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Cuscuz declarado pela UNESCO Património Cultural Imaterial da Humanidade

Foram inscritos na lista de PCI “os conhecimentos, práticas e tradições veiculadas à produção e consumo de cuscuz” nos territórios em questão. No passado dia 16 de Dezembro de 2020, reunido por videoconferência, o Comité do Património da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), sob a Presidência da Jamaica, aprovou a candidatura transnacional da Tunísia, Argélia, Marrocos e Mauritânia. Como principal argumento da candidatura conjunta, o facto de os conhecimentos, práticas e tradições associadas à produção e consumo de cuscuz neste países ter um carácter de transversalidade integrante de seu património cultural, sendo praticadas por todas as populações dos países envolvidos, de todos os géneros, faixas etárias, sedentários ou nómadas, em meios rurais ou urbanos, incluindo os imigrantes, e em ocasiões diversas: dos pratos do dia a dia às refeições festivas. O regozijo traduziu-se na seguinte frase de Audrey Azoulay, Directora Geral da UNESCO: “Esta inscrição conjunta é um grande feito. É um forte sinal de reconhecimento cultural e um verdadeira êxito diplomático num tema tão importante e simbólico para os povos desta região e para muitos outros. Este concenso mostra que o património cultural pode ser tanto pessoal como excepcional e ao mesmo tempo transcender fronteiras.” No âmbito do decurso do projecto SABOREA, no qual a APCA é parcerira regional, uma das rotas gastronómicas sustentáveis delineadas é precisamente a Rota do Cuscuz, sendo que o facto da recente inscrição pela UNESCO na lista do PCI da Humanidade é uma mais valia que valorizará este conteúdo específico. De recordar que além da Madeira, conhecem-se mais dois outros territórios portugueses onde se verificam as práticas e saberes associadas ao cuscuz, sendo estes a Ilha de Santa Maria, nos Açores e Vinhais, localidade de Trás-os-Montes. Supõe-se que tais práticas e saberes tenham sido “incorporadas por influência moura e disseminadas nos vários territórios em Portugal por via dos invasores magrebinos ou dos judeus sefarditas que aí permaneceram, mais tarde como cristãos novos”. Na Madeira, é um legado da presença árabe.   APCA - Madeira

Madeira Cultural Notícias

gaula e os romances de cavalaria

Quando lemos o D. Quixote de La Mancha, uma sátira aos romances de cavalaria, da autoria do espanhol Miguel Cervantes, não pensamos imediatamente o quão real podia ser o fascínio exercido pelos romances de cavalaria na burguesia e o quanto isso podia influenciar a vida dos seus leitores. E é precisamente por este motivo que a história de Gaula, com a origem do seu nome associada à obra "Amadis de Gaula" e ao fascínio que o género literário exercia nos nobres, donos das terras de então, enquadra-se nas localidades cujas denominações foram influenciadas pela criação literária.   A origem do nome da freguesia de Gaula Esta freguesia, pertencente ao concelho de Machico, com uma população de 4028 almas, segundo sensos de 2011, tem um nome cuja origem é associada ao romance Amadis de Gaula. É explicada pelos indícios fortes que demonstram que os romances de cavalaria tiveram no imaginário de Tristão Vaz Teixeira e em toda a sua capitania. As armas usadas no brasão eram as da Fénix Renascida e são vários os relatos que dão conta da ocorrência de representações teatrais de Lançarote Teixeira, senhor das terras de Gaula. fonte: europresseditora.pt Amadis de Gaula O “Amadis de Gaula”, um dos mais importantes romances de cavalaria (séc XIV) na Península Ibérica, género popular com origem, segundo consta, na Bretanha, veio a influenciar os nobres portugueses, referindo o autor José Lourenço de Gouveia e Freitas alguns: Nuno Álvares Pereira ambicionou ser Galaaz enquanto que o Rei português D. Sebastião lançou-se em direcção à Alcácer-Quibir, em 1578, onde perdeu a vida, deixando órfão Portugal. Este facto deu origem a mitos, um dos quais mora na Penha D’Águia, na vila do Porto da Cruz, segundo o qual se encontra ali enterrada a espada do D. Sebastião à espera que um homem dos mais fortes a desencrave, lenda devedora das lendas arturianas. fonte: http://devaneios-ounao.blogspot.com D. Quixote Associar a uma narrativa sobre Gaula, na Madeira, o D. Quixote, de Cervantes, parece coisa inaudita, mas tal talvez se justifique pela História feita de tal cunho literário que nos admiramos da sua veracidade. Quando pensamos em D. Quixote situamo-lo no plano literário, simbólico de um manifesto do autor desfavorável às fantasias que caraterizavam o género, não imaginamos que a crítica da obra, contida na figura de um fidalgo enlouquecido encontrasse semelhanças numa ilha distante, em Machico, onde se diz ter existido um Senhor que se passeava por Machico no seu cavalo, acompanhado de escudeiros, tal qual cavaleiro andante. Gaula - a Terra e a Gente Para quem quiser explorar mais informação sobre a freguesia de Gaula, apresentamos a obra "Gaula - a Terra e a Gente". Este livro é constituído por um conjunto importante de textos exploratórios sobre diversas temáticas relativas à freguesia. O seu extensíssimo índice atravessa aspetos variados desde as “origens da freguesia de Gaula”, as “localidades históricas”, o património, material e imaterial, factos históricos, entre muitos outros. O seu autor é José Lourenço de Gouveia e Freitas, natural de Gaula, nascido no ano de 1938. Foi colaborador do Diário de Notícias do Funchal e das revistas Islenha e Origens. Foi co-autor do livro "Moinhos e Águas do Concelho de Santa Cruz" (1994) e autor de "Famílias de Gaula" (1999). Os romances em Machico Tristão Vaz Teixeira, 2º Capitão Donatário de Machico, terá sofrido a influência dos romances de cavalaria da altura pois era usual o recurso a nomes provenientes dos mesmos. Em "Saudades da Terra", de Gaspar Frutuoso, relata-se o seguinte episódio de Lançarote Teixeira, quarto filho de Tristão: “se ajuntavam na vila de Machico sessenta cavaleiros, de esporas douradas, mui bem postos, e encavalgados por indústria deste Lançarote Teixeira, que, quando vinha um dia de S. João ou de Corpo de Deus, eram os cavaleiros tantos para jogos de canas e escaramuças, que mais parecia exército de guerra que folgar de festa…”   textos: César Rodrigues fotos: Rui A. Camacho

Rotas História Económica e Social Madeira Cultural

igrejas e capelas erguidas pela força da fé

A Ordem de Cristo com o Infante D. Henrique como Grão Mestre teve um papel fundamental na expansão portuguesa. Um dos territórios descobertos por nobres pertencentes à casa do Infante foi o arquipélago da Madeira, que viria a tornar-se uma posse da Ordem de Cristo até D. Manuel se ter tornado rei de Portugal, em 1495. Mas a relação de grande proximidade à Igreja Católica Romana manteve-se ao longo dos séculos, cristalizando-se na paisagem através das igrejas e capelas, algumas das quais de cariz particular. Igreja Nova do Jardim da Serra A nova Igreja do Jardim da Serra, desenhada por Cunha Paredes, arquitecto português de origem madeirense, e inaugurada em 2009 tem invocação a São Tiago e constitui-se como símbolo da forte religiosidade católica da população e da melhoria das condições económicas que caracterizou nas últimas décadas a ilha da Madeira. A comparação das suas características e dimensão com as da anterior sede paroquial, situada bem próxima desta, é elucidativa. Capela da Mãe de Deus - Caniço A Capela da Mãe de Deus ou Madre de Deus, de traça manuelina, foi construída em 1536 e é um dos mais antigos templos marianos na Madeira. Integra-se num pequeno núcleo de construção mais antiga que se confronta com a construção mais recente que o rodeia, constituído por uma mercearia, e duas habitações particulares, que mantêm as características originais. Nas casas é possível observar a distinção das cores, o vermelho e o ocre, resultantes do facto de estes serem os únicos pigmentos disponíveis, mas também do facto de as cores carregarem o símbolo de classe ou de status social. O vermelho estava reservado para as casas senhoriais e mais abastadas. Observe-se ainda o banco em pedra, espaço de socialização e de lazer. Capela de São José - Largo da Achada, Camacha Foi mandada erigir por Alfredo Ferreira Nóbrega Júnior em 1924 e concluída em 1928, que pretendeu desde o início criar um espaço educativo de cariz religioso. Possui um altar-mor rico em ornamentação e bem conservado bem como uma obra de Martin Canan. O livro “Ao Redor de um Ideal”, de Eutíquio Fusciano, publicado com a chancela da Câmara Municipal de Santa Cruz, é um dos documentos que podem ser consultados. Igreja Paroquial da Camacha A construção deste imóvel dedicado ao culto católico data do século XVII. Trata-se de uma estrutura arquitectónica com planta longitudinal de nave única e capela-mor. Completam o conjunto uma torre sineira e duas capelas laterais. Como elemento decorativo destaca-se a tela do retábulo da capela-mor, ali colocado no ano de 1914 e com provável autoria dos Irmãos Bernes. Aquando da sua recuperação descobriu-se que a mesma tapava outra tela, a original, provavelmente da autoria de Nicolau Ferreira Igreja Paroquial da Achada de Gaula Uma das duas paróquias da freguesia de Gaula, denominada Achada de Gaula, encontra sede nesta igreja construída já no século XX. Tem por padroeira a Nossa Senhora da Graça. Das festividades que aqui ocorrem destaque-se a festa em honra da sua padroeira, realizada no primeiro fim-de-semana depois de 15 de Agosto. Em Janeiro realiza-se, desde há relativamente pouco tempo, a Festa de Santo Antão, padroeiro dos animais. Igreja de Santa Beatriz - Água de Pena Construída no ano de 1745, no local onde antes existia a Capela de Santa Beatriz, e a partir de onde segundo as crónicas, cresceu a freguesia. Foi mandada construir por Lançarote Teixeira, que lhe deu o nome da Santa Beatriz, por ser o mesmo de sua esposa. A fachada principal ostenta a cantaria regional, de basalto, e no cimo da mesma uma Cruz de Cristo. No último Domingo de Julho realiza-se uma festa popular em honra de Santa Beatriz e que tem nesta Igreja o seu epicentro. Igreja Paroquial do Porto da Cruz Sendo de construção recente (1958), a Igreja matriz alberga no seu interior alguns pormenores muito interessantes no que respeita ao património imaterial e móvel. No interior, observa-se um moderno lambril de azulejos padronados do prestigiado artista Querubim Lapa. O templo guarda ainda alguns elementos decorativos barrocos provenientes da antiga igreja de Nossa Senhora de Guadalupe. Uma Nossa Senhora de Guadalupe (séc. XVI ou XVII, em madeira policromada) e um Santo António (em terracota). Os quadros da Via-sacra são de autoria de João Gomes Lemos, de pseudónimo "Melos", médico natural da freguesia. É uma obra do Arquitecto Raul Chorão Ramalho.   textos: César Rodrigues fotos: Rui A. Camacho

História da Arte Religiões Rotas Madeira Cultural

camacha moldadora do vime

A partir de finais do século XIX a indústria do vime desenvolveu-se na Camacha até ocupar lugar central na economia local e ao ponto de, a par do folclore, se tornar um dos embaixadores da localidade serrana. Atualmente, o setor perdeu a importância detida outrora, muito por força das transformações sociais e económicas de uma região especializada nos serviços, com o turismo a desempenhar o papel que antes cabia ao setor primário. E é neste contexto que urge conhecer, não só os modos tradicionais de produção, mas também os processos inovadores. Bazar Flor da Achada Este bazar é atualmente mantido pelas filhas do proprietário, as quais têm outra ocupação profissional. Fazem-no dado ser uma tradição familiar. Para além de através desta relação familiar e da decisão das filhas em manter o negócio, é igualmente demonstrativo da importância da indústria na Camacha e do estatuto social detido. Entre algumas peças importadas do exterior é possível encontrar alguns trabalhos dos artesãos locais. A cobertura interior do teto em vimes é um pormenor que não nos escapa dada a sua particularidade. Café Relógio Um dos espaços que facilmente se associa ao vime, o Café Relógio está de forma directa relacionado com a história do vime, dado que para além de comerciar vimes alberga uma oficina onde se pode ver a execução do trabalho pelos artesãos. Para além desta facto, a torre do edifício alberga um relógio, originário da Igreja Paroquial de Walton, em Liverpool, e é um símbolo da presença inglesa na freguesia, tendo sido mandada construir pelo Drº Michael Graham no que era, na época, a Quinta da Camacha, sua propriedade. Realce-se que a comunidade inglesa na ilha da Madeira desempenhou um papel importante no desenvolvimento de algumas artes tradicionais da freguesia, casos do bordado e do próprio vime. José de Jesus Fernandes Aprendeu com um tio quando tinha 12 anos a arte da obra de vime e aos 19 anos instalou-se por conta própria. Os intermediários traziam o vime do Porto da Cruz, de Santana e de Boaventura. Contribuindo na criação de modelos, chegou a empregar 200 pessoas. Hoje, ocupa sozinho a sua fábrica onde ainda guarda os moldes e as máquinas rudimentares usadas. Cada artesão tendia a especializar-se em determinadas peças. O mestre José Fernandes especializou-se na cestaria. José Pedro O artesão José Pedro, que começou a trabalhar na obra de vime com 8 anos, é um exemplo da inovação e criatividade que os artesãos colocam no seu trabalho. Se a reprodução a partir de outras peças está presente, a inovação surge como reflexo do desejo de aperfeiçoamento da peça segundo a perspetiva individual. Resultam daqui peças funcionais. Para lá chegar, contudo, é necessário várias etapas de confeção. Esta afirmação aplica-se aos trabalhos em que não recorre aos moldes, de dimensão média e grande, como móveis. Nesse caso faz-se o desenho da peça, moldando-se o ferro para o cobrir e ligar nas diversas partes com vime. José Fernandes da Silva Junto à Levada da Meia Serra, José Fernandes da Silva tem o seu pequeno atelier onde tece a arte do vime para com ela fazer cestaria em vime da Camacha. Ocorre também que José Fernandes da Silva é um dos artesãos que mais tem contribuindo para a perpetuação da arte da obra em vime, dando cursos de formação e participando em ações de divulgação. Plantação de Vimes Segundo registos, o início da produção e do uso na confeções de cestaria em vime data do século XIX, embora outras fontes apontem para um período bem anterior, isto é, no século XVI. Em todo o caso, foi no século XIX que o vime, primeiro introduzido na Camacha, veio a desempenhar um papel fundamental na freguesia, sendo sustento de parte significativa da população. Os campos deste pequeno vale eram ocupados na totalidade com vimeiros, restando uma pequena parcela na margem direita da ribeira. Cuidar dos vimeiros requer a execução de tarefas simples, sendo a principal a poda.   Textos: César Rodrigues Fotos: Rui A. Camacho

Património História Económica e Social Rotas Madeira Cultural

a arte da tradição e de ser artesão

Se os artesãos moldam as formas dos artefatos tradicionais, em simultâneo procedem igualmente à reinterpretação do legado. Na demanda diária as pequenas transformações da tradição não são visíveis, reafirmando-se neste contexto a sua pureza. As transformações são descortinadas apenas quando analisadas na perspetiva diacrónica ou através de inovadores movimentos trazidos por novos artesãos, os quais são influenciados por dinâmicas externas. É esta mescla de perspetivas sociais e de motivações idiossincráticas relativas aos próprios artistas que transforma constantemente a tradição. Isabel da Eira Isabel da Eira é fiandeira e tece barretes de orelhas, ou barretes de vilão, conhecidos pelo menos desde 1857. Fá-lo desde os 14 anos de idade com um rigor que os torna peças de artesanato consideradas de boa qualidade. Este barrete de orelhas é um dos que eram usados na Madeira, conhecendo-se variação entre as localidades, sendo preparados juntamente com os casacos para as condições meteorológicas extremas da alta montanha. A textura macia da lã resulta do modo como se fia e Isabel da Eira é considerada uma excelente fiandeira, sendo o seu trabalho reconhecido entre os colegas de actividade. As etapas da preparação consistem no lavar, secar, cardar e fiar. O Borracheiro Este bar tem uma relação especial com a história do transporte de carga da Madeira e, em particular, com a história dos borracheiros. A carga na ilha da Madeira era transportada por veredas e pelos Caminhos Reais. Este ponto situa-se num dos extremos da vereda que liga ao Porto da Cruz, terra de vinho. Os borracheiros, assim designados porque transportavam o vinho nos borrachos, avançavam em grupo de entre dez a quinze homens. Aqui chegados, anunciavam-se com o toque do búzio, instrumento musical que os acompanhava nas viagens e que servia de comunicação. Maria Vasconcelos Iniciou a aprendizagem da tapeçaria aos treze anos por vontade própria, e seguiu o modelo comum na época. Aprendeu com uma artesã, a quem eram reconhecidas competências pedagógicas, a troco de remuneração, enquadrando-se numa lógica particular de investimento educativo semelhante ao que ocorre na actualidade. A formação durou sete meses e incentivou a autonomia. Para além dos tapetes de retalhos, caraterizados pela criatividade quanto aos padrões e cores, as quais dependem na maior parte das vezes dos retalhos que os clientes trazem, tece casacos de lã numa parceria com a fiandeira Isabel da Eira, sendo a responsabilidade quanto às decisões relativas ao trabalho nas suas diversas dimensões partilhada. Artesão Humberto Ex-pedreiro, com o abrandar da construção civil na Madeira, iniciou a atividade de artesão em 2007. Faz peças em madeira para fins de natureza diversa: móveis, utensílios diversos, brinquedos, miniaturas, carrinhos de mão, colheres de pau, piões, bengalas. As peças são vendidas nas diversas feiras que se realizam na ilha. Café Relógio Um dos espaços que facilmente se associam ao vime, o Café Relógio, está de forma directa relacionado com a história da indústria, dado que para além de comerciar vimes, alberga uma oficina onde se pode ver a execução do trabalho pelos artesãos. Para além deste facto, a torre do edifício alberga um relógio, originário da Igreja Paroquial de Walton, em Liverpool, e é um símbolo da presença inglesa na freguesia, havendo sido mandada construir pelo Drº Michael Graham no que era, na época, a Quinta da Camacha, sua propriedade. Realce-se que a comunidade inglesa na ilha da Madeira desempenhou um papel importante no desenvolvimento de algumas artes tradicionais da freguesia, casos do bordado e do próprio vime. Textos: César Rodrigues Fotos: Rui A. Camacho  

Cultura e Tradições Populares Rotas Madeira Cultural

neto, júlia de atouguia de frança

Cantora, pianista, guitarrista; diletante benemérita; produtora agrícola e vinícola. Júlia de Atouguia de França Neto terá nascido no Funchal em 1825, filha primogénita de Jaime António de França Neto e de Carolina Engrácia da Cunha Telo – consorciados na paróquia da Sé, Funchal, a 13 de Maio de 1824 – e irmã de João de Atouguia de França Neto (n. na déc. de 1820) e de Carolina de Atouguia de França Neto (1835-1866). A família emigrou em 1832, tendo visitado diversos países europeus. Aos 11 anos, frequentava aulas de canto em Roma, muito possivelmente com Carolina de Santis, sócia agregada da Accademia Nazionale di Santa Cecilia. Após a mudança da sua família para Genebra, em 1840, Júlia de França Neto prosseguiu o ensino musical no Conservatório de música da cidade, estudando piano com Julie Raffard, canto com Francisco Bonoldi e harmonia com Nathan Bloc, diretor daquele estabelecimento de ensino entre 1835 e 1849. Após um percurso académico sucessivamente condecorado naquela instituição, terá obtido, em 1846, os primeiros prémios nas disciplinas de Piano e Canto. Júlia de França Neto participou na apresentação pública anual dos alunos do Conservatório de Música de Genebra, realizada a 8 de setembro de 1845, com a apresentação da “Chanson du Saule” da ópera Otelo, de Gioacchino Rossini, tendo sido reconhecida pelo seu excelente método de canto. A sua estreia pública – fora do âmbito dos exercícios públicos de alunos do conservatório – ocorreu no ano seguinte, aquando da sua eventual conclusão do curso, num concerto organizado por Bonoldi: Júlia de França Neto interpretou uma ária da ópera Lucia di Lammermoor, de Gaetano Donizetti. O seu nome não consta da documentação do Conservatório de Genebra referente a 1849, o que sugere que a biografada já não se encontrava ali inscrita nesse ano. Pouco mais se sabe da sua atividade na segunda metade da déc. de 1840 e primeiros anos da década seguinte. Anos mais tarde, em Paris, prosseguiu a sua formação musical, a título particular, com o baixo e compositor Jean-Antoine-Just Géraldy [Geraldis], com Fiocchi, um cantor e professor formado no método do castrato Girolamo Crescentini, e com Caçares, com quem terá aprendido repertório musical espanhol e, possivelmente, guitarra. Júlia continuou a sua atividade como intérprete nesta cidade em saraus privados realizados por senhoras da aristocracia parisiense, em solenidades sacras e em eventos de beneficência. Cantou em Pau (nos Altos Pirinéus) num concerto organizado pelo violinista Louis Eller, que naquela cidade se havia sediado. A cantora madeirense apresentou-se igualmente em diversas récitas da Société Philarmonique de Tarbes. O seu último concerto em França terá ocorrido a 10 de junho de 1854, em Saint-Germain-en-Laye, onde interpretou dois excertos de óperas de Rossini – a cavatina “Una voce poco fa” de Il Barbiere de Siviglia, e o rondó “Nacqui all alfano e al pianto” de La Cenerontela – bem como um dueto com o barítono Morelli. A família França Neto terá residido em Lisboa, no Palácio do Marquês de Sá da Bandeira, até regressar à Madeira, em 1854, e Júlia de França Neto ter-se-á apresentado frequentemente em iniciativas musicais privadas e semipúblicas do conde de Farrobo, nas quais terá privado com D. Fernando II; porém, não se identificam quaisquer menções à intérprete madeirense na documentação recolhida sobre os eventos musicais organizados por Joaquim Pedro Quintela, 1.º conde de Farrobo. É antes credível que tenha privado com Joaquim Pedro Quintela, 2.º conde de Farrobo – governador civil do Funchal entre 1860 e 1862 – e com sua cônjuge, co-organizadora de alguns concertos beneméritos na cidade madeirense, com quem se deslocou a Lisboa em 1864.   No dealbar da segunda metade do séc. XIX, o arquipélago madeirense foi profundamente assolado por uma crise agrícola e comercial, agravada pela devastação vinícola provocada pela mangra (oídio) a partir de 1851, por intempéries, tais como o aluvião de 1853, e ainda por epidemias de cólera, em 1856, e de febre-amarela, em 1858. Sensibilizada pela miséria que afetava as populações madeirenses (e nacionais) mais desfavorecidas, sobretudo os pobres, os órfãos e os enfermos, Júlia de França Neto encetou a realização de concertos de beneficência, tendo realizado 10 récitas entre 1854 e 1861 e participado noutros eventos criados com os mesmos fins. Foram identificados os seguintes concertos: 28 de dezembro de 1854, na Escola Lancasteriana; 2 de fevereiro de 1855, no salão da Escola Central; 2 de março de 1855; 2 de Fevereiro de 1858, na sala grande do Palácio de São Lourenço (destinado às vítimas da febre-amarela em Lisboa); 4 de abril de 1859; 16 de março de 1861; e 18 de março de 1861, organizado com a condessa de Farrobo e realizado numa das salas do Palácio de São Lourenço. Com exceção do concerto de fevereiro de 1858, para auxílio das vítimas da febre-amarela em Lisboa, os lucros destas récitas foram destinados às instituições de beneficência madeirenses, entre as quais o Asilo de Mendicidade do Funchal, a Misericórdia e o Convento das Capuchas. A cantora interpretou, nestes concertos, excertos de óperas de Gioacchino Rossini (o rondó da Cenerentola e o dueto “Dunque io son” de Il barbiere di Siviglia, com Vasconcelos), de Nicola Vaccai (a ária de Giovanna Grey), de Vincenzo Bellini (a cavatina, “Come per me sereno – Sovra il sen la man mi posa”, de La Sonnambula), de Gaetano Donizetti (a ária de Lucia de Lammermoor) e de Giuseppe Verdi (“D’amor sul’alli rosee”, “Scena, Aria e Miserere” de Il Trovatore, e “Ah Fors’è lui – Sempre libera” de La Traviata), a Ave Maria de Luigi Cherubini e boleros (peças espanholas), nestes últimos acompanhando-se à guitarra. Não há referência à sua prática pianística neste período. Vários músicos amadores e profissionais exibiram-se nas suas iniciativas beneméritas: Maria Paula Klinghöffer Rêgo (piano, harpa, machete), Carlota Cabral (piano), Maria Virgínia de Sousa (piano), Júlia Araújo de Ornelas (harpa, piano), Carolina Dias de Almeida (canto), a condessa de Farrobo (canto), a sra. Mascarenhas (harpa), a sra. [Amélia Augusta de?] Azevedo (machete), o sr. Schroter, o sr. Krohn (canto), o sr. Laplont/Laporte (piano), Cândido Drummond de Vasconcelos (machete), Duarte Joaquim dos Santos (piano, seu acompanhador em várias récitas), João Fradesso Belo (piano, diretor dos coros) e Jorge Titel (diretor da orquestra). A 20 de junho de 1864, Júlia de França Neto partiu para Lisboa na companhia de Carolina de França Neto (provavelmente sua mãe), de Mourão Pita e de Joaquim Pedro Quintela, 2.º conde de Farrobo; datarão destes anos as suas apresentações como cantora em Lisboa. Embora não seja feita qualquer referência específica às suas exibições privadas e semipúblicas no esboceto biográfico redigido por Platon de Vakcel quatro anos após aquela visita à capital portuguesa – que tomaria como fonte informações seguramente cedidas pela intérprete –, o autor do seu obituário no Diário de Notícias refere que Júlia de França Neto havia frequentado as soirées da sociedade lisbonense, entre as quais as organizadas pelo 7.º marquês da Fronteira, e convivido com os monarcas D. Fernando e D. Luís, tidos como grandes apreciadores do seu talento musical. Júlia de França Neto terá regressado à Madeira em 1866. A artista participou também em concertos organizados por outros músicos profissionais e amadores. Cantou com o virtuoso violinista Agostino Robbio os duetos “Per piacer alla signora” da ópera Il Turco in Italia, de Rossini e o “Grand Dueto” da ópera L’Elisire de Amore, de Gaetano Donizetti, no concerto de beneficência (destinado ao Asilo de Mendicidade e Órfãos) organizado por este a 27 de janeiro de 1866. Neste concerto, participaram também Cândido Drummond de Vasconcelos, Platon L'vovich Vakcel (canto) e Eduardo Maria Frutuoso da Silva (piano, canto). Embora tenha sido anunciada a sua colaboração nos três concertos em benefício do mesmo Asilo que ocorreram entre fevereiro e abril de 1866, resultantes da iniciativa benemérita de Maria Paula Klingelhöeffer Rêgo, acabou por não participar neles, em virtude do falecimento de sua irmã. Não há, aliás, qualquer referência na imprensa periódica da época à sua participação nos concertos organizados por esta pianista entre 1866 e 1871. Porém, as duas intérpretes colaboraram em vários eventos realizados neste período. Em janeiro de 1869, Júlia de França Neto tomou parte, com Platon de Vakcel, em dois concertos de benefício ao Asilo de Mendicidade e Órfãos, acedendo ao pedido que lhes havia sido efetuado pela comissão administrativa daquela instituição. Nestas récitas, organizadas pelo cantor amador C. A. Mourão Pita, também participaram Maria Paula Klinghöffer Rêgo, o sr. Sattler (piano), Cândido Drummond de Vasconcelos, Artur Sarmento (canto), José Sarmento (acompanhamento ao piano), Luís Ribeiro de Mendonça (declamação), entre outros; Isidoro Franco, regente da banda de caçadores, foi diretor da orquestra. Nestes concertos, a biografada interpretou a célebre “Valsa” de Luigi Venzano; “La Juanita”, de Sebastián Yradier, o grand duetto “Sulla tomba che rinserra – Verranno a te sull'aure” do 1.º ato da ópera Lucia di Lammermoor, de G. Donizetti, com Platon de Vakcel; e um terceto com Vakcel e Artur [Adolfo] Sarmento. Júlia de França Neto integrou o elenco que apresentou a comédia La Nièce no espetáculo, em benefício do Asilo de Mendicidade, realizado a 18 de maio de 1870 no Teatro Esperança. Não se identificam posteriores referências à sua atividade musical em eventos públicos; não obstante, terá realizado vários saraus artísticos na sua residência. A cantora foi muito elogiada na imprensa periódica parisiense e madeirense pela sua “capacidade vocal notável” e pelo seu “conhecimento da arte do canto, [que a colocava] entre os artistas da bela escola” (“Concerto a Benefício…”, O Clamor Público, 2 fev. 1855, 1). O redator de L’Industriel fazia notar que “dificilmente se encontraria uma cantora” como Júlia de França Neto, “apta a executar bem os domínios vocais da soprano mais ágil e da contralto mais grave” (L’Industriel, 17 jun. 1854). O repertório interpretado pela biografada – que compreendia ainda a valsa “Ah! Je Ris de me Voir si Belle en Ce Miroir” da ópera Faust de Charles Gounod – requer, nas suas versões originais, um âmbito vocal assaz extenso. Os excertos vocais das óperas Il Barbiere de Siviglia e La Cerenentola de G. Rossini requerem um âmbito de sol sustenido 2 a si 4, enquanto os das óperas La Sonnambula de V. Bellini e Il Trovatore e La Traviata de G. Verdi exigem um âmbito de mi bemol 3 a ré 5 e de dó 3 a ré 5; os demais excertos interpretados por Júlia de França Neto requisitam uma tessitura compreendida entre si 2 e si 4. O âmbito vocal extenso e a aptidão para a execução de obras musicais para soprano ou contralto de Júlia de França Neto pode ser explicado pelo uso de uma técnica de canto (ainda vigente no séc. XIX) assente no uso intensivo da “voz de cabeça” e da “voz de peito”, isto é, no recurso à alternância, respetivamente, entre os registos/timbres claro, para as tessituras média e aguda, e escuro, para as tessituras grave e média. Porém, o corpus de excertos musicais interpretado pela biografada requer uma tessitura de duas oitavas e uma quinta diminuta, superior ao âmbito vocal normativo dos cantores, compreendido em duas oitavas. Não obstante, a extensão vocal de duas oitavas e uma quinta diminuta era – ainda que privilegiada – possível para as vozes femininas. Não fosse ela dotada desta excecional extensão vocal, é crível que possa ter recorrido às habituais práticas de transposição dos números musicais que visavam a acomodação dos mesmos à tessitura dos cantores, procurando adaptar aqueles excertos com uso de notas sobre-agudas ou graves de que não dispunha para um âmbito vocal em que lhe fosse possível interpretá-los. Júlia de França Neto foi assim capaz de cantar nas tessituras de soprano e meio-soprano/contralto, possibilitando às audiências madeirenses a fruição de excertos célebres do repertório operático (que, face à inexistência, por largos anos, de companhias e teatros de ópera na região, seriam, seguramente, desconhecidos). Na fase final da sua carreira musical, ter-se-á notabilizado como contralto, fruto, por um lado, do abaixamento da tessitura vocal de cantoras com a idade, e, por outro, da introdução em Portugal das transformações na prática e pedagogia do canto lírico instituídas na centúria oitocentista (grosso modo, a ênfase em timbres escuros – voix sombrée – e o favorecimento dos registos mais robustos e dramáticos da voz). Júlia de França Neto foi também uma reconhecida produtora vinícola e agrícola. Júlia e João de Atouguia de França Neto, seu irmão, herdaram, por falecimento de seu pai em 24 de abril de 1874, várias propriedades agrícolas. As suas diversas propriedades agrícolas e vinícolas – situadas nas freguesias de Câmara de Lobos (sítios da Caldeira e das Fontainhas), Estreito de Câmara de Lobos (sítios do Salão, da Vargem, da Marinheira, do Marco e da Fonte), Quinta Grande (sítios da Câmara do Bispo, da Ladeira, de Pedregais, de Aviceiro, de Vera Cruz e Chiqueiros, de Igreja e Várzea, e do Lombo), Campanário (Fajã [dos Padres], Calhau da Lapa), São Martinho, Funchal (sítios da Ajuda, da Ponta da Cruz e dos Piornais) e Santo António, Funchal (sítio da Madalena) – foram, na sua maioria, colonizadas pela proprietária, pelos seus parceiros agrícolas e por herdeiros destes últimos. As suas propriedades mais reconhecidas eram a Fajã dos Padres e a Quinta do Salão. Júlia de França Neto terá engenhosamente incentivado o cultivo de cana-de-açúcar, de verduras e árvores de fruto, e a produção de vinho. Júlia de França Neto faleceu de hemorragia cerebral aos 77 anos, na sua residência à R. dos Netos, a 14 de maio de 1903, tendo sido sepultada no antigo cemitério de Nossa Senhora das Angústias. Foi reconhecida na historiografia regional e nacional como insigne cantora e pianista, sobretudo através do empréstimo das palavras de Vakcel, que a havia notabilizado, já em 1869, como “glória musical da Madeira e um dos talentos que mais [honravam] Portugal” (SILVA e MENESES, 1978, 797). Este louvor foi quase sempre acompanhado das menções à sua atividade benemérita; nos seus gestos de cuidado e solidariedade para com os desabonados, Júlia de França Neto encetou e muito contribuiu para a instituição, na Madeira, de iniciativas musicais beneméritas de “maternidade social” – empreendimentos femininos de índole cívica e benemérita para provisão das carências dos mais desfavorecidos – no domínio artístico da música. A consolidação dos concertos de beneficência foi realizada por senhoras que com ela colaboraram, como Maria Paula Klinghöffer Rego e Carolina Dias de Almeida, por adjuvantes destas últimas, como Matilde Sauvayre da Câmara, e por outras beneméritas, como Ester Leonor Ferraz, Palmira Lomelino Pereira e Eugénia Rêgo Pereira, que, com o seu préstimo, perpetuaram o modelo de benefício musical de caridade (e o legado de “maternidade social” de Júlia de França Neto) até à segunda metade do séc. XX.   Rui Magno Pinto (atualizado a 03.03.2018)

Personalidades