Mais Recentes

a arte da tradição e de ser artesão

Se os artesãos moldam as formas dos artefatos tradicionais, em simultâneo procedem igualmente à reinterpretação do legado. Na demanda diária as pequenas transformações da tradição não são visíveis, reafirmando-se neste contexto a sua pureza. As transformações são descortinadas apenas quando analisadas na perspetiva diacrónica ou através de inovadores movimentos trazidos por novos artesãos, os quais são influenciados por dinâmicas externas. É esta mescla de perspetivas sociais e de motivações idiossincráticas relativas aos próprios artistas que transforma constantemente a tradição. Isabel da Eira Isabel da Eira é fiandeira e tece barretes de orelhas, ou barretes de vilão, conhecidos pelo menos desde 1857. Fá-lo desde os 14 anos de idade com um rigor que os torna peças de artesanato consideradas de boa qualidade. Este barrete de orelhas é um dos que eram usados na Madeira, conhecendo-se variação entre as localidades, sendo preparados juntamente com os casacos para as condições meteorológicas extremas da alta montanha. A textura macia da lã resulta do modo como se fia e Isabel da Eira é considerada uma excelente fiandeira, sendo o seu trabalho reconhecido entre os colegas de actividade. As etapas da preparação consistem no lavar, secar, cardar e fiar. O Borracheiro Este bar tem uma relação especial com a história do transporte de carga da Madeira e, em particular, com a história dos borracheiros. A carga na ilha da Madeira era transportada por veredas e pelos Caminhos Reais. Este ponto situa-se num dos extremos da vereda que liga ao Porto da Cruz, terra de vinho. Os borracheiros, assim designados porque transportavam o vinho nos borrachos, avançavam em grupo de entre dez a quinze homens. Aqui chegados, anunciavam-se com o toque do búzio, instrumento musical que os acompanhava nas viagens e que servia de comunicação. Maria Vasconcelos Iniciou a aprendizagem da tapeçaria aos treze anos por vontade própria, e seguiu o modelo comum na época. Aprendeu com uma artesã, a quem eram reconhecidas competências pedagógicas, a troco de remuneração, enquadrando-se numa lógica particular de investimento educativo semelhante ao que ocorre na actualidade. A formação durou sete meses e incentivou a autonomia. Para além dos tapetes de retalhos, caraterizados pela criatividade quanto aos padrões e cores, as quais dependem na maior parte das vezes dos retalhos que os clientes trazem, tece casacos de lã numa parceria com a fiandeira Isabel da Eira, sendo a responsabilidade quanto às decisões relativas ao trabalho nas suas diversas dimensões partilhada. Artesão Humberto Ex-pedreiro, com o abrandar da construção civil na Madeira, iniciou a atividade de artesão em 2007. Faz peças em madeira para fins de natureza diversa: móveis, utensílios diversos, brinquedos, miniaturas, carrinhos de mão, colheres de pau, piões, bengalas. As peças são vendidas nas diversas feiras que se realizam na ilha. Café Relógio Um dos espaços que facilmente se associam ao vime, o Café Relógio, está de forma directa relacionado com a história da indústria, dado que para além de comerciar vimes, alberga uma oficina onde se pode ver a execução do trabalho pelos artesãos. Para além deste facto, a torre do edifício alberga um relógio, originário da Igreja Paroquial de Walton, em Liverpool, e é um símbolo da presença inglesa na freguesia, havendo sido mandada construir pelo Drº Michael Graham no que era, na época, a Quinta da Camacha, sua propriedade. Realce-se que a comunidade inglesa na ilha da Madeira desempenhou um papel importante no desenvolvimento de algumas artes tradicionais da freguesia, casos do bordado e do próprio vime. Textos: César Rodrigues Fotos: Rui A. Camacho  

Cultura e Tradições Populares Rotas Madeira Cultural

do ouro branco e pela vinha às quintas

Desde o Século XV, a Madeira recebeu comerciantes e turistas de diversas nacionalidades. Pela Madeira passaram, por exemplo, comerciantes venezianos e flamengos no contexto do afamado período do “ouro branco” deixando a sua marca na toponímia da cidade do Funchal e no sobrenome de famílias madeirenses, mas a partir do século XVII, com a paulatina substituição da cultura do açúcar pela da vinha, os comerciantes britânicos tornaram-se a comunidade estrangeira mais importante no arquipélago. A influência desta comunidade manifestou-se em alguns de setores económicos e na edificação, entre as quais se contam as tão conhecidas quintas da Camacha e do Santo da Serra.     Quinta do Jardim da Serra Esta Quinta, construída no século XIX pelo Cônsul Inglês Henry Veitch, tem importância fulcral na história da própria freguesia. Foi o nome desta propriedade que deu origem à denominação da freguesia: Jardim da Serra. Adaptada em 2010 numa excelente unidade hoteleira, preserva um edifício com arquitetura tradicional. É ainda possível contactar com as práticas de agricultura biológica e alguns exemplares de flores madeirenses nos amplos jardins da propriedade. Realce para o facto da quinta ter sido fonte de inspiração para Max Römer, e estar representada numa gravura do século XIX, patente na reitoria da Universidade da Madeira, no Funchal. Quinta das Romeiras Esta quinta foi desenhada pelo conhecido arquiteto português Raul Lino e foi mandada construir pelo Drº Alberto Araújo, como residência de férias. Foi construída no ano de 1933, ano em que a 14 de Abril o Diário da Madeira noticiava que se estava “trabalhando afanosamente na construção de uma opulenta vivenda de campo, no sítio das Romeiras, desta freguesia, donde se desfruta um largo e aprazível panorama. O povo já a baptizou de Quinta dos Penedos”. A escritora Maria Lamas em 1956 descrevia assim seus jardins: “Do branco de neve ao salmão, ao carmesim, ao amarelo-oiro e ao roxo, passando por todas as escalas de tons - quem poderá imaginar, sem a ter visto, aquela sinfonia de cores?” Quinta do Vale Paraíso Constituída por um edifício principal, construído em meados do século XIX, e por outros 9 de dimensões mais reduzidas, transformadas em pequenas residências de férias, as quais mantêm de um modo geral o nome da sua função original. Este espaço oferece ainda amplos jardins compostos por plantas endémicas e exóticas pertencentes a cerca de 220 espécies. A partir desta quinta acedemos, através de uma vereda, à Levada da Serra do Faial. fonte: ariscaropatrimonio.wordpress.com Quinta do Revoredo Esta propriedade foi mandada construir por John Blandy, em 1840, que depois de conhecer a Madeira como marinheiro de um navio inglês nas guerras napoleónicas viria a tornar-se no mais importante homem de negócios da ilha e cuja família ainda é uma das mais influentes na Região. Hoje a quinta é propriedade da edilidade e é nela que se encontra a sede da orquestra filarmónica de Santa Cruz, sendo utilizada também como Casa da Cultura do município. Quinta de São Cristóvão Esta quinta com caraterísticas da arquitetura portuguesa, foi mandada construir em 1692 pelo morgado Cristóvão Moniz de Menezes e manteve-se como propriedade da família até que recentemente Carlos Cristóvão da Câmara Leme Escórcio de Bettencourt, sem descendentes, o cedeu ao Governo Regional da Madeira. Chegou a albergar o Conservatório de Música e actualmente funciona como casa do artista. Este solar está ainda relacionado com a Paróquia do Piquinho, uma vez que foi aqui erigida a Capela de São Cristóvão, a qual recebe em Maio a festa religiosa de São Cristóvão. Também aqui funcionou uma escola fundada pela irmã Mary Jane Wilson, entre 1904 e 1910.   Textos: César Rodrigues Fotos: Rui A. Camacho

Arquitetura Património História Económica e Social Rotas

vínculos (morgadios e capelas)

Surgidos em Portugal no séc. XIII e consolidados na Baixa Idade Média, os morgadios – ou morgados – foram instituições características da península Ibérica e da nobreza, servindo como instrumentos jurídicos para salvaguardar e conservar os alicerces materiais dos grupos sociais nobres. Desta forma, através dos morgadios, prescrevia-se a inalienabilidade e indivisibilidade dos bens da família ou da casa, impedindo-se assim a sua fragmentação, por partilhas, após o falecimento do instituidor. A propriedade era transmitida, preferencialmente por ramo varonil, ao primogénito, de modo a alcançar uma sucessão perpétua no seio da família. Estas instituições acabaram, afinal, por contribuir para a manutenção de uma agricultura de natureza feudal. Em íntima relação com a questão económica, os vínculos tinham ainda por objetivo a manutenção de um estatuto social baseado na conservação de privilégios e de uma memória coletiva partilhada pelos membros da linhagem. No cômputo geral, uma propriedade vinculada – ao invés de uma propriedade livre ou alodial – implicava a prerrogativa da apropriação de uma porção dos seus rendimentos. Por vezes, nos documentos (testamentos, geralmente) que instituíam vínculos – morgadios ou capelas –, não era clara ou fácil de destrinçar a tipologia do vínculo criado, além de que ambas as palavras chegavam a ser usadas indiferentemente. O articulado das Ordenações Manuelinas, no parágrafo 49 do título 35 do livro II, estabelece a distinção entre morgadios e capelas, diferença que se passa a apresentar. Existe um morgadio quando, após cumpridos os encargos estipulados por vontade do fundador – comummente, missas pela sua alma –, o remanescente do rendimento dos bens do vínculo pertencer aos administradores ou quando o instituidor legar os bens com a condição de os herdeiros realizarem ou mandarem realizar missas e outras obras pias; existe uma capela, por outro lado, quando ficar estabelecido que, da totalidade dos rendimentos dos bens vinculados, os administradores terão direito a uma parte – 1/3, 1/4 ou 1/5 –, e o restante será usado em missas e outras obras de cariz piedoso. Pode dizer-se que, no primeiro caso, o que estava em causa, sobretudo, era uma dimensão secular – os bens materiais e a perpetuação do capital social e simbólico da linhagem –; no que concerne à capela, o mais importante era a dimensão espiritual – traduzida nos encargos pios. Tem sido apontado que, no quadro português, a ilha da Madeira foi uma das regiões onde a existência de instituições vinculares atingiu maior expressão. Cabral do Nascimento, no seu estudo “Capelas e morgados da Madeira” (1935), asseverou que, na Ilha, as capelas tiveram preponderância sobre os morgadios. Assim, na história deste espaço insular, o fenómeno da vinculação da propriedade assume uma importância de tal ordem que o seu desconhecimento compromete uma compreensão cabal do passado e do presente. Porém, a sua história global ainda está por fazer. Os vínculos foram precedidos pelas sesmarias – ou tiveram, na sua maior parte, origem nestas –, surgindo a partir de finais do séc. XV e, mormente, do séc. XVI. Instituídos no séc. XV, houve, e.g., os vínculos de Água de Mel, na freguesia de Santo António, que foi agregado à casa Carvalhal; de Consolação, na freguesia do Caniço, da família Ornelas e Vasconcelos; de João Afonso, em Câmara de Lobos, incorporado na casa Torre Bela; e de Vasco Moniz, em Machico, do qual José Bettencourt e Freitas foi o derradeiro representante. Na primeira metade da centúria quinhentista, foram criados vários vínculos de relevo na história da Madeira, de entre os quais se referenciam (em conjunto com os instituidores e as localidades) os seguintes: o da Lombada dos Esmeraldos, fundado por João Esmeraldo, na Ponta do Sol; o dos Lomelinos, por Urbano Lomelino, em Santa Cruz; o dos Franças, por João de França, na freguesia do Estreito da Calheta; o de São João de Latrão, por Nuno Fernandes Cardoso, em Gaula; o da Penha de Águia, por António Teixeira, na freguesia do Porto da Cruz; e o de São Gil, por D. Brites Escórcio, em Santa Cruz. Será útil fornecer ainda um exemplo pormenorizado de um vínculo que apresenta algumas das características gerais já apontadas e outras de índole diversa: o morgadio das Desertas, instituído no início da segunda metade do séc. XVI. Luís Gonçalves de Ataíde, filho do segundo casamento do 3.º capitão do donatário do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, celebrado com Isabel de Ataíde, era proprietário da ilha Deserta e recebeu de sesmaria, a 24 de março de 1546, o ilhéu Chão. Obedecendo a uma determinação de sua mãe, instituiu, por uma escritura de compromisso de 3 de setembro de 1552, os referidos bens em morgado perpétuo, obrigando a sua terça. Um alvará régio de 28 de janeiro de 1576 confirmou e aprovou este morgadio. Por vontade do instituidor, ficou estabelecido que: depois do seu falecimento e do da sua consorte, a sucessão recairia no filho varão mais velho ou no neto ou bisneto – seguindo, no plano geral e em regra, a primogenitura varonil legítima, em detrimento das linhas secundogénita e feminina; todos os herdeiros sucessores ficavam obrigados a ampliar os bens vinculados, mediante a inserção no morgadio de metade da sua terça; de igual modo, era-lhes imposto o uso dos apelidos e das armas das linhagens; era-lhes ainda interdita a venda, a troca, o escambo ou a alienação dos bens do morgadio; e teriam de ser cumpridos vários encargos pios – quatro missas anuais pela alma dos pais do instituidor. As duas pequenas ilhas nomeadas – Deserta e ilhéu Chão – fizeram parte do património dos descendentes de Luís Gonçalves de Ataíde até 1864. Tradicionalmente considerados como instrumentos jurídicos usados pela fidalguia ou pequena nobreza da Madeira, diga-se, no entanto, que indivíduos houve, de outros grupos sociais menos privilegiados, que também instituíram vínculos. A tutela judicial sobre estas instituições pertencia, desde o séc. XV até ao final do Antigo Regime, ao Juízo dos Resíduos e Provedoria das Capelas. O primeiro juiz de que há menção, João do Porto, foi indigitado no ano de 1486. As atribuições deste organismo incluíam, nomeadamente, a fiscalização da observância dos encargos pios. Desta incumbência ficaram, posteriormente, encarregados o corregedor da comarca do Funchal (de 1820 a 1837), a comissão da Santa Casa da Misericórdia do Funchal e, finalmente, os administradores dos concelhos (consoante o que foi estabelecido no Código Administrativo de 1842). O desenvolvimento económico e a riqueza criados pela transformação e comercialização do açúcar, desde o séc. XV, conduziram a um fenómeno alargado de vinculação de propriedades e ao absentismo dos proprietários. Diz Álvaro Rodrigues de Azevedo (em palavras sobejamente conhecidas e amiudadas vezes citadas) que “O sesmeiro, rico, enfastiou-se da vida campesina, ufanou-se de sua originária fidalguia, e apeteceu vivenda de mais aparato e bulício; desprezou, por isso, a terra; vinculou-a, na mira de assegurar-se dos réditos dela; contratou-lhe a cultura com os colonos livres” (FRUTUOSO, 1873, 678). Como seria de esperar, as conjunturas económicas de crise também tinham influência nas instituições vinculares. Na primeira metade do séc. XVII, devido ao decréscimo da produção açucareira e dos movimentos comerciais, vários administradores de capelas viram-se incapazes de cumprir os encargos pios nos moldes em que haviam sido instituídos e solicitaram a sua diminuição. Outro tempo de crise, em meados do séc. XIX, por causa do declínio do comércio e da produção de vinho, e de uma carestia de víveres, foi o contexto no qual eclodiram propostas atinentes à abolição dos vínculos, como se verá adiante. Vários documentos – de teor algo crítico quanto à existência e às consequências dos vínculos, ressalve-se – fazem alusão à proliferação destas instituições na Madeira. O Gov. Luís Beltrão de Gouveia, em ofício datado de 22 de abril de 1814, a propósito do imposto de sisa, faz uma série de considerações sobre a propriedade. Nesse sentido, refere que a Madeira “é verdadeiramente a Pátria dos Morgados” e divide o espaço insular em quatro partes, de molde a demonstrar que as transações de propriedades seriam de pouco relevo, não justificando a existência de um imposto: uma parte “de rochedos escarpados improdutivos”; duas “possuídas, administradas, e amortizadas nos grandes e pequenos Proprietários” (em que se inseriam os vínculos); e a última composta de bens alodiais (ALMEIDA,1907, 244). Em 1847, o governador civil José Silvestre Ribeiro, ao arrolar as várias razões que obrigavam os madeirenses à emigração – para ele, um fenómeno deveras nefasto –, referencia, no domínio da propriedade, os vínculos e o contrato de colonia. Neste sentido, calcula, porventura com algum exagero, que 2/3 das terras agricultáveis da ilha da Madeira estavam vinculadas. Esta realidade, ao manter muitas propriedades inalienáveis, imunes a reformas e fora do mercado, constituía um fator de bloqueio do mundo agrícola, beneficiando os proprietários absentistas e prejudicando os colonos. O cálculo de José Silvestre Ribeiro tem sido mencionado em vários trabalhos posteriores sobre a história da Madeira para demonstrar a grande disseminação, neste espaço insular, das instituições vinculares. O juiz de direito José Pereira Sanches e Castro, em 1856, ao pronunciar-se sobre as perversidades que tinham lugar com o contrato de colonia e sobre a relação deste com a instituição vincular, afirma que “a maior parte dos terrenos aproveitáveis para a cultura são vinculados” e que era imperativo extinguir os vínculos (CASTRO, 1986, 232 e 236). Com o marquês de Pombal, principiou uma vaga, que durou quase um século, de normas que restringiram a existência e a criação de vínculos. Este foi um processo gradual e de longo prazo que começou por visar as instituições vinculares de menor valor ou rendimento e que culminou, finalmente, na sua extinção completa, em 1863. Apontem-se os diplomas mais relevantes. Assim, por intermédio de legislação datada de 9 de setembro de 1769 e de 3 de agosto de 1770, estabeleceu-se a abolição ou anexação de vínculos que não chegassem a 200$000 réis de rendimento nas províncias da Estremadura e do Alentejo, e a 100$000 réis nas restantes; acresce que a instituição de morgadios ficou dependente de licença régia. Posteriormente, o decreto de 4 de abril de 1832, de Mouzinho da Silveira, aboliu os vínculos cujos rendimentos não montassem a pelo menos 200$000 réis. A carta de lei de 30 de julho de 1860 – em articulação com o decreto regulamentar de 19 de janeiro de 1861 – suprimiu os morgadios que não tivessem, no mínimo, 400$000 réis de rendimento líquido anual e tornou, ainda, a extinção facultativa para os conjuntos de vínculos que, anexados e sob o mesmo administrador, totalizassem 600$000 réis de rendimento por ano; ademais, sob pena de abolição, estabeleceu a obrigatoriedade, num período de dois anos, do registo de morgadios e capelas existentes e a existir. No fim deste processo histórico está a carta de lei de 19 de maio de 1863, a qual estabeleceu, no art. 1.º, que ficavam “abolidos todos os morgados e capelas atualmente existentes no continente do reino, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas, e declarados alodiais os bens de que se compõem” (VASCONCELLOS, 1864, 200), com exceção da casa de Bragança. É muito significativo que, no séc. XIX, várias propostas para a completa supressão de vínculos tenham provido das ilhas (Madeira e Açores) – terras onde havia uma maior proliferação destas instituições e onde, conexamente, os seus efeitos estruturais perniciosos para a economia e sociedade eram mais prementes (ou como tal sentidos). Logo na sessão de 8 de março de 1822 das Cortes Constituintes, o deputado João Bento de Medeiros Mântua, de São Miguel, apresentou um projeto para a extinção dos vínculos nos Açores. Outras iniciativas se seguiram. Aquelas que aqui interessa explorar diretamente, por serem relativas à Madeira, são as de António Correia Herédia e do barão de São Pedro, em época de profunda crise. O barão de São Pedro, Daniel de Ornelas de Vasconcelos, apresentou, na sessão de 15 de fevereiro de 1850, na Câmara dos Pares do Reino, um projeto de lei com o propósito de abolir todos os vínculos no arquipélago da Madeira. Esta proposta foi antecedida pela defesa, em 1847, na imprensa do Funchal, por António Correia Herédia, da extinção destas instituições. Herédia redigiu ainda um manifesto, datado de 1849, intitulado Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira, que encontrou uma viva oposição de vários morgados e administradores da Madeira, os quais responderam com um outro panfleto – Resposta ao Folheto Intitulado Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira, de 1850. Esta guerra panfletária teve ainda mais desenvolvimentos, com novas publicações de António Correia Herédia: As Contradições Vinculadas pelo A. das Breves Reflexões sobre a Abolição dos Morgados na Madeira e Duas Palavras sobre a Representação ou Exposição dos Morgados e Immediatos Successores, ambas igualmente de 1850. O barão de São Pedro, no seu projeto legislativo, referenciava o estado de crise que imperava na Madeira e defendia, como medida necessária e salutar, a supressão dos vínculos, considerados ineficazes e prejudiciais, porquanto não permitiam o progresso da agricultura e o incremento financeiro e comercial. A iniciativa foi muito bem aceite na Madeira e originou uma grande vaga de apoio em órgãos de imprensa e por parte de organismos de poder local (várias câmaras municipais e juntas de paróquia) e inclusive de vários indivíduos (proprietários e membros da elite) – organismos e indivíduos que redigiram petições com argumentos a defender a extinção. Entre os defensores desta medida estavam, como seria de esperar, proprietários de bens livres, lavradores ricos, comerciantes, funcionários públicos, clérigos seculares e ainda diversos administradores de vínculos. Por outro lado, vários morgados opositores, em exposição remetida à Câmara dos Pares do Reino, pretendiam contraditar os argumentos do barão de São Pedro. A realidade, todavia, é que o projeto não chegou a ser aprovado em sede parlamentar. Foi necessário esperar por 1863, ano em que foram abolidos os vínculos em Portugal, como se viu. Na sequência da lei de 30 de julho de 1860 e do decreto regulamentar de 19 de janeiro de 1861, foi redigido o Tombo do Registo Vincular do Funchal, em três volumes. Esta fonte documental apresenta, em virtude do que foi prescrito nas duas normas, somente uma amostra dos vínculos que existiram na Madeira; ainda assim, contém informações relevantes que não devem ser ignoradas. A partir das análises de Cabral do Nascimento, no seu estudo já referido, e sobretudo de Miguel Jasmins Rodrigues, em “Abolição dos morgadios: o caso da Madeira” (2013), fica-se a conhecer um tanto do seu conteúdo. Foram registados, deste modo, de 1862 a 1865, os bens de vínculo de 15 casas, através de traslados de documentos que suportavam juridicamente a existência das instituições vinculares (títulos de instituições, anexações, desanexações, hipotecas, sub-rogações ou expropriações, sentenças de supressão, descrições de valores e encargos). Neste âmbito, foram inscritas as seguintes informações: as várias parcelas que compunham cada vínculo; o rendimento anual das mesmas; a identidade e a situação – foreiro ou colono – de quem as cultivava; os produtos agricultados; e o usufruto de água por direito. Os administradores e representantes das 15 casas, preponderantemente absentistas, eram João José de Bettencourt e Freitas, o marquês de Castelo Melhor, João Cabral de Noronha, o visconde de Torre Bela, Urbano Egídio da Costa Campos, Sebastião Francisco Falcão de Melo Trigoso, João Facundo Alves Spínola de Freitas, João de Bettencourt Baptista, o visconde do Amparo, Agostinho de Ornelas Vasconcelos Rolim de Moura, Luís da Câmara Leme, José Cupertino da Câmara, Remígio António da Silva Barreto, Laureano Francisco da Câmara Falcão e Manuel Raimundo Telo de Meneses Torresão. Os vínculos criados nos dois primeiros séculos da história da Madeira – sécs. XV e XVI – perfazem 67% dos vínculos inventariados; os restantes – 33% – representam obviamente os que foram instituídos em época subsequente. A importância das duas centúrias mais remotas sai reforçada quando se apura que 85% do rendimento anual da totalidade dos vínculos registados pertence aos que foram fundados em Quatrocentos e em Quinhentos. É percetível também uma ligação estreita entre a instituição vincular e o contrato de colonia, porquanto a maioria dos morgados – i.e., detentores ou administradores de morgadios – referidos no Registo Vincular faz explorar as suas terras recorrendo a colonos. Três categorias de morgadios podem ainda ser percecionadas nesta fonte: a que consistiu na transformação de um senhorio banal em propriedade, facto que ocorreu com o morgadio dos marqueses de Castelo Melhor; a dos morgadios compostos por propriedades dispersas por toda a ilha da Madeira, como os de Agostinho de Ornelas Rolim de Moura, do visconde de Torre Bela e de Luís da Câmara Leme; e, enfim, os morgadios que abarcavam propriedades somente em uma ou duas freguesias, e.g., os de João de Bettencourt Baptista (no Porto da Cruz e em Santa Cruz) e João Facundo Spínola de Freitas (na Ponta do Pargo e Calheta). Os morgados que detêm um maior número de vínculos e de parcelas são os intervenientes finais num processo transecular de concentração de propriedade, quer por via de heranças, quer através de estratégias matrimoniais. Sirvam de exemplo João José de Bettencourt e Freitas (com pouco mais de 140 parcelas) e, de novo, os viscondes de Torre Bela (com mais de 170) e Agostinho de Ornelas Rolim de Moura (com quase 140). Na sequência, ainda, das normas de 1860 e 1861, foram depositados na Torre do Tombo processos de registo vincular provenientes de vários distritos, entre eles o do Funchal (10 processos). Alfredo Pimenta, na sua obra Vínculos Portugueses. Catálogo dos Registros Vinculares Feitos em obediência às Prescrições da Lei de 30 de Julho de 1860, e Existentes no Arquivo Nacional da Tôrre do Tombo, catalogou essa documentação. Partindo desse trabalho, dá-se aqui nota de um processo constituído pela cópia de registos de vários vínculos criados na ilha da Madeira e administrados por João Correia Brandão Henriques de Noronha, 2.º visconde de Torre Bela. Pretende-se ilustrar a confluência de várias instituições vinculares nas mãos de um mesmo administrador. Mencionem-se, assim, os seguintes instituidores de vínculos (acompanhados das datas dos documentos de criação, quando conhecidas): João Afonso Correia, a 11 de maio de 1490; António Correia, o Grande, a 29 de dezembro de 1572; D. Isabel de Bettencourt, a 2 de dezembro de 1561; D. Maria Vieira, a 23 de julho de 1592; António Correia Bettencourt e primeira mulher, D. Joana Henriques, a 21 de abril de 1624 e a 21 de julho de 1643, e ainda pelo dito e sua segunda consorte, D. Maria da Câmara, a 10 de dezembro de 1670; D. Mécia da Câmara, a 2 de outubro de 1676; D. Guiomar Correia; D. Isabel Abreu, a 29 de outubro de 1545; D. Maria Pestana, a 2 de janeiro de 1566; António Gonçalves da Câmara, a 2 de novembro de 1545; D. João Henriques e mulher, D. Joana; D. Isabel Fernandes, a 27 de novembro de 1546; Pedro de Brito, a 2 de dezembro de 1586; D. Isabel Afonso, anteriormente a 1561; D. Joana Cabral, a 12 de junho de 1598; D. Ana Murante, a 2 de novembro de 1569 até 29 de fevereiro de 1570; Pedro de Bettencourt Henriques, a 27 de dezembro de 1688; António Correia Bettencourt Henriques e mulher, D. Antónia Joana Francisca Henriques, e Henrique Henriques de Noronha e mulher, a 17 de fevereiro de 1706; D. Antónia Joana Francisca Henriques, a 20 de maio de 1746; João de Bettencourt Henriques, a 27 de novembro de 1649; António da Silva Barreto; Fr. Francisco Bettencourt e Fr. Pedro de Noronha; D. Beatriz Chamorra, a 27 de abril de 1565; Inácio da Câmara Leme e mulher, D. Isabel de Castelbranco; Filipe Gentil de Limoges e mulher, D. Isabel Achiaioli de Vasconcelos, a 23 de novembro de 1674 e em datas posteriores. De 1834 até 1878, prolongando um fenómeno que vinha do Antigo Regime, no conjunto das elites municipais do Funchal, continuava a avultar o grupo dos proprietários – morgados e administradores de morgadios e capelas. A título de exemplo, podemos nomear Aires de Ornelas e Vasconcelos, António Caetano Aragão, Tristão Joaquim da Câmara Júnior, António Bettencourt da Silva Favila, Francisco Araújo Bettencourt Esmeraldo, João de Freitas Correia e Silva, João José Bettencourt e Freitas, João José de Ornelas Cabral, Manuel de Gouveia Rego, Nuno de Freitas Lomelino, António de Carvalhal Esmeraldo (2.º conde de Carvalhal, tido como o homem mais abastado na sua época), Diogo França Neto (visconde de São João) e Diogo Frazão Figueiroa (visconde da Calçada).   Filipe dos Santos     artigos relacionados colonia documentário "Colonia e Vilões" capelas morgado dos piornais elites madeirenses e sua reprodução

História Económica e Social

atlântico, revista

Revista Atlântico O primeiro número da Atlântico. Revista de Temas Culturais, publicação periódica de cariz cultural e científico, veio a lume na primavera de 1985. A revista, de assinatura anual, teve uma vigência temporal de cinco anos e uma periodicidade trimestral – deste modo, cada edição, com cerca de 80 páginas, correspondia a uma estação do ano. Saíram do prelo 20 números, à razão de quatro por ano, sendo o último o do inverno de 1989. As suas dimensões eram de 24 x 17 cm e a paginação iniciava-se a cada novo ano. A redação e administração da publicação estavam sediadas no Funchal e a fotocomposição, o fotolito, a montagem, a impressão e o acabamento processavam-se em Lisboa. O editor e diretor foi António E. F. Loja, que assinou os editoriais de todas as edições (e, inclusive, diversos artigos). As fichas técnicas apresentam um elenco de colaboradores cujos nomes e número (37 na 1.ª edição, 41 na 20.ª) não variaram substancialmente ao longo do tempo. Alguns destes colaboradores elaboraram artigos e providenciaram ilustrações. Na contracapa e no interior – mormente no início, no fim e na separação dos artigos – de todas as revistas podem ser encontradas páginas com anúncios publicitários a produtos e serviços do arquipélago da Madeira. O número inaugural, publicado em 1985, nascia, segundo o editorial do mesmo, “como tentativa sincera de criar na Madeira um local de encontro de ideias, um ponto de confluência de opiniões”. Através de uma análise breve, não exaustiva, dos editoriais, no sentido de apreender os propósitos e a filosofia da revista Atlântico, percebe-se que por meio dela se propunha instaurar um espaço de comunicação aberto e livre, informado pela relevância do conhecimento do passado e do presente, com vista a edificar o futuro. Era veiculada a esperança de que esta publicação fosse considerada útil e, assim, usada amiúde. Desde cedo, foram acolhidos colaboradores de outras geografias, de modo a estreitar as relações com o exterior. Usavam-se igualmente estas páginas para denunciar o clima de mediocridade e para defender maior fulgor e riqueza culturais, afirmando a ligação recíproca e necessária entre cultura e liberdade. A necessidade do conhecimento do passado passava por respeitar e preservar o património – cultural e natural; nesse sentido, foi denunciada e criticada a indiferença, a falta de proteção, o desaparecimento e a intervenção desadequada no mesmo por parte de entidades públicas. A este respeito, afirmava-se a premência da recuperação dos centros históricos e a relevância da inventariação do património natural e construído (criticou-se, e.g., a ação de instituições governamentais no que tocava ao lobo-marinho). A revista era composta de artigos – estudos e ensaios – sobre múltiplas temáticas atinentes, principalmente, ao arquipélago da Madeira; repertórios de literatura (poesia, crónicas, etc.) e de fotografia; e antologias de fontes históricas de diversa índole, reproduzidas no final de cada número (em certos casos, anotadas, traduzidas e com considerações introdutórias e críticas). Contribuíram para a revista os seguintes autores (com estudos e ensaios sobretudo relativos à Madeira): Manuel José Biscoito (mares); Maria dos Remédios Castelo Branco (viajantes estrangeiros – Jean Mocquet); Teresa Brazão Câmara (empedrados, bonecas de “maçapão”, mobiliário); Celso Caires (fotografia); Zita Cardoso (expostos); Rui Carita (litografia – Andrew Picken, defesas de Santa Cruz, embutidos, remates de teto, arquitetura religiosa); Fátima Maria Fernandes Machado de Castro (literatura – Raul Brandão); Jorge de Castro (natureza); Luísa Clode (pintura flamenga, bordado); Marcelo Costa (habitação, arquitetura ); João Couto (escultura – Francisco Franco); Sérgio António Correia (literatura – Bernardo Soares); Silvano Porto da Cruz (museologia e património); Fátima Pitta Dionísio (literatura – Camões e análise de soneto, Revolta da Madeira); João Ferreira Duarte (filosofia); Pedro M. P. Ferreira (eleições no século XIX); António Luís Alves Ferronha (Revolta da Madeira, republicanismo); Paulo Fragoso Freitas (cultura, fontes históricas, azulejos); Maurício Fernandes (escultura – Francisco Franco, fotografia, vídeo); José Luís de Brito Gomes (a Madeira e a Rússia); Fátima Freitas Gomes (comércio interno no Funchal, hotéis e hospedarias); Maria de Fátima Gomes (festas – romarias); José Laurindo de Góis (Ateneu Comercial do Funchal, indumentária e indústria, imprensa); David Ferreira de Gouveia (madeirenses no Brasil, história do açúcar); Emanuel Janes (implantação da Primeira República); Luís Sena Lino (função social do corpo); João Lizardo (arte do renascimento, arte mudéjar); António Loja (história social, económica e política, arquitetura); Castro Lourdes (pintura); Armando de Lucena (escultura – Francisco Franco); Irene Lucília (poesia, ruas); Diogo de Macedo (Francisco Franco); Maria Elisa Basto Machado (filatelia e maximafilia); João Medina (história cultural – Zé Povinho, arte – I República); Luís Francisco de Sousa Melo (teatro, o texto “Alcoforado”), com a colaboração de Maurício Fernandes num dos seus artigos; Anabela Mendes (cultura e museologia); Mary Noel Menezes (madeirenses na Guiana britânica); António Montês (escultura – Francisco Franco); Teresa Pais (Visconde da Ribeira Brava); Jaime Azevedo Pereira (vimes, o Jardim Botânico da Ajuda e a Madeira, Padre Eduardo Clemente Nunes Pereira, João Fernandes Vieira); António Jorge Pestana (história militar); Fernando Pessoa (serras); Gabriel de Jesus Pita (decadência e queda da I República); Raimundo Quintal (turismo, paisagem, ambiente, jardins, quintas, património natural, geografia); Adriano Ribeiro (tratado de Utrecht); Miguel Rodrigues (Madeira nos finais do século XV); José de Sainz-Trueva (heráldica, ex-librística, quintas, arte, arquitetura civil e religiosa); Joel Serrão (cultura e filosofia – Antero de Quental); António Ribeiro Marques da Silva (viajantes estrangeiros, imprensa, quotidiano das freiras de Santa Clara, arquitetura doméstica, ecologia, política e literatura – o Conde de Abranhos e o desembargador José Caetano); Jorge Marques da Silva (arqueologia industrial, computador e arte, arte naïve); Amândio de Sousa (museologia, ourivesaria); João José Abreu de Sousa (povoamento, emigração, história político-institucional, social e económica, rural e urbana, capitania de Machico, rua da Carreira, convento de Santa Clara, escravos, corsários, levadas); Maria José Soares (madeirenses no Curaçau); Francisco Clode de Sousa (Francisco Franco); Luís de Sousa (Quirino de Jesus); Manuel Rufino Teixeira (numismática); Ana Paula Marques Trindade e Teresa Maria Florença Martins (administração nos séculos XV e XVI); Nelson Veríssimo (história da autonomia, festa do Espírito Santo, o Funchal e a aluvião de 1803, presépios e Meninos Jesus, literatura – Bulhão Pato e a Madeira); Maria Francisca Favila Vieira (mito no discurso platónico sobre a alma, ética em Verney); Rui Vieira (Jardim Botânico da Madeira, Carlos Azevedo de Menezes); Eberhard Axel Wilhelm (alemães na Madeira, Max Römer); Manuel Zimbro (cultura). No que concerne a repertórios literários, encontram-se: crónicas (algumas de pendor evocativo e memorialístico) de Amaro Amarante, António Ribeiro Marques da Silva, Jorge Sumares e José Pereira da Costa; poemas de Edmundo Bettencourt, Manuel Vilhena de Carvalho, Fátima Pitta Dionísio, Carlos Alberto Fernandes, Carlos Fino, São Moniz Gouveia, Irene Lucília, João Cabral do Nascimento, António Manuel Neves, Gualdino Avelino Rodrigues e José de Sainz-Trueva; prosa poética de Ângela Varela. Vários artigos e repertórios beneficiaram de ilustrações (fotografias e desenhos) dos próprios autores. Outros foram acompanhados de fotografias de Rui Camacho, Mota Pimenta, Photographia – Museu Vicentes, Maurício Barros, Carmo Marques, Perestrellos, João Pestana, Sanches Almendra, Gilberta Caires, José Ivo Correia, João Vasconcelos, Teresa Brazão, Celso Caires, Manuel Valle e Vicentes e José de Sainz-Trueva. Outros, ainda, apresentaram desenhos de Maurício Fernandes, Sá Braz e Vieira da Silva. O início da publicação de Atlântico inaugurou, em meados da década de 80 do século XX, tempos de mudança e de renovação no panorama cultural, científico e historiográfico da Madeira. Esta transformação foi também corporizada pela criação, em 1985, do Centro de Estudos de História do Atlântico, pela realização, em 1986, do I Colóquio Internacional de História do Atlântico, e pelo aparecimento, em 1987, da revista Islenha.   Filipe dos Santos   artigos relacionados revistas sobre arte revistas de tradições populares periódicos literários poetas  

Cultura e Tradições Populares História Económica e Social

companhia portuguesa rádio marconi

A Companhia Portuguesa Rádio Marconi (CPRM), popularmente conhecida como Marconi, assumiu um papel importante na sociedade madeirense a partir dos finais do primeiro quartel do séc. XX, com realce para o seu protagonismo no campo das telecomunicações. De facto, a intervenção da Marconi veio transformar os hábitos quotidianos dos madeirenses. Além disso, os meios que a empresa colocou ao dispor vieram banir as barreiras que definiam o casulo do isolamento do arquipélago. Os anos 20 foram de autêntica euforia em relação às ondas elétricas. O período de 1920 a 1926 foi de perfeita loucura nos Estados Unidos, o que levou o Governo a estabelecer, em 1926, uma legislação especial para disciplinar o espetro radioelétrico. Esta vaga chegou à Madeira no verão de 1927, altura em que surgiram os primeiros anúncios para a venda de material de telefonia da Marconi e Sterling. As primeiras receções de rádio tiveram lugar no ano seguinte e, em 1929, davam-se os primeiros passos de uma emissão, com a onda de 47 m. Para isso, deverá ter contribuído a presença de Alberto Carlos de Oliveira, funcionário da empresa do cabo submarino. Ele havia iniciado, em 1914, em Cabo Verde, as primeiras comunicações com os navios do alto mar. Em 1920, foi transferido para a delegação da empresa no Funchal e aqui manteve as experiências, tendo ensaiado, em 1925, a transmissão com um emissor de lâmpadas em ondas curtas. Foi assim que se gerou na Madeira uma verdadeira e duradoura afición pelo “senfilismo”. Uma das fases mais decisivas da história da Marconi na Madeira aconteceu em 1986, com a elevação da delegação local ao estatuto de direção regional. Até 1982, a empresa era representada por um gerente de estação, passando, desde então, a existir o cargo de delegado regional, para o qual foi empossado Graciano Góis, a 15 de maio. A partir de 15 de março de 1991, a Marconi passou a dispor de novas instalações para a sede da sua delegação regional na Madeira. Um espaço amplo, até então abandonado, foi transformado e adaptado para a prestação de um novo serviço, que a imortalizará nos anais da história da Ilha. No ano de 1995, a Portugal Telecom adquiriu o capital da CPRM na íntegra, concluindo, em 2002, o processo de fusão. A Companhia Rádio Marconi foi constituída em 20 de junho de 1897, mas só em 1922 a empresa chegou a Portugal, onde se tornou pioneira na prestação do serviço de telecomunicações: pela lei n.º 1353, de 22 de agosto de 1922, o Governo foi autorizado a contratar com a Marconi Wireless Telegraph Company Ltd. o estabelecimento de uma rede radiotelegráfica. Todavia, nesta lei estabelecia-se como cláusula contratual a obrigatoriedade de a empresa constituir uma congénere nacional até ao fim do ano. A constituição teve lugar a 14 de setembro e, a 8 de novembro, foi assinado o acordo de concessão do serviço público de radiocomunicações da CPRM, ficando ela com o direito de exploração dos serviços entre o continente, a Madeira, os Açores, as províncias ultramarinas e o estrangeiro, por um período de 40 anos. Novos contratos foram assinados a 23 de abril de 1930, 20 de novembro de 1956 e 23 de abril de 1966. No último, foi ampliada a concessão ao serviço de cabo submarino e o prazo foi prorrogado por mais 25 anos. Durante o período da primeira concessão, a CPRM empenhou-se no estabelecimento de um serviço nacional e ultramarino: a 15 de dezembro de 1926, a inauguração das instalações em Lisboa coincidiu com a abertura dos circuitos radiotelegráficos entre o continente e as novas estações telegráficas do Funchal e de Ponta Delgada. Nos anos imediatos, para além da prestação de novo serviço (o radiotelefone), abriram-se novos circuitos nas possessões ultramarinas: em Cabo Verde, em Angola e em Moçambique (1927), e, depois, em Macau (1939), em Goa (1938), em São Tomé (1949), em Timor (1950) e na Guiné-Bissau (1959). Com estas iniciativas, a Marconi dava corpo à unidade do espaço metropolitano e colonial. A concretização, em 1926, de uma estação de telefonia sem fios (TSF) no Caniçal, trouxe a este rincão o nome de Marconi, através dos inventos e de uma delegação da empresa, criada em setembro de 1922 para prover o território nacional de uma rede de TSF. Esta presença foi evidente a partir de 15 de dezembro de 1926, data memorável para os anais da firma, e que marca o início de atividade em Portugal e também a afirmação da TSF em detrimento do cabo submarino, que entra na curva descendente. Desde então, a concorrência entre os dois meios de comunicação dominará o panorama regional, até que a companhia do cabo submarino encerre, em 1970, os seus serviços na Ilha, ficando a CPRM com o exclusivo das comunicações por TSF e por cabo submarino. A viragem não foi pacífica, manifestando-se através de uma concorrência entre os meios de transmissão de telegramas por TSF e por cabo submarino. Uma das primeiras consequências foi a redução das taxas cobradas por palavra na emissão de telegramas. Em 1942, a Via Portucale confirma a supremacia da TSF. A derrota do cabo submarino na guerra de comunicação era evidente: o cabo estava velho e sujeito a constantes e custosas reparações e as despesas de manutenção eram elevadas, não podendo o cabo, deste modo, competir com o seu concorrente, a TSF. Os reflexos das descobertas de Marconi chegaram a Portugal por intermédio da companhia Marconi Wireless Telegraph Co. Ldt., a quem o Governo português concedeu, a 22 de agosto de 1922, a exploração, por um período de 40 anos, da rede de radiotelegrafia nacional. A 14 de setembro do mesmo ano, foi constituída a empresa em Portugal e, a 15 de dezembro de 1926, data já mencionada, eram inaugurados os primeiros serviços de TSF de ligação do continente com a Madeira, os Açores e a Inglaterra. Entretanto, em 1966, foi feita nova concessão por 25 anos, sendo a prestação de serviços alargada ao cabo submarino, de que resultou o aparecimento de novo cabo, no Funchal, em 1970. No entanto, as transmissões da telegrafia sem fios na Madeira não se iniciaram só em 1926 com a estação da Marconi do Caniçal, pois no período da Primeira Guerra Mundial os Ingleses haviam já criado um serviço na Quinta Santana (espaço do Hospital Dr. João Almada), que encerrou as suas atividades a 2 de abril de 1919. O material ficou na Ilha, sendo usado na montagem de uma nova estação no 1.º andar de um edifício da R. de João Gago, onde estava instalada a Estação Telegráfico-Postal do Funchal. As obras da primeira estação ficaram concluídas a 31 de maio de 1922, iniciando-se as emissões no dia seguinte. As primeiras comunicações foram com Las Palmas e, depois, com o vapor inglês Kenil Worth Castle. Esta estação fora criada por despacho publicado no Diário do Governo, a 26 de julho. Todavia, a pretensão dos madeirenses era a de uma estação telegráfica mais adequada, integrada na rede estabelecida para todo o país, aprovada na Câmara dos Deputados a 21 de agosto de 1922. A 20 de agosto, o Diário de Notícias reclamava a montagem de uma estação telegráfica no Funchal, para o necessário apoio à navegação, uma vez que a existente cobria um raio de ação de apenas 400 milhas. Em 1926, a estação do Funchal estava situada no Pico Rádio, mas, com a entrada em funcionamento, a 4 de novembro, da estação do Caniçal, o serviço marítimo passou a ser assegurado por esta. O desenvolvimento dos meios de comunicação por meio de ondas eletromagnéticas iniciara-se em 1924, tendo-se alcançado alguns progressos nos anos de 1935-1938, que levaram ao início das emissões regulares de televisão em Londres, a partir de 25 de agosto de 1938. Note-se que algumas das experiências que conduziram à afirmação da televisão tiveram lugar na Madeira em 1936, por iniciativa de W. L. Wrigth. Todavia, a televisão só chegou aos lares madeirenses bastante mais tarde, se excetuarmos a receção da das Canárias. O historial da CPRM em Portugal estende-se por mais de meio século, sendo rico em realizações que fizeram deste rincão ocidental um espaço aberto e em contacto permanente com o mundo. A posição charneira de Portugal continental e das ilhas do arquipélago da Madeira e dos Açores fez com que este eixo se afirmasse como importante no domínio das telecomunicações. A segunda fase de concessão, que se iniciou em 1956, distingue-se pelo recurso a novos e mais adequados meios de comunicação. Na déc. de 60, deu-se a reafirmação do cabo submarino, com a inauguração da estação de Sesimbra, a 11 de agosto de 1969. Este serviço (Sat-1) divergia para uma ligação de Londres a Portugal e à África do Sul, num comprimento total de 10.787 km, com capacidade para 360 circuitos. Estabeleceram-se três amarrações ao longo do percurso (Tenerife, Sal e Ascensão). Seguiram-se outros, que estabeleceram a ligação com a Madeira (1971), a França (1979), Portugal/Senegal/Brasil (1982), Marro­cos (1982) e a África do Sul (1992). Em 1964, foi criada, nos Estados Unidos, a Intelsat (Organização Internacional para a Exploração de Telecomunicações por Satélite), mas Portugal só aderiu à organização em 1971, de modo que o primeiro serviço só foi instalado em 1974. Na estação terrena instalada em Sintra, estabeleceram-se os primeiros contactos, com Angola e Moçambique, e só depois com os Açores (1917) e a Madeira (1982). Em Sintra, foram instaladas estações para o serviço de satélites disponíveis: Intelsat, Eutelsat, Inmarsat. Na Madeira, até à inauguração do serviço radiotelegráfico da Marconi, a 15 de dezembro de 1926, como anteriormente referido, o serviço de comunicação entre a Ilha e o exterior fazia-se por cabo submarino ou por uma incipiente estação de TSF, montada em junho de 1922 na Estação Rádio Telegráfica do Funchal, situada na R. de João Gago. Todavia, um mês depois, chegava ao Funchal o equipamento necessário para a montagem da nova estação radiotelegráfica da Madeira, que ficou instalada no Caniçal. Os trabalhos continuaram em ritmo acelerado e, a 10 de julho de 1926, o superintendente da estação de Lisboa, João Maria Carneiro, fez a primeira inspeção ao posto do Caniçal, onde se davam os últimos retoques na instalação das antenas e dos equipamentos. Finalmente, a 4 de novembro, os trabalhos estavam concluídos, podendo a estação receber as primeiras mensagens e estabelecer contactos com o exterior. Durante o dia, 10 telegrafistas mantiveram contactos com os inúmeros vapores que circulavam nas águas do oceano, próximas da Madeira. A abertura do serviço da Marconi na Madeira surgiu num momento de grandes dificuldades económicas, agravadas com a crise do comércio do bordado e do encerramento de algumas casas bancárias. Os prenúncios da crise que assolou o Estado americano em 1929 eram já evidentes neste ano, e conduziram ao processo conhecido como Revolta da Madeira. O serviço da estação de TSF da Marconi era feito com extrema dificuldade, devido às difíceis condições de acesso ao local onde estavam instaladas as antenas e à inexistência de pessoal habilitado. O acesso às referidas instalações era muito mais fácil por via marítima do que pelos caminhos íngremes que circundavam as serras entre Machico e o Caniçal. Deste modo, a empresa tinha ao seu dispor, na vila de Machico, uma embarcação a remos que transportava os técnicos e os operadores. Eles, de um modo geral, viviam no Funchal e deslocavam-se para aí, no início, de barco e, depois, nos transportes públicos disponíveis. A estação encontrava-se isolada e, por isso mesmo, haviam-se instalado aí os meios para que os funcionários da empresa se pudessem manter entre uma semana a 15 dias. Para além das instalações de radiotelegrafia, existiam quartos de dormir, cozinha e refeitório. A alimentação dos funcionários baseava-se em peixe seco e carne salgada, que adquiriam na vila vizinha do Caniçal, e em produtos de produção própria no local: aí plantavam leguminosas e tratavam de coelhos e de galináceos. O testemunho de alguns funcionários traça de forma emotiva os primeiros anos de vida da Marconi na Madeira. Numa prolongada conversa que tivemos oportunidade de presenciar em Lisboa, ficamos a saber das dificuldades e da monotonia do dia a dia na estação do Caniçal, das dificuldades para aí chegar e da vida boémia dos saraus musicais dos casinos e dos salões madeirenses da época, no período de descanso. Foi com esta verdadeira aventura, que exigiu um redobrado esforço, que a Madeira perdeu o isolamento, através dos serviços de TSF da Marconi. As antenas e a estação estavam colocadas num extremo da Ilha, num local com as melhores condições de receção e emissão para os meios técnicos da época, mas o principal destinatário estava no Funchal. Deste modo, entre as duas localidades, existiam fios telegráficos de comunicação que percorriam mais de 50 km. O centro estava instalado na estação telegráfica postal da Trav. do Cabido. Todavia, a partir de 1927, foi negociado com os CTT a instalação de um posto da Marconi nesta estação. Aí foi instalado, em setembro de 1927, um aparelho de comunicação permanente com o Caniçal. Em face disto, melhoraram os serviços de atendimento ao público, que passaram a ser feitos ininterruptamente, só fechando aos sábados, domingos e feriados, mas, em 4 de fevereiro de 1931, passarão a ficar abertos todos os dias. Durante os 42 anos de existência, este serviço de radiotelegrafia fixa da Marconi foi alvo de múltiplas transformações, sendo as mais significativas operadas em 1947, com a oferta do serviço radiotelefónico, a partir da estação do Garajau. As telecomunicações implantam-se para serviço da sociedade, em que elas são o cordão umbilical que mantém a ancestral ligação ao velho continente e ao espaço envolvente. A TSF, ativa durante as 24 h do dia, é a voz permanente do madeirense anónimo, das autoridades locais, dos veraneantes e dos estrangeiros de passagem, e a única boia de salvação para as embarcações em dificuldades. Pelos transmissores de faísca e depois pelos eletromagnéticos perpassam variados problemas. O operador e o boletineiro são correias de transmissão do circuito e nada mais. Apenas quando a situação atinge os limites e acontece alguma anormalidade, os operadores, até então meros agentes passivos, passam a ser ativos protagonistas. Assim sucedeu em abril de 1931, durante a célebre Revolta da Madeira, em que, pela primeira vez, foi posta à prova a funcionalidade e a importância da Marconi nas transmissões a longa distância, através da estação de TSF do Caniçal. Quando, a 4 de abril, rebentou a Revolta, o cabo que ligava o Funchal a Lisboa emudeceu e, por isso, a única via de contacto com o exterior eram as ondas eletromagnéticas emitidas pela estação de TSF da Marconi, no Caniçal. As comunicações preferenciais da estação eram com Lisboa, que depois fazia a conexão com o mundo. Todavia, a Madeira poderia estabelecer contactos com as estações de Ponta Delgada, de Las Palmas e de Madrid. Quando, em Lisboa, o recetor emudeceu para os sinais da Ilha, o emissor madeirense não deixou de emitir, orientando-se para os Açores, Las Palmas ou Madrid. Todavia, até ao dia 26 de abril, a troca de telegramas com Lisboa foi apenas entre o Governo da Junta Revolucionária e o da ditadura. A 26 de abril, os emissores e recetores da estação de TSF da Marconi foram silenciados. As tropas destacadas para a Ilha, com o objetivo de pôr cobro à rebelião, desembarcaram primeiro no Caniçal, com o intuito de desmantelar a estação telegráfica. A força tomou, sem oposição da guarnição revolucionária, as instalações da estação e desmantelou o emissor e o recetor. Por algum tempo, a Madeira perdeu a ligação com o mundo. Os técnicos telegrafistas da Marconi das estações do Caniçal e do Funchal tiveram alguns dias de férias. Este foi o único período, em 65 anos da empresa na Madeira, em que as instalações foram silenciadas, após terem sido protagonistas ativas de uma conjuntura política peculiar, e um importante instrumento de agitação política por parte dos revolucionários. O desenvolvimento das novas tecnologias conduziu ao paulatino apagamento desta estação, que terminou em 1982, com o aparecimento de uma via alternativa para o cabo submarino, com a inauguração da Estação de Satélites. Desde esta data, com as remodelações posteriormente realizadas, aí passou a funcionar apenas uma estação do serviço móvel marítimo e uma casa de repouso para os funcionários da empresa. O Porto Santo, porém, já então uma importante estância de veraneio, continuava isolado e carente destes meios. Foram incessantes os esforços do Ateneu Comercial do Funchal e de um grupo de madeirenses ilustres para que o Porto Santo ficasse servido de TSF. Em fevereiro de 1927, conjugaram-se os esforços da Marconi com os das autoridades do arquipélago e deu-se início às obras de construção do edifício para instalar a estação de TSF. As habituais dificuldades burocráticas impediram que o material para a montagem da estação chegasse prontamente. Por outro lado, o equipamento era obsoleto e provinha da estação de Sintra. Mesmo assim, conseguiu-se mantê-lo e, em outubro de 1928, faziam-se os primeiros ensaios, estabelecendo-se contactos com a estação do Caniçal e o Funchal. Entretanto, a imprensa anunciava que estava prevista a sua inauguração para 25 de novembro de 1928. Mas só a 16 de março do ano seguinte saiu do Funchal o Gavião, levando a bordo as autoridades que, no dia seguinte, iriam inaugurar a nova estação. O equipamento aí instalado, sendo de segunda mão, não durou muito tempo, e cedo sugiram as dificuldades: a 15 de dezembro de 1932, o transmissor estava mudo, e permaneceu nestas circunstâncias até à chegada de novo aparelho, a 10 de novembro de 1935. Este era um novo equipamento de radiotelegrafia, mas não se adaptou às condições da Ilha, uma vez que, a 15 de janeiro de 1939, perdeu de novo a “voz”, e só em novembro chegou à Ilha novo equipamento. A Marconi, entretanto, mantinha-se atenta aos novos inventos ao nível das telecomunicações, procurando adequar as instalações e os serviços na Madeira a esta realidade. Foi neste sentido que, em janeiro de 1938, iniciou as obras para a construção de um novo posto no Garajau (Caniço), capaz de prestar o serviço de radiotelefonia. A 10 de dezembro, todos os serviços foram transferidos para a nova estação, que começou os contactos com o continente e os Açores. As instalações do Caniçal (1 de janeiro de 1939) foram desmanteladas e postas à venda a 9 de julho de 1939, sem haver comprador. No decurso da Segunda Guerra Mundial, esta estação exerceu uma função primordial nas ligações da Madeira com exterior, mercê do bloqueio marítimo a que a Ilha esteve sujeita. Entretanto, as instalações da empresa no Funchal ganharam uma nova dinâmica com a abertura ao público de um serviço de aceitação e distribuição de telegramas. A nova realidade surge a partir de 31 de dezembro de 1943, com a inauguração em novo edifício, na Av. Arriaga. O serviço funcionou até 1942 na Trav. do Cabido, sendo transferido a 29 de março de 1942 para o 1.º andar da Rosa d’Ouro, à Av. Dr. António José de Almeida, de onde depois foi deslocado, a 29 de março do ano seguinte, para a sede definitiva da Av. Arriaga, inaugurada a 28 de outubro. Aqui passou a funcionar um serviço permanente de atendimento e de distribuição de telegramas. O último era realizado, de início, pelos boletineiros-peões, e, depois, a partir de 1970, por motociclistas. Na déc. de 50, redobraram as responsabilidades da Companhia, ao ser-lhe atribuída a exploração do rádio móvel marítimo: os serviços aumentaram em área, volume e qualidade. Imperativos técnicos conduziram a que se fizesse uma subdivisão entre os serviços de emissão e receção: o Garajau permaneceu como central, dispondo apenas das antenas de receção, enquanto o Caniçal foi reativado como posto de emissão, e, no Funchal, ficaram centralizados, desde 4 de julho de 1951, os serviços de rádioescuta naval. A mudança técnica das instalações do Caniço só ficou concluída a 25 de março de 1968, com a inauguração da nova estação do Caniçal. No ato, estiveram presentes o governador civil do distrito e o diretor técnico da Marconi, Fernando Feijó. Aí ficaram instalados os serviços de receção das comunicações telegráficas e telefónicas e da estação costeira para a navegação. As obras iniciaram-se em setembro de 1966, nas instalações abandonadas em 1942, tendo sido visitadas a 17 de agosto de 1967 pelo então ministro das Comunicações. Nos primeiros anos das comunicações por radiotelefone para o exterior, o ambiente das operações era algo surrealista, comparado com a situação que muito depois se viveria: a ligação era feita via rádio através do operador da Marconi com a estação de Lisboa. Quando sucedia qualquer interferência, interrompia-se a ligação e os operadores procediam à mudança de canal para uma melhor receção. A sintonia era feita por meio de uma gravação do bailinho da Madeira, que era passada pela estação do Caniçal. Concluída esta operação, os utentes continuavam a sua receção. As ligações com o Porto Santo continuavam a ser um problema, pois, em junho de 1945, em plena época de veraneio, houve mais de uma interrupção. A solução viria a estar na nova estação de radiotelefonia inaugurada a 30 de agosto de 1959. Na época, era grande o incremento do serviço telefónico no arquipélago e a Marconi preparava-se para adequar a disponibilidade dos serviços aos madeirenses. No Natal de 1958, prometeu presentear os madeirenses com novos serviços (o telex e a radiofotografia), mas tal só veio a suceder muito mais tarde. O telefone chegou à Madeira em 1911, mas só na déc. de 50 teve um maior incremento, tendo-se iniciado, em 1958, o processo de automatização da rede telefónica do Funchal, através das novas instalações no edifício dos Correios, na Av. de Zarco. O aumento desmesurado da procura dos serviços de radiotelefonia e o carácter obsoleto dos meios disponíveis para a ligação com o exterior levaram a Marconi a apostar noutro serviço capaz de satisfazer as necessidades da Ilha. Sob o lema “servir mais e melhor”, a Marconi avançou, a partir de 1969, com um novo meio de comunicação: o cabo submarino. A partir do verão de 1971, a Madeira foi servida por novo cabo submarino, com capacidade para corresponder às necessidades dos locais, em substituição do cabo dos Ingleses. As obras começaram em dezembro de 1971, e em maio do 1972 foi lançado o cabo submarino, que viria a ser inaugurado a 2 de setembro. Para a inauguração, deslocou-se propositadamente à Ilha o secretário de Estado das Comunicações, Oliveira Martins. No ato, estiveram presentes o presidente e o vice-presidente do Conselho de Administração da Marconi, respetivamente Manuel de Athayde Pinto de Mascarenhas e José Maria Camolino Ferraz de Matos e Silva. As referidas instalações foram, depois, visitadas pelo Chefe de Estado, Américo de Deus Rodrigues Thomaz, aquando da sua visita à Madeira, em 1962. O cabo submarino alargou as possibilidades às ligações com o exterior e à disponibilização de novos serviços, como o telex. As telecomunicações, que haviam avançado de forma lenta no meio aquático, ganharam um novo vigor com a conquista do espaço celeste. Desde as primeiras tentativas de afirmação, na déc. de 50, sucederam-se inúmeros progressos que chegaram também às telecomunicações madeirenses. Todavia, a Madeira, que havia sido dos primeiros locais a usufruir das ligações por cabo submarino e depois por TSF, foi a última a usufruir desse novo serviço de telecomunicações – o satélite. As ligações por essa via entre as ilhas, o continente português e o mundo só tiveram lugar em 1982, i.e., passados mais de oito anos sobre a entrada em funcionamento deste serviço em Portugal. Esta nova via foi possível graças à abertura de uma nova estação terrena em Sintra. A montagem da estação do Funchal, situada em São Martinho, iniciou-se em fevereiro de 1980, num investimento global de mais de meio milhão de contos. Os trabalhos para este empreendimento tiveram lugar em outubro de 1977, com a criação de um grupo de trabalho que tinha o objetivo de estudar as possibilidades de alargamento à Madeira deste meio de comunicação. Em fevereiro de 1980, iniciaram-se as obras e foi aberto um concurso internacional para o fornecimento do material necessário às estações terrenas da Madeira e de Sintra: o contrato de fornecimento foi assinado a 18 de fevereiro de 1981 com o consórcio italiano Satelit Telecomunications Systems. A antena instalada foi do tipo Cassegram, com refletor parabólico de 25 m de diâmetro, pesando 240 t. No ato de inauguração, que teve lugar no dia 16 de novembro, estiveram presentes o secretário de Estado dos Transportes Exteriores e Comunicações, José da Silva Domingos, e os presidentes dos conselhos de administração da CPRM e dos CTT (Correios e Telecomunicações de Portugal)/TLP (Telefones de Lisboa e Porto), Miguel Horta e Costa e Oliveira Martins, respetivamente, bem como as autoridades regionais. A abertura do referido serviço na Ilha veio propiciar aos madeirenses o acesso direto às emissões televisivas. Por outro lado, este meio veio proporcionar aos 20.000 assinantes da rede telefónica da Madeira o acesso telefónico direto à Europa e a alguns países da África e da América, favorecendo uma maior aproximação entre os madeirenses residentes na Ilha e aqueles que se encontravam emigrados nos mais diversos destinos. Neste contexto, merece referência a inauguração, a 20 de fevereiro de 1984, das ligações telefónicas diretas com a Venezuela e a África do Sul; seguiram-se o Panamá e as Antilhas Holandesas (20 de setembro de 1984), o Havai (19 de janeiro de 1985) e a Europa Oriental (28 de agosto de 1986). Esta ligação direta chegou a mais de 70 países. Em 15 e 16 de dezembro de 1986, a Marconi propiciou aos madeirenses o visionamento de alguns canais televisivos que, recebidos em Sintra através do Eutelsat I-F1, eram retransmitidos para o Funchal pelo Intelsat V-F11. Esta situação transitória foi uma demonstração daquilo que foi possível com o lançamento da série de satélites Eutelsat II, que permitiram à Madeira a receção de TV e outros sinais de telecomunicações, com uma antena parabólica de dimensões reduzidas. Perante esta situação, a Marconi passou a oferecer aos madeirenses 288 circuitos, sendo 144 de cabo submarino e 144 via satélite. Todavia, os serviços da Companhia não se ficaram por aqui, pois, para além do cabo submarino de fibra ótica, para substituir o de 1972, digitalizou-se as comunicações por satélite. Este esforço de modernização dos serviços da empresa, a partir de 1982, está avaliado em 1.700.000 contos. Refira-se ainda o Serviço Móvel Marítimo (SMM). Esta via baseava-se num serviço telefónico e telegráfico permanente em VHF (frequência muito alta), onda média e curta. A sua modernização teve lugar a partir de 1979, assistindo-se, desde 1984, a uma melhoria e a uma variedade na oferta de serviços: em 1984, entrou em funcionamento a estação de VHF do Porto Santo; em maio de 1986, foi a vez da estação da Ponta do Pargo; a 1 de agosto de 1988, inaugurou-se o centro de operações do Funchal, a partir do qual são telecomandadas as estações espalhadas pelo litoral da Ilha; em 1989, foi o estabelecimento da cobertura em onda média, com a entrada ao serviço das estações da Ponta do Pargo (em abril), de Pico da Cruz (em maio) e do Porto Santo (em julho). Com este investimento, no valor de cerca de 350.000 contos, a Marconi conseguiu a cobertura total da zona económica exclusiva madeirense, sendo a primeira no país a merecer tal oferta de serviços. A maior oferta de serviços pela Marconi e a reafirmação da Madeira como eixo importante das telecomunicações com o Atlântico Sul levaram a Companhia a apostar num novo Centro de Telecomunicações, capaz de corresponder a esta realidade. Assim, desde 25 de setembro de 1992, a Madeira dispõe deste Centro, que coordena a atividade da empresa, em termos do tráfego dos cabos submarinos de fibra ótica e transmissão digital (Eurafrica, Sat-2, Columbus-2, Inland), da rede móvel e dos satélites. Esta infraestrutura concentra os serviços que estavam dispersos pelo Porto Novo, Garajau e Funchal. Aí está instalada a nova estação de cabos submarinos dos sistemas Euráfrica e Sat-2, os serviços de exploração, englobando o Centro de Operação e Controlo do SMM e a Central Telegráfica, bem como os serviços técnicos e administrativos. A inauguração do Centro foi simultânea à do cabo submarino internacional Euráfrica. A esta seguiu-se, a 28 de abril de 1993, a do cabo Sat-2, que liga a República da África do Sul às Canárias e à Madeira. Este é o maior cabo submarino do Atlântico e o terceiro a nível mundial. O Sat-2 permite a ligação de 15.000 circuitos telefónicos e a transmissão de 32 canais de televisão. Esta aposta da Marconi levou a que a Madeira retomasse a histórica vocação de plataforma do Atlântico. De novo, a Madeira assume um papel destacado como entroncamento de infraestruturas submarinas de telecomunicações, e Portugal passa a dispor de uma posição de relevo na rede atlântica de cabos submarinos. Alberto Vieira (atualizado  01.02.2018)   artigos relacionados: ateneu comercial do funchal radiodifusão portuguesa / rdp - madeira correios telegrafia sem fios (tsf)

Física, Química e Engenharia Sociedade e Comunicação Social

nau sem rumo

A História diz-nos que a Nau Sem Rumo é, hoje, o único testemunho perdurável das esquadras de navegação terrestres que marcaram o quotidiano do Funchal, entre finais do séc. XIX e princípios do século seguinte. Esta condição de única e mais antiga associação de boémia gastronómica apresenta-se como o antecedente da atual moda das confrarias gastronómicas, sendo o prato do repasto habitual das quartas-feiras o bacalhau. Não temos documentos que nos elucidem sobre o momento exato da fundação da Nau sem Rumo. Os primeiros estatutos são de 27 de maio de 1935, mas a associação existia já há muito tempo. A leitura dos livros de honra da associação revela-nos que a agremiação representava a arte de bem receber dos madeirenses, podendo ser entendida como a sala de visitas da Ilha, pois não havia visitante ilustre que aportasse ao porto que não tivesse, de imediato, franqueadas as portas da Nau Sem Rumo. A ligação da associação ao movimento do porto era permanente e a sua vocação marítima expressava-se por esta total abertura à hospitalidade dos que transitavam pelo porto. Palavras-chave: Nau Sem Rumo; Esquadras de navegação terrestre; Diversão; Boémia; Gastronomia.   A História diz-nos que a Nau Sem Rumo (NSR) é, hoje, o único testemunho perdurável das esquadras de navegação terrestre que marcaram o quotidiano do Funchal, entre finais do séc. XIX e princípios do seguinte. Esta condição de única e antiga associação boémia e gastronómica, que antecedeu a atual moda das confrarias gastronómicas, deve servir de alento para que não se perca este raro testemunho do quotidiano madeirense. A NSR assume um papel importante na história da Ilha e da cidade do Funchal, pois está sempre presente no quotidiano funchalense, foi o exemplo da hospitalidade madeirense. As inúmeras presenças de diversas individualidades nacionais e estrangeiras na sua sede são exemplo disso. A leitura dos livros de honra da NSR revela-nos que a agremiação representava a arte de bem receber dos madeirenses, podendo ser entendida como a sala de visitas da Ilha, pois não havia visitante ilustre que aportasse ao porto que não tivesse, de imediato, franqueadas as portas desta Associação. Os comandantes das embarcações, que assiduamente aportavam ao Funchal, eram sempre convidados da NSR, pois através deles fazia-se avivar o espírito marítimo. A Associação acolheu, em receção ou nos seus almoços, eminentes personalidades de visita ou de passagem pela Ilha. Políticos, cientistas, jornalistas, madeirenses ilustres emigrados, participavam, com frequência, nos pratos de bacalhau da NSR e não se faziam rogados nos elogios à mesa, nem ao espírito de camaradagem que unia todos os marinheiros reunidos para o repasto. O prestígio da NSR na sociedade madeirense era e é inegável, afirmando o visconde do Porto da Cruz, em 1952, que “Ao contrário do que o seu nome indica tem o seu rumo perfeitamente orientado, sendo um centro de recreio de ‘bons-vivants’ onde há a melhor e mais especializada cozinha que satisfaz os mais requintados epicuristas e além disso trás o propósito de desenvolver uma interessante obra social de assistência e de expansionismo regionalista” (VIEIRA, 2001, 10). A NSR foi, durante muito tempo, um dos principais cartões-de-visita para as personalidades que passavam pelo Funchal para uma curta escala ou estadia. A ligação da Associação ao movimento do porto era permanente e a sua vocação marítima expressava-se por esta total abertura à hospitalidade dos que transitavam pelo porto, sendo, em muitos momentos, como a principal expressão da hospitalidade dos madeirenses, que a todos brindava. Esta arte de bem receber foi testemunhada por muitos e atuou certamente como uma bandeira favorável à presença frequente de personalidades de diversa índole e de gente anónima. A todos o madeirense acolhia da melhor forma, portas adentro, nas casas ou quintas, e reservava-lhe a melhor cama e mesa. A origem desta Associação parte do ambiente cultural e boémio do séc. XIX funchalense. Assim, na segunda metade do século, generalizou-se a criação de clubes destinados ao recreio e distração dos sócios. Estes clubes primavam pela realização de bailes e soirées, que contavam com a participação de residentes e forasteiros. Aliás, era tradição destes clubes receber nas suas instalações as personalidades ilustres que passavam pela Ilha. Assim, em 1885, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens foram aclamados no Clube Funchalense e, em 1921, Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram obsequiados pelo Club Sport Madeira. Dos inúmeros clubes que organizaram o folguedo dos madeirenses entre a segunda metade do séc. XIX e o primeiro quartel do seguinte, podemos salientar os seguintes: Clube Económico (1856), Sociedade Club Económico (1856), Clube Recreativo (1856), Clube Aliança (1867), Sociedade Clube Funchalense (1872), Clube Restauração (1879), Clube Washington (1882), Clube União (1888), Clube Recreativo Musical (?-1900), Clube Recreio e Instrução (1892), Clube Internacional do Funchal (1896), Clube dos Estrangeiros (1897), Turf Club (1900), The Sports Club (1901), Stranger’s Club-Casino Pavão (1906), Novo Clube Restauração (1908), Clube Sports da Madeira (1910), Clube Sport Marítimo (1911), Clube Republicano da Madeira (1911) e Clube Naval Madeirense (1917). Não faltava ao madeirense imaginação para encontrar formas de diversão e de passar o tempo. Deste modo, na déc. de 80 do séc. XIX, afirmaram-se as chamadas esquadras de navegação terrestre. O seu espírito, porém, é muito anterior, pois desde a déc. de 40 da centúria sucedeu este tipo de confrontos lúdicos, tendo como base o confronto entre miguelistas e pedristas. Aqui, não estamos perante estruturas militares, mas sim de boémios que se juntavam sob a capa do ritual da marinha. Nas quintas, ergueram-se os mastros engalanados com bandeirinhas e uma peça de fogo. Ficaram célebres as quatro esquadras: Esquadra Torpedeira, Esquadra Submarina, Esquadra Couraçada e Esquadra Independente. O espírito era levado a sério, aparecendo os associados em atos públicos fardados a rigor. As atividades resumiam-se a alguns desfiles dominicais e nos dias feriados, passeios a pé ou ao longo da costa e, acima de tudo, aos assaltos combinados às adegas para o tão esperado repasto. O espírito da marinharia portuguesa em terra era assumido na sua plenitude e conduziu a alguns equívocos em 1901, com a visita do Rei D. Carlos. A partir de 1914, as dificuldades sentidas com a guerra refrearam a iniciativa das esquadras, provocando o apagamento das esquadras submarinas de navegação terrestre. Acabou o aparato de rua, e o movimento em torno dos mastros e miradouros transferiu-se para espaços recatados. As associações de boémios assumem este carácter interior, por vezes fechado e elitista. A grande aposta ficou para a mesa e jogos da fortuna e azar, que ajudavam a passar os fins de tarde e as noites. A NSR, cuja data de aparição não está devidamente revelada, ganhou dimensão a partir da déc. de 30 do séc. XX, retomando este espírito das esquadras submarinas de navegação terrestre, agora transferido para dentro de portas e tendo como palco a mesa e o bacalhau, seu inseparável amigo. Não temos documentos que nos elucidem sobre o momento exato da fundação da NSR. Apesar de a Associação existir há já muito tempo, os seus primeiros estatutos são de 27 de maio de 1935, por força de uma nova exigência do regime político. Note-se que era costume a data dos estatutos oficiais não coincidir com o início de funcionamento. Tomemos como exemplo alguns clubes: o Clube União foi fundado a 10 de março de 1836, mas os seus estatutos só foram aprovados pela Assembleia Geral a 20 de agosto de 1874 e pelo Governo Civil a 7 de fevereiro de 1879; o Clube Funchalense é de 3 de dezembro de 1839, mas os primeiros estatutos são de 18 de dezembro de 1876, tendo sido aprovados pelo governador civil apenas em 16 de fevereiro de 1877. O mesmo deverá ter sucedido com a NSR. As entrevistas feitas aos mais antigos associados dão a entender esta realidade. De acordo com o testemunho do Sr. José Egídio Barros, veterano da NSR, a Associação terá surgido por volta de 1917, quando o Com. José Gomes reunia regularmente um grupo de amigos num banco de jardim em frente do café A Brasileira, hoje edifício da Secretaria Regional do Turismo, na Av. Arriaga. Contudo, segundo informa Amadeu Ribeiro Saraiva, comandante do Funchalense, na visita que fez à NSR a 3 de janeiro de 1962, esta teria surgido em 1926: “Nas visitas à ‘Nau Sem Rumo’, de que fui um dos primitivos fundadores em 1926, verifiquei com muito agrado que do pouco mais de nada se levantou uma grande organização que me apraz registar como modelar e simpática, nela encontrando ainda alguns dos primeiros fundadores. Decorridos que são trinta e seis anos, esta ‘Nau’ não sossobra, – antes pelo contrário navega a todo o pano [...]” (Id., Ibid., 18). Oficialmente, a data de fundação da NSR foi atribuída à do primeiro registo da Associação, a 27 de maio de 1935, tal como se poderá constatar pelo regulamento de 1950. Assim, o dia 27 de maio ficou registado como o dia do aniversário da NSR. A NSR tardou em encontrar o porto seguro. A sua primeira sede foi no edifício do atual Museu da Quinta das Cruzes, partilhado com outras associações, passando depois, em 1928, com o Alm. Dr. Agostinho de Freitas, para a R. da Carreira. A partir daqui, vagueou por algumas ruas da cidade: R. dos Murças, Trav. do Nascimento e, finalmente, a R. 31 de Janeiro, onde varou em definitivo, a partir de 1941. A 27 de janeiro de 1945, inaugurou-se a nova sede, à R. 31 de Janeiro, onde permanece ainda hoje em prédio construído em 1940, por Raul Câmara. O ato de inauguração foi um momento importante na vida da Associação, contando com a participação das mais importantes individualidades da Ilha. De entre estas, podemos destacar: Dr. Fernão Ornelas, presidente da Câmara Municipal do Funchal; Dr. Félix Barreira, secretário-geral do Governo Civil; Com. João Inocêncio Camacho de Freitas, capitão do porto do Funchal; Eng.º António Egídio Henriques de Araújo, vice-presidente da Junta Geral; Dr. Humberto Pereira da Costa, diretor da Alfândega; e Fernando Rebelo Andrade, diretor da PIDE. As declarações do Dr. Fernão Ornelas, no livro de honra, dão o testemunho claro da solenidade: “As instalações da ‘Nau Sem Rumo’ revelam um espírito de iniciativa que não é vulgar no nosso meio. É grato, para quem tem posto o melhor carinho no progresso da cidade, verificar que no Funchal existe um club que seria uma grande realização em qualquer meio. Sinceros parabéns em nome da câmara” (Id., Ibid., 20). Igual ideia tinha o então inspetor da PIDE, Fernando Rebelo Andrade: “A Nau Sem Rumo deixa maravilhado pelo rumo que agora tomou não só pelas suas belas instalações, como pelo fim que proporciona a cada convidado que assiste aos seus esmerados jantares” (Id., Ibid., 20). Os livros de honra da NSR revelam-nos que a agremiação era entendida, como já referido, como a sala de visitas da Ilha: visitantes ilustres, comandantes das embarcações, eram sempre convidados da Associação, fazendo-se o espírito marinheiro da NSR. Um dos habituais convivas era o Alm. Sarmento Rodrigues, que muito se destacou na política e administração colonial. No período da Segunda Guerra Mundial, amainou o movimento de embarcações, mas não faltaram marinheiros na NSR. A este propósito, referia-se, em 1939, os comandantes de diversos navios comerciais gregos que permaneceram algum tempo atracados na Pontinha. Pelos salões da Associação passaram eminentes personalidades, de visita ou de passagem pela ilha. Políticos, cientistas, jornalistas, madeirenses ilustres emigrados, participavam, com frequência, dos repastos de bacalhau da NSR e não se faziam rogados nos elogios à mesa e ao espírito de camaradagem que unia todos os marinheiros. A NSR era uma associação masculina, não tendo nunca, entre os seus sócios, surgido alguém do sexo feminino, mesmo como sócio honorário. Todavia, a presença feminina é uma constante na lista de convidados. De entre as ilustres convidadas, destacam-se as inúmeras artistas que participavam nas quermesses dos clubes desportivos, como a Dr.ª Beatriz Franco de Almeida, que, em 1945, considerou a NSR como “uma coletividade com pontos de vista magníficos e de utilidade altamente comprovada” (Id., Ibid., 25). Porém, de todas estas visitas femininas, a mais notada foi a de Amália Rodrigues. A 23 de maio de 1948, a NSR engalanou-se para receber a ilustre fadista, que cantou e encantou da varanda o inúmero público que a seguia e lavrou no livro de honra a sua gratidão: “Agradeço a todos do meu coração este simpático almoço e Deus queira que não seja o último” (Id., Ibid., 25). O cantor Francisco José foi outro dos convidados da NSR, que deixou registado, em 1952: “Nau sem rumo, não concordo, tem o grande sentido da amizade e da boa camaradagem” (Id., Ibid., 24-25). Max, o célebre artista madeirense, tinha as portas franqueadas, mas só em 1955 e 1960 frequentou a Associação. Nesta última visita, deixou o seguinte pensamento: “A nau da minha terra é a nau do meu pensamento” (Id., Ibid., 26). Era frequente a presença de convidados do sexo masculino: artistas, jornalistas e políticos não escapavam à simpatia e arte de bem receber da guarnição. Em 1945, o Com. M. Sarmento Rodrigues, governador-geral de Angola, ficou de tal modo cativado que não hesitou em afirmar: “vejo nesta grande barca uma das mais nobres e simples manifestações de simpatia humana que tenho conhecido” (Id., Ibid., 26). E repetiu a experiência, passados 10 anos, já como ministro do Ultramar. Quatro anos mais tarde, a Ilha deu guarida, por algum tempo, ao deposto Presidente da República de Cuba, o Gen. Fulgencio Batista. A sua presença na Ilha não passou despercebida ao almirante que o homenageou na NSR, a 18 de dezembro de 1959. O general, sensibilizado, decidiu oferecer dois contos de reis para a quermesse de Natal e lavrou aquele que será o melhor testemunho sobre a NSR: “Nau sem rumo es para los que se orientan en la tierra la mejor nave para encontrar el rumbo, con la mágica brújula de su cordial Fraternidad, de lo que podría ser el hombre, en sus fundamentales actividades, por el progresso de la humanidad. Aqui deja el navigante eventual, que es el hosped bien recebido en Madeira, este recuerdo agradecido. Salud!” [Nau sem Rumo é, para os que se orientam em terra, a melhor nave para encontrar o rumo, com a bússola mágica da sua cordial Fraternidade, do que poderia ser o homem nas suas atividades fundamentais, com vista ao progresso da humanidade. Aqui deixa o navegador eventual, hóspede bem recebido na Madeira, esta memória agradecida. Saúde!] (Id., Ibid., 26). Havia entre os membros da NSR um particular reconhecimento pelos marinheiros de profissão, de modo que, de todos os militares da marinha ou tripulações das diversas embarcações que aportavam no Funchal, vinham também os maiores elogios. Em 1945, Fernando Moreira, comandante do Maria Cristina, não hesita em afirmar que esta foi “a maior organização que até hoje conheci, não tendo medo de afirmar (como marinheiro que conhece quase todo o mundo) única no seu género no globo” (Id., Ibid., 26). Muitos madeirenses, residentes ou de visita à Ilha, tinham as portas da Associação abertas e foram alvo de homenagem. Em 1946, o deputado Juvenal de Araújo disse que saía “encantado e penhoradíssimo. Mais vou com desejo de voltar” (Id., Ibid., 26). Contudo, não temos notícia de que tivesse regressado. Já o célebre psiquiatra Dr. Aníbal Faria, em 1947, sentia-se maravilhado com a viagem pelo facto de não ter enjoado nesta: “Estou como sempre enjoado a bordo... Necessito muitas e muitas viagens… como esta para me tornar valente marinheiro e... talvez um brioso rival do simpático almirante da Nau sem Rumo” (Id., Ibid., 26-27). A ligação e vocação marítima lusíada estava sempre presente no ambiente que envolvia os visitantes, nomeadamente no dos escritores. Foi o caso de Assis Esperança, que, em 1946, exclamava: “Foi numa nau que os portugueses cá vieram – e é numa nau ainda melhor que estes bons portugueses sabem ser amigos e sabem ser portugueses” (Id., Ibid., 27). E parece que estava no rumo certo, a fazer fé nas palavras de Hermínio Simões, em 1950: “‘Sem Rumo’!!! Não. [...] O rumo é certo porque com esta tripulação os ventos são sempre de... Feição” (Id., Ibid., 27). E, no ano imediato, Arthur Vieira Ávila explicava que “A Nau Sem Rumo foi para mim uma revelação de bom rumo que os seus dirigentes sabem dar à missão de amizade e fraternidade para com os seus conterrâneos. As amabilidades recebidas jamais serão esquecidas” (Id., Ibid., 27). Para a maioria dos convidados, era uma grande honra e um ato de reconhecimento social o almoço na NSR. Esta é a expressão que fica de muitas das opiniões, como se atesta nas palavras de um forasteiro do Brasil: “Sinto-me envaidecido e grato por ter participado de uma das suas viagens” (Id., Ibid., 27). Já para outros, é o sabor dos pratos degustados, desde o bacalhau aos mariscos, como era obrigatório na NSR, que fica na memória. Em 1959, Ana Maria de Amorim Ferreira de Sousa Moniz regista: “Desejo que esta nau continue a navegar com rumo para continuar a pescar mais lagostas tão boas como aquelas que comi esta noite” (Id., Ibid., 27). Carlos Areias, em 1961, não teme dar conta dos seus excessos: “Comi bem, bebi melhor. Já não estou com muito aprumo. Nunca mais posso esquecer o almoço na ‘Nau Sem Rumo’” (Id., Ibid., 27). Ou então um remate original, como o de Mário Nobre, em 1960: “Cantar em verso ou prosa a generosidade tradicional do almirante e tripulação da ‘Nau Sem Rumo’, quando recebem amigos e convidados, é lugar comum. Por isso limito-me a transmitir as seguintes palavras que constituem o meu melhor elogio: ‘Nesta nau embarco sempre [...]’” (Id., Ibid., 27). A NSR foi ainda um privilegiado interlocutor do intercâmbio de excursionistas com as Canárias. Note-se que, a 1 de novembro de 1959, os excursionistas do Real Club Nautico de Gran Canaria foram ali recebidos de forma festiva. Isto foi o início de um profícuo intercâmbio que levou alguns madeirenses a estas ilhas em 1962 e 1963. Por outro lado, entre as personalidades recebidas na Associação, destacam-se algumas do arquipélago vizinho, desde políticos e militares a jornalistas. A 7 de abril de 1947, a NSR homenageou o Gen. Garcia Escaner, capitão-general do arquipélago canário, a que se seguiu, a 9 de junho de 1955, uma homenagem a D. Joaquim Vileles Burgos, presidente da Sala de lo civil de la Audiencia Territorial de las Palmas. Em 1959, foi a vez do presidente do Real Club Nautico de Gran Canaria e, em 1960, o grupo folclórico de Tenerife, que esteve presente nas festas das bodas de ouro do Club Nacional. Também os cidadãos espanhóis da Península, de passagem pelo Funchal, foram alvo da hospitalidade da NSR, sendo de destacar o caso de Cristóbal Colon de Carvajal y Maroto, duque de Veragua, que, a 24 de abril de 1956, veio em busca do rastro do seu ancestral Cristóvão Colombo, que algumas centenas de anos antes havia também testemunhado e fruído da hospitalidade madeirense. A partir de finais da déc. de 60, parece ter esmorecido a tradição de bem receber os forasteiros e comandantes das embarcações que aportavam ao Funchal. Aliás nota-se, entre 1970 e 1991, um hiato em que ninguém se dignou registar, no livro de impressões dos visitantes, o testemunho da sua adesão ao convívio da tertúlia gastronómica. Desde então e até 2016, a lista de convidados incidia preferencialmente nos homens ligados ao mar, nalguns políticos ligados à autonomia e em poucos artistas. A NSR não encalhou com o 25 de Abril de 1974, e o interregno nas visitas evidencia apenas que se manteve virada para os associados. Esta capacidade de resistir ao ambiente politizado deve-se, segundo alguns dos seus associados, ao facto de a política não ter franqueado as portas da Associação e de todos os associados se absterem religiosamente dela ao entrarem no seu recinto. Aliás, esta era uma das recomendações fundamentais dos estatutos dos anos 50. O alheamento dos tripulantes relativamente à violência e inimizades do discurso partidário é considerado o principal fator de coesão e continuidade no último quartel do séc. XX, como a partir da déc. de 30, com o apertado sistema de controlo das associações existentes. A NSR terá nascido com o Estado Novo e conseguiu suplantá-lo em longevidade, sabendo sempre vencer a agitação da segunda República, sem se deixar contagiar. As palavras de agradecimento e enaltecimento do espírito da NSR e os opíparos almoços ou jantares, sempre de produtos do mar, encantam todos os gastrónomos. Aqui, nada falta, excepto, segundo o registo de Polybio Serra e Silva, de 3 de março de 1995, as mulheres: “Boa gastronomia, óptimo companheirismo [...] só faltam as mulheres […]” (Id., Ibid., 31). A NSR continua a ser ainda hoje a principal sala de visitas da Ilha, sendo para os forasteiros a melhor imagem da mesma. Deste modo, a 28 de dezembro de 1995, o Eng.º Rui Vieira não hesitava em afirmar que a “nau vale a ilha inteira […]” (Id., Ibid., 31). O então presidente do Governo Regional da Madeira, Alberto João Jardim, na visita que fez à Associação a 4 de março de 1994, registou: “Sinto-me honrado e feliz, por hoje estar numa confraternização da ‘Nau Sem Rumo’. Instituição que tanto simboliza e interpreta a cultura e o sentir do Povo Madeirense, no ambiente e trato que aqui se viveu. Durante decénios, e hoje também, verdadeira e representativa sala do bem receber e convívio madeirense. Sucesso de gerações ilustres que construíram esta terra. Vida e força para continuar o que somos” (Id., Ibid., 31). Para muitos dos associados, a presença e o carinho dos convidados de honra foram um fator de coesão e afirmação da NSR. Deste rol, constavam alguns dos comandantes do porto do Funchal, como Moura da Fonseca, Celestino Ramos Monteiro. Com estes, ombreavam outros verdadeiros homens do mar, como o Com. Cristiano de Sousa. O modo de funcionamento da NSR estava estabelecido num regulamento interno. O primeiro que se conhece é de 30 de abril de 1950, mas a sua versão definitiva só foi aprovada e publicada a 31 de janeiro de 1953, da qual se fez uma edição que passou a ser distribuída por todos os sócios. Em data posterior, ocorreram ainda outras reformas, que não alteraram substancialmente o espírito do regulamento inicial. Por imperativos de legislação, foi necessário assegurar a sua manutenção, dando-lhe personalidade jurídica, através da formalização da escritura dos novos estatutos, a 13 de maio de 1999. As atas das reuniões do Conselho de Estado Maior são a imagem do dia-a-dia da NSR. Aqui, discutia-se tanto a admissão de novos sócios, como os demais problemas quotidianos da Associação. A vida da NSR parece decorrer de forma normal nas décs. de 50 e 60, havendo apenas a notar um interregno em 1960. Assim, a última reunião deste ano decorreu a 23 de maio, só voltando a haver novo registo de reunião a 15 de junho de 1961. A admissão dos sócios obedecia a requisitos especiais. Estes últimos eram individualidades que, pelo mérito ou serviços prestados à NSR, adquiriam esta possibilidade mediante proposta do almirante e do Conselho do Estado Maior a apresentar em reunião deliberativa. Ouvido o Conselho de Estado Maior, o almirante podia ainda nomear os oficiais correspondentes, em qualquer país, estado ou cidade, aquelas pessoas de reconhecida categoria e idoneidade comprovada. Em assembleia geral de 11 de abril de 1959, foi criada a figura do sócio benemérito, para contemplar os que contribuíam para aumentar o património da NSR ou pelos seus relevantes serviços. Tal como refere o art.º 7.° dos estatutos, os sócios eram obrigatoriamente do sexo masculino: “Só poderão ser admitidas para sócios efectivos pessoas do sexo masculino, de comprovada idoneidade moral e civil, maiores, de qualquer profissão, independentes ou subordinadas [...]” (Id., Ibid., 73). Tirando isto, não havia qualquer exclusão na admissão de sócios por outros quaisquer motivos, estando mesmo permitido o acesso a estrangeiros, não obstante esta ser uma associação regionalista que tem como lema “da Madeira, pela Madeira”. Neste grupo, destacam-se alguns Ingleses residentes na Ilha. Todavia, o regulamento estabelece algumas limitações à presença de estrangeiros, uma vez que não podem ser almirantes, apenas vice-almirante, e ter assento no Conselho de Estado de apenas dois sócios. A tripulação da NSR, tal como se revela na lista de sócios, foi maioritariamente constituída por comerciantes da cidade, havendo entre ela advogados, jornalistas, empregados do comércio, guarda-livros, engenheiros, médicos, oficiais do exército e gerentes bancários. A Associação continua a manter esta tradição, sendo o ponto de encontro de gentes de diversas origens e profissões, juntando algumas das personalidades que mais se têm destacado no campo da política, comércio, medicina e construção civil. Estes dados revelam que a NSR não estabelecia qualquer impedimento relacionado com as convicções religiosas ou políticas dos candidatos. Todavia, uma regra fundamental do são convívio foi deixar à porta estas opções, fazendo com que o convívio fosse o mais correto, pois, tal como preceituavam os estatutos, “O respeito mútuo é obrigatório, sendo absolutamente proibidas quaisquer discussões de carácter político ou religioso [...]” (Id., Ibid., 73). Os candidatos eram apresentados por um sócio e, antes da decisão final pelo Conselho, os seus nomes publicitados no quadro durante 15 dias. Findo este prazo, se não houvesse oposição, eram discutidos e votados em reunião de Conselho do Estado Maior pelo sistema de bola branca e preta. O candidato só teria as portas franqueadas caso colhesse a totalidade de bolas brancas. Ao final da terceira tentativa, acabava a possibilidade de ser admitido, ficando na lista negra. O novo sócio, com o posto de grumete, estava obrigado ao pagamento de uma joia a estabelecer pelo Conselho. Para além disso, o candidato deveria submeter-se a uma prova de fogo, ficando em observação por algum tempo para ver se se adaptava à nova realidade e ao espírito da NSR. A primeira prova era o batismo na Associação, através de uma viagem gastronómica por sua conta. Este era um momento de grande importância, contando sempre com a presença de entidades públicas ligadas ao mar, como foi o caso do comandante do porto, convidado, em fevereiro de 1962, para a cerimónia de batismo dos novos grumetes. A partir daqui, era-lhe atribuído um número de sócio e procedia-se ao seu lançamento no livro de bordo. A entrada de novos sócios fazia-se por contágio dos amigos. É o testemunho dos sócios amigos e os eventuais convites para visitar a Associação que aliciam os novos associados. A amizade e a boémia eram contagiantes. Fala-se que, durante muito tempo, a NSR foi um importante ponto de encontro de empregados e patrões de empresas ligados às ferragens. Esta representação empresarial fazia com que a Associação fosse um lugar para se concretizar alguns negócios. A primeira lista dos sócios só foi organizada a partir de 1942. O primeiro livro de bordo, isto é, o livro de registo dos sócios, apresenta 58, sem data de entrada, sendo anteriores a 1 de outubro de 1942, data em que se registou a entrada do novo sócio, João M. F. Ribeiro, bibliotecário da Alfândega do Funchal. Apenas o sócio 178, Vergílio Pedro Rodrigues Pimenta, tem a indicação da data de admissão, 26 de abril de 1930. De acordo com o testemunho de alguns associados, a primeira lista teria sido elaborada em 1940. Os livros de registo dos sócios, disponíveis na sede da NSR, apresentam 479 associados, mas o grupo de efetivos foi sempre menor, uma vez que muitos foram forçados a desistir, por saírem da Região ou por outros motivos. Facto significativo é o número de desistências, que chega aos 50% do grupo, o que quererá dizer que muitos dos sócios não demonstraram destreza na viagem. A NSR era um espaço de amizade e camaradagem, dizem-nos os estatutos e as declarações de muitos convidados, pelo que todos aqueles que atentavam contra este espírito eram expulsos. No total, foram assinaladas 12 ordens de exclusão da Associação. Também os associados com dívidas, caso não as saldassem, se sujeitavam a serem suspensos e impedidos de entrar na sede. A 12 de abril de 1972, o Conselho deliberou suspender a admissão de novos sócios, situação que se manteve até 1974. Quanto a admissões, 1944 é o ano que regista o maior número de novos sócios. As dificuldades da Segunda Guerra Mundial não afastaram os madeirenses da NSR, que continuou a ser um dos raros espaços de encontro e diversão da cidade. Aqui, também transitaram informações, a soldo da espionagem dos beligerantes. Se excluirmos o período de 1974 a 1977, podemos afirmar que, nas últimas décadas, a NSR terá perdido o interesse e a adesão que outrora provocara na maioria dos funchalenses. Os motivos de diversão são hoje diversificados e as tertúlias gastronómicas têm proliferado. A guarnição da NSR era constituída pelos grumetes e pelo Conselho de Estado Maior. O comando era da responsabilidade deste último, sendo representado pelo almirante e vice-almirante. Sob a dependência do almirante, estavam os oficiais da guarnição, a quem competiam os serviços de bordo. Na primeira listagem dos associados anteriores a 1942, os cargos de serviço estavam assim distribuídos: capitão, imediato e capelão. Todavia, informações dos associados indicam que o primeiro almirante foi Agostinho de Freitas. Já em 1959, a estrutura é distinta: tesoureiro, secretário, restaurante e bar. A estes, juntou-se, em 1961, o responsável pelas contas correntes. Em 1963, os serviçais tinham já categorias distintas: tesoureiro, secretário, comissário e vogal. O número um da lista de sócios é o jornalista Elmano Vieira, que surge na condição de almirante. Aliás, foi ele quem teve a iniciativa de, em 1935, solicitar ao Governo Civil a aprovação dos estatutos. Note-se que o primeiro almirante terá sido, como referido, Agostinho de Freitas, a que sucedeu Elmano Vieira, que, segundo testemunhos, esteve à frente da NSR entre 1934 a 1943, sendo substituído por António Maria Fernandes Nunes. Diz a tradição que os almirantes só são depostos por morte, o que indicia uma prática de atribuir ao cargo um carácter vitalício. A eleição do almirante ocorria sempre no momento em que se procedia à do Conselho de Estado Maior, cujo mandato era anual. Este era composto por cinco sócios, eleitos a partir de uma lista proposta pelo almirante cessante. Era de entre estes que o almirante escolhia o seu braço direito, o vice-almirante. O ato eleitoral fazia-se escolhendo o Conselho uma lista de 15 associados, que era exposta no quadro. No dia assinalado, de entre estes escolhia-se os cinco mais votados para exercer as funções. Apenas uma vez, em 1995, por iniciativa de um sócio, foi decidido em assembleia geral reconduzir todo o Conselho de Estado. Concluída a eleição, o almirante procedia à escolha do vice-almirante de entre os eleitos. As eleições eram sempre um momento grande na vida da NSR. A 3 de fevereiro de 1962, o redator da ata foi profícuo na descrição da ambiência festiva que rodeou mais um ato eleitoral. Após a viagem, isto é o jantar, procedeu-se à votação e contagem dos votos, tendo sido eleito como almirante, para o triénio de 1962-1964, António F. Nunes. E remata-se: “[…] e no meio de grande euforia, foi esta viagem dada por finda, [...] fazendo todos votos, para que os destinos desta Nau Sem Rumo sejam sempre bem governados e dirigidos [...]” (Id., Ibid., 44). De acordo com o testemunho de alguns associados, o ato de posse acontecia sempre com todo o rigor, posando os membros da direção fardados com boné, jaqueta e divisas. Tudo isto à boa maneira das esquadras de navegação terrestre. Hoje, é uma tradição que se perdeu. O Conselho de Estado Maior tinha um papel fundamental no funcionamento da NSR, pois a ele competia o bom funcionamento da Associação, tomando conta do bar e restaurante, e também a iniciativa de organizar reuniões e encontros de carácter cultural e científico. O Conselho podia nomear mensalmente dois sócios, conhecidos como oficiais da guarnição, a quem competia preparar os dois repastos semanais e zelar pelo bom funcionamento do bar e pela escrituração da receita e despesa. Com a aprovação dos estatutos e respetivo registo notarial, em 1999, a NSR passava a ser regida da mesma forma que as demais associações. A obrigação legal de adequar a NSR ao regime legal das associações não quebrou a forma de funcionamento e estrutura peculiar que sempre regeu os seus destinos e que a aproxima da vivência marítima. Deste modo, a estrutura hierárquica de mando continua a manter a terminologia antiga e a tradição, fazendo da Associação uma esquadra de navegação terrestre que teima em sentar-se à mesa todas as quintas-feiras. Os encontros da guarnição na NSR eram conhecidos como viagens. Em ata de 9 de fevereiro de 1963, regista-se o seguinte: “[…] fez-se uma viagem na Nau Sem Rumo [...] fazendo parte da viagem [...] dezanove tripulantes” (Id., Ibid., 53). Era uma viagem em terra, ou melhor, utilizando os termos atuais, uma viagem virtual. Estes foram e continuam a ser os momentos cruciais da vida da Associação. Aconteciam no salão próprio do segundo andar e tinham por palco a mesa e o fiel amigo por companhia. A ementa estava a cargo dos oficiais de serviço que a preparavam, de acordo com a lista de inscritos e de convidados. As reuniões aconteciam sempre duas vezes por semana, ao almoço de quinta-feira e jantar de sábado. Esta última era conhecida como viagem e, segundo os estatutos, “destinava-se a estabelecer o convívio da Guarnição e a estreitar a amizade entre os sócios, formando um ambiente de melhor confraternização” (Id., Ibid., 54). As viagens contavam, para além da guarnição com convidados, de alguns dos associados ou convidados de honra do Conselho de Estado Maior. Os primeiros deveriam ter anuência do órgão máximo. O sócio que formulava o convite era “responsável por todos os actos do seu convidado ocorridos dentro da sede e pelo pagamento de todas as despesas que o mesmo faça” (Id., Ibid., 54). Já os convidados de honra eram da exclusiva competência do almirante e do Conselho de Estado Maior, com prévio conhecimento dos sócios. Este deveria ser “pessoa de reconhecida categoria social, ou entidade oficial, portuguesa ou estrangeira” (Id., Ibid., 54). A estes acresce a deliberação do Conselho, em 1963, em associar-se à iniciativa do dia do turista, convidando quatro estrangeiros ligados a assuntos do mar para o jantar das quartas-feiras no mês de abril. As viagens da NSR não se resumiam ao repasto, pois, por diversas vezes, aconteciam outras atividades, como conferências. O regulamento assim o estabelecia: “Organizar conferências, palestras culturais, reuniões de carácter económico, literário ou científico, trazendo à sede, sob convite e para tal fim, pessoa ou pessoas de qualquer sexo, nativa ou estranha à terra, mas, previamente, deverá comunicar ao Almirante o carácter do assunto ou assuntos a apresentar” (Id., Ibid., 55). Todavia, estas não eram usuais, pois apenas temos notícia de uma, no jantar de 7 de maio de 1960, em que o Dr. Manuel Romão Boavida foi convidado a proferir uma conferência, que depois foi editada com o apoio da Delegação de Turismo. Note-se ainda o empenho da NSR nas festas que anualmente animavam a passagem de ano. Muitos dos associados participaram ativamente na comissão, angariando as magras verbas para custear o fogo-de-artifício e as iluminações. Muita da animação e brilhantismo que deu corpo ao principal cartaz turístico teve nos obreiros da NSR a sua origem. O visconde do Porto da Cruz é testemunho disso: “As festas do Fim-do-Ano devem à ‘tripulação’ da Nau-Sem-Rumo, e muito especialmente a seu ‘Almirante’ Nunes, o empenhado esforço de lhes imprimir o máximo brilhantismo, que satisfaça os madeirenses e os visitantes que de todo o mundo fazem por ir assistir à feérica noite de São Silvestre ao Funchal” (Id., Ibid., 55). A partir de 1986, temos referência ao passeio anual de convívio dos sócios, no mês de outubro. Os testemunhos de alguns sócios evidenciam que a tradição era antiga, sendo mantida pela Associação, que organizou sempre as suas excursões a locais de interesse, como o Caniçal e as Desertas. Nos últimos anos, as escolhas recaíram na Feira do Gado, no Porto Moniz, Achada do Teixeira, Bica da Cana. O encontro da tripulação e familiares em lugares aprazíveis da Ilha tem sempre como principal motivo uma farta mesa, preparada com esmero por um dos associados. Sendo a mesa o centro de toda a atividade da NSR, é natural que a Associação apostasse, desde o início, no esmero do cardápio, através da contratação de verdadeiros mestres da culinária – a este propósito, ficou para a história da NSR o cozinheiro João Valério Gomes. A abnegada dedicação à causa da NSR, saciando o voraz apetite dos associados, persiste ainda hoje na memória de todos. E, para a história, ficam também os seus pratos especiais, como a sopa de peixe e o bacalhau empacotado. Para muitos, a continuidade da NSR, em alguns dos momentos periclitantes, deve-se à sua douta capacidade de cativar os associados com ementas especiais. O menu das quintas-feiras sempre manteve a tradição do bacalhau, enquanto ao sábado a guarnição delega nas mãos do chefe de cozinha a escolha de entre os variados produtos do mar para encontrar o repasto adequado. Sem ser uma academia do bacalhau, a NSR fez com que o fiel amigo ficasse como o inseparável companheiro dos almoços de quinta-feira. Na voz dos associados, novos e velhos, houve, repetidamente, “sempre e sempre sopa de peixe e bacalhau” (Id., Ibid., 56). As cavalas de molho de vilão e outras variedades de peixe faziam a diferença. Ao longo da história da Associação, só temos documentada uma refeição feita por cozinheiros exteriores, o que sucedeu a 27 de maio de 1974, com o jantar do 39.º aniversário, um buffet servido pelo Hotel do Carmo. A sede da Associação era também o local predileto para os associados receberem os amigos e convidados, em ameno jantar ou almoço, pois era a casa de todos e estava sempre aberta para estas ocasiões. As obras realizadas na sede, entre 1979 e 1981, quebraram o ritmo das viagens na NSR, contudo, a 15 de maio desse ano, a Associação retomou a tradição, com uma baixa de vulto, o cozinheiro Valério. A partir de então, a mesa tornou-se animada aos almoços de terça-feira, quinta-feira e sábado e aos jantares de sábado. O convívio dos sócios não se resumia aos repastos e às ocasionais receções aos convidados, sendo a sede um permanente espaço de encontro da guarnição. A NSR oferecia, desde fevereiro de 1960, a assinatura de algumas revistas e jornais. Também estavam disponíveis vários jogos, com que se entretinham os sócios ao final da tarde. Sabe-se que, em 1966, havia um diretor de jogos responsável por estas atividades lúdicas da guarnição. De entre os jogos, refere-se, em 1961, o jogo de cartas “o barato”, a canasta e a bisca de nove. No caso de “o barato”, cada jogador pagava 10$00 e, caso a sessão se prolongasse para além da 1 h, estava sujeito a uma taxa de 10$00 por cada duas horas. Quanto aos demais jogos, o pagamento era de apenas de 2$00. O jogo e o convívio eram companheiros de uma bebida e dos famosos “dentinhos”, petiscos e coisas para picar, estes estipulados pelo Conselho de 1961. De acordo com a então nova tabela de preços, aprovada em sessão de 13 de maio de 1965, sabemos que o bar era seleto, sendo preenchido com bebidas espirituosas estrangeiras. Na memória de muitos, estão ainda presentes os almoços de quinta-feira, onde a diversão se poderia prolongar até à manhã do dia seguinte. Também o jogo da bisca, as histórias e anedotas do João Teixeira, conhecido como o “malcriado”, regados com álcool, tornavam as noites curtas. A NSR não pode, de modo algum, ser considerada apenas um clube onde se bebe e come, pois as suas atividades alargavam-se à formação dos próprios associados ao propiciar momentos de lazer, como passeios na Iha e fora dela. De entre as iniciativas mais relevantes, releva-se as excursões a Tenerife, entre 28 de abril e 5 de maio de 1962 e em março de 1963. Para a primeira, foi nomeada uma comissão e solicitado ao gerente da Empresa Insular de Navegação as possíveis facilidades a bordo do Funchal, para tornar mais agradável a viagem, de facto, à tripulação da NSR. A Associação demonstrava também o espírito filantrópico através do apoio às crianças oriundas das famílias mais desfavorecidas. Uma das iniciativas de grande relevo que ainda persiste é o mercado de Natal da NSR, que tem lugar num dos sábados do mês de dezembro de cada ano, numa organização das esposas dos associados. Este mercado era e é constituído com as dádivas dos associados, amigos e comerciantes, revertendo o dinheiro do leilão em benefício das crianças do Auxílio Maternal, assim o determinava o Conselho a 30 de novembro de 1961: “o produto reverte a favor das crianças nossas protegidas, que são as do Auxílio Maternal” (Id., Ibid., 59). Outra iniciativa irregular era a colónia balnear infantil da NSR, também dedicada às crianças pobres. O regulamento refere ainda a existência de um fundo para apoio “aos pobres envergonhados, principalmente às crianças sem amparo” (Id., Ibid., 7). Este fundo era recolhido numa caixa que circulava em todos os jantares da Associação. Os estatutos posteriores a 1953 referem outro fundo destinado à concessão de uma bolsa de estudo. Em 1972, temos uma ideia da aplicação destes fundos. Assim, o mercado de Natal rendeu 72.875$10, tendo-se aplicado 63.000$00 no Auxílio Maternal, 6000$00 para donativos particulares e 8075$10 para o fundo de Assistência da NSR. De acordo com os estatutos de 1950, as insígnias da Associação consistiam num emblema de lapela e um estandarte de mastro ou vara metálica. “O emblema é representado por uma roda de leme com uma caravela amarela ao centro e entre aquela e esta uma auréola de cor azul-marinho. O estandarte é de forma triangular e nele predominam as cores da cidade – fundo amarelo, uma linha horizontal e outra vertical de cor roxa cruzadas ao centro do emblema, que é colocado no lado esquerdo do corpo do estandarte” (Id., Ibid., 60). Este último foi inaugurado, de forma festiva, no dia 1 de novembro de 1959. Alberto Vieira (atualizado a 03.03.2018)

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