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Agostinho de Ornelas de Vasconcelos Esmeraldo Rolim de Moura nasceu no Funchal, a 14 de março de 1836 e distinguiu-se na cultura, nas letras, na diplomacia, na política e na ciência. Membro da antiga nobreza portuguesa, embora cioso dos pergaminhos nobiliárquicos de que era herdeiro e que honrava, desprezava os títulos e as honrarias. Foi um espírito liberal e aberto ao progresso e às letras e um eminente cultor das ciências. Filho do morgado Aires de Ornelas de Vasconcelos, que foi governador civil do Funchal, e de Augusta Correia Vasques de Olival, frequentou o Liceu Nacional do Funchal e, tendo concluído com distinção o curso secundário, tirou o curso de Direito em Coimbra. No ano em que concluiu a licenciatura, 1857, foi nomeado, por decreto de 18 de novembro, segundo adido à legação de Washington, de que tomou posse em junho do ano seguinte, permanecendo no posto até fevereiro de 1859. Em 1884, foi publicado no Porto, por iniciativa do seu autor – seu irmão, bispo do Funchal e arcebispo de Goa –, um volume intitulado Obras de D. Ayres de Ornelas Vasconcelos, que incluía uma extensa biografia do bispo, com sabor clássico e da autoria e lavra de Agostinho de Ornelas. O volume continha os diversos escritos do prelado, nomeadamente a sua dissertação de doutoramento, intitulada Reforma das cadeias em Portugal. Aproveitando o ensejo, Agostinho de Ornelas Vasconcelos incluiu na mesma publicação um documento memorialístico sobre a penitenciária de Filadélfia, escrito durante o período em que exerceu o cargo na capital americana, tendo então percorrido longamente aquele país e visitado as suas instituições mais célebres. Prosseguiu a sua carreira diplomática em Berlim, onde exerceu intermitentemente a função de encarregado de negócios na ausência do respetivo embaixador; em 1863 ascendeu a primeiro adido e foi colocado sucessivamente no Rio de Janeiro e em São Petersburgo, cargos que não exerceu por motivos de doença. Seguiu-se a nomeação, a 26 de abril de 1865, para secretário de legação em Viena de Áustria, sendo logo de seguida transferido para Londres, onde permaneceu até dezembro de 1867. Por decreto de 27 de setembro de 1886, após alguns anos de interregno da carreira diplomática, é nomeado ministro plenipotenciário em Madrid. Não chega a exercer este cargo, pois, por decreto de 30 do mesmo mês, é nomeado para a direção política do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Por decreto de 17 de novembro de 1891, ascende a diretor geral dos negócios políticos e diplomáticos do mesmo ministério. A 6 de setembro de 1894 é nomeado ministro plenipotenciário para a Rússia, cargo de que toma posse a 10 de novembro daquele ano e que conserva quase até a data do seu falecimento 6 de setembro de 1901 (em Niedervalluf, na Alemanha). Desempenhou com honra e mérito várias missões diplomáticas espinhosas, como a participação nos trabalhos da convenção relativa à contenda de Moura, que lhe mereceu a Grã-Cruz de Carlos III de Espanha, e foi um dos representantes de Portugal na célebre conferência da Haia de 1899, em que se estabeleceram os primeiros tratados sobre leis e crimes de guerra e sobre a resolução pacífica de controvérsias internacionais. Na política, destaca-se a eleição de deputado pela Madeira nas legislaturas, geralmente curtas, de 1869, 1870, e 1871 a 1874. Nas Cortes, destacou-se nas suas intervenções, por serem corretas na forma e na urbanidade de trato. Não sendo um daqueles tribunos de arrebatamento era, contudo, um orador fluente e conhecedor dos assuntos que tratava, o que lhe merecia a atenção e o respeito da câmara, também quanto ao conteúdo, especialmente quando tratava perante as duas câmaras de assuntos do padroado da Índia e das missões ultramarinas. Versado em várias línguas, incluindo a língua do Lácio, pôde versar-se em diversas ciências e nas letras, o que, aliado a uma prodigiosa memória, fez dele um dos espíritos mais cultos do seu tempo. Dedicou-se à tradução em verso do Fausto de Goethe, trabalho em que o seu escrúpulo de fidelidade ao original terá provocado imperfeições na forma. Em 1892 publica Memória sobre a residência de Christovam Colombo na Ilha da Madeira, a qual foi incluída no volume Memórias que a Academia Real das Ciências de Lisboa publicou por ocasião do centenário de Colombo; este trabalho literário foi uma das causas que determinaram a sua eleição para membro daquela Academia. Representou Portugal nas festas do centenário de Colombo em Madrid. Pela sua imensa carreira diplomática e pelo seu lavor literário, possuía imensas condecorações, de que se destacam as Grã-cruzes de Carlos III, de Espanha; de S. Gregório Magno, de Roma; da Coroa e de S.to Estanislau, da Prússia; grande oficial da Legião de Honra; comendador e cavaleiro de S. Tiago; comendador da ordem de Alberto o Valoroso, da Saxónia; da Águia Vermelha, da Prússia; da Imperial rosa, do Brasil, além de outras. Obra de Agostinho de Ornelas de Vasconcelos: Memória sobre a residência de Christovam Colombo na Ilha da Madeira (1892).   Miguel Fonseca (atualizado a 04.01.2016)

Personalidades

trigo, aníbal augusto

Aníbal Augusto Trigo nasceu em Torre de Moncorvo, em 1865. Fez os seus estudos na escola do Exército, em Lisboa, após o que foi para o Funchal como chefe de secção de Obras Públicas. Foi Diretor de Repartição Técnica da Câmara Municipal do Funchal durante 34 anos, tendo chegado a acumular este cargo com o de diretor das Obras Públicas, aquando da ida de seu irmão, Adriano Augusto Trigo, para Macau. Foi Diretor dos Serviços Hidráulicos, sendo promovido a Inspetor Superior das Obras Públicas em 1932. Em 1912, foi nomeado para integrar a Comissão Técnica de Inspeções, Provas e Exames de Automóveis e Condutores da Circunscrição da Madeira. Era irmão do Engenheiro Adriano Augusto Trigo. Foi condecorado com o grau de Comendador da Ordem de S. Tiago da Espada. Morreu no Funchal, em 1944.   Ana Londral (atualizado a 05.01.2017)

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trigo, adriano augusto

Adriano Augusto Trigo nasceu em Torre de Moncorvo, em 1862. Tornou-se oficial do Exército e Engenheiro e, em 1890, foi para a Madeira, onde se casou. Exerceu vários cargos públicos, tendo sido diretor das Obras Públicas do Funchal durante muitos anos. Tendo interrompido a sua carreira militar para se dedicar à engenharia, o Coronel Engenheiro Adriano Augusto Trigo voltou ao serviço aquando da Primeira Guerra Mundial, tendo ido para França comandar um Corpo Expedicionário Português. Em 1919 foi para Macau, onde foi Diretor das Obras Públicas e desenvolveu importantes estudos e trabalhos para abastecimento de água potável à cidade de Macau. Regressou à Madeira em 1925. Foi comendador da Ordem de S. Tiago da Espada de Mérito Artístico, Literário e Científico. Escreveu em vários jornais do Funchal e do Continente, tendo sido um dos proprietários do Diário Popular. Era irmão do Eng.° Aníbal Augusto Trigo. Morreu em Lisboa, em 1926. Obras de Adriano Augusto Trigo: A Iluminação da Cidade do Funchal e o Diário de Notícias (1895). Levadas da Madeira. Relatório justificativo da proposta de lei (1896); Breves considerações sobre os melhoramentos de que carece o porto do Funchal (1912); Saneamento da cidade do Funchal. Projecto de esgotos (1900); Plano geral de distribuição e arrendamento das Águas da Levada da Serra do Faial (1901); Roteiro e guia do Funchal (1910).   Ana Londral (atualizado a 05.01.2017)

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fernando, jerónimo

Em data incerta – embora, de acordo com o Corpo Diplomático, provavelmente por volta de 1557 –, nasceu em Lisboa Jerónimo Fernando, que teve por pais Cristóvão Dias de Figueiroa e sua mulher Maria de Basto. Genealogistas como Noronha propuseram, para os ancestrais paternos do futuro prelado, uma ligação, ainda que por via bastarda, ao Rei D. Manuel I e, apesar de reconhecerem que esta linhagem era “reprovada por muitos”, elencaram, como seus sustentáculos, os testemunhos do cardeal D. Henrique e os “Senhores da Casa de Bragança” (NORONHA, 1993, 111). Outros autores, porém, afirmam não ter aquela ascendência qualquer viabilidade, “porque o motivo por que se pretende deduzir é mais para novela que para a verdade da História” (SOUSA, 1721, 340). Apesar das dúvidas que a linhagem pudesse levantar, ou talvez por causa delas, D. Jerónimo Fernando decidiu deslocar-se à corte de Madrid para, aparentemente, requerer a justificação da sua ascendência e teria sido em atenção, por um lado, aos seus pretendidos laços familiares e, por outro, ao facto de a Diocese do Funchal se achar, ao tempo, vaga pela promoção de D. Fr. Lourenço de Távora para o bispado de Elvas que o Rei, Filipe II de Portugal, decidiu prover D. Jerónimo na mitra da Madeira. Antes, porém, da viagem a Espanha, já a vida religiosa de D. Jerónimo Fernando se iniciara na Companhia de Jesus, onde militara e na qual se teria feito “muito bom teólogo” (NORONHA, 1993, 111). Depois, por razões desconhecidas, D. Jerónimo abandonou os Jesuítas e, tornando-se clérigo do hábito de S. Pedro, veio a ficar responsável por uma abadia. Eram estes, ao que se sabe, os créditos académicos e curriculares que podia apresentar quando se deu o seu provimento para bispo do Funchal, em 1619, lugar que presencialmente assumiu em 1621. Ainda antes de se deslocar para a sua Diocese, e em resultado do atraso no pagamento dos ordenados eclesiásticos, D. Jerónimo Fernando mandou fulminar com censuras o provedor da Fazenda, Antunes Leite, assomando já nesta atitude uma demonstração das características pessoais que haveriam de lhe valer o cognome de “apóstolo bravo” (VERÍSSIMO, 2000, 290). Com efeito, o bispo, cuja personalidade veio a fazer com que passasse para a História como “irrequieto por natureza” e “áspero e desabrido no trato” (SILVA, 1946, 201), pautou parte da sua ação à frente dos destinos da Diocese madeirense por uma política de afrontamento e agressividade, ainda que, nas circunstâncias referidas, a atitude lhe tenha valido reprimenda real, pois, por provisão de 22 de novembro de 1621, o Rei ordenou ao prelado que retirasse a excomunhão ao provedor, atendendo a que a matéria não era tão grave que a justificasse, bem como lhe ordenou que, de imediato, embarcasse para o seu bispado. Por outro lado, não deixou o Monarca de reafirmar, no mesmo documento, que voltara a mandar que “com efeito e toda a pontualidade se paguem vossos ordenados e do clero dessa ilha”, pelo que, logo no ano seguinte, voltou D. Jerónimo a proceder contra o provedor e almoxarife pelas mesmas razões de atrasos no pagamento, segundo se pode ler nas Memorias… que D. Fr. Manuel Coutinho, futuro bispo do Funchal, mandou escrever por volta de 1737. Na realidade, a crise económica que então se vivia, agravada pelo clima de insegurança que os barcos piratas que rondavam o arquipélago faziam piorar, estava a dificultar bastante o cumprimento dos deveres pecuniários por parte da Fazenda régia, não só ao clero como aos militares castelhanos, que chegaram ao ponto de solicitar ao provedor primazia na satisfação dos ordenados; naturalmente que esta petição não poderia deixar de indignar o bispo e demais clero, aos quais todas as provisões régias conferiam o primeiro lugar no pagamento dos ordenados, e que sobre isso mesmo escreveram ao Rei a 12 de agosto de 1622, protestando contra a posição do sargento castelhano que se atrevera a propor uma inversão das prioridades. Uma vez que este prelado assumiu, por três vezes, o lugar de governador militar do arquipélago, em cujas funções teve sérios desentendimentos com outras instâncias regionais de poder, e que a forma como se comportou enquanto governador é distinta daquela que o caracterizou como bispo, parece conveniente tratar estas duas vertentes do episcopado de D. Jerónimo Fernando de forma separada. Com efeito, e ao arrepio do que afirma Boschi, quando diz que os bispos ultramarinos que exerciam funções políticas em substituição dos verdadeiros titulares quase se limitavam a fazer da função “um mero ato honorífico”, o caso de D. Jerónimo Fernando vem demonstrar que, por vezes, os prelados usavam efetivamente os poderes que lhe tinham sido confiados, não lhes repugnando interferir, por vários meios ao seu alcance, naqueles aspetos da vida regional que não tocavam ao espiritual (BOSCHI, 1998, II, 436). Nas circunstâncias particulares deste prelado, teria até sido a forma como desempenhou as tarefas de ordem militar a grande responsável pelo ápodo de “bravo” por que ficou conhecido. Comece-se então, pela primeira das ocasiões em que o bispo ficou encarregado do cargo de chefe militar, o que aconteceu entre agosto de 1624 e abril de 1625. A razão que presidiu à designação de D. Jerónimo Fernando para o cargo de governador prendeu-se com a morte do anterior titular do cargo, D. Francisco Henriques; pouco depois de empossado, o prelado deparou com a necessidade de proceder à eleição da nova assembleia camarária. Por discordar da forma como se desenrolaram os procedimentos, D. Jerónimo deu voz de prisão a todo o senado, do que logo apelaram os camaristas para o Rei, que acabou por decidir de acordo com a reclamação da Câmara, por entender não ter o governador competência para interferir em tais atos da vida municipal. A 10 de janeiro de 1625, foi designado novo governador, D. Fernão de Saldanha, que, no entanto, rapidamente faleceu, pelo que, a 1 de junho de 1626, D. Jerónimo Fernando viu-se novamente incumbido da chefia militar do arquipélago. Neste segundo período de exercício, o prelado voltou a estar envolvido em distúrbios resultantes do atropelo de jurisdições. O caso, agora, resultou do facto de o capitão do presídio ter decidido autorizar, à revelia do governador, dos oficiais camarários, dos guardas-mores da saúde e do provedor da Fazenda, a troca de víveres locais – mantimentos e vinho – por uma carga de escravos de São Tomé que se encontravam a bordo de uma esquadra de navios piratas holandeses. Pressionada pela escassez de alimentos de que a Ilha sofria, a população amotinou-se e saiu à rua, o que levou o comandante do presídio a apontar armas à cidade. Perante o agravamento da situação e a iminência de uma revolta popular, D. Jerónimo, em conjunto com os capitães, os vereadores e a nobreza, enfrentou a indignação popular e decretou o recolher obrigatório. Neste segundo período de governo militar, o Funchal voltou a ser atacado por piratas e, no dizer de Noronha, o bispo, para além de coordenar as manobras de defesa, terá mesmo chegado a embarcar pessoalmente nos navios que do porto do Funchal partiam para o combate. O terceiro e mais atribulado período em que o prelado voltou a encarregar-se das funções do governo militar decorreu entre março de 1630 e abril de 1633, e ficou marcado por um reacender da conflitualidade com a Câmara, cujos vereadores foram, outra vez e pelas mesmas razões eleitorais, suspensos de funções, e a elas reconduzidos poucos meses depois, pois o Rei voltou a apreciar positivamente as queixas dos camaristas. Ainda durante este período, D. Jerónimo teve de haver-se por duas vezes com ataques de navios piratas, que conseguiu repelir ordenando a uma nau flamenga equipada com tripulação madeirense que lhes desse bem sucedida luta. Com estas vitórias ficaram as costas do Funchal “desassombradas” de piratas, salvaguardou-se o direito de entrarem no porto navios com bens essenciais à subsistência da população e demonstrou o prelado, uma vez mais, a capacidade de intervir em situações para as quais nada, na sua formação, o havia preparado (VERÍSSIMO, 2000, 143). Apesar de nem todas as atitudes assumidas por D. Jerónimo Fernando, enquanto governador, terem tido o melhor acolhimento por parte da Coroa, que por mais de uma vez desautorizou as decisões episcopais, a verdade é que Filipe III saberia que podia contar com o carácter destemido do bispo para resolver situações de cariz militar que aqueles tempos incertos permitiam prever. Seria isso mesmo, eventualmente, o que estaria na origem da afirmação do Rei exarada no documento em que, pela última vez, confiava ao prelado aquelas funções e onde declarava que o fazia por confiar que “vós me servireis neste governo, com a satisfação com que o fizestes das outras vezes” (ABM, CMF, t. IV, fl. 86). Mas nem só de desentendimentos foram compostas as três prelatícias incursões nos domínios do governo militar. Com efeito, logo entre 1624 e 1625, D. Jerónimo tinha-se comprometido com a defesa da cidade, mandando continuar as obras das fortalezas do Pico e de Santiago, bem como outras fortificações da cidade, “muros e portas cavas e trincheiras” que fez de novo junto à Alfândega, no que despendeu as verbas recebidas da imposição do vinho (VERÍSSIMO, 2000, 318). Este tipo de preocupação voltou o antístite a evidenciar quando, em 1631, em colaboração com o comandante do presídio, novamente se ocupou da defesa da cidade, mandando instalar trincheiras, servidas por canhões, ao longo da praia. Mantinha-se atento ao perigo dos corsários: ao menor sinal de velas estranhas, tratava de averiguar a situação e, se fosse caso disso, de equipar embarcações para combate. O outro ângulo importante sob o qual se impõe escrutinar a ação deste prelado é, obviamente, o do desempenho das suas funções episcopais, e, nesse contexto, parece possível afirmar-se não se ter pautado a intervenção do bispo pelos mesmos critérios que nortearam a sua prestação enquanto governador. Quer isto dizer que, na relação que estabeleceu com o clero e com os fiéis, não se encontraram atitudes de afrontamento ou agressividade, mas, pelo contrário, vontade de resolver as questões pendentes com respeito pelos intervenientes, com compreensão e, às vezes, compaixão pelas circunstâncias em que os diocesanos eram forçados a viver e a agir. Assim, manifestando interesse em, logo que empossado, começar a exercer as funções episcopais, deliberou, ainda antes de abandonar o reino, em 1619, que se iniciasse um programa de visitações às paróquias do bispado, tendo, para isso, indigitado visitadores. Esta atitude demonstra que, embora fisicamente distante, cuidou de inquirir sobre as pessoas com qualidade para aquelas funções, nomeou-as, e fez com que se desse início a um programa visitacional intenso, ainda que muito delegado, pois o prelado só por três vezes se deslocou, em pessoa, às paróquias rurais. No cumprimento das diretrizes recebidas, na deslocação à Tabua, em 1619, o licenciado João Rodrigues Cabral mais não fez que elogiar os fregueses que haviam contribuído para que se acabassem as obras da igreja, quase todas “à custa dos fregueses, por o reverendo vigário por sua curiosidade os incitar e aplicar a isso do que ele e todos são muito dignos de louvor” (ACDF, Tabua, Prov., fl. 55). No mesmo ano, mas na Fajã da Ovelha, o licenciado João Drumond voltava a elogiar a perfeição em que se encontrava o templo e apenas criticava a altura dos altares e o “desconcerto” dos livros das confrarias (ACDF, Fajã, Prov., fl. 52v). No Seixal, o mesmo João Drumond voltava a salientar a perfeição da igreja, à qual só faltava ser caiada e ter um sino (ACDF, Seixal, Prov., fl. 27v). Em 1621, já chegado à Diocese, D. Jerónimo fez, então, o seu primeiro périplo paroquial e, na Tabua, recebeu queixas dos fregueses em relação à ausência dos pregadores da igreja da Ribeira Brava que lá deviam ir. O bispo prometeu averiguar e tomar providências. No Seixal, em 1622, o prelado, que fora informado de que a festa do orago, S.to Antão, se realizava em janeiro, “na gema do inverno”, o que era difícil e desconfortável, autorizou que se celebrasse em agosto, em dia que o vigário e os mordomos achassem “acomodado”. Na mesma freguesia, recebia ainda queixas dos fiéis em relação ao seu vigário, acusado de “ser mais largo que o necessário” na estação da missa. O bispo recomendou-lhe que cumprisse o seu dever, mas com “modéstia, humildade e mansidão”, o que bem demonstra como se encontrava a par do que Trento preceituava para a figura ideal de pároco (ACDF, Seixal, Prov., fl. 29). Em 1628, na Tabua, Pedro Moreira – futuro deão da Sé do Funchal, responsável pela sedição de 1668, que nesta altura era visitador – permitia ao pároco que fizesse a estação da missa sentado, tanto porque para isso tinha a autoridade de ministro de Deus, como porque era velho. Na mesma localidade, em 1634, o prelado, de novo em visita, solicitava aos clérigos da Ribeira Brava que, quando fossem àquela freguesia celebrar ofícios divinos, tivessem cuidado com as horas, pois era preciso não esquecer que alguns fiéis iam de longe e precisavam de recolher a casa por “caminhos tão ásperos como se sabe” (ACDF, Tabua, Prov., fl. 75). Em 1633, no Seixal, o visitador chegava mesmo a dizer não ter encontrado nada para prover, mandando apenas que se cumprisse o anteriormente destinado. Outro episódio, ocorrido durante a visita do bispo a São Pedro, em 1622, dá igualmente conta de alguma benevolência na aplicação da justiça eclesiástica. O que se passara fora que, em pleno coro, dois cónegos se tinham desentendido, agredindo-se verbal e fisicamente, e chegando até a fazer sangue, para grande escândalo dos fregueses que a tudo assistiam. Informado o prelado da situação, cuja gravidade a fazia sacrilégio, decidiu não punir os capitulares com a excomunhão e a multa preconizadas nas Constituições do bispado, mas, atendendo à admissão da culpa e ao arrependimento mostrados, aplicou-lhes apenas alguns dias de prisão e multa. Em 1632, deslocou-se D. Jerónimo à ilha do Porto Santo, o que pela primeira vez acontecia na história do bispado e é tanto mais de registar quanto as condições da navegação, em mares infestados de pirataria, facilmente poderiam ter demovido um prelado menos audacioso. Claro que, um pouco por todo o lado, era preciso intervir corretivamente, pois havia falatórios na igreja, armas, animais e água nos adros, ornamentos em falta ou indecentes, contas e livros de confrarias por organizar, testamentos por cumprir, mulheres mal posicionadas dentro dos templos, revelia à missa, trabalho em dias santos, entre outras situações; mas as penalizações aplicadas e as sugestões apontadas não foram excessivas e, às vezes, chegavam a ser adiadas devido, e.g., a haver “falta de novidades” (ACDF, Tabua, Prov., fl. 68). No entanto, o bispo não deixava de salientar, na visita à Fajã, que “os provimentos das visitações não se fazem para estarem em mortório, senão para se fazer o que neles se provê, e se obedecer aos maiores como Deus quer”, o que significa que a vigilância estava ativa e a visita seguinte logo avaliaria o cumprimento do determinado (ACDF, Fajã, Prov., fl. 76). Outra vertente da atuação episcopal de D. Jerónimo Fernando traduziu-se na realização de três sínodos, o primeiro dos quais celebrado logo em 1622 e de onde terá, provavelmente, saído uma ordenação de novo regimento e estatutos para a Sé, visto que aqueles que se tinham vindo a usar não se encontravam em conformidade com o novo cerimonial romano, conforme se lê em documento episcopal com data de 1 de dezembro de 1622. Outros dois sínodos foram reunidos em 1629 e 1634, tendo deles resultado diversas constituições, cujo teor, contudo, se desconhece. Em 1632, consagrou o bispo a igreja de Santiago Menor, padroeiro da cidade, cuja tutela pertencia à Câmara Municipal. Mas se, por um lado, D. Jerónimo pôs todo o empenho na realização de cerimónias que duraram uma semana, foram abrilhantadas por sermões diários e congregaram povo e vereadores do Funchal, por outro, não se coibiu de procurar designar, ele próprio, o capelão para a referida igreja, ao que o senado logo se opôs, como lhe competia, lutando pela defesa das suas prerrogativas. Este não foi, porém, o único desaguisado mantido pelo prelado com o senado funchalense a propósito de provimento de benefícios. A este respeito, todas as provisões anteriores apontavam para a preferência que se devia atribuir aos naturais da terra no preenchimento das apetecidas vagas na Sé e outras igrejas, mas nem sempre os prelados resistiam à tentação de colocar, em determinados lugares da hierarquia regional da Igreja, familiares ou protegidos seus que enfermavam do mal de serem “estrangeiros”. Assim, em 1634, o procurador do concelho comunicava à vereação ter notícias de que o bispo pretendia prover três familiares seus numa conezia e outros dois benefícios, ao que o senado logo se opôs, relembrando uma provisão de Filipe III sobre o assunto com data de 5 de maio de 1627. Outros aspetos que singularizaram a ação deste bispo foram a grande assiduidade com que praticou a ordenação de clérigos de ordens menores e sacras, o que fazia normalmente uma vez por ano, e às vezes duas, e em sítios variados – ora na Sé, ora no Seminário, ora no oratório episcopal, ou, ainda, na igreja jesuíta de S. João Evangelista. Foi o prelado igualmente assíduo em cerimónias na Sé e em pregar, mostrando possuir também esse lado de difusor da palavra de Cristo que em Trento fora indicado como um dos atributos indispensáveis à figura episcopal. Para além de tudo isto, ainda se preocupou D. Jerónimo Fernando com a qualidade da música que se praticava na Sé, tendo pago do seu bolso o órgão grande para a Catedral. Apesar de se ter notabilizado mais pelo dissenso que pelo consenso, nem sempre as intervenções de D. Jerónimo Fernando apontaram no sentido da divisão e do conflito. Como já anteriormente se viu, o bispo, em ocasiões de tumulto popular, havia assumido o ónus da pacificação dos ânimos e este mesmo comportamento voltou a ser evidenciado na altura em que a restauração da monarquia portuguesa deu azo a um levantamento popular contra o governador, suspeito de demasiada simpatia pelo partido espanhol. Em tal ocasião, o prelado usou de toda a sua influência para serenar os ânimos e impedir que os tumultos evoluíssem para situações mais graves. Segundo Gregório de Almeida, D. Jerónimo Fernando não se eximiu de mostrar profundo regozijo com a restauração da independência, tendo, no dia seguinte ao recebimento da notícia, a 10 de janeiro de 1640, ido, na companhia do governador, do capitão do presídio, da nobreza e do povo da Ilha, à Câmara, onde todos aclamaram o Rei “com inexplicável alegria e contentamento” (ALMEIDA, 1643, 310). A posição de apoio de D. Jerónimo à nova dinastia pode, de resto, comprovar-se pelo facto de o seu nome não constar de uma relação de desafetos enviada por D. João IV em agosto de 1640, e até pelo teor de um provimento exarado em 1643, no Seixal, onde, a propósito de um acrescentamento da igreja paroquial, se mandava que se usasse o dinheiro da fábrica grande, por estar o Rei, a quem pertencia a obra, “impossibilitado por razão das guerras e excessivos gastos que tem em conservar seu reino e a nós em liberdade e livrar-nos da sujeição e duros tributos com que os reis de Castela oprimiam estes Reinos” (ACDF, Seixal, Prov., fl. 42). Em 1643, por razões que se desconhecem, decidiu o prelado deixar a Diocese e partir para Lisboa, sem no entanto resignar ao bispado, à frente do qual se manteve até à sua morte, em março de 1650. A 22 de dezembro de 1643, o prelado escrevia, já de Lisboa, aos seus colaboradores, comunicando estar à sua disposição para o que entendessem necessário. A comprovar que, apesar de todos os desentendimentos anteriores, a Câmara ainda recorria a ele, encontra-se um documento em que o senado apresentava ao prelado uma descrição da pobreza na Ilha. O facto de as visitações se terem continuado a fazer a bom ritmo até 1649, assumindo os visitadores estar ao serviço do prelado, apesar da ausência deste em Lisboa, demonstra que a distância não apagou em D. Jerónimo o sentido da responsabilidade nem o compromisso com o estado da Diocese.   Ana Cristina Machado Trindade Rui Carita (atualizado a 06.01.2017)

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clode, william edward

Filho de Archibald George Clode e de Maria Francelina Crawford do Nascimento, William Clode nasceu na freguesia de Santa Luzia, mais propriamente na Qt. Gertrudes, no Funchal, a 13 de setembro de 1900. Tendo nacionalidade inglesa e formação anglicana, necessitou de um visto oficial para poder viajar para Lisboa. Embarcou no dia 23 de janeiro de 1919, tendo como destino final Coimbra, onde se formará em Medicina. Na cidade do Mondego, participou no Orfeão Académico e na Tuna Académica, na qual tocava viola. Elemento importante na movimentação da vida académica da altura, fez-se sócio do Centro Académico de Democracia Cristã, que havia sido fundado em 1901, em Coimbra, com o objetivo de responder ao agravamento da questão religiosa levantada pelo Governo de Hintze Ribeiro. Aos 21 anos, recebe o batismo na Igreja Católica. No âmbito da referida Associação, fundou, a 10 de maio de 1923, o Lactário de Nossa Senhora, integrado na Conferência de São Vicente de Paulo da Faculdade de Medicina, da qual foi presidente. Doutorou-se em Medicina, em 1925, com a defesa da tese “O Problema Sexual no Meio Académico”. A 13 de setembro de 1926, no paço episcopal, casa-se com Maria Carolina Dória Monteiro. De regresso à Ilha natal e preocupado com a assistência aos mais necessitados, William Clode fundou o Dispensário Infantil Divina Providência e a Associação da Gota de Leite da Madeira. Para além disso, fundou também, em 1932, a Juventude Católica Antoniana, que englobava um grupo musical, um grupo dramático e um orfeão de 60 membros, ensaiado pelo Cap. Gustavo Coelho. Em 1940, por sua iniciativa, enquanto presidente da Juventude Católica Antoniana, é erigido, no pico dos Barcelos, um grande cruzeiro em pedra basáltica, ação que integrou as comemorações do duplo centenário de Portugal. Nomeado médico escolar em 1935, mediante concurso público, desempenhou funções no Liceu Jaime Moniz até 1966, tornando-se médico da Associação de Futebol do Funchal, em 1942, a partir da reforma orgânica do ministério da Educação, quando a Direção Geral de Saúde passou a chamar-se Direção Geral dos Desportos, Educação Física e Saúde Escolar. Foi professor de Higiene e Saúde Escolar, na Escola do Magistério Primário do Funchal. Ensinou Inglês, Ciências Naturais, Desenho e Trabalhos Manuais no Liceu de Jaime Moniz; lecionou Inglês no Seminário Diocesano do Funchal e deu aulas no Colégio da Apresentação de Maria e na Escola Industrial e Comercial António Augusto de Aguiar. No exercício das suas funções enquanto clínico, foi assistente de cirurgia e medicina da Santa Casa da Misericórdia; em 1951, é nomeado diretor clínico daquele hospital. Foi médico da Casa de Saúde de São João de Deus e, com os doutores João Abel de Freitas, António Félix Pita e Antonino Costa, fundou a Casa de Saúde Vila Guida. Em agosto de 1966, é admitido como médico da Caixa de Previdência e Abono de Família do Distrito do Funchal. Apesar de reformado, manteve sempre o seu consultório, na R. da Queimada de Cima, e a sua ação no Hospital dos Marmeleiros. Para além da sua tese de doutoramento, publicou obras como Quadros Vicentinos, Some Memories of My Life, Stories for My Grand Children e Fruits of Madeira. No âmbito do Hospital, tentou editar, com outras personalidades, uma revista trimestral intitulada Madeira Médica, cujo primeiro número aparece em maio de 1952, com a colaboração de João Porto e de outros médicos madeirenses de nomeada. Clode foi também presidente da Conferência de São Vicente de Paulo, da paróquia de Santo António, uma organização vocacionada para os pobres e a caridade, estando referenciado como “um ilustre filho desta freguesia que desde os bancos universitários em Coimbra, votou a sua actividade à obra da Caridade Cristã, através das instituições às quais está ligado o seu nome como seu fundador” (Tricentenário da Freguesia de Santa Luzia..., 1977, 116). O Almanaque do Desportista Madeirense para 1945 refere-se-lhe como “bom e honesto animador de desportos”, e identifica-o como o dinamizador, a 6 de outubro de 1940, “de um magnifico festival organizado pelo G.D. da Juventude Católica Antoniana […], um certamen de atletismo, a que o Dr. William E. Clode ligou o seu nome e o seu espírito de consciencioso desportista e admirável empreendedor” (Almanaque do Desportista…, 1945, 185). Clode tornar-se-ia, assim, médico dos desportos da Madeira. Participa na comissão administrativa da Câmara Municipal do Funchal, entre 1932 e 1940, com o pelouro dos Postos Médicos, Cemitérios e Iluminação. A sua contribuição para o desenvolvimento do concelho manifestou-se, sobretudo, na criação de escolas e de postos médicos, nomeadamente do Posto de Socorros Urgentes, situado na R. da Mouraria, assim como no alargamento da rede de distribuição da eletricidade. A 19 de janeiro de 1935, a comissão administrativa da Câmara Municipal do concelho do Funchal delibera a sua nomeação para presidente da Junta de Higiene. A 5 de janeiro de 1939, é eleito, por escrutínio secreto, vice-presidente da Câmara. Fez ainda parte da comissão organizadora das festas da cidade do Funchal em 1946, 1947 e 1948. A sua ação cultural foi igualmente notável: em 1943, foi um dos fundadores e presidentes da comissão executiva da Sociedade de Concertos da Madeira, juntamente com o seu irmão, Luiz Peter Clode (1904-1990), tendo estes, em 1947, proposto ao conselho diretivo da referida Sociedade a criação da Academia de Música da Madeira, de cuja comissão administrativa fez parte, no ano letivo 1946/1947. Por sua iniciativa, esta Academia transformar-se-ia, em 1956, em Academia de Música e Belas Artes da Madeira, com exames equivalentes aos realizados no Conservatório Nacional e nas escolas superiores de Belas-Artes (Pintura e Escultura) de Lisboa e Porto. Entre 1946 e 1974, William Edward Clode integrou a comissão administrativa desta Academia. Sob pseudónimos, escreveu várias peças para teatro. É autor de algumas peças de música sacra, como “Missa a Santa Teresinha” e um conjunto de composições para órgão que publicou em edição de autor: Stella Matutina, Tantum Ergo, Mater-Dei e Regina Coeli. É ainda que salientar que foi presidente da primeira Casa do Povo da Madeira e um dos fundadores do Posto Emissor de Radiodifusão do Funchal, posteriormente designado PEF (Posto Emissor do Funchal), sito à R. da Ponte de São Lázaro, n.º 3. Tendo sido “criado com o propósito de aumentar o nível cultural da população madeirense, inculcando-lhe o gosto pela música de qualidade” (MORAIS, 2008, 395), foi instalado numa das dependências do Teatro Municipal Baltazar Dias, cedida pela Câmara Municipal do Funchal, sob a presidência de Óscar Baltazar Gonçalves. Interessando-se ainda pela área do comércio, tentou desenvolver, sob a marca Crawford, uma indústria caseira, primeiro de pó dentífrico e água-de-colónia, e, depois, de pickles, compotas, chocolates, pastilhas de hortelã, licores e sumo de maracujá. A 18 de março de 1984, a Câmara Municipal do Funchal dá o seu nome a um caminho, até então conhecido como caminho das Romeiras. A sua efígie está representada no Conservatório de Música da Madeira, numa placa em gesso patinado de bronze, datada de 1986, da autoria do escultor Anjos Teixeira. Faleceu em casa, na Qt. Crawford, no Funchal, a 3 de outubro de 1980. Obras de William Edward Clode: O Problema Sexual no Meio Académico (1925); Quadros Vicentinos (1938); Some Memories of My Life (1971); Stories for My Grand Children (1973); Fruits of Madeira (1974).   Graça Alves (atualizado a 30.12.2016)

Personalidades

ferraz, joão higino

Filho de João Higino Ferraz e neto de Severiano Alberto Ferraz, foi um destacado técnico e cientista do engenho Hinton entre 1888 a 1946, tendo sido o responsável por muitas das inovações introduzidas nos processos de produção de açúcar e de vinho. Palavras-chave: açúcar; vinho; engenhos; Hinton. Nascido no Funchal em 1863, é filho de João Higino Ferraz e neto de Severiano Alberto Ferraz (1792-1856), o primeiro a construir um engenho a vapor na ilha da Madeira, em 1856. Terá também sido o seu avô quem estabeleceu, entre 1848 e 1856, uma fábrica da família na Ponte Nova, onde João Higino começou a trabalhar e cuja direção assume em 1882. Era um jovem de 18 anos que se tornava responsável pela fábrica e que se manteve no cargo de direção até 1886, altura em que a família foi forçada a vender o edifício e os equipamentos em praça pública. Liquidada a fábrica, esteve dois anos sem emprego até que, em 1888, arrendou, em sociedade com o tio, João César de Carvalho, a fábrica de destilação da Ponte Deão, de Severiano Cristóvão de Sousa. No ano imediato, entrou para a fábrica do Torreão, da firma William Hinton & Sons, como técnico de fabrico de açúcar e álcool, assumindo a gerência industrial e técnica. Num manuscrito lavrado pela mão do próprio, João Higino Ferraz diz que, em 1900, assinou contrato com a fábrica do amigo Harry Hinton, a que ficou vinculado até à morte, em 1946. Todavia, e de acordo com o primeiro copiador de cartas, sabemos que estava ao serviço da firma desde 18 de outubro de 1898, como se pode confirmar pela carta enviada ao amigo e patrão Harry Hinton, solicitando a sua presença no engenho em construção para poder decidir sobre a forma de disposição das máquinas. No sentido de dar continuidade ao processo de modernização da fábrica do Torreão, esteve de visita aos complexos industriais franceses que laboravam a beterraba para o fabrico de açúcar. A visita foi proveitosa, refletindo-se nas modernizações do sistema do engenho de Hinton. Esta experiência terá sido importante para a saída que fez, em 1930, a Ponta Delgada (São Miguel), para dar alguns ensinamentos sobre o processo de fabrico de açúcar, nomeadamente a fermentação do melaço. Em julho de 1927, embarcou para o Lobito com Charles Henry Marsden (1872-1938), um engenheiro natural de Essex responsável pela modernização do engenho da casa Hinton, para montar uma estrutura mais moderna no engenho Cassequel, propriedade da casa Hinton. Aí permaneceu 103 dias, regressando ao Funchal a 13 de dezembro de 1928. O diário da saída, compilado numa agenda, documenta o processo de montagem da fábrica e as dificuldades de adaptação das peças ao conjunto da estrutura. Em 1945, lamentava-se: “sou pois técnico em fabricar açúcar e álcool, desde 1884 a 1945 = 61 anos. Não tenho direito a ter o título de técnico de fabricar açúcar e álcool oficialmente em Portugal? […] Desejava pois obter o título oficial de técnico de fabricar açúcar e álcool ou como técnico prático de fabricar açúcar e álcool” (FERRAZ, 2005b, 44). Mas acabou por morrer sem que fosse reconhecido o seu gigantesco trabalho como técnico, tendo sido a principal alma da permanente atualização tecnológica e química da fábrica do Hinton, que foi na época uma das mais avançadas tecnologicamente. A ideia está presente também no testemunho do próprio: “Nestes longos (60) anos assisti a variados sistemas de fabrico, desde quase do início de maneiras antigas no fabrico do açúcar de cana, destilação, etc., etc., acompanhando sempre os progressos nestas indústrias até hoje, principalmente desde 1900 a 1944, na fábrica do Torreão, onde pusemos em trabalho consecutivamente os sistemas os mais aperfeiçoados e mais modernos no fabrico de açúcar e álcool” (Id., 2005a, 39). Na correspondência com Harry Hinton, transparece uma perfeita sintonia entre os dois, que favoreceu o processo de permanente atualização tecnológica e química; partilhavam a mesma paixão pela indústria e desenvolvimento do engenho do Torreão. João Higino Ferraz não receia manifestar, diversas vezes, a amizade que o prende ao patrão. Em 1917, confessa: “Harry Hinton é um dos meus melhores amigos”. Passados 10 anos, confessa que a viagem a África sucedeu apenas “para ser agradável ao senhor Hinton a quem devo amizade e reconhecimento” (Id., Ibid., 40). João Higino Ferraz era o superintendente, mas acima de tudo um cientista que procurava aperfeiçoar os conhecimentos de química e tecnologia, através do confronto entre a literatura estrangeira e a sua capacidade inventiva. Manteve-se, assim, atualizado através da leitura de publicações, fundamentalmente francesas. Nos estudos, manifesta-se um cientista arguto que não detém a atenção apenas na cana sacarina, pois estuda e opina sobre o uso de outros produtos no fabrico de açúcar e álcool, como é o caso da batata e da aguardente.   Se confrontarmos a literatura científica mais significativa dessa altura, de finais do séc. XIX até à Segunda Guerra Mundial, verificamos que os conhecimentos e as técnicas mobilizados no engenho de Hinton são permanentemente atualizados e que se pautam por padrões de qualidade, integrando informações sobre os métodos mais avançados, como os estudos dos engenheiros químicos e industriais que marcaram o processo tecnológico do momento. Aliás, mantém contacto com inúmeras associações científicas europeias, como era o caso da Association des Chimistes de Sucrerie et de Distillerie. Na correspondência, surgem assiduamente nomes de cientistas europeus, como Barbet e Naudet. É de João Higino Ferraz o invento de um aparelho de difusão cujos direitos cedeu, em 19 de novembro de 1898, à firma William Hinton & Sons. Naquilo que resta da sua biblioteca, encontra-se um conjunto valioso de tratados de química e tecnologia relacionados com o açúcar. Sob a sua orientação, foram feitas várias experiências e adaptações dos sistemas tecnológicos importados. Em 1929, em carta ao amigo Avelino Cabral, que estava no Lobito, refere: “Como tenho tido tempo estou em estudos e experiências com o fermento Possehl’s no laboratório, e tenho obtido coisas bastante curiosas nas culturas feitas”. Ainda em carta ao mesmo refere a utilidade das inovações e experiências: “para que a parte comercial de uma indústria dê o resultado, é necessário ver também a parte industrial ou técnica” (Id., Ibid.). Apenas em 1922 temos informação de quanto auferia João Higino Ferraz pelos serviços prestados à fábrica Hinton. Para o novo contrato a celebrar reclamava 63 libras mensais, sendo o câmbio realizado mensalmente, ficando “com pulso livre para fazer e dirigir as minhas pequenas indústrias fora de açúcar, álcool e aguardente, não prejudicando por estes meus trabalhos a direcção técnica da fábrica de açúcar e álcool do Torreão” (Id., Ibid.). João Higino Ferraz fica para a história como um dos principais obreiros da modernização do engenho do Hinton ocorrida na primeira metade do séc. XX. Enquanto esteve à frente dos destinos da fábrica, de 1898 a 1946, foi imparável na sua adequação aos novos processos e inventos que iam sendo divulgados, não se coibindo mesmo de fazer algumas experiências com o equipamento e os produtos químicos. Opina sobre agronomia, bem como sobre mecânica e química, mantendo-se sempre atualizado sobre as inovações e experiências na Europa, nomeadamente em França. Da sua lista de contactos e conhecimentos fazem parte personalidades destacadas do mundo da química e da mecânica. Assim, para além dos contactos assíduos com Naudet, refere-nos com frequência os estudos de Maxime Buisson, M. E. Barbet, M. Saillard, F. Dobler, M. D. Sidersky, Luiz de Castilho, M. H. Bochet, M. Effort e M. Gaulet. À frente do engenho, a sintonia e empenho de Ferraz e Hinton fizeram com que a Ilha apresentasse, entre finais da centúria de oitocentos e inícios da seguinte, uma posição destacada no sector, atraindo as atenções a nível mundial. O Hinton acolhe especialistas de todo o mundo, na condição de visitantes ou como contratados para a execução dos trabalhos especializados. O Eng.º Charles Henry Marsden foi um deles, tendo aí trabalhado entre 1902 e 1937, altura em que saiu doente para Londres, onde faleceu no ano seguinte. A sua presença está documentada pelo menos em 1918, 1929 e 1931. Destaca-se também o Eng.º químico agrícola Maxime Buisson, que, em 1902, trabalhava no laboratório. Para o fabrico de açúcar, contratavam-se os afamados cuiseurs em França, de forma a seguir-se à risca as orientações de Naudet. O empenho de João Higino Ferraz não ficou por aqui, pois apostou também no processo de vinificação, âmbito no qual protagonizou algumas inovações que marcaram as primeiras décadas do séc. XX. A documentação disponível refere o seu empenho no processo de fabrico de vinho, aguardentes e outras bebidas, como a cidra, a cerveja e o vinho espumoso. A partir de 1905, J. H. Ferraz, a exemplo do que sucedeu com o fabrico do açúcar, manteve-se permanente atualizado sobre a tecnologia francesa de fabrico de todo o tipo de bebidas fermentadas e destiladas. São frequentes as referências a equipamentos franceses, bem como a um conjunto de títulos sobre o tema, de que era possuidor de alguns exemplares. Na déc. de 20, construiu uma vinharia onde foi possível montar o aparelho de evaporação Barbet e um moderno sistema de refrigeração. Ao nível da destilaria, devemos assinalar a sua presença em Almeirim, em 1916, para montar um aparelho francês. As experiências levaram-no a produzir cidra, cerveja e malte, e, com vinho branco, xarope de uva, vinho de mesa e espumoso – que chamava de “fantasia” para não se confundir com o francês –, vinagre, vinho cidre maltine, licores finos, anis escarchado e genebra, que vendia localmente e exportava para alguns mercados como a Alemanha. Por outro lado, tentou imitar os vinhos franceses, o sauterre e o champagne. Da sua lista de experiências, constam ainda as que fez para o fabrico de geleia de pêro, marmelada de bagaço de pero e fermento puro de uva para uso medicinal. Ferraz apostou, pois, no aperfeiçoamento do processo de vinificação, sendo a sua vinharia um exemplo disso. Neste contexto, fez diversas demonstrações sobre o uso dos processos Barbet e Sémichon, sendo defensor da necessidade da compra da uva ao agricultor, medida que contribuía para um maior aproveitamento das massas vínicas e para um maior cuidado no acompanhamento do processo de vinificação que defendia. Numa época em que o vinho jaquet, casta americana, dominava a produção, fez ensaios para o seu uso com o vinho Madeira e com o vinho de mesa para consumo local. Além disso, apresentou um vinho de mesa ligeiramente gasoso, pelo processo de M. Mercey, que, no seu entender, deveria competir com a cerveja. Sucede que, nas experiências de 1914, o vinho posto à venda não teve grande aceitação, porque as garrafas haviam perdido parte do gás carbono por causa da má qualidade da rolha. Mesmo assim, retoma essas experiências em 1927. J. H. Ferraz, a exemplo do que sucedeu com o conde de Canavial, bateu-se por mudanças radicais no processo de fabrico do vinho, apelando ao abandono das técnicas tradicionais a favor das vantagens das descobertas entretanto ocorridas na centúria de oitocentos no processo de vinificação, com os sistemas Barbet e Sémichon. Todas as experiências e ensaios eram sempre fundamentados com estudos científicos de carácter químico, nomeadamente franceses, e com a apresentação de equipamentos, maioritariamente com origem na tecnologia açucareira, que o mesmo adaptava, pelas suas próprias mãos, ao fabrico do vinho. A tudo juntava estudos minuciosos de viabilidade económica do novo produto, no sentido de convencer a Casa Hinton ou outros parceiros, mas o gosto madeirense não se mostrou favorável à novidade. Os conhecimentos adquiridos com o fabrico de açúcar no engenho do Hinton foram fundamentais para estes ensaios, mas o sucesso da iniciativa não foi coroado de êxito, pelo que acabará por abandonar esta atividade em 1942. O arquivo do engenho do Hinton é, por força das circunstâncias atrás descritas, fundamental para o conhecimento da história contemporânea da agricultura madeirense. Todavia, a forma conturbada como sucedeu o processo de desmantelamento da estrutura para a construção de um jardim público conduziu a que toda esta memória desaparecesse. Felizmente, tivemos a possibilidade de encontrar alguns testemunhos avulsos no arquivo particular de João Higino Ferraz. A documentação disponível, copiadores de cartas, livros de notas e apontamentos, constitui um acervo raro na história da técnica e da indústria. Não se conhecem casos idênticos de livros de apontamentos em que o técnico documenta, quase minuto a minuto, o que sucede na fábrica, desde os percalços do quotidiano às questões técnicas e laboratoriais. Para além disso, se tivermos em conta que a mesma documentação abrange um período nevrálgico da história de indústria açucareira, marcada por permanentes inovações no domínio da metalomecânica e da química, compreendemos claramente a importância deste tipo de espólio, que mais se valoriza pelo facto de ser, até aos começos do séc. XXI, o único divulgado e conhecido. O conjunto de nove livros referentes às cartas abarca um período crucial da vida do engenho do Hinton (1898-1937), marcado por profundas alterações na estrutura industrial, por força das inovações que iam acontecendo. A partir deste acervo de cartas, é possível conhecer tudo isso, mas também deduzir algo mais sobre o funcionamento desta estrutura. Ao mesmo tempo, ficamos a saber que João Higino Ferraz era, em Portugal, uma autoridade na matéria, prestando informações a todos os que pretendessem montar uma infraestrutura semelhante. Assim, em 1928, acompanhou a montagem do engenho Cassequel, no Lobito, onde a família Hinton tinha interesses, e esteve, em junho de 1930, em Ponta Delgada, nos Açores, a ensinar a fermentar melaço de açúcar de beterraba, na Fábrica de Santa Clara. Harry Hinton surge, em quase toda a documentação, como um interveniente ativo no processo, conhecedor das inovações tecnológicas e preocupado com o funcionamento diário do engenho, nomeadamente com a sua rentabilidade. J. H. Ferraz informava-o, de forma quase diária, de tudo o que se passava. A proximidade do Funchal aos grandes centros de decisão e inovação tecnológica da produção de açúcar a partir de beterraba, na França e Alemanha, associados aos contactos de H. Hinton e ao seu espírito empreendedor fizeram com que a Madeira estivesse na primeira linha da utilização da nova tecnologia. Em 1911, documentam-se diversas experiências com equipamento. Além disso, funcionava como espaço de adaptação da tecnologia de fabrico de açúcar a partir da beterraba para a cana sacarina. Daí as diversas deslocações de J. H. Ferraz a França (1904 e 1909) e os permanentes contactos com alguns estudiosos e fábricas. Tenha-se em conta que o mesmo era sócio da Association des Chimistes em França, sendo por isso leitor assíduo do seu Bulletin. Por outro lado, alguns inventores, como Naudet e engenheiros de diversas unidades na América (Brasil e Tucuman), Austrália e África do Sul, estavam em contacto com a realidade madeirense, fazendo, por vezes, deslocações para estudar o caso do engenho madeirense. A erudição de J. H. Ferraz era vasta, dominando toda a informação que surgia sobre aspetos relacionados com o processo industrial e químico do fabrico do açúcar. Para além da leitura do Bulletin de l’Association des Chimistes, temos referências à leitura do Journal de Fabricants de Sucre, e podemos documentar na sua biblioteca a existência de diversas obras da especialidade, muitas delas referenciadas nos livros de notas ou cartas. Aliás, nas cartas que manda a Harry Hinton quando este se encontra no estrangeiro, pede-lhe frequentemente publicações recentes. O corpo documental provém do arquivo privado de João Higino Ferraz e pode ser seccionado em três partes fundamentais: uma primeira constituída por nove copiadores de cartas; uma segunda formada por vários volumes de livros de notas; e, por fim, documentação avulsa. Esta organização do arquivo pessoal de J. Higino Ferraz é, de certa forma, artificial, dado que não foi feita pelo autor; trata-se de uma elaboração arquivística, que decorre da análise do conteúdo e da tipologia dos vários documentos que o compõem. A primeira parte, composta por nove livros onde Higino Ferraz conservou, em cópia, muita da correspondência por si remetida, e não só, cobre o período de 1898 até 1937, com um hiato temporal provavelmente entre finais de 1913 e inícios de 1917, e outro possivelmente de janeiro a outubro de 1919. Julgamos que estas lacunas estariam contempladas em dois volumes autónomos; contudo, se existiram, esses livros não ficaram para a posteridade. A designação “copiador de cartas” foi adotada devido ao facto de os dois primeiros livros, que cobrem o período de 1898 a 1913, terem esse título na capa – não aposto por João Higino Ferraz, mas como denominação da finalidade dos volumes. Entendeu-se por bem atribuir a mesma designação a todos os livros, seguida da referência aos lapsos de tempo que abarcam. Cumpre ainda acrescentar que nem toda a correspondência remetida por João Higino Ferraz está presente nestes livros e que nem toda a documentação neles inserida é composta por epístolas. Ver-se-á que de algumas cartas enviadas, sobretudo as datilografadas, guardou o autor cópia sob a forma avulsa, estando as mesmas – aquelas a que tivemos acesso – transcritas na secção da documentação avulsa. Fizemos preceder cada carta transcrita de uma informação sumária concernente à data, ao destinatário e ao local, quando possível, para permitir uma mais rápida perceção por parte do leitor. Ao longo da transcrição, demo-nos conta de que alguma informação exarada nos copiadores não era, com efeito, composta por epistolografia, mas sim por relatórios, cálculos, estimativas de produção, lucros e despesas, etc. Antepusemos a cada um dos informes deste teor a menção à sua data e ao se destinatário, se conhecido fosse, e uma breve caracterização. Uma segunda secção deste espólio documental transcrito é constituída por anotações e apontamentos vários – inscritos em livros autónomos –, versando sobre produtos, processos, aparelhos e técnicas industriais de produção, bem como sobre a transformação de açúcar, álcool e aguardente; quase todos estes volumes têm título atribuído por João Higino Ferraz, que é respeitado e aceite por nós. Ainda que algo artificial, a denominação dada a este conjunto, “livros de notas”, advém dos próprios títulos atribuídos pelo autor. A última secção é constituída por documentação avulsa, abarcando: documentos epistolares, saídos do punho de Higino Ferraz (particularmente cópias de cartas) ou tendo-o como destinatário (sendo seus autores, por exemplo, Harry Hinton, Marinho de Nóbrega ou Antoine Germain); documentos referentes a aparelhos, processos e técnicas de fabrico e transformação de açúcar, álcool e aguardente (à imagem da informação exarada nos livros de notas); anotações manuscritas que João Higino Ferraz lançou nos forros da capa ou folhas de guarda de alguns livros ou manuais por si usados, que versavam sobre a cultura e produção de cana sacarina e seus derivados; e, ainda, apontamentos autobiográficos. Dividimos esta documentação em duas subsecções: a primeira, composta por todos os documentos que têm por autor Higino Ferraz; a segunda, por todas as fontes que foram produzidas por outros indivíduos. O arquivo privado deste técnico açucareiro, que morre em 1946, permite-nos, pois, ter acesso a informações que ilustram vários aspetos da sua vida pessoal e familiar, nomeadamente as suas condições de vida, relações de amizade e conceções políticas, sociais e económicas. Ao mesmo tempo, esta documentação reveste-se de especial interesse para a história da Madeira da primeira metade do séc. XX, sobretudo no que respeita à história da indústria açucareira nas suas vertentes económica, social e técnica, mas também nos seus meandros e implicações políticas.   Alberto Vieira (aualizado a 06.01.2017)

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