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biologia marinha

Biologia marinha é a parte da biologia que estuda os organismos que vivem nos ecossistemas de água salgada, a relação entre eles e a sua relação com o ambiente. Quase 71 % da Terra está coberta por oceanos. Estes funcionam como reguladores da temperatura no planeta e as suas características e alterações físicas afetam, direta ou indiretamente, as populações (Oceanografia). O fenómeno do El Niño, e.g., que provoca alterações no clima de muitas regiões do mundo, tem origem no oceano Pacífico. Da mesma forma, os níveis das ondas e marés afetam diretamente os contornos dos continentes e as populações costeiras. Além disto, os organismos marinhos são uma importante fonte de alimentação e produtos naturais para o mundo. Por isso, entender a relação e a interdependência entre os organismos marinhos entre si e com o ambiente é muito importante. História da biologia marinha Os primeiros estudos sobre organismos marinhos remontam à Grécia e Roma antigas. Aristóteles, e.g., descreveu cerca de 500 espécies, 1/3 das quais são marinhas, e interessou-se especialmente por entender o funcionamento das brânquias. Plínio, o Velho, um naturalista romano, incluiu diversas espécies de peixes, moluscos e mexilhões na sua História Natural. Foi, porém, nos sécs. XVIII e XIX que o estudo dos organismos marinhos cresceu exponencialmente com os avanços da tecnologia, nomeadamente com a construção de melhores barcos e instrumentos de navegação. A investigação das costas portuguesas foi alvo de numerosos estudos a partir do séc. XIX, sendo tal região nordeste do Atlântico denominada Província Lusitana. Nesta altura, colecionaram-se inúmeros exemplares de organismos marinhos, escreveram-se inventários de espécies e descreveram-se muitas espécies novas para a ciência. Neste período, a maior parte das amostras eram disponibilizadas por pescadores locais ou encontradas nos mercados. Algumas expedições oceanográficas, e.g. as organizadas por D. Carlos I (1863-1908), contribuíram significativamente para o avanço da biologia marinha em Portugal. Foi também o penúltimo rei de Portugal quem concebeu e impulsionou a fundação do Aquário Vasco da Gama, inaugurado em maio de 1898. Em meados do séc. XX, a publicação de Peixes do Portugal e Ilhas Adjacentes em 1956, por R. Albuquerque, foi um marco na biologia marinha em Portugal, constituindo-se na principal referência desta área durante mais de 30 anos. Esta obra incluía uma lista completa da ictiofauna (espécies de peixes) conhecida na época, assim como uma chave para a sua identificação. Durante a segunda metade do séc. XX, um dos grandes impulsionadores da biologia marinha em Portugal foi Luiz Saldanha (1937-1997), professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que publicou inúmeros estudos nesta disciplina, desde invertebrados e algas até à fauna das profundezas oceânicas, e impulsionou a proteção de áreas naturais marinhas. O desenvolvimento e melhoramento das técnicas de mergulho, no princípio do séc. XXI, assim como outros avanços tecnológicos, deram um novo impulso ao conhecimento da ictiofauna e dos habitats marinhos. É possível, e.g., aos cientistas irem até ao chão marinho com submergíveis de águas profundas ou enviarem robots com câmaras para estudarem os habitats mais profundos e os organismos que neles habitam. Zonas ou regiões oceânicas O lugar específico onde os organismos vivem é chamado habitat. Alguns exemplos de habitats marinhos são: costas rochosas, praias de areia, recifes de coral, mar profundo, entre outros. Os habitats e as suas condições dependem muito da zona ou região oceânica onde se encontram. Domínio bentónico: É a área mais próxima do fundo oceânico e pode ser subdividida em várias zonas. A zona litoral é o conjunto de habitats que estão sob a influência das marés, e a parte que fica exposta durante a maré baixa é denominada de zona entremarés. Estes habitats estão sujeitos à força mecânica das ondas, à alternância entre submersão e exposição ao ar, à água salgada (ondas), à água doce (chuvas), e a uma grande variação de temperatura, luz solar, salinidade, etc. Em virtude de tudo isto, os organismos que habitam nestas zonas têm de ter uma grande capacidade de adaptação. As zonas mais profundas do domínio bentónico são similares às zonas do domínio pelágico: a zona batial, situada no declive ou talude continental até aproximadamente aos 4000 m de profundidade; a zona abissal, com profundidades até aos 6000 m; e a zona hadal, que compreende o fundo das fossas oceânicas. Os organismos que habitam no domínio bentónico são denominados de bentos e vivem no substrato, sobre o sedimento ou enterrados nele, fixos ou não. Domínio pelágico: É a zona de mar aberto que começa a seguir à zona litoral e continua até ao alto mar. A sua profundidade vai desde os 10 m até quase aos 6000 m. A camada de água que cobre a plataforma continental é conhecida como província nerítica e é adjacente à zona litoral. A área por cima do oceano mais profundo é denominada de província oceânica. O domínio pelágico pode ser dividido em presença de luz solar em zona eufótica, até aproximadamente aos 200 m de profundidade, e em zona afótica, a parte do oceano que se mantém na escuridão. Este domínio também pode ser dividido segundo as diferentes profundidades: zona epipelágica, até aos 200 m de profundidade; zona mesopelágica, entre os 200 e os 1000 m; zona batipelágica, entre os 1000 e aos 4000 m; zona abisopelágica, dos 4000 aos 6000 m, incluindo as planícies abissais; zona hadopelágica, abaixo dos 6000 m, incluindo as fossas abissais (a fossa mais profunda conhecida é a fossa das Marianas que se encontra no oceano Pacífico e atinge 11.034 m de profundidade). Os organismos que vivem no domínio pelágico são de dois tipos: plâncton, organismos que ficam à deriva dos movimentos da água, e nécton, organismos capazes de nadar. Fig. 1 – Desenho com os diferentes domínios e as zonas oceânicas. Por P. Puppo.     Fatores ambientais Cada um dos habitats marinhos possui um conjunto de características físicas que, juntamente com a capacidade dos organismos para se adaptarem a elas, determina a distribuição de espécies. Cada espécie tem requisitos diferentes para cada um destes fatores e a sua capacidade de adaptação às mudanças pode alterar a sua distribuição ou mesmo levar a que uma espécie não se reproduza ou morra. É este conjunto de fatores, e.g. luz solar, temperatura, salinidade, pressão, nutrientes, que determina a distribuição das espécies. Luz solar: Este é um dos fatores mais importantes nos habitats marinhos. A luz solar penetra até diferentes profundidades, dependendo da qualidade da água. Em zonas onde a água é mais turva, a luz solar pode chegar a um metro de profundidade, enquanto, em zonas onde a água é mais transparente, a luz solar pode chegar aos dois metros de profundidade. A luz solar é essencial para os processos de fotossíntese de muitos organismos, e.g. plantas marinhas, algas e fitoplâncton. Também é necessária para a visão, já que muitos animais dependem deste sentido para caçar, fugir aos predadores ou para comunicar entre si. Os animais das profundezas, onde a luz solar é escassa ou não chega, dependem de outros sentidos, como o cheiro e o gosto, ou desenvolvem formas de produzir luz (bioluminescência). Temperatura: Da mesma forma que a luz solar, a temperatura também varia consoante a profundidade. A maior parte dos animais marinhos são ectotérmicos, ou seja, a sua temperatura corporal depende da temperatura do exterior e, por isso, são mais ativos quando a água fica mais quente. Os mamíferos e aves, por outro lado, são endotérmicos, produzem o seu próprio calor, e possuem uma temperatura interior normalmente maior que a temperatura da água. Os animais endotérmicos precisam de adaptações especiais que lhes permitam isolar a temperatura do seu corpo da temperatura exterior. Salinidade: Salinidade é a concentração de sais orgânicos dissolvidos na água. Os organismos possuem membranas semipermeáveis que deixam passar a água, mas não os sais (osmose) e, por isso, é muito importante conseguirem manter o equilibro dos níveis de água nos seus corpos. Se os organismos deixarem sair água a mais, podem-se desidratar ou mesmo morrer. Pressão: A pressão do mar mede-se em atmosferas (atm), sendo 1 atm equivalente a 101.325 Pa (pascais, a medida padrão de pressão). A pressão que a atmosfera exerce sobre o nível do mar é de 1 atm e vai aumentando consoante a profundidade, à razão de 1 atm por cada 10 metros de profundidade. Assim, e.g., a uma profundidade de 4000 m, a pressão é de 400 atm. Com esta diferença em pressão, os animais que normalmente habitam na superfície do mar não conseguem sobreviver às profundezas oceânicas. Organismos como as baleias, que conseguem nadar tanto na superfície do mar como nas profundezas, possuem adaptações especiais que lhes permitem tolerar estas diferenças em pressão. Nutrientes: Os organismos também precisam de uma série de compostos orgânicos e inorgânicos para crescerem e se reproduzirem. O cálcio, que é abundante no mar, é necessário para que organismos como os crustáceos, caracóis, ostras, corais, etc., se possam desenvolver. Da mesma maneira, compostos como o nitrogénio e o fósforo são essenciais para os organismos que produzem fotossíntese, e.g. o fitoplâncton, as algas e as plantas marinhas. O oxigénio, por seu turno, é indispensável a muitos organismos, como as plantas, os animais e muitos micróbios. O excesso de nutrientes, por outro lado, também pode levar a problemas sérios, como a sobrepopulação de fitoplâncton, conhecida vulgarmente como explosão de algas – que, ao morrerem, se decompõem, consumindo todo o oxigénio e matando outros organismos. Normalmente, as zonas de águas rasas e as zonas intermareais apresentam uma maior variação em luz solar, temperatura, salinidade e nutrientes, e os organismos que nelas habitam necessitam de se adaptar a estas variações. Pelo contrário, as zonas de águas mais profundas apresentam níveis de temperatura, sal, pressão e nutrientes mais constantes, pelo que os organismos destas áreas são muito mais intolerantes a alterações abruptas nestes fatores. Ecossistemas e cadeias alimentares A interação entre as comunidades de organismos e o efeito que o meio (os fatores ambientais) tem sobre elas é designada por ecossistema. Uma das principais interações entre as comunidades bióticas é a cadeia alimentar, em que umas comunidades se alimentam de outras e, por isso, dependem delas para sobreviver. Estas cadeias alimentares são um ciclo que começa com os produtores, organismos capazes de produzir o seu próprio alimento e que servem de alimento a outros organismos, os consumidores, e que acaba com os decompositores, organismos que transformam cadáveres e excrementos em nutrientes, que podem ser reutilizados pelos produtores. Frequentemente, os consumidores alimentam-se de diferentes organismos, o que torna estas interações muito mais complexas. Produtores: Os produtores são organismos autótrofos, ou seja, são capazes de produzir o seu próprio alimento. A maior parte dos produtores faz isto através de um processo conhecido como fotossíntese, em que os organismos usam luz solar, dióxido de carbono e água para produzir glucose, libertando oxigénio. Consumidores: Os consumidores são todos os organismos incapazes de produzir o seu próprio alimento e que, por isso, se alimentam de outros organismos. Os consumidores podem ser herbívoros, que se alimentam dos produtores; carnívoros, que se alimentam de outros consumidores; ou omnívoros, que se alimentam tanto de produtores como de outros consumidores. Decompositores: São organismos que se alimentam de cadáveres ou de qualquer outro resto orgânico, transformando-os em compostos ou moléculas mais simples, que podem ser reaproveitadas pelos produtores. Microrganismos marinhos Os microrganismos são os organismos mais abundantes no oceano e, embora não sejam visíveis a olho nu, cumprem funções importantíssimas nos ecossistemas marinhos: são a base das cadeias alimentares, decompõem organismos mortos e reciclam nutrientes. Existem vários tipos de microrganismos marinhos: vírus, bactérias, fungos, diatomáceas, etc. Os mais significativos são mencionados com mais detalhe a seguir. Vírus marinhos: Os vírus não são considerados organismos, mas parasitas, já que só se podem reproduzir usando uma célula hóspede. Fora de um hóspede, os vírus são inertes e são chamados vírions. Uma vez dentro de uma célula, podem-se reproduzir rapidamente, produzindo milhares de novos vírus. As células infetadas morrem e, por isso, os vírus podem reduzir significativamente populações de bactérias e outros microrganismos, libertando nutrientes no mar. Bactérias marinhas: As bactérias são organismos unicelulares procariontes (que carecem de membrana no núcleo e organelos). As cianobactérias, também conhecidas como algas azuis ou algas verde-azuladas, são organismos capazes de produzir o seu próprio alimento através da fotossíntese. Grandes quantidades de cianobactérias podem formar tapetes que dão uma cor característica à água, e.g. o caso do mar Vermelho. As bactérias incapazes de produzir o seu próprio alimento alimentam-se de outros organismos e decompõem matéria orgânica, libertando compostos inorgânicos no mar. Algumas bactérias associam-se a outros organismos (simbiose), tal como acontece com alguns peixes dos abismos oceânicos que produzem luz (bioluminescência) por meio de uma simbiose com bactérias produtoras de luz. Arqueias: Estes organismos são procariontes e muito parecidos com as bactérias, mas as suas membranas celulares são muito resistentes e, por isso, conseguem habitar áreas extremas com temperaturas muito baixas ou muito elevadas (acima dos 100 ºC) ou com uma alta concentração de sais, alta pressão, ambientes muito ácidos, etc. Algumas arqueias não precisam de oxigénio para viver e libertam metano. Fungos marinhos: Os fungos são organismos eucariotas (as suas células têm um núcleo delimitado por uma membrana e por organelos) cuja membrana celular é composta de quitina, o mesmo composto que se encontra nas carapaças de animais como os crustáceos. Os fungos são organismos que precisam de oxigénio para viver e são incapazes de produzir o seu próprio alimento. Não são muito abundantes no mar e, de facto, menos de 1 % dos fungos são marinhos. Liquens: Estes organismos são uma simbiose entre um fungo e uma bactéria, o que lhes permite viver em zonas inóspitas para outros organismos como, e.g., zonas intermareais altas. Diatomáceas: As diatomáceas pertencem ao grupo das Straminopiles, um grupo variado de algas que inclui as algas castanhas. As diatomáceas são organismos protistas (grupo de organismos eucariotas), unicelulares e fotossintéticos caracterizados por possuir a membrana exterior à maneira de carapaça (conhecida por frústula), rica em dióxido de silício. Como a sílica é indissolúvel, quando estes organismos morrem, as suas frústulas depositam-se no fundo marinho, formando sedimentos de sílica que podem ser depois colhidos e usados como filtros ou abrasivos para usos comerciais. São um grupo numeroso de organismos, estimando-se que existem mais de 100.000 espécies de diatomáceas, e são o principal componente do fitoplâncton. Cocolitóforos: Parecidos com as diatomáceas, estes microrganismos fotossintéticos possuem, em vez de uma carapaça de sílica, escamas de carbonato de cálcio (conhecidas como cocólitos). Após a morte do organismo, estes cocólitos formam importantes depósitos de cálcio no chão marinho. Na Madeira, Kaufmann registou, em 2004, cerca de 37 espécies de cocolitóforos. Dinoflagelados: São organismos protistas, unicelulares cobertos por placas de celulose. Muitas espécies são autótrofas, outras são heterótrofas (alimentam-se de outros organismos), algumas são parasitas e outras vivem em simbiose com outros organismos. Algumas espécies produzem luz (são bioluminescentes) e outras produzem toxinas que podem matar outros animais. Estas toxinas podem-se acumular em alguns organismos (e.g. peixes) que se alimentam de dinoflagelados, e também afetar a saúde dos seres humanos. Em todos os verões, desde 2007, se têm registado casos, na Madeira e nas Selvagens, de pessoas intoxicadas por dinoflagelados. Um outro fenómeno originado por estes organismos são as marés vermelhas, uma concentração de dinoflagelados que aparece quando as condições são favoráveis e estes organismos se reproduzem rapidamente. As espécies autótrofas de dinoflagelados são o segundo componente mais importante do fitoplâncton, após as diatomáceas. Fig. 2 – Desenhos de dois microrganismos marinhos: cocolitóforo (esquerda) e dinoflagelado (direita). Por P. Puppo.   Protozoários ameboides: São organismos protistas e heterótrofos que se alimentam de bactérias e outros microrganismos. Possuem extensões no citoplasma, denominadas de pseudópodos, que usam para locomoção ou para apanhar presas. Pertencem a dois grupos: os foraminíferos, que possuem uma concha calcária, que, muitas vezes, é responsável pela tonalidade cor-de-rosa da areia em algumas praias, e os radiolários, que possuem uma cápsula porosa que deixa passar os pseudópodos e formam uma carapaça interna de sílica. Após a morte destes organismos, as conchas e carapaças formam depósitos importantes no fundo marinho. Fitoplâncton: é o conjunto de microrganismos marinhos capazes de realizar fotossíntese, e.g. as cianobactérias, diatomáceas, cocolitóforos, algumas espécies de dinoflagelados e algumas espécies de algas castanhas. Pertencem ao grupo dos produtores e são os principais responsáveis pela transformação de dióxido de carbono (CO2) em oxigénio, não só nos oceanos, mas também na atmosfera. Um estudo realizado em 2015 por Kaufmann, no oceano Atlântico ao redor da Madeira, concluiu que o fitoplâncton é composto de mais de 470 espécies, das quais 55 % são diatomáceas e 33 % são dinoflagelados.   Algas e plantas marinhas Embora os principais produtores marinhos sejam os microrganismos conhecidos como fitoplâncton, as algas e plantas marinhas também estão incluídas no grupo dos produtores. Na sua maioria, estes organismos não flutuam com as correntes marinhas, mas estão fixos no substrato. A exceção a esta regra é um grupo de algas castanhas conhecidas como sargaço, que formam tapetes flutuantes no oceano. Além da sua função como produtores, as algas e plantas marinhas proporcionam habitats para outros organismos e, por outro lado, as raízes das plantas são importantes para fixar o substrato marinho. Algas marinhas: Existem três grupos de algas: as verdes, as vermelhas e as castanhas. As algas verdes e as algas vermelhas são parecidas com as plantas, enquanto as algas castanhas estão mais relacionadas com as diatomáceas. O seu nome deriva dos diferentes pigmentos que cada um destes grupos de algas possui. Estes pigmentos ajudam estes organismos a absorver diferentes comprimentos de onda da luz e, assim, a adaptar-se às diferentes zonas do oceano. Também protegem as algas em caso de excesso de exposição à luz solar. As algas verdes, e.g., absorvem ondas de luz vermelha e, por isso, estas algas encontram-se mais perto da superfície. As algas vermelhas, por seu lado, absorvem ondas de luz azul (que penetram mais no oceano) e, por isso, encontram-se a maiores profundidades, enquanto as algas castanhas se distribuem tipicamente por profundidades intermédias. A temperatura também afeta a distribuição e abundância das algas, sendo que estes organismos são geralmente mais abundantes perto dos trópicos. As algas não têm folhas, caules, nem raízes como as plantas. O seu corpo é denominado talo, a parte plana é a lâmina, o estipe é a parte parecida com o caule das plantas, mas sem tecidos vasculares, e a zona parecida com uma raiz, que fixa o organismo ao substrato, chama-se rizoide. Algumas algas formam vesículas cheias de ar nas lâminas que ajudam os organismos a flutuar e, assim, a ficar mais perto da superfície e a captar mais luz solar. Muitas espécies de algas são exploradas pelo homem para consumo direto, e outras são usadas como fonte de alguns compostos usados na indústria farmacêutica e alimentícia, e.g. substitutos da gelatina (ágar) para produzir cápsulas, supositórios, anticoagulantes, cremes, geleias, etc. Plantas marinhas: As plantas que vivem em águas salgadas são plantas com flores que se adaptaram a estes ecossistemas. Diferentemente das algas, as plantas marinhas possuem folhas, caules e raízes pelas quais absorvem nutrientes do substrato. Vivem em zonas de pouca profundidade, formando prados marinhos, oferecem refúgio a muitos animais bentónicos e servem de alimento a algumas espécies de peixe-papagaio, ouriço-do-mar e tartarugas marinhas. Estas plantas, conhecidas também como ervas marinhas, fixam o sedimento marinho com as suas raízes, diminuindo a turbidez da água, e diminuem a velocidade da água com as suas folhas. A lista mais recente de algas e plantas marinhas do arquipélago da Madeira, publicada em 2001 por Neto e colaboradores, inclui uma espécie de planta marinha e 359 espécies de algas marinhas, das quais 231 são algas vermelhas, 64 são algas verdes e 64 são algas castanhas.   Fig. 3 – Desenho das partes de uma alga castanha. Por P. Puppo.      Invertebrados marinhos Os invertebrados são aqueles animais que carecem de coluna vertebral, ao contrário dos vertebrados (peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos), que possuem esta estrutura. Os invertebrados são muito mais numerosos que os vertebrados e, entre os invertebrados marinhos, encontram-se as esponjas, cnidários, ctenóforos, vermes marinhos, moluscos, crustáceos, etc. Esponjas: As esponjas são os animais mais simples, pois não têm tecidos, órgãos ou sistema nervoso. O seu corpo apresenta uma forma de tubo, um dos seus extremos é fechado, por estar preso ao substrato, e o outro extremo, denominado ósculo, por onde sai a água, é aberto. O interior do corpo é chamado espongiocele. Alimentam-se de pequenas partículas (bactérias, plâncton, detritos) que apanham, filtrando a água que entra por vários pequenos orifícios – os óstios – no corpo. As esponjas são um componente importante de águas pouco profundas e ajudam na reciclagem de cálcio no oceano. Até 2012, foram registadas por Xavier e Van Soest 95 espécies de esponjas de águas rasas na região oceânica em redor das ilhas Canárias e da Madeira. Cnidários: Os cnidários são animais cujo corpo está organizado em redor de um único buraco (ou boca) rodeado de tentáculos urticantes que injetam uma toxina. A toxina de algumas espécies pode ser mortal, embora alguns animais, e.g. o peixe-palhaço, lhe sejam imunes. Os cnidários apresentam duas formas de vida, pólipo ou medusa, e estão subdivididos em quatro classes principais. Os Hydrozoa apresentam duas fases no seu ciclo de vida (pólipo ou medusa) e incluem as hidras e a caravela-portuguesa ou garrafa azul. Os Scyphozoa são sobretudo medusas, mexem-se, mas são incapazes de ir contra a corrente e são as comummente chamadas medusas, águas-vivas ou alforrecas. Os Cubozoa são medusas em forma de cubo, também conhecidas como cubozoários, e são predadores ativos que matam a sua presa, injetando-a com toxinas; alimentam-se sobretudo de peixe. Os Anthozoa são pólipos, vivem fixos no substrato marinho e incluem as anémonas, que apanham as suas presas com os seus tentáculos, e os corais, que segregam um esqueleto externo de cálcio e formam colónias de inumeráveis indivíduos (recifes). Os cnidários alimentam-se por filtração (Hydrozoa e corais) ou apanhando pequenos peixes e invertebrados com os seus tentáculos (Scyphozoa, Cubozoa e anémonas). A comida é digerida no interior oco dos organismos, na cavidade central ou gastrovascular, e os restos são expulsos para o exterior pelo único buraco que estes organismos possuem. Muitos cnidários também servem de alimento a outros animais, e.g. tartarugas marinhas e várias espécies de peixe, que comem medusas, e uma espécie de estrela-do-mar, que come corais. Os recifes de corais são as colónias de organismos maiores do mundo e são importantes em muitos aspetos: constituem o habitat de muitos outros seres vivos, servem de substrato para várias espécies do domínio bentónico e atenuam o impacto das ondas marinhas. Os cnidários são muito abundantes na Madeira e no Porto Santo; e.g., só para os Hydrozoa, Wirtz registou em 2007 a ocorrência de 53 espécies. Ctenóforos: conhecidos vulgarmente como carambolas-do-mar ou águas-vivas-de-pentes, estes organismos caracterizam-se pela presença de filas de cílios (à maneira de pentes), que utilizam para nadar, e por produzirem luz (são bioluminescentes). São parecidos com as medusas, mas normalmente não têm tentáculos ao redor da boca; poucas espécies possuem só dois tentáculos, que não produzem toxinas e que usam para apanharem as suas presas. Os ctenóforos são predadores e alimentam-se principalmente de plâncton, embora algumas espécies comam medusas. Vermes marinhos: Os vermes marinhos são muito numerosos e estão subdivididos em muitos grupos. Só alguns serão mencionados seguidamente com mais pormenor. Os platelmintos são vermes-planos, têm olhos rudimentares, que lhes permitem distinguir as diferentes intensidades de luz, têm um só buraco por onde entra o alimento e saem os resíduos, e são carnívoros, alimentando-se de pequenos invertebrados. Algumas espécies destes vermes-planos, os turbelários, medem entre alguns milímetros e 50 cm e vivem livremente no domínio bentónico; outras espécies são parasitas de outros animais e, em alguns casos, como as ténias das baleias, podem medir até 30 m de comprimento. Os nemátodos são vermes redondos cujo corpo é cilíndrico e alongado e possui uma boca e um ânus. Os seus hábitos alimentares são muito variados, desde varredores, parasitas e predadores, consumindo, alguns, bactérias e algas. Estes vermes são muito abundantes e, embora normalmente sejam pequenos (menos de 5 cm), algumas espécies podem atingir mais de um metro de comprimento. Os anelídeos são vermes segmentados cujo corpo é composto de muitos segmentos iguais entre si, o que lhes permite uma maior mobilidade. Os anelídeos marinhos mais comuns pertencem ao grupo dos poliquetas, que têm o corpo coberto de cerdas e são de vida livre (pelágicos) ou sedentários. Os vermes marinhos cumprem muitas funções importantes nos ecossistemas. As espécies que vivem enterradas no substrato ajudam na reciclagem de nutrientes, pois, ao cavar no sedimento, trazem à superfície nutrientes que podem ser reaproveitados por outros organismos. Outras espécies alimentam-se de pequenos organismos ou detritos ou servem de comida para animais maiores. Briozoários: Também conhecidos como animais-musgo, pertencem ao grupo dos lofoforados, já que possuem um círculo de tentáculos ciliados ao redor da boca. O seu aparelho digestivo tem a forma de um U, sendo que o ânus está muito próximo da boca. Os briozoários são animais que vivem formando colónias sésseis e se alimentam por filtração. Moluscos: É um grupo de organismos muito variado que inclui animais como lulas, polvos, mexilhões, etc. O seu corpo é mole e é composto de uma cabeça, onde estão os órgãos sensoriais, um pé, usado para a locomoção, e um manto, que protege a maior parte do corpo e que muitas vezes segrega uma concha. Os moluscos apresentam um sistema digestivo completo (boca-ânus) e, com exceção dos bivalves, possuem uma estrutura conhecida como rádula, um tecido que contém dentes usados para raspar, rasgar ou cortar os alimentos. Os moluscos são uma importante fonte de alimento para animais e seres humanos e constituem uma importante fonte de cálcio para algumas aves marinhas. Os moluscos estão subdivididos em várias classes, algumas delas extintas (só se conhecem por fósseis). As espécies marinhas encontram-se, sobretudo, em quatro classes: Polyplacophora (cerca de 1200 espécies), Gastropoda (40.000-50.000 espécies), Bivalvia (cerca de 800 espécies), e Cephalopoda (cerca de 790 espécies). Os Polyplacophora são organismos exclusivamente marinhos que habitam sobretudo na zona entremarés, o seu corpo é plano, estando coberto por oito placas calcárias, e alimentam-se de algas e plantas que raspam do substrato com a rádula. Os quítons pertencem a este grupo. Os gastrópodes mexem-se deslizando pelo substrato com o pé musculado; a maioria das espécies possui uma concha, enroscada (caracóis) ou mais ou menos lisa (lapas), e outras espécies, como os nudibrânquios, carecem de concha. A sua alimentação é igualmente variada: algumas espécies são herbívoras e alimentam-se de algas ou plantas marinhas, outras são carnívoras e comem cnidários, equinodermos e bivalves, e outras espécies alimentam-se por filtração. Os bivalves são moluscos que têm o corpo protegido por uma concha carbonatada dividida em duas valvas que se abrem e fecham pela contração de um músculo. Não têm cabeça, nem rádula, usam o pé para se enterrarem no substrato e para se movimentarem, e alimentam-se por filtração. Os cefalópodes são moluscos carnívoros; caracterizam-se por ter o pé modificado à maneira de cabeça e por uma boca rodeada de tentáculos que usam para capturar presas, defender-se de predadores e mover-se. Os cefalópodes são um grupo numeroso e variado que inclui: os nautilus, que têm concha e de 60 a 90 tentáculos; os chocos e lulas, que têm uma pequena concha interna e 10 tentáculos (tendo 2 mais compridos que os outros), e os polvos, que carecem de concha e têm 8 tentáculos. Os chocos, lulas e polvos têm o sistema nervoso mais complexo de todos os invertebrados, possuem olhos bem desenvolvidos, libertam uma nuvem de tinta para distrair os predadores, e conseguem mudar de cor e textura. O grupo dos moluscos é muito abundante na Madeira, sendo que, em 2009, Segers e colaboradores registaram a ocorrência de cerca de 850 espécies destes organismos no arquipélago da Madeira. Artrópodes: Os artrópodes são um grupo muito numeroso de invertebrados que inclui os insetos e constituem cerca de 75 % de todas as espécies de animais. Caracterizam-se por um exosqueleto feito de quitina, corpo segmentado e apêndices articulados especializados para a locomoção, alimentação ou perceção sensorial. Os artrópodes marinhos pertencem sobretudo a dois grupos, os Chelicerata (grupo onde também estão incluídos as aranhas, ácaros e escorpiões) e os Crustacea ou crustáceos. Os Chelicerata carecem de mandíbulas e, por isso, digerem a comida antes de a ingerirem; o representante aquático deste grupo é o límulo ou caranguejo-ferradura-do-atlântico, que vive em zonas de águas rasas e se alimenta de pequenos invertebrados e algas. Os crustáceos possuem mandíbulas, que usam para esmagar e mastigar os alimentos, duas antenas e, dependendo da espécie, patas modificadas para caminhar e para nadar, ou apresentam pinças para caçar ou para defender-se. Os crustáceos são muito numerosos, cerca de 50.000 espécies, e incluem as lagostas, caranguejos e camarões, que possuem duas pinças e quatro pares de patas, sendo, na sua maioria, predadores (embora alguns sejam varredores ou filtradores), e também percebes e cracas, os únicos crustáceos sésseis, além de outros organismos como os krill, anfípodes e copépodes, que são importantes componentes do zooplâncton. Na Madeira, Wirtz e colaboradores registaram, em 2006, a ocorrência de 27 espécies de percebes, e Araújo e Wirtz, em 2015, registaram cerca de 215 espécies de lagostas, caranguejos e camarões. Equinodermes: São um grupo de organismos marinhos e bentónicos, particularmente abundantes no oceano profundo, mas também se encontram em águas rasas. Possuem um esqueleto interno (endoesqueleto) formado por placas calcárias e um grande poder regenerativo, podendo originar um novo organismo a partir de uma parte do corpo. Este grupo inclui: as estrelas-do-mar, cujo corpo é constituído por um disco central e cinco braços; os ofiúros ou estrelas-serpente, semelhantes às estrelas-do-mar, nos quais o disco central inclui todos os órgãos vitais e os braços são finos e compridos; os ouriços-do-mar e bolachas-da-praia, organismos redondos com espinhos; os pepinos-do-mar, que têm um corpo alongado; e os lírios-do-mar ou crinóides, que se fixam ao substrato e estendem os braços para se alimentarem. Os equinodermes são importantes herbívoros ou predadores e servem de alimento a uma variedade de espécies, e.g. moluscos, caranguejos, peixes, lontras marinhas e até seres humanos. Estes organismos são muito diversos na Madeira, sendo que De Jesus e Abreu registaram, em 1998, 52 espécies de equinodermes na Madeira, das quais 27 são espécies de percebes (segundo o estudo de Wirtz e colaboradores publicado em 2006) e 6 são ouriços-do-mar (segundo o estudo de Alves e colaboradores feito em 2001). Destas espécies, vale a pena mencionar Diadema antillarum, uma espécie dominante de ouriço-do-mar que se alimenta das extensas zonas de algas. Tunicados: Estes organismos são os mais parecidos com os vertebrados; estão incluídos no grupo dos cordados, mas, em vez de uma coluna vertebral, apresentam uma notocorda (corda dorsal) que surge só no seu desenvolvimento embrionário. Os adultos carecem desta estrutura. Os tunicados são organismos marinhos que se alimentam por filtração: algumas espécies são sésseis e outras vivem livremente no mar aberto; enquanto algumas são solitárias, outras formam colónias. Peixes marinhos Os peixes pertencem ao grupo dos animais vertebrados, pois possuem uma série de ossos ou cartilagens que dão suporte à medula espinal e proporcionam um lugar de fixação para os músculos do corpo. Os peixes marinhos são os animais vertebrados mais abundantes nos oceanos, distribuindo-se desde as zonas costeiras até ao mar aberto e desde zonas pouco profundas até zonas abissais. Muitas espécies de peixes têm adaptações para eliminar o excesso de sal dos seus corpos. Os tubarões, e.g., têm glândulas de sal localizadas no reto, enquanto outras espécies de peixes ósseos segregam o sal através de células especializadas nas brânquias. Os peixes estão subdivididos em três grandes grupos: os peixes sem mandíbulas (cerca de 80 espécies), que incluem as lampreias e as mixinas; os peixes cartilaginosos (cerca de 1000 espécies), que incluem os tubarões e as raias; e os peixes ósseos (cerca de 25.000 espécies), que incluem todos os peixes com esqueleto ósseo, e.g. as sardinhas, o bacalhau, o atum, etc. Peixes sem mandíbulas: Os animais neste grupo não têm mandíbulas, pares de barbatanas ou escamas, e os seus esqueletos são compostos só de cartilagem. As mixinas ou enguias-de-muco são animais parecidos com as lampreias, mas têm dois pares de tentáculos na boca que usam na alimentação, vivem no substrato a profundidades inferiores a 600 m, alimentando-se de pequenos invertebrados ou animais mortos, e produzem grandes quantidades de muco para afastar os predadores. As lampreias vivem tanto em água doce como em água salgada, têm uma boca à maneira de ventosa circular, com a qual raspam ou sugam o seu alimento, sendo muitas espécies consumidas pelo homem como alimento. Peixes cartilaginosos: Estes peixes têm mandíbula, barbatanas e o seu esqueleto é composto de cartilagem e coberto com sais de cálcio. A este grupo pertencem os tubarões, animais carnívoros que se alimentam de uma variedade de presas, desde os leões-marinhos ao fitoplâncton. As raias também pertencem a este grupo e caracterizam-se pelos seus corpos achatados, fendas branquiais localizadas por baixo do corpo, e um estilo de vida bentónico, alimentando-se de pequenos invertebrados, e.g. moluscos e crustáceos, ou de plâncton. As quimeras também são peixes cartilaginosos que, na sua maioria, habitam nas profundezas e se alimentam de peixes, crustáceos e moluscos. Os peixes cartilaginosos têm várias estratégias reprodutivas: algumas espécies são ovíparas (os embriões desenvolvem-se dentro de um ovo, fora do corpo da mãe), outras são vivíparas (o embrião desenvolve-se dentro do útero materno alimentado por uma placenta), e outras são ovovivíparas (o embrião desenvolve-se dentro de um ovo, alimentando-se das substâncias nutritivas do mesmo, mas o ovo fica dentro do corpo da mãe, proporcionando-lhe proteção). Peixes ósseos: São o grupo mais numeroso de peixes e caracterizam-se por ter esqueleto ósseo, escamas ósseas e uma bexiga-natatória, que ajuda o animal a manter uma certa profundidade. A forma do corpo varia muito consoante o estilo de vida das espécies; a forma típica é a fusiforme, que os ajuda a nadar, mas há espécies que têm um corpo globoso (e.g. o peixe-balão), ou achatado (e.g. o linguado), ou alongado (e.g. a enguia), ou com a cauda enroscada (e.g. o cavalo-marinho). O estilo de vida destes peixes também é muito variado: pelágicos (mar aberto), e.g. as sardinhas, atuns, etc.; mesopelágicos, que percorrem grandes distâncias verticais no oceano, porque vivem nas profundezas durante o dia e sobem à superfície à noite para se alimentarem; bentónicos, que vivem mais perto do substrato, enterrados nele, e.g. o linguado, ou escondidos entre as rochas, e.g. as enguias; batipelágicos e abissais, que vivem na zona batial ou abissal (de grandes profundidades). A sua alimentação também é muito variada: muitos são carnívoros e alimentam-se de pequenos invertebrados, muitos outros são herbívoros e comem plantas e algas, e outros, ainda, são filtradores e alimentam-se sobretudo de plâncton. A maior parte dos peixes ósseos é ovípara. Na Madeira, estima-se que existam cerca de 550 espécies de peixes. Entre estas, 226 são espécies costeiras e 133 são de peixes associados a recifes. Não há espécies de peixes marinhos endémicos só à Madeira (ou seja, que só ocorram no oceano ao redor da Ilha), mas há 11 espécies endémicas pertencentes aos arquipélagos da Madeira, dos Açores e das Canárias, uma espécie, Mauligobius maderensis, endémica à Madeira e às ilhas Canárias, e outra, Paraconger macrops, endémica aos Açores e à Madeira. As espécies que ocorrem na Ilha são muito variadas: raias, enguias, peixes-agulha, peixes-trombetas, cavalos-marinhos, arenques, barracudas, garoupas, sargos, peixes-papagaios, atuns, peixes-escorpião, linguados, peixes-balão, etc. Ocasionalmente, são avistadas na Madeira espécies do mar aberto, e.g. a caravela-portuguesa (Cnidário, Hydrozoa), e várias espécies de tubarões: tubarão caneja, tubarão branco, tubarão azul, tubarão martelo, tubarão baleia, entre outros. Os peixes oceânicos que ocorrem na Madeira são uma mistura de espécies similares às que ocorrem na região mediterrâneo-atlântica (espécies de águas temperadas) e de espécies tropicais que atingem o limite norte da sua distribuição nesta área, e.g.: Aluterus scriptus, Canthidermis sufflamen, Caranx crysos, Gnatholepis thompsoni, Heteroconger longissimus, entre outras. Alguns autores sugerem que há um aumento no número de espécies tropicais no mar da Madeira, presumivelmente devido ao aumento da temperatura da água ocasionado pelo aquecimento global (ver, e.g., o artigo publicado por Wirtz e colaboradores em 2008). Répteis marinhos Os répteis são um grupo de animais adaptados à vida terrestre, embora algumas espécies também habitem ecossistemas aquáticos. São animais de sangue frio, ou ectotérmicos, já que a sua temperatura corporal depende da temperatura do exterior; por isso, a maior parte destes organismos vive em zonas temperadas e quentes. Estes animais têm o corpo coberto de escamas, alimentam-se de diversos organismos, têm muito poucos predadores, e reproduzem-se colocando ovos amnióticos, onde o embrião está rodeado por uma série de membranas, tendo o ovo uma casca dura. Os répteis marinhos bebem água salgada e eliminam o excesso de sal através de umas glândulas especializadas localizadas na cabeça. Estes animais vão sempre a terra para depositar os seus ovos. As espécies de répteis adaptadas à vida marinha são poucas. A iguana-marinha é a única espécie de lagarto que vive em águas salgadas e só ocorre nas ilhas Galápagos; tem a glândula de sal no nariz. Existem cerca de 50 espécies de serpentes marinhas e todas ocorrem nos oceanos Pacífico e Índico. Só existem três espécies de crocodilos adaptadas à vida em águas salgadas: o crocodilo-marinho distribuído pela Ásia (Crocodylus porosus), o crocodilo americano (C. acutus), e o crocodilo do Nilo (C. niloticus). Estes crocodilos têm as glândulas de sal na língua. Das tartarugas, só sete são marinhas e têm uma ampla distribuição por águas tropicais e subtropicais, mas só uma espécie, a tartaruga-de-couro, consegue tolerar águas mais frias, tendo sido avistada em zonas como o Canadá e Alasca. Estas tartarugas são carnívoras, com exceção da tartaruga-verde, que é herbívora; têm as glândulas de sal localizadas por cima dos olhos. Seis das sete espécies de tartarugas marinhas estão em perigo de extinção devido ao impacto humano: o desenvolvimento do turismo nas praias afasta as tartarugas que vão até à areia depositar os seus ovos; muitas tartarugas ficam presas nas redes de pesca ou em lixo; outras comem sacos de plástico que encontram no mar, confundindo-os com medusas, e muitas espécies são também caçadas pelo seu couro. Os únicos répteis marinhos que ocorrem na Madeira são cinco espécies de tartarugas: a tartaruga-boba (Caretta caretta), que é a mais comum, a tartaruga-verde (Chelonia midas), a tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea), a tartaruga-de-Kemp (Lepidochelys kempii), e a tartaruga-de-escama (Eretmochelys imbricata). Aves marinhas As aves são animais endotérmicos ou de sangue quente, já que conseguem manter a sua temperatura corporal constante, apesar da temperatura exterior, devido à sua elevada taxa metabólica. Por isso, conseguem habitar zonas muito mais frias, como o Ártico e o Antártico. Além disto, os seus corpos estão cobertos de penas, o que lhes dá um maior isolamento. As aves também põem ovos amnióticos como os répteis e têm glândulas de sal sobre os olhos que as ajudam a libertar o excesso de sal através do nariz. Das quase 8000 espécies de aves que existem, cerca de 250 estão adaptadas a ambientes marinhos; estas aves alimentam-se no oceano, mas retornam a terra, onde se reproduzem e formam colónias de ninhos que as protegem de predadores. Aves costeiras: Estas aves não são propriamente aves marinhas, no sentido em que não nadam muito e não têm as patas palmadas (especiais para nadar); têm patas compridas e um bico longo e fino e alimentam-se sobretudo na zona entremarés. A este grupo pertencem espécies como as garças, ostraceiros, etc., e estão incluídas em várias famílias da ordem Ciconiiformes. Gaivotas, gaivinas e afins: Este grupo de aves é muito diverso e inclui espécies como a gaivota, gaivina, torda-comum, papagaio-do-mar, etc. Estas espécies estão incluídas em várias famílias da ordem Charadriiformes. Estas aves têm patas palmadas e glândulas de óleo para impermeabilizar as suas penas. Vivem perto do mar, formam grandes colónias na terra e têm distribuição a nível mundial. Pelicanos e afins: Este grupo inclui espécies como o pelicano, alcatraz, fragata, etc. São aves aquáticas que, na sua maioria, têm um saco extensível pendurado na sua mandíbula inferior e alimentam-se mergulhando na água e capturando peixes, cefalópodes e crustáceos. Estas espécies pertencem à ordem Pelecaniformes. Aves pelágicas: A este grupo pertencem espécies como as cagarras, albatrozes, petréis, e outras, todas incluídas na ordem Procellariiformes. Estas aves têm as narinas em forma de tubo e vivem em mar aberto, podendo passar vários meses no oceano. Alimentam-se de peixes e cefalópodes e, como as outras aves marinhas, nidificam em terra formando grandes colónias. Pinguins: São o grupo de aves mais bem adaptado à vida marinha: não voam, as suas asas estão modificadas à maneira de barbatanas para nadar e possuem uma camada de gordura por baixo da pele para isolar o corpo do frio exterior. Todas as espécies de pinguins, com exceção de uma (o pinguim-das-galápagos), vivem em zonas frias no hemisfério sul e alimentam-se de peixes, lulas e krill. Os pinguins pertencem à ordem Sphenisciformes. Na Madeira, os diferentes habitats e ilhas que compõem o arquipélago constituem importantes zonas de nidificação para numerosas aves marinhas. Os penhascos, assim como a ocorrência de pequenas ilhas e ilhotas como as Desertas, os ilhotes de Porto Santo e as ilhas Selvagens, são especialmente importantes para a reprodução de numerosas espécies, e.g. a freira-do-bugio, ave endémica da Macaronésia (Madeira, Selvagens, Canárias, Açores, Cabo Verde), que se reproduz em Bugio, uma das ilhas das Desertas. A própria ilha da Madeira, pela sua localização no meio do oceano, constitui um sítio ideal para a nidificação de muitas aves pelágicas, e.g. a freira-da-madeira, ave endémica desta Ilha. Outras aves pelágicas (ordem Procellariiformes) que ocorrem nestas ilhas são: alma-negra, roque-de-castro e pintainho, que nidificam nas Selvagens e Desertas; a cagarra, que nidifica na Madeira, Selvagens e Desertas; e o calcamar, que nidifica nas Selvagens. Outras aves marinhas, da ordem Charadriiformes (gaivotas e afins), que ocorrem nas ilhas são: gaivota-de-patas-amarelas, borrelho-de-coleira-interrompida, garajau-rosado e garajau-comum. Mamíferos marinhos Os mamíferos são animais endotérmicos, capazes de manter a sua temperatura corporal, e dão à luz crias que são alimentadas com leite materno produzido em glândulas mamárias. Os mamíferos marinhos vivem a maior parte da sua vida na água e, por isso, possuem adaptações especiais, como barbatanas; têm uma camada de pelos ou uma camada grossa de gordura por baixo da pele que os ajuda a isolá-los das temperaturas exteriores e, por isso, podem viver em águas geladas como a dos polos. Os mamíferos marinhos estão agrupados em seis grupos pertencentes a três ordens: Carnivora (lontras, ursos polares, focas), Sirenia (peixe-boi), e Cetacea (baleia, golfinho, etc.). Lontra-marinha: Estes animais têm uma camada grossa de pelagem que os protege do frio, as patas traseiras têm os dedos unidos à maneira de barbatanas e alimentam-se de ouriços-do-mar, crustáceos, moluscos e peixes que apanham no fundo do mar e, depois, levam até à superfície para comer, enquanto flutuam sobre as suas costas. As lontras-marinhas estão distribuídas pelo Norte do oceano Pacífico. Ursos polares: Os ursos polares habitam na região ártica, onde são os maiores predadores, alimentando-se sobretudo de focas. Estão em perigo de extinção, porque são caçados pelo homem e porque o seu habitat (o gelo do Ártico) está a diminuir drasticamente em virtude do aquecimento global. Estes animais têm uma camada de gordura debaixo da pele e uma pelagem densa que prende o ar, mantendo o corpo quente, mesmo quando o animal está dentro de água. Pinípedes: Os pinípedes são um conjunto de três famílias de mamíferos marinhos: Otariidae, que inclui lobos-marinhos e leões-marinhos; Phocidae, onde estão as focas e os elefantes-marinhos; e Odobenidae, que inclui as morsas. Estes animais passam a maior parte do tempo na água; só vão a terra (ou gelo) para se reproduzirem, dar à luz e amamentar as crias. Possuem uma grossa camada de gordura debaixo da pele e pelo que os ajuda a isolar o frio exterior, e têm patas modificadas em forma de aletas; alimentam-se de peixes e invertebrados, sendo que só o leopardo-marinho se alimenta de outras focas, pinguins e aves marinhas. Sirenia: Os sirénios são animais estritamente herbívoros que passam a totalidade da sua vida na água. Não têm pelo, apresentam só duas patas (à frente), à maneira de aletas, e uma cauda achatada que usam como remo. Existem duas famílias na ordem Sirenia: Dugongidae, que inclui os dugongos, animais estritamente marinhos distribuídos pelo oceano Índico, e os Trichechidae, a família dos peixe-bois, animais que habitam zonas de água salgada ou água doce no Oeste de África e no centro e Sul da América. Cetáceos: De forma semelhante aos sirénios, os cetáceos não têm pelo, têm uma camada grossa de gordura debaixo da pele para isolamento, só possuem duas patas (embora os embriões destes animais apresentem as quatro patas, perdendo depois as patas traseiras) e têm a narina (espiráculo) na parte superior da cabeça. Os cetáceos estão divididos em dois grandes grupos: as baleias sem dentes ou baleias com barbas (subordem Mysticeti) têm, em vez de dentes, cerdas feitas de queratina com as quais filtram a água para se alimentarem de plâncton e pequenos invertebrados, e.g. krill. Este grupo inclui os maiores mamíferos que existem na Terra, como a baleia-azul (até 27 m de comprimento), a baleia-comum (25 m) e a baleia-franca (20 m). As baleias com dentes (subordem Odontoceti) incluem animais como os cachalotes, as orcas, os golfinhos e os narvais. À exceção do cachalote (20 m), as espécies deste grupo são muito mais pequenas que as baleias sem dentes e alimentam-se de peixe, lulas e outros cefalópodes, sendo que as orcas também consomem focas, tartarugas e tubarões. No oceano em redor da Madeira, foram registadas 19 espécies de mamíferos marinhos: uma espécie de foca e 18 espécies de cetáceos. A foca-monge-do-mediterrâneo é a única espécie de foca que se encontra no arquipélago, tendo uma população residente nas ilhas Desertas, embora alguns indivíduos sejam avistados na Madeira. As espécies de grandes baleias (baleias com barbas), e.g. a baleia comum, passam nesta região durante as grandes migrações que realizam anualmente. Espécies de baleias com dentes, e.g. cachalote ou golfinhos, usam o oceano da Madeira para se alimentarem, para se reproduzirem ou como área de residência. Algumas das espécies de baleias com dentes (subordem Odontoceti) frequentemente avistadas na Madeira são: o cachalote, a baleia-piloto-tropical, o roaz e o golfinho-comum. Fig. 4 – Fotografia de golfinhos na Madeira. Por P. Puppo.   Os habitats marinhos da Madeira e os organismos que neles habitam A Madeira é uma ilha de origem vulcânica; este tipo de ilhas aparece primeiro debaixo da superfície do mar como um monte que se forma no fundo marinho e depois cresce por atividade vulcânica até emergir (topografia marinha). Assim, quando uma ilha emerge (é visível por cima do nível do mar), está vazia e é colonizada por elementos da flora e fauna de regiões circundantes. No caso dos organismos marinhos da Madeira, estes têm diferentes origens e, na sua maioria, provêm da região atlântico-mediterrânica. Várias espécies do Atlântico colonizaram a Madeira e também o Mediterrâneo, daí que estas regiões tenham organismos semelhantes. Espécies do Norte do Atlântico e espécies provenientes de outras ilhas do Nordeste do Atlântico também colonizaram a Ilha. Afinidades das espécies marinhas da Madeira com outras de regiões mais longínquas também têm sido observadas, e.g. espécies provenientes de regiões tropicais e subtropicais do Atlântico, que atingiram o limite norte da sua distribuição na Madeira, juntamente com espécies do Norte de África, como Marrocos, encontrando-se também, na Madeira, espécies cosmopolitas, que habitam a maioria das regiões marítimas da Terra. A diversidade de espécies marinhas na Madeira também depende das diferentes zonas ou regiões oceânicas, como se verá em seguida. Domínio bentónico: O mar à volta da Madeira é geralmente frio devido às correntes que vêm do Nordeste, atingindo 22 ºC durante o verão. É frio demais para a construção de recifes de corais e, por isso, os corais que existem na Madeira vivem isoladamente (não formam recifes). A diversidade de peixes é grande, cerca de 550 espécies são conhecidas na Madeira, coincidindo a maior parte com as da zona do Mediterrâneo. Algumas espécies são de origem tropical e atingem na Madeira o limite norte da sua distribuição, como, e.g., o peixe-globo Diodon hystrix ou o peixe-trombeta Aulostomus strigosus. Algumas espécies de peixes, e.g. os sargos, são muito comuns nas costas da Madeira, nadando no substrato rochoso e alimentando-se das algas que crescem nele. Zona costeira: Na Madeira, a costa é caracterizada por penhascos abruptos. Estes penhascos, sobretudo os do lado Norte da Ilha, servem de habitat a muitas espécies de aves marinhas que nidificam nestas zonas. Por outro lado, as extensões de areia das outras ilhas, que compõem os arquipélagos da Madeira e Selvagens, também servem como lugares de nidificação para espécies de aves importantes, e.g. o calcamar, que ocorre no ilhéu de Fora e Selvagem Grande, ou o borrelho-de-coleira-interrompida, em Porto Santo. Nas Desertas, a foca-monge-do-mediterrâneo Monachus monachus, a única espécie de foca que vive em águas temperadas, tem nestas ilhas um importante refúgio, já que a espécie se encontra em perigo de extinção. Poças de maré: Estas poças formam-se quando uma depressão na rocha fica inundada com água do mar, durante a maré-baixa. Na Madeira, estas poças de maré constituem o habitat de uma série de espécies de invertebrados: e.g. o camarão Palaemon elegans, os caranguejos Percnon gibbesi e Eriphia verrucosa, estrelas-do-mar, ouriços-do-mar, anémonas, caracóis marinhos, como Monodonta edulis, espécie endémica da Macaronésia, entre outros. Entre as algas comuns nestas zonas, encontramos algas castanhas como Padina pavonica, uma alga em forma de funil, ou espécies do género Cystoseira, algas com lâminas ramificadas que criam uma aparência frondosa. Algumas destas poças de maré podem ser observadas em Porto Moniz e em Seixal. Zona entremarés: A zona entremarés é a zona que fica coberta de água quando a maré é mais alta e que fica a descoberto quando a maré é mais baixa. É uma zona onde a exposição ao ar, à humidade, à luz solar, à temperatura, à salinidade, etc. muda constantemente. Na Madeira, esta zona é frequentemente habitada por algas vermelhas dos géneros Lithophyllum e Corallina. Nesta zona, também são comuns as lapas, moluscos que permanecem fixos no substrato durante o dia e saem à noite para comer as algas que raspam com a sua rádula, sobretudo as espécies do género Patella, e.g. P. candei, que é endémica da Macaronésia. As lapas são muito apreciadas na gastronomia local. Outros organismos abundantes desta zona são os percebes ou cracas, caranguejos, caracóis marinhos (e.g. as litorinas Tectarius striatus (=Littorina striata), espécie endémica da Macaronésia), a barata-do-mar, a Ligia oceanica (espécie de crustáceo da ordem Isopoda), entre outros. Muitas espécies de aves também se encontram nestas zonas, e.g.: a rola-do-mar, a gaivota-de-patas-amarelas, o garajau, o guincho-comum, maçaricos, borrelhos, entre muitas outras. Domínio pelágico: O facto de a Madeira estar tão longe da costa continental faz com que o alto mar seja o sítio ideal para que muitas espécies se alimentem e reproduzam, e.g. cachalotes, golfinhos e também muitas aves pelágicas. Outras espécies, que também se encontram algumas vezes no alto mar da Madeira, são o tubarão branco e muitas outras espécies de tubarões e baleias, e.g. a baleia azul, etc. Uma espécie muito conhecida e apreciada na culinária madeirense é o peixe-espada-preto, Aphanopus carbo, espécie de peixe batipelágica, comum nas profundezas oceânicas, que habita a profundidades entre os 200 e os 1600 m. Conservação das espécies marinhas da Madeira A conservação na Madeira foi sempre levada a sério. Nenhuma árvore, e.g., na Madeira pode ser cortada sem autorização desde 1515. A 10 de novembro de 1982 foi fundado o Parque Natural da Madeira (PNM), pelo dec. regional n.º 14/82/M. O PNM abrange cerca de 67 % da superfície da ilha da Madeira e está subdividido em zonas com diferentes estatutos de proteção. Algumas destas zonas, onde estão protegidas espécies marinhas de interesse, encontram-se descritas em baixo. Reserva da Ponta de São Lourenço: A ponta de São Lourenço é uma pequena península de 9 km de comprimento e 2 km de largura, localizada a leste da ilha da Madeira, e tem um clima muito diferente do resto da Ilha, sendo muito mais seca. Esta região não só tem uma série de espécies de plantas e animais terrestres endémicas, como também é o local de nidificação de muitas espécies importantes de aves pelágicas, e.g. a alma-negra (Bulweria bulwerii), a cagarra (Calonectris borealis), o garajau-comum (Sterna hirundo), ou o roque-de-castro Hydrobates castro. Num dos ilhéus adjacentes a esta região, o ilhéu do Desembarcadouro, encontra-se o local de nidificação de uma das maiores colónias da gaivota-de-patas-amarelas (Larus cachinnans atlantis), espécie endémica da Macaronésia. Na ponta de São Lourenço, também se podem observar cachalotes, golfinhos, focas-monge-do-mediterrâneo e tartarugas marinhas. A ponta de São Lourenço pertence ao PNM desde que este foi criado e, a partir de 2001, esta península, juntamente com o mar adjacente até à batimétrica de 50 m, foram incluídos na Rede Natura 2000 da União Europeia como Zona Especial de Conservação. Os ilhéus do Desembarcadouro e do Farol são Áreas de Proteção Total, sendo que quaisquer atividades humanas, fora da investigação científica, assim como ações de conservação e de educação ambiental, estão proibidas. A península da ponta de São Lourenço é Área de Proteção Parcial, onde qualquer atividade humana deve ser primeiro autorizada, e as zonas de praias e miradouros são Áreas de Proteção Complementar, em que as atividades humanas são permitidas sempre que não ponham em risco o equilíbrio ambiental. A região da ponta de São Lourenço, juntamente com os ilhéus adjacentes, está classificada como Important Bird Area (IBA) pela Birdlife International, em virtude de ser o local de nidificação de várias espécies de aves pelágicas protegidas. Reserva Natural Parcial do Garajau: Esta reserva foi estabelecida em 1986 e compreende uma área aproximada de 3,76 km2, contando com uma extensão de 6 km ao largo da costa sul da Madeira entre a ponta do Lazareto e a ponta da Oliveira, e chegando até os 50 m de profundidade. Esta área é caracterizada pelas suas águas transparentes e a sua rica biodiversidade. Nesta Reserva, está proibida a pesca e recoleção de organismos vivos, assim como chegar à costa num barco a motor; o mergulho é permitido, mas é necessária uma autorização do PNM. Algumas das espécies mais frequentes da zona entremarés da Reserva são: litorinas, líquens, cracas, lapas, caranguejos, algas, esponjas, anémonas, estrelas-do-mar, etc. Nos bentos, o ouriço-de-espinhos-longos, Diadema antillarum, é bastante frequente. No domínio pelágico, ocorrem numerosas espécies de peixes: a garoupa ou mero Epinephelus marginatus, que chega a medir 150 cm, a raia ou manta-diabo Mobula mobular, moreias como Muraena helena, e enguias como Heteroconger longissimus, e outras espécies de peixes, e.g. o sargo, a salema, o bodião, o boga, a dobrada, a tainha, o peixe-verde, a castanheta, etc. Também é possível observar nesta reserva tartarugas-marinhas, golfinhos e focas-monge-do-mediterrâneo. O Miradouro do Pináculo, na parte elevada da reserva, também está incluído na Rede Natura 2000, pois é importante para aves como a cagarra e o garajau. Fig. 5 – Fotografia da ponta de São Lourenço. Por P. Puppo.     Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio: Esta Reserva foi criada em 1997 e estende-se desde a ponta de São Jorge até à ponta de Clérigo, no Norte da Madeira, no concelho de Santana, contando com uma área aproximada de 1700 ha e incluindo a linha batimétrica dos 100 m, o ilhéu da Rocha das Vinhas ou ilhéu de São Jorge, e o ilhéu da Viúva ou ilhéu da Rocha do Navio. Esta Reserva também faz parte da Rede Natura 2000, sobretudo porque constitui uma representação da flora típica do litoral madeirense. Esta Reserva também é um local importante de nidificação para algumas espécies de aves marinhas, e.g. a cagarra, a alma-negra, o garajau-comum, o roque-de-castro e a gaivota-de-patas-amarelas. A diversidade da ictiofauna (peixes) também é considerável, contando, e.g., com espécies como o mero, sargo, peixe-cão, bodião, badejo, peixe-verde, a castanheta, a moreia, entre outros. Nesta Reserva, também se encontram lapas, caramujos, golfinhos, tartarugas-marinhas e focas-monge-do-mediterrâneo. São permitidos, além do mais, o mergulho amador e a pesca, mas não o uso de redes ou de barcos motorizados. Rede de Áreas Marinhas protegidas do Porto Santo: Esta Rede foi criada em 2008 e inclui a ilha de Porto Santo e os seis ilhéus circundantes: ilhéu das Cenouras; ilhéu de Baixo ou da Cal; ilhéu de Cima, dos Dragoeiros ou do Farol; ilhéu de Fora ou Rocha do Nordeste; ilhéu da Fonte da Areia; e o mar circundante aos ilhéus de Cal e de Cima, incluindo a zona onde o barco O Madeirense se afundou, até à linha batimétrica dos 50 m. Os ilhéus estão também incluídos na Rede Natura 2000 e três deles (ilhéu de Cal, de Cima e de Ferro) têm sido designados como IBA, por serem locais de nidificação de aves importantes, e.g. a cagarra, o pintainho, o roque-de-castro e a alma-negra, e outras espécies como a gaivota-de-patas-amarelas e o garajau. O Porto Santo e os ilhéus também são importantes pela quantidade de fósseis que se encontram neles. Os ilhéus de Fora, de Ferro, das Cenouras e da Fonte da Areia são considerados Áreas de Proteção Total, enquanto os ilhéus de Baixo e de Cima, assim como a parte marinha da Rede, são considerados Áreas de Proteção Parcial. Reserva Natural das Ilhas Desertas: As ilhas Desertas estão localizadas a cerca de 20 km da ponta de São Lourenço e têm um clima muito semelhante ao da região da Madeira. Estas ilhas estão desabitadas, possuindo uma estação de vigilância localizada na Deserta Grande, onde vivem guardas do Corpo de Vigilantes da Natureza. As Desertas estão protegidas por lei, desde 1990, como Área de Proteção Especial, sobretudo para proteger a colónia de foca-monge-do-mediterrâneo que nelas se encontra. Em 1992, foram reconhecidas pelo Conselho de Europa como Reserva Biogenética e, em 1995, como Reserva Natural. Estas ilhas integram a Rede Natura 2000 como Zona de Proteção Especial e Zona Especial de Conservação, e também são consideradas como uma IBA. Esta Reserva tem uma área total de cerca de 82,5 km2 e é formada por: Deserta Grande, Bugio, ilhéu Chão, e os ilhéus adjacentes, incluindo o mar até à linha batimétrica dos 100 m. As Desertas são importantes, porque são um dos últimos refúgios no Atlântico, juntamente com a Mauritânia, da foca-monge-do-mediterrâneo. Estas ilhas também são relevantes por serem locais de nidificação de espécies importantes de aves, e.g. a freira-do-bugio, que só nidifica em Bugio, a alma-negra, que forma na Deserta Grande a maior colónia do Atlântico, a gaivota-de-patas-amarelas, que nidifica em Chão, e outras espécies, e.g. a cagarra e o roque-de-castro. Nas Desertas, também se encontram inúmeras espécies de peixes, e.g. tainha, boga, castanhetas, sargo, bodião, garoupa, peixe-cão, cavaco, peixe-verde, e várias espécies de tartarugas-marinhas e cetáceos. As ilhas e os ilhéus, juntamente com o mar adjacente a elas até aos 100 m de profundidade, estão classificados como Áreas de Proteção Total. A zona marinha circundante é considerada como Área de Proteção Parcial. Reserva Natural das Ilhas Selvagens: As ilhas Selvagens são um conjunto de ilhas inabitadas, sobretudo pela carência de água doce, e, embora estejam localizadas a cerca de 250 km da Madeira, pertencem politicamente a esta região autónoma. As Selvagens são formadas por: Selvagem Grande, Selvagem Pequena, ilhéu de Fora, e outros ilhéus adjacentes. A Reserva inclui estas ilhas e ilhéus e todo o mar circundante até uma profundidade de 200 m, tendo uma área total de cerca de 94,5 km2. Estas ilhas estão legalmente protegidas desde 1971, ano em que foram compradas pelo Governo português a um particular, constituindo-se na primeira reserva de Portugal. Esta zona foi protegida, sobretudo, pela diminuição na população de cagarras, após terem sido durante anos exploradas pela sua penugem e a sua carne ter sido salgada e vendida como petisco nos mercados madeirenses. Esta Reserva começou a ter uma vigilância permanente desde 1976 e, a partir de 1991, passou a ser da responsabilidade do PNM. Em 1992, recebeu o Diploma do Conselho Europeu para Áreas Protegidas e, em 2001, integrou a Rede Natura 2000 como Zona Especial de Conservação e Zona de Proteção Especial, sendo também considerada uma IBA. Esta Reserva foi criada, sobretudo, para a proteção das aves marinhas que nidificam nestas ilhas: a cagarra, que tem a população mais densa do mundo nesta área, o calcamar, a ave mais abundante nas ilhas, o pintainho, o roque-de-crasto e a alma-negra. No total, estima-se que, nas Selvagens, haja perto de 39.000 pares reprodutores de aves marinhas, o que, no seu conjunto, é um número superior ao que ocorre na Madeira, Porto Santo e Desertas em conjunto (dados publicados por Peter Sziemer em 2010). O mar adjacente às Selvagens é de águas transparentes e possui uma variada biodiversidade: gastrópodes como os caramujos, lapas, cracas e litorinas são abundantes nas zonas rochosas, assim como as esponjas, anémonas, ouriços-de-espinhos-compridos e estrelas-do-mar. A ictiofauna é também muito variada: sargo, tainha, castanheta, boga, bodião, garoupa, peixe-verde, peixe-cão, tartarugas-marinhas, e espécies de cetáceos, entre outras, podem ser observados nestas águas. Toda a Reserva é Área de Proteção Total, sendo as visitas permitidas, com prévia autorização do PNM.   Pamela Puppo (atualizado a 24.01.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

aquário municipal do funchal

  O Aquário Municipal do Funchal encontra-se localizado no rés do chão do Palácio de São Pedro, uma das mais significativas obras da arquitetura civil portuguesa, de meados do séc. XVIII, mandado construir pela família Carvalhal e adquirido pela Câmara Municipal do Funchal a 19 de setembro de 1929, quando se deu início às obras de reformulação do Palácio com o propósito de aí se instalar um museu. Inicialmente designado Museu Regional da Madeira, este foi oficialmente inaugurado a 5 de outubro de 1933, e mais tarde deu origem ao Museu de História Natural do Funchal. A primeira vez que se falou na criação de um aquário público no arquipélago da Madeira foi em 1937, através de uma deliberação do município do Funchal, ficando esta sem efeito até 1951. Foi devido em grande parte a Charles L. Rolland, industrial norte-americano de bordados na Madeira e grande admirador da fauna ictiológica da ilha, que em 1951 a sua construção teve lugar. Este filantropo ofereceu à Câmara Municipal do Funchal 30.000 escudos (cerca de 150€) e o material necessário para que as obras tivessem o seu início. Sob a orientação, técnica e científica, de Günther Maul, conservador do Museu, inaugurou-se a primeira fase do Aquário, em dezembro de 1953, com três grandes tanques, sendo parte do material necessário para a construção do Aquário obtida graças à generosidade de vários entusiastas, de entre os quais se destacou o importador E. Brendle. Na segunda fase, concluída em 1957, o Aquário passou a ter 15 tanques de exposição de diversos tamanhos, nos quais passaram a estar representados alguns dos mais importantes elementos da fauna marinha costeira da Madeira, tais como meros, moreias, sargos, castanhetas, cabozes, caranguejos, lagostas, camarões, polvos, búzios, estrelas, ouriços do mar, etc. A captura de organismos para serem colocados nos tanques de exposição deveu-se à generosidade e dedicação de um grupo de pescadores amadores, Américo Durão, A. Correia da Silva, David Teixeira e João de Freitas, entre outros. A renovação regular dos exemplares vivos em exposição nos tanques é assegurada essencialmente através de dois métodos de captura, dependendo do tipo de organismo: alguns invertebrados marinhos são colhidos, à mão, nas poças de maré (zona do intertidal) ou no subtidal, através de mergulho com escafandro autónomo ou de mergulho em apneia; quanto à maioria das espécies piscícolas, bem como de outros invertebrados, a captura é feita recorrendo a diferentes tipos de artes de pesca, sendo muitas vezes necessária a utilização de uma embarcação para o lançamento e a recolha dos respetivos aparelhos de pesca. Durante muitos anos o Aquário dispôs de uma pequena embarcação de apoio, a Ianthina, para a captura de espécimes; através desta eram utilizados essencialmente dois métodos tradicionais de pesca: pesca à linha e covos. Posteriormente, deixou de ser utilizada qualquer embarcação de apoio, o que condicionou muito não só a própria renovação dos exemplares do Aquário, como a diversidade de espécies. O sistema de circulação de água do mar existente funciona em circuito fechado, tendo um volume total de cerca de 200.000 l, que estão distribuídos pelos tanques de reserva (cerca de 150.000 l) e pelos tanques de exibição (cerca de 50.000 l). A qualidade da água do mar é mantida não só através de sistemas de filtração de natureza biológica e mecânica, como também de um sistema de arejamento, pelo qual é introduzido ar em cada um dos tanques de exposição. A água do circuito é renovada uma vez por ano, sendo colhida diretamente no mar e transportada em autotanque para o Aquário. Toda a iluminação nos tanques é de natureza artificial; são utilizadas as lâmpadas mais adequadas para que as cores dos organismos expostos se aproximem o mais possível das que podem ser observadas quando estes se encontram no seu meio natural. A alimentação dos organismos é baseada essencialmente em cavalas, chicharros e espada preto, adquirido na praça e administrado três vezes por semana. Aquando da existência da embarcação Ianthina, para além das espécies anteriormente referidas, era adicionado à dieta dos espécimes do Aquário um crustáceo, conhecido vulgarmente como camarão comestível (Plesionika narval), que era capturado através da utilização de covos apropriados, sendo depois armazenado em arcas congeladoras e administrado de acordo com as necessidades e as características alimentares das espécies existentes. A manutenção diária do Aquário Municipal do Funchal é realizada por uma equipa técnica constituída por três funcionários com formação adequada às exigências de uma estrutura desta natureza: um técnico superior (biólogo) e dois assistentes técnicos. O Aquário Municipal do Funchal é uma das principais atrações da visita ao Museu de História Natural do Funchal, recebendo em média cerca de 11.000 visitantes por ano, 3500 dos quais são alunos provenientes dos vários níveis de escolaridade do ensino básico e secundário da Região Autónoma da Madeira.   Ricardo Araújo (atualizado a  23.01.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

cardoso, gabriel

Gabriel Faustino de Abreu Cardoso é o nome de um cantor português de música ligeira nascido em Arco de São Jorge a 15 de março de 1943. Era filho do maestro e fundador da banda da freguesia do Arco de S. Jorge e irmão de Cecília Cardoso, também cantora conhecida com vários discos gravados. Gabriel Cardoso integrou, com outros estudantes, o movimento estudantil musical gerado pela “febre dos Beatles” na déc. de 60 do século XX. Cumpriu o serviço militar em Angola, para o que teve de interromper os estudos em Direito. De regresso à pátria, estreia-se nos Açores, no Teatro Micaelense, de Ponta Delgada. Em janeiro de 1967 foi lançado num programa da RTP, “Lugar aos Novos”, produzido pelo Maestro Melo Pereira. No mesmo ano, lançou o EP Como Um Calhau Rolado. Foi convidado a integrar o elenco da peça de teatro de revista intitulada Pois, Pois..., que estreou no Teatro Variedades, ao Parque Mayer, em Lisboa, a 9 de dezembro de 1967. Participou como convidado no programa de entretenimento Riso e Ritmo, da RTP. Em 1970, venceu o título de Rei da Rádio, atribuído pela Rádio Antena 1. Na déc. de 1980, foi diretor artístico da discoteca Monte Carlo, mais tarde denominada Loucuras. De Carlos Paião gravou os temas “Tímido” e “Engarrafamento”. Com produção de Toy, gravou “Viver a Cantar 25 Anos”. Entre os seus maiores sucessos, merece especial destaque “Festival do Amor”, “Ericeira” e “Venham Amigos”. Participou em diversos festivais de música, programas de televisão e digressões, tanto em Portugal como no estrangeiro, designadamente nos Estados Unidos e no Canadá, em espetáculos junto das comunidades portuguesas. Morreu em Lisboa, a 8 de fevereiro de 2000. Discog.: Canto Estes Dias Felizes, Limão; Cigano, Vão As Nuvens Vem o Sol; Como Um Calhau Rolado (1967); De Dia Para Dia, É Inútil, Quem Manda Neste Mundo É O Dinheiro, Poema A Meu Irmão; Emigrante, Miragem; Ericeira, Custa a Crer; Estrada Minha Verdade (1971); Eu Já Não Creio; Festival Do Amor, Ao Meu Amor (1970); Moreninha; Oh Meu Amor, Engarrafamento (1982); Tímido, Aleluia Para o Sonho (1985); Tu Sabes, Um Certo Outono; Vamos Sorrir e Cantar, Amiga Dê Tempo Ao Tempo; Viver a Cantar 25 Anos, Sonho Por Sonho.   Teresa Norton Dias (atualizado a 20.12.2016)

Artes e Design Sociedade e Comunicação Social

tetos de alfarge

Os tetos de alfarge ou de laçaria existentes na RAM constituem uma incontornável persistência do que terá sido uma rara e inovadora expressão artística de âmbito arquitetónico com forte componente estrutural experimentada em Portugal. O seu tempo áureo estará de forma muito particular ligado ao curto reinado de D. Manuel I (1496-1521), e a sua permanência enquanto processo construtivo terá superado as questões de estilo, ditado pelo gosto particular deste rei, resistindo inclusivamente ao seu desvanecimento e readaptando-se sem perder a sua identidade tecnológica. Importará, contudo, reter de forma breve os antecedentes que consubstanciaram este ciclo artístico. Desde logo o surgimento, difusão e persistência da cultura islâmica em Portugal continental. No último quartel do séc. XX, esta foi divulgada e contextualizada através do contributo científico da arqueologia, da antropologia e da história, entre outras disciplinas. A sua ligação aos califados da Andaluzia inscreve-a numa faixa territorial do Sul da Península em estreita ligação com o Norte de África e o Médio Oriente, em termos de ancestrais ligações culturais e religiosas, pelo que se perceciona uma vasta unidade sociocultural cujas naturais diferenças são articuladas por fatores de comunicação. Seria com estes territórios que as Ilhas Atlânticas, em particular a Ilha da Madeira, viriam a estabelecer, a partir do séc. XV, uma estreita relação comercial, política e cultural, na senda das ancestrais navegações que ousaram vencer as colunas de Hércules e prospetar as costas Norte e Sul do vasto Atlântico. O início do séc. XV inicia-se praticamente com a conquista cristã de algumas praças do Norte de África por parte dos portugueses, configurando-se uma nova realidade geoestratégica. Neste contexto, as descobertas da Ilha da Madeira e, de seguida, do arquipélago dos Açores favoreceram a construção de uma ideia de expansão, surgindo novos centros geográficos readaptados a entrepostos estratégicos. Os estreitos contactos com a cultura islâmica são, a partir de então, uma realidade incontornável, tanto em tempo de paz como de guerra, e mesmo quando em pleno reinado de D. João III (1522-1578) se percebe a impossibilidade de permanência em tantas praças africanas as trocas culturais já se terão consolidado de forma estruturada. O investigador Rui Carita, que dedicou especial atenção aos tetos mudéjares da Madeira, refere três potenciais razões para o facto de existir um tão forte e coeso núcleo destes tetos na ilha. A primeira relaciona-se com os contactos que teriam tido lugar no espaço continental até à fundação da nacionalidade, com presença de árabes e moçárabes, ou seja, cristãos submetidos à lei islâmica. A segunda liga-se à conquista de pontos estratégicos no Norte de África nos inícios do séc. XV, cuja cultura elegante e refinada observada nos palácios e casas nobres teria encantado alguns portugueses. A terceira relaciona-se com a subida ao trono de D. Manuel I, duque de Beja, que praticamente impôs o desenvolvimento e intensificação deste tipo de gosto de tradição islâmica a todo o país. Existem registos da admiração dos portugueses aquando da sua entrada nas residências de Ceuta, descrevendo Gomes Eanes de Azurara, cronista-mor, a perplexidade dos portugueses perante as “grandes casas ladrilhadas com tijolos vidrados de desvairadas cores, e os tetos forrados de olival, com formosas açoteias cercadas de mármores muito alvos e polidos”. Acrescenta o cronista: “nós outros mesquinhos, que não temos outro repouso senão pobres casas que, em comparação destas, querem parecer choças de porcos.” (CARITA e CARDOSO, 1983, 23). O Arqt. Hélder Carita, na sua análise espaciotemporal de enquadramento da arquitetura portuguesa a propósito da Casa dos Bicos, sublinha a importância que os tetos de alfarge, conjuntamente com os azulejos, terão tido na distinção desta arquitetura quinhentista. Acompanhamos esta análise e interrogamo-nos se nesse período histórico de renovação e reabilitação da “arte” islâmica, agora numa prerrogativa mudéjar, não existiriam ainda vestígios significativos do palácio árabe, bem como de casas contíguas das famílias dominantes que terão sido apropriadas pela nova aristocracia católica sem procederem necessariamente ao seu desmonte. Coloca-se, assim, a questão de como terão sido esses interiores e, sobretudo, como terão enobrecido em função do enriquecimento dos seus proprietários. O processo acumulativo e/ou de ocultação é tradicionalmente uma constante, ao invés da demolição e integral substituição, pelo que consideramos a possibilidade de muitos dos tetos de alfarge terem permanecido até ao terramoto. Até 2015, não se conheciam testemunhos escritos sobre a existência desses tetos anteriores ou posteriores ao terramoto de 1755 e a outras calamidades. Apenas se conhecia a crónica de Fernão Silva, que terá contado com o testemunho do cruzado Osberno, na conquista de Lisboa: “Lanço estas regras ao papel já sob o teto mourisco de uma casa que pertenceu porventura a algum príncipe Sarraceno, ou onde um dia se albergou, recoberta de lhamas doiradas, a filha de qualquer capitão da Kssaba, ninho alto de pedras luminosas, esta hoje alcáçova cristã, onde, desde há horas, canta o imaginário Truão de Guimarães.” (ARAÚJO, 1993, 45). As identidades culturais ter-se-ão desenvolvido e apurado na continuidade de ciclos económicos estáveis, incorporando subtis inovações e mesmo eventuais ruturas que não apagaram necessariamente as anteriores, que persistiram em lentas transformações/adaptações. Os tetos de Alfarge, apesar da rutura cultural que aparentemente terão introduzido nos finais do séc. XV, terão reencontrado em Portugal um novo ciclo após a morte de D. Manuel I, precisamente o de simplificação resultante de um eficaz processo tecnológico a que estão associados. Tal facto será resultado de um certo contraciclo cultural imposto por D. João III, no qual a exuberância dá lugar a uma grande contenção formal, retirando do espaço arquitetónico o esplendor luminoso da arte manuelina e, por inerência, as referências luxuriantes de pendor islâmico/oriental. A historiografia, de um modo geral, não terá aprofundado a forma como a cultura andaluza terá sido influente e integrada na arquitetura portuguesa, talvez por nunca a ter considerado suficientemente relevante para a sua formação, filiando-a apenas na superficialidade decorativa e não na configuração arquitetónica, em particular na identidade espácio-funcional, de que destacamos a arquitetura civil, tanto no continente como nas regiões autónomas da Madeira e Açores. Para melhor nos enquadrarmos neste específico tema, importará desde logo registar o que determina o termo “alfarge”. A sua definição difere significativamente entre Portugal e Espanha. No país vizinho, é praticamente consensual para os investigadores que a palavra se reporta a um teto plano de onde se destacam as vigas transversais planas, por vezes com incisões ou arestas sutadas, sob as quais pousa o tabuado. Entre essas vigas é comum observar-se uma decoração designada de laço. Al-farx, em árabe, significará “cobrir com ornato”. Em Portugal, terá sido Joaquim de Vasconcelos, no Guia de Portugal (1983), quem identificou e caracterizou esses tetos hispano-mouriscos, designando o alfarge numa perspetiva mais abrangente ao associá-lo a outras formas artísticas ditas de alfarge. Contudo, o mais corrente na época era referir-se esses tetos como hispano-mouriscos, de laço ou carpintaria de laçaria em aproximação à designação espanhola. Segundo Joaquim de Vasconcelos o “lavor do alfarge ou almoçarabe domina em Portugal em toda a arte decorativa no interior das habitações, desde a conquista árabe até ao primeiro terço do século XVIII” (VASCONCELOS, 1983, 38). Raul Proença, referindo-se a este autor, propôs: “que se nacionalize o termo técnico sob a expressão laço (em árabe, diz ele, ajaraca), laçaria, lavor alicutado. A etimologia que se dava à palavra alfarge (...) era al-farash, que alguns traduziam por assoalhado” (PROENÇA, 1983, 38-39). Pedro Dias, na sua obra Arquitetura Mudéjar Portuguesa: Tentativa de Sistematização, incorpora de forma inovadora o mudejarismo na historiografia nacional. A contextualização das diferentes expressões artísticas no ambiente arquitetónico são agora parte integrante do processo e não simples revestimento ou adorno. No caso dos tetos, este autor, tal como Rui Carita, procura salientar a sua relevância na fábrica da arquitetura, revelando inclusivamente o importante carpinteiro da obra-mestra dos Paços de Sintra: “O carpinteiro João Cordeiro era ‘...mestre das ditas obras dos paços nos ditos Serviços e em fazer rosas para a Capela e Estrelas e Rezimbros para a dita Capela.’". Prossegue o autor com uma nota da maior relevância por ter data: "um documento mais antigo, datado de 1450, referente a um crime cometido em Évora por um jovem, alude a que este era bom carpinteiro ‘... de obra de laço e coisas subtis de carpintaria...’, o que a nosso ver, é uma alusão aos tetos mudéjares” (DIAS, 1994, 55). Esta datação revelará sobretudo uma prática conhecida e em uso no período do reinado de D. Manuel I, época em que esta arte atingiu o seu maior esplendor. Dos diversos núcleos que este autor reporta, apoiando-se no trabalho da historiadora Luísa Clode e especialmente na incisiva investigação de Rui Carita, destacamos o Mudéjar Madeirense. Rui Carita procurou identificar os tetos madeirenses numa perspetiva integradora da história da arte no contexto alargado, ou seja, para além do fenómeno regional. Neste sentido, considera que "teremos de filiar o conjunto de tetos mudéjares da Madeira no conjunto geral de trabalhos provenientes da área e dos artifícios de Sevilha, como foi entre nós o caso das importações de azulejos para a Sé, Santa Clara, Santa Cruz”. Dada a qualidade impar dos tetos da Sé, “efetivamente bastante acima de todos os outros exemplares, ainda se poderá avançar com a hipótese de se ter deslocado ao Funchal uma equipa específica para esse trabalho, em princípio, a mando de D. Manuel I e que localmente terá formado e divulgado este tipo de gosto" (CARITA, 1989, 180). Esta possibilidade não só nos parece verosímil como terá pelo menos potenciado o interesse por parte do corpo eclesiástico e da elite local em aceder a tão elaborada e nobre arte. De outro modo, como explicar a profusão destes tetos em igrejas, capelas e casas nobres madeirenses? Também o arquipélago dos Açores acolhe um importante núcleo de tetos de alfarge, muito embora os sucessivos terramotos e tremores de terra tenham destruído a sua grande parte. Importa contudo salientar que consideramos a possibilidade de nos Açores se ter edificado, no período filipino, um segundo ciclo de tetos de Alfarge, reconstruções e construção de novos por via da instalação de famílias castelhanas associadas ao tráfego comercial com a América Latina, situação que terá tido menor importância na Madeira. Do mesmo modo que se dá conta da existência de tetos de alfarge no Continente, anteriores ao período Manuelino, também nos parece plausível ter sucedido o mesmo na Madeira, com a particularidade de se ter estabelecido um roteiro marítimo estratégico com as Praças Africanas. São diversos os testemunhos que dão conta de se terem transportado dessas Praças diversos elementos estruturais e artísticos para Portugal, mas também para a Madeira, e, se os homens da elite portuguesa se deixaram deslumbrar pelo requinte e conforto dos cómodos da aristocracia muçulmana, de que se destacariam os tetos pela sua exuberância e influência nas espacialidades, com alguma probabilidade os mestres e artesãos que trabalharam nesses lugares terão percecionado e, quiçá, aprendido essas técnicas e efeitos artísticos, independentemente da sua condição sociorreligiosa. Cidades como o Funchal e Angra do Heroísmo, entre outras, terão recorrido a técnicos de elevada qualidade e experiência, a título individual ou integrados em contratos integrais de empreitadas de obras reais, da Igreja ou mesmo privadas, da aristocracia local, originando porventura uma continuada prática iniciada no séc. XV. Tais técnicos provavelmente terão origem na Andaluzia, nas Praças Africanas ou nas Ilhas Canárias, e terão sido os primeiros mestres de carpinteiros portugueses da carpintaria de laçaria. O forte núcleo de tetos de alfarge existentes na Madeira, bem como a sua qualidade, sugere que esta arte terá sido muito apreciada durante um largo período de tempo, mesmo depois de, no Continente, já se ter iniciado outro ciclo estético de tetos, o terá permitido a fixação de um número considerável de artífices e respetivos aprendizes. A Sé e a Alfandega distinguem-se precisamente pela magnificência dos tetos de alfarge, com especial relevância para a primeira, de que se destaca o excelente programa pictórico que cobre pranchas de forro, bem como traves, frisos e tirantes. Também no teto do coro alto do Convento de Santa Clara podemos observar uma elaborada pintura, reforçando a tese de que a Madeira terá tido um ciclo de grande erudição na construção de tetos de alfarge. Admitimos que as principais igrejas matrizes construídas ou renovadas neste período terão integrado estes tetos, que seguramente terão procurado distinguir-se entre si, ainda que mantendo a base canónica, principalmente por via da pintura e dos motivos geométricos da carpintaria, alguns notáveis. São exemplos as matrizes da Ponta do Sol, da Calheta e do Loreto. Ter-se-ão perdido o de Santa Cruz e o de Machico, como provavelmente os de outras igrejas desta época. Esta realidade será em tudo semelhante à identidade das capelas públicas e privadas, bem como das que terão sido instituídas por famílias da aristocracia nas comunidades de sua influência, integradas nos solares ou isoladas nas propriedades dos morgados. O seu isolamento e as partilhas conflituosas terão dificultado a sua manutenção, sobretudo a do património integrado e dos tetos de alfarge. As Capelas que mantiveram o teto de alfarge resumem-se à dos Reis Magos, na Calheta, à Capela da Glória, no Campanário, e à de São Paulo, na rua da Carreira, no Funchal. Esta última terá sido mandada construir pelo 1.º capitão donatário em 1426, em madeira, sendo apenas alterada para pedra e cal algumas décadas depois. Este teto de alfarge denota um certo “arcaísmo”, ou seja, a sua expressão revela um inusitado “experimentalismo”, quiçá por via de uma deficiente interpretação das formas, medidas e proporções canónicas. Admitimos estar na presença de um teto executado por uma “interpretação de memória” de alguém com uma prática e um saber insuficientes face ao que esta arte exige, provavelmente um aprendiz. Presumimos que terão existido outras capelas com tetos de alfarge, alguns tardios, que terão introduzido a sua “simplificação”, tal como, em idêntico período e processo, terá ocorrido com a arquitetura tradicional solarenga, de que a capela constituía uma parte indissociável. As denominadas casas de Quinta da tradição madeirense (que antecederam o período da renovação introduzido pelos ingleses no séc. XVIII) constituíram, durante séculos, a expressão da erudição da arquitetura solarenga na região. Salões, câmaras e capelas incorporavam, provavelmente, tetos de linhagem na arte do alfarge. Os pequenos mirantes, nalguns casos, refletiam também a memória do alfarge, como é o caso particular do teto do mirante e da casa de Dona Guiomar, posterior Quinta da Vigia, que foi remontado em 1770, embora já figurasse na planta de Mateus Fernandes de 1567/70. Cidades e Vilas exibiam Capelas como a de São Luís de França, na rua do Bispo no Funchal, e a Capela da Glória, no Campanário (Ribeira Brava), com localizações distintas: uma urbana, de identidade erudita, e outra rural, isolada. Em ambas, podemos observar a “memória” do alfarge na armação simplificada, despojadas de ornamentos geométricos ou de pinturas. Contudo, podemos observar, no caso de São Luís, as incisões do graminho nas traves, bem como a meia-cana no tabuado e sobretudo a passagem do ângulo dos planos inclinados com o “espaço de espera”, de transição, para o plano central. A Capela da Glória será o paradigma de tetos simplificados nesta tipologia, tal como o Solar Welsh (1685) em relação à arquitetura tradicional solarenga. Este pequeno teto apresenta uma armação simplificada, mantendo contudo a proporção dada pelo ângulo dos planos inclinados e, naturalmente, pela transição para o plano central, direito. Curiosamente, e apesar da sua reduzida dimensão, integra cantoneiras com apoios em tudo semelhantes aos que observamos na Ilha do Pico, nos Açores, especialmente o da Casa do Ouvidor, na estrada da Ribeira Seca, em São Roque. Esta “simplificação” dos tetos de alfarge em espaços religiosos surge também em algumas sacristias e/ou espaços de apoio e transição, como será o caso da sacristia do Convento de Santa Clara no Funchal, entre outras de ambos os arquipélagos. Nos Açores, registámos, em diferentes Ilhas, tetos de alfarge implantados em distintos programas tipológicos e em diferentes estados de originalidade e conservação. Contudo, os sucessivos terramotos, de que se destacam o de 1614 e o de 1 de janeiro de 1980, para nomear os mais aparentemente devastadores, terão contribuído para o seu quase total desaparecimento. Este último terá inclusivamente destruído um conjunto de tetos de alfarge que ainda persistiam, apesar de muito alterados, localizados nos grandes edifícios religiosos, como os da Sé de Angra e também dos principais edifícios governamentais, de que é exemplo o Palácio dos Capitães Generais, igualmente em Angra. Mas também conventos e outros edifícios de menor porte, de que destacamos solares, capelas e igrejas paroquiais, tiveram o mesmo infortúnio. Porém, permanecem ainda “memórias” em vários edifícios do núcleo histórico de Angra, destacando-se também um significativo número de tetos de alfarge de média e grande qualidade integrados em alguns dos principais solares da aristocracia terceirense. Destacamos, na Ilha Terceira e na cidade de Angra, as casas das famílias Reis Leite, Pamplona do Couto, Anes do Canto e Cortes Reais, bem como a casa urbana de D. Violante do Canto, posterior Sport Clube, que, com o sismo de 1980, viu o seu último piso derrocar, perdendo-se o teto que teria sido de alfarge, embora o Museu de Angra tivesse recolhido dois escudos de armas de famílias provavelmente com ligações espanholas. Para além destas casas nobres, assinalamos os tetos das casas onde se veio a situar a delegação de turismo. Fora de Angra, registamos o notável teto no solar conhecido como Quinta do Carvão no Caminho de Baixo, datado de 1634, os tetos de pequena dimensão da Quinta da Estrela ou os de quintas dispersas, como a de Santo António e do Espanhol, cuja tipologia de casa quadrada se distingue por ser única. Na Ilha Graciosa, em Santa Cruz, registamos a casa da família Brum do Canto, que, durante as obras de reabilitação, ao se derrubarem os tetos de estuque dos princípios do séc. XX, deixou expostos seis tetos de alfarge praticamente intactos que corresponderão ao modelo generalizado de tetos de alfarge simplificados que se terão vulgarizado nas casas solarengas dos Açores e da Madeira. No piso térreo, no átrio de entrada, o teto é de alfarge de “estrado”, apresentando os barrotes estruturais um conjunto de linhas incisivas e formando uma composição geométrica. Os guarda-pós laterais, ligeiramente inclinados, as meias-canas, que cobrem as juntas do forro, e um friso esculpido no perímetro da parede reforçam o desenho de alfarge. Dos três arquipélagos, serão as Canárias o núcleo mais dominante em termos de tetos de alfarge, quer pela quantidade, quer sobretudo pela diversidade de tipos e execução excecional. A sua forte ligação à Andaluzia através do porto de Sevilha terá sido determinante para o seu surgimento e implementação, pois terá sido de lá que partiu o maior número de arquitetos, mestres e artistas, havendo ainda, porém, a assinalar uma forte ligação à cultura portuguesa e, em particular, à muito apreciada classe profissional dos carpinteiros, nos primórdios do povoamento. Desde praticamente a ocupação das ilhas Canárias que aí se fixaram portugueses, provavelmente os seus primeiros “ocupantes”, para além da misteriosa população local conhecida por Guanches. Já sob domínio castelhano por força do Tratado de Tordesilhas, estes terão continuado a afluir, sendo as profissões de canteiros e carpinteiros as predominantes. Deste facto nos dá conta Maria del Carmen Fraga González em La Arquitetura Mudéjar en Canárias, onde identifica pelo nome e assinala a proveniência e a data da estadia destes profissionais através do respetivo registo notarial. Destacamos, entre um número considerável: “Alvaro Fernández. – Portugués, ‘estante’ en la isla de Tenerife, en 1508 cede, el 17 de octubre de 1508, a su compañero, también lusitano, Diego Alvarez la parte que le corresponde de trabajo y cobro en las casas de Guillén Castellano, en La Laguna [Álvaro Fernández. – Português, ‘fixado’ na ilha de Tenerife, em 1508 cede, a 17 de outubro de 1508, a seu companheiro, também lusitano, Diego Alvarez a parte que lhe corresponde de trabalho e ganho nas casas de Guillén Castellano, em La Laguna]” (FRAGA GONZÁLEZ, 1980, 46). Curiosamente, alguns traços da cultura arquitetónica portuguesa ter-se-ão enraizado neste arquipélago, como deste terão partido para os Açores e a Madeira, fenómeno perfeitamente natural num circuito regional de “torna-viagem” e, consequentemente, “torna-cultura” entre arquipélagos que iam adquirindo especificidades. Maria del Carmen González ilustra estas influências no livro citado, reforçando que existe um tipo de casas nas Canárias que caracteriza como “viviendas urbanas de influência portuguesa”, que “abundaban en Santa Cruz de la Palma en la segunda mitad del siglo XVI [habitações urbanas de influência portuguesa que abundavam em Santa Cruz de la Palma na segunda metade do séc. XVI]” (Id., Ibid., 71). Esta autora refere ainda outras influências dos portugueses, dando o exemplo da construção da porta da antiga sacristia da Paroquial del Realejo Bajo (Tenerife) executada pelos portugueses Duarte Báez e seu filho Simón Gómez, e continua reportando-se a Pérez Embib, que, no seu livro El Mudejarismo en la Arquitetura Portuguesa de la Época Manuelina, assegura: “conjuntos onubense y canário seria la influencia del morisco lusitano, que halla cumplida representación, en este sentido, en la Torre del Castillo de Alvito, la Quinta ‘Sempre Noiva’ en Arraiolos, etc. [conjuntos onubense e canário seria influência do mourisco lusitano, que encontra representação definitiva, neste sentido, na Torre do Castelo de Alvito, na Quinta ‘Sempre Noiva’ de Arraiolos, etc.]” (Id., Ibid., 75). Fica-nos como reflexão que artistas, artífices e arquitetos transitavam entre países, bem como entre novas realidades geográficas que se iniciaram nos arquipélagos atlânticos, para continuarem por outras e longínquas paragens, com especial relevo para o mundo ibero-americano, onde se destacam o Brasil, Cuba, o México, a Colômbia, o Peru, a Bolívia e o Equador. Esta realidade vem sobretudo reforçar a tese de que a arte mudéjar é um fenómeno hispânico. Para Enrique Nuere Matauco, dever-se-ão investigar estas ligações: “El estudo de nuestra carpentería debería extenderse a todo lo realizado en América, fundamentalmente por carpinteros salidos de España. También será muy interesante estudar la carpintaría portuguesa, con sus similitudes y discrepancias [O estudo da nossa carpintaria deveria alargar-se a tudo o que foi feito na América, essencialmente por carpinteiros idos de Espanha. Também será muito interessante estudar a carpintaria portuguesa, com as suas semelhanças e discrepâncias]” (NUERE MATAUCO, 2000, 18). O caminho que Portugal traçou no Brasil, em África ou no Oriente não terá, pois, despertado o mesmo interesse que nos territórios hispânicos no que respeita aos tetos de alfarge, mantendo-se, no entanto, em algumas vilas e cidades, parte desta gramática mudéjar associada às carpintarias que atrás reportámos. Como já referimos, a maioria dos tetos de alfarge que identificámos em território português integra-se numa armação simples, abatida à “maneira portuguesa”, provocando um abatimento do ângulo de inclinação e baixando a zona central denominada, em Espanha, almizate (“plano sob as tesouras”). Supomos que esta realidade esteja associada a uma certa simplificação do alfarge em Portugal. Em Espanha, o ângulo de elevação da cobertura parece-nos maior, empinando um pouco mais a respetiva cobertura, em virtude do ângulo estabelecido pelos pares, como se pode verificar no exemplo da Igreja do Convento de São Francisco, em Ayamonte. Estes tetos seguem a tratadística da carpintaria de alfarge espanhola. Em Portugal, o alfarge corrente, associado à casa, parece ter sido assimilado pela proporção dos telhados abatidos portugueses, não se distinguindo de forma evidente dos de origem hispânica. No entanto, importa registar que alguns tetos, nomeadamente de alguns palácios e igrejas portugueses, aparentemente terão seguido regras distintas, aproximando-se de outros de possíveis origens filiadas nas coberturas quase verticais góticas, como as coberturas múltiplas das grandes mesquitas peninsulares ou, ainda, como as coberturas dos palácios compactos, com pátio-claustro, da Andaluzia. Serão casos específicos com essa linhagem os Paços Reais de Coimbra e Sintra e das grandes naves da Sé do Funchal e das Matrizes de Caminha, Ponta do Sol e Calheta, entre outros. De um modo geral, no caso dos solares e pequenos templos, os tetos de alfarge em Portugal, incluindo os da Ilha da Madeira e dos Açores, estarão relacionados com a métrica dos telhados abatidos. Naturalmente que a complexidade de um teto de alfarge, ou de um teto de um telhado de tesouro(a), nada terá de semelhante a uma armação comum. Contudo, se nos abstrairmos da complexidade do alfarge, sobretudo das figuras geométricas decorativas localizadas no núcleo central horizontal (almizate), constatamos que se suprimiram as peças de transição nos quatro ângulos e de descarga para o frechal, razão principal para confirmarmos a simplificação do sistema. Consideramos que estas armações se inscrevem na genealogia da arquitetura tradicional mudéjar portuguesa e que terão na sua filiação múltiplos “contágios” resultantes da continuidade de diversas práticas construtivas de armações comuns. Por vezes, o que verificamos é a separação da armação do telhado, enquanto suporte de telha da armação do teto de alfarge, embora nalguns casos, e inclusivamente no plano geométrico, sejam quase coincidentes, como podemos observar no Palácio de Valeflores, em Santa Iria da Azóia, onde as varas são toscas e o varedo sem forro suporta a telha-vã, enquanto a armação de alfarge apresenta o rigor do cânone tanto nas secções e acabamentos como nas assemblagens dos motivos geométricos. Podemos observar uma situação semelhante na ilha da Madeira, em construções torreadas como a armação do Solar dos Reis Magos, ou Casa do Agrela, no Caniço, ou a armação quadrangular do teto da pequena Capela do Claustro do Convento de Santa Clara, no Funchal. Numa seleção de exemplos mais eruditos, em termos de tetos de alfarge, anotamos também os mais simples, nos quais a armação do teto e do telhado é coincidente, como o da Capela dos Reis Magos, no Estreito da Calheta, o do Salão Nobre da Misericórdia de Santa Cruz ou ainda o da Capela da Glória no Campanário; e, no caso das casas, assinalamos o teto simplificado do Solar Welsh, na Madeira, e a Casa Brum do Canto, na Graciosa, nos Açores. Retomando os tetos de alfarge em Portugal, diríamos que estes terão evoluído para uma simplificação dos processos construtivos relacionados com a complexidade dos motivos geométricos, o que se denomina por laçaria, em associação com as armações de suporte do telhado. As nossas observações levam-nos a supor que as armações dos tetos de alfarge se terão assim simplificado, sem perder, contudo, as regras de proporção, ou seja, a base do “cânone” imposto pelo processo construtivo e tecnológico e pela “memória” do geometrismo dado pela laçaria, enquanto métrica construtiva, resumindo-se agora ao “troço de espera” entre o plano inclinado (pano) e o plano horizontal (almizate). Os tetos comuns da arquitetura tradicional madeirense que observámos, principalmente no âmbito da arquitetura tradicional, mas também erudita, são compostos por uma sucessão de vigas de secção quadrangular denominados correntemente “varas” (no alfarge, serão os nodilhos), dispostas a partir do frechal até à linha e sobre as quais se aplica o forro, completam-se com os tirantes altos, ou tesouras (no alfarge, serão os pares), e os triângulos, ou tirantes de canto (no alfarge, serão os quadrais). Simples incisões de linhas retas nos bordos das varas dos tirantes/tesouras e nos tirantes de canto serão ainda a memória da laçaria (linhas obtidas através do graminho). O guarda-pó entre varas é constituído por tábuas inclinadas e integradas por rasgos verticais nas faces laterais das varas. Junto ao frechal, ligeiramente elevado para formar uma linha de composição, instala-se o friso de madeira trabalhado em cordão ou simples, definindo este o fim da parede e o início do teto. Por vezes, e em alternativa, recorre-se a uma ripa de meia-cana pregada às juntas do forro entre as varas de construções mais correntes, quer urbanas quer rurais. Todos estes elementos são as “memórias” que permaneceram do alfarge “canónico”, numa nova simplificada identidade filiada nos padrões ancestrais. Alguns destes procedimentos de simplificação já teriam, em parte, sido subtilmente integrados em tetos completos que terão iniciado a transição para a simplificação através de uma “matriz portuguesa”. Entre diversos exemplos, destacamos o teto de alfarge do coro alto da Igreja do Convento de Santa Clara do Funchal. A carpintaria desenvolvida a partir dos tetos de alfarge, nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, onde se terá efetuado um último estágio de simplificação, ter-se-á “propagado” nas arquiteturas das cidades portuguesas do espaço ultramarino. A sua influência terá perdurado durante séculos, não só na sua expressão erudita, mas sobretudo no domínio completo de uma arte que também produzia mobiliário, portas, janelas, varandas, proteções de vãos conventuais em reixa e muxarabis. Uma continuada linhagem de famílias de carpinteiros terá assegurado o saber coevo que se escalonava em aprendiz, oficial e mestre, categorias que chegaram ainda ao séc. XX. Esta terá sido uma das profissões mais valorizadas ao longo dos séculos. A ilha da Madeira, detentora de uma densa floresta rica em madeiras de todo o tipo, cedo terá beneficiado de licenças régias, atribuídas pelos capitães donatários para a construção de serras de água, realidade também comum aos Açores. Nascia assim uma outra linhagem de artesãos, os serradores, que forneciam a madeira em prancha ou em viga, segundo medidas-padrão controladas pelo grémio dos carpinteiros e confirmadas administrativamente por posturas municipais com os respetivos «livros dos regimentos oficiais mecânicos». As medidas eram então em palmos, pés, varas, tosas, provavelmente em tudo idênticas às praticadas no arquipélago das Canárias, que acolheu diversos carpinteiros provenientes da ilha da Madeira, estabelecendo uma relação inter-arquipélagos. Observamos a constância das secções e dos comprimentos das madeiras que compõem as armações, denotando uma assinalável regularidade própria de um fornecimento padronizado de madeiramentos, que, talvez por conveniência de transporte e otimização de paus, no corte na floresta e na serração, se mantinham dentro de medidas padrão para todos os componentes de uma armação mas também por ser mais fácil comercializar e tributar um produto padronizado. Uma das particularidades das armações de alfarge é precisamente a regularidade e rigor das peças que formam um intrincado e eficaz sistema estrutural. A qualidade tecnológica constitui, para além da expressão artística, a sua identidade, a sua distinção, sobretudo por possibilitar superar grandes vãos, mantendo secções esbeltas dos madeiramentos. Desafortunadamente, as casas madeirenses que incorporaram tetos de alfarge terão sido as que menos resistiram ao passar dos séculos. Chegaram-nos fotografias do Solar de Dona Mécia e da casa nobre dos Herédia, e pouco mais, mas seguramente muitos outros terão acolhido salas e câmaras de solares e mesmo de pequenas casas solarengas, muitas delas denotando armações simplificadas de alfarge. António Aragão revelou a nobreza das casas das famílias nobres, nacionais e estrangeiras, que se estabeleceram na Rua dos Mercadores e que terão incorporado nos seus confortáveis aposentos a expressão cultural das famílias originárias de Génova, da Flandres, da Andaluzia e das vizinhas Canárias, entre outras. A casa conhecida como de Colombo, construída ainda no séc. XV, poderá ter sido um dos exemplos. Pela qualidade dos seus vãos de cantaria, denota ter sido uma casa de grande riqueza. As suas câmaras terão provavelmente tido um ou mais salões com armação de alfarge integrados, tal como outros motivos decorativos associados ao mudejarismo, como os tradicionais azulejos hispano-árabes e os pavimentos de tijoleira. Para além das casas urbanas, registamos também algumas casas nobres rurais, como os Solares do Esmeraldo, na Ponta do Sol, ou a Quinta do Morgado, no Arco da Calheta, bem como algumas casas solarengas da nobreza de S. Jorge, na costa Norte, que terão tido provavelmente alguns tetos que se filiavam nas técnicas construtivas dos tetos de alfarge, ainda que com uma grande probabilidade de serem simplificados. Nesse tempo histórico, quase todas estas casas teriam tido, direta ou indiretamente, uma intensa ligação ao comércio marítimo, estabelecendo-se, nesse sentido, relações culturais e político-económicas entre os arquipélagos atlânticos e a Andaluzia, bem como outros territórios. Formou-se, assim, uma comunidade recetora e difusora que, de Portugal e Espanha e respetivos arquipélagos atlânticos, alargou a sua geografia de influência para os territórios ibero-americanos. Através da sua observação in situ, e numa análise comparativa, compreenderemos melhor o fenómeno da sua dispersão e permanência nesses territórios, bem como o seu continuado trânsito em torna-viagem e respetivas transferências. Ao contrário das Ilhas Canárias e de uma parte significativa do mundo hispânico na América, em que esses tetos não só permaneceram como se manteve a arte e a técnica da sua construção durante séculos, na ilha da Madeira tal não ocorreu. A renovação do gosto e a perda da tradição desta carpintaria específica fizeram com que se tivesse perdido grande parte destes tetos. Nalguns casos, o fogo terá sido a sua principal causa de desaparecimento. Desse facto nos dá conta António Aragão, ao relatar o grande fogo ocorrido em 26 de julho de 1593, que terá consumido, em 4 h, 154 casas: “moradas de casas, as melhores e mais principais de toda a cidade” (ARAGÃO, 1979, 175). Infelizmente, assim sucedeu, em pleno séc. XX (1957), com o Solar de Dona Mécia, datado no lintel da porta exterior de 1606, mas aparecendo já na planta de 1567/70, pelo que deve ter sido levantado, dadas as armas que ostenta, por João de Ornelas de Magalhães, que, em 14 de maio de 1555, foi nomeado alcaide da fortaleza do Funchal. Um outro solar, este de grandes dimensões, terá igualmente perdido os seus tetos, com grande probabilidade, no séc. XX. Reportamo-nos ao Solar da Quinta da Lombada na Ponta do Sol, residência do fidalgo flamengo João Esmeraldo, que o ampliou e enobreceu em 1493, após aquisição a Rui Gonçalves da Câmara, filho do 1.º capitão donatário Gonçalves Zarco, e que, seguramente, teria tido tetos de alfarge. João Esmeraldo construiu quase em simultâneo, mais precisamente em 1495, uma casa no Funchal, a que já nos reportámos como sendo a Casa de Colombo, que foi demolida. O seu construtor foi identificado pelo historiador António Aragão (ARAGÃO, 1979, 114) como tendo sido Garcia Gomes, pedreiro. A sua qualidade arquitetónica e a condição social do seu proprietário levam-nos à possibilidade de aquela ter tido teto(s) de alfarge, tal como os teriam a do mercador castelhano João de Valdavesso e a de Francisco de Salamanca, ambas no Funchal, que eram, segundo António Aragão, “ricas casas e aposentos” (Id., Ibid., 114). Outras causas estarão relacionadas com a perda destas casas, em particular a grande mobilidade da sociedade madeirense e, sobretudo, os grandes aluviões, sendo de especial gravidade o que ocorreu em 1803. Estas calamidades cíclicas ocorreram em praticamente todas as cidades ribeirinhas, desde logo no Funchal, mas também em Santa Cruz, Machico, Ponta do Sol, Calheta ou mesmo São Jorge, e noutras localidades de menor dimensão na costa Norte. Estas levaram seguramente para o mar partes significativas destas urbanidades e com elas edifícios religiosos e da nobreza que ocupavam os melhores terrenos planos. Como exemplo, entre tantos, referimos o claustro e respetivas dependências do Convento de São Bernardinho em Câmara de Lobos. Registamos ainda o forte tremor de terra de 1748, que danificou muitas igrejas e terá destruído muitas construções. Parece-nos possível que esta arte se tenha prolongado durante todo o séc. XVI em ambos os arquipélagos (Madeira e Açores) e, apesar das calamidades e do abandono da sua reparação e conservação, um novo incremento terá ocorrido durante o séc. XVII devido, provavelmente, à ocupação filipina, particularmente nos Açores. Contudo, consideramos que as sucessivas simplificações se terão iniciado ainda em finais do séc. XVI, mantendo-se assim os indispensáveis conhecimentos para o seu (hipotético) recrudescimento no referido período filipino, com recurso a mestres locais, e reintroduzindo-se a arte com o reforço de artífices recrutados nas colónias espanholas e/ou nas Canárias, onde tal arte se terá mantido coerente até praticamente aos finais do séc. XIX. Registamos ainda a inesperada (re)construção de um conjunto de tetos de alfarge no Solar dos Herédia, erigido nos finais do século XVIII na Vila da Ribeira Brava, na Madeira, posteriores Paços do Concelho. Esta família, há muito radicada na região, provavelmente reconstruiu este solar recuperando os tetos de uma anterior casa. Fica, no entanto, a dúvida sobre se estes tetos serão integralmente originais do séc. XVI, altura em que esta família de origem castelhana se radicou na Madeira, e, naturalmente, se os seus autores teriam sido igualmente oriundos de Castela, tal como seria interessante saber se teriam sido os mesmos a integrarem uma potencial campanha de obras de melhoramentos da casa de Dona Mécia, no Funchal. A coerência das armações simples à vista que observámos na arquitetura tradicional rural e urbana (aldeias e vilas) em todo o território português, com particular incidência nas Ilhas Atlânticas, parece-nos resultar de uma prática ancestral, aplicada sobretudo nas casas de “transição” social, ou de tipologia de sobrado, ainda que por vezes de piso térreo, mas de “volume expressivo”. Parte significativa da identidade tipológica das casas a que nos reportamos será consequência da tradição do alfarge e da identidade mudéjar associada, introduzida no séc. XVI em Portugal, ainda que esta, na realidade, já se tivesse enraizado discretamente nos séculos anteriores.   Victor Mestre (atualizado a 05.01.2017)

Arquitetura Património

teatro, história do

Em Portugal até ao séc. XV circunstâncias de ordem política e social fazem da poesia dramática uma forma acidental de arte e inibem a cultura e os costumes tradicionais destinados ao povo. No séc. XVI a Igreja permite que o povo participe na liturgia, cujas formas são essencialmente dramáticas. Estas mantêm-se assim unidas aos costumes e festas populares, dando seguimento a uma corrente oposta à da erudição humanista da Renascença que valorizava as comédias clássicas. Com o surgimento de povoadores na ilha, como o moçárabe, a poesia de reminiscências medievais, une-se ao figurado e à melopeia das composições árabes, caracterizando os primeiros esboços de arte referidas pelos autores. No séc. XVII, o teatro assume um papel de diversão e de reflexão crítica e nos séculos seguintes são fluentes os nomes de autores naturais da ilha ou que por ela tenham passado. No séc. XIX as publicações dedicadas ao teatro multiplicam-se, dado o impacto que têm na sociedade. Palavras-chave: teatro, drama, poesia dramática, liturgia cristã, povo, costumes, festas populares, Renascença (da Itália), comédias clássicas, povoadores, moçárabe, poesia de reminiscências medievais, composições árabes. O texto dramático integra-se no modo literário do drama. É constituído por um texto principal e por um texto secundário; enquanto o primeiro contém réplicas, atos linguísticos realizados pelas personagens, o segundo é formado por didascálicas ou indicações cénicas. No texto dramático monológico, apesar de não existirem réplicas, os elementos dialógicos podem estar presentes de forma implícita ou latente. Desprovido de narrador, a ação subordina-se às exigências do conflito, o tempo é relativamente condensado, o espaço é rarefeito, as personagens supérfluas são eliminadas e os episódios laterais são abolidos, dado destinar-se a ser representado e encenado por atores que, no palco, são peças fundamentais. O teatro tem origem na Grécia antiga, nas homenagens religiosas ao deus Dionísio. Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes e Antífanes figuram entre os principais autores dramáticos deste período. A comédia, a tragédia, a tragicomédia, o auto e a farsa são as espécies que representam o género e prosperam ao longo dos séculos. A comédia tem o quotidiano como temática, satirizando os defeitos humanos e a sociedade em geral. Aristóteles defendia que era a imitação de seres humanos inferiores, não quanto a toda a espécie de vícios, mas apenas quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. As personagens eram estereótipos das debilidades humanas, como o rabugento, o avaro, o apaixonado e o mesquinho; clichês que se disseminam pela história, principalmente na Europa. A estrutura consiste numa situação inicial complicada, que finaliza bem. Ainda do ponto de vista de Aristóteles, a tragédia, imitação de uma ação de carácter elevado, suscita o terror e a piedade, e tem como objetivo a purificação das emoções. Tem um carácter mais sério e solene, e personagens humanas pertencentes às classes nobres, como reis e príncipes, que sofrem às mãos dos deuses e do destino. A estrutura parte de uma ação inicial feliz, que tem um final trágico. A temática é baseada no sofrimento e no infortúnio do protagonista. A tragicomédia é uma obra dramática que matiza elementos trágicos e cómicos ou risíveis. Aristóteles é também um dos primeiros pensadores a utilizar o conceito, salientando que os dois géneros utilizam na sua composição a mesma métrica, os mesmos cantos e os mesmos ritmos. O auto é uma peça curta, geralmente de conteúdo religioso ou profano e, sobretudo, simbólico, uma vez que as suas personagens não são humanas, mas entidades abstratas, como a hipocrisia, a bondade, a luxúria, a virtude, entre outras. É representado por ocasião das grandes festas religiosas, nos pátios ou no interior das igrejas, e muitas vezes nas praças. A farsa, surgida por volta do séc. XIV, é normalmente uma pequena peça teatral, que tem como objetivo satirizar os costumes e despertar o riso por meio da representação de situações ridículas, grotescas ou engraçadas. Na verdade, para António de Sousa Bastos, atendendo à etimologia, drama é toda a obra teatral, trágica, dramática, cómica ou burlesca; o termo evoluiu semanticamente, passando a designar qualquer peça teatral, em prosa ou verso, que constitua um meio-termo entre a tragédia e a comédia. Embora sério na essência, o drama admite todo o género de personagens e exprime toda a sorte de sentimentos. As peças dramáticas possuem um carácter comovedor e uma forma mais familiar do que a tragédia, mas aproximam-se dela pela natureza e complicação dos acontecimentos, tirando da comédia os seus processos de intriga, a linguagem natural e a cópia dos costumes e situações vulgares da vida. De modo mais preciso, António Sousa Bastos diz-nos o seguinte: “A peça literária é aquela cuja forma, mais ou menos teatral, é todavia primorosa no conceito, nos caracteres e especialmente na linguagem” (BASTOS, 1994, 84). É precisamente este conceito de peça que envolve o de literatura dramática. Deste modo, a representação teatral é inseparável de uma literatura que lhe dá corpo e que é a matéria que a sustenta. Em Portugal, mormente na Madeira, a literatura dramática acompanha a história da nação. Uma vez que circunstâncias de ordem política e social fazem da poesia dramática uma forma acidental de arte e inibem a cultura e os costumes tradicionais destinados ao povo, pode afirmar-se que, até ao séc. XV, a fórmula de Shakespeare, “the form and pressure of the times” [a forma e a pressão dos tempos] não se aplica à realidade portuguesa. À medida que o elemento moçárabe que compõe a raça portuguesa perde relevância, o fisco, a enfiteuse manuelina, os dízimos, os exércitos permanentes, as ordens mendicantes, a desigualdade social e o fanatismo religioso dificultam a subsistência da classe social mais baixa e a sua arte espontânea e criadora. O elemento aristocrático ou leonês, que compõe a linha de fronteira entre Espanha e Portugal, vive na ociosidade da corte e promove passatempos nas festas reais, uma moda seguida na Europa, que os monarcas portugueses se prezam de imitar; condicionalismos que projetam as principais tradições da nação para as páginas das crónicas monásticas. O povo não as conhece, de modo que Portugal quase fica sem festas nacionais. Os ensaios dramáticos surgem a partir das tradições épicas da Idade Média de dois dialetos franceses, frequentemente chamados línguas do sim, a língua d’ oil e d’oc (“oc” significava “sim” no sul de França e “oil” tinha o mesmo significado no norte). A língua d’ oil vulgariza o nome de Bon Amis entre o povo. D. Sancho I concedeu o feudo de umas terras do Douro a um farsante ou bobo chamado Bonamis, a seu irmão, Acompaniado, e aos descendentes. Segundo Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo foi precisamente um serviço feudal grotesco que fez com que aparecesse em Portugal a palavra “arremedilho” que o estudioso interpreta como uma espécie de farsa mímica, “farsas em miniatura, dotadas de música e, sobretudo, de um ‘texto’ escrito segundo o esquema do contraste, pelo que a recitação deveria ser confiada a um par de atores pelo menos” (PICCHIO, 1964, 33); “embora, arrimidilum, longe de ser sinónimo de entremez ou farsa e de provar a vetusta existência de um ‘género’ típico da tradição dramática portuguesa, equivalia, pelo contrário, [...] a ‘imitação burlesca’ prometida ao soberano por jograis remedadores, isto é, por bobos cuja especialidade consistia em ridicularizar o próximo macaqueando-lhe o semblante” (Id., Ibid., 33-34). O conceito de bonifrates enraíza nesta época. Foi pela influência da língua d'oc na aristocracia portuguesa que nos primeiros séculos da monarquia se conheceram as “cortes de amor”, que têm vagas analogias com os espetáculos cénicos. No Cancioneiro da Ajuda, que exclui os géneros mais vulgares, nas cantigas de escárnio e de maldizer, existem versos que aludem àquelas “cortes”, ao debate entre damas e cavaleiros de uma casuística sentimental, de que são exemplo os seguintes: “E vej'a muitos aqui razoar / Que a mais grave coita de soflrer / Veela ome, e ren non lhe dizer, etc.” (BRAGA, 1870, 6). Por seu turno, o povo desconhece essa poesia subtil e canta as suas prosas e hinos farsis na liturgia cristã, até que a pressão do catolicismo lhe impõe silêncio. O espírito aristocrático procura banir o costume simples e natural do vulgo e proíbe uma poesia dramática arreigada a costumes populares. Deste modo, no séc. XVI, ao contrário do que se passa na centúria anterior, quando o teatro encontra condições sociais e mentais de desenvolvimento favoráveis, como os papas se tornam príncipes temporais, a Igreja mostra-se aristocrática e afasta o povo da participação na liturgia. Francisco I de França e o Parlamento são, por vezes, severos nas repressões para os que representam farsas e comédias políticas, aplicando-lhes a censura prévia. Cronologicamente, estas proibições coincidem com a condenação eclesiástica que se encontra geralmente transcrita nas Constituições episcopais portuguesas, que excluem da liturgia as representações populares. Em 1534, lê-se nas Constituições do Bispado de Évora: “Defendemos a todas as pessoas eclesiásticas e seculares de qualquer estado ou condição que sejam, que não comam nas igrejas, nem bebam, com mesas nem sem mesas, nem cantem, nem bailem em elas, nem em seus adros, nem os leigos façam seus ajuntamentos dentro delas sobre cousas profanas; nem se façam nas ditas igrejas ou adros delas jogos alguns, posto que sejam vigília de santos ou dalguma festa; nem representações que sejam da Paixão de Nosso Senhor J. C., ou da sua ressurreição, ou nascença, de dia nem de noite, sem nossa especial licença; por que de tais autos se seguem muitos inconvenientes, e muitas vezes trazem escândalo no coração daqueles que não estão mui firmes na nossa santa fé católica, vendo as desordens que nisto se fazem” (BRAGA, 1898, 72). Repetem esta proibição de representar autos da Paixão, da ressurreição e da natividade nas igrejas as Constituições episcopais de Lisboa, em 1536, de Braga, em 1537, de Angra, em 1559, de Lamego, em 1561, de Miranda, em 1536, e do Funchal, em 1538. Contudo, consentem a persistência do costume com especial licença do ordinário ou bispo. Esta proibição canónica remete para a existência de um teatro hierático em Portugal nos três últimos séculos da Idade Média, que chega ainda à Madeira, e mostra também que não são somente espetáculos religiosos que se usam. As formas litúrgicas do cristianismo são eminentemente dramáticas e o povo, que não abandona rapidamente os costumes, toma parte nas cerimónias do culto. Embora se reconhecessem nesses autos hieráticos a persistência de costumes, as manifestações populares são toleradas com uma certa benevolência. Tal como se lê num decreto da Universidade de Paris em 1444: “Os nossos predecessores, que eram grandes personagens, permitiram estas festas. […] Nós não fazemos todas estas cousas a sério, mas por jogo, para nos divertirmos segundo o antigo costume, para que a tolice (folie) que nos é natural se expanda uma vez por ano. Os toneis de vinho rebentariam, se lhes não dessem ar por vezes […]. É por isso que consagramos alguns dias ás representações e chocarrices” (BRAGA, 1898, 73). Com este espírito, os mistérios, os milagres e as moralidades passam de formas hieráticas a farsas políticas e sarcásticas comédias burguesas. Gil Vicente apropria-se desses elementos tradicionais e exerce sobre eles o seu génio dramático. Na verdade, essas formas de teatro podem desenvolver dramas sacros, poemas narrativos e sequências líricas; outros ficam na espontaneidade dos costumes populares, como os dramas da vida quotidiana. Deste modo, as formas dramáticas mantêm-se unidas aos costumes e às festas populares e a obra de Gil Vicente, colocada na transição do séc. XV para o XVI, surge dessa tradição. As vigílias do Natal são a primeira forma da sua escrita e muitos dos seus autos continuaram a ser representados em igrejas. Inspirado no espírito de tolerância racional, resiste aos obstáculos, cuja tendência é reprimir a sua obra e a fundação do teatro nacional. Desprovidos de raízes étnicas e com simpatia pela Idade Média, os seus autos não poderiam vencer a corrente da erudição humanista da Renascença que impõe ao gosto da corte, da Universidade e dos solares da fidalguia as comédias clássicas e as suas imitações italianas. Garcia de Resende afirmava aliás que o criador do género dramático não fora Gil Vicente, mas o espanhol Juan del Enzina. Na verdade, Gil Vicente mantém o interesse e a atenção do povo, a sua obra tenta resistir ao Tribunal do Santo Ofício, à presunção das tragicomédias dos Jesuítas, que pretendem sobrepor-se ao teatro popular, e também às comédias clássicas. Para Duarte Ivo Cruz, um teatro litúrgico religioso, um teatro popular e jogralesco e um teatro de origem cortesã, provenientes da época medieval, atingem a faixa ocidental da Península Ibérica naquela época. Estes três ramos dramatúrgicos não são estanques, embora o filão litúrgico, quase todo perdido, tenha sido o mais praticado. Na Madeira, Balthazar Dias, nascido em finais do séc. XV, é considerado o principal contemporâneo de Gil Vicente e um dos principais expoentes da literatura dramática portuguesa. No entanto, já no alvor da centúria, afluem à Ilha, a passos brandos, povoadores como o moçárabe, elemento importante do povo que traz consigo o carácter português e o que a arte popular e tradicional possui de original. É precisamente a fusão com as “correntes estranhas”, transportadas pelos povoadores, que dá à literatura uma originalidade própria. A poesia de reminiscências medievais, unida ao figurado e à melopeia das composições árabes, caracteriza os primeiros esboços de arte, a que vários autores fazem referência. Por seu lado, os capitães donatários dão continuidade à vida palaciana, já que a aristocracia permanece parte do tempo no continente, enquanto na Ilha se erguem os seus palacetes. Analisado o teor de várias composições de diversos poetas fidalgos madeirenses, pode verificar-se que se aproximam das do reino, como acontece com os poetas inseridos no Cancioneiro de Garcia de Resende. Autores como Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, o visconde do Porto da Cruz, o conde de Sabugosa, Francisco Trigoso de Aragão Morato, entre outros, fazem o historial dessa poesia de contornos dramáticos que tão bem caracteriza essa época. Atesta este estudioso que a forma mais usada nos divertimentos cénicos da corte de D. Afonso V e de D. João II é justamente a mímica, e que os momos, acompanhados de dança, nem sempre são mudos, já que alguns dizem palavras apropriadas ao carácter das pessoas que representam. No casamento da Infanta D. Leonor, precisamente irmã de D. Afonso V, com o Imperador Frederico III de Habsburgo, representam-se vários momos, a que um poeta do Cancioneiro Geral também chama autos, como pode ler-se no seguinte verso: “Eram vossos tempos Autos/Nas festas da Imperatriz/Mas agora calar chyz/Nem é tempo de crisautos” (fl. 47, v, col. 2.). Duarte de Brito é o autor dos versos e o visado é João Gomes da Ilha, dois madeirenses ilustrados constantes do Cancioneiro. Apesar da controvérsia sobre a naturalidade do autor, tal como a relata João de Freitas Branco, o compositor tem ligações à Ilha e a ilhéus e fornece dados de valor irrefutável sobre as criações literárias da época. Quanto a D. Afonso V, é por mais evidente que conhece a primeira Renascença da Itália: manda aí estudar os artistas portugueses e chega a visitar a corte francesa, na qual são muito usados os divertimentos dramáticos, tal como se pode ler no poema seguinte: “Por Framengos, Genoveses Froreniyns e Castelhanos/mal nos vindo/com seus novos entremezes dam-nos trinta mil avanos,/vam-se rindo” (BRAGA, 1970, 8). Também D. João II, à semelhança de seu pai, manda os artistas portugueses fazer aperfeiçoamento em Itália e mantém relações diretas com Angelo Poliziano, um dos primeiros que no séc. XV inicia em Itália a imitação do teatro clássico, e cuja obra-prima, Orféo, é escrita para uma festa palaciana. Nos divertimentos dos serões da corte de D. João II encontra-se uma representação cénica criada pelo conde de Vimioso, que Garcia de Resende conserva. O que se passa fora dos palácios, o popular, está pouco documentado e conduz a opiniões controversas, no que respeita à existência de uma literatura original, embora não seja completamente desconhecido. Relativamente a Baltazar Dias, não se sabe ao certo onde nasce, mas sabe-se que passa grande parte do tempo no continente, onde vem a falecer. Barbosa Machado, uma das principais e mais antigas fontes de conhecimento do autor, afirma “que foi um dos celebres poetas que floresceram no reinado de D. Sebastião, particularmente na composição de autos, com a circunstância de ser cego de nascimento” (MACHADO, I, 1741, 446). Nas mais diversas histórias de literatura e de dicionários de teatro, é citado como o “poeta popular” mais incontestável. Na verdade, os conhecimentos literários que revela mostram que aprendera as formas e os temas poéticos elementares da atmosfera espiritual da Ilha, o que lhe permitiu criar obra memorável. Tradições medievais, lendas de santos, gestos de paladinos, amores desventurados, mágoas de exílio e visões de peregrinos, são uma presença na alma dos insulares que marca o espírito deste poeta. A corrente humanista apenas o influencia ligeiramente, como se pode constatar num requerimento que dirige a D. João III para publicar os seus autos e trovas; no texto, declara que é natural da ilha da Madeira, que cantou vidas de santos, que animou na técnica gótica dos seus autos, que celebrou feitos de heróis portugueses, como D. João de Castro, e que riu dos disparates da época e da variedade das mulheres. Álvaro Rodrigues de Azevedo destaca-o como contemporâneo de D. Sebastião e autor de vários autos dramáticos, uns sacros e outros profanos, à semelhança de Gil Vicente. Parte das obras do autor, mencionadas por Inocêncio da Silva, tem grande divulgação em várias edições: Auto de St.º Aleixo, edições de 1613, 1616, 1638, 1749 e 1791, Auto de El-Rei Salomão, edição de 1613, Auto da Paixão de Cristo, edição de 1613, Auto da Feira da Ladra, edição de 1613, Auto de Santa Catharina, Virgem Mártir, edições de 1610, 1038, 1659, 1727, 1786, Auto da Malícia das Mulheres, edições de 1640 e 1793, Auto do Nascimento de Cristo, edição de 1665, Conselhos Para Bem Casar, edições de 1638, 1659, 1680, História da Imperatriz Porcina, Mulher do Imperador Lodonio de Roma, edição de 1660, Trovas de Arte Maior Sobre a Morte de D. João de Castro e Tragédia do Marquez de Mantua, edição 1665. No séc. XVII, Francisco de Vasconcelos Coutinho (1665-1723) enriquece a literatura dramática madeirense com a sua obra. É bacharel em leis, formado na Universidade de Coimbra entre 1686 e 1697. Em 1697, é nomeado ouvidor da Capitania do Funchal. São famosos os seus poemas à morte de D. Pedro II, sucedida em 1706, e um elogio dramático em honra do governador e capitão-general da ilha da Madeira, João de Saldanha da Gama, quando termina o seu governo em 1718. O elogio dramático, representado em 1718 pelas freiras de Santa Clara, possui um argumento simples. A peça, intitulada Residência do Governador e Capitão General da Ilha da Madeira, é uma obra de arte viva, cuja ação assume a função de pedagogia política, já que evidencia sentido de justiça e de razão, princípios que devem nortear a conduta humana perante um mundo cheio de controvérsias e de excessos. O objetivo é, precisamente, mostrar ao leitor e ao espectador essas imagens e abrir um espaço de reflexão sobre os princípios que devem orientar o comportamento dos homens. Decorrido num só ato e em seis cenas, o autor apresenta ao espetador uma espécie de julgamento em praça pública, em que as personagens principais não são mais do que (falsas) testemunhas de acusação e o réu é o Gov. João de Saldanha. Na estrutura interna, a ação é dividida em três partes: a exposição, que corresponde ao momento em que as personagens abstratas – a corte, a Ilha, a saudade, a religião, a justiça e a fama – vão sendo apresentadas, por ordem decrescente de importância; o conflito, que diz respeito aos argumentos de acusação que cada uma das personagens vai expondo contra o governador; e o desenlace, momento em que se chega a um veredicto final. A corte, símbolo do poder régio e da virtude soberana, é a primeira personagem a entrar em cena, a cantar e a incitar a que se apresentem as queixas relativas ao governador. O teatro assume um papel de diversão, de arma pedagógica e de espaço para a reflexão crítica, já que demonstra que o verdadeiro governador é aquele que é constante, humilde, justo, dono da verdade e da razão. Enquanto no séc. XVII apenas há registo do elogio dramático atrás referido, a partir da centúria seguinte abundam os nomes de autores naturais da Ilha ou que por ela passaram. Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo Menezes, Sousa Bastos, Inocêncio da Silva e, mais recentemente, Luiz Francisco Rebello, fazem o historial dos múltiplos escritores e das principais obras dramáticas. Joaquim de Menezes e Ataíde (1765-1828) é o primeiro autor destacado, que Inocêncio da Silva considera um distinto escritor, apesar de a maioria das suas composições poéticas e dramáticas ter sido publicada por Luiz José Baiardo, seu secretário durante vários anos. Nascido na mesma década, Manuel Caetano Pimenta de Aguiar (1765-1832) inscreve o nome na história da literatura dramática da Madeira com uma vasta produção dramática, sendo por muitos considerado o precursor de Almeida Garrett. O curso de artes e ciências feito em França dá-lhe a intuição de que em Portugal não há um verdadeiro teatro, razão que o leva a cultivar os trágicos franceses. Com esse espírito, escreve tragédias, apresenta uma obra original e desperta o gosto para este género literário. Começa a publicar em 1816 e, num curto período, imprime dez tragédias escritas em verso, intituladas Virginia, Os Dois Irmãos Inimigos, D. João I, Arria, Destruição de Jerusalém, D. Sebastião em Africa, Conquista do Peru, Eudoxia Liciana, Morte de Socrates e Carácter dos Lusitanos. Fernando Augusto da Silva e Carlos Menezes citam a representação de um drama seu em três atos, intitulado A Festa do Olimpo, no Teatro Grande, em 1822. No último quartel do século, Luiz José Baiardo (n. 1775) é sobejamente conhecido por publicar em seu nome, como já se referiu, a obra de Joaquim de Menezes e Ataíde, bispo do Funchal. Dada a sua paixão pelo teatro e a sua inibição de figurar como autor, o clérigo cede a sua obra a Luiz José Baiardo, seu fâmulo, consentindo que a divulgue como sua. A partir de 1821, já em Lisboa, Baiardo escreve peças originais e traduz outras. Da sua autoria são: O Moiro de Ormuz, comédia mágica representada pela primeira vez no Teatro do Salitre, em 1826, Valadomir Elevado ao Throno de Seus Maiores, O Combate de Touros, Gullistan, O Marquez de Pomhal ou o Terremoto de 1785, A Virtude Triumphante ou os Mágicos de Granada, Hariadan Barha Roxa, As Luvas Amarellas, Christierno Rei de Dinamarca, Templo da Innocencia, Figaro, O Delator, Alberto I, O Caminho Escuro, Gullistan, Miguel Valadomir, etc. Em 1838, redige um periódico semanal, Atalaia dos Teatros, do qual saem alguns números, mostrando mais uma vez a paixão pela representação e pelo género dramático. José Anselmo Correia Henriques (1777-1831), natural da Ribeira Brava, segue a carreira diplomática em vários países europeus e também no Brasil, no Rio de Janeiro, onde desempenha cargos da confiança do príncipe regente, quando a corte e o governo português ali estão estabelecidos. Embora se tenha dedicado mais à poesia, cultiva a tragédia e a comédia, e publica traduções, nomeadamente de uma comédia intitulada A Escola do Escandalo, composta por Ricardo Brinsley Sheridan. Da sua autoria são as tragédias A Revolução de Portugal e Mesquita. A sua obra encontra-se publicada em Paris, Londres, Hamburgo, Veneza e Christiania, o que indica que terá passado algum tempo nessa cidade, no exercício de funções consulares ou diplomáticas. Luiz da Costa Pereira (1819-1893) é considerado um homem do teatro pelos autores do Elucidário Madeirense, dada a sua vocação para autor, ator, ensaiador e diretor técnico. Efetivamente, exerce o cargo de comissário régio no teatro D. Maria, e é professor de declamação e da arte de representar no Real Conservatório de Lisboa. Camilo Castelo Branco elogia o seu trabalho de encenador. Traduz e adapta à cena portuguesa algumas peças de teatro estrangeiro e escreve o livro Rudimentos da Arte Dramática, de que só publica a primeira parte. Entre as peças que traduz conta-se Calumnia, de Scribe. Manuel Luís Viana de Freitas (1820-1861) destaca-se com um drama intitulado D. Luiz d'Athayde, e por ser sócio correspondente do Instituto Dramático de Coimbra, dada a sua paixão pelo teatro. Sérvulo de Paula Medina e Vasconcelos (1822-1854) é redator do periódico Beija-Flor e funcionário público nas ilhas de Cabo Verde. Em 1845, publica no Funchal um drama intitulado Amor e Pátria, que foi estreou no teatro Concórdia, em 1844. Em Cabo Verde, é redator do Boletim Official, onde publica o romance Um Filho Chorado. João de Andrade Corvo (1824-1890) distingue-se como jornalista, político e escritor. O desempenho de elevados cargos públicos proporciona-lhe um conhecimento dos problemas reais do país e sensibilidade em assuntos de carácter social, como a abolição da escravatura e a emigração, e condu-lo ao público através do texto dramático. Na altura em que o oidium tuckerii chega à Madeira, Andrade Corvo desloca-se à Ilha a fim de estudar essa enfermidade da vinha. A peça O Alliciador retrata esses tempos, a situação dos camponeses, decorrente dos “contratos de colónia”, e os dramas do aliciamento e da emigração clandestina, uma necessidade para muitos madeirenses. O drama é representado no teatro D. Maria II, em Lisboa. Outro dos autores que se destaca é Álvaro Rodrigues de Azevedo (1824-1898). Após a obtenção da licenciatura em Direito, na Universidade de Coimbra, desloca-se de Vila Franca de Xira para o Funchal em 1856. A par da carreira de professor, faz investigação da história da Madeira, envolve-se na vida política, escreve para a imprensa, dirige periódicos e publica uma vasta obra. Sensível aos problemas sociais dos madeirenses, bem como aos seus usos e costumes, escreve o drama A Família do Demerarista, sobre o madeirense que enriquece nos países de emigração à custa do seu trabalho e regressa à terra natal com vontade de ajudar a família e os da terra – contrariando os retratos feitos por João de Nóbrega Soares e Andrade Corvo, que o descrevem como um explorador dos seus compatriotas. João de Nóbrega Soares (1831-1890) é professor e jornalista. Como escritor, cultiva vários géneros literários, entre eles o dramático. São de sua autoria as peças Qual dos Dois?, Um Quarto com Duas Camas e A Virtude Premiada. Esta peça é um drama de atualidade que contém no final um conjunto de notas sobre vários pontos geográficos da Guiana Inglesa que são, precisamente, o espaço em que se movimentam as várias personagens ligadas à emigração de madeirenses no ano de 1861. Na verdade, João de Nóbrega Soares viaja por África e pela América do Norte e percorre o trilho dos portugueses naquelas terras, o que lhe permite fazer retratos aproximados dos dramas de muitos conterrâneos seus ao longo do séc. XIX. A peça é representada no teatro Esperança, na Madeira, colhe os maiores aplausos, e o autor confirma que a literatura dramática é o género que melhor retrata o crer e o viver do povo. Ao escrever a peça, o seu principal objetivo fora esclarecer e proteger os camponeses que na época emigravam engajados para terras longínquas, à procura de trabalho e de uma vida melhor. M. Knowler visita a Madeira em 1845 e profere no Funchal uma série de seis conferências sobre poesia dramática, nas quais revela elevado conhecimento do assunto. Encontram-se publicadas em Inglaterra e contêm referências à passagem do autor pela Ilha. Eugénio Maximiliano Azevedo (1850-1911) inicia-se na escrita dramática ainda jovem, sobretudo com comédias. Fazem parte desse tempo Por Força!, Paulo, Santos de Casa... e Duas Crianças, representadas no Teatro Ginásio, entre 1873 e 1874, e Vida Airada, representada no teatro D. Maria, em 1875. Na mesma época traduz A Familia Mougrol, de grande sucesso no Teatro Ginásio, e Um Fura-vidas, imitada da comédia italiana Un Uomo d’Affari. Nas décs. de 80 e de 90 escreve Os Annos da Menina, O Epílogo, Cinta e Bordão, representadas no Teatro Ginásio e no teatro D. Maria, e O Crime das Picôas, representada no teatro do Príncipe Real. A peça original de maior valor é o drama histórico Ignez de Castro, representada no teatro Príncipe Real de Lisboa, na rua dos Condes, no teatro Príncipe Real do Porto, na rua Nova de Sá da Bandeira e, por fim, no teatro Lucinda, do Rio de Janeiro. Para uma sociedade de amadores faialenses escreve a comédia de costumes açorianos Ralham as comadres…, representada em 1879 no teatro União, da Horta. A peça é representada na Madeira em 1901. Do seu rol de traduções e de imitações, fazem parte Os Jesuitas, Tosca, Causa Celebre, Purgatório de Casados, A Mendiga, O Amor, O Convento do Diabo, As Surpresas do Divorcio, Naná, O Az de Paus, Os Filhos do Capitão Grant e A Honra. O primeiro trabalho do autor a aparecer no teatro é a comédia Entre a Vitima e o Carrasco, traduzida do espanhol. Para além de escritor dramático, é, em final de vida, crítico teatral e comissário régio do teatro Normal. O seu nome é uma presença constante na história do teatro madeirense, pelo impulso e apoio dado à subida ao palco da peça Guiomar Teixeira, de João dos Reis Gomes. Também João de Freitas Branco (1854-1910) se distingue na literatura dramática, na crítica, na escrita de originais e na tradução de peças estrangeiras. Depois de ter viajado e permanecido alguns anos fora do país, em Inglaterra, França, e especialmente na Áustria, onde adquire conhecimentos de línguas estrangeiras, regressa a Portugal e divulga os trabalhos dos dramaturgos mais famosos do norte da Europa, Suécia, Dinamarca e Alemanha, traduzindo diretamente dos originais as suas principais obras. Entre elas, contam-se a Casa da Boneca e o Esteio da Sociedade, de Ibsen, Uma Fallencia, de Bjornson, Penedos do Inferno, de Blumenthal e O Fim de Sodoma, de Sudermann. Sousa Bastos, em A Carteira do Artista e no Diccionario do Theatro Portuguez, elenca a obra traduzida pelo madeirense e a que sobe aos palcos dos mais importantes teatros de Lisboa, o teatro D. Maria e o Teatro Ginásio. Luiz António Gonçalves de Freitas (1858-1904), chefe de repartição no Governo Civil de Lisboa, administrador de concelho e deputado, redige e colabora em importantes jornais, embora os trabalhos literários sejam a sua paixão. Aos 12 anos, em 1871, “publicava o seu primeiro livro original, Phantasias, ensaios litterarios e a sua tradução do Monge de Kremsmanster de Alphonse Karr” (BASTOS, 1898, 495). O seu primeiro trabalho do género dramático é a opereta escrita em verso A Pupila de Beltrão, para ser representada pelos alunos do 5.º ano do curso de Direito de 1879/1880. A peça é levada à cena pela primeira vez no Teatro Académico de Coimbra, em 1880. Em 1886, em homenagem a Leopoldo Carvalho, Noite de Núpcias é representada no Ginásio e posteriormente nos teatros da rua dos Condes e Avenida. Em 1897, sobe à cena no teatro da rua dos Condes a sua ópera cómica Pif! Puf! Publica também, entre dramas, comédias e operetas, À Beira do Abismo, Sob as Cinzas, traduzida de Charles Méronvel, O Club dos Perigosos, Rachel, Por Causa d´Um Cabelo, Pecados da Mocidade e Velha Farça. É sócio e diretor da empresa que explora o teatro Avenida, dado o seu gosto pelo drama e pela representação; traduz para esta empresa, em parceria com Sousa Bastos, uma opereta em três atos, Josephina Vendida por Suas Irmãs. João dos Reis Gomes (1869-1950), militar de carreira, professor do ensino secundário e técnico, jornalista e crítico de arte, na sua qualidade de autor, escreve obras de cariz histórico, filosófico e dramático. O Teatro e o Actor, em 1905, A Música e o Teatro, em 1919, e ainda Figuras de Teatro, em 1928, são obras que distinguem este escritor. Em 1912, escreve o drama Guiomar Teixeira, extraído da sua novela madeirense A Filha de Tristão das Damas. A peça é representada por amadores em 1913; pela Companhia Vitaliani-Duse em 1914; e em 1922, por ocasião das festas da comemoração do V centenário da descoberta da Madeira, novamente pelo primitivo grupo de amadores, embora com algumas substituições. A obra é um expoente da literatura dramática da Madeira, pelos motivos históricos retratados e porque a estreia oferece a novidade de fundir o cinema e a ação dramática. Efetivamente, é a primeira vez que em Portugal se utilizam efeitos especiais cinematográficos como o pano de fundo, e que estes se combinam com a representação dos atores. Maximiliano de Azevedo impulsiona a estreia da peça em Lisboa, dado ser um homem de teatro e ter conhecimentos que satisfaziam as ambições da representação do autor da peça. Francisco Bento de Gouveia (1874-1921) colabora numa revista que foi levada à cena no teatro Manuel de Arriaga. No final de século, em 1877, Olimpia Pio Fernandes escreve um drama intitulado Alda ou a Filha do Mar, que foi representado no Funchal. As principais cenas da peça são publicadas pela imprensa regional, com a qual colaborou. Francisco Jorge de Abreu (1878-1932) é jornalista de profissão. Além de muitos artigos disseminados por vários periódicos do Funchal, de Lisboa e do Porto, traduz várias peças teatrais. José Jorge Rodrigues dos Santos, ou apenas Jorge Santos (1879-1958), segue a carreira diplomática na Suécia e na Dinamarca. É autor de três peças dramáticas representadas no teatro nacional: em 1903, Crime de Amor, que põe em cena um caso de incesto, e A Festa da Actriz, uma derivação da estética naturalista; e, em 1908, Mar de Lágrimas, escrita em colaboração com João Gouveia. Escreve ainda Rosa Enamorada e uma peça de costumes madeirenses, Vinho Novo, entregue no teatro nacional em 1903, mas que não chegou a ser representada. João Gouveia (1880-1947) é um escritor apaixonado pela aeronáutica. Da sua autoria são duas peças levadas à cena no teatro nacional, nomeadamente Engano de Alma, em 1904, e Mar de Lágrimas, em 1908, com a colaboração do seu conterrâneo Jorge Santos. Em 1912, escreve Balões e Aeroplanos. Salienta-se, igualmente, Alberto Figueira Jardim (1882-1970), bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra, professor do liceu do Funchal, colaborador de alguns jornais na região e autor de uma vasta obra, que escreve uma fábula trágica, Galateia, publicada no Funchal em 1920, e a comédia Honra, Drama e a Laranja de Califa, peça em dois atos. Alfredo Freitas Branco (1890-1975), também conhecido por Visconde do Porto da Cruz, escreve Madrinha de Guerra em 1919, uma comédia cuja ação é centrada em Lisboa no ano de 1917. No mesmo ano, publica um auto designado Auto da Primavera, para o qual seu primo Luís Freitas Branco escreve uma música, e, em 1922, publica a peça A Canção de Solveig. A estes autores junta-se Álvaro Leal (1891-1931), autor de revistas e de operetas, umas escritas individualmente, outras em coautoria, como A Conferência, uma adaptação do francês, em 1924, Aqui para Nós, revista em um ato e três quadros, Jesus!, peça sacra, episódio bíblico em três etapas, de parceria com Pedro Bandeira, Isso Era d’ Antes, revista em um prólogo, dois atos e seis quadras, com outros autores, Sol de Portugal, revista em dois atos e doze quadros, com Lourenço Rodrigues, Prata da Casa, série de oito quadros de conjunto, a imitar uma revista novamente em colaboração com Pedro Bandeira. Escreve também o melodrama O Alfinete egípcio, em colaboração com Carlos Ferreira, representado apenas em tradução espanhola. É ainda autor das comédias Pegadas na Areia, da qual foi colaborador Lourenço Rodrigues, representada no teatro nacional em 1930, e Nero, escrita com Guedes Vaz. Algumas destas peças encontram-se no Arquivo Distrital do Porto. Augusto Elmano Vieira (1893-1962), bacharel em Direito pela Universidade de Lisboa em 1920, exerce o jornalismo, a advocacia e é membro da Câmara Municipal do Funchal. Como escritor dramático, colabora na revista de costumes madeirenses A Madeira por Dentro, representada no teatro Dr. Manuel de Arriaga, e na opereta regional A Menina dos Bordados, representada no pavilhão Paris. Em 1915 escreve o episódio dramático A Ultima Bênção, publicado no Funchal, em 1917. A peça é representada no teatro Circo, do Funchal, e no teatro nacional, em Lisboa, com muito sucesso, dado a gente da Ilha ser muito sensível ao tema retratado, a emigração madeirense; a ação é, pois, fundamental para esclarecer tanto os que partem para destinos transatlânticos, como os que ficam, aguardando que os seus regressem depressa. João França (1908-1996) que escreve várias peças de teatro, entre dramas, farsas e comédias, levadas à cena no Funchal por amadores, entre 1924 e 1930, nas quais representa alguns papéis. Algumas constituem grande êxito, como Mimi, O Regenerado e Amor Sem Deus. Escreve também uma opereta, Zé do Telhado, representada no teatro Avenida, em 1944, uma adaptação de O Bobo, de Alexandre Herculano, publicada em 1964 com o título O Drama do Bobo, uma comédia, Um Mundo Àparte, premiada em 1970 no concurso de originais para o teatro Maria Matos, proibida pela censura, e o monólogo Sol nas Minhas Mãos. Em 1978 publica o drama O Emigrante, peça em que retrata a emigração madeirense para a América no primeiro lustro do séc. XX. João de Brito Câmara (1909-1967) publica, em 1943, no Funchal, o Auto da Lenda, que é a descrição poética da lenda que conta os amores de Ana d’Arfat e Machim, que em tempos idos terão chegado à Madeira. Alberto Figueira Gomes (n. 1913) foi um estudioso da história insular madeirense e das fontes das principais tradições poéticas. A publicação da obra Poesia e Dramaturgia Populares no Século XVI – Baltasar Dias vai ao encontro desse gosto do autor. Em 1965, publica Encontros no Pireu, peça em um ato. Ernesto Leal (1913-2005) publica a obra teatral Afonso III, “história fabulosa e irónica de um rei sem história”. Finalmente, António Aragão (Funchal, 1921-2008) é autor de uma única peça dramática, Desastre Nu, distinguida em 1980, na qual propõe uma visão despojada e desencantada do mundo tecnocrático seu contemporâneo, dada a sua ligação ao experimentalismo dos anos 60 e 70. Em termos conclusivos, e segundo os autores do Elucidário Madeirense, a literatura dramática na Madeira foi, no início, uma articulação entre o génio dramático dos criadores e a fome, a pobreza e a necessidade. As famílias ilustres dedicavam-se à filantropia, forma de sobressaírem socialmente, algo que distingue e caracteriza o teatro na Madeira. Afirma Derrida que, quando os povos atingem um certo grau de civilização, os espetáculos são uma necessidade, “uma energia […] a única arte da vida” (MATEUS, 1977, 36). No séc. XIX, principalmente, os títulos dos jornais e outras publicações dedicadas ao teatro multiplicam-se, dado o impacto que têm na sociedade. Ao longo dos séculos, organiza-se um movimento mundano de apoio ao teatro, do meio citadino ao rural, suscitando paixões e levando-o a desempenhar um papel importante no cenário político, social e cultural de cada época.   Elina Baptista (atualizado a 10.01.2017)

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calçada madeirense: bordados de pedra a preto e branco

No séc. XVI, Gaspar Frutuoso, na sua obra Saudades da Terra, trata com admiração e elogio as “calçadas de pedra miúda” (FRUTUOSO, 1968, II, 117). De acordo com Sainz-Trueva, a utilização de seixos pretos e brancos na calçada madeirense atingiria o apogeu nos sécs. XVIII e XIX. Todavia, a partir de 1950, a atividade sofrerá um grande declínio motivado, essencialmente, pelos seguintes fatores: desinteresse por essa tradição, falta de mão de obra e de motivação da existente, pouco apreço pelo ofício, baixos salários, menor disponibilidade da pedra natural local e utilização de novos tipos de materiais para pavimentação. Ainda segundo Sainz-Trueva, “as severas mudanças no ‘rosto’ da cidade e arredores ajudaram a apagar os traços mais característicos da Madeira antiga, cada vez mais confrontada com ventos do progresso, que nem sempre contemplam da melhor forma os testemunhos de uma herança secular” (SAINZ-TRUEVA, 1991, 132 e 133). A calçada madeirense é muito anterior à chamada calçada portuguesa, dela distinta, a qual utiliza pedra facetada, de morfologia aproximadamente cúbica ou paralelepipédica, de cores preta (identificada como sendo basalto) e cinzenta-escura, branca ou rosada (identificada como sendo calcário). A calçada portuguesa, nacional e internacionalmente prestigiada, foi criada em 1842 pelo Ten.-Cor. e Eng.º Eusébio Pinheiro Furtado, quando no comando do Batalhão de Caçadores 5, que, querendo combater o ócio dos seus soldados, os pôs a revestir a parada do quartel com pedrinhas pretas e brancas. A calçada madeirense constitui uma autêntica referência histórica e patrimonial do arquipélago e é um símbolo da geodiversidade litológica local, sendo por vezes confundida com a calçada portuguesa propriamente dita. Em 2004, João Baptista Pereira Silva e Celso de Sousa Figueiredo Gomes desenvolveram um conjunto de investigações com os seguintes objetivos: caracterizar a pedra natural aplicada na calçada madeirense dos pontos de vista textural, petrográfico, químico, mineralógico e físico-mecânico; identificar os locais de proveniência da pedra natural; homenagear os profissionais com um papel ativo na preservação do secular trabalho que envolve a aplicação de pedra de seixo ou de calhau rolado, contribuindo desta forma para a preservação dos ofícios tradicionais; desenvolver uma ação pedagógica de divulgação da calçada madeirense junto da população e das entidades competentes, sensibilizando-as para a importância da preservação desta técnica, em vez de se proceder à substituição da pedra natural por outros materiais; valorizar o património edificado e dignificar a arte dos trabalhos concebidos com pedra natural, pequena e rolada. Materiais e amostragem A pedra natural local, de origem vulcânica e sedimentar, potencialmente adequada à aplicação na calçada madeirense, e que foi objeto da referida investigação, foi amostrada em depósitos de praia, em pequenos afloramentos de rocha carbonatada e em obras de recuperação de calçadas sitas nos concelhos do Funchal, de Câmara de Lobos, da Ponta do Sol, de Santa Cruz, de São Vicente e também na ilha do Porto Santo. Nos textos consultados e nos diálogos mantidos com alguns estudiosos e profissionais do sector é frequente referir-se serem os seixos brancos feitos de calcário originário de Portugal continental, tendo provavelmente servido de lastro em navios que outrora aportavam ao Funchal. Foi propósito da já mencionada investigação referir os locais de proveniência da pedra natural utilizada nas calçadas; tendo em conta, quer o levantamento já efetuado, quer a extensão da sua aplicação em todo o arquipélago, admite-se que a pedra aplicada foi recolhida em vários depósitos de praia das costas sul e norte da Madeira e do Porto Santo. Atualmente, a recolha dos materiais está restringida a depósitos de algumas praias (figs. 1 e 2) – Formosa (Funchal), Porto Novo (Santa Cruz), Madalena do Mar (Ponta de Sol) e Calhau da Serra de Fora e Calhau da Serra de Dentro (Porto Santo) –, devidamente autorizada pelas autoridades regionais competentes (Secretaria Regional dos Assuntos Parlamentares e Europeus da Região Autónoma da Madeira e capitania do Porto do Funchal). A amostragem dos materiais nas praias foi feita na baixa-mar, por duas razões (fig. 1): a primeira, porque a secção da praia é mais ampla; a segunda, porque a recolha de material é feita em maior segurança durante a maré baixa.   Na ilha do Porto Santo, os calcários ocorrem entre as cotas 0-165 m, correspondendo-lhes idades compreendidas entre os 13,5 e os 18 milhões de anos (Miocénico Inferior), tendo sido neles identificados foraminíferos, celentrados, briozoários, equinodermes, crustáceos, anelídeos e grande variedade de espécies de lamelibrânquios e de gastrópodes – isto é, nos calcários figuram quase todos os grandes grupos de invertebrados, bem como restos de seláceos e algas coralinas. O paleontólogo Gumerzindo Silva atribui aos calcários da ilha do Porto Santo e dos seus ilhéus uma fácies recifal edificada sob clima tropical a profundidade que não devia exceder os 40 m; normalmente, este tipo de calcários pode exibir cor branca leitosa e/ou cor branca amarelada.No que diz respeito às rochas carbonatadas, identificadas como sendo calcários recifais marinhos, elas apresentam as cores seguintes: castanha-avermelhada, branca leitosa, branca amarelada ou branca avermelhada. Trata-se de materiais com origem no concelho de São Vicente, na ilha da Madeira (fig. 3), no ilhéu da Cal ou de Baixo e no vale da Ribeira da Serra de Dentro, ilha do Porto Santo (fig. 4). No caso dos calcários que ocorrem no afloramento do sítio dos Lameiros (à cota de 475 m), em São Vicente, eles são, essencialmente, recifais, associados a tufos de cor castanha-avermelhada, e aglomerados, cujos fósseis marinhos identificados correspondem a várias espécies de lamelibrânquios, gastrópodes, equinodermes, coraliários, crustáceos e foraminíferos. Dados de geocronologia isotópica apontam a idade de sete milhões de anos (Miocénico Superior) para os calcários fossilíferos. Na segunda déc. do séc. XXI, puderam ser observados alguns dos antigos depósitos de calcário recifal no sítio do Furtado da Achada do Barrinho, Lameiros, ao percorrer o itinerário turístico-geológico denominado Rota da Cal (fig. 3).   No Museu de História Natural do Jardim Botânico da Madeira pode ser observado um rico e diversificado espólio de exemplares de fósseis marinhos originários das ilhas da Madeira e do Porto Santo. No conjunto, destacam-se, entre os fósseis mais representativos, lamelibrânquios, gastrópodes, equinodermes e algas coralinas, fósseis que apresentam, na generalidade, um elevado grau de preservação, situação que permite a fácil identificação das respetivas espécies. Nos seixos e calhaus de rocha carbonatada aplicada na calçada madeirense observam-se os exo-esqueletos de várias espécies de fósseis marinhos (fig. 5). Aspetos texturais A população designa vulgarmente a pedra aplicada na calçada madeirense por seixo, calhau ou cascalho rolado – mas, em termos técnicos e científicos, as denominações seixo e calhau não têm o mesmo significado. Efetivamente, em termos técnicos e científicos, os referidos nomes correspondem a designações que estão intimamente relacionadas com aspetos texturais, isto é, com a dimensão e a forma das peças individuais do material pétreo. A escala granulométrica de Chester K. Wentworth, utilizada em sedimentologia, estabelece designações e limites dimensionais para as partículas constituintes dos sedimentos. Nesta escala, a designação calhau é aplicada à classe granulométrica cujos limites são 256 mm e 64 mm, e a designação seixo é aplicada à classe granulométrica cujos limites são 64 mm e 4 mm (fig. 6). Por outro lado, o estudo morfométrico dos materiais pétreos – isto é, o estudo das diferentes geometrias dos calhaus e seixos aplicados na calçada – permite, de acordo com a classificação de Theodor Zingg, definir que eles apresentam, normalmente, forma oblata ou discoidal. Os seixos e calhaus de rocha vulcânica apresentam-se lisos, polidos, entre arredondados e bem arredondados, e a cor escura que exibem é normalmente devida à patine que vão adquirindo ao longo do tempo, efeito da poluição e da sujidade acumulada. Tipologias e propriedades No âmbito da referida investigação, a caracterização petrográfica, mineralógica e química dos materiais pétreos (calhaus e seixos) amostrados nas calçadas madeirenses foi realizada no departamento de Geociências da Universidade de Aveiro, tendo permitido o estabelecimento das tipologias relevantes. No que diz respeito às rochas vulcânicas, utilizando a relação entre a percentagem de sílica (SiO2) e a percentagem de alcalis (Na2O + K2O) adotada no sistema classificativo das rochas vulcânicas proposto por Peter Francis, foi possível definir as litologias seguintes: traquibasalto, traquiandesito e traquito, que apresentam tonalidades que vão desde o cinzento-escuro até ao cinzento-claro (fig. 6); basalto, hawaiíto e representantes do grupo minor varieties, que inclui diversos tipos de rochas vulcânicas menos comuns; normalmente, estes tipos litológicos apresentam cor preta. Os resultados da análise química obtidos por fluorescência de raios X indicam que as amostras estudadas de seixos ou calhaus de calcário do arquipélago da Madeira apresentam teores muito baixos de sílica (SiO2) e de alumina (Al2O3), sempre inferiores a 200 ppm. Diferentemente, no caso das amostras de calcário utilizado em calçada portuguesa (técnica também presente no arquipélago da Madeira), provenientes das localidades de Porto de Mós, Alcanena, Albufeira e Lagoa, em Portugal continental, os teores de sílica (SiO2) e alumina (Al2O3) variam entre 0,40 % e 3,19 %. Assim sendo, os resultados analíticos obtidos permitem identificar a origem do seixo e do calhau de calcário aplicado na calçada madeirense, a qual está relacionada com rochas carbonatadas locais (calcário recifal muito puro). De facto, as investigações realizadas mostram que a pedra calcária aplicada foi recolhida em vários depósitos de praia das costas sul e norte das ilhas da Madeira e do Porto Santo (figs. 3, 4 e 5). Por sua vez, as propriedades físico-mecânicas dos principais tipos de pedra natural utilizados na calçada madeirense foram avaliadas no Laboratório de São Mamede de Infesta (Porto), afeto ao antigo Instituto Nacional de Engenharia, Tecnologia e Inovação (posteriormente, Laboratório Nacional de Energia e Geologia). A determinação da resistência ao desgaste por abrasão em vários provetes de pedra natural foi realizada através do método de desgaste de Capon. Os resultados obtidos permitem concluir que a rocha traquibasáltica é a que apresenta menor desgaste (0,6 mm), e que o calcário recifal é a rocha que apresenta maior desgaste (4,2 mm). Se observarmos alguns pavimentos pelos quais há grande circulação de pessoas, verificamos facilmente que a superfície superior e exposta da pedra calcária se apresenta plana, ou seja, com maior grau de desgaste, quando comparada com a superfície superior e exposta da pedra vulcânica contiguamente aplicada, que se apresenta abaulada ou convexa (fig. 7). Aplicação da calçada madeirense A calçada madeirense é uma manifestação do património insular madeirense, sendo também testemunho da atividade desenvolvida por trabalhadores de ofícios tradicionais. Feita na maior parte das vezes por mãos anónimas, revela a sensibilidade naïve dos seus autores (e.g., fig. 20) e é um testemunho cultural que merece ser divulgado e preservado. Na feitura da calçada madeirense, a aplicação dos materiais pétreos no terreno poderá realizar-se diretamente sobre uma camada de solo silto-argiloso (designado localmente por cerro). Caso contrário, a aplicação dos materiais passa por diversas etapas: preparação do fundo de caixa com aplicação de tout venant sobre o terreno e colocação de pó de pedra sobre o tout venant e tirada de pontos (fig. 8); colocação da pedra segundo o seu eixo maior (isto é, para um sistema de eixos XYZ, em que X representa o comprimento máximo, Y a largura máxima e Z a espessura máxima) (fig. 9); betonagem das juntas entre as pedras, com uma mistura líquida de calda de areia e cimento, numa proporção de três partes de areia para cinco de cimento (fig. 10); calcamento e nivelamento do pavimento com calcão mecânico e acabamento com maço de madeira de plátano (fig. 11); colocação de areia fina sobre o pavimento, com o objetivo de remover o excedente da calda de cimento e, finalmente, a lavagem, a escovagem e o varrimento (fig. 12). Para se ter noção do grau de exigência que esta arte de pavimentação implica, marcou-se no chão, com motivo em espinha, a área de 1 m2. Verificou-se que em cada metro quadrado foram aplicados, em média, 1023 seixos. Este valor é elucidativo dos milhares de seixos que foram utilizados para fazer o pavimento de calçada madeirense que existe no jardim municipal do Funchal (fig. 13). Tendo em conta a proveniência dos materiais, pode dizer-se que se assemelham a praias que foram transferidas para o espaço urbano e rural. Na déc. de 1960, o Arqt. Fernando Santos Pessoa introduziu uma alteração à calçada madeirense tradicional – a variante de calçada madeirense com pedra partida; trata-se de um pavimento menos escorregadio e que oferece maior atrito ao calçado, permitindo melhor andamento e mais conforto (fig. 14).   Motivos A calçada madeirense pode ser construída utilizando unicamente calhaus e seixos de rochas vulcânicas, de tonalidade cinzenta mais ou menos escura, cuja monocromia é quebrada devido às diferentes orientações conferidas pela disposição dos materiais (figs. 14 e 17). Quando são utilizadas rochas vulcânicas e sedimentares, a policromia a preto e branco apresenta uma grande diversidade de padrões e temas geométricos e florais estilizados que ornamentam e embelezam ruas, átrios, igrejas, palácios, casas, quintais e jardins (figs. 15-22). Muitos dos motivos dos pontos do bordado da Madeira – tais como oficial, bastido, chão, corda, granitos e richelieu – foram aproveitados pelos calceteiros para serem representados na decoração da calçada madeirense. O adro da igreja de S. Martinho, no Funchal, é talvez o local que reúne a maior diversidade de padrões e de motivos geométricos e florais estilizados, com vários pontos de bordado da Madeira.   No pavimento, predomina geralmente o material mais abundante, isto é, calhaus e seixos de rochas vulcânicas, sendo apenas utilizadas rochas sedimentares para realçar alguns aspetos florais, brasões de armas, monogramas, datas e a cruz de Cristo (figs. 23 e 24). Os pavimentos de calçada madeirense apresentam pouca reflexão da luz e são facilmente limpos utilizando a tradicional vassoura de urze.   Preservação Em meados da segunda déc. do séc. XXI, a calçada foi modificada e adulterada em alguns espaços, com a aplicação de materiais estranhos a esta técnica e com a remoção de motivos. A pedra rolada foi substituída por cubos e paralelepípedos de mármore e coberta por argamassas de areia, cimento e material betuminoso, ou por alcatrão (figs. 25 e 26).   Na requalificação urbana que ocorreu no núcleo histórico de Câmara de Lobos, o antigo brasão do concelho – que estava colocado no adro da igreja de S. Sebastião, fazendo parte de um tapete de pedra rolada – deu lugar a um pavimento de “calçada madeirense” de blocos e calhaus partidos; perdeu-se, assim, o único exemplo de heráldica municipal em calçada madeirense construída no arquipélago, restando dela apenas registos fotográficos (fig. 27).Também nesta altura, na rua D. Carlos I, na zona velha do Funchal, foi observada a existência de diferenças cromáticas entre as argamassas em algumas obras de recuperação, viu-se serem muito diferentes as dimensões dos seixos utilizados e serem os espaços entre pedras roladas – porque grandes – preenchidos por argamassa.  Nas travessas da Malta e do Redondo, o pavimento de calçada madeirense foi coberto por tapete betuminoso. Noutros locais, verificou-se ser total o abandono da calçada, como no caso dos passeios na estrada do João Abel de Freitas e na estrada da Boa Nova, e advir grande perigo – tanto para peões como para utilizadores de viaturas motorizadas – das pedras, encontrando-se estas soltas entre a estrada e o passeio (fig. 28).   O desenvolvimento das raízes das árvores de grande porte destruiu e só ergueu por vezes o pavimento – como aconteceu na capela de N.ª Sr.ª da Graça, no Instituto do Vinho da Madeira e no Hospício Princesa Dona Maria Amélia –, carente de trabalhos de manutenção regulares.No adro da capela de N.ª Sr.ª da Graça, na ilha do Porto Santo, observou-se a presença de grandes manchas de cera, com origem no pagamento de promessas feito por alguns fiéis (com velas) e na ausência da sua posterior remoção. Durante a referida investigação, teve-se oportunidade de acompanhar diversas obras de recuperação de antigas calçadas e de construção de novas pavimentações. Exemplos disso mesmo são o antigo palacete dos Zinos, posteriormente palacete do Lugar de Baixo, recuperado em 2004 pelo Governo Regional da Madeira (GRM) (fig. 29); os jardins de Santa Luzia, recuperados em 2004 pela Câmara Municipal do Funchal e pelo GRM (ao projeto, da autoria do Arqt. Luís Paulo Ribeiro, foi atribuída uma menção honrosa na categoria de espaços exteriores de uso público, no quadro do Prémio Nacional de Arquitectura Paisagista, em 2005) (fig. 30); o pavimento onde está representado o cronograma dos vários Batalhões de Infantaria e dos Caçadores na Universidade da Madeira, recuperado por calceteiros da Câmara Municipal do Funchal, em 2008 (figs. 31 e 32).   A preservação da calçada madeirense, nas antigas quintas e jardins públicos e privados, casas particulares, ruas, estradas, etc., reveste-se de uma importância crucial, especialmente para os núcleos e zonas históricas das ilhas da Madeira e do Porto Santo. Deste modo, a profissão e a formação do calceteiro é imprescindível para a manutenção dos referidos espaços. Além disso, o património material da calçada madeirense constitui um legado de grande valor, sob os vários aspetos da sua composição, da diversidade dos materiais geológicos utilizados, com presença de fósseis marinhos, e da diversidade de padrões construídos e desenhados.   João Baptista Pereira Silva Celso de Sousa Figueiredo Gomes (atualizado a 14.12.2016)

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