Pacto da Granja, no continente, uma nova fusão, então entre elementos das antigas formações histórica e reformista, de que nasceu o Partido Progressista, de Anselmo José Braamcamp, que foi o primeiro partido no sentido moderno do termo com programa, apresentando um regulamento interno, com assembleia geral e centros locais. O líder na Madeira viria a ser o Dr. João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos, depois visconde do Canavial, aderindo ao partido parte dos antigos membros do Partido Fusionista e do Regenerador. O Partido Fusionista teve como órgão o Correio do Funchal, substituído depois pelos periódicos A Fusão, A Voz do Povo e A Imprensa Livre. Em meados de 1879, com a queda do executivo, saía da Madeira o governador e conselheiro Afonso de Castro, logo assinando, a 21 de julho, a correspondência do governo civil, como membro do conselho do distrito, João da Câmara Leme, como visconde do Canavial, embora a 28 de agosto já não o faça, só voltando a assumir-se como visconde a partir de agosto do ano seguinte. Estranhamente, não se encontra qualquer documentação oficial da sua nomeação como visconde, mas apenas o dec. de 22 de abril de 1888, que o nomeia como conde, citando-se ainda a carta de 28 de março e o alvará de “mercê nova” de 15 de dezembro de 1888 (CLODE, 1983, 107), não havendo contudo confirmação alguma na chancelaria régia. A partir de então, desenvolveu o futuro visconde uma verdadeira campanha para vir a ocupar o lugar de governador civil do Funchal, assim como para passar a utilizar o título de visconde do Canavial. A luta política deve ter sido terrível, a avaliar logo pelos membros do conselho do distrito que assinam alternadamente a correspondência como governador substituto: o visconde do Canavial a 21 de julho e o morgado Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880) a 30 do mesmo mês. Luta que deve ter tido eco também nos corredores do poder em Lisboa, até pela utilização então intensiva do telégrafo submarino, através da Madeira Station no Funchal da Brazilian Submarine Telegraph Company Limited. A nomeação de João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos como governador substituto para o distrito do Funchal só viria a ser assinada a 30 de julho de 1879. O decreto terá chegado ao Funchal poucos dias depois e o futuro visconde, a 8 de agosto, logo emite proclamação impressa e inflamada ao sabor de alguns dos governadores anteriores, que eram, no entanto, efetivos, pois nenhum até então tinha feito especial alarido com o facto de ser “governador substituto” (ARM, Alfândega do Funchal, liv. 683). O novo governador substituto teria alguns curtos meses de estado de graça, pois em breve O Direito o acusava de se encontrar a receber três ordenados: o de governador substituto, o de professor da Escola Médico-Cirúrgica do Funchal e o de delegado de Saúde. A 15 de fevereiro, o governador distribuía um comunicado com um desmentido atestado pelo delegado do Tesouro em como, passando a receber o ordenado de governador substituto, suspendera os outros. O futuro visconde do Canavial não seria confirmado naquela altura, pois, caindo o gabinete progressista em Lisboa, o novo gabinete regenerador demitiu de imediato os governadores civis progressistas e, a 26 de abril de 1881, já assina a correspondência do Funchal o vogal do Concelho do Distrito servindo de Governador Civil, João Maria Curado de Vasconcelos (1825-1896). A breve trecho, um autêntico terramoto político varreria o país, com epicentro na Madeira: a eleição do Dr. Manuel de Arriaga, candidato pelo Partido Republicano às cortes, a 26 de novembro de 1882, em eleições suplementares, dado o falecimento do deputado madeirense Dr. Luís de Freitas Branco (1819-1881). Ainda antes do anúncio oficial do apoio dos regeneradores ao líder do Partido Progressista, já O Direito alardeava não poder haver qualquer compromisso com os progressistas, temente, talvez, de ver candidatar-se pela Madeira o visconde do Canavial, até há pouco governador civil substituto do Funchal. Numa intensa campanha ao longo do ano entre os partidos monárquicos, acabou por ser eleito na Madeira o candidato republicano. Nos inícios do ano 1886, o presidente do ministério Fontes Pereira de Melo propunha um adiamento das eleições, para poder organizar uma série de diferendos, o que se estava a tornar um crescente motivo de tensão entre governo e oposição. O rei D. Luís não acedeu à proposta do chefe do governo, pelo que Fontes se viu na contingência de ter de pedir a demissão do gabinete. Foi então chamado ao governo o Partido Progressista, liderado por José Luciano de Castro, mas o início do novo governo progressista foi ocupado com as complicadas negociações que levaram ao casamento do príncipe herdeiro D. Carlos, atrasando uma série de nomeações. Teria sido o caso da nomeação do governador civil do Funchal, para o então líder dos progressistas, visconde do Canavial, lugar que só foi preenchido por dec. de 1 de julho de 1886. Após as eleições de março de 1887, o governador civil, visconde do Canavial, iniciou a convocação das eleições das juntas de paróquia, que somente ocorreram no Funchal e em Machico. O visconde do Canavial insistiu nas convocatórias por três vezes, sem resultado, essencialmente pelos custos que mais uma estrutura política acarretava, mas também por causa da conotação com a divisão eclesiástica tradicional e da ideia rural de que a paróquia era dirigida pelo “senhor pároco” ou “senhor vigário” e não por um elemento eleito entre os “senhores morgados”. A pressão do visconde do Canavial conduziu a um levantamento geral na ilha, que, começando nos meios rurais, quase envolveu o Funchal: a Parreca. Perante a contestação geral, mas só depois de muito pressionado, o visconde do Canavial veio a apresentar demissão a 26 de março de 1888, tendo sido entregue o governo ao visconde da Calçada, Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão e Figueiroa (1812-1902). Apesar das dificuldades do seu governo e dos resultados da comissão de inquérito à Parreca, seria elevado a conde do Canavial no final desse ano de 1888, embora se desconheça a documentação oficial, como mencionámos acima. O conde do Canavial viria a falecer na sua residência, à rua da Carreira, a 13 de fevereiro de 1902. Quase 20 anos depois, surgiu a ideia de se levantar um monumento à sua memória, iniciativa de Abel Capitolino Batista; o trabalho foi entregue ao jovem escultor macaense Raul Xavier (1894-1964) e erguido sobre plinto de mármore branco, projeto do arquiteto Fernando Pires. A primeira pedra foi lançada a 1 de dezembro de 1921 e o monumento inaugurado a 2 de março de 1922, no passeio público, frente à sé do Funchal, tendo usado da palavra Horácio Bento de Gouveia (1901-1983), em nome dos alunos do liceu (Diário de Notícias, 22 fev. 1922). A inauguração do monumento naquela altura e naquele local levantou enorme celeuma, dado o seu enquadramento monárquico, vindo a ser transferido para o Campo da Barca, a 6 de dezembro de 1932.     Rui Carita (atualizado a 31.12.2016)

Ciências da Saúde História Económica e Social História Política e Institucional Personalidades

povoamento

O povoamento da Madeira destaca-se, no contexto da expansão europeia, como o primeiro ensaio de processos e técnicas que serviram de base à afirmação dos portugueses no espaço atlântico: aí se lançaram as bases sociais e económicas do mundo atlântico. Com efeito, tratou-se de um processo de povoamento e não de colonização, porque a Madeira e Porto Santo não eram habitadas. A tradição refere abordagens anteriores, mas sem continuidade no tempo: estas aconteceram a partir da década de vinte do séc. XV. A forma de ocupação e valorização económica da Madeira foi ao encontro das solicitações da conjuntura interna do reino e do espaço oriental do Atlântico, surgindo como resposta à disputa das Canárias e à necessidade de encontrar um ponto de apoio para as operações ao longo da costa africana. Palavras-chave: descobrimentos; capitanias; sociedade; economia.   O povoamento e o processo de valorização económica da Madeira destacam-se, no contexto da expansão europeia, como o primeiro ensaio de processos, técnicas e produtos que serviram de base à afirmação dos portugueses no espaço atlântico. Com efeito, foram aí lançadas as bases sociais e económicas do mundo atlântico. Tratou-se, assim, de um processo de povoamento e não de colonização, porque, na verdade, a Madeira e o Porto Santo não eram ilhas habitadas e houve necessidade de proceder à humanização de ambos os espaços insulares. A tradição refere abordagens anteriores, mas sem continuidade no tempo, como aconteceu a partir da déc. de 20 do séc. XV. A forma de ocupação e valorização económica da Madeira foi ao encontro das solicitações da conjuntura interna do reino e do espaço oriental do Atlântico, surgindo como resposta à disputa das Canárias e à necessidade de encontrar um ponto de apoio para as operações ao longo da costa africana. Zurara faz eco disso ao referir que as embarcações portuguesas faziam escala obrigatória na Madeira, onde se proviam de “vitualhas nas ilhas da Madeira, porque havia aí já abastança de mantimentos” (ZURARA, 1841, 163-164). Os testemunhos dos cronistas são taxativos quanto à inexistência de população em solo madeirense. Assim, para além das referências à abordagem do Porto Santo por castelhanos que aí faziam carnagem, vindos das Canárias, e da presença de Machim na baía de Machico, nada mais indiciava ter havido antes uma preocupação de humanização destas ilhas. Cadamosto afirma mesmo “que fora até então desconhecida” e que “nunca dantes fora habitada” (VIEIRA, 1994, 40). Idêntica é a opinião de Jerónimo Dias Leite, ao referir que perante os navegadores se deparava uma “terra brava e nova, nunca lavrada, nem conhecida desde princípio do mundo até àquela hora” (Id., Ibid.). Todos os autores coevos que se ocupam do tema são unânimes em considerar o povoamento da Madeira como obra portuguesa, tendo como dirigente o infante D. Henrique, apoiado em João Gonçalves Zarco, com ou sem a colaboração de Tristão Vaz Teixeira. Para os cronistas, tudo começou no verão de 1420, com a expedição comandada por João Gonçalves Zarco que tinha como objetivo dar início à ocupação da Ilha. Acompanhavam-no Tristão Vaz, Bartolomeu Perestrelo e alguns homiziados que “queriam buscar vida e ventura foram muitos, os mais deles do Algarve” (Id., Ibid.), segundo afirmam Jerónimo Dias Leite e Gaspar Frutuoso. Não há consenso quanto à data em que o solo da Ilha começou a ser desbravado pelos primeiros colonos europeus. Alguns cronistas e a tradição são unânimes em afirmar o ano de 1420. O infante D. Henrique declarava, em 1460: “comecei a povoar a minha ilha da Madeira haverá ora XXXV anos” (Id., Ibid., 37), isto é, a partir de 1425, data em que terá iniciado o povoamento desse território. Mas, na doação régia de 1433, o monarca afirmara “que agora novamente o dito infante por nossa autoridade povoa” (Id., Ibid., 39). Quererá isto dizer que o infante só então assumiu o comando do processo? Não. Pelo menos esta não é a opinião do infante que, nas cartas de doação das capitanias, apresenta João Gonçalves Zarco, Tristão Vaz e Bartolomeu Perestrelo como os primeiros povoadores e por seu mandado. Só podemos falar de povoamento a partir de 1425 ou 1433, contrariando a opinião dos cronistas? A resposta também parece ser negativa, à luz do que nos dizem os documentos. Temos primeiro a sentença do duque D. Diogo, de 6 de fevereiro de 1483, que refere que “podia haver cinquenta e sete anos, pouco mais ou menos, que a essa Ilha fora João Gonçalves Zargo, capitão que fora nessa Ilha, levando consigo sua mulher e filhos e outra gente” (Id., Ibid., 43). Depois, outra sentença de Diogo Pinheiro, vigário de Tomar, em 1499, afirma: “poderá bem haver oitenta anos que a dita Ilha era achada pouco mais ou menos e se começara a povoar” (Id., Ibid.). A última versão é corroborada em 27 de julho de 1519, por acórdão da Câmara do Funchal, em que se dá conta do início do povoamento “há cem anos atrás” (Id., Ibid.). Os documentos oferecem diversas versões. O primeiro coincide com a data apontada pelo infante, o segundo corrobora os cronistas. Face a esta divergência de datas, a única conclusão possível é de que o povoamento efetivo terá começado a partir de finais do primeiro quartel do séc. XV. Com a distribuição das terras pelos três povoadores, as ilhas do Porto Santo e Madeira ficaram divididas em três capitanias. O Porto Santo, por ser uma ilha pequena, ficou entregue na totalidade a Bartolomeu Perestrelo. Mas a Madeira foi separada em duas, por uma linha traçada em diagonal entre as pontas da Oliveira e do Tristão: a vertente meridional, dominada pelo Funchal, ficou quase toda em poder de João Gonçalves Zarco, enquanto a restante área, incidindo na costa norte, ficou sob Tristão Vaz Teixeira. No Porto Santo, ao início, surgiram problemas. Os inúmeros coelhos e as condições pouco propícias do meio não favoreceram o processo de povoação. De acordo com Gaspar Frutuoso, a ilha do Porto Santo era “pequena, mas fresca [...] não tem boas águas, por ser seca e de pouco arvoredo” (FRUTUOSO, 1979, 56) e a Madeira era o inverso, sendo caracterizada pela “fertilidade e frescura (...) e das muitas ribeiras e fontes de água” (Id., Ibid., 49). Uma das questões mais debatidas nos primórdios da história da Madeira prende-se com o protagonismo do rei D. João I e do infante D. Henrique no processo de (re)descobrimento e ocupação das ilhas do arquipélago. A leitura das crónicas leva-nos a concluir que tudo começou sob a orientação da coroa. De todas, a mais esclarecedora é a Relação de Francisco Alcoforado que diz ter o infante ordenado a João Gonçalves Zarco que “fosse logo a el-rei a Lisboa” (MELLO, 1975, 90). E foi o rei quem mandou preparar as embarcações para a viagem de reconhecimento da Ilha, tal como aconteceu depois, por motivo do povoamento. Em 1443, D. Duarte reclamava a sua intervenção referindo as ilhas “que agora novamente o dito infante por nossa autoridade povoa” (VIEIRA, 1994, 38). O próprio infante D. Henrique testemunha o protagonismo de seu pai, ao afirmar, em 1460, tal como indicámos atrás, que “Por serviço de el-rei meu senhor e padre de virtuosa memória, [...] comecei a povoar a minha ilha de Madeira haverá ora XXXV anos, e assim mesmo a de Porto Santo e daí prosseguindo a Deserta” (Id., Ibid., 43). O infante diz que só em 1425 tomou conta do processo, enquanto a documentação estabelece o ano de 1433 como o de início desta intervenção e dos seus direitos como senhor da Ilha. Esta ideia contraria outra veiculada pelo próprio infante nas cartas de doação das capitanias da Madeira e do Porto Santo. Em 1440, ao conceder a posse da capitania de Machico a Tristão Vaz, declara que este havia sido “um dos primeiros que por seu mandado fora povoar as ditas ilhas” (Id., Ibid., 37). O mesmo surge quanto ao Porto Santo, em 1446 e, ao Funchal, em 1450. Neste último caso, o infante considera João Gonçalves Zarco como “o primeiro que por seu mandado povoára a Ilha” (Id., Ibid.). D. Afonso V, em 1454, tem outra opinião ao afirmar que “por serviço de Deus e nosso conquistou e povoou” (Id., Ibid., 38) as ilhas da Madeira e do Porto Santo. Em 1461, reafirma que João Gonçalves Zarco fora o primeiro povoador aí enviado pelo infante. Esta ideia é expressa, mais tarde, pelo capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara: “esta Ilha era uma horta do senhor infante e ele pôs e trouxe a semente e plantou estas canas e a deu a toda a Ilha à sua própria custa” (Id., Ibid.). Isto contraria a ideia defendida por alguns de que a coordenação desta tarefa pertenceu ao rei, por intermédio do vedor da fazenda João Afonso. De concreto, apenas se sabe que foi no uso dos plenos poderes conferidos pela doação de 1433 que o infante D. Henrique distribuiu, a partir de 1440, as terras do arquipélago àqueles que haviam procedido ao reconhecimento delas e que seriam os seus capitães. É comum afirmar-se que os primeiros povoadores da Madeira são oriundos do Algarve. A ideia filia-se na tradição algarvia da gesta expansionista e na seguinte expressão de Jerónimo Dias Leite: “muitos do Algarve” (LEITE, 1947, 16), copiada de Francisco Alcoforado. Estamos perante uma dedução apressada, uma vez que faltam provas e todos os dados disponíveis atestam o predomínio de outras regiões no povoamento da Madeira. Com efeito, uma listagem dos primeiros povoadores referidos nos documentos e crónicas dá-nos a indicação de que a presença nortenha (64%) é superior à algarvia (25%). O mesmo sucede no inventário dos que receberam ordens menores e sacras, entre 1538 e 1558, em que não aparece nenhum algarvio e a maioria é do norte de Portugal, nomeadamente de Braga e Viseu. Os registos de casamento da freguesia da Sé (que existem desde 1539), para o período de 1539 a 1600, também o confirmam. Os nubentes de Braga, Viana e Porto representam 50% do total, enquanto os de Faro não ultrapassam os 3%. A análise de todas as freguesias da Ilha no séc. XVI reforça a posição da população do norte do país, destacando-se Braga (11%) e Viana do Castelo (8,4%). O povoamento da Madeira foi um processo faseado, em que intervieram colonos oriundos das mais diversas origens. De todo o reino surgiram gentes para esta experiência de povoamento. Do Algarve, partiram, de facto, muitos dos apaniguados da casa do infante com funções importantes no lançamento das bases institucionais do senhorio. Do norte de Portugal, da região de Entre Douro e Minho, vieram os cabouqueiros que transformaram a Ilha num rico espaço agrícola. É evidente a vinculação dos moradores da costa algarvia (Tavira, Lagos, Silves, Aljezur e Sagres) no início do povoamento da Ilha. A iniciativa das primeiras viagens algarvias traçou o rumo que perdurou, nos primeiros tempos, como uma via privilegiada de circulação de homens e de mercadorias. Muitos deles pertenciam à casa do infante. Eram criados, escudeiros, cavaleiros e fidalgos que o acompanhavam nas andanças algarvias e que aderiram ao projeto de descobrimentos que teve na Madeira o primeiro passo. A iniciativa da viagem de reconhecimento iniciou-se no Algarve, mas foi de Lisboa que partiram as embarcações com os povoadores deste novo espaço. Conta Jerónimo Dias Leite que o infante recomendou, em 1419, a João Gonçalves Zarco que fosse a Lisboa, oferecendo-se ao rei para tal tarefa. Acompanharam-no alguns homens afeitos a qualquer feito de guerra no mar e em terra e “mais alguns homens de Lagos como foram António Gago, Lourenço Gomes, [...]” (Id., Ibid.). A presença algarvia na Madeira deixou algumas marcas na toponímia. Chegou-se, inclusivamente, a associar Machico e Monchique, sendo o último considerado uma corruptela do primeiro, o que hoje ninguém aceita. Mas outros locais evidenciam a relação: Algarvio (na freguesia de São Gonçalo), Boliqueime (freguesia de Santo António) e vila Baleira (no Porto Santo). O povoamento na Madeira alastrou rapidamente a toda a costa meridional, levando à criação de outros lugares de fixação, concretamente Santa Cruz, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol e Calheta. Zurara refere-nos um primeiro núcleo de 150 casais a que se juntaram outros, como mercadores, homens e mulheres solteiros e mancebos. Por sua vez, Cadamosto dá-nos conta de 800 homens, destacando os principais núcleos de povoamento: Machico, Funchal, Santa Cruz e Câmara de Lobos. As dificuldades da orografia da Ilha não travaram o processo; a elevada fertilidade do solo e a pressão do movimento demográfico foram motivos de forte atração. Aos primeiros obreiros e cabouqueiros seguiram-se diversas levas de homens livres e surgiu a necessidade de procurar escravos na costa africana para acudir a tamanha tarefa de preparação dos terrenos. A costa norte da Madeira tardou em contar com a presença de colonos, contribuindo para isso as dificuldades de contacto por via marítima e terrestre. Mesmo assim, já na déc. de 40, refere-se a presença de gentes em São Vicente, uma das primeiras localidades do norte a merecer uma ocupação efetiva. O progresso do movimento demográfico relacionou-se de forma direta com o nível de desenvolvimento económico da Ilha e refletiu-se na sua estrutura institucional. A criação de novos municípios, paróquias e a reforma do sistema administrativo e fiscal resultaram dessa realidade. Ao nível religioso, deu-se o desmembramento das primitivas paróquias das três capitanias com o aparecimento de novas: Santo António, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol, Arco da Calheta e Santa Cruz. No campo administrativo, tivemos os primeiros juízes pedâneos de Câmara de Lobos e Ribeira Brava e, depois, os municípios da Ponta do Sol (1501) e Calheta (1502). A economia açucareira, entre meados do séc. XV e da centúria seguinte, foi responsável por uma forte atração de forasteiros, motivando-os a fixarem-se no novo espaço. E aqui é evidente a macrocefalia do Funchal, que se afirmou, desde o início, como o principal centro populacional da Madeira. Um dos principais reflexos desta situação está na criação de novas paróquias, na segunda metade do séc. XVI, fruto das reclamações dos párocos e dos moradores. O número de habitantes da ilha do Porto Santo só progrediu nos primeiros anos de ocupação. A praga de coelhos, os escassos recursos e as insistentes invasões de corsários não foram propícios à fixação de colonos. Os corsários argelinos, na primeira metade do séc. XVII, contribuíram para o seu despovoamento quase total, pois só em 1617 foram levados cativos 900 habitantes da ilha. O povoamento do arquipélago da Madeira foi um movimento com origem em todas as regiões do país, que ocorreu, nas primeiras décadas, sob a orientação do infante D. Henrique. Esta variada proveniência geográfica dos primeiros povoadores, embora com forte incidência na região norte do país, foi fator propiciador de uma sociedade diversa, capaz de combinar uma variedade cultural, dando origem a uma nova matriz atlântica e insular nesta primeira fase da expansão portuguesa.   Alberto Vieira (atualizado a 03.02.2017)

História Económica e Social História Política e Institucional

junta de planeamento 1975

A transição da Madeira para o processo democrático foi de certa forma calma, se comparada com a agitação vivida no continente ou nas antigas colónias portuguesas de África. As forças militares e militarizadas não colocaram especiais problemas ao Movimento das Forças Armadas (MFA), e a primeira agitação, aliás vaga, decorreu na manifestação do 1.º de Maio, quando apareceu um cartaz a colocar em causa a presença no Funchal dos ex-governantes Américo Thomaz (1894-1987) e Marcello Caetano (1906-1980), com os dizeres “A Madeira não é caixote de lixo”. A notícia chegou a António de Spínola (1910-1996), que presidia à Junta de Salvação Nacional e se comprometera com Marcello Caetano, no quartel do Carmo, a fornecer-lhe proteção pessoal, pelo que poucos dias depois se encontrava na Madeira um delegado do Movimento, o Ten.-Cor. Carlos de Azeredo Pinto Melo e Leme (1930-) (Azeredo, Carlos de). A função do delegado do Movimento era a segurança das altas figuras do final do Estado Novo, mas, embarcadas as mesmas para o Brasil, a 20 de maio, teve de aguardar a nomeação do governador civil do Funchal (Governo civil), Fernando Rebelo (1919-2002) (Rebelo, Fernando Pereira), somente exarada a 7 de agosto. O novo governador tomou posse em S. Lourenço a 8 de agosto e, nesse mesmo dia, Carlos de Azeredo regressou ao continente, fixando-se no Porto. A 13 de setembro de 1974, o novo governador civil do Funchal – em consequência do pedido de exoneração de Rui Vieira (1926-2012), pedido que nunca fora aceite por Carlos de Azeredo – nomeava nova presidência para a Junta Geral. A 10 de outubro, a Junta Geral é dissolvido e é nomeada uma comissão administrativa, que também não resistiu muito tempo. As nomeações que se seguiram, essencialmente de elementos sem impacto político e social nas restantes estruturas locais, que não haviam sofrido especiais alterações, tornariam a situação geral insustentável a curto prazo. A instabilidade que se viria a desenvolver depois na Ilha levou a que, por solicitação dos elementos do Movimento na Madeira, o Ten.-Cor. Carlos de Azeredo, então graduado em brigadeiro, regressasse no final desse ano de 1974 ao Funchal. A 11 março de 1975, em Lisboa, entretanto, registava-se novo pronunciamento militar. O grupo mais moderado de forças políticas e militares ligadas ao Gen. António de Spínola, que não tinha aceitado o seu afastamento, a 30 de setembro, na sequência do falhanço da manifestação da “maioria silenciosa” de dois dias antes, nem, essencialmente, o acelerado processo de descolonização e de politização progressiva da sociedade portuguesa, movimentou-se. Os grupos mais politizados e a Comissão Coordenadora estavam, no entanto, atentos à movimentação, pelo que a mesma se saldou por um novo fracasso, sendo o Gen. Spínola definitivamente afastado, e tendo tido, inclusivamente, de abandonar o país. As notícias chegadas ao Funchal levaram à realização de manifestações de rua em apoio ao MFA. O processo foi acompanhado pelos comandos militares madeirenses, não tomando o Brig. Carlos de Azeredo qualquer posição, dependente, até certo ponto, que estava ainda do governador civil, Fernando Rebelo. Carlos de Azeredo encontrava-se nessa manhã numa cerimónia de distribuição de diplomas e condecorações na sede da Polícia de Segurança Pública do Funchal, à R. dos Netos, e, tendo sido informado pelo Maj. José Manuel Santos de Faria Leal (1936-2015) do que se passava em Lisboa, não interrompeu a distribuição. Escreveria mais tarde que continuou “calmamente na cerimónia” (AZEREDO, 2004, 205), mas, regressado ao palácio de S. Lourenço, acompanhou a situação, como os vários oficiais do seu gabinete, com a máxima apreensão. Com o pronunciamento de 11 de março, as forças mais à esquerda desenvolveram o que ficou conhecido por Processo Revolucionário em Curso e popularizado como PREC. No dia seguinte, a Junta de Salvação Nacional e o Conselho de Estado eram extintos e substituídos pelo Conselho da Revolução, a que se seguiria um plano de nacionalização da Banca, dos Seguros, dos Transportes, etc. Este período constituiu a fase mais marcante da tentativa de revolução portuguesa, durante o qual as tensões políticas e sociais atingiram uma virulência nunca experimentada. Principalmente o verão desse ano de 1975, o chamado “verão quente”, prestou-se a todo o tipo de violências numa sociedade considerada até então de brandos costumes e que nesse período parecia ter querido deixar de o ser. As forças madeirenses ligadas ao velho Movimento Democrático mostraram-se completamente incapazes de fazer face à situação e, a 20 março, Fernando Rebelo deixava o cargo de governador civil. Nesse mesmo dia, em Lisboa, onde fora chamado, desconhecendo o motivo e tendo tido então as mais sérias reservas e apreensões, Carlos de Azeredo tomava posse desse cargo, por despacho do ministro da Administração Interna. A nomeação de um elemento dado como próximo do Gen. António de Spínola não foi bem aceite nos sectores militares e civis continentais ligados ao PREC, que preferiam a nomeação do Maj. José Manuel Santos de Faria Leal (1936-2015), mas representou uma vitória para os sectores mais moderados e marcaria, na Madeira, o início da progressiva demarcação em relação ao processo continental. O Brig. Carlos de Azeredo, como governador civil – mas sempre fardado –, quase de imediato, a 25 de março, dava posse no Funchal à Junta de Planeamento para a Madeira, criada pelo dec.-lei n.º 139/75, promulgado no polémico dia 11 de março, pelo Presidente da República, Gen. Francisco da Costa Gomes (1914-2001), e publicado a 18 seguinte. O dec.-lei já considerava este órgão com um cariz transitório, mas com forte poder de decisão, sendo composto pelo governador civil, que presidia, com voto de qualidade, e por três vogais. Este órgão vinha um pouco na sequência do grupo criado alguns anos antes no âmbito da Junta Geral, a comissão regional de planeamento, mas já com funções deliberativas mais amplas, superintendendo, inclusivamente, sobre a mesma Junta Geral que, embora dissolvida, continuava em exercício. Foram então empossados como vogais João Abel de Freitas (n. 1942), Virgílio Higino Pereira (n. 1941) e José Manuel Paquete de Oliveira (1936-2016), que dirigia o Diário de Notícias. A presença de João Abel de Freitas, ligado à comissão do salário mínimo, e mesmo dos restantes elementos, pois que a sua nomeação fora acordada em Lisboa, não reunia o consenso alargado que alguns sectores locais requeriam, pelo que a Junta de Planeamento foi alvo de críticas no Jornal da Madeira, o que levou Carlos de Azeredo a convocar a S. Lourenço Alberto João Jardim (1943-), recentemente colocado à frente daquele jornal pelo bispo do Funchal, D. Francisco Antunes Santana (1924-1982), embora tal não tenha refreado os ataques daquele periódico à nova estrutura governativa regional. As críticas ainda aumentaram com o dec.-lei de 2 de julho de 1975, que alargava os poderes da Junta de Planeamento para proceder ao saneamento dos serviços do Estado e dos corpos administrativos, podendo suspender por 90 dias os funcionários desses organismos e nomear comissões para efetuarem reclassificações dos mesmos. Foi por esse diploma que se acrescentou um quarto elemento à Junta de Planeamento, dado como representante do comando militar, Faria Leal, que desde o início participava já em todas as reuniões. A Junta de Planeamento sofreria uma contínua contestação, não só local, dado que, como o governador Carlos de Azeredo anunciara na sua formação, tinha sido escolhida de cúpula, por decisão autocrática, logo sem a consulta das forças políticas já sumariamente colocadas no terreno, como igualmente dos círculos mais à esquerda do MFA nacional, que a consideravam não revolucionária. Poucos dias depois, comemorando-se o segundo 1.º de Maio em liberdade, deslocar-se-iam à Madeira dois conselheiros da revolução, o Com. Carlos de Almada Contreiras e o Maj. José Manuel Costa Neves, que participariam na manifestação, mas que quase não contactaram os elementos das forças armadas de S. Lourenço, limitando-se o Brig. Carlos de Azeredo a depois os acompanhar ao aeroporto. Ao contrário do ano anterior, também nenhum dos elementos militares da Madeira participou na mesma manifestação que, inclusivamente, levou a alguns incidentes na baixa da cidade, o que não acontecera no ano precedente. A Junta de Planeamento começou a conhecer dificuldades de articulação interna a partir das eleições de 25 de abril de 1975 (Eleições Autonomia), que elegeram a Assembleia Constituinte (sendo a organização dessas eleições a mais importante missão de que a referida Junta estava incumbida). Assim, se até então a sua nomeação de cúpula, como havia sido referido por Carlos de Azeredo na sua apresentação pública, era defensável por não ter havido eleições na Região, a partir daquela data, tal já não era sustentável. Acrescia a isto o desgaste do “verão quente” de 1975, que começara a 11 de março, e logo a 4 de abril registara uma tentativa de assalto ao palácio de S. Lourenço por uma manifestação de produtores de cana-de-açúcar – situação geral à qual Carlos de Azeredo deu uma resposta que não foi entendida como correta, nem pela esquerda, nem pela direita, tentando limitar a sua atuação a uma gestão negociada de crise, que nunca fora bem aceite por alguns elementos da Junta de Planeamento. A cisão foi iniciada pelo pedido de demissão de João Abel de Freitas, a 5 de agosto de 1975, pois que o mesmo não poderia ter sido feito pelo Maj. Faria Leal, dada a sua condição militar, pretendendo ambos a detenção de alguns empresários madeirenses por sabotagem económica. A demissão de João Abel Freitas foi imediatamente aceite pelo Brig. Carlos de Azeredo, e seguiu-se-lhe a demissão dos restantes membros. Estava assim aberto o caminho para a constituição de um novo órgão de gestão governativa da futura Região Autónoma da Madeira, que, embora ainda não democrático nem verdadeiramente representativo das forças políticas com representação no terreno, caminhava já nesse sentido: a Junta Governativa e de Desenvolvimento de 1976. Levaria, no entanto, mais de seis meses para ser negociada e tomar posse.     Rui Carita (atualizado a 09.06.2017)

Direito e Política História Militar História Política e Institucional

cunha, pedro da silva da

(c. 1610-c. 1670) O governador Pedro da Silva da Cunha foi nomeado em 1655 e tomou posse nesse mesmo ano, o que foi, de certa forma, rápido e não muito normal para a época, na complexa situação política nacional do falecimento do príncipe D. Teodósio de Bragança e, pouco depois, do rei D. João IV, assumindo a regência D. Luísa de Gusmão. Os seus cinco discretos anos de governação, durante os quais, tal como com o seu antecessor, não se registaram especiais conflitos com as restantes autoridades insulares, limitando-se o governador a arbitrar os conflitos entre as mesmas, foram essencialmente ocupados com a recolha do donativo para as guerras do Brasil e, especialmente, para as guerras com Castela, tendo sido, entre 1658 e 1659, levantado um importante terço militar na Madeira, com 500 a 800 homens, para ali combaterem a cargo do mestre de campo D. Jorge Henriques. Palavras-chave: conflitos institucionais, donativo, guerras da Aclamação, levas militares, relações com o Brasil; Pedro da Silva da Cunha, comendador da Ordem de Cristo, era filho de Duarte da Cunha de Azevedo e de sua mulher, Luiza da Silva, devendo ter nascido por volta de 1610. Em 1655, Pedro da Silva da Cunha foi nomeado para substituir o governador Bartolomeu Vasconcelos da Cunha (c. 1610-1663). Pouco se sabe, no entanto, sobre as suas origens, tal como da comenda de que usufruía. A sua patente tem a data de 16 de janeiro de 1655, de que deu menagem a 23 de março, tomando posse a 22 de abril do mesmo ano. O seu governo decorreu numa complexa situação política nacional, uma vez que, pouco tempo antes de Pedro da Silva da Cunha tomar posse, falecera o príncipe do Brasil, D. Teodósio de Bragança (1634-1653), somente com 19 anos, mas que se havia já imposto como herdeiro do trono, pelo que parte da correspondência para o Funchal sobre o donativo para as guerras do Brasil já era assinada pelo príncipe. A arrecadação do donativo atravessaria todo o governo de Pedro da Silva da Cunha, marcado também pelo aumento da ligação com aquele vice-reino e as suas capitanias, em especial a de Pernambuco, onde desde muito cedo se fixara uma comunidade de madeirenses. Em 1657, e.g., regressava ao Funchal José de Lira Aragão, que, em 1646, se deslocara para o Brasil com seu irmão Brás Varela de Lira. O jovem José permanecera 10 anos e 9 meses na área de Pernambuco assentando praça e ascendendo ao posto de alferes. Antes de aportar a Pernambuco, o navio em que viajava fora atacado por naus holandesas, nas imediações do cabo Agostinho. De regresso à ilha da Madeira, o governador, a 1 de abril de 1660, deu-lhe juramento como comandante de uma companhia de ordenanças da Ponta do Pargo, concelho da Calheta, posto em que permaneceu até 1674. Mais tarde, e face aos relevantes serviços prestados, inclusivamente socorrendo navios ameaçados por piratas magrebinos naquela área, o sobrinho José de Vasconcelos Bettencourt de Lira conseguiria obter a propriedade de juiz dos órfãos de Machico, lugar de que tomou posse em 1718. A 6 de novembro de 1656, falecia D. João IV (1604-1656), vítima de litíase vesical (mal da gota e da pedra, como se referia à época), deixando a regência, por testamento datado de 2 de novembro anterior, a D. Luísa de Gusmão (1613-1666). A Rainha escreveria, quase de imediato (a 7 de novembro), à Câmara do Funchal, a comunicar a infausta notícia: “Ontem que se contam seis do corrente, foi Deus servido levar para Si ao Rei, meu Senhor, com tantas e tão particulares demonstrações de piedade, que tenho por certo está no céu” (ABM, Câmara Municipal de Machico, cx. 1, liv. 84, t. 6, fl. 121). A Rainha regente, embora nascida em Castela, assumiu em plenitude a direção dos negócios em curso advindos da Aclamação e a pesada responsabilidade de arrecadar mais impostos para as guerras com Espanha, que entretanto se agudizavam. Em carta de 10 de dezembro de 1656, D. Luísa de Gusmão pede a contribuição dos 20.000 cruzados como imposto anual, voltando a referir-se que convém lançar a contribuição pelos meios que se tiverem por mais suaves, de sorte que “se não molestem meus vassalos e festivamente e com prontidão se acuda àquela quantia, para a defesa do Reino”. E acrescenta-se, tanto mais, que as câmaras da Madeira e da ilha do Porto Santo, tal como o “clero, nobreza e povo, assim o pediram e não ter isto dúvida, hei por bem aprovar os ditos meios, como de feito aprovo” (Ibid., Câmara Municipal de Machico, cx. 1, liv. 84, t.6, fls. 118 ss.). O imposto conhecido como donativo foi, de longe, o assunto mais importante para a corte de Lisboa, ocupando grande parte da correspondência enviada quer para o governador, quer para as câmaras da Madeira, logo após 1640. Estendeu-se depois a toda a população, nomeadamente ao clero e aos comerciantes estrangeiros, que estavam anteriormente isentos. As câmaras organizaram registos próprios, alguns dos quais perduraram, ocupando mais de metade dos documentos avulsos da Câmara do Funchal dessa época. Para a cobrança do donativo, em 1657, foi enviado à Madeira o licenciado António Freire Cardoso, juiz de fora com alçada, no sentido de zelar pelos serviços administrativos da Ilha e pelos negócios do donativo, ou seja, para se pagarem os 20.000 cruzados que cabiam ao arquipélago. Anteriormente tinha sido encarregado do donativo Gaspar Machado de Barros, que, ainda em Lisboa, a 27 de julho de 1650, nomeou Vitoriano de Bettencourt de Vasconcelos superintendente do donativo em Machico, que viria a ser sucedido por António Maciel de Afonseca. Em 1658, surgiam diferendos entre o juiz de fora com alçada e o provedor da Fazenda, estando em causa o testamento de um mercador flamengo a favor do alcaide do mar, Manuel Valente, igualmente meirinho das execuções reais e inquiridor da Real Fazenda, nomeado a 30 de janeiro de 1650. Ao lado do alcaide colocou-se o provedor Francisco de Andrade, que se queixou ao Rei, entendendo que o juiz de fora António Freire Cardoso se estava a intrometer na sua jurisdição. No domingo de Páscoa desse ano, 21 de abril, encontrando-se ambos na Sé do Funchal, o juiz de fora recusou cumprimentar a provedor da Alfândega, obrigando o governador Pedro da Silva da Cunha a intervir, determinando a ambos que recolhessem a suas casas. Pretendeu então o governador chamá-los à fortaleza de S. Lourenço para se reconciliarem, não acatando o juiz de fora e sendo por isso reprendido por Pedro da Silva da Cunha. A atitude ponderada do governador mereceu a aprovação do Conselho de Guerra que, por sua vez, remeteu o processo ao Desembargo do Paço. Durante o governo de Pedro da Silva da Cunha, foi levantado um terço madeirense para as guerras do Alentejo, iniciado em 1658 e comandado pelo mestre de campo D. Jorge Henriques (c. 1604-c. 1650), nascido em Baçaim, na Índia, e filho do antigo governador da Madeira D. Francisco Henriques (c. 1570-1624), apresentado pela Rainha a 30 de novembro desse ano. Esta força viria a utilizar, à semelhança da velha ala dos Namorados de Aljubarrota, uma bandeira verde e teria envolvido um “terço de soldados infantes pagos em número de 600 até 800” (Ibid., Câmara Municipal do Funchal, avulsos, cx. 2, doc. 277), com sargentos-mores, quatro capitães para as companhias de infantaria e, inclusivamente, uma companhia a cavalo, pelo que, logo a 9 de dezembro desse ano, a fazenda do Funchal receberia ordem para lhe entregar 200$000 réis. Desconhecemos os quantitativos globais levantados na Madeira, pois terá havido muitos recompletamentos, e até de outras origens para além da Ilha, mas não devem ter andado longe dos 500 infantes, nem todos recrutados de muito boa vontade. A primeira grande confrontação no Alentejo entre as forças portuguesas e castelhanas veio a dar-se nos campos de Elvas, em 14 de janeiro de 1659, constituindo a primeira grande vitória das guerras da Aclamação. A vitória, entretanto, não foi decisiva e, com a assinatura do tratado dos Pirenéus nesse ano, entre a Espanha e a França, a primeira ficou sem outros compromissos militares, podendo voltar-se novamente para Portugal, o que veio a acontecer em 1663 e 1665. Ciente dessas necessidades, já em carta de 4 março de 1659 à Câmara do Funchal, lamenta a Rainha a situação das fronteiras, mas que não esmorecia no seu empenho de acudir prontamente onde o perigo mais se evidenciasse. Refere D. Luísa de Gusmão que “o inimigo veio com poder sobre a praça de Olivença. Mandei reforçar o exército do Alentejo para ser socorrido. Para as despesas que muito se tem de fazer, por não ser bastante a contribuição das décimas e outros efeitos, da minha fazenda, me suplicassem lançasse, como o fiz, novo meio-quartel. Em 1658, se havia lançado outro quartel destinado ao Exército que mandei formar para descercar a praça de Elvas, que o inimigo veio logo sitiar” (Ibid., doc. 279), pelo que insistia na cobrança do donativo. Nos finais desse ano de 1659, a corte de Lisboa tomava outras opções, registando as doações da infanta D. Catarina de Bragança (1638-1705), e, a 17 de dezembro, nomeava para governador da Madeira Diogo de Mendonça Furtado (c. 1620-c. 1690), que somente um ano e pouco depois se apresentaria no Funchal. A Rainha D. Luísa de Gusmão escreveria ao governador Pedro da Silva da Cunha, a 18 de novembro de 1660, que enviava novo governador “por terdes acabado o tempo e ser justo que regresseis a vossa casa” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, cx. 48, t. 6, fls. 135). A apresentação decorreu na Câmara do Funchal, a 2 de dezembro de 1660, regressando o ex-governador ao continente e não havendo referências a seu respeito depois dessa data. Deve ter falecido por volta de 1670.   Rui Carita (atualizado a 02.03.2017)

História Política e Institucional

cunha, bartolomeu vasconcelos da

 O governador e capitão-general Bartolomeu Vasconcelos da Cunha era filho de Francisco de Vasconcelos da Cunha, governador de Angola entre 1635 e 1639, e que tivera o título de conde do Porto Santo. Tomou posse do governo da Madeira a 16 de outubro de 1651 e, ao contrário dos seus antecessores, não teve especiais problemas com os provedores da Fazenda nem com os juízes de fora do Funchal, ou com os corregedores. Com o aumento de movimento no porto do Funchal, datam da sua vigência como governador as complexas obras de fortificação do Ilhéu Grande do porto do Funchal. Este governador veio para o Funchal acompanhado de uma senhora que não era a sua mulher, de quem teve vários filhos, mas tal não obstou que fosse depois governador interino de Angola e general na Índia, perdendo-se depois no mar, vindo para o Reino em 1663. Palavras-chave: arquitetura militar; cartografia; fortificação; Guerras do Brasil; Guerras da Aclamação; relações institucionais. Armas da família Vasconcelos. 1515. Arquivo Rui Carita O governador e capitão-general Bartolomeu Vasconcelos da Cunha (c. 1610-1663), a quem chamaram na Ilha “o Monstrinho” (NORONHA, 1996, 55), era filho de Francisco de Vasconcelos da Cunha, governador e capitão-general de Angola entre 1635 e 1639, e de sua segunda mulher, D. Isabel de Brito. A família ocupara desde os meados do século anterior importantes postos no quadro do Império, tendo o homónimo bisavô, em princípio, comandado a armada que em 1559 partiu de Lisboa e, no ano seguinte, com o governador Mem de Sá, desalojou os Franceses da baía de Guanabara do Rio de Janeiro, no Brasil. O jovem Bartolomeu Vasconcelos da Cunha participara nas campanhas da Catalunha e de Milão, onde foi capitão de cavalaria, oferecendo-se por requerimento de 26 de maio de 1636, quando o pai se encontrava como governador e capitão-general de Angola, a D. Filipe III (1605-1665), pedindo que lhe fizesse a mercê de uma companhia de Infantaria do Terço, com o título de capitão, oferecendo a sua fazenda ao serviço real, para participar na restauração da capitania de Pernambuco. Com a aclamação de D. João IV em Lisboa, achando-se o pai, Francisco de Vasconcelos da Cunha, na corte de Madrid – e despachado com o título de conde do Porto Santo, dada a sua ascendência nos Mendes de Vasconcelos, pontualmente governadores nesta Ilha e com muita fazenda nas Índias de Castela, que tinha comércio com Angola –, largou tudo e veio para Lisboa, sendo recompensado com a comenda de S. Cristóvão de Nogueira e de S.ta Maria da Torre da Horta, na Ordem de Cristo. O mesmo se passou com o filho, Bartolomeu Vasconcelos da Cunha, então nas campanhas do Brasil, e que regressou também ao continente, participando depois nas campanhas da Aclamação, em Olivença, onde atingiu o posto de mestre-de-campo. Foi-lhe passada a patente para o governo da Madeira em 23 de agosto de 1651, de que deu menagem em Lisboa ao primeiro de outubro do próprio ano, e a 16 tomou posse na Câmara do Funchal, na presença do anterior governador, Manuel Lobo da Silva (c. 1610-c. 1695). O novo governador não veio para o Funchal com a mulher, Juliana de Melo, sua prima, filha de José de Melo, irmão de sua mãe, mas com Antónia Micaela da Cunha. Esta senhora era filha de Tomás Bação e Catarina da Cunha, e sobrinha do inquisidor Francisco Cardoso de Torneo, bispo eleito de Portalegre, que estivera em visitação na Madeira em 1618, no tempo do governador Pedro da Silva (c. 1580-1639) (Inquisição). Essa situação deve ter levado o zeloso cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) a abster-se sobre esse assunto, limitando as suas informações a referir que no Funchal, em 1654, tinha nascido Troilo Vasconcelos da Cunha (1654-1729) (Cunha, Troilo Vasconcelos da), depois funcionário superior da Junta dos Três Estados e autor de várias composições poéticas. A atuação do novo governador Bartolomeu Vasconcelos da Cunha foi excecionalmente discreta, não havendo especiais problemas com os provedores da Fazenda nem com os juízes de fora do Funchal, ou com os corregedores, como ocorrera com os seus antecessores. Até então esses desentendimentos eram frequentes e continuaram, colocando de sobressalto as populações. O relacionamento estreito, no entanto, até porque não usual, também era de desconfiar. O mercador Diogo Fernandes Branco (filho) (c. 1636-1683), então a residir em Lisboa, foi prontamente informado das relações de Bartolomeu Vasconcelos com o ouvidor da capitania do Funchal António Ferreira Pinheiro, comunicando-lhe o gerente da sua casa comercial, em carta de 12 de dezembro de 1651, que o novo governador nada fazia nem despachava sem o conselho do ouvidor “e por ele se governa” (VIEIRA, 1996, 233), insinuando assim proceder por advertência do conde-capitão. A casa dos Condes da Calheta era então gerida pelo 4.º conde, João Gonçalves da Câmara V (1590-1656), que se casou duas vezes, dado a primeira mulher ter falecido de parto. Do segundo casamento teve uma filha, Mariana de Lencastre Vasconcelos e Câmara (c. 1610-1698), que se casou com o primo, João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa (1593-1658), 2.º conde de Castelo Melhor, sendo possível que nesta data já houvesse uma certa ligação destas duas casas senhoriais a tudo o que dissesse respeito ao Funchal, até pela instituição da Companhia Geral do Comércio do Brasil, tendo o 2.º conde, pelo menos em outubro de 1649, ancorado no Funchal, a caminho do Brasil. Com o aumento de movimento no porto do Funchal, principalmente devido às relações preferenciais com o Brasil, data do início da vigência do governador Bartolomeu Vasconcelos da Cunha o recomeço das complexas obras de fortificação do ilhéu Grande do porto do Funchal. O pedido foi enviado para Lisboa pelo provedor da Fazenda do Funchal, com data de 5 de outubro de 1651, citando que os moradores da Ilha tinham pedido ao governador, aquando da sua chegada, que o mesmo requeresse ao Rei que se fizesse uma fortaleza no ilhéu “que está junto neste porto, para segurança do mar e embarcações que nele estão cada hora” (ANTT, JPRFF, liv. 396, fl. 7v). O provedor especifica que lhe parecia “obra muito necessária, porque com o dito reduto feito no dito Ilhéu, nos não cometerão os piratas tantas vezes, como o fazem, acanhoando os que no Porto estão, de que recebiam perda & da terra os não podiam defender em nada, por estar distante a artilharia”. Acrescenta ainda que o gasto na obra seria mínimo para a fazenda, dado ser do “donativo, que os moradores desta Ilha em si puseram para reparo & guarda dela” (Id., Ibid.). O governador também escreveu para Lisboa no mês seguinte e a resposta veio pouco tempo depois, com data de 10 de fevereiro do ano seguinte e dirigida ao mesmo. Cita então que se tinha visto a carta de 6 de novembro, em que se transmitia o pedido dos “moradores da dita ilha, oficiais da Câmara, nobreza, militares e eclesiásticos” (ARM, Ibid.; RG, t. 6, fls. 116v-117) e se tinha visto também a planta enviada. Em face das informações enviadas pelo governador e pelo provedor, de que nos trabalhos se recorreria ao pessoal das companhias de ordenanças: “vos valeríeis da gente da terra, por companhias, ou esquadras” e “que para a alvenaria os ditos moradores se ajustariam convosco, de sorte que acudiriam à obra com as pessoas e fazendas”, o Rei autorizou o início da construção. Pedia, no entanto, para ser informado das necessidades de artilharia e alvitra a deslocação de pessoal da “outra fortaleza que hoje há”, ou seja, S. Lourenço, tal como se fazia na barra de Lisboa com as fortalezas de S. Julião da Barra e de S. Lourenço da Cabeça Seca, o Bugio, “para se escusarem outros soldados e despesas” (Id., Ibid.). Os primeiros trabalhos na área datavam da época do governador D. João de Menezes (c. 1600-1649), entre 1634 e 1636, mas a inscrição que Bartolomeu Vasconcelos da Cunha mandou colocar sobre a pequena porta superior refere que foi feita no tempo do seu governo e da primeira pedra. Claro que não foi e nem foi acabada, como prova o mapa do engenheiro Bartolomeu João (c. 1590-1658), num desenho muito rudimentar e que pouco tem que ver com a fortaleza que conhecemos hoje, totalmente reconstruída mais de 100 anos depois, pelo engenheiro Francisco de Alincourt (1733-1816).   Fortaleza do Ilhéu. 1654. Arquivo Rui Carita. Ao longo do seu governo, Bartolomeu Vasconcelos da Cunha consolidou a organização da companhia do presídio da fortaleza e foi preenchendo os lugares de chefia militar que foram vagando. Em 1653, ou pouco antes, tinha falecido Martim Mendes de Vasconcelos, que exercera o lugar de governador do Porto Santo ao longo de 33 anos, família na qual o governador colocava os seus ancestrais. Foi nomeado para o lugar o capitão Roque Ferreira de Vasconcelos, até então capitão entretenido, com alvará régio de 8 de julho de 1641. Fez juramento e menagem do cargo a 2 de maio de 1653, perante o governador da Madeira. O governador, no entanto, não concordara com a nomeação, informando o Rei de que, se a escolha dependesse da sua vontade, recairia sobre Jorge Moniz de Meneses. Reconhecia ao recém-nomeado “qualidades e partes” (ANTT, Conselho de Guerra, consultas, mç. 14, doc. 66), mas considerava um grave impedimento a sua avançada idade. Sepultuta do licenciado Bento de Matos Coutinho. Arquivo Rui Carita Em 1652 houve protesto dos artilheiros, que eram auditados, desde o alvará de 30 de maio de 1648, pelo juiz de fora do Funchal, função anteriormente exercida pelo auditor de guerra e pelo licenciado Bento de Matos Coutinho (c. 1595-1651), cargo então extinto pelo Conselho da Fazenda. A pedido dos mesmos artilheiros, D. João IV escreveu ao governador, a 22 de dezembro de 1652, para que o lugar voltasse a ser instalado. Contudo, 40 anos depois, ouvidos dois dos governadores, voltava-se a desobrigar Manuel Maciel de Afonseca do cargo de auditor-geral da gente de guerra do presídio e as funções regressavam ao juiz de fora do Funchal. O governo de Bartolomeu Vasconcelos da Cunha ficou marcado pela execução do mapa da Madeira de Bartolomeu João: “Descrição da Ilha da Madeira, cidade do Funchal, lugares, ribeiras, portos e enceadas, e mais secretos; feita por Bartolomeu João, engenheiro dela em tempo do governador, capitão desta ilha no ano de 1654”, que o investigador Paul Alexander Zino (1916-2004) localizou em Londres, em 1940, à venda na casa de Francis Edward Lda. O assunto foi comunicado ao Arquivo Histórico-Militar de Lisboa mas, não se conseguindo a verba necessária para a sua aquisição, a carta foi adquirida pelo investigador madeirense, regressando ao Funchal, de onde teria sido levada pelo coronel William Henry Clinton (1769-1846), na primeira ocupação britânica de 1801-1802 (Ocupações britânicas).   Carta de Bartolomeu João. 1654. Arquivo Rui Carita A referência que temos a uma carta deste género executada por Bartolomeu João é anterior a 1654 e mandou-a executar o governador Nuno Pereira Freire (c. 1590-c. 1650), em outubro de 1642, para ser enviada ao Rei (Cartografia). Por certo, o mestre das obras deve ter ficado com elementos para executar outra carta para o novo governador, a qual, muito provavelmente, teria sido novamente enviada ao Rei, mas ficando um exemplar em S. Lourenço, de que há referência ali se encontrar em 1799. Sendo a carta de Bartolomeu João proveniente da biblioteca da abadia de Welbeck, dos duques de Newcastle, a cuja família pertencia o coronel Clinton, este teria levado a carta na sua bagagem de regresso a Londres, oferecendo-a depois a seu primo duque. Esta carta é essencial para o estudo da arquitetura militar da Madeira e não só, sendo um dos mais importantes e completos documentos iconográficos, somente com paralelo, mas bastante tempo depois, na grande vista do Funchal de Thomas Hearne (1744-1817), datada de 1772. A 6 de dezembro de 1653, faleceu em Lisboa o príncipe herdeiro, D. Teodósio (1634-1653), somente com 19 anos, mas que se havia já imposto como herdeiro do trono, recebendo o título de 9.º duque de Bragança e depois o de príncipe do Brasil, pelo que parte da correspondência para o Funchal sobre o donativo para as levas para ali recrutadas já era assinada pelo príncipe. O seu falecimento abriu uma crise política, com consequências futuras ainda mais graves, pois se a sua educação tinha sido preparada cuidadosamente, tendo sido seu mestre o P.e António Vieira (1608-1697), tinha-se descuidado francamente a educação do segundo filho, o infante D. Afonso (1643-1683). Para o governador da Madeira também teria sido uma grave contrariedade, pois era moço-fidalgo do paço o seu filho mais velho, Francisco de Vasconcelos da Cunha (c. 1630-1662), que com o falecimento do príncipe, “desenganado das bem fundadas esperanças que tinha deste grande Príncipe, ou por superior vocação, deixou os morgados e as comendas de seu pai e avô, em que havia de suceder por mercê já feita e se recolheu à Religião da Companhia de Jesus” (COSTA, III, 1712, Ibid., 555), onde viria a falecer. Com a morte do infante D. Teodósio foram marcadas as cortes para juramento do novo herdeiro, aproveitando-se o ensejo para a reunião do capítulo geral da Ordem de Cristo, em Tomar e em setembro desse ano de 1653. No entanto, até pela doença de D. João IV, e à semelhança do que acontecera antes, as cortes acabam por se reunir em Lisboa, com o clero em S. Domingos, a nobreza em S. Roque (junto dos Jesuítas) e o terceiro estado em S. Francisco (como era lógico, junto dos franciscanos). Foi nestas cortes que apareceram os primeiros pedidos dos Açores e da Madeira para se fazerem representar em cortes, na primeira fila, o que não deixa de ser um pedido estranho. Aliás, os procuradores da cidade de Angra às cortes de 1653 chegam a pedir ao Rei que, para o arquipélago dos Açores, nunca houvesse vice-Rei nem governador nas várias ilhas. A questão tinha por base pedidos anteriores, logo a seguir à aclamação, mas que só foram a despacho nove anos depois, uma vez analisada pelo desembargador Tomé Pinheiro da Veiga (1570-1656), “procurador da minha Coroa” (ABM, Ibid., fl. 118v), tendo a resposta afirmativa chegado com data de 6 de julho de 1654. As câmaras do Funchal e das vilas, todas em situação difícil, não encontraram, no entanto, uma maneira de conseguir receita para manter um procurador às cortes, nem atinaram com pessoa que pudesse, à sua própria custa, desempenhar o cargo honroso de figurar na primeira bancada. Nos inícios de 1655 foi apresentado novo governador para a Madeira, então Pedro da Silva da Cunha (c. 1610-c. 1670), que tomou posse a 22 de abril desse ano, regressando Bartolomeu Vasconcelos da Cunha a Lisboa. No entanto, o ex-governador foi preso, “tanto que chegou”, como escreveu António Carvalho da Costa (1650-1715), “até aparecer a dita D. Antónia no convento de Santana, onde faleceu” (COSTA, Ibid., 556). A situação, no entanto, não afetou a carreira política e militar de Bartolomeu Vasconcelos da Cunha, que passou no ano seguinte à Índia, como capitão-mor das naus, mas que, passando por Angola, entre os meados de 1653 e outubro de 1654, foi aí governador interino, sendo depois general de Mormugão, Terras de Salsete, Bardes e fortaleza da Ganda, na barra de Goa, e depois de ocupar estes postos se perdeu no mar, vindo para o reino no ano de 1663. Da sua ligação com Antónia Micaela da Cunha teve Bartolomeu Vasconcelos da Cunha: Maria de Vasconcelos, que morreu religiosa no Convento de Santana em Lisboa, para onde entrara com a mãe; Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha, religioso da Santíssima Trindade, em Lisboa, aonde se recolhera depois de ocupar vários postos de guerra, “deixando as esperanças de outros maiores” (Id., Ibid., 556), para que estava apontado, e que ainda era vivo em 1712; o poeta Troilo de Vasconcelos da Cunha, nascido no Funchal, como acima escrevemos, que se casou com Mónica da Silva Coutinho, cujo pai era o alemão João Herve, e a mãe Mariana da Silva Coutinho, mas cuja descendência entrou toda para ordens religiosas; e Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha, por certo também nascido no Funchal, que em 1712 era “moço-fidalgo da Casa de Sua Majestade, como o foram seus pais e avós, aos quais imitando, serve a el-Rei na guerra” (Id., Ibid.). A mulher do antigo governador da Madeira, Juliana de Melo, deve ter falecido quando o marido estava no Funchal, pois este Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha teve alvará de moço-fidalgo com data de 15 de setembro de 1657, sendo então dado como “filho natural” (TORRES, 1840, 303). O pai, tal como o filho Troilo Vasconcelos da Cunha, cultivou largamente a heráldica e a genealogia, havendo na biblioteca do último uma coleção interessante de trabalhos sobre os Vasconcelos, onde se encontra, inclusive, um que foi impresso em Madrid, em 1646, a “favor de Bartolomeu de Vasconcelos” (Id., Ibid., 4), o que não deixa de ser interessante, pois tanto Francisco como o filho, depois governador da Madeira, tinham optado, logo em 1640 ou em 1641, pelo apoio à realeza de D. João IV.   Rui Carita (atualizado a 03.03.2017)

História Política e Institucional Personalidades

crise sucessória de 1580

Tal como aconteceu no continente português, também a Madeira se teria dividido entre os partidos apoiantes das aspirações de D. António, prior do Crato (1531-1595) e de Filipe II de Castela (1527-1598). Estiveram ao lado de D. António as famílias dos capitães donatários do Funchal, Machico e Porto Santo, embora nem todos se tenham empenhado muito, com exceção de alguns membros da família Câmara – mas esses só se empenharam no continente – e o donatário de Machico, D. Francisco de Portugal (1550-1582), 3.º conde de Vimioso, que veio a morrer na batalha naval de Vila Franca do Campo, ao largo dos Açores. Na ilha da Madeira citava-se o deão da Sé do Funchal, Francisco Henriques (c. 1535-1600), sobrinho do padre Leão Henriques (1515-1589), confessor do cardeal D. Henrique (1512-1580), o Dr. Gaspar Gambôa (?-1582), juiz de fora de Machico, que fugiu para os Açores, onde veio depois a ser justiçado e, provavelmente, outros elementos do clero e da burguesia local, mas sem especial importância. Ao lado do pretendente castelhano vamos encontrar as câmaras e os funcionários régios, que, sem terem tomado especificamente qualquer partido, acabaram assim por apoiar e aceitar sem preconceitos a realeza de D. Filipe I, o mesmo se tendo passado com a maior parte da nobreza e da burguesia. Entre os fidalgos madeirenses será de mencionar João Bettencourt de Vasconcelos, que passara a viver na ilha Terceira, sendo depois capitão-mor da cidade de Angra, onde foi justiçado como partidário de Filipe II, por determinação de Manuel da Silva Coutinho (1541-1583), conde de Torres Vedras e lugar-tenente de D. António.   Palavras-chave: condes de Vimioso; corregedores; donatários; encarregado de negócios da guerra; nacionalismo; representação em Cortes.     Com o falecimento de D. Sebastião (1554-1578) em Alcácer Quibir, tinha sido aclamado Rei o seu tio-avô, o cardeal D. Henrique, que fora regente a partir de 1562 e assegurara entretanto toda a gestão corrente do reino, sendo raríssimos os documentos efetivamente assinados pelo seu sobrinho-neto. Já muito debilitado fisicamente, D. Henrique ainda considerou a possibilidade de pedir dispensa dos votos para se casar e assegurar descendência, mas tal não aconteceu. Entre os possíveis candidatos à sucessão encontrava-se outro neto de D. Manuel (1469-1521), D. António, prior do Crato, filho do infante D. Luís (1506-1555) e de Violante Gomes, a “Pelicana”, com a qual o infante se poderá ter casado em segredo. O cardeal já havia mandado levantar processo, tendo deposto a favor de um possível casamento, entre outras pessoas, Joana de Eça (c. 1480-c. 1573), mulher de Pedro Gonçalves da Câmara (c. 1480 – c. 1550), dama da Rainha D. Leonor (1458-1526) e camareira-mor da Rainha D. Catarina (1507-1578), tal como depôs o sobrinho, Martim Gonçalves da Câmara (c. 1539-1613), que fora escrivão de puridade de D. Sebastião. O cardeal, no entanto, não aceitou a hipótese do casamento do infante e da “Pelicana”, oficializando a situação de D. António como bastardo, e invalidando assim qualquer possibilidade de ele subir ao trono. Os restantes netos do Rei D. Manuel, como Rainúncio de Farnésio (1569-1622), D. Catarina de Bragança (1540-1614), Manuel Felisberto de Saboia (1528-1580) ou mesmo D. João de Bragança (1543-1583), marido e primo de D. Catarina, estavam todos mais ou menos dependentes hierarquicamente de Filipe II, filho da Imperatriz D. Isabel de Portugal (1503-1539) e de Carlos V (1500-1558), dificilmente podendo opor-se às pretensões, aliás legítimas à época, do Rei de Castela, Aragão, Catalunha, Navarra, Franco-Condado, Países Baixos, Milão, Nápoles, etc. A ideia desenvolvida nos séculos seguintes e, mais especialmente, nos meados do séc. XX, de um Rei português, D. António, e de um Rei espanhol, Filipe II, não tem sentido nos finais do séc. XVI: primeiro, porque os reis eram todos primos, e, depois, porque a ideia de Espanha como um reino homogéneo é muito posterior. A defesa de os apoiantes de D. António serem nacionalistas e da queda da monarquia nacional em 1580 não é outra coisa senão uma tentativa de politização da história, pois tais conceitos não existiam à época. O cardeal-Rei ainda mandou reunir cortes em Almeirim para se decidir a sucessão (a primeira reunião foi no convento de S. Francisco daquela vila, a 11 de janeiro de 1580), mas o cardeal faleceu a 31 de janeiro e não chegou a nomear sucessor, apesar de deixar uma junta de governadores, praticamente todos apoiantes da realeza de Filipe II. A junta era constituída pelo arcebispo de Lisboa, D. Jorge de Almeida (1531-1585), por D. João Telo de Meneses, D. Francisco de Sá de Meneses (c. 1510-c. 1583), D. Diogo Lopes de Sousa e D. João de Mascarenhas. Deste grupo, só D. João Telo era contrário à sucessão de Filipe II de Castela. O cardeal já havia manifestado, entretanto, a sua intenção de nomear Filipe II como sucessor ao trono, tendo havido uma nítida continuidade governativa. Um dos exemplos de continuidade a apontar é o de Jácome Ribeiro de Leiria, ouvidor do Funchal (Ouvidorias), colocado na ilha da Madeira pelo cardeal D. Henrique, provavelmente na sequência da morte no Funchal do 4.º capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1512-1580), 1.º conde da Calheta (Calheta, condes da), falecido a 4 de março de 1580. O ouvidor recebeu entretanto no Funchal o governador da capitania, nomeado pelo cardeal-Rei e pelo novo conde da Calheta, João Gonçalves da Câmara (1541-1580), que optou por ficar na corte. A nomeação recaiu no irmão, Rui Dias da Câmara (c. 1542-c. 1600), conforme já fora determinado por D. Sebastião, em 1571. O novo governador tinha ficado prisioneiro em Alcácer Quibir, mas foi dos primeiros prisioneiros a serem resgatados, tomando posse da capitania em abril de 1580. Com a morte inopinada do jovem 2.º conde da Calheta, a 4 de junho de 1580, presumivelmente vítima do surto de peste que então grassou no país, o irmão regressou ao continente, provavelmente entre setembro e outubro de 1580. No Funchal ficou o ouvidor, que logo após o falecimento do cardeal-Rei, solicitou aos governadores a revalidação da mercê. O ouvidor do Funchal teve confirmação da chancelaria portuguesa de Filipe II a 10 de setembro de 1580, ou seja três dias antes da aclamação do Rei pela Câmara de Lisboa. A provisão registada na Câmara do Funchal foi feita em nome de “Dom Filipe, por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves” e é assinada pelos doutores Pero Barbosa e Jerónimo Pereira de Sá "do seu concelho e seus desembargadores do paço" (ABM, CMF, RG, t. 3, fl. 178v.). Pero Barbosa era então um dos mais influentes desembargadores do paço e já em 1579 emitira um longo parecer sobre a sucessão do cardeal, indicando decididamente o nome de Filipe II de Castela. D. António fora aclamado em Santarém, a 19 de junho de 1580, e depois em Lisboa, mas existem dúvidas sobre se alguma vez assumiu efetivamente o Governo. Em breve seguiram cartas para vários pontos do país e para os arquipélagos atlânticos. Para as ilhas, foi seu portador António da Costa, cavaleiro fidalgo da casa real, que partiu de Lisboa em 9 de julho e estava na Madeira nos finais desse mês. Tal como acontecera com as câmaras açorianas, este delegado deve ter entregado nas da ilha da Madeira as cartas de D. António a anunciar a sua aclamação, datadas do mesmo dia 9 de julho de 1580, acompanhadas de certificados da Câmara de Lisboa a confirmarem a sua aclamação na capital. Não consta que o mandatário António da Costa tenha sido hostilizado na Madeira, mas nada ficou na Ilha a atestar a sua passagem. No entanto, em breve chegava a Lisboa a notícia da sua passagem pela Madeira e da possibilidade de ter ali sido aclamado D. António, o que parece não ter acontecido. Nenhum dos capitães-donatários se encontrava na sede da sua capitania, pelo que nem as câmaras, nem os seus ouvidores quiseram tomar qualquer responsabilidade, aguardando o desenrolar da situação no continente, como se passou com o então ouvidor do Funchal. Com a entrada em Lisboa de D. Fernando Alvarez de Toledo (1507-1582), 3.º duque de Alba, e aclamado Filipe II na Câmara de Lisboa, logo se constituiu um Governo chefiado pelo duque e apoiado num conselho de assessores. Era uma sequência do anterior sistema dos governadores, sendo o conselho constituído por Pedro de Alcáçova Carneiro (c. 1510-c. 1584); pelo bispo de Leiria, D. Pedro de Castilho (c. 1530-1615), que também tinha sido bispo de Angra e que depois viria a ser vice-Rei de Portugal; pelo jurista Paulo Afonso; por D. João da Silva (1528-1601), conde de Portalegre e neto de Diogo de Azambuja (1518) e por Duarte de Castelo Branco, meirinho-mor. Como já citámos, constituiu-se assim uma certa continuidade governativa, que tentou que nada se alterasse significativamente até à tomada de posse oficial de Filipe II. Na Ilha, não podemos deixar de salientar o papel desempenhado pelo então bispo do Funchal, D. Jerónimo Barreto (1543-1589), o todo cauteloso amigo dos Jesuítas, que mediante a promulgação das Constituições Sinodais da Diocese, a 18 de outubro de 1578 – e embora aquelas só tenham sido editadas em 1585 –, tinha limitado igualmente a margem de manobra dos elementos do clero. Assim, não seriam muitas as tomadas de posição individuais, levando todo o bispado a acatar as determinações do cardeal-Rei e depois a realeza de Filipe II, como registaria o conde de Lançarote, D. Agustin de Herrera y Rojas (1537-1598), em 1583. Claro que terão existido posições diferentes, como, em princípio, as do deão da Sé, como viriam a referir as autoridades castelhanas, mas que não terão passado de posições individuais e pessoais, se é que existiram, não chegando verdadeiramente ao domínio público. Não encontramos na Madeira, como adeptos do prior do Crato, qualquer quadro diretivo, entre morgados ou elementos camarários, e.g., salvo o deão da Sé, e mesmo isso não passa de rumor, pois não existe nenhuma comprovação. Desta forma, e depois de consolidada a posição de Filipe II em Lisboa, pronunciaram-se as Câmaras do Porto Santo, de Machico, de Santa Cruz e do Funchal. Ao contrário dos Açores, a Madeira esperou sempre uma definição concreta do poder central para depois tomar as suas atitudes, nunca se empenhando decididamente em nenhuma das lutas partidárias que dividiram o país. Esta falta de empenho permitia à Ilha, caso se alterasse o quadro de forças geral, estar sempre do lado vitorioso. Daí a opinião, por vezes expressa pelos partidários de Filipe II, de que a Ilha era toda partidária de D. António, como expressou depois, a D. Francés de Alava y Belmonte (c. 1518-1586) o capitão Gaspar Luís de Melo; e a apreensão do duque de Alba, de que ali tivesse sido aclamado D. António, em julho de 1580, o que não resiste à análise, nem oferece qualquer recorte. Mais tarde, o conde de Lançarote citaria como afetos a D. António o comissário do convento de S. Francisco, Fr. Manuel de Boaventura, e Fr. Tomás de Tentúgal, confessor das freiras de Santa Clara. No Caniço, era apontado Diogo Álvares Arruda e, em Santa Cruz, Pedro Moniz e Freitas Grilo. Publicamente e a assumir a sua opção só parece ter havido o Franciscano Fr. João do Espírito Santo e o comerciante francês Pedro de La Randueta, que pagaram com a vida a opção que fizeram, mas que só aparecem na Madeira depois da instalação de D. António, prior do Crato, nos Açores. Com a ascensão ao trono de Filipe II, a Madeira enviou logo dois procuradores para defenderem os seus interesses, para o que foram escolhidos João Rodrigues Mondragão e Martim Mendes de Vasconcelos, vereadores das Câmaras do Funchal e de Machico, e que devem ter estado presentes nas cortes de Tomar. Com a ida do Rei para Lisboa, surgem cartas no Funchal sobre assuntos vários, muito provavelmente acionados pelos procuradores da Madeira. A primeira carta, datada de 2 de outubro de 1581 (Sintra), refere um galeão de prata da Nova Espanha, o célebre La Gallega, dos maiores navios do seu tempo, que tinha arribado à Ilha e cuja carga era necessário fazer chegar a Sevilha. Nesta sequência, a 5 de dezembro manda-se pagar aos procuradores que se tinham apresentado ao Rei 100$000 réis pelos dinheiros da renda da imposição aplicada às obras da fortificação e autoriza-se que a descarga de pão no Funchal, assim como a sua arrecadação, sejam pagas também pelos dinheiros da fortificação, dado o bom andamento das obras: “sobre estando as obras da fortificação da dita cidade, como dizem” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, avulsos, mç. 2, doc. 137). Parece não haver dúvidas de que houve, pois, uma tentativa camarária de assalto aos dinheiros da fortificação (Defesa). De imediato, e ao mesmo tempo que despachou favoravelmente estes assuntos, o Rei iniciou contactos para a nomeação de um governador para a Madeira, mas não sem ouvir demoradamente várias opiniões a esse respeito, inclusivamente de madeirenses. Com a instalação de forças afetas a D. António nos Açores, despachou para a Ilha um corregedor da sua confiança acompanhado de forças militares, João Leitão (c. 1540 – c. 1602), ao qual fora atribuída a tarefa de determinar a prisão de D. António em Portugal, com indicação de se encontrar encarregado dos “negócios da guerra”. A situação evoluiu nos meses seguintes com o apoio de forças francesas à causa do prior do Crato e, inclusivamente, pelo aparecimento de adeptos ativos da causa de D. António na Madeira, pelo que, perante o oferecimento do conde de Lançarote, D. Agustín de Herrera y Rojas (1537-1598), que se encontrava nas Canárias, Filipe II mandou-o avançar de imediato para o Funchal com forças ali recrutadas. Os elementos em causa, um frade franciscano e um comerciante francês, viriam a ser executados, como já se referiu, mas o recorte local da causa do prior do Crato teria sido quase perfeitamente nulo. Resta acrescentar que era partidário de D. António, prior do Crato, o assumido 3.º conde de Vimioso e capitão de Machico, D. Francisco de Portugal (1550-1582), que acompanhara seu pai, D. Afonso de Portugal (1519-1579), 2.º conde, e seu irmão, D. Luís de Portugal (1555-c. 1620), à fatídica batalha de Alcácer Quibir. Resgatados os jovens D. Francisco e D. Luís de Portugal por interferência do duque de Medina Sidónia, D. Alonso Pérez de Gusmán (1550-1615), e recolhidos em Sanlucar de Barrameda, na província de Cádis, D. Francisco assumiu o título de conde, e em breve apoiava as pretensões de D. António ao trono de Portugal e visava, inclusivamente, o lugar de seu condestável. Com a instalação nos Açores e a passagem por Porto Santo da armada francesa de apoio ao prior do Crato, nela embarcou o juiz de fora de Machico, Dr. Gaspar Gambôa, para aquele arquipélago. Os Vimioso, no entanto, nunca se tinham sequer deslocado à sua capitania e, entretanto, a câmara já tinha assumido o seu apoio à realeza de Filipe II de Castela, tendo enviado ao continente o vereador Martim Mendes de Vasconcelos. Como pormenor, alguns anos depois, o herdeiro da casa, D. Luís de Portugal, reivindicaria os direitos ao título e à capitania, ainda em tempo de Filipe II, capitania entregue, entretanto, a Tristão Vaz da Veiga (1537-1604), descendente de Zarco. Falecido sem descendência Tristão Vaz da Veiga, D. Luís de Portugal conseguiu reaver a capitania de Machico.   Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

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