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arquitetura militar

A consciência da necessidade de fortificação das ilhas atlânticas com vista às alterações do quadro estratégico do Atlântico Norte foi tardia, ao contrário do que sucedeu no Norte de África, onde uma população islamizada nunca aceitou de bom grado a presença portuguesa, obrigando à rápida construção de estruturas defensivas. No entanto, o termo arquitetura militar envolve outros pressupostos, inclusivamente teóricos, pelo que a sua incipiente instalação na Ilha, ao longo do séc. XV e perante a inexistência de um inimigo imediato, dificulta a escrita sobre o tema. Claro que se construíram estruturas defensivas, como a torre do Capitão, em Santo Amaro, no Funchal ou a torre dos Esmeraldos, na Lombada da Ponta do Sol, mas foi principalmente por questões de prestígio (Arquitetura senhorial). Mesmo o pedido de construção de uma fortaleza feito à infanta D. Beatriz, em 1475 e a construção do chamado baluarte do Funchal (a fortaleza e palácio de São Lourenço), em 1540, resultaram mais em edificações senhoriais do que militares, numa época em que já se começava a equacionar outro tipo de construções, mas não a entendê-las totalmente. Nos meados do séc. XV, começou a ser introduzido em Portugal armamento de fogo, o que, a par das novas bestas com tração mecânica, por exemplo, alterou os pressupostos das construções defensivas. A utilização de armamento de fogo pesado obrigou ao reforço das antigas muralhas com sapatas e, progressivamente, foram desaparecendo as altas torres de menagem, alvos facilmente reconhecíveis à distância e também facilmente derrubáveis. A primeira fortificação construída na Madeira, pedida em 1528, determinada em 1529, mas só levantada entre 1540 e 1541, dirigindo a obra o pedreiro Estêvão Gomes, era uma fortificação de transição, não sendo ainda aquilo que se denominaria posteriormente “fortificação moderna”, “regular”, divulgada pelos novos tratados internacionais. O baluarte do Funchal implicou a construção de uma torre semioval, assente nos afloramentos rochosos da praia, ostentando os emblemas e as armas reais, articulada com uma muralha a correr sobre o chamado altinho das fontes de João Dinis, que envolvia as casas do capitão. Ao lado das fontes, o baluarte ou fortaleza tinha um torreão-cisterna que, flanqueando a muralha, protegia a aguada dos navios e a população na praia do Funchal. A fortaleza do Funchal e a organização geral defensiva militar mostrou-se assim totalmente incapaz perante o ataque corsário francês de outubro de 1566. A fortaleza foi atacada por terra, onde não possuía qualquer proteção e, não sendo possível movimentar as pesadas bocas de fogo em direção ao mar, não resistiu ao ataque, sofrendo a cidade um pesado saque de cerca de 15 dias a que quase nada escapou. A partir de então, a atenção da corte de Lisboa virou-se para as ilhas atlânticas e, logo na armada de socorro enviada à Madeira, terá viajado um arquiteto militar altamente habilitado, o mestre das obras reais Mateus Fernandes (III) (c. 1520-1597), ligado à família dos arquitetos do mosteiro da Batalha, alguns militares continentais para reverem a organização das companhias de ordenanças e das vigias, ainda vindo alguns meses depois, dois técnicos militares italianos para o apoiarem. Data desta época a instalação em Lisboa de uma provedoria das obras reais, que passou a controlar a documentação expedida para o vasto império ultramarino português e à qual ficaria depois ligado o arquiteto mor do reino. O novo mestre das obras reais da Madeira, Mateus Fernandes, recebeu, nos primeiros dias de 1567, ordens várias, enviadas pela provedoria das obras, em Lisboa, entre as quais o Regimento das Vigias, datado de 22 de abril de 1567. Este documento serviu de ensaio ao regimento geral promulgado em todo o reino a 10 de dezembro de 1570. O Regimento das Vigias de 1567, dirigido ao capitão do Funchal, mandava montar vigias em todos os portos, “calhetas, praias ou pedras, em que parecesse que os inimigos poderiam desembarcar” (ARM, Câmara Municipal..., Registo Geral, tomo 2, fl. 142v.). Este regimento avança ainda com outras diretivas respeitante à artilharia, tendo sido a base de muitos dos pequenos fortes ou fortins depois levantados pela Ilha. Assim, no reconhecimento que o capitão e os restantes elementos deveriam fazer dos lugares para “guarda do mar”, “surgidouros e desembarcadouros”, também deveriam ser contemplados os lugares “para guarda da terra” (Id., Ibid., fls. 109-112v.). Nesses lugares, deveriam ser levantadas estâncias para colocar artilharia, cuja praça deveria ser “chã e calçada como convém”, para que o pessoal depois ali em serviço se pudesse movimentar bem e as “rodas dos reparos estarem sempre enxutas, sem humidade de água ou lama” (Id., Ibid.). Deveria ainda ser montada uma casa sobradada para a pólvora, tal como uma guarita para observação e vigia. Em março de 1567, Mateus Fernandes recebeu a visita e o apoio de dois arquitetos italianos, Pompeo Arditi (c. 1520-1571) e Tomás Benedito (c. 1520-1567), ambos de Pézaro, que lhe entregaram um primeiro regimento de fortificação para o Funchal, datado de 14 de março desse ano. Estes italianos, com quem o mestre das obras reais já teria contactado no Norte de África, ficaram na Ilha cerca de um mês e seguiram depois para os Açores, onde aquele último reformulou e dirigiu a nova fortaleza de S. Brás, em Ponta Delgada. Com esta colaboração, o mestre das obras do Funchal levantou uma planta da cidade, algo que poderá também ter feito antes, hoje na Biblioteca Nacional do Brasil e imaginou uma enorme fortaleza para o morro da Pena, a descer até à praia do Funchal, ocupando toda a zona velha, conforme a entendemos no começo do séc. XXI, ou bairro de Santa Maria Maior. Fortaleza da Pena-1567. Arquivo Rui Carita.   A fortaleza do morro da Pena previa a construção de um importante complexo fortificado sobre esse morro, descendo parcialmente sobre o bairro de Santa Maria com dois núcleos defensivos abaluartados, sendo a fortaleza parcialmente rodeada por fosso e tendo o total do conjunto uma dimensão que só veio a ter paralelo em Portugal durante o séc. XVII e com as guerras da aclamação de D. João IV. Mateus Fernandes ultrapassou francamente a sua época com um planeamento desta envergadura, o mais antigo que conhecemos em Portugal e que poderia recolher no seu interior toda a população da cidade do Funchal em caso de perigo. A existirem algumas semelhanças, somente com a fortaleza de S. Filipe, planeada dez anos depois para Setúbal pelo italiano Jacomo Palearo, el Fratin (c. 1520-1586) e levantada sob a direção de Filipe Terzi (1520-1597), ou com a congénere da Ribeira Grande, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, em princípio, projetada pelo mesmo Filipe Terzi, sendo que nenhuma delas tinha a dimensão da delineada para a do Funchal. O planeamento compreendia dois núcleos abaluartados: um sobre o morro da Pena e outro na baixa do bairro de Santa Maria, que desapareceu totalmente com a construção da monumental fortaleza. O núcleo mais alto, sobre o morro, era dotado com dois terraplenos, tendo o de cima quatro baluartes pentagonais e o de baixo dois baluartes retangulares, com canhoneiras a flanquearem as muralhas de união dos dois terraplenos. Indicam-se no projeto as diferenças de altura das várias áreas para o leito da ribeira de João Gomes, que chegavam aos 140 palmos, ou seja, quase 30 m. Um corredor murado sobre a ribeira ligava os dois núcleos, com canhoneiras a flanquearem os muros a norte e a sul, utilizando-se a ribeira ainda como fosso. O núcleo inferior possuía uma enorme esplanada, delimitada por um baluarte pentagonal e dois meios baluartes. Mas o planeamento não foi aceite em Lisboa, optando-se por um esquema mais tradicional e reduzido para a futura fortaleza de S. Lourenço, articulado com panos de muralhas (Muralhas do Funchal). D. Sebastião enviou, assim, um novo regimento de fortificação, em 1572, no qual a cidade era envolvida, na frente mar e ao longo das ribeiras de João Gomes e de São João, por panos de muralhas que fechariam nos morros da Pena e de São João com pequenas posições fortificadas. A fortaleza central da cidade foi ampliada com o planeamento feito por Mateus Fernandes para o núcleo superior do morro da Pena, mas reduzida a menos de um terço das dimensões iniciais. Ficou com dois baluartes pentagonais gémeos virados a norte e um quadrangular, a proteger a zona ocidental, mantendo a nascente o baluarte joanino de 1541. Mais tarde, por volta de 1600, veio a ser dotada de um novo baluarte pentagonal, projeto de Jerónimo Jorge (c. 1570-1617), para proteger a porta. Como apoio da fortaleza principal, foi executada uma pequena estância fortificada, a ocupar a foz das ribeiras de Santa Luzia e de João Gomes, a futura fortaleza de S. Filipe da Pç. do Pelourinho, havendo um pano de muralha a unir ambas, mas do qual quase nada ficou. A cidade considerada por D. Sebastião era já um pouco maior do que a de D. Manuel, isto é, o limite oriental passou da ribeira de Santa Luzia para a de João Gomes. No entanto, o primitivo bairro de Santa Maria do Calhau continuou a não ser considerado cidade, só vindo a possuir o seu troço amuralhado alguns anos depois e num outro enquadramento histórico. No verão de 1582, face à ameaça das armadas de D. António, prior do Crato, com base no arquipélago dos Açores, Filipe II mandou avançar, das Canárias, o conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598). As primeiras preocupações do conde de Lançarote foram para a segurança interna e externa da Ilha, começando por visitar as duas fortalezas com o mestre das obras reais Mateus Fernandes, inteirando-se do seu estado e das suas necessidades. Conforme informa a 18 e 26 de junho, a fortaleza velha era essencialmente um bom palácio residencial, mas encontrava-se cercada de edificações muito próximas e mais altas, pouco valendo, assim, como defesa. A nova ainda se encontrava em piores circunstâncias, pouco havendo a fazer para melhorar as suas condições, pois não só estava mal localizada como também se encontrava mal construída. Perante o conflito que opunha as forças de Filipe II às de D. António, prior do Crato, com franceses e ingleses, envolvendo muitas centenas de homens de parte a parte, a pequena estância “nova” da Pç. do Pelourinho do Funchal era mínima para as necessidades e a de S. Lourenço também oferecia muitas reservas face ao seu envolvimento. As fortalezas e o seu autor, o mestre das obras reais Mateus Fernandes, receberam as mais duras críticas dos governadores e técnicos desses finais de século, dado não estarem previstas para fazer frente a um conflito como o que se desenrolava. O problema de ampliação da muralha do Funchal à frente mar foi resolvido por Tristão Vaz da Veiga (1537-1604), quando, em 1585, tomou posse da capitania do Funchal, determinando o prolongamento da muralha para nascente. Este troço de muralha ao longo do calhau chegou parcialmente ao séc. XXI, confrontando com o que é, no começo do segundo milénio, a entrada do hotel levantado no antigo arsenal de Santiago ou de S.ta Maria Maior. As obras do novo troço de muralha confinavam com os arrifes por de baixo da antiga igreja de Santiago Menor, justificando a construção de uma fortaleza nessa baixa. A fortaleza de Santiago deve ter tido projeto de Mateus Fernandes, mas terá sido reformulado depois por Jerónimo Jorge, enviado de Lisboa em 1595, até então a trabalhar nas obras de S. Julião da Barra e do forte do Bugio.   Penha de França. Arquivo Rui Carita.   Desde a união das duas coroas que se discutia no Funchal a muralha poente e a edificação de uma fortaleza no Pico dos Frias, “padrasto”, ou seja, mais alto que toda a cidade e, inclusivamente, com comandamento sobre a fortaleza de S. Lourenço, tendo sido elaborado, de imediato, um projeto da autoria de Mateus Fernandes (Fortaleza do Pico). A situação foi ultrapassada pelo governador Cristóvão Falcão de Sousa, que após tomar consciência das necessidades da defesa do Funchal, em finais de 1601, enviou a Lisboa o sargento-mor da cidade, Roque Borges de Sousa, com uma planta da nova fortificação, por certo, a que fora executada por Mateus Fernandes, pois só nessa altura voltou à Ilha o fortificador Jerónimo Jorge. Regressado o sargento-mor ao Funchal, logo a fortaleza foi levantada, mas somente em madeira, encontrando-se já guarnecida nos inícios de 1602 e sendo passada a pedra e cal ao longo do século. Durante a mesma centúria, ainda seria levantada a bateria da Alfândega (Reduto da Alfândega), constituída por um baluarte triangular avançado ao mar, construído sobre a cortina da cidade e a fortaleza do Ilhéu, no meio do porto do Funchal, ambas com projeto e direção do mestre das obras reais Bartolomeu João, (João, Bartolomeu). Consolidava-se, assim, uma rede de fortalezas modernas, constituídas por conjuntos de baluartes pentagonais, de paredes inclinadas e reforçados nos cunhais, como a fortaleza do Pico, quase de traçado regular, sendo a artilharia colocada nas esplanadas dos mesmos. As novas fortificações adaptavam-se ao terreno e às restantes estruturas defensivas, como os muros da cidade, podendo ser apenas quase estâncias de tiro e formando um conjunto articulado, cruzando fogos obrigatoriamente entre si. O centro de comando era a fortaleza de S. Lourenço e, dada a sua localização, a do Pico funcionava como cidadela ou seja, de recurso e refúgio para o caso de invasão da baixa da cidade. A defesa e a fortificação da Madeira foram revistas várias vezes no séc. XVII, mas os elementos produzidos não chegaram até nós. Nos finais da centúria, por exemplo, deslocaram-se à Madeira o capitão de engenheiros António Rodrigues Ribeiro e o engenheiro Manuel Gomes Ferreira, mas apenas sabemos que teria sido então executado o portão dos Varadouros, datado de 1689. Mais tarde, em 1705, Manuel Gomes Ferreira, citaria que haviam feito um levantamento quase total das costas da Ilha, mas do qual nada conhecemos. Tudo leva a crer que estes trabalhos tivessem ido com os seus autores para Lisboa e aguardassem aí despacho favorável, perdendo-se no curso do tempo. A primeira grande campanha de obras de fortificação do séc. XVIII decorreu no governo de Duarte Sodré Pereira, um fidalgo mercador que tomou posse a 29 de abril de 1704. Como ficou exarado no demolido forte novo de S. Pedro (Forte novo de S. Pedro), na praia do Funchal e onde se construiu mais tarde o campo do Almirante Reis, o governador mandou levantar esse forte, juntamente com os de Machico (Fortes de Machico), Santa Cruz (Fortes de Santa Cruz) e Ribeira Brava (Fortes da Ribeira Brava), que se guarneceram de artilharia, tendo-se concluído todos os trabalhos em 1707. A data é referente ao forte novo de S. Pedro, pois a campanha geral de obras só foi terminada entre 1708, data limite das lápides e 1711, ano das últimas nomeações para os mesmos fortes. As estruturas levantadas não se afastam especialmente das do século anterior, embora tenham definido um novo modelo de fortificação triangular de uma só bateria, em que o lado virado a terra, em algumas, aparece dotado de torreão de gola, como no de S. Bento da Ribeira Brava, datado de 1708, ou no de S. João Batista do Porto Moniz, mais tardio, datado de 1758 (Forte do Porto Moniz). Nos finais do séc. XVIII procedeu-se a novo estudo de defesa da Ilha, determinado por D. Maria I, com data de 11 de junho de 1797, como vem referido na cartografia então levantada, pois não conhecemos registos no governo local. Para cumprir o plano determinado por D. Maria I, deslocou-se no ano seguinte para a Ilha o major do regimento de artilharia da corte, Inácio Joaquim de Castro, nomeado cavaleiro da Ordem de Cristo a 4 de dezembro de 1778, depois governador da ilha de São Miguel, nos Açores e da torre de S. Julião da Barra, em Lisboa. A instabilidade política dos anos seguintes não permitiu qualquer obra de fortificação e o que fora proposto em nada alterava o que estava feito. Os acontecimentos dos inícios do século seguinte, com a saída da corte para o Brasil, as ocupações inglesas do Funchal e mesmo a terrível aluvião de 1803, não só alteraram profundamente estes estudos como os levaram a outras resoluções, onde houve que equacionar não apenas a defesa imediata contra um ataque exterior. Com a referida aluvião, ocorrida a 9 de outubro, foi destacada para o Funchal uma equipa de engenheiros militares chefiada pelo brigadeiro, de origem francesa, Reinaldo Oudinot (1747-1807) e da qual fazia parte o então tenente Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), cujo primeiro trabalho foi o levantamento da planta do Funchal e dos estragos causados pela aluvião, porventura a melhor peça cartográfica efetuada na Madeira até essa data. A equipa foi para a Madeira, essencialmente, para colmatar os estragos da aluvião de 1803, mas num curto espaço de tempo alargou o trabalho à reforma da carta topográfica da Ilha e à defesa do Funchal, não só das intempéries, mas também numa perspetiva militar propriamente dita. Ao longo do ano de 1805, em abril, por exemplo, o brigadeiro Oudinot e Paulo Dias de Almeida ainda executaram as plantas da nova bateria das Fontes, que representa toda uma outra forma de entender a defesa e a arquitetura militares. A ideia já não era construir fortificações adaptadas ao terreno, mas grandes esplanadas capazes de receber as novas bocas de fogo, muito maiores do que as anteriores, necessitando assim de todo um outro campo de manobra. A bateria das Fontes veio a receber grande parte da guarnição da fortaleza e palácio de S. Lourenço, que a partir dos últimos anos do século anterior passara, essencialmente a palácio. Mais tarde, em 1824, sob a direção do brigadeiro engenheiro Raposo, o então tenente-coronel Paulo Dias de Almeida planeou uma estrutura idêntica de bateria rasante para a frente da velha fortaleza de Santiago, integrada então no novo molhe do cais do Funchal e que o mar rapidamente destruiu. Nos anos seguintes, Paulo Dias de Almeida dirigiu uma ampla campanha de obras militares nos pequenos fortes e vigias, desde o Funchal até Machico, motivada pela possibilidade de desembarque dos absolutistas, o que veio a acontecer a 22 de agosto de 1828, na baía daquela vila. A mais importante estrutura defensiva desta área era o forte novo do Porto Novo (Fortes do Porto Novo e Caniço), reforçado com forças mercenárias inglesas, porém, a explosão do paiol do mesmo levou à debandada das forças liberais, entrando os absolutistas no Funchal sem qualquer resistência. Os meados do séc. XIX assistiram à emergência dos engenheiros militares, aliás, e ao longo de décadas, à frente do governo português, verificando-se o mesmo, embora apenas pontualmente, na Madeira. Mas o seu domínio revelou-se essencialmente nas obras públicas, sendo necessário esperar pelos alvores da Primeira Grande Guerra para se fazerem obras especificamente militares no Funchal, de certa forma improvisadas, com as novas baterias de costa da antiga Q.ta Vigia e a bateria da Cancela, que dotadas com material do século anterior, pouco efeito tiveram nos dois bombardeamentos alemães sofridos pela cidade. Os trabalhos levados a efeito, tal como os seguintes, de 1940, com o deflagrar da Segunda Grande Guerra, no entanto, não se enquadram já bem na área da arquitetura militar, mas sim na da defesa. Nos finais do séc. XX houve um especial interesse pela arquitetura militar na ilha da Madeira, dadas as caraterísticas, de certa forma inovadoras, que a mesma possuía. Assim, foi objeto de uma exposição, efetuada nas comemorações nacionais do Dia de Portugal no Funchal, em 1981 e, no ano seguinte, remontada na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa e, ainda depois, na Casa do Infante, no Porto e em Vila Viçosa. Em sequência e dentro do processo autonómico, muitas dessas edificações, já então sem específico interesse militar, vieram a transitar para a tutela da RAM.       Rui Carita (atualizado a 10.10.2016)

Arquitetura História Militar Património

atouguia, antónio aloísio jervis de

Nascido no Funchal, o visconde de Atougia desempenhou um papel importante na guerra civil que opôs liberais e absolutistas, combatendo ao lado dos primeiros, e teve uma carreira brilhante no território continental, como deputado, par do Reino e ministro. Recebeu várias comendas e foi agraciado com o título de visconde. Palavras-chave: guerra civil; deputado; par do Reino; ministro.   António Aloísio Jervis de Atougia nasceu no Funchal, a 7 de julho de 1797, filho do morgado Manuel de Atouguia Jervis e de Antónia Joana de Carvalhal Esmeraldo. Em 1811, iniciou os estudos secundários no colégio inglês Old Hall Green, nos arredores de Londres, matriculando-se depois em Matemática, na Universidade de Coimbra. Terminado o curso, em 1822, foi nomeado lente substituto da Academia da Marinha, mais tarde denominada Escola Naval, tornando-se professor catedrático em 1834. Fig. 1 – Retrato a óleo de António de Atouguia, de 1852.Fonte: CHAGAS, 1895, X.   Fugindo à perseguição contra os liberais, emigrou para Inglaterra, em junho de 1828, mas logo em agosto regressou ao Funchal para se juntar ao governador da Madeira, Cap.-Gen. José Lúcio Travassos Valdez, na luta contra as tropas absolutistas de D. Miguel. Perante a vitória destas, refugiou-se no navio inglês Alligator, com outros madeirenses, e rumou novamente a Inglaterra, daqui partindo, em 1831, para a ilha Terceira, nos Açores, onde foi organizada a resistência dos liberais. Em 1832, participou na tentativa falhada de conquista da Madeira, dominada pelas forças absolutistas, regressando de seguida aos Açores e indo finalmente juntar-se às tropas de D. Pedro IV, no Porto. Com a vitória liberal, em 1834, foi nomeado governador civil do Porto e condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada. De 25 de julho a 25 de novembro de 1835, fez parte do Governo presidido pelo duque de Saldanha, como ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. Foi deputado pela Madeira, em 1834-1836, 1837-1838, 1838-1840, 1840-1842, e, mais tarde, por Oliveira de Azeméis, em 1851-1852, tendo feito parte das comissões da Marinha, Ultramar e Guerra. Em 1841, presidiu à Câmara de Deputados e, entre 1858 e 1861, presidiu algumas vezes, interinamente, à Câmara dos Pares. Em 1842, foi nomeado ministro da Marinha e Ultramar, no Governo presidido pelo duque de Palmela, de 7 a 9 de fevereiro de 1842, num ministério conhecido como Governo do Entrudo. Fez parte do ministério presidido pelo duque de Saldanha (22/05/1851-06/06/1856), como ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, de 4 de março de 1852 a 6 de junho de 1856, acumulando com a pasta de ministro e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, a partir de 31 de dezembro de 1852. Foi ainda diretor da Escola Politécnica de Lisboa e conselheiro do Tribunal de Contas. Foi nomeado par do Reino a 5 de janeiro de 1853 e agraciado com o título de visconde de Atouguia, por duas vidas, a 15 de março de 1853, tendo também recebido várias comendas nacionais e estrangeiras. Em 1832, iniciou-se na maçonaria, em Angra do Heroísmo. Faleceu em Lisboa, a 17 de maio de 1861.     Gabriel Pita (atualizado a 07.10.2016)

História Política e Institucional Personalidades

arte na educação

Em matéria de arte na educação, a RAM aproveitou a descontinuidade territorial, que a separa do continente português e a privou de usufruir de muitas valências, invertendo a seu favor o sabor da insularidade. Usufruiu do mar e do que, em matéria social, este podia oferecer, proporcionando uma estreita relação com outros povos que ali paravam. Falamos, e.g., de uma forte relação com a comunidade inglesa, que por lá se estabeleceu no séc. XIX e com individualidades de outras nacionalidades, como a alemã, a espanhola e a russa, que ao longo dos séculos se distinguiram na relação com os autóctones. Pelos registos apurados, podemos afirmar que, desde o início do séc. XIX, as artes fizeram regularmente parte da educação. Existem referências à aprendizagem da música, à prática do canto, às danças de salão, às récitas teatrais e às artes e ofícios, a par de outras atividades de cariz artístico, como os lavores e a aprendizagem das línguas. Fazendo um périplo pelos periódicos entre 1821 e 2015, é possível observar-se o lugar que as artes ocuparam em instituições de ensino regular, bem como confirmar a existência de aulas artísticas de cariz doméstico e até em instituições mais regulamentadas. Na Madeira, as escolas com opção de disciplinas de âmbito artístico fizeram parte da educação ao longo do séc. XIX. Quando, em 1835, se assistiu à implementação do ensino primário obrigatório, uma das consequências foi a criação de múltiplas escolas e colégios. Na Madeira, a rede pública de escolas deveria ser notoriamente insuficiente, visto que encontramos, ao longo de Oitocentos, diversas escolas em espaços domésticos ou sem designação oficial onde era possível as famílias optarem por uma ou mais atividades artísticas, como o ensino do canto, da guitarra, do piano ou da dança, a par do desenho. Além destas atividades, as escolas e os pequenos colégios permitiam igualmente a opção pelo ensino das línguas, nomeadamente a francesa e a italiana, justificando-se esta última, sobretudo, quando do bel canto se tratava. Estas disciplinas (artísticas e línguas) tinham normalmente um custo acrescido. Apesar do ensino feminino já existir no reinado de D. Maria I, foi com a reforma do ensino primário, em 1836, que foram implementadas as “escolas de meninas”. Na Madeira, também encontramos referências ao ensino feminino na imprensa, registando-se que as escolas ou colégios para meninas eram dirigidas por senhoras, como atesta o seguinte anúncio: “Colégio para educação de meninas, direção de Felisberta Augusta Teixeira” (com opção de lições de piano, dança e desenho com pagamento extra) (A Flor do Oceano, 12 set. 1839, 4). Neste contexto, é interessante constatar a presença contínua do ensino da dança, a par de disciplinas ligadas às línguas, à música e ao desenho. As aulas de artes não aconteciam apenas em escolas ou colégios de ensino primário. Ao longo de todo o séc. XIX, há registos de aulas particulares, organizadas nas casas dos professores ou mesmo dos alunos. Entre outros, recolhemos anúncios na imprensa local de aulas de dança ministradas por Eduardo Soares e Paulo Valentino d’Ornelas Costa; lições de música, rabeca, piano, violoncelo e violino dadas por Nuno Graceliano Lino; e de piano e canto pelo P.e João Aleixo de Freitas. Até ao último quartel do séc. XIX, os docentes eram essencialmente masculinos, começando as mulheres, nessa altura, a predominar no ensino das artes. Importante, já então, era a presença de professores de naturalidades diferentes da portuguesa, proprietários, e.g., da Eschola Collegial Inglesa, que tinha lições de música e do Collegio de Jane H. Manly Tello. Estes factos revelam bem, ao nível da educação, a influência da comunidade inglesa na Madeira oitocentista. Além do ensino artístico em contexto doméstico, também era possível desenvolver-se uma prática artística em contexto institucional, principalmente nas sociedades e clubes que proliferaram no séc. XIX, depois da revolução liberal. Neste âmbito, salienta-se o coro da Sociedade Philarmonica; a Academia Marcos Portugal, que proporcionava lições de solfejo para violino, violeta, violoncelo, rabecão grande e instrumentos de metal e palheta; e a Sociedade Recreio Musical, com aulas de dança dadas por Eduardo Soares, que acumulava com aulas que lecionava no Theatro D. Maria Pia. Como se depreende do anteriormente enunciado, a maior parte das instituições e aulas artísticas desenvolvia-se fora do domínio público, embora houvesse algumas exceções. O Liceu, e.g., apresenta-se como uma escola oficial genérica que incluía atividades de educação artística. Outro caso de atividades artísticas promovidas por uma instituição pública é o da escola municipal de D. Francisco Vila y Dalmau, onde era possível estudar canto e dança. Por fim, uma categoria que não deve ser esquecida: as aulas proporcionadas por professores e companhias que passavam pelo Funchal, como, e.g., as aulas de dança do Circo Equestre, em 1865. Era comum que os artistas que passavam pela Madeira para realizar concertos e espetáculos se disponibilizassem também para dar aulas particulares a quem estivesse interessado, situação que se manteve na primeira metade do séc. XX, como mostram os seguintes casos divulgados pela imprensa periódica: maestro Ricardo Nicosia Cortesi (piano); professor Cleto Zavala (lições de piano); cavalheiro inglês, muito competente para ensinar violino; professor D. Domingo Bosch (lições de piano). Na transição do séc. XIX para o XX, qualquer novo estabelecimento de ensino vocacionado para mulheres que fosse criado no Funchal teria mesmo de incluir, quase obrigatoriamente, a disciplina de piano, embora de forma opcional, pois era lecionada em regime de aulas individuais. No colégio para meninas de D. Christina Adelaide Gomes, e.g., o currículo era constituído pelas disciplinas de inglês, francês, português, piano, machete, canto, viola e dança, em 1895. Em 1909, o colégio para raparigas João de Deus informava que as suas alunas podiam ter “aulas especiais de canto, piano e dança” com a professora Cora Cunha, discípula de Maria Capitolina Crawford do Nascimento Figueira (Almanach de Lembranças Madeirense, 1909, 288-289). Poucos anos mais tarde, por volta de 1912, foi criada, no convento de S.ta Clara, a Escola de Utilidades e Belas Artes, que se destinava a raparigas e que incluía no seu currículo também as áreas de música e de dança, assim como o ensino de piano em aulas individuais, de forma opcional.   Mª Adelaide Meneses e alunas. Photographia Vicentes. Fonte: Arquivo Sílvio Fernandes   Este aumento do papel da mulher na educação artística contribuiu, provavelmente, para a sua emancipação profissional através da música. Enquanto noutras áreas era considerado pouco apropriado que a mulher de classe média assumisse uma profissão, no caso da música, a mulher começou regularmente a aparecer como professora, sobretudo nas áreas do canto, do piano e da dança. No período entre 1812 e 1880 surgem poucas mulheres a lecionar, mas a partir de 1870 inverte-se esta tendência, aparecendo frequentemente mulheres a lecionar música como atividade profissional remunerada, desaparecendo, e.g., quase por completo, os professores de piano masculinos. No séc. XX, a par das reformas a no ensino oficial das artes, continuaram a ser criadas diversas escolas particulares de cariz doméstico que ofereciam no seu currículo a opção de atividades artísticas. Temos, assim, o Collegio de Santa Clara (piano e canto); o Collegio Maria José Ferreira (classe de dança, francês, inglês e música); o Colégio do Lisbonense (classes de instrução primária, português, francês, inglês, piano, dança e lavores); e o Colégio Madeira (classes de dança por Eugénia Rêgo). É igualmente relevante encontrarem-se anúncios com a redação que se segue, sem nomear as professoras: “Uma senhora devidamente habilitada dá lições de piano e francês em sua casa ou na das alunas, por preços moderados” (DNM, 9 out. 1911, 1); “Senhora competentemente habilitada dá lições de piano e bandolim” (DNM, 26 mar. 1915, 1); ou ainda, o pormenor, “Classe de dança – Para principiantes e praticantes” (DNM, 6 out. 1911, 2); “Chamamos a atenção para o anúncio que hoje publicamos sob a epígrafe, ‘Classes de piano’, recomendando a professora, que tem toda a competência requerida” (DNM, 19 ago. 1917, 1). No ensino específico e particular, nomeadamente em contexto doméstico, encontramos referências a lições de música dadas por Eduardo Antonino Pestana; Isabel Pamplona Spínola; Nuno Graceliano Lino; Artur Maria Lopes; Alfredo A. Graça, com o pormenor de se referenciar o método (piano e rabeca pelo curso do Real Conservatório de Lisboa, e bandolim pelo método de Christofaro y Gautiero); Angelique de Beer Lomelino; Gabriella Campos (lições de piano e solfejo pelo método do Conservatório de Lisboa); Maria Eugénia de Afonseca Acciaiolly Rêgo Pereira (ensinava coreografia erudita e folclórica a membros das classes alta e média madeirense num salão de dança); M. Graça Rego (ex-aluna dos professores Cleto Zavala, em piano e Beer Lomelino, em canto, dava lições de piano e canto); Maria Izabel Ferraz (aulas de dança). Denota-se uma preocupação com a metodologia aplicada e os fins a que se destinava. Leia-se “Lições de música. Curso geral completo pelos métodos mais modernos adotados no Conservatório de Lisboa” (DNM, 16 maio 1917, 1); “Professor Vasco de Oliveira (curso de violino seguindo todo o programa do conservatório (escola de Leonard)” (DNM, 4 abr. 1919, 1). Mantêm-se as escolas dirigidas por estrangeiros com atividades artísticas e as sociedades e clubes com atividades de educação artística: o artigo “Academia Dançante” referencia já o Atheneu Commercial com a professora Mathilde Xavier Ferraz, que dá lições de dança; o Grupo Recreativo da Mocidade Portuguesa proporciona aulas de música e classes de dança acompanhadas pelo pianista Leandro S. C. de Freitas. No contexto das escolas oficiais de ensino genérico, existem igualmente diversas menções ao ensino de disciplinas artísticas: no Instituto de Ensino Secundário e Comercial, referem-se aulas de música, em que os métodos adotados são os mesmos do Conservatório de Lisboa e um curso de canto regido por uma distinta professora, que dava lições individuais e em classe; no Liceu Jaime Moniz, o professor de canto coral era Júlio Câmara, contanto a tuna académica e o orfeão com a direção de Gustavo Coelho; na Escola de Utilidades e Belas Artes (estabelecimento de ensino feminino), era possível aprender dança, piano e canto. Em 1943 ocorreu um dos principais acontecimentos no campo da educação artística na Madeira, uma iniciativa que, em 2015, continua a dar frutos. Nesse ano, Luiz Peter Clode e seu irmão William Clode fundaram a Sociedade de Concertos da Madeira, que reunia um escola de intelectuais e artistas portugueses e estrangeiros, naturais ou residentes na Ilha, com a finalidade de contribuir para o crescimento de artistas e público especializado. No seguimento da criação dessa instituição, a prática das expressões artísticas cresceu substancialmente e, a partir de 1946, altura em que foi fundada, no âmbito da mesma, a Academia de Música da Madeira, que mais tarde conseguiu o paralelismo pedagógico com o Conservatório de Música de Lisboa, contribuiu para a creditação de professores e alunos madeirenses. Este estabelecimento foi sucessivamente restruturado após o 25 de Abril, vindo a integrar o ensino profissional das artes na viragem do século, alterando a sua designação, em 2000, para Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira e, em 2006, para Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira Eng. Luiz Peter Clode, em homenagem ao seu mentor. Os cenários dos sécs. XX e XXI são completamente distintos e acompanham o natural desenvolvimento do ensino artístico na Região, tendo contribuído fortemente para o efeito o trabalho realizado, ao longo de 35 anos (1980-2015), pela Direção de Serviços do Ensino Artístico e Multimédia (antigo Gabinete Coordenador de Educação Artística). A par do trabalho de campo desenvolvido em toda a Região, motivou o surgimento de associações, filarmónicas e grupos de iniciativa privada que, em conjunto, contribuíram para os resultados atingidos: o ensino artístico integra, em 2015, a quase totalidade da rede do pré-escolar como atividade obrigatória e o ensino técnico profissional e especializado abrange já todas as áreas da expressão artística: a dança, a música, o teatro e variantes.   Paulo Esteireiro Teresa Norton Dias (atualizado a 26.09.2016)

Artes e Design Educação História da Educação

associação teatro experimental do funchal

O Teatro Experimental do Funchal (TEF), associação desde 2015, nasceu em 1975 pela comissão dos serviços culturais da Câmara Municipal do Funchal (CMF) com a denominação de Grupo Experimental de Teatro do Funchal (GETF), após a realização, no teatro municipal Baltazar Dias (TMBD), do Festival de Teatro do Operário promovido pelo Inatel. A 9 de janeiro de 1976, o GETF estreou o Auto do Curandeiro, do poeta popular António Aleixo, numa encenação coletiva sob a orientação de Carlos Abreu. Estreou em 1977 o Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, com encenação de Orlando Barros, tendo como primeira parte o exercício teatral “Como se Prepara Um Ator”, da autoria do encenador. O trabalho foi integrado no que foi definido como 1.º Curso de Formação de Atores (CFA). O grupo continuou o trabalho de ator, sob a responsabilidade de Carlos Franquinho. Os serviços culturais da edilidade reabriram o TMBD após a sua recuperação, convidando para esse fim o professor e encenador Leopold Kielanowsky, que fez a adaptação da peça A Noite de Reis ou o que Quiserdes, de William Shakespeare, com cenografia de Gino Romoli. O trabalho de preparação do espetáculo começou em novembro de 1977 e a peça estreou em janeiro de 1978, tendo reunido não só os atores que já faziam parte do grupo – Carlos Franquinho, Juvenal Garcês, Paula Camacho e Bento Abreu – como também outros elementos que faziam teatro na Região – Bernadette Andrade, Isaura Melim, Raúl Silva, Ambrosina Barbeito, Eduardo Luiz, António Plácido, Paulo César, Rui Honorato, Énio Gomes, Porfírio Fernandes e Ana Gouveia, entre outros. Desde 1978, o grupo manteve o firme propósito de não se deixar extinguir. Nesse mesmo ano, a Fundação Calouste Gulbenkian apoiou a contratação do encenador Roberto Merino que, durante quatro anos, além de montar espetáculos, preparou e formou intérpretes de teatro, potenciando no grupo uma consciência do estar e do ser ator, como amador ou profissional. Este percurso tornou o ator mais coeso e consciente do seu trabalho, concorrendo beneficamente para o seu desenvolvimento, e o do teatro em geral, na Região. Ainda nesse ano, a CMF, através dos serviços culturais, atribuiu um valor monetário simbólico aos atores, contribuindo para a responsabilização e a dignificação do seu trabalho. Roberto Merino e Júlio Couto dirigiram o 2.º CFA e o grupo participou no 1.º Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI), com a peça Woyzeck, de Jorg Büchner, com encenação de Roberto Merino. Durante os quatro anos seguintes, Roberto Merino formou atores, e dirigiu e encenou várias peças: Histórias de Hakim, de Norberto D’Ávila, em estreia mundial, com a presença do autor (peça reposta em 1981); Tartufo, de Molière (reposta em 1980); Da Arte de Bem Governar, de John Arden; O Principezinho, de Antoine de Saint-Exupéry; Vinicius de Moraes – Homenagem, a partir de Vinicius de Moraes (1980); Farsas Populares, de Lope de Rueda, Cervantes e um anónimo francês do séc. XV (com que participou no 4.º FITEI e no Encontro Regional do Funchal, em Lisboa); Enquanto o Mundo For Mundo, de Francisco Ventura e Carlos Lélis (1981); Uma Terra de Paz e O Círculo de Giz de Augsburgo, a partir do Almanaque de Bertolt Brecht, e Liberdade, Liberdade, Liberdade, de vários autores (1982), que fez apenas uma representação para uma plateia convidada. A saída de Roberto Merino obrigou o grupo a procurar novo diretor artístico e encenador. A 27 de setembro, após uma reunião de atores, o grupo passou a denominar-se TEF. Agora constituído por Carlos Franquinho, Bernardette Andrade, Eduardo Luiz, António Plácido, Fátima Rocha, Paulo Brazão, Nuno Gonçalves, António Ascensão e Henrique Vieira, iniciou um novo percurso. De 1983 a 1985, Fernando Heitor foi o encenador do TEF, realizando também o 4.º e o 5.º CFA. Os serviços culturais da CMF propuseram ao encenador a montagem de um espetáculo diferente, com um cunho regional, o que veio a acontecer no princípio de 1983 com Noites da Madeira, escrito por vários autores de revista a partir do romance O Bairro, de Vasco Pratolini, com dramaturgia de Fernando Heitor. Foi o segundo espetáculo que contou com música ao vivo (o primeiro fora Uma Terra de Paz), numa antestreia apresentada com o grupo Algozes, mais tarde denominado Xarabanda. Em 1983 – ano que marcou a saída do TEF dos serviços culturais da CMF, devido a prioridades de ordem política –, Fernando Heitor encenou Doce Pássaro da Juventude, de Tennessee Williams. Na impossibilidade de manter o grupo durante a presidência do edil João Fernandes, foi sugerida a formação em cooperativa, para o TEF poder concorrer aos diversos apoios existentes. Formaram a cooperativa Eduardo Luiz, António Plácido, Bernardette Andrade, Anita Abreu (que entrara em Doce Pássaro da Juventude), António Ascensão, Elmano Vieira, Henrique Vieira, Fernando Matta, Paulo Brazão, Fernando Heitor e Mavélia da Guia. Com a produção de Doce Pássaro da Juventude, ainda foi esboçado um plano para novas apresentações fora do TMBD. Porém, a logística inviabilizou a concretização da ideia. A 12 de abril de 1984, o TEF constituiu-se como cooperativa de responsabilidade limitada. Nesta condição, o grupo foi apoiado financeiramente pela Direção Regional dos Assuntos Culturais (DRAC) e pela CMF. Nesse mesmo ano, o Ateneu Comercial do Funchal (AtCF) recebeu o grupo, cedendo espaço para ensaios e espetáculos. O TEF apresentou-se como uma entidade cultural e artística de teatro, obtendo um apoio da Secretaria Regional de Turismo e Cultura (SRTC), através da DRAC. O guarda-roupa do grupo acabou por ser todo o espólio do grupo de teatro Os Cómicos, do qual Fernando Heitor fazia parte e que acabara de fechar as portas; foi o início dum extenso património que durante anos o grupo foi construindo. Nesse ano, estreou Nostalgia, a partir de vários autores, com dramaturgia e encenação de Fernando Heitor, um espetáculo de café-concerto que aconteceu na sala de bailes do AtCF. Abrilhantaram o espetáculo, em algumas apresentações, o bailarino Michel e a atriz Maria Emília Correia. Ainda em 1984, Fernando Heitor fez a dramaturgia e encenou A Andorinha e as Árvores Falantes, um projeto da autora Bernardette Falcão, com apoio da DRAC e com apresentações no TMBD. No ano de 1985, o TEF apresentou A Mosqueta, de Ângelo Beolco, com dramaturgia e encenação de Fernando Heitor, no palco do salão nobre do AtCF. Este trabalho foi o percursor dos espetáculos de itinerância por todo o arquipélago, concluindo mais tarde com uma apresentação no TMBD. Fernando Heitor regressou a Lisboa, mas não sem deixar a encenação de um espetáculo preparada (trabalho de cooperação entre o TEF e os grupos de teatro Colagem e 2+1), possibilitando a Eduardo Luiz a direção dos ensaios de As Criadas, de Jean Genet, com a assistência de Lília Bernardes e Ester Vieira (duas das intérpretes da peça). Neste mesmo ano, Eduardo Luiz iniciou o seu percurso como encenador residente no TEF. O grupo subiu ao palco do Casino da Madeira com um espetáculo para crianças: O Bosque Encantado, com textos, encenação e direção artística de Eduardo Luiz, integrado no Clube da Malta do Manel, uma rubrica da responsabilidade do Diário de Notícias (DN) da Madeira. Com encenação de Miguel Martins, Fantastomático, a partir da peça Kikerikist, de Paul Maar, espetáculo para crianças, estreou no AtCF, partindo depois em itinerância. Em 1986, estreou As Criadas, de Jean Genet, com encenação de Fernando Heitor e direção de ensaios de Eduardo Luiz. O Natal em Casa de Castafiore estreou também neste ano, com texto e direção artística de Eduardo Luiz e integrado no Clube da Malta do Manel. O Emigrante, de João França, pelo grupo de teatro Colagem, tornado sócio da cooperativa, e ainda As Maçãs de D. Abúndio, da autoria de Roberto Merino, foram trabalhos encenados por Eduardo Luiz para o público infanto-juvenil e que seguiram a linha da itinerância. Ainda em 1986 decorreu o 6.º CFA, dirigido por Eduardo Luiz, no Inatel. O 7.º CFA realizou-se em 1987 e foi dirigido por Raija Kaeste, no TMBD. Por sugestão do edil do município, João Dantas, o TEF voltou às instalações do TMBD e a CMF, através da Junta de Freguesia de S. Pedro, disponibilizou uma sala da escola primária da Carreira para sede do grupo. Estreou O Amoroso, a partir de O Morgado de Fafe Amoroso, de Camilo Castelo Branco, encenado por Eduardo Luiz, que assumira as funções de diretor artístico da cooperativa. O público infanto-juvenil contou também com o espetáculo O Grilo Perlimplim, com texto e encenação do grupo de teatro 2+1, que se apresentou no TMBD, e com O Avarento Maruf, de Norberto D’Ávila, com encenação de Eduardo Luiz, ambos em itinerância. Eduardo Luiz encenou um texto com adaptação e dramaturgia do próprio e de Ester Vieira: Teatroscópio, a partir de Paulo César. Este espetáculo foi a primeira tentativa de elaborar um projeto de teatro para a infância e a juventude. Ainda subiram ao palco Lembrar Pessoa… Conhecer os Nossos Músicos – um espetáculo poético com declamação e momentos musicais com direção de António Plácido – e Teatro Diaporama, com textos de vários autores, dirigido por Ester Vieira. Todos os espetáculos desse ano se realizaram no TMBD, com grande envolvência do grupo. Durante o ano de 1988, Eduardo Luiz encenou A Estalajadeira, de Carlo Goldoni, além de diversos projetos de bar: Café-Concerto I, II e III, bem como Theatron e Saltimbancos, ambos com textos de Karl Wallentin, Raymond Devos, Vasco Santana, entre outros. Encenou ainda um espetáculo de poesia: Noite de Poesia Madeirense, com textos de vários poetas selecionados por José António Gonçalves. O ano de 1989 é o ano em que A Farsa do Advogado Pedro Pantaleão – de um anónimo francês do século XV, com adaptação e encenação de Eduardo Luiz, a partir de Léon Chancerel – serviu como base para um trabalho de itinerância por todo o arquipélago. Seguiu-se a gravação de um teledramático – Um Dia Em Cada Ano – para a RTP Madeira, com texto de Lília Bernardes e realização de Paulo Valente. Ainda no mesmo ano, uma versão continuada do texto escrito para a RTP Madeira estreou no Festival de Teatro Madeirense promovido pelo Inatel, na Camacha, com o título de Gente e com encenação de Eduardo Luiz. Iniciou-se também o 8.º CFA, orientado por Eduardo Luiz e realizado nas instalações do TMBD. A companhia fez a reabertura do teatro municipal em 1990, após nova recuperação do edifício, levando à cena Os Fantasmas, de Eduardo de Filippo, com encenação de Eduardo Luiz, e Há Festa no Céu, a partir de um conto do Nordeste brasileiro e com encenação de Ester Vieira, para o público infantil. Gravou também, para a RTP Madeira, em vários episódios, o espetáculo Teatroscópio, num conjunto de programas para o público infanto-juvenil, com realização de Paulo Valente. Realizou ainda o 9.º CFA, orientado por Eduardo Luiz. No ano de 1991, o TEF montou dois espetáculos com textos de Raul Brandão: O Gebo e a Sombra e O Nojo da Vida. Este último integrou textos como “Eu Sou um Homem de Bem”, “O Rei Imaginário”, “O Avejão” e “O Doido e a Morte”. O TEF preparou ainda um espetáculo de itinerância –A Comélia de Espavento –, a partir de Ângelo Beolco, e o espetáculo A Bruxa Carpidim, de Fernando Passos, todos com encenação de Eduardo Luiz. O TEF retomou com A Bruxa Carpidim – projeto idealizado para estruturar um elenco fixo de atores para espetáculos regulares infanto-juvenis – organizando uma agenda de contactos com as escolas, de forma didática e com programas devidamente preparados para sensibilizar para a ida ao teatro. Promoveu em 1992 o 1.º [Diogo: esta alteração de romano para árabe foi confirmada? Idem abaixo] Encontro Regional de Teatro (ERG Teatro). O projeto Teatro para a Infância e Juventude começou a ganhar forma, com dois espetáculos encenados por Eduardo Luiz: Ana e o Pássaro Azul, de Roberto Merino, e As Aventuras do Príncipe de Zaratustra, de Carlos Manuel Rodrigues, onde se tornou visível a presença das escolas nos espetáculos que a companhia programava anualmente. As Preciosas Ridículas, de Molière, com encenação de Eduardo Luiz, completou a produção definida para aquele ano artístico. Em 1993, o 2.º ERG Teatro realizou-se no TMBD. Deu-se a estreia de: Pluft o Fantasminha, de Maria Clara Machado; O Diabrete Encantado, de Manuel Couto Viana e Oscar Von Pfuhl; e A Maluquinha de Arroios, de André Brun – todos encenados por Eduardo Luiz. Com encenação e interpretação dos formandos do 8.º CFA, Élvio Camacho, Duarte Rodrigues e Miguel Vieira fizeram a montagem de Frémitos, Virgindade e Sucedâneos, com textos de August Strindberg e Virgílio Martinho, utilizando diversos espaços do edifício do TMBD. Neste mesmo ano, em cerimónia realizada no teatro da Trindade, em Lisboa, o ator, diretor artístico e encenador Eduardo Luiz foi galardoado com o prémio Miguel Torga, com o título de Mérito ao Teatro Amador, juntamente com Joaquim Benite e Carlos Oliveira. No ano de 1994, numa encenação de Eduardo Luiz, o TEF apresentou, no palco do TMBD, O Dragão Atchim, de José Jorge Letria, e História para Um Tesouro de Natal, de Roberto Merino e José Vaz, para as crianças. Esta última obra foi gravada posteriormente para a RTP Madeira, com realização de António Plácido. Uma nova versão, em oito sketches, do original Teatroscópio foi estruturada para os programas ao vivo no palco do TMBD, integrados no programa infantil O Comboio Corre. O espetáculo para itinerância Quase por Acaso Um Emigrante – a partir de João França, que se manteve em reportório até 1997 – e um outro integrado nas comemorações do aniversário do teatro municipal – O Homem no Seu Berço Natal, sobre Baltazar Dias, também de João França –, ambos com encenações de Eduardo Luiz, definiram um ano artístico que incluiu As Vedetas, de Lucien Lambert, em mais uma encenação experimental de dois formandos do 8.º CFA: Miguel Vieira e Duarte Rodrigues. Concluiu-se o ano artístico com a realização do 3.º ERG Teatro e – integrado no projeto de itinerância – a peça Quase por Acaso um Emigrante, de João França e encenação de Eduardo Luiz, apresentou-se no teatro Circo, em Braga. Os ensaios passaram a decorrer no auditório do jardim municipal. Foi no ano de 1995 que, no palco do TMBD, o TEF apresentou O Chapeuzinho Vermelho, de Maria Clara Machado. A Floresta dos Sonhos, a partir de Mendes de Carvalho e Orlando Neves, marcou a estreia da companhia no cineteatro municipal de S.to António (daqui por diante, Cineteatro), cedido pela edilidade para residência artística do grupo. Ainda para o público adulto, seguiu-se a estreia de A Excomungada, de Bernardo Santareno, e de A Boda, de Bertolt Brecht. As quatro encenações do ano artístico ficaram à responsabilidade de Eduardo Luiz. No ano de 1996, teve lugar o 10.º CFA, por Eduardo Luiz. Estrearam: O Natal do Gato Amarelo, de Marcela Costa; Antes… Que a Noite Venha, de vários autores; O Papão e o Sonho, de José Jorge Letria (gravada posteriormente para a RTP Madeira, com realização de António Plácido); e Soprou Vento Leste, de Lília Bernardes, que se manteve em itinerância até 2006 – todas encenações de Eduardo Luiz. O TEF, em 1997, celebrou um contrato-programa com a RAM, através da Secretaria Regional do Plano e da Coordenação e da SRTC, passando a receber um subsídio anual e a contar com uma nova sede para o funcionamento integral das suas atividades. Estreou as peças Big Bang – Missão (Im)Possível, de Kiko Palmeira, e Hakim – O Contador De Histórias, de Norberto D’Ávila, ambas com encenação de Eduardo Luiz. Subiram à cena no TMBD A Ilha de Arguim, de Francisco Pestana (mais tarde gravada para a RTP Madeira, com realização de António Plácido) e o recital Fugas – Sons, Palavras e Movimentos, com seleção de textos de Fátima Marques, ambas com encenação de Eduardo Luiz. Em dezembro de 1998, a sede passou da rua nova de S. Pedro para o centro cívico Edmundo Bettencourt. Com o apoio do Inatel e do departamento cultural da CMF, realizou-se o 4.º ERG Teatro. Ocorreu também o 11.º CFA, dirigido por Eduardo Luiz. Estrearam: A Viagem De Um Barquinho, de Sílvia Ortoff, com encenação e adaptação de Cíntia (Kiko) Palmeira, no Cineteatro; No Limiar da Loucura, de Michel de Ghelderode, com encenação de António Plácido, e A Ilha Dos Escravos, de Marivaux, com encenação de Élvio Camacho, ambas apresentadas no TMBD. Estrearam ainda A Outra História da Carochinha, de Natália Teles, com encenação de Ester Vieira; e O Enterro, de Fernando Augusto e encenação de Carlos Cabral, no Cineteatro. Em 1999, o Estabelecimento Prisional do Funchal e o TEF celebraram um protocolo de serviços. Estreou Era uma Vez... Duas Histórias Duma Vez, de António Manuel Couto Viana, com encenação de Miguel Vieira. Foi um espetáculo infanto-juvenil representado durante três semanas no TMBD, alcançando 9000 espetadores. Estreou também o espetáculo de café-concerto Strip – Apêndice de Humores, de vários autores, e Iria E. Biritá, de Magda Paixão, ambos com encenação de Eduardo Luiz e representadas no Cineteatro. No ano de 2000, realizou-se o 5.º ERG Teatro. O grupo, ao fim de 25 anos, registou uma série de espetáculos e de outras atividades que lhe permitiram estruturar de maneira diferente os seus serviços. A designação de “Companhia Teatro Experimental do Funchal” surgiu como forma de definir o grupo, constituindo para isso um elenco artístico para os espetáculos infanto-juvenis. Estrearam novas produções: O Noivado, de Almeida Garrett, com encenação de Márcia das Dores, no palco da Juventude Antoniana; e Ema, a partir do romance de Maria Teresa Horta, com dramaturgia e encenação de Duarte Rodrigues, no teatro municipal. No Cineteatro ocorreram os seguintes espetáculos: O Feiticeiro De Oz, de Lyman Franck Baum e encenação de Kot-Kotecki, para o público infanto-juvenil; As Rosas Suicidam-se, de Ramon Gómez de la Sierra (baseado na tradução de Jorge Silva Melo), com encenação de Bruno Bravo e Élvio Camacho, em itinerância até 2001; e A Tia Proezas, de Magda Paixão, com encenação de Eduardo Luiz. Os seguintes espetáculos definiram o ano artístico de 2001: O Planeta De Cristal, com autoria e encenação de Fátima Rocha, e Pastéis de Nata Para a Avó, de Fernando Augusto, com encenação de Eduardo Luiz, ambos no TMBD; A Menina do Sorriso Branquinho, de Magda Paixão, com encenação de Eduardo Luiz, no jardim municipal; À Porta Fechada, de Jean Paul Sartre, com encenação de Kot-Kotecki, também no TMBD; e A Canção Do Realejo, com autoria e encenação de Ester Vieira. No ano de 2002, fizeram parte da programação: Um Gil, Agora o Direi, com textos de Gil Vicente, compilação e encenação de Carlos Cabral, integrado nas comemorações vicentinas no TMBD; A Máquina Do Tempo, de Natália Teles, com encenação de Fernando Augusto; Max, espetáculo de improvisação dirigido por Fabrizio Pellagatti; As Aventuras Do Pinóquio, a partir de Carlo Collodi, com encenação de Kot-Kotecki; Mééé, Tudo É Como É, com textos de Fernando Pessoa e do seu heterónimo Alberto Caeiro, com encenação de Élvio Camacho e Paula Erra. Estes espetáculos mantiveram-se em itinerância até 2009. No ano artístico de 2003, quatro espetáculos se destacaram: Caminhos em Lama, de Magda Paixão, com encenação de Eduardo Luiz para palco (mais tarde gravado para a RTP Madeira, com realização de António Plácido); Quem Tem Medo de Anton Tchékhov, de Anton Tchékhov, com encenação de Bruno Bravo; Atirem-Se ao Ar, de António Torrado e com encenação de Rui Sérgio; e O Circo dos Bonecos, de Oscar Von Pfuhl e com encenação de Eduardo Luiz. Subiram à cena em 2004: A Menina Do Sorriso Branquinho, de Magda Paixão, com encenação de Eduardo Luiz (reposto no jardim municipal); Audição com Daisy ao Vivo no Odre Marítimo, de Armando Nascimento Nóbrega, com encenação de Eduardo Luiz, no TMBD; Maria Minhoca, de Maria Clara Machado, com encenação de Kot-Kotecki; e Rometa e Juliú, com versão cénica de Eduardo Luiz e Magda Paixão, a partir do texto de Yara Silva, com encenação de Eduardo Luiz. No ano de 2005, o TEF acolheu a teatroteca Fernando Augusto, um espólio de livros e revistas de teatro do ator Élvio Camacho. Subiram à cena no TMBD: O Tartufo, de Molière, com encenação de Bruno Bravo; e Matemáticas Assassinas, de Magda Paixão, a partir de Kjartan Poskitt, com encenação de Eduardo Luiz, Os espetáculos definidos no plano artístico foram: Atores de Boa-Fé, de Marivaux, com encenação de Kot-Kotecki; e Lianor no País Sem Pilhas, de Armando Nascimento Rosa, com encenação de Élvio Camacho. O TEF foi nomeado para a 1.ª Gala da RTP-DN, onde foi galardoado com o troféu vencedor, na categoria Teatro. Foi em 2006 que a natureza jurídica do TEF passou para “associação cultural sem fins lucrativos”. Estrearam nesse ano: Zaragata no Calhau, de Carlo Goldoni, com encenação de Élvio Camacho, no TMBD; A Princesa Dos Pés Grandes, de Natália Teles, com encenação de Élvio Camacho; e O Patinho Feio, a partir de Maria Clara Machado e Hans Christian Andersen, com encenação de Eduardo Luiz, no Cineteatro. A 19 de dezembro, o Governo Regional da Madeira homenageou o TEF “pelos relevantes serviços prestados na área da cultura”. Em 2007, foi atribuído à associação o estatuto de “utilidade pública de pessoa coletiva”. Produziram-se diversos espetáculos, como: Verdes Aventuras de D. Quixote, de Fernando Augusto e com encenação de Élvio Camacho; Credo, de Craig Lucas, com encenação de Élvio Camacho; e, com encenação de Eduardo Luiz, Branca Como A Neve, mais uma produção para o público infanto-juvenil, com texto e dramaturgia de Magda Paixão, a partir do original do encenador. Zaragata no Calhau foi reposta no Cineteatro. No ano de 2008, estreou-se Strip, Bang-Bang – Mixórdia do Gargalho, de vários autores, com encenação de Eduardo Luiz. Para as comemorações dos 500 anos da cidade do Funchal, montou-se no TMBD um espetáculo a partir de Thornton Wilder: A Nossa Cidade, com encenação de Élvio Camacho. O ano artístico completou-se no Cineteatro com Histórias da Deserta Grande, de José Viale Moutinho, e Aventura no Funchal, de Avelina Macedo, também com encenações de Élvio Camacho. Apresentou-se em 2009: Greve de Sexo, de Aristófanes, com encenação de Élvio Camacho, no TMBD e no Cineteatro; O Pomar de D. Abundância, a partir de Roberto Merino; e Amigos e Diabretes, com versão de Eduardo Luiz e Magda Paixão, a partir de Kikerikiste, de Paul Maar, com encenações de Eduardo Luiz. No ano de 2010, durante as comemorações do centenário da República, o TEF estreou: O Conde Barão, de Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes e João Bastos, com encenação de Eduardo Luiz, no Cineteatro (reposto ainda nesse ano, no TMBD); Zé Pateta, Zé Poeta, de Natália Teles, com encenação de Élvio Camacho; e O Príncipe que Queria um Castelo no Ar, de Avelina Macedo, com encenação de Eduardo Luiz. Em 2011, foram apresentados os seguintes espetáculos: A Mandrágora, de Maquiavel, e A Estrela Perdida, de Magda Paixão, a partir do conto de Francisco Fernandes, com encenações de Eduardo Luiz; Madeira My Dear, a partir de Ernesto Leal, que se manteve em itinerância até 2013; e Vampirilda, de Paulo Sacaldassy, com encenações de Élvio Camacho. Os espetáculos da temporada artística de 2012 foram: Schweik na Segunda Guerra Mundial, de Bertolt Brecht, com encenação de Élvio Camacho; O Príncipe com Orelhas de Burro, a partir de Fernando Passos, com encenação de Eduardo Luiz; O Amansar da Fera, de William Shakespeare, com encenação de Diogo Correia Pinto; Os Prisioneiros, a partir de Mário Golen, com encenação de António Plácido; e Um Bolo de Mel para o Cusca, de Magda Paixão, com encenação de Eduardo Luiz. A teatroteca Fernando Augusto deixou a associação devido à dificuldade de gestão desse fundo. No ano de 2013, com dramaturgia e encenação de Diogo Correia Pinto, estrearam: Dramas e Papaias, em parceria com o grupo QuandoéqueteCalasTeatro, e, com produção do TEF, O Avarento, de Molière. Estrearam ainda: Hakim e a Arca de Sândalo, a partir de Norberto D’Ávila; e Big-Bang, Missão (Im)Possível, de Cíntia Palmeira (versão diferente da apresentada em 1997), com dramaturgia e encenação de Eduardo Luiz. Durante o ano artístico de 2014 o TEF apresentou: A Vizinha do Lado, de André Brun, com encenação de Eduardo Luiz; As Três Cidras do Amor, de Yvette K. Centeno, com encenação de Duarte Rodrigues; e A Gata Borralheira, a partir de Maria Clara Machado, com encenação de Eduardo Luiz. Até julho de 2015, subiu à cena Uma Freira dos Diabos, a partir de Miguel Mihura, e Tio Elvão e a Boneca Abandonada, de Eduardo Luiz, a partir de Alphonse Sastre, ambos com dramaturgia e encenação de Eduardo Luiz. Em 2015, faziam parte da associação Eduardo Luiz, António Plácido, Pedro Cabrita, Emanuel Abreu, Paulo Renato, Duarte Rodrigues, Norberto Ferreira, Mário Bettencourt, Eugénio Cabral, Sílvia Marta, Ester Vieira, Magda Paixão, Márcia das Dores, Margarida Gonçalves, Ana Graça, Ana de França, Henrique Vieira, Maria dos Anjos, Cristina Loja e Carlos Pereira. Pela direção artística passaram: entre 1975 e 1978, Orlando Costa e Leopold Kielanowsky; entre 1978 e 1983, Roberto Merino; entre 1983 e 1985, Fernando Heitor; entre 1985 e 2015, Eduardo Luiz (em parceria com Élvio Camacho entre 2005 e 2012). Dentro da área de interpretação, o TEF contou com os seus sócios e com outros intérpretes, quer independentes, quer de outros grupos de teatro. Desde os anos 1990 até julho de 2015, conforme os arquivos existentes na associação, assistiram aos espetáculos do TEF mais de 428.000 espetadores, perfazendo uma média, nos últimos 25 anos, de 17.000 espetadores por ano. Dos 134 espetáculos produzidos desde a sua formação, 62 foram especificamente para o público infanto-juvenil. O grupo apresentou um variado género de espetáculos: performances e instalações teatrais, bem como animação, teatro e poesia de rua. Na sede do grupo, situada no centro cívico Edmundo Bettencourt, além dos serviços administrativos, encontrava-se também, em 2015, o espólio de guarda-roupa e adereços do grupo, assim como um pequeno salão para ensaios, formações e trabalhos. No Cineteatro, local para ensaios e espetáculos, mantinha-se armazenada parte do material cenográfico, assim como toda a sua aparelhagem de luz e som. Desde 1984 até 2015, o grupo obteve diversos apoios sendo o Governo Regional através da DRAC, o seu principal patrocinador. Entre 2012 e 2014, o TEF usufruiu de um apoio subsidiário de 20.000 € por ano e da cedência do espaço onde funciona a sede da associação. A CMF, por seu lado, tem apoiado com a cedência do Cineteatro. O TEF tem contado também com apoios de várias empresas em géneros, que faz diminuir em muito os custos de produção. A existência de um património que foi sendo acumulado ao longo dos 40 anos de atividade teatral permitiu-lhe continuar a montar peças de teatro a baixo custo, contando também com a colaboração gratuita de artistas e técnicos de todas as áreas. O TEF promoveu várias oficinas de formação para artistas e para a comunidade (crianças, jovens e adultos) em diversas áreas de teatro, contando com professores e artistas da associação, do país e do estrangeiro. Apoiou animações culturais, diversos grupos de teatro na RAM e instituições de solidariedade social. Contou, no seu percurso, com a colaboração do AtCF, do Inatel, da Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa, do teatro nacional D. Maria II, da Secretaria Regional da Educação e da Escola Profissional de Artes e Ofícios do Espetáculo Chapitô. Desde 1999, apoiou o Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira Eng.º Luiz Peter Clode no empréstimo e cedência de adereços, de guarda-roupa e de espaços para as apresentações dos exercícios práticos do Curso Profissional de Artes do Espetáculo – Interpretação. Sob parceria protocolar, os formandos do 3.º ano realizaram a sua formação em contexto de trabalho, através de um estágio, integrando um dos espetáculos do TEF. Apoiou também diversas entidades (escolas, juntas de freguesia, grupos de teatro e privados), emprestando adereços e guarda-roupa, e cedendo espaços para ensaios e apresentações. Em 1997, iniciou o programa de rádio A Voz do Teatro (mais tarde Bastidor), emitido durante 17 anos (inicialmente no posto emissor do Funchal e, mais tarde, na RDP Antena 2). Os principais objetivos e a missão da associação – além dos mencionados estatutariamente, através do seu grupo TEF e do seu núcleo de formação para crianças, jovens e adultos (Núcleo de teatro infantil Tefos [ex-Tefinhos], grupo de teatro juvenil e 12.º CFA) – foram sempre sensibilizar e promover o teatro no arquipélago da Madeira, centrando-se no teatro para a infância e a juventude e num trabalho de itinerância, de forma a abranger os diversos níveis etários, sociais e intelectuais. A companhia estabeleceu o seu trabalho artístico de forma eclética, estruturando-o pontualmente, tendo sempre em atenção a atualidade, o tipo de público e o seu conhecimento de teatro e das suas obras. Eduardo Luiz (atualizado a 04.10.2016)

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alçadas

Infante D. Henrique Leopoldo de Almeida   A justiça era o atributo máximo dos reis; em relação à Madeira, logicamente, e dada a distância e descontinuidade territorial, foi de início delegada, mas parcialmente, nos representantes dos monarcas. Primeiro, no donatário, o infante D. Henrique (1395-1460), e nos seus capitães, pois o Rei D. João I, na doação do arquipélago ao infante, a 26 de setembro de 1433, reservara para a coroa o princípio da maioria da justiça e da cunhagem da moeda. Depois, nos capitães do donatário e, logo, também nas vereações camarárias, que eram ainda um tribunal; mais tarde, igualmente nos ouvidores e corregedores, eles próprios “com alçada”, ou seja, com determinado âmbito de jurisdição. Denominavam-se alçadas, antigamente, os tribunais coletivos e ambulantes que, percorrendo o território, administravam a justiça em nome do rei. Escreve António de Morais Silva, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, a partir de Vida do Arcebispo de frei Luís de Sousa, que “chamamos alçada a uns tribunais ou casa de justiça, que constam de presidente e companhia, e autoridade de ministros, os quais em forma de ‘Relação’ discorrem por todos os povos com poderes reais, como em visita geral, a desfazer agravos, castigar insultos, tolher forças e humilhar poderosos, que mal usam do seu poder” (SILVA, 1949, I, 568). O termo é, ainda, sinónimo de competência, jurisdição, limite de ação e influência, e aplica-se igualmente à Igreja (Auditório eclesiástico, Jurisdição eclesiástica). Certamente, não com a frequência com que ocorreu com a jurisdição real e não-alçadas eclesiásticas vindas do reino, cuja competência canónica era muito restrita na diocese do Funchal, nem de Roma, cuja distância colocava a Ilha a coberto de uma intervenção desse género através do prelado diocesano, que, face a queixas recebidas e a informações transmitidas pelos seus visitadores, e encontrando-se por vezes em Lisboa, determinava o envio de alçadas a várias freguesias da Madeira. Assim aconteceu com a maioria dos prelados, primeiro, pessoalmente e, depois, por delegados, com especial relevância no caso de D. Fr. Manuel Coutinho (1673-1742) (Jacobeia). Inclusivamente, o bispo possuía prisão própria para os chamados delitos de foro misto, o aljube, sendo os eclesiásticos presos na torre da Sé, embora também tenha havido não eclesiásticos aí detidos. Nos meados do séc. XV, aparecem de imediato na Ilha elementos com determinadas alçadas ou jurisdições enviados pelo donatário como ouvidores, surgindo os primeiros a pedido dos moradores, para uma mais eficaz e correta aplicação da justiça. O primeiro ouvidor do duque D. Fernando (1433-1470), sobrinho e herdeiro do infante D. Henrique, foi Dinis Anes da Grã, nomeado a 10 de maio de 1466 e enviado a pedido dos procuradores da Ilha, então Mem Rodrigues de Vasconcelos, fidalgo da casa do duque, e Gonçalo Anes de Velosa, escudeiro, que o solicitaram por entenderem ser necessário “mandar prover sobre a justiça e boa governação” da Madeira (ARM, Câmara Municipal do Funchal, Registo geral, tombo 1, fls. 134-135). A jurisdição ou alçada de Dinis Anes da Grã, sob a forma de regimento ou de carta, com competência em ambas as capitanias, Funchal e Machico, permitia-lhe realizar a eleição dos juízes e oficiais do concelho, encarregar-se de “todos os feitos crime que a mim pertencer livrar, e cíveis, que forem sobre dívidas e contratos, e outros feitos semelhantes, ora sejam começados ou por começar”, como escreveu o duque, determinando ainda que “os despacheis”, para “livres, sem mais, virem a mim” (Id., Ibid.). Competia-lhe também decidir conjuntamente com o capitão e o almoxarife sobre “os feitos e demandas” relativos às águas e “doações de terras”, e quando estivesse em desacordo com o capitão nessas matérias, deveria fazer registo de tudo para ser presente ao duque-donatário (Id., Ibid.). Não sabemos quanto tempo Dinis da Grã esteve na Ilha. Ainda aí se encontrava a 4 setembro desse ano de 1466, quando o duque enviou uma carta ao mesmo ouvidor sobre a coutada a estabelecer no Funchal para “os bois de arado e bestas de servidão”, dado que para o trabalho das sementeiras não havia “bois que os possam servir” e que seria situada acima da praia Formosa (Ib., Ibid., fls. 136-136v.). O ouvidor faleceu, entretanto, mas não sabemos se na Madeira. Com efeito, em carta de 6 de agosto de 1468, sobre a jurisdição do Funchal em relação ao lugar de Câmara de Lobos, já o duque refere que “umas posturas que Dinis Anes da Grã, meu ouvidor que Deus perdoe”, tinha dado aos moradores daquele lugar atribuía-lhes determinadas prerrogativas sobre “penas e coimas”, pelo que os mesmos moradores entendiam não ter de participar na procissão de Corpo de Deus da vila do Funchal, determinando-se então que eram parte integrante da mesma vila, devendo obediência à dita (Id., Ibid., fls. 270-271). Simão Gonçalves da Câmara_1527-1531   Com o falecimento do infante e duque D. Fernando, em 1470, assumiu a administração da Ordem de Cristo a infanta D. Beatriz (1430-1506). Na menoridade dos seus filhos, enviou também logo ouvidores com idêntica alçada, designadamente Luís Godinho, em 1478, que serviria depois sob a administração do duque D. Manuel (1469-1521). Seguiu-se, em 1485, Brás Afonso Correia e, em 1493, Fernão de Parada. Nos anos sequentes, subindo D. Manuel ao trono e integrando a Madeira na coroa “para sempre”, a 27 de abril de 1497 (Id., Ibid., fls. 272-273v.), face ao protagonismo excessivo assumido pelo Cap. Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530) (Câmara, Simão Gonçalves da) e a arbitrariedades várias, houve que proceder de uma outra forma, enviando especificamente um corregedor, que veio a suspender aquele capitão e os seus ouvidores. Já antes, o rei D. Manuel, logo após o falecimento do segundo capitão do Funchal, João Gonçalves da Câmara (1414-1501), fizera partilhar a capitania do Funchal, criando mais duas câmaras: Ponta do Sol, em 1501 e Calheta, em 1502. Depois, em 1508, estando a “igreja grande” do Funchal quase pronta e sagradas as suas paredes, elevou a antiga vila a cidade e ainda, em 1514, conseguiu de Roma a elevação a sede de diocese para a mesma, medidas que fizeram diminuir progressivamente o referido protagonismo local do terceiro capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, que veio a ter o cognome de O Magnífico. Porém, tendo chegado a Lisboa queixas da sua atuação, o rei despachou para a Ilha, a 20 de fevereiro de 1516, Diogo Taveira, em correição, que suspendeu o dito capitão do Funchal. As queixas não eram recentes e já o anterior corregedor, Álvaro Fernandes, enviara ao rei, a pedido do mesmo, a 8 de julho 1504, um auto com o rol das dívidas do capitão. Mais tarde, em carta de 25 de outubro de 1515, também a Câmara do Funchal se queixava da intromissão do capitão nos seus assuntos e na jurisdição dos seus ministros. Simão Gonçalves da Câmara tomou a chegada do corregedor como uma afronta e ingerência nos assuntos da sua capitania, queixando-se às instâncias superiores do reino, invocando estar na posse da jurisdição do cível e do crime, sem dar apelação nem agravo, exceto nas sentenças de morte e talhamento de membro, como constava da sua confirmação à frente da capitania, pelo que não via razão para a sua suspensão e dos seus ouvidores. A 8 de outubro de 1516, o corregedor escreveu ao rei, dando conta das diversas irregularidades, nomeadamente fraudes à Fazenda cometidas pelos rendeiros, falta de administração da justiça e demoras nas demandas. Entretanto, também a Câmara se queixava do aumento da tabela dos selos determinada pelo capitão, que subira o imposto de 9 para $036 réis, provocando assim um substancial aumento das suas receitas, pelo que D. Manuel, a 6 de abril de 1517, ordenou ao corregedor que inquirisse dessa ocorrência e não consentisse o aumento. O Cap. Simão Gonçalves da Câmara, logo em 1516, perante a gravidade das acusações recolhidas pelo corregedor, saiu da Ilha com intenções de passar a Castela. No Algarve, terá tido conhecimento de que os reis de Fez e de Mequinez apertavam o cerco a Arzila, mandando organizar um socorro, após o que se instalou em Sevilha, onde ficou a aguardar notícias de D. Manuel. O rei pareceu sensibilizar-se com este rasgo imprevisto e até grandioso e, para não o ver ao serviço de Castela, “escreveu-lhe uma carta com grandes promessas e esperanças de lhe fazer as honras e mercês que tais serviços mereciam, mandando-lhe que viesse logo e tornasse para o reino que ele o despacharia conforme os seus merecimentos” (FRUTUOSO, 1968, 246-247). Mas isso escreveu Jerónimo Dias Leite e transcreveu, depois, Gaspar Frutuoso, assim tentando justificar a conduta do capitão do Funchal, pois o mesmo, em princípio, não voltou à Madeira, tentou vender a capitania e veio a falecer em Matosinhos, em 1530. Nas décadas seguintes, e no âmbito da história da Madeira, o termo “alçada” indica, especialmente, a chegada de um corregedor do desembargo régio com pessoal ao seu serviço, em resposta a um desmando grave ocorrido na Ilha e que alcançara ao conhecimento da corte. A partir dos finais do séc. XVI, o governador passou a ir à Madeira acompanhado de um corregedor; e, em 1681, o Rei começou a nomear também um juiz-de-fora para a Câmara com funções de correição, similar ao provedor que atuava na esfera da Fazenda. Mas a opção foi para desfasar temporalmente os períodos de estadia dos governadores e dos corregedores, que passaram a responder autonomamente à corte de Lisboa e, durante a União Ibérica, também à de Madrid; assim, estes dois elementos passaram a encarnar os lugares cimeiros da administração periférica da Coroa, vindo a ser designados, amiúde, ministros do Rei, tal como consta em muita documentação coeva. Nos finais do séc. XVI, em 1597, o vice-rei bispo de Leiria, D. Pedro de Castilho, que fora bispo de Angra, enviou o corregedor André Lobo, “do desembargo de S. Majestade, el-rei e com alçada nestas ilhas”, à Madeira. André Lobo tomou posse a 26 janeiro de 1598 e compareceu no Funchal nos últimos dias do ano, tendo-se apresentado na Câmara a 1 de janeiro de 1599. Com este corregedor produziu-se um dos acontecimentos mais marcantes da organização governativa insular, ocorrido com a saída da Ilha do governador Diogo de Azambuja de Melo, em meados de outubro de 1599.   Membros do senado camarário_1821   Assim, a 31 de outubro, reuniram-se os vereadores na sede da Câmara, então nas traseiras da sé, com o bispo do Funchal, D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), o desembargador André Lobo, os vereadores camarários, “fidalgos, gente da governança e capitães” do presídio, “e saiu o bispo”, por 21 votos contra os 9 que teve o desembargador (ARM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações 1599-1600, liv. 1314, fls. 45-47). A eleição faria jurisprudência na administração madeirense e, nos casos seguintes, não houve sequer votação, sendo o governo entregue, de imediato, ao prelado; esta situação do prelado como governador foi, depois, confirmada pela corte de Lisboa.     Vereadores da Câmara do Funchal em uniforme de gala-1816-1821   A primeira alçada do séc. XVII ocorreu em 1606, com o envio do desembargador António Ferreira, face às informações chegadas a Lisboa de que o governador João Fogaça d’Eça, descendente de Zarco, se recusara a expulsar quatro holandeses que viviam na Ilha, acusados de serem “correspondentes de rebeldes” (AGS, Secretarias Provinciales, liv. 1476, fl. 41). A indicação fora dada por Filipe III de Castela e configura um certo desnorte do governo, entre Madrid e Lisboa, com ordens e contraordens, acabando o governador por não ser suspenso, mas vindo a ser indiciado, em seguida, o do Porto Santo, Diogo Perestrelo Bisforte, a de 31 de outubro do mesmo ano, sendo impedido de continuar o exercício do cargo somente na alçada seguinte e tendo tido então ordem para se fazer apresentar na corte. Ao longo da primeira metade do séc. XVII e na vigência do governo filipino, foram, ainda, enviadas para a Ilha as alçadas do desembargador Simão Cardoso Cabral, em 1610; do desembargador da Casa da Suplicação, Gonçalo de Sousa, em 1614; do desembargador da Relação do Porto, Estêvão Leitão de Meireles, em 1627; e do desembargador da Casa da Suplicação, Ambrósio de Sequeira, em 1634. Estavam em causa, essencialmente, questões gerais de justiça que iam sendo notícia nas cortes de Lisboa e de Madrid, como queixas de assassinatos e, também, queixas relacionadas com o desvio de dinheiros da Fazenda, aspeto a que essas cortes estavam bastante mais atentas. A última alçada visou a cobrança do “donativo” ou “empréstimo” para o socorro do Brasil no valor de 30.000 cruzados (AGS, Secretarias Provinciales, liv. 1527, fl. 112v.; ANTT, Corpo Cronológico, parte 1, mç. 119, doc. 43; ARM, Câmara. Municipal do Funchal, Vereações, liv. 1327, fl. 31v) e revela já alguns aspetos do levantamento geral que ocorria em Portugal contra o governo filipino. Face àquele pedido, a 18 de fevereiro de 1637, os representantes dos vinte e quatro mesteres do Funchal (Casa dos 24) apresentaram mesmo em Câmara uma contestação à nova contribuição; ela começa com a declaração seguinte: “A mais natural obrigação que têm os senhores reis e príncipes católicos é não usurparem aos seus povos e vassalos, etc., aqueles privilégios, leis e isenções que os seus” antecessores haviam dado (ARM, Registo geral, tombo 3, fls. 19v.-20v.). Pediam, assim, que as suas “razões de justa escusa” fossem levadas ao conhecimento do rei, pois, “por particulares erros, não por ofensas públicas, que nunca as houve nesta Ilha contra o serviço real”, tinham sido castigados, desde 1615, “com três rigorosíssimas alçadas, com cujos custos não têm ficado aos moradores cabedal algum para acudirem às suas notórias e extremas necessidades” (Id., Ibid.). Os custos das alçadas caiam, logicamente, sobre os moradores, incluindo a residência do desembargador e do seu pessoal. Desta realidade já se havia queixado o governador D. Francisco de Sousa, em 1628, pedindo que fosse abreviado o tempo das alçadas, geralmente de três anos, mas, por consulta de 30 de janeiro de 1629, o seu requerimento não teve despacho favorável. A provisão régia de nomeação do desembargador Leitão de Meireles, p. ex., estipulava 1$000 réis por dia para o desembargador, $500 para o escrivão, $600 para o meirinho e mais $160 para cada homem armado, tudo ao dia, montantes que deveriam ser pagos pelos culpados, podendo-se fazer execução das suas fazendas. Mais tarde, em 1653, ao corregedor Dionísio Soares de Albergaria, determinava-se um salário de 1$200 réis por dia à custa da fazenda dos culpados executados; não havendo culpados ou não os podendo executar, seriam pagos 1$000 pela Fazenda Real. Grande parte destas averiguações corriam por denúncia, sendo os indiciados imediatamente espoliados dos seus bens e, não se confirmado depois as acusações, dificilmente os recuperavam, havendo inúmeras queixas a este respeito. A opinião dos representantes dos mesteres na Câmara do Funchal, alegando que “ofensas públicas” “nunca as houve nesta Ilha contra o serviço real”, está muito longe de corresponder à realidade, pois sempre existiram e continuariam a existir. Nos finais do séc. XVI, p. ex., organizou-se no Funchal, durante a noite, uma “matraca” contra o desembargador André Lobo (ANTT, Chancelaria de Filipe II, Perdões e legitimações, liv. 3, fl. 108), na qual terá estado envolvido o poeta e novelista Tristão Gomes de Castro (1539-1611) (Alferes-mor), que veio a ter carta de perdão pela acusação a 30 de março de 1605. Mais tarde, o desembargador Gonçalo de Sousa, temendo um atentado, deixou a cidade do Funchal para se refugiar em Machico, como refere, posteriormente, o provedor da Fazenda Francisco de Andrade, em carta de 30 de agosto de 1646, acrescentando que, depois, dois meirinhos e quatro homens da alçada do corregedor Ambrósio de Sequeira tinham sido violentamente atacados e ficado feridos. A 21 de outubro de 1628, os mercadores da cidade também tinham organizado “duas mangas de gente armada com cevadeiros de pedras e fundas” contra o desembargador Leitão de Meireles, ação que culminou com uma surriada e lançamento de imundices à porta deste e que incluiu a colocação de papéis “difamatórios” em vários locais da cidade (VERÍSSIMO, 1995, 262). Nos tumultos tinham estado envolvidos Francisco do Couto e Almeida, perdoado a 11 de outubro de 1640, e Manuel de Atouguia da Costa, que chegara a estar preso em Lisboa. A partir do final desse ano de 1640, a situação da ordem pública no Funchal piorou, não só em relação às questões da Fazenda, que motivaram a carta do provedor, mas também em relação a quase todos os poderes instituídos e, muito especialmente, aos “ministros do rei”. Após a aclamação de D. João IV, na organização dos festejos determinados pela Câmara, a 25 de janeiro de 1641, ocorreram uma série de tumultos graves. O edifício da Câmara foi invadido e foi eleita uma nova vereação; ocupou-se o edifício da Alfândega e foi demitido o provedor Manuel Vieira Cardoso, que teve de se refugiar no paço episcopal, sendo nomeando, por aclamação dita popular, um outro, João Rodrigues Teive. Registam-se, igualmente, tumultos contra o governador Luís de Miranda Henriques, acabando por ser nomeado, um ano depois dos acontecimentos, por provisão régia de 9 de fevereiro de 1642, o corregedor Gaspar Mouzinho de Barba, que se fez acompanhar pelo oficial Amaro Godinho Borges, apresentando-se ambos na Câmara do Funchal a 22 de março seguinte. Logo nesta apresentação, e perante o novo governador Nuno Pereira Freire, o juiz do povo Francisco Gomes solicitou que não se iniciasse a devassa antes de o governador cessante partir, para se poder apurar a verdade do que se passara. O corregedor Gaspar Mouzinho de Barba, no entanto, vinha também indigitado como provedor da Fazenda, com provisão datada de 6 de março de 1642, demitindo o provedor nomeado durante os tumultos de janeiro do ano anterior e iniciando uma série de averiguações que levaram a apurar diversas dívidas à Fazenda, especialmente, respeitantes ao comércio com o Brasil e de que conseguiu ainda recuperar algum dinheiro, em agosto. Deste mês em diante, continuaram a ser detetados outros atrasos nos pagamentos à Fazenda e, no final de dezembro, os vereadores Manuel Homem e Luís Manuel Leme da Câmara foram indiciados como tendo também dívidas e, inclusivamente, como tendo estado envolvidos nas nomeações populares para a Câmara e para a Fazenda realizadas em janeiro de 1641. Dada não apresentação de ambos ao corregedor e uma vez que tentaram refugiar-se na Câmara, aquele foi aos paços do concelho com o governador nos últimos dias de dezembro, interpondo-se Pedro Bettencourt de Atouguia, que, após curtas palavras, puxou da espada e atingiu o corregedor. Gaspar Mouzinho de Barba veio a falecer na sé do Funchal, ao lado da Câmara, para onde fora recolhido, registando o assento de óbito, de 29 de dezembro de 1642, ter sido aí “onde morreu e o ilustríssimo e reverendíssimo D. Jerónimo Fernando o mandou sepultar, e tudo se lhe fez grátis” (ARM, Registos Paroquiais, Sé, Óbitos, liv. 73, fl. 163). Em nota à margem, ainda se regista que “levantou-se o povo que andava desenfreado e lhe deram uma estocada. Não se confessou” (Id., Ibid.). Pedro de Bettencourt de Atouguia veio a ser preso no castelo do Pico, mas fugiu com a ajuda do pai, acolhendo-se no convento de S. Bernardino (Convento de S. Bernardino), em Câmara de Lobos, de que a família era padroeira, acabando por ali ficar como leigo e ao abrigo da justiça, passando depois ao oratório de S. Sebastião da Calheta, que ajudou a fundar, vindo a professar como frei José da Encarnação, falecendo no local. O bispo D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), conhecido como O Bravo, que ocupara por três vezes o lugar de governador, perante o caso e, acrescente-se, dado ter já uma certa idade, retirou-se para Lisboa, em finais de 1643, vindo aí a falecer; a diocese haveria de ficar em “sé vacante” durante mais de 20 anos. O rei D. João IV, numa primeira fase, condescendeu com a situação e, a 26 de janeiro de 1644, em carta ao governador, transcrita pelas câmaras do Funchal e de Machico e enviada ao cabido, recomendava que “se evitassem os efeitos de inimizades e ódios, ordenando-se às justiças que não procedessem contra pessoa alguma por coisas que sucedessem no tempo da sua feliz aclamação” (ARM, Câmara Municipal do Funchal, Registo geral, tombo 6, fl. 53; Id., Câmara Municipal de Machico, tombo 2, fls. 92-94; ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 4, doc. 17). À data, porém, não teria ainda conhecimento do assassinato do corregedor e, seis meses depois, a 28 de julho de 1644, como era hábito, enviou o juiz desembargador da Relação do Porto, Jorge de Castro Osório, com indicações especiais e ordem para investigar a morte do juiz corregedor anterior. Jorge de Castro Osório recebeu, na Madeira, o apoio do escrivão da alçada Amaro Godinho Borges, que, por uns tempos, chegara a servir como provedor da Fazenda. Faleceriam ambos num curto espaço de tempo, em princípio, envenenados: “mortos com peçonha”, como refere a mercê régia de D. João IV para a viúva do oficial de justiça e da Fazenda, concedendo dois lugares de freira para as filhas (Inventário dos Livros..., 1909, 110 e 213). Na Ilha, no entanto, refere-se apenas que morreram, como indicam os registos de óbitos da sé, de 17 de janeiro de 1646 e de 5 de maio seguinte, lendo-se, no primeiro: “Morre o Dr. Jorge Osório que andava em correição” (ARM, Registos Paroquiais, Sé, Óbitos, liv. 73). O rei não tomou, de imediato, medidas especiais, limitando-se a mudar o governador. Escolheu um fidalgo com fortes ligações familiares à Ilha e com propriedade na mesma, Manuel de Sousa Mascarenhas, esperando assim sanar os ânimos, mas tal não veio a acontecer. O governador Manuel de Sousa Mascarenhas teve patente a 22 de fevereiro de 1645 e compareceu na Madeira a 11 de abril, com ordens para inquirir sobre a ação do governador anterior, tal como viria a acontecer consigo e com os governadores seguintes. Em 1647, foi despachado para a Ilha Gaspar Machado de Barros, servindo de provedor da Fazenda; em 1653, Dionísio Soares de Albergaria, juiz com alçada e superintendendo também sobre os assuntos da Fazenda; e, em 1662, João Cordeiro Leitão, igualmente com alçada e ordens secretas. A situação de sé vacante e o início da monarquia absoluta, com questões específicas em relação à Madeira, colocaram o novo governador, D. Francisco de Mascarenhas, numa situação insólita. Com efeito, foi preso por um conjunto de fidalgos locais, a 18 de setembro de 1668, e encarcerado na fortaleza do Pico, tendo os revoltosos eleito um governador e enviado o deposto para o continente, o que nunca tinha acontecido na Madeira (Sedição de 1668). Pouco tempo depois, em 29 de março de 1669, aportou no Funchal o desembargador com alçada João de Moura Coutinho, com regimento especial para tirar residência ao governador-geral deposto. Seguiu-se Manuel Dourado Soares, a 1 de fevereiro de 1677, com regimento especial para tirar residência ao novo governador-general; depois, a 15 de janeiro de 1683, o desembargador com alçada Domingos de Matos Cerveira, superintendendo principalmente sobre assuntos da Fazenda. Nos inícios do séc. XVIII, em 1703, terá havido uma sedição contra o governador João da Costa de Ataíde e Azevedo Coutinho, “no salão da Índia da fortaleza de S. Lourenço”, “e uma conspiração que intentaram fazer os soldados”, “tentando tirar a vida” ao governador e ao juiz de fora da Câmara (ARM, Câmara Municipal do Funchal, Registo geral, tombo 7, fl. 254v.ss.). No atentado ao governador, terá estado envolvido o velho capitão de artilharia António Nunes, que se ausentou do Funchal, imediatamente a seguir aos acontecimentos. Por causa da sedição, o doutor desembargador Diogo Salter de Machado deslocou-se ao Funchal com poderes excecionais. Assim, para proceder às averiguações, fez sair da cidade o governador, “em distância de dez léguas, para que não fosse, com a sua presença e poder, assistindo” às mesmas e interferindo nelas (Id., Ibid.). Nas ordens do desembargador, vinha expresso: “e na mesma embarcação em que fores tirar esta devassa, voltará o provedor da Fazenda Manuel Mexia, por não ser conveniente que fique na Ilha depois da vossa chegada, para se não dar tempo a negociações, e por ser o dito provedor da Fazenda em mais suspeições” (Id., Ibid.). As questões terão sido muito graves e terão envolvido também o prelado da diocese, D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), pois ficou escrito no regimento do desembargador: “E a queixa contra o bispo deverá ser queimada, para dela não ficar nada, nem memória, e disso deverá ser dado conhecimento ao bispo, para o mesmo saber como o rei e as suas justiças tratam semelhantes casos” (Id., Ibid.), aspeto que passou ao lado dos autores do Elucidário Madeirense. As ordens para o desembargador e corregedor Salter de Machado foram passadas em janeiro de 1703, mas o mesmo só se apresentou na Ilha em junho. Entretanto, já tinha falecido, no Funchal, a 8 de março, o governador João da Costa Ataíde e já tinha tomado posse o novo governador, Duarte Sodré Pereira. Com o dito confronto, fora também designado um juiz-de-fora em Lisboa, em 1703, Francisco Torres Pinheiro, “que acabou de servir em Torres Vedras”, como se refere na nomeação e que tomou posse no Funchal, a 5 de maio de 1704, dado aquela comarca ser da repartição Estremadura e Ilhas (Id., Ibid.., fls. 252-252v.). A nomeação de um juiz-de-fora permanente para o Funchal obviou a necessidade de alçadas, embora, para Duarte Sodré Pereira, o principal problema residisse no Desembargo do Paço, sobre o que escreveu: “Deus me livre que ao Desembargo do Paço vão queixas, porque ou falsas ou verdadeiras, lá se não enjeitam” (ARM, Arquivos particulares, Copiador de cartas de Duarte Sodré Pereira). Com a crescente centralização do poder régio, a figura do juiz desembargador com alçada deixou de fazer muito sentido, vindo o gabinete pombalino a montar, progressivamente, as corregedorias e a suprimir as antigas ouvidorias (Ouvidorias), com a extinção das capitanias, entre outras. No entanto, a sua memória não se extinguiu no Desembargo do Paço, tal como alertou o governador Duarte Sodré Pereira, nos inícios do séc. XVIII. Assim, mais de 100 anos depois, dissolvidas as cortes e derrogada a constituição de 1822, sendo restabelecido o governo absoluto, em julho de 1823, a Madeira foi de novo alvo de uma alçada. Em causa estavam as questões das lojas maçónicas, dos partidos políticos emergentes e das ligações às ideias liberais, tudo indiciando que os madeirenses pretendiam subtrair-se à coroa portuguesa e ligar-se a Inglaterra. Num breve espaço de tempo, houve mais de uma centena de presos; embora só uma dezena deles viessem a ser condenados, os indiciados eram imensos, tendo muitos saído da Madeira. Deste modo, a Ilha foi decapitada de muitos dos seus principais quadros, entre morgados, funcionários públicos, cónegos e vigários, escritores e militares de todas as patentes, entre outros. Infelizmente, essa não foi a última alçada na Madeira, pois, com a tomada do poder pelo infante D. Miguel, em 1828, e conquistada a Ilha pelas forças absolutistas, uma nova alçada foi enviada. Os trabalhos dela ficaram a cargo do ministro sindicante Manuel Luciano Magalhães Abreu e Figueiredo. O processo existente na Câmara do Funchal mostra um conjunto verdadeiramente desonroso de 250 depoimentos, quase todos feitos por convocação do ministro sindicante, lendo-se neles acusações bastante vagas e com base nas quais chegaram a estar envolvidas e presas perto de 2000 indivíduos, acusados de “malhados” e maçons (ARM, Câmara Municipal do Funchal, Registo geral, tombo 6, fls. 305v.-327). Num curto espaço de tempo, a Ilha perdeu, novamente, parte dos seus principais quadros sociais e económicos, militares, administrativos e religiosos, não tendo muitos dos envolvidos regressado à Madeira, optando antes por ficar em Londres e depois no continente, havendo uma parte, de certa forma importante, que preferiu emigrar para o Brasil. A relação dos réus foi elaborada já em Lisboa, por ordem alfabética, e incluía 101 elementos, sendo o termo assinado a 18 de setembro de 1829. A ele juntou-se uma segunda relação, com data anterior, 19 de agosto, e com mais 216 elementos. As sentenças finais foram, assim, dadas em Lisboa, a 18 de setembro de 1829, sendo juízes João Manuel Guerreiro de Amorim, José Pereira Paula de Faria Garção e Romão Luís de Figueiredo e Sousa. Todavia, muitos mais madeirenses vieram a ser indiciados na mesma alçada ao longo daquele ano e do seguinte e a ser deportados para Cabo Verde, Angola e Moçambique.   Rui Carita (atualizado a 17.08.2016)

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administrador do concelho

A instituição do cargo de administrador do concelho data de 1835. O administrador do concelho era o representante dos interesses do Estado no espaço concelhio e a sua nomeação era da responsabilidade do poder central. A figura do administrador do concelho esteve presente na codificação administrativa do séc. XIX e da Primeira República e foi extinta no período do Estado Novo. Palavras-chave: administração pública; poder central; Primeira República; legislação. A instituição do cargo de administrador do concelho foi uma das particularidades do dec. de 18 de julho de 1835 que estabeleceu a nova divisão administrativa do “reino de Portugal e ilhas adjacentes”, na sequência da implantação definitiva da monarquia constitucional. Pelo dec. de 12 de setembro desse mesmo ano, era estabelecido o distrito administrativo da Madeira e Porto Santo tendo como capital a cidade do Funchal. Esse distrito foi dividido em concelhos e estes em freguesias. No início de novembro de 1835 foram nomeados os primeiros administradores de concelho na Madeira. Figura distinta do presidente do município, o administrador do concelho era o representante dos interesses do Estado no espaço concelhio, e a sua nomeação era da responsabilidade do poder central. Esteve presente na codificação administrativa do séc. XIX e da Primeira República, sendo apenas extinto no período do Estado Novo, em concreto, no âmbito do Código Administrativo de 31 de dezembro de 1936. O processo de nomeação deste magistrado assentava, de acordo com o art. 52.º do dec. de 18 de julho de 1835, na elaboração de uma lista de elegíveis, em paralelo com a das eleições municipais, da qual o rei escolhia um nome. Essa nomeação seria válida por dois anos, podendo haver reeleição (art. 53.º). O administrador do concelho tinha direito a receber uma gratificação, paga pela receita municipal (art. 55.º) e só podia ser demitido mediante decreto assinado pelo rei (art. 54.º). O Código Administrativo de 1842 específica, no seu art. 257.º, que essa gratificação era arbitrada e paga pela câmara municipal, e que o administrador do concelho tinha direito a cobrar os emolumentos previstos na legislação. Uma importante alteração, no acesso ao cargo, foi introduzida pelo Código Administrativo de 1878, a saber: a condição de possuir um curso superior sendo que, na falta de pessoas habilitadas, poderia ser nomeado um indivíduo com a instrução secundária (art. 197.º). As atribuições do administrador do concelho relacionam-se com a sua função de representante do governo central no espaço concelhio, com capacidade para atuar no domínio das suas atribuições específicas e naquelas que não estivessem especialmente atribuídas a outras autoridades e funcionários presentes na circunscrição do concelho. Genericamente, constata-se que as atribuições do administrador do concelho eram garantir a correta execução das ordens, instruções e regulamentos transmitidos pelo governador civil do distrito, em nome do interesse geral do Estado. Especificamente, as funções deste magistrado abrangiam seis grandes áreas, a saber: a polícia preventiva e a moral pública; a fazenda pública; o recrutamento e o recenseamento da população; o registo civil; o registo de passaportes; e o ensino público. O art. 59.º, § 4, do dec.-lei de 18 de julho de 1835 atribui ao administrador do concelho a superintendência e a vigilância diária de tudo que se reportasse à polícia preventiva. Em concreto, a inspeção das prisões, das casas de detenção e de correção; a aplicação das leis e regulamentos sobre a concessão de licenças para o uso de armas; e o cumprimento das leis e regulamentos relativos à mendicidade. Já na esfera da polícia municipal, competia ao administrador do concelho a prevenção e/ou repressão dos atos perturbadores da ordem pública; a implementação de medidas de auxílio às populações em situação de calamidade assim como a adoção de medidas sanitárias, tanto de prevenção como de tratamento de doenças infetocontagiosas; e, por último, a atuação contra os infratores das leis e posturas municipais, entregando-os ao poder judicial para o respetivo julgamento e punição. No âmbito do auxílio ao poder judicial, o administrador do concelho tinha a faculdade de prender ou mandar prender qualquer cidadão em flagrante delito e formar os respetivos autos de averiguação dos factos. A repressão dos atos ofensivos dos bons costumes e da moral pública era a outra área de atuação do administrador do concelho dentro da polícia preventiva. No domínio da fazenda pública, competia-lhe o exercício da fiscalização no lançamento, repartição e cobrança dos impostos, nomeadamente, das contribuições diretas, e o auxílio dos empregados encarregues desta função. O art. 247.º do Código Administrativo de 1842 refere a obrigação do administrador do concelho de fazer a inscrição e relação de todos os bens e rendimentos que, dentro da circunscrição concelhia, pertencessem à fazenda pública. Em conformidade com as leis vigentes, devia proceder ao apuramento do recrutamento para o exército, de acordo com o recenseamento e mapa da população remetido pela câmara municipal que, por seu turno, era realizado sob direção do próprio administrador do concelho. O registo civil, uma das grandes reformas introduzidas pelo liberalismo, revelou-se um dos aspetos onde foi particularmente notória a atividade deste magistrado. Com efeito, competia-lhe a escrituração e guarda dos livros de nascimento, casamento e óbito dos moradores do concelho, constituindo a sua assinatura a legitimação da autoridade pública perante esses momentos da vida dos indivíduos. Pelo Código Administrativo de 1842, ficou sob a sua alçada o registo de escrituras de doação, o registo de hipotecas e o registo de testamentos (art. 254.º). A regulação do movimento populacional era outra das competências atribuídas pela legislação da monarquia constitucional, cabendo ao administrador do concelho a concessão de passaportes e a emissão de bilhetes de residência, matérias sobre as quais devia dar a devida informação ao governador civil do distrito. Finalmente, o ensino público. Pertencia-lhe a fiscalização e superintendência das escolas públicas existentes no perímetro concelhio financiadas pelo Estado ou pelos municípios, assim como a inspeção-geral das escolas particulares. Na sua relação com os demais poderes sedeados no espaço concelhio, o administrador do concelho revelou a sua preponderância, pois a legislação conferiu-lhe, a partir do Código Administrativo de 1878, a faculdade de zelar pelo cumprimento de todas as atribuições da câmara municipal e das juntas de paróquia, dando parte ao governador civil das situações anómalas (art. 207.º, § 7). Por seu turno, o Código Administrativo de 1886 pormenoriza essa relação tutelar, dado que ficava atribuída ao administrador do concelho a prerrogativa de remeter ao governador civil as contas de gerência de todas as corporações administrativas para serem, posteriormente, enviadas ao tribunal de contas (art. 241.º, § 7). De igual importância foi a faculdade de o administrador do concelho poder transmitir ao governador civil as deliberações das câmaras municipais e das juntas de paróquia, uma realidade que o Código Administrativo de 1896 iria consagrar ao determinar a obrigatoriedade do administrador do concelho assistir sempre às sessões das câmaras municipais com a finalidade de verificar o cumprimento de decisões respeitadoras do interesse público. O regime republicano, pelo decreto com força de lei de 13 de outubro de 1910, ordenou a adoção do Código Administrativo de 1878 enquanto não fosse elaborada uma nova codificação. Contudo, tal não se verificou no decurso deste regime, que somente registou a promulgação da lei n.º 88 de 1913, constituindo uma mera proposta de codificação administrativa a implementar num futuro próximo. Esta lei foi omissa em relação à figura do administrador do concelho. Contudo, a sua presença continuou a ser registada na vida administrativa municipal, desempenhando, com maior ou menor notoriedade, as funções que lhe tinham sido outorgadas pela legislação administrativa oitocentista.   Ana Madalena Trigo de Sousa (atualizado a 21.07.2016)

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