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jardins

Desde o início da ocupação, a ilha da Madeira tem sido celebrada como um jardim; Cadamosto, em meados do séc. XV não hesitou em afirmar: “ela é toda um jardim e tudo o que nela se aproveita é ouro” (VIEIRA, 2014, 9). Depois os cronistas, como Gaspar Frutuoso ou António Cordeiro, valorizaram esta ideia de jardim, tendo em consideração as flores que se encontravam em quase toda a Ilha. Foi, afinal, a partir desta ideia de jardim do Éden que a Madeira começou a divulgar-se pela Europa, numa dimensão que se tem perpetuado. A todos os que chegavam do mar, a Ilha oferecia um perfume especial, resultado desta profusão de flores e árvores de fruto. Esta ideia estava já patente no séc. XVI e foi documentada por Gaspar Frutuoso, que afirmou: “cria muitas alfaces e boas, e outras muitas maneiras de hortaliça, toda regada com água, como as canas, afora os muitos pomares que tem de fruta de espinho e ricos jardins de ervas cheirosas, em tanto que dizem os mareantes que, mais de dez léguas ao mar, deita esta Ilha de si uma fragrância e um confortativo e suave cheiro, que parece cheirar a flor de laranja. Em muitas partes desta Ilha, há muitas nogueiras e castanheiros, que dão muita noz e castanha, em tanta maneira, que vale o alqueire a três e quatro vinténs e se afirma que se colhe em toda ela de ambas estas frutas de noz e castanha, juntamente cada ano, passante de cem moios; também dão amêndoas, e de tudo carregam bem as árvores” (Id., Ibid., 192). As ideias de paraíso e riqueza estão associadas às ilhas atlânticas, desde a Antiguidade Clássica. Não se sabe o momento em que os povos da bacia mediterrânica se confrontaram com este mundo insular, mas, a partir do séc. VI. A.C., diversos testemunhos evidenciaram a presença de Cartagineses e árabes, que, certamente, antes dos Portugueses, tiveram a oportunidade de descobrir estas riquezas e este paraíso. Esta visão das ilhas atlânticas como paraíso e mansão dos deuses estava ainda presente na memória dos Portugueses que se tinham lançado, em princípios do séc. XV, à descoberta do Atlântico. E continuaria por muito tempo na memória coletiva da metrópole. Desta forma, não será difícil entender a razão desses entusiasmos que acompanharam o encontro da Madeira e de outras ilhas atlânticas. Mas, de todas as ilhas que os Portugueses encontraram, a que mais extasiou os descobridores foi, sem dúvida, a Madeira. A ilha paraíso e a ilha jardim   A Europa partiu, no séc. XV, à procura do Éden bíblico ou descrito na literatura clássica greco-romana. Foi este um dos motivos não só do empenho de Colombo, mas também dos navegadores portugueses. O seu reencontro era encarado como uma conciliação com Deus, o apagar do pecado original de Adão e Eva. Esta imagem perseguiu quase todos os navegadores quinhentistas e deveria estar por detrás do esforço dos que aportaram à Madeira. A recuperação desta imagem aconteceria mais tarde, no séc. XVIII, em que a ilha da Madeira se apresentou como o paraíso redescoberto para o viajante ou tísico ingleses, recuperado e revelado ao cientista, através das recolhas ou da recriação através dos jardins botânicos. A literatura ocidental celebrou a beleza da ilha da Madeira, sendo esta sinónimo de jardim, sob a forma de múltiplos epítetos: “flor do oceano”, “flor das águas”, “ninfa florida”, “primavera imortal”, “pérola do atlântico”, “recanto do paraíso”, “açafate de flores a boiar no atlântico”, “maravilha do mundo”. Não só poetas e escritores, mas também políticos e cientistas não se cansaram de celebrar as flores e os jardins da Ilha. A insistência desta ideia é reveladora da imagem que a Madeira conquistou no Ocidente e do impacto que provocavam os jardins floridos sobre os visitantes estrangeiros que por lá passavam. A presença de forasteiros conduziu a um maior cuidado e a uma valorização do meio. Em 1864, F. T. Valdez afirmava: “São deitadas abaixo fortes e muralhas que para nada servem ao estado e os espaços são transformados em jardins. São tantas as maravilhas que encerra a Madeira, que em verdade quem a vê acreditará por momentos que os jardins de Armida e os Campos Elísios da fábula deveriam ser como esta formosa ilha, chamada por excelência a flor do Oceano” (Id., Ibid., 41). O médico austríaco Karl Scherzer (1821-1903), na narrativa da sua viagem de circum-navegação, descreveu a sua aproximação à Ilha assim: “Deleite e surpresa são as primeiras impressões do Funchal, os seus jardins luxuriantes sorrindo com flores bonitas, e as montanhas cultivadas desde o sopé até ao cume” (FARIA, 2014, 76). Isabella de França, atentando também à beleza, escreveu no seu diário: “Passámos pelo Palheiro do Ferreiro, domínio esplêndido, construído e plantado pelo defunto Conde de Carvalhal [...] agora é um extenso parque, cortado em todas as direções por estradas, entre alamedas viçosas e muitas espécies de árvores [...]. A casa é pequena em comparação com o parque, mas tem à frente jardins com muitas plantas curiosas e grandes tanques com cascatas artificiais, cuja água vem dos montes mais altos em resultado de obras que custaram muito dinheiro” (FRANÇA, 1970, 76). O pintor inglês William B. E. Ranken, ao visitar, em 1936, a Madeira, afirmou: “As flores são outro encanto. Quem vem de Inglaterra encontra aqui flores de extraordinária beleza de perfume e colorido incomparáveis. Os jardins da Madeira têm fama em Inglaterra, mas quem chega aqui recebe sempre uma agradável surpresa” (PEREIRA, 1989, 394). Recorde-se que, em 1931, com a Revolta da Madeira, esta ideia teve repercussão nas diversas notícias que correram os países da Europa, nomeadamente a Inglaterra e França. A 13 de abril de 1933, o diário parisiense Temps anunciava, em primeira página, “a revolução no paraíso”. Desde muito cedo, os jardins madeirenses cativaram a atenção dos visitantes. Aquilo que mais admirava os forasteiros era o facto de a Madeira se apresentar como um paraíso natural de flores, de forma que o odor inebriante das flores se espalhava pelo mar fora e ia ao encontro dos viajantes. Na verdade, a literatura da expansão mostrou a Ilha da Madeira como o paraíso, onde se fundiu o espaço económico da abundância com o espaço bíblico: “O Paraíso que a Bíblia citava devia ser assim”. Segundo Carlos Martins (1909-1985): “A Madeira é a Ilha Afortunada, dos Amores, o Éden”. Para o alemão Johann Baptist von Spix (1781-1826): “Nada é mais encantador que a visão desta Ilha que parece flutuar como um jardim no coração do oceano. São tantas as maravilhas que encerra a Madeira, que, em verdade, quem a vê acreditará por momentos que os jardins de Armida e os Campos Elísios da fábula deveriam ser como esta formosa Ilha, chamada por excelência a flor do Oceano”. Tudo isto, porque, segundo Álvaro Valente (1909-1985): “a Madeira é uma ilha formosíssima, uma terra cheia de prendas e de bênçãos de toda a ordem, uma inestimável joia de alto valor, o paraíso perdido no oceano” (FARIA, 2014, 324 e 328). O séc. XIX foi o momento de maior valorização dos jardins, tendo referido Isabella de França, em 1854, que “há vinte e cinco anos não se via coisa que se parecesse com um jardim, no Funchal, apesar de muitas casas terem um bocado de terra com esse nome [...]. Mas agora os jardins são geralmente cultivados e contêm em profusão as flores mais belas, assim como plantas extraordinárias. de aparência tropical” (Id., 1970, 147). Também a influência britânica foi visível nestes jardins, referindo a autora, e.g., que a Qt. Holway, na Camacha, apresentava um “jardim tratado à inglesa” (Id., 1970, 191). Os jardins, da Europa à Madeira Para os navegadores do séc. XV, aquilo que mais comoveu foi o denso arvoredo; já para os cientistas, escritores e demais visitantes da Ilha, a partir do séc. XVIII, o que mais chamou a atenção foi, sem dúvida, o aspeto exótico dos jardins e das quintas que povoavam a cidade, nomeadamente as Qts. Vigia, Palmeira, Deão, e do Palheiro Ferreiro. O Funchal, em pouco tempo, transformou-se num verdadeiro jardim botânico, num repositório da flora mundial, alvo do deslumbramento dos visitantes e da atenção dos botânicos europeus. Aqui confluíram, de diversas partes do planeta, uma profusão de espécies botânicas que, depois da fase de aclimatação, se expandiram ao velho continente. Os primeiros jardins botânicos começaram a surgir na Europa, a partir do séc. XVI. Em 1545, temos o de Pádua, seguindo-se o de Oxford, em 1621. Em 1662, a arte de Versalhes. Em todos, foi patente a intenção de fazer recuar a vista aos primórdios da criação bíblica do paraíso. As ilhas, porém, não tinham necessidade disso, pois já tinham tais qualidades por natureza. A atitude do homem do séc. XVIII foi diferente em relação ao quadro natural e às plantas. Aliás, desde a segunda metade do séc. XVII, a atitude perante as plantas havia mudado. Em 1669, Robert Morison publicou a obra Praeludia Botanica, considerada como o princípio do sistema de classificação das plantas, que teve em Carl Von Linné (1707-1778) um dos grandes obreiros do seu estudo e da sua classificação. O conde de Buffon foi contemporâneo daquele e publicou, entre 1749 e 1804, Histoire Naturelle, Générale et Particulière, em 44 volumes. Desta forma, com a publicação de Genera Plantarum (1737) e, depois, de Spectes Pfantarum (1753) e Systema Naturae (1778), a visão do mundo das plantas tornou-se diferente. Os jardins botânicos do séc. XVIII deixaram de ser uma recriação do paraíso e transformaram-se em espaços de investigação botânica. O Kew Gardens, em 1759, foi a verdadeira expressão disso. Em 1757, o inglês Ricardo Carlos Smith fundou no Funchal um destes jardins, onde reuniu várias espécies com valor comercial. Em 1797, Domingos Vandelli (1735-1816) e João Francisco de Oliveira apresentaram um projeto para um viveiro de plantas. O viveiro foi criado no Monte e manteve-se até 1828. O naturalista francês Jean Joseph d’Orquigny, que, em 1789, se fixou no Funchal, foi o principal mentor da criação da Sociedade Patriótica, Económica, de Comércio, Agricultura, Ciências e Artes. Em 1850, surgiu a proposta de Frederico Welwistsch para a criação de um jardim de aclimatação, no Funchal e em Luanda. A Madeira cumpriria o papel de ligação das colónias aos jardins de Lisboa, de Coimbra e do Porto. Este botânico alemão, que fez alguns estudos em Portugal, passou, em 1853, pelo Funchal, com destino a Angola. A presença na Madeira do P.e Ernesto João Schmitz, professor do seminário diocesano, levou à criação, em 1882, de um Museu de História Natural, que se integrou no Jardim Botânico. As quintas madeirenses são um dos traços mais peculiares da dinâmica socioeconómica e urbanística da cidade. A elas estão associados momentos inolvidáveis da história da Madeira. Foram palco de importantes acontecimentos e decisões políticas, acolheram ilustres visitantes, enriqueceram a cidade de flores e plantas exóticas e recriaram os hábitos da convivência aristocrática inglesa. Podem, por isso, ser consideradas a principal sala de visitas da Ilha. Estes espaços subdividem-se em área agrícola, casas de moradia, jardins e, por vezes, capela e cercados de muro, sendo a entrada franqueada por um grande portão de ferro. As fortunas acumuladas com o seu comércio foram usadas pelos britânicos na compra das tradicionais vivendas vinculadas, abandonadas pelos morgados. Foi o Inglês quem recheou as quintas com um riquíssimo mobiliário, rodeando-as de parques, jardins, lagos e riachos. Na área do Funchal, encontrava-se o maior número de quintas, com especial relevo para o Monte e para a Camacha. De entre todas as quintas, destacaram-se a Qt. Vigia e a Qt. do Palheiro. A primeira integrava-se num conjunto de quintas geminadas sobranceiras ao mar (Qts. das Angústias, Vigia, Pavão e Bianchi) e foi a morada de alguma aristocracia europeia: a Rainha Adelaide de Inglaterra (1847-1848), o duque Leuchtenberg (1849-1850), e a Imperatriz do Brasil, D. Amélia (1852). A segunda foi construída pelo primeiro conde de Carvalhal, que preservou e enriqueceu os arvoredos. O seu recinto serviu de palco para grandes receções. Destes momentos, destacaram-se: em 1817, a Imperatriz Leopoldina do Brasil; em 1858, o infante D. Luís; e, em 1901, o Rei D. Carlos e a Rainha D. Amélia. A abordagem do europeu aos novos espaços atlânticos fez-se por um duplo objetivo. Primeiro, procurou-se revelar os resquícios do paraíso perdido, tão celebrado na Antiguidade Clássica, e, depois, tentou-se a possibilidade de apropriação do espaço numa dinâmica voraz de apropriação da riqueza. Do primeiro, ficou apenas a lembrança e, do segundo, a plena expressão da humanização do espaço de forma desenfreada, que conduziu a diversos problemas, que se materializaram, nas Canárias, com o processo de desertificação e, na Madeira, com o efeito catastrófico das aluviões. Só muito mais tarde, o europeu se conciliou com a natureza, certamente por influência de outras culturas que teve oportunidade de contactar. Do Oriente, e de forma especial da China, da Índia e do Japão, as culturas milenares deram importantes lições ao europeu quanto a um relacionamento harmónico com a natureza. Certamente que as correntes religiosas imanentes do Taoismo permitiram uma visão diferente da relação do homem europeu com o quadro natural envolvente. Considere-se que, no séc. XVI, o Feng-Shui, que pretendia estabelecer a harmonia com a energia que flui do céu e da Terra, estava presente na China, sendo uma aposta da dinastia Ming. Esta ambiência chegou à Ilha através dos mesmos súbditos de Sua Majestade. Uma situação, aliás, evidenciada por muitos visitantes britânicos que destacaram esta forte influência britânica na arquitetura dos jardins madeirenses. As inúmeras alterações que os Ingleses, fixados na Ilha, imprimiram às diversas quintas, estão relacionadas com esta realidade. Por outro lado, o jardim chinês não se constrói, mas emerge do quadro natural com uma profusão de montanhas, vales, morros, rios, lagos, etc. Não só se copiaram os modelos dos jardins chineses, como a organização do espaço obedeceu a uma determinada ordem, e a combinação destes elementos fez-se de uma forma harmónica e de acordo com regras. É neste contexto que se pode situar o aparecimento dos lagos e das pontes como elementos essenciais na estrutura dos jardins. Não serão por acaso, também, as formas, as linhas, os espaços, a forma e os locais da disposição das plantas, nomeadamente os buxos em forma de labirintos ou em construções geométricas, que parecem lembrar mandalas, ou outras, de carácter esotérico cujo significado escapa-se, porque nunca receberam atenção sob estas perspetivas e de acordo com os conhecimentos orientais, apenas considerou-se as suas funções decorativas. As “casas de prazeres” encontram similitudes na China com os pavilhões abertos, locais de contemplação da lua ou de deleite, onde se pode beber vinho, namorar e escrever poesia. Acontece que, durante muito tempo, o garrido, a variedade e o exotismo das flores e plantas iludiu, ignorando-se que a sua presença não é alheia àquela finalidade. Além do mais, é precisamente aqui, no recato, no sossego e na harmonia energética das quintas que os doentes europeus procuraram a cura para a tísica pulmonar, a partir do séc. XVIII. Os médicos europeus recomendavam a procura destas quintas. Falava-se do clima ameno, mas também das condições relaxantes do meio, através da natureza envolvente da Ilha, de forma especial na vertente norte e nas quintas que polvilhavam a encosta funchalense até ao Monte. Desde o séc. XVII, a Madeira era conhecida pelas condições aprazíveis do seu meio e aconselhada pelos seus efeitos curativos. Aliás, no plano de sanatórios delineado para a Madeira, em princípios do séc. XX, referiu-se a necessidade de existirem jardins e parques, considerados como lugares para “cura de ar”, não obstante esta visão de uma natureza benfazeja ter surgido já no séc. XVII e se ter afirmado nas centúrias seguintes.   Madeira, a ilha jardim A partir de meados do séc. XX, ganhou importância a ideia da Ilha como um jardim, apostando-se na promoção de condições que levassem esta arte a desenvolver-se em todas as casas dos madeirenses. Por outro lado, as condições difíceis da agricultura e a necessidade de aproveitar ao máximo o espaço de cultivo levaram a que, através da construção de poios, se transformasse quase toda a Ilha num jardim, podendo definir-se a agricultura madeirense como uma técnica de jardinagem. Pelo dec.-lei de 22 de fevereiro de 1951, que estabeleceu o repovoamento florestal da Ilha, coube à Junta Geral, através da Circunscrição Florestal, proceder à “assistência técnica nos trabalhos de conservação e melhoramento das zonas de interesse turístico e dos jardins públicos e de arborização e embelezamento das bermas e taludes das estradas” (PEREIRA, 1989, 338). A exaltação da flor madeirense e dos seus jardins teve o seu momento alto no Cortejo Alegórico da Flor, uma celebração que se iniciou em 1979. Em 2007, surgiu, acoplada a esta iniciativa, a Exposição e Mercado das Flores. Tudo isto começou com A Exposição da Flor, realizada pelo Ateneu Comercial do Funchal, que teve um lugar em pavilhão próprio junto ao Palácio de S. Lourenço, na Praça da Restauração. A iniciativa começou em 1954, com a Festa da Rosa, que, no ano seguinte, se transformou na Festa da Flor. Neste contexto, devemos destacar o Jardim de Rosas, propriedade e iniciativa de Miguel Albuquerque, na Qt. do Arco, no Sítio da Lagoa – Arco de S. Jorge, onde se manifestava uma profusão de rosas de 17.000 variedades de espécies. Além do mais, no Jardim Tropical Monte Palace, no Monte, de Joe Berardo, a cultura oriental misturava-se com uma profusão de árvores e flores.   Alberto Vieira (atualizado a 18.12.2017)

Arquitetura Património

jamestown (ilha de santa helena)

É a capital da ilha de Santa Helena no Atlântico sul. Foi fundada em 1659 pela English East India Company e mereceu este nome em honra de James, duque de Yorke e futuro Rei James II de Inglaterra. Foi em Longwood House, próximo desta cidade, na parte norte da ilha, que Napoleão Bonaparte passou os últimos cinco anos da sua vida. À figura de Napoleão, associa-se um período fulgurante da história da Madeira, definido pela dominância do vinho e pela cada vez mais omnipresente posição do Inglês. Talvez por tudo isso, quando o fatídico Imperador passou pela Ilha, em agosto de 1815, a caminho do exílio, o cônsul inglês Henry Veitch não terá encontrado uma melhor lembrança para lhe ofertar que um tonel de vinho. A conjuntura europeia protagonizada por Napoleão fizera com que o vinho madeirense adquirisse uma posição dominante no mercado atlântico, fazendo aumentar a riqueza dos Ingleses, os principais comerciantes e consumidores. Diz a tradição que o tonel com o precioso néctar regressou à Ilha, reclamado pelo doador. O vinho regressado à Madeira multiplicou-se, em 1840, em centenas de garrafas, que fizeram as delícias de inúmeros Ingleses. Churchill, de visita à Ilha em 1950, foi um dos felizes contemplados. Quando se menciona o fim que teve Napoleão, todos, ou quase todos, reclamam a inevitável referência à passagem do mesmo pela Ilha a caminho do cativeiro em Santa Helena e também ao retorno dos seus restos mortais em 1840. Alguns recordam a importante peça literária que, a esse propósito, leu J. Reis Gomes, na sessão da classe de letras da Academia de Ciências, em 18 de janeiro de 1934, publicada, em separado, com o título O Anel do Imperador. Note-se que, na Madeira, o termo “vintage” se refere a um vinho feito de uma casta nobre, numa colheita especial que deve permanecer o mínimo de 20 anos encascado e 2 anos engarrafado. Particulares e empresas dispõem de coleções variadas deste tipo de vinho, sendo a mais famosa a de 1815, engarrafada em 1840 por John Blandy. É do vinho que Napoleão Bonaparte nunca bebeu no exílio em Santa Helena, conhecido como Waterloo Madeira. O desfecho funesto do Imperador Napoleão Bonaparte repercutiu-se de forma evidente na história da Madeira, sendo mais um fator favorável à quase total afirmação da comunidade britânica na Ilha. Alberto Vieira (atualizado a 18.12.2017)

Madeira Global

jamestown (california)

Foi a primeira cidade fundada pelos primeiros colonos americanos, em 14 de maio de 1607, na Virgínia, numa ilha da margem do rio James. Foi capital de colónia entre 1616 e 1699. Porém, as dificuldades geradas pelos mosquitos e o facto de a água ser imprópria para consumo levaram os colonos a procurar nova morada. Desta forma, a partir do séc. XVIII, a cidade perdeu importância e, nos princípios do séc. XXI, apresenta-se como uma herança em ruínas. Não existe conhecimento de quaisquer ligações diretas à Madeira, mas é muito provável que esses contactos tenham existido em relação ao vinho, cuja presença em solo norte-americano ficou documentada desde a segunda metade do séc. XVII. Jamestown é também um lugar em Tuolumne County, na Califórnia, que tem uma ligação com a Madeira, pois existem referências a madeirenses que aí se fixaram, de acordo com o estudo de Donald Warren sobre John Pereira. A afirmação da Califórnia como destino de emigração enquadra-se na corrida ao ouro, a partir de 1848. É neste quadro que se deve compreender a presença de madeirenses, a partir de Massachusetts ou diretamente da Madeira, por via ferroviária. John Pereira (1814-1902), filho de Francisco Pereira Camacho e Anna de Jesus, é um dos que partiu, em 1838, para os Estados Unidos. Primeiro, foi acolhido em Luisiana, mas a divulgação, a 24 de janeiro de 1848, da notícia da descoberta de uma pepita de ouro, nas margens do rio Yuba, fê-lo mudar de direção. Decidiu então partir à procura do Eldorado na Califórnia, deixando a mulher e filhos em Nova Orleães. Sabe-se que, passado algum tempo, eles se lhe juntaram, pois em 1853 nasceu o terceiro filho, em Jamestown. Foi um dos primeiros a subir o rio Yuba até Foster's Bar e a encontrar as desejadas pepitas de ouro, conseguindo um pecúlio de 1800 dólares, com que iniciou nova vida no acampamento de Jamestown. Com esta pequena fortuna, começou a comprar terrenos e a organizar o seu assentamento num rancho de 124 ha, onde cultivava hortaliças e plantou árvores de fruto, incluindo a vinha. No ano seguinte, não era o único madeirense atraído pelo ouro, estando já registados outros 23, alguns dos quais como trabalhadores no seu rancho. John Pereira era maçon e filiado no Partido Democrata, sendo considerado uma personalidade influente em Jamestown, na medida em que “acumulara bens imóveis de avultado valor e era conhecido de todos como cidadão empreendedor, patenteando muito interesse no bem-estar e no progresso da comunidade”; a par disso, “era um homem de acentuadas opiniões sobre todos os assuntos e, em tempos passados, exercia muita influência no comércio e na política” (WARREN, 2003, 2008).   Alberto Vieira (atualizado a 18.12.2017)

Madeira Global

havai, emigração para o

Na Madeira, no séc. XIX, o fenómeno emigratório foi uma constante, devido a períodos de fome, à crise económica e a um grande crescimento demográfico. Tratou-se, também, de uma emigração alimentada por fortes solicitações do mercado internacional de mão de obra. Dentro deste fenómeno, há a destacar, pela sua especificidade, a emigração para as ilhas do Havai, entre 1878 e 1912. Este processo fez-se ao abrigo de uma convenção assinada entre o reino de Portugal e o reino do Havai, em 5 de maio de 1882, pelo ministro e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, António de Serpa Pimentel, e pelo ministro plenipotenciário Henrique A. P. Carter, representante do Rei havaiano Kalakaua. Esta convenção estipulava os procedimentos a seguir na contratação de emigrantes, tendo deixado de vigorar em 4 de março de 1892 por aviso publicado no Diário do Governo n.º 154, de 15 de julho de 1891. Apesar de existir um cônsul honorário, o Governo de Portugal decidiu enviar um cônsul de carreira para acompanhar a aplicação da convenção nas ilhas havaianas. Foi nomeado António de Sousa Canavarro, que apresentou as suas credenciais ao Rei Kalakaua a 6 de setembro de 1882, exercendo o cargo até 1886. Os cônsules posteriores foram depois nomeados cônsules honorários, uma vez que o Havai foi integrado nos EUA em 1896. Um dos motivos para a nomeação de um cônsul de carreira teve a ver com denúncias publicadas em jornais da Califórnia sobre o modo de vida dos imigrantes portugueses no Havai. Tendo em conta os preconceitos sociais da época e a distância entre as ideias de liberdade americanas e a monarquia havaiana, não admira que houvesse desconfiança relativamente aos EUA. Na sequência de tais denúncias relativas às condições de vida dos açorianos e dos madeirenses no Havai, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português mandou realizar um inquérito, do qual foram encarregadas as administrações dos concelhos da Madeira e dos Açores, e cujos resultados foram publicados no Diário do Governo n.º 88, de 20 de abril de 1882. Este inquérito baseou-se nos testemunhos de familiares dos emigrados e nas cartas recebidas por eles, embora fossem muito incompletos para uma visão global da vida do imigrante. Entre madeirenses, açorianos e continentais, o Havai recebeu mais de 20.000 imigrantes portugueses entre 1878 e 1913. No Consulado Geral de Portugal em Honolulu, no livro de registo de matrículas, que ficou depois na posse da Portuguese Genealogical Society, estão registados 4556 madeirenses, entre homens, mulheres e crianças, chegados a Honolulu. No entanto, sabemos que o livro não está completo. Segundo a lista existente no Harbor Master’s Record Archives do Havai, os navios que transportaram contratados portugueses foram: Priscilla, barca alemã que aportou em Honolulu a 30 de setembro 1878, após 116 dias de viagem, com 80 homens, 40 mulheres e 60 crianças, num total de 180 passageiros (os documentos do consulado de Portugal apontam a chegada aproximada de 120 passageiros); Ravenscrag, navio inglês que chegou a 23 de agosto de 1879, com 123 dias de viagem desde a Madeira, com 133 homens, 110 mulheres e 176 crianças, num total de 419 pessoas; High Flyer, barca inglesa, chegada a 24 de janeiro de 1880, com 99 dias de viagem a partir de Ponta Delgada, nos Açores, com 109 homens, 81 mulheres e 147 crianças, num total de 337 pessoas; High Flyer, barca inglesa chegada a 2 de maio de 1881, com 130 dias de viagem desde São Miguel, nos Açores, com 173 homens, 66 mulheres e 113 crianças, num total de 352 pessoas; Suffolk, barca inglesa chegada a 25 de agosto de 1881, com 102 dias de viagem desde São Miguel, Açores, com 206 homens, 100 mulheres e 182 crianças, num total de 488 passageiros; Earl Delhausie, barca inglesa chegada a 27 de março de 1882, com 113 dias de viagem desde São Miguel, Açores, com 94 homens, 82 mulheres e 146 crianças, num total de 322 pessoas; Monarch, navio a vapor inglês chegado a 8 de junho de 1882, com 57 dias de viagem desde São Miguel, Açores, com 202 homens, 197 mulheres e 458 crianças, num total de 857 pessoas; Hansa, navio a vapor inglês chegado a 15 de setembro de 1882, com 70 dias de viagem desde São Miguel, Açores, com 307 homens, 286 mulheres e 584 crianças, num total de 1177 pessoas; Abergeldie, navio a vapor inglês chegado a 4 de maio de 1883, com 62 dias de viagem desde São Miguel, Açores (não temos informações sobre o número de passageiros); Hankow, navio a vapor inglês chegado a 9 de julho de 1883, com 66 dias de viagem desde São Miguel e a Madeira, com 427 homens, 317 mulheres e 718 crianças, num total de 1462 pessoas; Bell Rock, navio a vapor inglês chegado a 1 de novembro de 1883 com açorianos, 396 homens, 294 mulheres e 715 crianças, num total de 1405 passageiros; City of Paris, navio a vapor inglês chegado a 13 de junho de 1884, com 74 dias de viagem a partir da Madeira e de São Miguel, com 295 homens, 199 mulheres e 330 crianças, num total de 824 pessoas; Bordeaux, navio a vapor francês chegado a 3 de outubro de 1884, com 72 dias de viagem a partir da Madeira e com 273 homens, 173 mulheres e 262 crianças, num total de 708 pessoas. Inicialmente, no Funchal, o Bordeaux aceitara mais de 1000 passageiros. No entanto, quando o governo civil fez a vistoria do navio, verificou que perante a legislação em vigor só poderiam seguir 760 passageiros, pelo que o governador mandou desembarcar 440, sendo que dos embarcados já tinham falecido duas crianças, uma de pneumonia e outra de fraqueza. Esse excedente de passageiros foi alojado num armazém na R. da Queimada de Cima, tendo as autoridades distribuído aos candidatos a emigrantes 120 réis aos adultos e 60 réis aos menores. Uns desistiram e outros seguiram no navio Daca. A lista prossegue com Daca, navio inglês chegado a 19 de janeiro de 1885, após 114 dias de viagem, com 63 homens, 50 mulheres e 165 crianças, num total de 278 passageiros; Stirlingshire, navio inglês chegado a 4 de março de 1886, com 112 dias de viagem desde a Madeira, com 157 homens, 107 mulheres e 203 crianças, num total de 467 pessoas; Amana, navio inglês chegado a 23 de setembro de 1886, após 142 dias desde a Madeira, com 117 homens, 116 mulheres e 239 crianças, num total de 501 pessoas; Thomas Bell, barca inglesa chegada a 13 de abril de 1888, após 156 dias de viagem desde a Madeira, com 117 homens, 62 mulheres e 163 crianças, num total de 342 pessoas; Braunfels, navio a vapor alemão chegado a 4 de abril 1895, após 68 dias de viagem desde Ponta Delgada, Açores, com 274 homens, 124 mulheres e 259 crianças, num total de 657 pessoas; Victoria, navio a vapor inglês chegado a 13 de setembro de 1899, após 67 dias de viagem desde a Madeira, com 215 homens, 56 mulheres e 72 crianças, num total de 343 pessoas; Heliopolis, navio a vapor espanhol chegado a 26 de abril de 1907 do Faial, Açores, e de Malága, com 608 homens, 554 mulheres e 1084 crianças, num total de 2246 passageiros; Kumeric, chegado a 27 de junho de 1907 da Madeira, com 333 homens, 306 mulheres e 475 crianças, num total de 1114 pessoas; Swanley, chegado a 12 de dezembro de 1909 da Madeira e Açores, com 337 homens, 221 mulheres e 310 crianças num total de 868 pessoas; Osteric, navio a vapor chegado a 13 de abril de 1911 da Madeira, com 547 homens, 373 mulheres e 531 crianças, num total de 1451 passageiros; Willesden, navio a vapor chegado a 3 de dezembro de 1911 dos Açores e do continente português, com 639 homens, 400 mulheres e 758 crianças, num total de 1797 pessoas; Harpalien, navio a vapor chegado a 16 de abril de 1912 dos Açores e do continente português, com 496 homens, 328 mulheres e 626 crianças, num total de 1450 pessoas; Willesden, navio a vapor chegado a 30 de março de 1913, proveniente das ilhas e do continente português, com 491 homens, 377 mulheres e 440 crianças, num total de 1308 passageiros; Ascot, navio a vapor chegado a 4 de junho de 1913, proveniente das ilhas e continente português, com 424 homens, 327 mulheres e 532 crianças, num total de 1283 pessoas. Os madeirenses que com suas famílias partiam para o Havai suportaram tempestades terríveis junto ao cabo Horn, sofrendo doenças – que resultaram, por vezes, na sua morte –, falta de alimentos e más condições de acomodação. Houve famílias inteiras emigraram com contratos de três ou cinco anos para trabalharem nos campos de cana sacarina, nos engenhos ou nas plantações de ananases. O Governo havaiano tinha um departamento de imigração, que controlava o número de contratos e de imigrantes que entravam anualmente, olhando às necessidades de mão de obra dos plantadores e às necessidades do reino. Este departamento tutelava os contratos e, enquanto os imigrantes estivessem abrangidos pelo contrato de trabalho, este organismo também exercia fiscalização sobre as condições de trabalho, de alojamento e de alimentação. No caso de o contratado desejar mudar de plantação, o departamento procedia a essa mudança. Por vezes, à chegada, os imigrantes com um contrato firmado para uma certa plantação eram colocados noutra, sob a orientação do departamento. Com efeito, depois da promulgação de lei do Great Mahele, de 1846, na qual o Rei autorizava os estrangeiros a serem proprietários de terras, os Americanos residentes no Havai iniciaram o processo de aquisição de terras nas ilhas do arquipélago e desenvolveram o cultivo da cana sacarina. Em finais do séc. XIX, a indústria açucareira era a principal indústria havaiana, tendo substituído em importância a indústria da pesca da baleia. O aparecimento de novas plantações e a aplicação de novas tecnologias industriais exigiam um aumento constante de mão de obra a que os nativos não conseguiam dar vazão – em parte porque, quando os europeus chegaram ao Havai, levaram doenças como a gripe e o sarampo, entre outras, que provocaram uma tremenda baixa demográfica –, o que levou os plantadores a exigirem a importação de mão de obra estrangeira. Os plantadores importavam mão de obra com um contrato de três ou cinco anos, como já referido, usando um modelo de contrato semelhante ao utilizado na Guiana Inglesa e noutras áreas do Império Inglês nas plantações de cana sacarina. Estes contratos surgiram nas colónias inglesas para colmatar a falta de mão de obra escrava após a libertação dos escravos; no Havai, o contrato foi utilizado para colmatar a falta de mão de obra livre. A importação de mão de obra com contratos de trabalho iniciou-se no Havai por volta de 1850 e, a partir desta data, muitos imigrantes oriundos de Portugal, principalmente madeirenses e açorianos, mas também alguns continentais, bem como espanhóis, noruegueses, chineses, japoneses e filipinos entraram nas vagas de contratados. Em 1850, já existia no Havai um núcleo de Portugueses, constituído fundamentalmente por marinheiros dos navios baleeiros contratados nos Açores, na Madeira e na ilha Brava, Cabo Verde, que fugiam das duras condições de vida e de trabalho nesses navios. A contratação dos trabalhadores portugueses fora sugerida ao departamento de imigração havaiano inicialmente por Jacinto Pereira, natural do Faial que, em 1878, era cônsul honorário de Portugal, tendo assumido o nome de Jason Perry, e pelo botânico alemão William Hillebrand, que vivera no Havai em 1871, a fim de fazer pesquisas botânicas, e que em 1876 visitara as ilhas da Madeira e dos Açores; em carta enviada à associação de produtores da cana de açúcar do Havai (HSPA), Hillebrand afirmava que os ilhéus eram sóbrios, honestos, pacíficos e trabalhadores com grandes capacidades para o trabalho manual. Atendendo ao teor da carta, o departamento autorizou, em novembro de 1876, a contratação e o pagamento das passagens a Portugueses oriundos das ilhas, pagando 75 dólares por homem, 50 dólares por mulher e 25 por cada criança. Além disso, os imigrantes assinavam um contrato de trabalho que estipulava um período de 36 meses, com 26 dias de trabalho mensal e 10 h diárias de trabalho a partir do nascer do sol. Os homens receberiam um salário de 10 dólares por mês, teriam direito a uma ração diária, alojamento, horta, assistência médica e medicamentos gratuitos. As mulheres e as crianças que trabalhassem receberiam igualmente salários. Com a anexação do Havai pelos EUA, em 1898, as ideias de liberdade individual passaram a ter de ser expressas na legislação. Daí a denúncia que houve dos contratos de trabalho, dado a legislação americana considerar as obrigações pessoais expressas naqueles contratos de trabalho inconsistentes com a democracia. Na América, a escravatura fora abolida em 1863 e a contratação e importação de trabalhadores, tal como era feita, tornara-se ilegal a partir de 1885. Todos os contratos assinados antes do desembarque no Havai foram declarados nulos. Normalmente após o término do primeiro contrato, os Portugueses saíam das plantações e fixavam-se nas ilhas onde trabalhavam ou, em alternativa, iam para a ilha de Oahu, onde havia mais oportunidades de trabalho. Aí iniciavam atividades agrícolas, no pequeno comércio e na construção civil, entre outras. Em Portuguese-Hawaiian Memories, Joaquim Francisco de Freitas refere muitas famílias portuguesas, as suas origens, ilhas de residência e atividades. Através dele, verificamos o seguinte: na ilha de Kaui, uma das ilhas onde existiam muitas plantações, os Portugueses de primeira geração tornavam-se, após o contrato, capatazes de plantação; depois de novo contrato, ganhavam mais liberdade, convertendo-se em contabilistas ou trabalhadores livres nas plantações. Os que deixavam as plantações tornavam-se proprietários de pequenas explorações agrícolas, funcionários do comércio, pequenos negociantes a retalho, jardineiros, motoristas, mecânicos de locomotivas, donos de mercearias, armazenistas ou assistentes de gerência em área comercial, havendo até o caso de um agente de cinema. Nestes casos, os alfabetizados chegavam a gerentes comerciais, ficando os empregos mais modestos para aqueles que tinham chegado analfabetos. Olhando para os Portugueses de segunda geração em Kaui, vemos pelo seu posicionamento social que tinham maior instrução: eram capatazes, agentes comerciais, assistentes de gerência, polícias de campo ou juízes de distrito; as filhas de algumas famílias exerciam a profissão de professoras primárias de língua portuguesa. Relativamente a Oahu, na cidade de Honolulu, mesmo entre os elementos de primeira geração, há uma maior diversidade de atividades profissionais. Assim, encontramos eletricistas, proprietários de terras ou pequenas explorações, comerciantes, donos de padarias, comerciantes de laticínios, empresários, vendedores comerciais, pedreiros e construtores civis, técnicos de hidráulica, motoristas, mecânicos, maquinistas, carpinteiros e industriais de móveis, advogados e notários. Podemos inferir que muitos dos que se estabeleceram em Honolulu na primeira geração traziam já uma boa escolarização. Quanto à segunda geração de Portugueses, encontramos construtores civis, capatazes, barbeiros, eletricistas, inspetores de eletricidade, contabilistas, gerentes comerciais, joalheiros, funcionários bancários, inspetores de obras, inspetores alfandegários, funcionários superiores, corretores de seguros, supervisores, professores, médicos, advogados e deputados. Na ilha de Havai, José Gomes Serrão e seus irmãos Luís e Alfredo, oriundos de Santo António, na Madeira, fundaram, após o término dos seus contratos, uma casa de comercialização de aguardente de cana de açúcar, vinhos e licores, a primeira e única do Havai em 1891. O vinho era produzido com as vinhas que os mesmos cultivavam nas suas terras. O negócio tornou-se próspero, com exportações para Nova Iorque e Califórnia, até à publicação da 18.ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos, em 29 de janeiro de 1929. Depois dela, a firma só produzia sumos, fechando definitivamente no início da Segunda Guerra Mundial. Segundo as pesquisas de Randy Borges, lusodescendente residindo em Honolulu em 1998, foram os Portugueses que introduziram a construção em pedra vulcânica nos edifícios. Conta a tradição que um dia, ao construírem um campo numa plantação, o capataz ordenou que deitassem fora as pedras, respondendo os Portugueses que era pena, pois nas suas terras construíam prédios em pedra vulcânica. O capataz desafiou os trabalhadores a demonstrarem o que diziam. Aceitando o desafio, estes pediram apenas que lhes dessem uma planta. Assim aconteceu: o primeiro edifício em pedra construído em Honolulu, concluído em 1886, foi aquele que se tornaria no Bishop Museum. Entre 1886 e 1924, foram construídos pelos Portugueses o Pauahi Hall, a Punahou School em 1889, a estação de bombeiros em 1906, o Music Hall em 1916, a igreja protestante dos Pioneiros, a estação de bombagem de água de Honolulu, o Mid Pacific Institute, a igreja protestante Central Union e o edifício MCCandles da Universidade do Pacífico do Havai. Os pedreiros portugueses cedo criaram uma sociedade conhecida como Cabinet Makers. Nos censos de 1900 do Havai, estavam recenseados 34 pedreiros portugueses com a designação de “stone mason”, referindo-se que tinham chegado ao Havai entre 1878 e 1886. No mesmo censo já estavam indicados filhos de portugueses nascidos em Honolulu com a qualidade de aprendizes. A cultura musical havaiana sofreu influências madeirenses. O ukulele, instrumento musical do folclore havaiano que consiste numa pequena viola de quatro cordas dedilhadas, tem as suas raízes na braguinha madeirense. A bordo do navio Ravenscrag, que saiu do Funchal a 23 de agosto de 1879, seguiam os imigrantes Augusto Dias, José do Espírito Santo, Manuel Nunes, João Luís Correia e João Fernandes. Segundo Leslie Nunes, descendente de Manuel Nunes, construtor de ukuleles, ele foi o primeiro madeirense a tocar em terras havaianas após o desembarque foi João Fernandes. Aliás, era hábito os imigrantes, quando chegavam a terra firme, tocarem e dançarem. Manuel Nunes abriu uma loja de mobílias e instrumentos musicais em 1884, sendo João Fernandes o afinador dos ukuleles. Também Augusto Dias abriu uma loja em 1884 e José do Espírito Santo em 1888. João Fernandes, Augusto Dias e João Luís Correia formaram um trio musical que atuava em várias festividades, tocando muitas vezes no Palácio Real Iolani a convite do Rei. O ukulele, por ser um instrumento fácil de tocar, tornou-se no preferido dos havaianos. Nas plantações, os Portugueses gostavam de cantar ao desafio e à desgarrada; nas festas, usavam a guitarra, a braguinha, o rajão, o acordeão e, para além destes, os madeirenses usavam o brinquinho e os ferrinhos. Manuel de Jesus Coito (Paul do Mar, Madeira, 1876-Honolulu, 1957), conhecido como o poeta do Punchbowl, zona preferida para viver pelos Portugueses que trabalhavam em Honolulu, que embarcara com seus tios António Joaquim de Freitas e Maria Violante de Freitas, publicou poesia em jornais portugueses de Honolulu, principalmente no Luso-Havaiano, entre 1899 e 1919. Mostrava bom domínio da língua materna escrita, bem como da cultura e poesia portuguesas da época, pois refere-se, nos seus poemas, a Pinto Coelho, madeirense e redator no Diário de Notícias da Madeira, Tomás Ribeiro, Guerra Junqueiro, João de Deus e Camões, entre outros. Mostrava uma educação católica cuidada, referia o culto de N.ª S.ª do Monte, o culto do divino Espírito Santo e aspectos da história do cristianismo. Mostrava um bom conhecimento da história de Portugal, da expansão portuguesa, da situação portuguesa nos finais da monarquia, das pressões internacionais sobre as colónias na Conferência de Berlim, em 1895, e defendia o regime republicano, tendo referido igualmente o papel do exército português na Primeira Guerra Mundial. Como a religião da monarquia havaiana era a protestante, mandou-se vir de Jacksonville e Springfield, no estado do Illinois, pastores que falavam português. Estes faziam parte dos madeirenses que tinham sido forçados a sair da Madeira devido à perseguição religiosa que sofreram por se terem convertido ao protestantismo pela ação evangelizadora do escocês Robert Reid Kalley, tendo ido inicialmente para a ilha de Trindade e posteriormente para os EUA. Alguns madeirenses optaram pelo protestantismo, pois era a religião dos Reis e dos haoles – expressão havaiana que designa os caucasianos de origem inglesa e americana – e um modo de progressão social. Como a maioria continuou católica, foram depois enviados padres católicos, tendo o primeiro bispo católico no Havai sido D. Estêvão de Alencastre, natural do Porto Santo. Depois da sua morte, o Havai ficou subordinado a uma diocese americana, a de São Francisco. Os portugueses tinham a preocupação de garantir o seu futuro e o apoio às famílias, razão pela qual constituíram sociedades de socorros mútuos. No livro de Joaquim de Freitas atrás referido, para além de se relatar a origem das famílias portuguesas, é indicada a sociedade de socorros mútuos a que pertenciam. Encontramos, neste contexto, referência à Sociedade Lusitana Beneficente de Havai, à Sociedade Portuguesa de Santo António Beneficente de Havai, à Court Camões, à Sociedade Madeirense, à Sociedade Beneficente de São Martinho e à Redmen. A primeira sociedade foi a Sociedade de Santo António, que foi fundada em 1877 e terminou a sua atividade a 1 de abril de 1965; os seus fundadores foram António Joaquim Lopes, M. S. Pereira, Manuel G. Correa, João Gaspar, António de Fraga e José Francisco Medeiros. Segundo o testemunho de James Gonçalves em 1998, além das sociedades Santo António e Lusitana, seu avô pertencera a outra sociedade beneficente, a Court Camões, tendo seu pai pertencido ainda a uma terceira, a Redmen, cujo objetivo fundamental era o apoio às famílias nas despesas de funerais, dando 200 dólares à viúva. A maioria das sociedades desapareceu durante a Segunda Guerra Mundial, na opinião de James Gonçalves devido à lei marcial publicada em 8 de dezembro de 1941, em Honolulu, após o ataque japonês a Pearl Harbour; nessa ocasião, todos os cidadãos estrangeiros tiveram de se registar junto da polícia militar, sendo de ressaltar que a maioria dos imigrantes portugueses ainda mantinha a nacionalidade portuguesa. Nessa época, os estrangeiros eram olhados com suspeita pelos militares americanos. Muitos Portugueses morreram durante a guerra e os de primeira geração foram falecendo até cerca dos anos 50 do séc. XX. Para além disso, as terceiras e quartas gerações foram integradas na sociedade havaiana, nomeadamente ao nível laboral, pelo que as sociedades de socorros mútuos deixaram de ser necessárias. Os Portugueses foram aceites como cidadãos americanos por volta de 1940, sendo só a partir dessa data que, nos censos, deixam de ser tratados como portugueses e passaram a ser incluídos como americanos. Os Portugueses desde sempre lutaram contra a discriminação a que foram sujeitos e tudo fizeram para serem considerados haoles, como eram designados os Americanos escolarizados. Assim, foram gradualmente cortando as suas raízes e a sua ligação com o “velho mundo”, pelo que os seus jornais em língua portuguesa, os clubes e as sociedades foram desaparecendo após a guerra. Os Portugueses eram olhados como classe média, tendo contribuído para o aparecimento de uma nova cultura havaiana pelos seus casamentos inter-raciais. Curiosamente, enquanto católicos, continuaram a dançar, nas festividades religiosas, as danças folclóricas tradicionais trazidas pelos primitivos colonos. Assim, no Festival de Danças Folclóricas Portuguesas, em 1954, a cultura portuguesa emergiu com toda a pujança, quando a maioria das pessoas pensava que os Portugueses tinham perdido a sua raiz europeia Os promotores desse festival – no qual se cantou em português – realçaram o valor da cultura portuguesa e o orgulho que tinham nas suas origens lusas. A partir de 1954, houve uma tendência para fazer renascer as origens madeirenses, açorianas e, de uma forma geral, portuguesas face à discriminação de que os imigrantes tinham sido alvo no passado. Em 1978, foi festejado o centenário da chegada dos primeiros colonos oriundos da Madeira à cidade de Honolulu, no Havai. A comissão do centenário, nomeada pelo governador do estado, George Ariyoshi, era composta por John Henry Félix, cônsul de Portugal; Jack Mello, vice-cônsul de Portugal; Edna Rebelo Ryan, presidente do Hawaiian Portuguese Heritage, da direção do grupo musical Camões Players e da Portuguese Civic Association; Audrey Rocha, vice-presidente do Portuguese Civic Association e diretora de um programa de rádio na ilha de Maui, entre outros. Desde então, passou a celebrar-se, em setembro, a festa portuguesa, rotativamente nas ilhas da Oahu, Maui e Hawai, organizada pelas associações culturais de origem portuguesa. No ano de 1978, existiam as seguintes organizações portuguesas no Havai: Brotherhood Holy Ghost of Holy Trinity em Honolulu; Camões Players em Honolulu; Crianças de Portugal em Honolulu; Hawaiian Portuguese Heritage Council em Honolulu; Kalihi Holy Ghost em Honolulu; Kewalo Holy Ghost em Honolulu; Pioneer Civic Association em Honolulu; Portuguese Genealogical Society em Honolulu; Hilo Chamarrita na ilha de Havai; e Maui Portuguese Corporation na ilha de Maui. Como podemos ver, muitas associações estavam ligadas à religião. Oriundos maioritariamente de um grupo social iletrado, como se referiu, os Portugueses começaram as suas vidas nas plantações, tendo, logo após os contratos, iniciado atividades fora delas; tornaram-se assim uma classe média respeitada e deram instrução aos filhos, que vieram a ocupar lugares de relevo na administração havaiana: sendo senadores, juízes e deputados. Apesar de as novas gerações terem a cidadania americana, por volta dos anos 50 do séc. XX, começaram a interessar-se pelas suas origens europeias, aprendendo a língua portuguesa em cursos livres particulares ou frequentando cursos na Universidade do Havai. A emigração insular para o Havai contribuiu para a criação da cultura havaiana.   Ana Isabel Spranger (atualizado a 30.12.2017)

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susan harriet vernon harcourt

Lady Susan Harriet Vernon Harcourt nasceu em 1824 e recebeu o nome de Susan Harriet Holroyd. Era filha do 2.º conde de Sheffield (1802-1876) e casou-se, em agosto de 1849, com Edward William Vernon Harcourt (1825-1891). No ano anterior ao do seu casamento, lady Susan acompanhou o noivo à Madeira com sua mãe, a condessa de Sheffield. Edward já tinha estado na Madeira de outubro de 1847 a abril de 1848., e esteve com a noiva de novembro de 1848 a maio de 1849. Volta à Ilha depois do casamento, de novembro de 1849 a maio de 1850 e de novembro de 1850 a abril de 1851. Na família Harcourt parece ter sido tradição, entre os que apresentavam debilidades físicas, a passagem do inverno na Madeira, onde esteve o pai de Edward, Rev. William Vernom Harcourt, e, no inverno de 1847 para 1848, seu irmão William George Granville Venables Vernon Harcourt (1827-1904), depois ministro do Interior de um dos governos da rainha Vitória e uma das figuras políticas determinantes do seu tempo; mais tarde, o filho deste também frequentaria a Madeira (Turismo terapêutico). O álbum de lady Susan Harcourt Sketch of Madeira, editado em Londres, em 1851, por Thomas McLean, espelha a educação das classes abastadas da sua época, a que não escapava a autora e o marido, que edita na mesma data e pelo mesmo editor A Sketch of Madeira, Containing Information for the Traveller, or Invalid Visitor, dedicado à sogra, condessa de Sheffield. Edward também se interessava por ornitologia e daria à estampa as suas observações sobre as aves da Madeira, igualmente editadas em Londres, em 1855. Trocava, inclusivamente, correspondência com Charles Darwin; da qual se extraíram as informações sobre as suas deslocações à Madeira. O conjunto de litografias de lady Susan reúne 22 vistas da Madeira, litografadas pela própria ou pelo menos com a sua colaboração. Destas litografias 3 são em grande formato, demonstrando muito boa qualidade de desenho, com um traço suave, delicado e feminino, abarcando os grandes planos gerais e esboçando somente os pequenos detalhes. Desconhece-se o destino dos originais, bem como de posteriores trabalhos da autora, que terá passado a dedicar-se inteiramente à educação dos dois filhos. Morre aos 64 anos, em abril de 1894. A documentação da família encontra-se hoje integrada na Bodleian Library da Universidade de Oxford, onde, em conformidade com o que foi dito não constam os desenhos originais nem referência a trabalhos posteriores, que talvez se mantenham na posse da família. O conjunto editado do casal Harcourt enquadra-se no “grand tour” de educação das sociedades europeias abastadas, que olhavam para a Madeira como um destino no leque de possibilidades do turismo terapêutico. Ao mesmo tempo, este conjunto retrata uma nova posição e atitude da mulher ao longo do séc. XIX, que não só desenha em público, o que até então era quase impossível, como edita depois as suas obras, podendo, inclusivamente, trabalhar na sua passagem à litografia. Poucos anos antes, em 1845, também Jane Wallas Penford (1821-1884) editara os seus trabalhos em Londres, no conjunto Madeira Flowers, Fruits, and Ferns, este elaborado a partir de aguarelas feitas na sua propriedade da quinta da Achada – e não em público – e de litografias posteriormente aguareladas pela sua mão, também na sua quinta do Funchal. Edward Harcourt tece algumas considerações sobre os desenhos da sua então ainda noiva lady Susan, onde descreve a dificuldade em captar o cenário grandioso da paisagem madeirense, face à contínua mudança de luminosidade. Ao contrário da permanente neblina dos ambientes nórdicos, na Madeira a constância dos brilhos alterava-se constantemente pela simples passagem de uma nuvem. O autor conta ainda as dificuldades em que se via a pintora ao iniciar o seu trabalho, por ser de imediato rodeada de inúmeros observadores que, parecendo não ter mais nada para fazer, ali se mantinham inabaláveis durante horas a fio. Informa e alerta também os futuros leitores sobre a taxa imposta pela Alfândega do Funchal aos desenhos levados da Ilha, 6 xelins e 8 pences por libra de peso, o que considerava um verdadeiro exagero, mas que configura a consciência do interesse económico dos mesmos por parte das autoridades aduaneiras insulares.   Rui Carita (atualizado a 30.12.2017)

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quinta das cruzes

João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471) e a família começaram por se instalar, precariamente, nos arrifes de Santa Catarina, entre cerca de 1421 e 1425; alguns anos depois, também de forma precária, fixaram-se na área do futuro convento de Santa Clara, mandado levantar pelo filho e segundo capitão-donatário do Funchal, João Gonçalves da Câmara (1414-1501). Tendo o primeiro capitão, Zarco, começado a registar, por escrituras públicas, na déc. de 50 do séc. XV, as propriedades dos seus descendentes e outras, nomeadamente a doação dos terrenos junto da capela de S. Paulo, a 25 de maio de 1454, para a edificação do primeiro hospital do Funchal, deverá datar da década seguinte a sua instalação na área da capela da Conceição de Cima, templo que mandara erguer para acolher a sua sepultura. As habitações dessa época eram, no entanto, ainda precárias, como nos informa o Cón. Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593), indicando que a primeira casa de pedra que se fez, depois de acabadas as igrejas, fora a de Constança Rodrigues, filha de Diogo Afonso de Aguiar e neta de Zarco, junto à atual capela de S. Paulo. Constança Rodrigues não casara e ficara a viver com os avós, pelo que a construção da dita casa deve datar de pouco depois de 1471, ano provável da morte de Zarco (Arquitetura). O segundo capitão terá ocupado a residência precária do pai, mas, ao assumir a construção do convento de Santa Clara, para o que cedeu terreno e outros meios, terá iniciado uma outra edificação, mais acima, para norte, que veio a dar origem às casas das Cruzes. O futuro capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530), casou-se por volta de 1488. Pelo menos desde 1 de julho de 1495, data em que compareceu na Câmara do Funchal como alcaide-mor, tinha residência no chamado altinho das fontes, onde depois se levantou a fortaleza (Palácio e fortaleza de S. Lourenço). Nesse quadro, o codicilo do testamento do pai, de 1501, determina que o filho “Pedro Gonçalves da Câmara, haja as casas em que eu moro com todo o seu assentamento” (ARM, Juízo..., cx. 82, n.º 1). Não existe aqui informação específica quanto às habitações em questão, mas, como mais tarde as mesmas foram vendidas pelo neto e homónimo Pedro Gonçalves da Câmara ao seu tio-avô Francisco Gonçalves da Câmara, sabemos que se tratam das casas das Cruzes. As casas das Cruzes aparecem representadas na planta de Mateus Fernandes (III) (c. 1520-1597), realizada entre 1567 a 1570, na sequência do ataque dos corsários franceses ao Funchal, ocorrido no ano anterior, e com a indicação “casas de Luís de Noronha” (BNB, cart., 1090203), indivíduo que pensamos ser sobrinho de Pedro Gonçalves da Câmara. Essas casas, no entanto, não eram propriedade sua, pois uns anos mais tarde, a 16 de setembro de 1575, o sobrinho ou sobrinho-neto Pedro Gonçalves da Câmara, no Arco da Calheta, para resolver uma série de problemas pendentes do tempo do pai, António Gonçalves da Câmara (c. 1510-1567), teve de vender as casas das Cruzes. Com efeito, António Gonçalves da Câmara, que fora nomeado caçador-mor de D. João III, dissipara grande parte da fortuna. Assim, em 1575, o jovem Pedro Gonçalves de Abreu declarava que, “por ser já emancipado e ter licença do juiz para poder vender as terras baldias e as casas das Cruzes para suprimento das mais fazendas que tinha no Arco da Calheta, sem o que não podia fazer”, vendia ao tio-avô Francisco Gonçalves da Câmara (c. 1510-c. 1586) as mesmas. De facto, este veio a tomar posse das terras a 22 de setembro. Poucos anos depois, Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) relatava a residência de Francisco Gonçalves da Câmara como “uns paços mui grandes e sumptuosos” (FRUTUOSO, 1873, 115); note-se, contudo, que não se tratava ainda do edifício que chegou aos nossos dias, sucessivamente reconstruído. A avaliar pelo referido traçado de Mateus Fernandes, a residência possuía planta em L, com um corpo virado a sul não muito diferente, em planta, daquele que ainda possui, e um outro para poente, também como hoje se vê. É possível que, do edifício dos primeiros anos do séc. XVI, tenham ficado duas portas rematadas por lintel esculpido ao gosto manuelino, transformadas em janelas nas obras de reabilitação dos anos 50 do séc. XX (Arquitetura senhorial). As casas das Cruzes passaram depois a Joana de Noronha (c. 1550-1613), filha de Francisco Gonçalves da Câmara (c. 1510-c. 1586) e, em seguida, ao sobrinho António do Carvalhal Esmeraldo, falecido em 1648, sucedendo-o o morgado Francisco Esmeraldo Correia Henriques na casa das Cruzes. Provavelmente na posse deste último, por volta de 1660, o edifício foi dotado de um corpo novo, adossado à fachada para servir de entrada de aparato, constituindo-o um terraço, hoje coberto, assente sobre arcaria em cantaria vermelha do Cabo Girão e com acesso por poente. Nos finais de Seiscentos, aquele morgado mandou também levantar no local a capela de N.ª S.ª da Piedade, com acesso público pelo Lg. das Cruzes ou Lg. da Bela Vista, obra realizada na altura em que a propriedade foi ampliada para sul. Na fachada da capela foi mandada gravar a data de 1692, embora a dotação da mesma seja de 25 de maio de 1695 e a vistoria eclesiástica para efeitos de autorização de culto date de 14 de junho seguinte. O morgado subsequente, António Correia Henriques Lomelino, casou com D. Guiomar Jacinta de Moura Acciauoli, a 21 de novembro de 1718; alguns anos depois, com a morte da sua mãe, Catarina Lomelino de Vasconcelos, o morgado ficou herdeiro dos vínculos dos Lomelino, onde estava incluído o convento da Piedade de Santa Cruz. Daquele casamento nasceu Ana Guiomar Acciauoli Lomelino, conhecida como morgada das Cruzes, que desposou, em 1745, Nuno de Freitas da Silva, sétimo administrador do vínculo dos Freitas da Madalena do Mar e que se dizia ser o homem mais rico da Madeira. Educado em Londres, a ele se devem, muito provavelmente, alguns dos melhoramentos realizados nas casas das Cruzes após o terramoto de 1748, período em que o edifício central adquiriu a forma que hoje conhecemos. Nos meados e finais do séc. XVIII, o jardim foi dotado de cascatas e fontes, parte em embrechados de tufo vulcânico e, inclusivamente, pinturas a fresco, como depois outras com aplicações de restos de porcelanas e faianças, sucessivamente melhoradas e ampliadas ao longo da centúria seguinte. A fonte e cascata com os frescos onde parecem figurar Vénus e Apolo, e.g., deve datar de cerca de 1770, podendo essas pinturas terem sido executadas pela oficina de António Vila Vicêncio (c. 1730-1796). Data dessa campanha de obras dos finais do séc. XVIII o conjunto representativo de quinta madeirense que chegou até nós, composto por um amplo parque demarcado por muros e rematado nos extremos por “casinhas de prazer” (Casinha de prazer), contendo ainda uma capela, neste caso, com acesso exterior e com o percurso interior percorrido por caminhos empedrados com elaborados desenhos, formados pela disposição de pequenos seixos; este parque tem espaços ajardinados e encontra-se dotado de vários tanques de água, além das fontes e cascatas mencionadas. Nos finais desse século, a planta de Agostinho José Marques Rosa que data de cerca de 1800 menciona, entre uns poucos palácios, o “de Nuno de Freitas” (BPMP, cota PP190/CE), ou seja, a quinta das Cruzes. Era então propriedade do herdeiro Nuno Martiniano de Freitas, passando depois ao seu filho, o morgado Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880), que casou com uma prima direita, D. Ana Welsh de Freitas Lomelino, figura notável da sociedade do seu tempo. A planta do Funchal do brigadeiro Reinaldo Oudinot (1747-1807), levantada na sequência da aluvião de 9 de outubro de 1803, tal como a planta seguinte, de 1805, do Ten. Paulo Dias de Almeida, registam o amplo parque, as casinhas de prazer, a capela e um corpo, que foi demolido perto dos finais do século seguinte, situado na área do atual roseiral da entrada do museu Quinta das Cruzes. Quinta das Cruzes. Foto: BF O conjunto que conhecemos hoje foi ainda alterado e melhorado ao longo dos meados do séc. XIX, quando os Lomelino conseguiram, e.g., reivindicar a propriedade do convento da Piedade de Santa Cruz. Com efeito, alguns morgados contestaram a lei de extinção das ordens religiosas de 30 de maio de 1834 e a posterior incorporação dos seus bens no Estado, nomeadamente Nuno de Freitas Lomelino (1813-1880), último padroeiro e morgado das Cruzes, em 1836, que veio a requerer os bens do antigo convento. A sentença do Tribunal da Relação de Lisboa, a favor de Nuno de Freitas Lomelino, tem a data de 1844; a 13 de julho de 1852, tomou posse das ruínas do antigo convento, transferindo algum desse património para as Cruzes, designadamente o túmulo do fundador, trasladado para a capela da Piedade; existem outros elementos arquitetónicos, pelo menos numa das casinhas de prazer, que parecem ser também provenientes desse convento. A quinta foi vendida, em 1863, a Tristão Vaz Teixeira de Bettencourt e Câmara (1848-1903), barão do Jardim do Mar. Com o seu falecimento, passou a outros proprietários e foi arrendada. Em 1916, a residência foi adaptada para servir de sede à casa bordados A. J. Froes & C.ª Suc.. Entre 1927 e 1931, funcionou ali o Quinta das Cruzes Hotel, cujos chás dançantes eram afamados, recolhendo nele o Gen. Adalberto de Sousa Dias (1865-1934) como deportado político, em fevereiro de 1931; envolvera-se na revolta do Porto, em 1927 e, em breve, interviria na Revolta da Madeira. Já desde 1929 que uma parte da quinta funcionava como sede da banda municipal Artistas Funchalenses, que organizava sessões de cinema ao ar livre no parque do hotel. Durante a Segunda Guerra Mundial, a propriedade serviu de residência a refugiados vindos de Gibraltar. Depois da guerra, residia numa parte do edifício o ourives e antiquário César Filipe Gomes (1875-c. 1949), que, em 1946, propôs doar a sua coleção de antiguidades ao governo da ilha da Madeira. Em sequência, em 1948, a Junta Geral adquiriu a quinta para instalar aí a dita coleção. A intervenção para a adaptação às novas funções iniciou-se em 1950, sendo o museu inaugurado a 28 de maio de 1953.   Rui Carita (atualizado a 16.12.2017)

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