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sebastianismo

Tal como acontecia no Reino, também na Madeira, no rescaldo da derrota de D. Sebastião em Alcácer-Quibir, surgiram lendas que evocavam a possibilidade do regresso do Rei para resgatar Portugal do domínio castelhano. Essas lendas, que, na Madeira, se misturam com o imaginário do ciclo arturiano, começaram por se manifestar logo nos inícios do século XVI, mas mantiveram-se presentes na imaginação popular de forma tão duradoura que ainda no século XX são objeto de referência por parte de autores madeirenses. Palavras-chave: D. Sebastião, a Ilha Encoberta, a Espada, Arguim, Rei Artur. O sebastianismo foi um sentimento de cariz messiânico que se divulgou em Portugal na sequência do desaparecimento do Rei D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir (1578), espalhando-se por todo o território nacional nos fins do séc. XVI e princípios do século seguinte. As razões da sua rápida propagação no todo nacional terão de ser procuradas na própria história de um país que se formou na luta contra os mouros e os Castelhanos, a quem habitualmente levou de vencida, ainda que com um ou outro contratempo traduzido em derrotas momentâneas, suplantadas, depois, por vitórias que permitiram não só a sua autonomia, mas até a sua dilatação sob a forma de grande império ultramarino. Lutadores convictos da sua independência, habituados a porfiar contra os inimigos, os Portugueses não conseguiam aceitar a ideia de que a sua pátria, forjada com tanto sacrifício, tivesse sido, de um só golpe, vencida pelos inimigos tradicionais – os mouros, que desfizeram o seu exército, e os Castelhanos, para quem sobrou o trono – e, para melhor enfrentar o infortúnio, socorreram-se da ideia de um inevitável regresso de D. Sebastião, estratégia messiânica que se inscreve numa tradição que, vinda do judaísmo, não deixara completamente de circular por entre os povos cristãos. Assim, ainda que se questionasse a impreparação e a irresponsabilidade do Monarca desaparecido, a nação ansiava pelo seu regresso, visto como condição sine qua non para a libertação do domínio castelhano; e o Rei, que já nascera com o cognome de “o Desejado”, tornava-se ainda mais desejado depois do seu desaparecimento no Norte de África. A força desse desejo nacional será, pois, o suporte do messiânico desígnio do sebastianismo. Esta crença é, em si mesma, indicativa da força da comunidade judaica em Portugal, no seio da qual nasceu Gonçalo Anes Bandarra, autor de umas trovas proféticas e dedicadas às dificuldades, mas também ao destino imperial de Portugal, nas quais se vem a inspirar o movimento sebástico. A comunidade cristã-nova, perseguida pela recém-criada Inquisição, encontrou na Madeira, num primeiro momento, um porto de abrigo onde se refugiou, julgando-se protegida pela inexistência local de uma delegação permanente do Santo Ofício, e seria ela, talvez, o veículo de divulgação regional das trovas de Bandarra. O acolhimento que, na Madeira, se dispensará à divulgação da mítica sebastianista radica, por sua vez, numa propensão para acolher o mito como elemento fundador da identidade insular, uma vez que algumas explicações para a origem da Ilha repousam em lendas que povoam o imaginário popular. Com efeito, a ilha da Madeira constituía, aos olhos dos seus habitantes, um espaço encantado que teria tido origem num momento em que, estando Nossa Senhora a chorar pelos pecados do mundo, deixara cair uma lágrima sobre o oceano. Dessa gota sagrada nascera uma pérola que se transformara em ilha – a da Madeira, que assim se assumia como território afortunado, bafejado por um clima ideal, águas abundantes, vegetação luxuriante, terra fértil e acolhedora. Esta lenda está, por sua vez, associada a uma outra – a da desaparecida Atlântida, continente afundado pela ira divina e do qual a Madeira teria ficado como memória (Lendas e mitos fundadores). Esta ideia de ilha encantada é, precisamente, recuperada por uma das lendas do sebastianismo insular, que reporta a existência de uma terra mítica que, em determinados dias, aparece no horizonte e onde se conta que vive um Rei que, um dia, de lá há de sair para vir libertar o seu povo, muito à semelhança do que aconteceu com o Rei Artur, que se refugiou na ilha de Avalon, de onde regressará para libertar os Bretões. As semelhanças entre o sebastianismo madeirense e o ciclo arturiano não se ficam por aqui, pois outras lendas madeirenses falam de uma espada – a versão insular de Excalibur –, enterrada pelo Rei desaparecido em vários locais da costa: uma fala da Penha de Águia, outra do cabo Girão, outra, ainda, da ponta da Galéria ou Galé, na Calheta, admitindo-se aí ter sido colocada por D. Sebastião, quando, a caminho de Arguim, teria passado pela Madeira. Esta suposta passagem do Monarca derrotado pela Ilha não tem, de facto, nenhum suporte efetivo, mas como o território da lenda não atende a estas circunstâncias, não é estranho que se afirme, a respeito da referida espada: “braço de rei a meteu e só braço de rei a pode tirar” (FREITAS, 1984, 69). Tornou-se, ainda, voz corrente que, em momentos especiais, com tempo claro, os pescadores a conseguem ver. A ilha de Arguim, local do exílio temporário do Rei, é um território que se situa no golfo da Guiné e pertenceu, inclusivamente, à Diocese do Funchal, tendo sido, para efeitos do mito, transformada também numa espécie de terra encantada, que tanto emerge como submerge, e onde a imaginação popular entrevê um Rei, ora novo e garboso, ora velho e desalentado, que recebe no seu pequeno reino missionários a quem promete regressar para ocupar o trono português, o que acontecerá depois de resgatar a espada que enterrou em solo madeirense. Segundo uma versão desta lenda, a retirada da espada implicará o afundamento total da Madeira; segundo outra, apenas se verificará uma submersão parcial, devendo o futuro cais ficar pela altura da igreja de N.ª Sr.ª do Monte. A sobreposição, um tanto surpreendente, entre os romances de cavalaria onde se inscreve a lenda do Rei Artur, e as versões insulares das lendas de D. Sebastião, tem, ainda, validação na capitania de Machico, entregue a um muito medieval Tristão Teixeira, que aí organizava justas e torneios, e onde se fundou uma povoação de nome Gaula, habitada por Lancelotes, Grismundas, Isoas e Galaazes. Na tradição oral madeirense encontram-se, também, narrativas de histórias multisseculares, onde se cruzam personagens oriundas de um universo medieval – reis, condes, princesas e donzelas –, que não poderão deixar de ter sido bebidas na tradição dos romances de cavalaria tão bem ilustrada pelas histórias arturianas. A retoma da independência nacional operada por D. João IV continua a inscrever-se no universo do messianismo sebástico que, confrontado com o não retorno de D. Sebastião, transfere para a figura do novo Monarca todo o capital de esperança que era património da lenda. Na Madeira, o anseio pela devolução de Portugal à qualidade de estado independente manifestou-se na figura do cónego Henrique Calaça que prometera edificar um mosteiro feminino caso esse desígnio se cumprisse. Este é, pois, o quadro em que se regista a fundação do Convento de N.ª Sr.ª da Encarnação nos anos imediatos à Restauração, cumprindo-se, assim, a materialização do sonho sebástico. Outro indicador da identificação da figura de D. João IV como novo messias surgido para resgatar Portugal do domínio castelhano surge com a publicação, em 1643, de uma obra da autoria do padre madeirense António Veloso de Lira, intitulada Espelho de Lusitanos em o Cristal do Psalmo Quarenta e Três, Cuja Vista Representa este Reino em Três Estados. O Primeiro, desde os Seus Princípios, com todas as Felicidades e Grandezas até D. João o Terceiro. O Segundo, as Calamidades e Infortúnios Começados com El Rey D. Sebastião, e Continuados por todo o Governo Castelhano. O Terceiro Estado, as Maravilhas Obradas por Deus em a Feliz Aclamação e Restauração de El Rey Nosso Senhor D. João o Quarto, com os mais Raros Casos nella sucedidos, assim neste Reino como no de Castela. Nesta obra, o sacerdote, nascido na Calheta em 1516, considera os Portugueses como povo escolhido por Deus que, depois de um passado glorioso, se vira ignominiosamente sujeito a um domínio estrangeiro terminado em 1640, o que justifica, então, a exaltação nacionalista que subjaz à narrativa. A apresentação da figura do restaurador como responsável pelo concretizar da aspiração nacional latente desde o desaparecimento de D. Sebastião é, pois, um elemento mais a juntar ao processo que coroa a eclosão do movimento messiânico inaugurado com Alcácer Quibir, cujas repercussões ecoaram no país e também na Madeira, traduzidas tanto em narrativas do foro da lenda como em ações concretas de congratulação pelo seu ansiado fim. O anseio permanente que acompanha os Portugueses em geral, e os madeirenses em particular, de ver resgatada a antiga fortuna nacional, e de que a lenda sebástica é tradução, não desapareceu com o tempo, manifestando-se ainda no decorrer do séc. XX. A prová-lo pode citar-se uma obra vinda a público em 1954 e da autoria de Amadeu Mimozo, na qual o autor intercala capítulos de índole autobiográfica com outros em que aflora aspetos da vida e da história da Madeira. Incluídos nesta narrativa intermitente que mistura a história pessoal, por um lado, e a história do descobrimento da Ilha, por outro, com episódios ligados a Cristóvão Colombo, surgem, ainda, espaços narrativos consagrados à ilha encoberta e às lendas que a sustentam. De acordo com Mimozo, radica em Platão a ideia de que a Atlântida “pegava com a Península Ibérica”, tendo sido em parte submersa por um grande terramoto que isolou a Europa da América (MIMOZO, 1954, 113). Dessa catástrofe sobreviveu uma ilha na qual se refugiou Rodrigo, o último Rei godo, em fuga da invasão moura da península. Prosseguindo a fundamentação autoral em que ancora a descrição, Mimozo evoca D. Francisco Manuel de Melo, segundo o qual, em 1444, uma embarcação genovesa abordou a referida ilha, onde encontrou falantes de português. A ilha tinha sete cidades, cada uma com seu bispo, e mais de 300 vilas cujos habitantes teriam tido origem na cidade do Porto, que abandonaram quando o Rei Rodrigo foi derrotado pelos mouros. O mesmo território encantado teria sido visitado por dois religiosos que se dirigiam do Brasil para Lisboa, numa nau capitaneada por António de Sousa, em viagem interrompida por uma enorme tempestade. Quando os ventos amainaram, a tripulação vislumbrou, a sul, uma terra misteriosa que supôs ser a Madeira. Inseguros em relação ao que viam, pediram os tripulantes licença para desembarcar, e ao fazê-lo depararam com um palácio de onde saíram sete homens que falavam um vago português e trajavam à moda da Nazaré, que os conduziram ao interior do palácio onde lhes apresentaram um Rei idoso que lhes perguntou se eram portugueses. Certificado da origem dos visitantes, levou-os a uma sala onde se encontrava um quadro representando uma cena de batalha na qual figurava um exército quase derrotado ao lado de um outro, vitorioso, cujas tropas vestiam trajes mouros. Terminada a visita, os tripulantes regressaram a bordo e relataram vividamente a experiência. Atemorizado, o mestre da embarcação não arriscou viajar nessa noite, só o fazendo na manhã seguinte. Depois de quatro dias de navegação, os homens encontraram, então, de facto, a ilha da Madeira, na qual se demoraram quatro dias, contando o autor que “alguns habitantes madeirenses garantiam que esta ilha aparecia de tempos a tempos, o que juraram” (Id., Ibid., 126). Não chegando a afirmar que o Rei misterioso era D. Sebastião, Amadeu Mimozo atribui, no entanto, essa convicção ao povo madeirense, que, segundo ele “dá como encantado El-Rei D. Sebastião na Ilha Encantada”, embora acrescente que este facto se não pode afirmar historicamente. Segundo o autor, o destino do Monarca seria mais credivelmente rastreado em batalhas na Europa, onde teria defrontado infiéis, acabando por ser martirizado em Itália e Espanha, às ordens de um Filipe II de Espanha atemorizado pela perspetiva de perder o trono de Portugal caso se demonstrasse que D. Sebastião vivia ainda. Em abono desta tese, aponta as opiniões do P.e António Vieira que atestavam o martírio do soberano, confirmado pelo corpo diplomático espanhol, nomeadamente pelo duque de Medina Sidónia e sua mulher, que conseguiram identificar o Rei português pela descrição que este fizera de uma espada e de um anel que anteriormente lhes oferecera (Id., Ibid., 137-139). Os dados que enformam a parte mitificada desta narrativa, e as fontes nas quais se inspira, já tinham sido abordados por outro escritor madeirense, Abel Tiago de Sousa Vasconcelos, que em 1924, e sob o pseudónimo de “Lusitanus”, fizera publicar uma obra intitulada Sinais dos Tempos, onde consagrava vários capítulos à Ilha Encantada e ao possível destino de D. Sebastião, também aqui considerado como desenrolado na Europa. A obra em questão, integralmente consagrada ao Quinto Império e ao papel central que Portugal nele desempenha, não poderia deixar de abordar a figura do Rei como encarnação do renascer do reino, objetivo pelo qual teria dado a vida, sacrificado à vontade e às manobras políticas do Rei de Espanha. Ainda que, no caso presente, a narrativa seja muito mais pormenorizada, as semelhanças com o texto de Amadeu Mimozo podem autorizar a suposição de que Mimozo teria lido a prosa de Vasconcelos, nela se inspirando para a recolha da informação que depois utilizou em Ilha dos Sonhos. O facto de estas duas obras terem sido publicadas na primeira metade do séc. XX e de consagrarem uma parte dos seus textos à evocação de territórios misteriosos e à provação sebástica é, pois, demonstrativo de que a crença no mito perdurou, mantendo-se parte do imaginário insular quase 400 anos depois da suposta ocorrência dos factos.   Cristina Trindade

História Económica e Social História Política e Institucional

região autónoma

A divisão fundamental das formas de Estado, de há muito formulada pela doutrina, dá‑se entre Estados simples ou unitários e Estados compostos ou complexos. Critérios de distinção são: unidade ou pluralidade de poderes políticos (ou de poderes soberanos na ordem interna); unidade ou pluralidade de ordenamentos jurídicos originários ou de constituições; unidade ou pluralidade dos sistemas de funções e órgãos do Estado; unidade ou pluralidade de centros de decisão política a se. Apesar das diferenças de perspetivas, coincide‑se nos resultados. O Estado unitário tanto pode ser Estado unitário centralizado como Estado unitário descentralizado ou regional. Se todos ou quase todos os Estados do mundo admitem descentralização administrativa, quer de âmbito territorial – através de municípios ou comunas e através de circunscrições mais vastas –, quer de âmbito institucional ou funcional – através de associações, fundações, institutos ou outras entidades públicas –, só alguns Estados comportam descentralização política. E não é a descentralização administrativa, mas sim a política que aqui importa. Esta descentralização política é sempre a nível territorial: são províncias ou regiões que se tornam politicamente autónomas por os seus órgãos desempenharem funções políticas e participarem, ao lado dos órgãos estatais, no exercício de alguns poderes ou competências de carácter legislativo e governativo. Daí que se fale em Estado regional. A conceção constitucional específica e a elaboração teórica do regionalismo político são relativamente recentes, sem embargo de certas notas características se encontrarem antes. Aquelas remontam à Constituição espanhola de 1931 e à Constituição italiana de 1947. A doutrina dominante parece inclinar‑se para a sua inserção dentro do Estado unitário. Mas há também quem pense tratar‑se de um tertium genus e quem entenda que, por causa dele, fica posta em causa a distinção clássica entre Estados unitários e Estados federais. Podem ser apontadas várias categorias de Estados descentralizados. No Estado regional integral, todo o território se divide em regiões autónomas. No Estado regional parcial, encontram‑se regiões politicamente autónomas e regiões ou circunscrições só com descentralização administrativa, verificando‑se, pois, diversidade de condições jurídico‑políticas de região para região. Esta é também uma diferença clara em relação ao Estado federal, sempre integral por natureza (sempre formado, inteiramente, por um maior ou menor número de Estados federados). No Estado regional homogéneo, seja integral ou parcial, a organização das regiões é, senão uniforme, idêntica (a mesma no essencial para todos). No Estado regional heterogéneo, ela pode ser diferenciada ou haver regiões de estatuto comum e regiões de estatuto especial. Em geral, as regiões são criadas pela Constituição, mas conhecem‑se casos – ainda que de necessária relevância a nível de Constituição material – de regiões instituídas por lei (caso da Gronelândia) e até pelo direito internacional (caso do Alândia). Como exemplos de Estados regionais integrais apontem‑se o Brasil (no Império, após a revisão da Constituição em 1834), a Áustria (antes de 1918), a Itália, a Espanha (na vigência da Constituição de 1978) ou a África do Sul (com a Constituição de 1996). Como exemplos de Estados regionais parciais indiquem‑se a Finlândia (por causa da Alândia), a Espanha (aquando da Constituição de 1931), a Dinamarca (quanto às ilhas Feroé e à Gronelândia), Portugal (desde 1976, em virtude das regiões autónomas dos Açores e da Madeira), a Rússia, a Ucrânia (por causa da Crimeia), a China (sobretudo por causa de Hong Kong e de Macau), o Reino Unido (com a Irlanda do Norte, a Escócia e Gales, a partir de 1998 e de 1999) a Geórgia (com a Ajária e a Ossétia do Sul), ou São Tomé e Príncipe (em relação à ilha do Príncipe). Como exemplos de Estados regionais heterogéneos refiram‑se a Itália, com regiões de estatuto especial (Sicília, Sardenha, Vale de Aosta, Trentino-Alto Ádige e Friul-Veneza Júlia) e regiões de estatuto comum (as restantes), e a Espanha atual (com comunidades autónomas de regimes diversos). O grau de descentralização varia muitíssimo; compreende regiões que pouco mais parecem que coletividades administrativas e regiões que parecem Estados‑membros de uma federação. Geralmente, os estatutos são‑lhes outorgados pelo poder central, mas há casos (as regiões italianas, as regiões autónomas portuguesas) em que elas chegam a participar na elaboração e na revisão desses estatutos. A maior semelhança possível entre Estado regional e Estado federal dá‑se quando aquele é integral e as regiões, além de faculdades legislativas, possuem faculdades de auto‑organização. Mesmo assim, porém, cabe distinguir: porque o ato final, a vontade última na elaboração ou na alteração dos estatutos regionais pertence ao poder central (ou seja, as regiões não têm poder constituinte); porque as regiões tão-pouco participam na elaboração e na revisão da constituição do Estado, como unidades políticas distintas dele (ou seja, o poder constituinte do Estado é delas independente). Juridicamente, o Estado federal dir‑se‑ia criado pelos Estados componentes. Pelo contrário, as regiões são criadas pelo poder central e as atribuições políticas que têm tanto podem vir a ser alargadas como extintas por este. Mais ainda: se o Estado federal desaparecer, em princípio os Estados federados adquirem ou readquirem plena soberania de direito internacional; não assim as regiões autónomas, as quais, como quaisquer outras coletividades descentralizadas, ou desaparecem com o Estado ou carecem de um ato específico para obterem a soberania. Os desmembramentosno final do séc. XX, da União Soviética, da Jugoslávia e da Checoslováquia, com o acesso à plena soberania dos Estados que as compunham, mostra bem que, mesmo em federações politicamente fictícias, perdura um resíduo de “estatalidade” pronto a revivescer se as condições assim o permitem. Com a descentralização política regional não se confunde a regionalização, traduzida em desconcentração regional e, sobretudo, na criação de autarquias supramunicipais. Se a dimensão e alguns dos objetivos das regiões que assim se apresentam em alguns países podem ser semelhantes aos das regiões autónomas, os meios orgânicos e funcionais oferecem‑se bem diversos. Só as regiões autónomas possuem órgãos e funções de natureza política e, portanto, apenas estas afetam a forma do Estado. A par da autonomia regional, que é efeito da descentralização política ou político‑administrativa, conhece‑se a autonomia (ou talvez melhor, uma gama algo diversificada de formas de autonomia) de que são dotadas certas comunidades territoriais dependentes de outros Estados ou em regimes especiais. Trata‑se aqui de um conceito empírico destinado a descrever algo de situado entre a não autonomia territorial e o estatuto de Estado independente ou entre a não autonomia territorial e a integração em Estado independente, em igualdade com quaisquer outras comunidades que deste façam parte. São, designadamente, quatro os tipos de estatutos de autonomia de comunidades territoriais: autonomia derivada de antigos laços feudais (a ilha de Man e as ilhas Anglo‑Normandas em relação à Coroa britânica); autonomia ligada a vínculos coloniais, semicoloniais ou pós‑coloniais (as colónias autónomas e semiautónomas britânicas, como é o caso de quase todos os países da Commonwealth of Nations antes de acederem à independência e das Bermudas, de Gibraltar ou das ilhas Caimão, entre outros territórios; de certo modo, dos territórios ultramarinos franceses, como a Nova Caledónia ou a Polinésia; de Guame, das ilhas Marianas do Norte e da Samoa Americana, em relação aos Estados Unidos); autonomia com associação a outros Estados (as Antilhas Holandesas e Aruba em face da Holanda, Porto Rico perante os Estados Unidos, as ilhas Cook e Niue em relação à Nova Zelândia); autonomia ligada a situações internacionais especiais (Fiume entre 1919 e 1924, o Sarre entre 1919 e 1935 e entre 1945 e 1955, Danzig entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, Trieste entre 1947 e 1954, Berlim entre 1949 e 1990, Macau entre 1976 e 1999; numa fase de preparação para a autodeterminação, alguns territórios sob mandato ou sob tutela). A estrutura da autonomia das regiões autónomas e a das comunidades territoriais dependentes acabadas de enunciar dir‑se‑iam prima facie similares. Há autonomias mais extensas ou menos extensas num lado e noutro e também são variáveis os poderes de controlo e de intervenção das autoridades estatais. Mas a natureza e o sentido da autonomia são completamente diversos, consoante se trate da autonomia com integração ou sem integração. A autonomia própria das regiões autónomas é uma autonomia com integração. É a autonomia – sejam quais forem as razões em que se funde – de comunidades que compõem, com outras, um povo, ao qual corresponde um certo e determinado Estado e que, por essa via, têm pleno acesso à soberania desse mesmo Estado. Pelo contrário, a autonomia sem integração – resulte ela de laços feudais, coloniais, associativos, internacionais ou outros – implica uma separação e, ao mesmo tempo, uma subordinação. A comunidade que dela goza não se considera constitutiva do povo do Estado soberano a que se encontra vinculada e está, portanto, numa espécie de capitis deminutio perante ele; o seu território não é parte integrante do território desse Estado soberano (ou se, porventura, é declarado parte integrante, encontra‑se numa condição particular frente à metrópole); em virtude desta diferenciação, avulta a imperfeição do respetivo estatuto constitucional. É uma constante do direito constitucional português a unidade ou unicidade do poder político, com maior ou menor grau de descentralização e desconcentração (embora a locução “Estado unitário” só apareça desde a Constituição de 1911). Apenas a Constituição de 1822 esboçara algo diferente: uma união real com o Brasil – aliás, bastante imperfeita, por faltar uma assembleia própria do Brasil, e logo ultrapassada, por, ainda antes da aprovação final do texto constitucional, o Brasil se ter declarado independente. Para além disso, não houve senão a aplicação tendencial dos princípios da especialização e da descentralização legislativas aos territórios ultramarinos pelas Constituições de 1838, 1911 e 1933 e pelo Ato Adicional à Carta de 1852. O art. 6.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), em contrapartida, vem converter os Açores e a Madeira em regiões autónomas dotadas de estatutos político‑administrativos e de órgãos de governo próprio (CRP, art. 6.º, n.º 2). Esta é uma fortíssima alteração qualitativa, introduzida não somente na situação dos arquipélagos – cujos distritos, desde 1895, gozavam de maior autonomia administrativa do que os distritos continentais –, mas também na própria estrutura do Estado português – correspondente à nação portuguesa, no seu espaço europeu e atlântico –, que, pela primeira vez na história, confere assim poderes substancialmente políticos a órgãos regionais com titulares não designados pelo poder central. Não se adotou uma regionalização política integral: as regiões administrativas previstas para o continente – a existirem – constituirão meras autarquias locais (CRP, arts. 236.º, n.º 1, 255.º-262.º). Portugal não deixa, por isso, de ser um Estado unitário regional (apesar de esta designação não estar expressamente consagrada no texto constitucional). Se bem que situada no contexto de 1975‑1976 (com o país saindo do processo revolucionário, com o poder central enfraquecido e perante certos receios de separatismos), a decisão constituinte correspondeu a algo de muito profundo. Foi uma resposta adequada tanto às reivindicações de desenvolvimento e de autonomia das populações insulares como aos próprios princípios constitucionais proclamados (descentralização e participação). Três dos projetos de Constituição apresentados à Assembleia Constituinte já contemplavam um regime político‑administrativo, mas o impulso para a sua definição viria das “juntas regionais” (entretanto constituídas nos dois arquipélagos pelo Governo provisório) e, sobretudo, da 8.ª Comissão e dos debates travados no plenário da Assembleia Constituinte quase no termo dos seus trabalhos. Entrada em vigor a CRP, logo o Governo provisório publicou – em obediência ao seu art. 302.º – estatutos provisórios e leis eleitorais para as primeiras eleições regionais. Estes estatutos vigorariam até serem elaborados os estatutos definitivos (CRP, art. 302.º, n.º 3), o que aconteceria, quanto aos Açores, com a lei n.º 39/80, de 5 de agosto (depois alterada pela lei n.º 9/87, de 20 de março, pela lei n.º 61/98, de 27 de agosto, e pela lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro), e, quanto à Madeira, com a lei n.º 13/91, de 5 de junho. As revisões constitucionais – sobretudo a de 1997 e, muito mais ainda, a de 2004 – introduziram clarificações e modificações importantes, sempre no sentido de um aumento da autonomia. Em 1982, as regiões autónomas receberam poder tributário próprio, o poder de definir atos ilícitos de mera ordenação social, o poder de criar e extinguir autarquias locais e o poder de participar na definição das políticas respeitantes às águas territoriais, à zona económica exclusiva e aos fundos marinhos contíguos (CRP, art. 229.º, posteriormente 227.º). Foram aperfeiçoadas as regras sobre a reserva de competência da Assembleia Regional e sobre o veto do ministro da República (CRP, arts. 234.º e 235.º, depois 232.º e 233.º). Desapareceu a possibilidade de suspensão dos órgãos regionais pelo Presidente da República (CRP, art. 234.º inicial). Foi extinta a comissão consultiva para os assuntos das regiões autónomas (CRP, art. 236.º inicial). Assimilou‑se o contencioso de legalidade de normas regionais ou perante os estatutos regionais ao contencioso de constitucionalidade (CRP, arts. 280.º e 281.º). Em 1989, reconheceu‑se às assembleias, posteriormente chamadas Assembleias Legislativas Regionais, o poder de desenvolver Leis de Bases. Admitiram‑se autorizações legislativas da Assembleia da República a essas Assembleias para efeito de derrogação de leis gerais da República em matérias não reservadas aos órgãos de soberania. Foram concedidos às regiões os poderes de estabelecer cooperação com entidades regionais estrangeiras e de participar em organizações que tenham por objeto fomentar o diálogo e a cooperação inter‑regionais (CRP, art. 229.º, posteriormente 227.º). Garantiram‑se direitos de informação à oposição nessas Assembleias (assim como, aliás, às oposições do poder local) (CRP, art. 117.º, depois 114.º, n.º 3). Em 1992 e em 2001, nenhum preceito sobre regiões autónomas foi modificado. A revisão constitucional de 1997 reforçou o poder legislativo das regiões, pela subordinação de respetivos decretos aos princípios fundamentais das leis gerais da República, e não simplesmente às leis gerais da República (quer dizer, aos preceitos, um a um, destas leis), e pela enunciação, a título exemplificativo, de matérias de interesse específico (CRP, arts. 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º). Abriu caminho a um regime estável de finanças regionais, objeto de lei orgânica (CRP, arts. 164.º, alínea t), 227.º, n.º 1, alínea j), e 229.º, n.º 3). Consagrou a participação das regiões no processo de construção europeia (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas v) e x)). Eliminou a cláusula de vedações do art. 230.º inicial. Reduziu o conteúdo funcional do estatuto dos ministros da República, que deixaram de representar a soberania da República, de ter assento em Conselho de Ministros e de exercer funções administrativas, salvo, mediante delegação do Governo, poderes de superintendência nos serviços regionais do Estado, e cujos mandatos ficaram a coincidir com o do Presidente da República (CRP, art. 230.º). Atribuiu ao Governo regional um poder de auto‑organização (CRP, art. 231.º, n.º 5). Criou o referendo regional (CRP, art. 232.º, n.º 2). E passou a admitir a dissolução das Assembleias Legislativas apenas por prática de atos graves contrários à Constituição (CRP, art. 234.º). A revisão de 2004 iria muito mais longe, assimilando, para vários efeitos, o regime das Assembleias Legislativas das regiões autónomas (e não mais Assembleias Legislativas Regionais) ao regime da Assembleia da República (CRP, arts. 52.°, n.º 2 e 232.°, n.° 4); permitindo a delegação de competências do Governo da República aos Governos regionais, com a correspondente transferência de meios financeiros e os mecanismos de fiscalização aplicáveis (CRP, art. 229.°, n.° 4); substituindo os ministros da República para as regiões autónomas por representantes da República, nomeados e exonerados pelo Presidente da República, apenas ouvido o Governo (e não sob proposta do Governo) e sem poderem receber, por delegação do Governo, competências de superintendência nos serviços do Estado nas regiões (CRP, arts. 230.°; 134.°, alínea i) e 145.°, alínea c)); suprimindo o poder do Presidente da República de dissolver os órgãos de governo próprios das regiões por prática de atos graves contrários à Constituição (CRP, art. 234.°, n.° 1), passando a admitir-se, porém, a dissolução das Assembleias Legislativas em termos análogos aos da dissolução da Assembleia da República (CRP, arts. 234.°, n.os 1 e 3, e 133.°, alínea j)) e ficando, em caso de dissolução, os Governos regionais demitidos, mas com as funções de Governo de gestão (CRP, art. 234.°, n.° 2). Por outro lado, esta revisão constitucional: eliminou o interesse específico como critério definidor dos poderes legislativos regionais (CRP, arts. 112.°, n.° 4, e 227.°, n.° 1, alínea a)), bem como a referência a leis gerais da República (mesmos preceitos), embora estas não desapareçam, obviamente, porque continua a haver leis aplicáveis a todo o território nacional, quer no âmbito da reserva dos órgãos de soberania, quer quando falte legislação regional própria não reservada a estes órgãos (CRP, art. 228.°, n.° 2) – simplesmente, nesta segunda hipótese, novos decretos legislativos regionais prevalecem sempre no âmbito regional; remeteu para os estatutos político-administrativos as matérias não reservadas aos órgãos de soberania em que consiste a autonomia legislativa regional (CRP, art. 228.°, n.° 1), mas devendo os correspondentes preceitos estatutários ser aprovados, na Assembleia da República, por dois terços dos deputados presentes, desde que o seu número seja superior à maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções (CRP, art. 168.º, n.º 6, alínea f)); reiterou o poder (perdido em 1997) de transposição de atos jurídicos da União Europeia que versem sobre matérias de autonomia legislativa (CRP, arts. 112.°, n.° 8, e 227.°, n.° 2, alínea x)); em vez da possibilidade de autorizações legislativas para derrogação de princípios fundamentais de leis gerais da República, previu a possibilidade de autorizações legislativas sobre a maior parte das matérias de reserva relativa da Assembleia da República, se bem que não das mais importantes no plano dos direitos fundamentais e dos órgãos de poder (CRP, art. 227.°, n.° 1, alínea b)); possibilitou o desenvolvimento por decreto legislativo regional, para o âmbito regional, dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam – de quaisquer leis, sem exceção, incluindo em matérias reservadas à Assembleia da República (CRP, art. 227.°, n.° 2, alínea d), em confronto com o anteriormente estipulado). O art. 225.º da CRP aponta os fundamentos, as finalidades e os limites da autonomia regional (parecendo, em parte, uma exposição de motivos): “1. O regime político‑administrativo próprio dos arquipélagos dos Açores e da Madeira fundamenta‑se nas suas características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares. – 2. A autonomia das regiões visa a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico‑social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses. – 3. A autonomia político‑administrativa regional não afeta a integridade da soberania do Estado e exerce‑se no quadro da Constituição”. A despeito de ser muito denso, este artigo deve ser lido em conexão com os arts. 9.º, alínea g), 81.º, alínea d), 90.º e 229.º, n.º 1: é tarefa fundamental do Estado promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o “carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira” (CRP, art. 9.º, alínea g)); os órgãos de soberania asseguram, em cooperação com os órgãos do Governo regional, o desenvolvimento económico e social das regiões autónomas, “visando, em especial, a correção das desigualdades derivadas da insularidade” (CRP, art. 229.º, n.º 1). A par dos elementos estritamente políticos, põem‑se, assim, em foco elementos económicos e sociais. Para além da autonomia como valor em si e da maior e mais direta participação dos cidadãos na gestão dos assuntos que lhes dizem respeito, pretende‑se realizar a igualdade efetiva entre os Portugueses (CRP, art. 9.º, alínea d)). Porque a vida nas ilhas, mormente nas menores e mais afastadas, arrasta carências e obstáculos à plena fruição de direitos económicos, sociais e culturais, incumbe ao Estado e às regiões, em diálogo e obra comum, procurar remover tais carências e obstáculos através do desenvolvimento e da solidariedade. No essencial, o regime político‑administrativo da Madeira e dos Açores consiste em: atribuição de poderes atinentes ao tratamento das matérias de âmbito regional, designadamente poderes legislativos (CRP, arts. 227.º, n.º 1, alíneas a), b), c), i), l), m), p), 1.ª parte, e q), 112.º, n.º 8, e 228.º), regulamentares (CRP, art. 227.º, n.º 1, alínea d)) e executivos (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas g), h), m) e o)); atribuição também de poderes de participação em atos de órgãos do Estado que afetem especificamente as regiões (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas e), f), p), 2.ª parte, r), s), t), v) e x)); atribuição ainda de poderes adjetivos ou de garantia (CRP, arts. 281.º, n.º 2, alínea g), e 283.º, n.º 1); criação de uma assembleia representativa e de um governo perante ela responsável como órgãos de governo próprio (CRP, arts. 231.º e 232.º); reserva de iniciativa das Assembleias Legislativas Regionais quanto aos estatutos das respetivas regiões e quanto à eleição dos seus deputados (CRP, art. 226.º); articulação dos órgãos de soberania e dos órgãos de autonomia, através de vários poderes do Presidente da República (CRP, arts. 133.º, alíneas b), d), j) e l), e 234.º), dos poderes de participação das regiões, do Conselho de Estado (CRP, art. 242.º, alínea e)) e do representante da República (CRP, arts. 230.º, 231.º, nos 3 e 4, e 233.º); integração da produção legislativa regional no sistema legislativo nacional (CRP, arts. 112.º, 227.º, 228.º e 278.ºss.), bem como das finanças regionais no sistema financeiro nacional (CRP, arts. 106.º, n.º 3, alínea e), 164.º, alínea t), 227.º, n.º 1, alínea j), e 229.º, n.º 3). Em confronto com os sistemas regionais mais próximos (o italiano e o espanhol) depara‑se, como notas individualizadoras do sistema português, além do seu carácter parcial: a aprovação do estatuto de cada região por lei ordinária (CRP, art. 166.º, n.º 3) e não por lei constitucional, ainda que o seu processo ofereça significativas particularidades (CRP, art. 226.º); o valor reforçado do estatuto (CRP, arts. 280.º, n.º 2, alíneas b), c) e d), e 281.º, n.º 1, alíneas c) e d)); a explícita consagração constitucional de poderes de incidência internacional (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas s) a x)); a atribuição às regiões não só de poder tributário próprio mas também de todas as receitas tributárias nelas cobradas (CRP, art. 227.º, n.º 1, alíneas i) e j)); o sistema de governo regional (CRP, art. 231.º), diferente do sistema de governo a nível nacional; a proibição de partidos regionais (CRP, art. 311.º, n.º 2, no texto inicial; 51.º, n.º 4, posteriormente). Até à revisão constitucional de 2004, também poderia ser referida a definição da autonomia legislativa com base em conceitos relativamente indeterminados – “interesse específico e leis gerais da República” (CRP, arts. 112.º, n.os 4 e 5, e 227.º, n.º 1, alíneas a), b) e c)). Ponto importante a dilucidar vem a ser o atinente ao sentido dos estatutos das regiões. A função de cada estatuto (note‑se, político‑administrativo) consiste em definir as atribuições regionais e os meios correspondentes (CRP, art. 227.º), bem como o sistema de órgãos de governo próprio da região, incluindo os estatutos dos respetivos titulares (CRP, art. 231.º); ou, em geral, em desenvolver, explicitar ou concretizar as normas do título vi da parte iii da Lei Fundamental, adequando‑as às especificidades e às circunstâncias mutáveis dessa região; não consiste em estabelecer os princípios de toda a vida política, económica, social e cultural que aí se desenrola, porque isso cabe à Constituição – que é a Constituição da República, e não só do continente. Há uma reserva de estatuto, com a necessária densificação (voltamos a dizer). Em contrapartida, ela define, concomitantemente, o objeto possível de cada estatuto em concreto. O estatuto não é uma constituição com amplitude potencialmente ilimitada. Cabe‑lhe definir o interesse específico, cerne da autonomia, mas não regular matérias de interesse específico. Cabe‑lhe assegurar um sistema político regional, mas não substituir‑se‑lhe ou substituir‑se aos órgãos de soberania. Por outro lado, competindo a iniciativa originária do estatuto ou das suas alterações à Assembleia Legislativa (CRP, art. 226.º), se o estatuto pudesse abarcar qualquer matéria, ficaria, por esse modo, limitado o poder de iniciativa dos deputados, dos grupos parlamentares, de grupos de cidadãos ou do Governo da República relativamente a essa matéria (CRP, art. 167.º). A Assembleia pode, certamente, apresentar propostas de lei, “no respeitante” à região, sobre qualquer objeto (CRP, art. 167.º, n.º 1, 2.ª parte), o que não justifica transformar essa matéria em matéria estatutária. Se um dos estatutos contiver normas sobre outras matérias que não as respeitantes às atribuições e aos órgãos e aos titulares dos órgãos regionais, essas normas não adquirirão a força jurídica específica das normas estatutárias. Por conseguinte, poderão ser modificadas ou revogadas, observadas as pertinentes regras gerais da Constituição; ou poderão, desde logo, ser inconstitucionais por invadirem domínios próprios de outras leis. Não custa pensar em exemplos de inconstitucionalidade de eventuais normas estatutárias por preterição da distribuição constitucional de formas e procedimentos legislativos. Seria o caso de normas sobre eleições dos titulares dos órgãos de governo próprio ou dos titulares dos órgãos do poder local na região (afetando o art. 164.º, alíneas j) e l), e o art. 166.º, n.º 2 da CRP), sobre criação, extinção ou modificação territorial de autarquias locais (infringindo o art. 164.º, alínea n) da CRP), ou sobre direitos, liberdades e garantias (contra o art. 165.º, n.º 1, alínea b) da CRP), ou sobre reprivatizações (CRP, art. 296.º). Quanto às eleições, em especial, não se esqueça o tratamento homogéneo que recebem da Constituição, quer no plano dos grandes princípios substantivos (CRP, arts. 10.º, 49.º; e 113.º), quer no da regulamentação legislativa (CRP, arts. 164.º, alíneas a), j) e l), e 136.º, n.º 3, alínea c)), quer no da competência do Presidente da República (CRP, art. 133.º, alínea b)), quer ainda no plano dos limites materiais da revisão constitucional (CRP, art. 288.º, alínea h)). Esse tratamento unitário e reforçado – compreensível por causa da importância fulcral das eleições em democracia representativa (CRP, art. 10,º, n,º 1) – ficaria afetado se o regime das eleições regionais fosse repartido pelas leis eleitorais e pelos estatutos. Em escritos de há vários anos, tendíamos a reconduzir as situações a inconstitucionalidade formal por excesso de forma. Revendo a nossa posição, desdobrámo‑las agora em geral, em mera irrelevância e, em hipóteses como as acabadas de enunciar, em inconstitucionalidade – por insuficiência de forma, no caso das eleições, quando se não respeitem as regras próprias das leis orgânicas (CRP, arts. 136.º, n.º 3, 168.º, n.º 5, e 278.º, n.º 5); e, nos demais casos por desvio de forma (por se utilizar uma forma para fim diferente daquele para o qual está instituída). Por outro lado, sustentávamos que se a Assembleia da República viesse, subsequentemente, a legislar sobre matérias que não deviam constar dos estatutos, ocorreria um conflito entre constitucionalidade e legalidade: as normas estatutárias seriam inconstitucionais, as normas não estatutárias ilegais; e, solicitada a apreciação da legalidade em tribunal, poderia este suscitar ex officio a questão da constitucionalidade daquelas, visto que, para serem padrão de validade de outras normas, teriam de ser conformes com a Constituição. Mas hoje estimamos desnecessário raciocinar assim, porque só as normas sobre objeto próprio dos estatutos poderão determinar ilegalidade, não quaisquer outras, e, portanto, não se põe o problema. Contra a consideração de mera irrelevância, há quem pretenda que não seria razoável dar ao legislador comum a possibilidade de destacar as normas que entenda a seu bel‑prazer serem estatutárias e não estatutárias “por natureza”; e, contra a qualificação de certas normas estatutárias como inconstitucionais pelo próprio órgão legislativo, quem invoque o sistema de fiscalização, que não consente à Assembleia da República nenhuma decisão autónoma de constitucionalidade. Mas julgamos que as críticas não atingem o alvo, pois que não preconizamos que o legislador declare, explícita ou implicitamente, inconstitucional qualquer norma; o Parlamento agirá como tal, simplesmente legislando, por sua conta e risco – sobre eleições, como sobre qualquer outra matéria – e quem irá decidir, em última análise, da constitucionalidade e da legalidade de todas as normas será o Tribunal Constitucional.   Jorge Miranda (atualizado a 17.12.2017)

Direito e Política História Política e Institucional

juiz de fora

O juiz de fora esteve presente na orgânica administrativa insular entre 1645 e 1834, na qualidade de presidente da Câmara Municipal do Funchal. Era um funcionário integrado na administração periférica da Coroa; a sua ida para a Ilha ter-se-ia justificado com a necessidade de implementar uma melhor administração da justiça e de presidir ao município sediado no mais importante centro urbano do arquipélago da Madeira. O juiz de fora teria de ser, necessariamente, um indivíduo letrado, com título de bacharel em Direito romano pela Universidade de Coimbra, e era designado pelo Rei para exercer um mandato com a duração de três anos, o qual poderia ser prorrogado por vontade régia. Por norma, essa nomeação ocorria na sequência da aprovação num exame promovido pelo Desembargo do Paço, destinado a aferir as capacidades dos candidatos para o exercício de uma determinada função no âmbito da magistratura régia. Chegado ao Funchal, o juiz de fora deveria apresentar, junto da Câmara Municipal, o documento de que constava a sua nomeação, para que deste ficasse registo no tombo adequado. De seguida, comparecia perante a vereação funchalense e demais autoridades, para o protocolar ato de juramento e posse que se realizava nas instalações camarárias. O juiz de fora auferia de um ordenado, com os respetivos próis e percalços, e de uma aposentadoria, no valor de 20$000 réis, paga pelos rendimentos do município do Funchal. Tinha, de igual modo, a faculdade de cobrar 4$000 réis pela realização das eleições municipais. A jurisdição do juiz de fora compreendia, de acordo com o “Título LXV” do “Livro I” das Ordenações Filipinas: o despacho, em audiência, de casos de injúrias verbais ou de agressões entre moradores; o despacho, em audiência, de contendas relativas a bens móveis ou de raiz; a aplicação de penas aos réus; a realização de devassas sobre os crimes cometidos; a defesa da jurisdição do Rei contra eventuais abusos perpetrados por eclesiásticos ou leigos; a fiscalização da atuação dos oficiais municipais. O juiz de fora não estava sujeito à inquirição do corregedor da comarca, contrariamente ao que sucedia com os demais membros do município. Como juiz de primeira instância nas causas cíveis e crimes, cabia-lhe zelar pela aplicação do direito oficial e régio. Servia o cargo de provedor da Fazenda dos defuntos e ausentes e tinha poder para agir no âmbito do juízo dos órfãos, em caso de suspeita de atuação irregular por parte dos seus titulares. Para além deste vasto conjunto de atribuições, desempenhava o cargo de juiz conservador da Companhia Geral do Comércio do Brasil, em virtude de muitas embarcações fazerem escala no Funchal para se abastecerem de vinho, e o de auditor da gente da guerra. Na sequência da expulsão da Companhia de Jesus, em 1760, o juiz de fora ficou encarregue da administração de todos os bens e rendas, confiscados em nome do Rei pelas autoridades insulares, que aquela ordem possuía na Madeira. A atuação do juiz de fora foi visível sobretudo no contexto da presidência da Câmara do Funchal. Foi uma presença regular nas reuniões da vereação e destacou-se por ser o responsável pela realização das eleições municipais, pela elaboração da pauta eleitoral e pelo respetivo envio para o Desembargo do Paço. De igual modo, foi a entidade portadora do conhecimento sobre o direito oficial e letrado e a responsável pela sua divulgação junto da vereação funchalense. A necessidade da presença deste magistrado era sentida pelos próprios membros da Câmara do Funchal, conscientes das suas limitações no exercício adequado da justiça, em virtude das relações de parentesco e amizade existentes entre os habitantes, uma realidade suscitadora de inúmeras queixas das partes litigantes. Em 1762, nomeadamente, estando o lugar de juiz de fora sem provimento, a vereação apelou ao Monarca para que mandasse para o Funchal um magistrado versado e douto na prática forense, em razão dos muitos e intrincados pleitos que existiam naquela cidade. Auxiliar jurídico de importância reconhecida pela vereação funchalense, o juiz de fora só saiu da orgânica administrativa municipal em 1834. Com efeito, a cerimónia de juramento da Rainha D. Maria I e da Carta Constitucional, numa reunião extraordinária do município funchalense em 6 de junho de 1834, representou o último ato institucional do juiz de fora. Com a implantação definitiva do Liberalismo, o município deixou de ter qualquer competência no âmbito da administração da justiça em primeira instância, conforme tivera até então. O estabelecimento de uma nova organização judicial, programado pelo poder central logo em 1834, seria uma das importantes consequências da nova divisão territorial implementada em 1835. [table id=100 /]   Ana Madalena Trigo de Sousa (atualizado a 26.12.2015)

Direito e Política História Política e Institucional

júnior, antónio félix pita

Filho de António Félix Pita Júnior e de Maria da Conceição Góis Pita, nasceu a 3 de dezembro de 1895 na freguesia da Sé, concelho do Funchal. Depois de completar o liceu, no Funchal, faz o curso de Medicina, que inicia na Universidade de Coimbra em 1912-13. É mobilizado para a I Grande Guerra sem que tivesse chegado a ser incorporado, facto que o leva a interromper os estudos, retomados em Lisboa assim que é desmobilizado. Casa-se aos 28 anos, a 3 de janeiro de 1925, com Maria da Conceição Ferreira Mesquita Spranger, em cerimónia civil seguida da religiosa na igreja de Santa Maria Maior, no Funchal. Por esta época, reside na avenida Miguel Bombarda, freguesia de São João da Pedreira, Lisboa, continuando a viver na capital após o matrimónio. Tem três filhas e um filho. Desde cedo revelara tendência para a cirurgia, especialização que conclui, tendo trabalhado durante dois anos como assistente livre da Faculdade de Medicina e do Hospital de Santa Maria de Lisboa na equipa do conceituado médico-cirurgião Professor Dr. Custódio Maria de Almeida Cabeça. No retorno à Madeira, instala consultório à rua Carvalho Araújo, n.º 61, 1.º (posterior rua do Aljube), no Funchal. Dedica-se a várias especialidades: “Clínica Geral, Partos, Cirurgia e Operações”, como anuncia no Diário de Notícias (DNM, 27 mar. 1927, 3). Será, nesta qualidade, um dos sócios da Casa de Saúde da Vila Guida, assim como cirurgião do quadro clínico do Hospital da Santa Casa da Misericórdia, sendo numerosa a sua clientela nesta cidade, segundo afirma o referido periódico na nota biográfica que publica na sequência do seu falecimento. A 8 de abril de 1931, domingo de Páscoa, encontra-se no Palácio de São Lourenço, na qualidade de dirigente do Partido Republicano Nacionalista (PRN), entre outros representantes partidários locais participantes na sublevação política da Madeira contra a Ditadura. Estes são nomeados responsáveis de diversos organismos públicos (Junta Geral, Câmara do Funchal e administradores dos diferentes concelhos), cabendo-lhe, por nomeação do comandante militar da Madeira, general Adalberto Gastão de Sousa Dias, em conjunto com João Maximiano de Abreu Noronha e Carlos Fernandes Correia, a comissão administrativa da Junta Geral do Distrito do Funchal. Os nomeados para esta comissão tomam posse a 6 de abril. No dia seguinte, António Félix Pita é eleito presidente em votação por escrutínio secreto, à qual concorrem duas listas. Esta situação, apesar da resistência exercida pelo regime ditatorial, dura 28 dias, entre 4 de abril e 2 de maio, data em que o movimento é definitivamente controlado. Encontra-se entre os muitos intervenientes políticos envolvidos no movimento retidos no Lazareto, de onde partirão para os seus destinos de deportação, cabendo-lhe, primeiro, a ilha do Sal e, depois, a cidade da Praia, em Cabo Verde, lugar onde está em julho de 1931, quando vão ao seu encontro a sua esposa e filhos. Em Cabo Verde, é chamado a prestar serviço como médico numa urgência de saúde pública relacionada com a debelação de uma epidemia. Em outubro de 1932, o ministro do Interior, em nota abreviada e pouco explicativa registada no seu cadastro da Direção Geral de Segurança, dá “por finda a sua fixação em Cabo Verde”, autorizando-o a regressar à Madeira (ANTT, PIDE/DGS, Serviços Centrais, cadastro 4015, NT 737). Assim, por ter cessado a sua condição de deportado político, regressa ao Funchal acompanhado da sua esposa e filhos, sendo anunciado pelo Diário de Notícias, no dia 26 de novembro, que retomaria na semana seguinte a sua prática clínica. No entanto, a 10 de dezembro, o mesmo matutino faz notícia de primeira página de um “jantar de despedida e homenagem” “ao ilustre clínico”, iniciativa do jornal republicano O Povo, a realizar-se no Savoy Hotel, estando as inscrições abertas na sede daquele periódico, na Fotografia Perestrelos e na Maison Blanche, contando já com um elevado número de inscritos entre os amigos pessoais que dele se querem despedir, uma vez que partiria na terça-feira seguinte para a colónia de Moçambique. O jantar não se realiza “por motivos da vida particular do homenageado” (DN da Madeira, 11 dez. 1932, 1). Parece ficar claro ter sido forçado, pelas condições políticas adversas então existentes, a partir de novo, desta vez para a África Oriental Portuguesa, Lourenço Marques, protegendo-se a si e à sua família com a saída da ilha e distanciando-se da atividade política anterior. Parte para a província de Moçambique a 13 de dezembro, no vapor Kenilworth Castle, por acabar de “ser contratado para a Companhia da Zambézia”, tendo o distinto cirurgião “tanto no cais de embarque como a bordo, uma afetuosa despedida” (DN da Madeira, 14 dez. 1932, 2). Será médico contratado da empresa agroindustrial Sena Sugar Estates Ltd., empresa de capitais privados, essencialmente britânicos, dedicada à produção de açúcar de cana sacarina, para onde é levado pelo amigo Dr. João Sabóia Ramos, que ali se encontrava a trabalhar. Exerce também clínica particular paralelamente aos serviços de cirurgião que presta na missão de São José. Em 1942, com o fim das companhias comerciais, integra-se no quadro de saúde da Companhia de Moçambique e passa ao quadro de província. Exerce cirurgia no hospital da Beira e, depois, no Hospital Miguel Bombarda, em Lourenço Marques, até ao seu falecimento. Em África, viverá duas décadas de realizações, pois parece ter encarado este território como auspicioso. Aí, ao desenvolvimento de uma carreira de prestígio na área da Medicina, associará, no decurso da déc. de 40, nos últimos anos da sua curta mas promissora vida, o mundo empresarial, revelando-se um empreendedor fora da sua área de formação. Funda uma indústria, no espaço empresarial da Matola, que se dedica à moagem do trigo daquela província. Situado a cerca de 10 km de Lourenço Marques, este complexo industrial (fábrica de massas e bolachas de linha e conceito modernos) é construído faseadamente, vindo a incluir um bairro para o pessoal. A Companhia Industrial da Matola comercializará os seus produtos sob a marca Polana e iniciará a sua laboração na comemoração do 28 de maio, no ano de 1952, após o falecimento do seu fundador, conforme concluímos pela informação colhida no Livro de Ouro do Mundo Português – Moçambique, publicação de 1970, de modelo típico do Estado Novo, em edição que reúne alguns dos sucessos empresariais nesta província. As imagens nele incluídas revelam a grandiosidade do complexo fabril que construiu, à entrada do qual é colocado o seu busto, retirando qualquer margem de dúvida sobre a importância deste empreendimento e do seu empreendedor na economia colonial portuguesa. No curto período em que viveu na Madeira, é também professor do 7.º grupo do Liceu do Funchal, lugar de que toma posse a 9 de outubro de 1929. Está ainda ligado ao desporto, dedicando algum do seu tempo à organização associativa, incluindo-se na lista dos presidentes da direção do Club Sport Marítimo, entre 21 de julho de 1927 e 3 maio de 1928. A 26 de fevereiro de 1930, passa a pertencer aos novos corpos gerentes da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários do Funchal, eleitos em assembleia geral, presidindo à sua direção. As atas desta associação mostram que, apesar de ter tomado posse, deixa de estar presente nas reuniões logo a partir de 19 de janeiro de 1931. Faleceu em Lourenço Marques, a 18 de dezembro de 1951, na sequência de forte comoção resultante da morte de um grande amigo, Augusto Adida de Gouveia, a quem, como médico, não consegue salvar dos efeitos de um violento desastre de automóvel. O seu funeral realizou-se na vila da Ponta do Sol, para onde foi trasladado o seu corpo, a 11 de abril de 1952.   Maria de Fátima Vieira de Abreu (atualizado a 18.12.2017)

Ciências da Saúde Personalidades

jorge, antónio vitorino castro

Dr. António Vitorino Castro Jorge. Foto: Dicionário Corográfico de Câmara de Lobos   Nascido em Santa Maria Maior, no Funchal, em 1913, filho de Luís Jorge e Josefina Antónia de Castro e Jorge, casou-se, em 1944, com Matilde Martins da Silva Castro Jorge; deste casamento nasceram três filhos. Faleceu, com 91 anos, no Estreito da Câmara de Lobos. Depois de ter completado o liceu no Funchal, inscreveu-se no 1.º ano da Faculdade de Ciências de Coimbra, da qual desistiu para tirar Medicina na Universidade de Lisboa, cuja licenciatura foi concluída em 1938. Mobilizado para a Madeira em 1942, como médico da Marinha, pediu, pouco tempo depois, a passagem à vida civil, tendo sido médico municipal de Porto Santo (durante seis meses) e de Câmara de Lobos e Curral das Freiras (de 1944 a 1983), ao mesmo tempo que exercia medicina privada como clínico geral. Foi sócio fundador da Sociedade Portuguesa de Reumatologia e da Sociedade da Língua Portuguesa. Na freguesia do Estreito, desenvolveu, desde 1953, várias iniciativas de alcance popular, como a festa das cerejas, o desfile da freguesia na festa das vindimas no Funchal, a festa dedicada a S.to Isidro, padroeiro dos animais, e a fundação da Casa do Povo. Como político, foi admirador de Salazar, apesar dos defeitos que apontou ao seu regime nas rubricas “Papagaio” e “Giz na Parede”, do Diário da Madeira, antes de 25 de abril de 1974; apresentou-se como candidato à Câmara Municipal de Câmara de Lobos (1976), tendo sido eleito vereador na lista do CDS; foi fundador e primeiro presidente do Partido Democrático do Atlântico (PDA), em 1978, e diretor do semanário Zarco, órgão oficial deste partido, fundado em 1984; foi mandatário da lista de cidadãos pela desanexação de Jardim da Serra da freguesia do Estreito, em 1993, e mandatário da lista do PS à Câmara de Lobos em 1997. Como jornalista, foi proprietário e diretor do Diário da Madeira (1961-1982), após ter exercido as funções de diretor do Eco do Funchal (1959-1961). Os artigos “Com Quem Vivemos”, “Na Madeira Vitória da Social-Democracia, uma Razão para a Independência” e a carta aparecida na secção “Correio da Madeira”, publicados no Diário da Madeira, valeram-lhe a prisão política, em Caxias, a 15 de maio de 1975, ordenada pelo brigadeiro Carlos Azeredo, governador civil na Madeira, sob a acusação de independentista. Foi também presidente da Associação Política do Arquipélago da Madeira (APAM). Publicou uma brochura sobre Salazar no centenário do seu nascimento (1989), e o livro Casos do Acaso da Minha Vida e do meu Tempo. Obras de António Vitorino Castro Jorge: Casos do Acaso da Minha Vida e do meu Tempo.     António Manuel de Andrade Moniz (atualizado a 13.04.2018)

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ribeiro real, visconde do

Visconde do Ribeiro Real. 1885. Arquivo Rui Carita João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo nasceu no Funchal, a 21 de dezembro de 1841, filho do morgado Francisco António de Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo e de Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo. Casando-se, a 24 de junho de 1882, já com mais de 40 anos, com Teresa da Câmara Carvalhal, filha do 2.º conde de Carvalhal, recebeu o título de visconde do Ribeiro Real. Passara, entretanto, pela Junta Geral e depois pela presidência da Câmara do Funchal, onde defendeu o caminho de ferro do Monte e acabou a construção do Teatro Municipal D. Maria Pia. Na sua vereação camarária ainda se fundou o corpo de bombeiros voluntários e procedeu-se a reformas urbanas na área do cemitério britânico, tendo hoje o seu nome o largo que fica mais a sul. Foi ainda cônsul de França e elevado a conde do Ribeiro Real, título que parece não ter usado. Faleceu em 1902. Palavras-chave: bombeiros voluntários; Câmara Municipal do Funchal; cemitério britânico; caminho de ferro do Monte; Teatro Municipal.     João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo nasceu no Funchal, a 21 de dezembro de 1841, filho do morgado Francisco António de Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo, de São Pedro, no Funchal, e de Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo, de Ponta Delgada. Casando-se, a 24 de junho de 1882, com Teresa da Câmara Carvalhal (1857-c. 1925), filha do 2.º conde de Carvalhal (1831-1888), recebeu o título de visconde do Ribeiro Real por decreto de 23 de março desse ano, sendo depois elevado a 1.º conde, por decreto de 16 de fevereiro de 1899, após a sua passagem pelo governo civil do Funchal, em 1897, como interino. Para além do cargo que ocupou na Junta Geral e da presidência da Câmara do Funchal, onde defendeu o caminho de ferro do Monte e acabou a construção do Teatro Municipal D. Maria Pia (Teatro Municipal), ocupou também o lugar de cônsul de França. O futuro visconde do Ribeiro Real deveria ser uma figura muito discreta e reservada, não sendo fácil recuperar o seu percurso político e social. Casou-se bastante tarde para a época, já passando dos 40 anos, não havendo descendência do seu casamento. A primeira referência política a seu respeito é como procurador da Junta Geral, quando se pronuncia sobre a lei de 13 de maio de 1872, que criara as bases da nova regulamentação. Como vogal, João Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo esteve na reunião de 11 de março de 1874 e na de 11 de abril seguinte, aprovando as alterações que o vogal do conselho de distrito, visconde de S. João, Diogo Berenguer de França Neto (1812-1875) mandou imprimir a 14 de abril desse ano. A sua ação mais relevante foi à frente da Câmara Municipal do Funchal, onde sucedeu ao sogro, 2.º conde de Carvalhal, que somente ocupara o lugar no quadriénio de 1882-1885 por ser, ainda, o maior proprietário latifundiário do Funchal, mas cujas funções tinham sido desempenhadas pelo vice-presidente, morgado João Sauvaire da Câmara e Vasconcelos (1828-1890). A partir de 1886, a Câmara do Funchal teve uma interessante atividade, entre outras coisas, acabando as obras do Teatro Municipal, apresentado aos funchalenses a 29 de julho de 1887, e inaugurado oficialmente a 11 de março de 1888. Nessa altura, teve o visconde de se defrontar com o primo, João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos (1829-1902), conde de Canavial e então governador civil, que queria ocupar o camarote da presidência, o que veio a acontecer, mas como convidado, pois o Teatro era propriedade da Câmara. A questão do camarote do Teatro ocupou então as primeiras páginas da imprensa da cidade. Foi durante a presidência do visconde do Ribeiro Real, quando tinha o pelouro dos incêndios o Dr. José Joaquim de Freitas (1847-1936), então também médico do hospital da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, que se fundaram os bombeiros voluntários do Funchal, serviço inaugurado oficialmente a 24 de setembro de 1888. A apresentação pública do inúmero material adquirido para esse serviço, de que existe abundante documentação fotográfica, foi feita junto à fachada do referido hospital, a 7 de abril de 1889. O primeiro quartel foi construído na antiga R. do Príncipe (assim designada em homenagem ao príncipe, depois D. João VI (1767-1826)), posteriormente R. 31 de Janeiro, passando, duas décadas depois, para a R. da Princesa (em referência a D. Carlota Joaquina (1775- 1830)), posteriormente R. 5 de Outubro. José Joaquim de Freitas era um republicano de arreigadas convicções (República), mas tal não obstou ao apoio que sempre lhe foi dado pelo visconde do Ribeiro Real, tendo-se registado, inclusivamente, um forte apoio das mais destacadas famílias funchalenses à criação dos bombeiros voluntários, existindo fotografias destes anos de inúmeros dos seus elementos fardados de bombeiros, independentemente da sua filiação partidária e, inclusivamente, nacionalidade; há mesmo fotografias de comerciantes britânicos, o que só se explica pelo apoio dado à iniciativa pelo visconde. João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo foi igualmente um dos principais impulsionadores do projeto do caminho de ferro do Monte, numa altura em que o projeto poderia ter sucumbido ao conflito de interesses entre os comerciantes britânicos radicados na Ilha e os financeiros alemães, que o apoiavam. Ao nível do Governo central, o apoio ao projeto não foi muito evidente, exceto na isenção de impostos que concedeu à Companhia do Caminho-de-Ferro do Monte, aquando da entrada na Alfândega do Funchal do material fixo e circulante para a via-férrea. O grande apoio partiu da Junta Geral, que adquiriu algumas ações, e, especialmente, da Câmara do Funchal, através do vereador João Luís Henriques e do presidente, o visconde do Ribeiro Real, tendo a Câmara adquirido 250 obrigações. As transformações ocorridas na malha urbana da cidade permaneceram e decorrem da urbanização envolvente do traçado da via-férrea e da montagem de uma série de instalações turísticas de apoio, como o Hotel do Bello Monte, e depois das instalações do Terreiro da Luta, consolidando a estruturação da freguesia de Santa Luzia e a ligação da cidade à freguesia do Monte, e contribuindo para a visão geral de anfiteatro que da encosta do Funchal. Foi também a vereação do visconde de Ribeiro Real que permitiu e apoiou a ampliação do cemitério britânico (Cemitério britânico), como contrapartida pela expropriação de uma faixa do terreno do mesmo. Foram então demolidas duas das vielas anexas entre aquele espaço e a R. dos Aranhas, do que resultou a R. 5 de Junho, depois R. Major Reis Gomes, onde viria a ser construído o largo com o seu nome. Os viscondes do Ribeiro Real habitaram o palácio de S. Pedro que, desde 1883, era partilhado com o Colégio de S. Jorge, dirigido pela futura M.e Mary Jane Wilson (1840-1916). Também ali faleceu, a 4 de fevereiro de 1888, o 2.º conde de Carvalhal, António Leandro Carvalhal Esmeraldo e, em 1897, ainda se instalou em parte do palácio o Clube Internacional. O visconde do Ribeiro Real seria elevado a conde do Ribeiro Real, a 16 de fevereiro de 1899, mas parece nunca ter usado o título, falecendo a 22 de março de 1902, altura em que se encontrava já retirado da vida pública, não havendo, por exemplo, qualquer referência a seu respeito na visita régia de junho de 1901. A condessa do Ribeiro Real, em 1921, deu início ao processo de venda do palácio, mas a mesma foi contestada pelos coproprietários, conde de Resende e família de Eça de Queiroz, descendentes de sua irmã, Maria das Dores Carvalhal (1855-1910). A a 20 de janeiro de 1923, a condessa mandou vender em leilão o recheio do palácio, momento em que se dispersou aquele importante espólio. Deverá ter falecido pouco depois dessa data. O espadim de honra do visconde do Ribeiro Real, como fidalgo da Casa Real, deve ter sido logo entregue à Câmara Municipal do Funchal, por legado do mesmo. A sua liteira, no entanto, com as armas de visconde envolvidas pelos atributos utilizados pela Câmara, um ramo de videira e outro de cana-de-açúcar, tal como o seu monograma, encimado por coroa de visconde, deve ter ido então a leilão, tendo passado a mãos particulares e depois ao Museu Quinta das Cruzes, sendo dos poucos exemplares deste tipo de transporte que sobreviveu. É provável que do leilão de 1923 tenha sobrevivido uma fotografia, onde aparece um dos dois óleos de Tomás da Anunciação (1818-1879), encomendados pelo 2.º conde de Carvalhal em 1865, e que fazem igualmente parte do acervo do Museu Quinta das Cruzes. No mesmo leilão deve ter sido vendido o retrato das duas filhas do 2.º conde de Carvalhal, depois depositado na Fundação Eugênia de Canavial.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

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