Mais Recentes

adelaide de inglaterra

Adelaide foi a rainha consorte do Reino Unido e de Hanover pelo seu casamento com Guilherme IV de Inglaterra em 1818, do qual enviuvou em 1837. Nasceu a 13 de agosto de 1792 em Meiningen, na Turíngia, Alemanha, filha de Jorge I, duque de Saxe-Meiningen, e de Luísa Leonor de Hohenlohe-Langenburg. A 11 de julho de 1818, casou-se com Guilherme, duque de Clarence, filho de Jorge II de Inglaterra, tornando-se rainha consorte após a ascensão de Guilherme ao trono em 1830, sucedendo a seu irmão mais velho, Jorge IV. As tentativas de Adelaide produzir um herdeiro ao trono foram sempre complicadas, culminando em abortos ou crianças que pouco sobreviveram depois do parto. Ao contrário do marido, que desprezava as cerimónias religiosas, Adelaide levava-as muito a sério, sendo louvada pela dignidade, a serenidade e a graciosidade com que participava nelas. Era amada pelo povo britânico pela sua piedade, modéstia, caridade e pelo seu trágico historial de gravidez. Apesar da sua própria incapacidade de gerar um herdeiro, e da manifesta hostilidade entre o rei e a cunhada, a duquesa viúva de Kent, Adelaide foi sempre bondosa e gentil para com a sobrinha, a futura rainha Vitória. Adelaide era também descrita como puritana e moralista, recusando-se a ter na corte mulheres de duvidosa virtude, e proibindo os decotes, que haviam estado muito em voga nos tempos de Jorge IV. Embora em público fosse discreta e não se manifestasse politicamente, tentou por vezes influenciar o marido, sendo declaradamente conservadora. Com a morte de Guilherme IV, a 20 de junho de 1837, Adelaide tornou-se a primeira rainha viúva desde Catarina de Bragança, sobrevivendo ao marido durante 12 anos. Em 1847, em atenção ao seu precário estado de saúde, foi aconselhada pelos médicos, como último recurso, a passar o inverno num clima temperado, e escolheu a Madeira. Era então governador civil do distrito do Funchal José Silvestre Ribeiro, que preparou à visitante uma brilhante receção. A fragata da marinha de guerra britânica Howe ancorou no porto do Funchal na tarde do dia 1 de novembro de 1847, sendo recebida por salvas de canhão do forte e da cidade, assim como de um brigue português que se encontrava ao largo. A comitiva real, composta por sua irmã, a duquesa Ida, pelo príncipe Eduardo e pelas princesas de Saxe-Weimar, seus sobrinhos, foi recebida na praia, pelas 14.00 h, por cerca de 4000 pessoas em ambiente festivo. O caminho por onde passariam foi coberto de flores e ramos de mirtilo, sendo cumprimentados pela população com o maior respeito. Após visitar o aposento que lhe havia sido preparado, a cerca de meia milha da praia, a rainha voltou para o Howe, jantando e dormindo a bordo. No dia seguinte, desembarcou na Pontinha, e ali recebeu a homenagem de todas as autoridades locais, que a acompanharam à sua residência, para onde foi de liteira e as outras senhoras em palanquins. A comitiva compunha-se da dama de honor Miss Seymour, dos camaristas Cor. Cornawall e esposa, do capelão, o Rev. G. F. Hudson, do médico, o Dr. David Davis, do secretário e esmoler, T. T. Bedford, do secretário do duque, M. Hartey, e de 32 criados. O seu cunhado Bernardo, duque de Saxe-Weimar, e o sobrinho Gustavo juntar-se-lhe-iam em meados desse mês. A rainha instalou-se na Qt. das Angústias, então propriedade da família Monteiro, transformada temporariamente em paço real. Apesar de se encontrar num estado de total invalidez, levando uma vida de absoluto retiro, a sua caridade não cessou. A 4 de janeiro de 1848, ofereceu ao governador civil do Funchal um cheque de 100 libras para ajudar os pobres, sendo por várias vezes contactada durante a sua estadia com vista à obtenção de contributos monetários e doações. José Silvestre Ribeiro alertou-a, com sucesso, para a importância da ponte do Ribeiro Seco, que então se encontrava em construção na Estrada Monumental. A rainha pretendeu mesmo custear a conclusão da ponte, mas a importância era tão grande, que acabou por renunciar ao seu primitivo desejo, limitando-se a conceder um subsídio avultado por intermédio do cônsul britânico, Henry Veitch. Foi igualmente contactada pela comunidade presbiteriana da Ilha, com vista à obtenção de fundos para a construção da sua igreja, vendo-se, neste caso, impedida de ajudar devido à adesão desta comunidade à Igreja Livre Escocesa em 1843. A rainha e a real comitiva contam-se ainda entre os beneméritos da escola Lancasteriana de Raparigas, fundada no Funchal pela família Phelps. Após cinco meses de permanência na Ilha, embarcou no dia 11 de abril de 1848 no mesmo navio que a conduzira à Madeira, conservando as mais gratas recordações dos dias que passara, como atesta a peça de prata em forma de serpentina, primorosamente lavrada, que enviou ao conselheiro José Silvestre em 1849, tendo gravada a inscrição: “Presented to his Excellency Senhor José Silvestre Ribeiro H. M. Majesty's Counsellor and Civil Governor of the Province of Madeira. In grateful recollection of his civility and kind attention during her residence in Madeira by A. R..” [Oferecida a S. Ex.cia o Sr. José Silvestre Ribeiro, conselheiro de Sua Majestade e governador civil da província da Madeira, em grata recordação da sua cordialidade e amabilidades durante a sua residência na Madeira, por A. R.]. A peça apresenta, num dos lados, a coroa real inglesa e, no outro, o nome da rainha Adelaide. A estadia na Madeira não parece ter surtido qualquer efeito na saúde de Adelaide e, no outono de 1849, era evidente que a rainha estava a morrer, nunca abandonando o seu quarto do priorado de Bentley, num estado de saúde extremamente debilitado. Adelaide expirou a 2 de dezembro desse mesmo ano, sendo sepultada na capela de São Jorge em Windsor. A cidade de Adelaide, capital da Austrália do Sul, foi nomeada em sua honra aquando da sua fundação em 1836.   Paulo Perneta (atualizado a 14.09.2016)

Madeira Global Personalidades

abreu, francisco ferreira de

Filho de Manuel Ferreira de Abreu e de Maria Encarnação, nasceu no último quartel de 1800 e faleceu a 15 de junho de 1942, em Cabo Verde. Foi juiz dos Órfãos na vila de Santa Cruz (1828), da capitania de Machico, feitor da Alfândega, escrivão das Execuções Ultramarinas e escrivão da Índia e Mina. A sua condição de liberal e a sua rebeldia custaram-lhe a prisão em 1828. Foi enviado para Lisboa a bordo do bergantim São Boaventura e condenado, por sentença de 3 de agosto de 1830, a não voltar à ilha da Madeira durante três anos. Em 23 de junho de 1838, foi nomeado tabelião do Registo de Hipotecas e, em 11 de junho de 1841, escrivão da administração do concelho do Funchal, aonde regressou. Renunciou a este último cargo por ter no horizonte uma ida para Cabo Verde, onde veio a acabar os seus dias. Traduziu e publicou o Compêndio Elementar de Economia Política, de Adolphe Blanqui e o Discurso Sobre as Revoluções na Superfície do Globo, do barão de Cuvier. Era dotado de excelentes capacidades intelectuais e de pensamento autónomo, motivo pelo qual, na festa comemorativa do primeiro aniversário da Revolução do Porto, em 23 de agosto de 1822, que teve lugar no Palácio do Governo, no Funchal, leu a epítome dos trabalhos. Foi uma exposição extensa, bem documentada e assertiva, por vezes com uma ponta de ironia. Através dessa longa exposição discursiva e filosófica, repartida por assuntos variados, historia-os tão diplomática e delicadamente, que nos apercebemos claramente de que os fins científicos e artísticos da Sociedade Funchalense dos Amigos das Ciências e das Artes estavam subordinados diretamente aos princípios que tornaram possível a revolta do Porto, tal como o acérrimo abraço à causa dos elementos que a compunham. Era pessoa tão bem quista pelos liberais que, em 1852, quando já tinha sido imposto ao país o regime constitucional, foi agraciado com o título de visconde de Santa Cruz, que foi herdado por um descendente seu, Mário de Noronha.   Helena Paula F. S. Borges (atualizado a 14.09.2016)

Personalidades

alfenim

Tradicional em alguns países, a confeção de alfenim está documentada em Portugal desde os sécs. XV e XVI e sabe-se da sua presença em festas e romarias populares. Há uma longa tradição desta arte da doçaria, que acompanha o processo de expansão da cana-de-açúcar do Mediterrâneo para o Atlântico, tendo a ilha da Madeira sido um espaço-chave da sua divulgação para outras ilhas atlânticas, bem como para as Américas Central e do Sul. Durante os sécs. XV e XVI, o fabrico de alfenim ocupou muitos madeirenses e foi uma importante fonte de receita das famílias. Nos inícios do séc. XXI, não há qualquer referência ao fabrico habitual de alfenim na Madeira. Palavras-chave: açúcar; Brasil; doçaria; festas do Divino Espírito Santo; tradições populares.   “Alfenim” é um nome que provém do termo árabe “fanid”, com origem no persa “panid”, com o significado de branco. No latim, aparece como “alphanicum”, “alfenid”, “alpenid” ou “alfanix”; no italiano, como “penito”; no espanhol, como “alfeñique” (sendo, no México, “alfenique”); em francês, como “penides”, “épénide”, “penidon”, “penoin”; popularmente, é conhecido como “peningue”. O primeiro registo do termo na Madeira é de 1469, com a grafia “alfinij”. No séc. XVI, aparece referido em Gil Vicente e em Jorge Ferreira de Vasconcelos. Naidea Nunes refere que, na Madeira, “alfenim” aparece na documentação com as designações: “alfinij” (1469), “alffiny” (1488), “alfenjm” (1490, 1517), “alfenj” (1498), “alfeny” (1517), “alfynjm” (1523), “alfenij” (1579), e conclui que é “um termo muito antigo, do árabe fânid, que em catalão teria a forma affenic, adquirindo, em castelhano, a forma alfenique, que surge nas Canárias com a grafia alfinique (1540)” (NUNES, 2003, 159). O Nordeste do Brasil, uma das mais importantes regiões açucareiras do país, foi durante muito tempo terra de alfenim, tendo depois perdido a importância nesse domínio. Segundo Naidea Nunes, “no Brasil, o termo alfenim apenas existe no Nordeste, onde foi conservado, provavelmente por se tratar da primeira região açucareira brasileira. Nos restantes estados do Brasil, como podemos ver, apenas encontrámos as denominações rapadura mole, puxa e puxa-puxa ou rapadura puxa-puxa, para denominar o mesmo conceito” (NUNES, 2010, 56). Todavia, a arte do alfenim espalhou-se por todo o Brasil e, nos começos do séc. XXI, persiste nos estados da Paraíba, do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, de Minas Gerais, do Ceará, de Pernambuco, de Goiás e do Rio Grande do Norte. Esta tradição encontra-se em Pirenópolis, associada às festas do Divino, e na cidade de Montanhas, no estado do Rio Grande do Norte, ligada às festas do dia de Reis, bem como noutras localidades, como a cidade de Goiás, onde as doceiras realizam pequenas esculturas em forma de flores, pássaros, peixes e chapéus. Gilberto Freyre, em Açúcar. Uma Sociologia do Doce…, documenta a presença do alfenim no Nordeste do Brasil como um vestígio da doçaria portuguesa de influência árabe. À data da primeira publicação do livro, em 1932, a tradição do fabrico de grande parte desta doçaria estava em vias de desaparecer. No entanto, nos começos do séc. XXI, por força das tradições em torno das festas do Divino, o costume de fabrico do alfenim persiste em muitas localidades brasileiras. Na Sicília, conserva-se a tradição dos doces de alfenim e de maçapão, principalmente no dia de Todos os Santos, em que as crianças recebem, como alegado presente dos antepassados, várias figuras de açúcar. A tradição do alfenim encontra-se também no México, com a elaboração de caveiras para o Dia dos Mortos, a 1 de novembro, em que se combinam elementos indígenas com costumes europeus. Os nauatles faziam figuras, normalmente caveiras, como oferenda aos seus mortos. Com a chegada dos Espanhóis, surgiram as figuras de caveiras em alfenim. A esta figuração, as freiras juntaram as cenas relacionadas com a época natalícia. Assim, o alfenim assume várias formas: caveiras, ataúdes, anjos, cruzes, miniaturas de animais ou de fruta, pratos com comida, canastras com flores, etc. Esta tradição persiste no México, tanto na Cidade do México como nos estados de Puebla e Oaxaca. Além disso, na cidade de Toluca, v.g., celebra-se, a 2 de novembro, a festa do alfenim. A produção de alfenim está também documentada na Argentina, na Bolívia, na Colômbia, no Peru e no Equador. Em Portugal, a confeção de alfenim está documentada desde os sécs. XV e XVI e sabemos da sua presença em festas e romarias populares. Ganhou importância no quotidiano da sociedade portuguesa a partir da divulgação do açúcar, desde meados do séc. XV. A Madeira, como espaço de produção de açúcar, especializou-se na arte da doçaria, domínio em que transpôs o seu perímetro, chegando aos Açores, às Canárias e ao Brasil. A partir do séc. XV, tanto em Portugal como em importantes cidades europeias, o consumo e a divulgação do açúcar passarão pela confeção de manjares nobres, sob a forma de doces – como o alfenim, a alféola (um doce semelhante ao caramelo), conservas e cascas de fruta cristalizada. Na Madeira, ficou célebre a doçaria conventual que fez as delícias de Ingleses, de Franceses e de flamengos. A par disso, o fabrico das figuras de alfenim fez de muitas mulheres madeirenses autênticas escultoras da doçaria. O alfenim fazia parte da mesa da Coroa e das casas nobres, e era, no séc. XVI, servido à nobreza em salvas de prata por ocasião das festas do Divino em todo o espaço português, tradição que teve continuidade na Madeira, nos Açores, e que chegou ao Brasil. Das mesas do reino, o alfenim passou às das ilhas e delas ao Brasil, acompanhando o processo de expansão da cultura da cana sacarina e do fabrico do açúcar. No Atlântico, o alfenim foi primeiramente produzido na Madeira, afirmando-se como o doce mais nobre, servido na casa das famílias importantes, e usado como dádiva nas festas do Divino. A oferta de doces está relacionada com uma atitude de gratidão ou mesmo de empatia. É uma tradição muçulmana que os Portugueses assimilaram. Vasco da Gama ofereceu alfenim madeirense ao samorim de Calecute. As freiras do Convento de S.ta Clara presenteavam os visitantes com alfenim e com outros doces. Há uma longa tradição desta arte da doçaria, que acompanha o processo de expansão da cana-de-açúcar do Mediterrâneo para o Atlântico, tendo a ilha da Madeira sido, como já ficou dito, um espaço-chave da sua divulgação para outras ilhas atlânticas, bem como para as Américas Central e do Sul. São vários os testemunhos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes doces. Já em 1455 Cadamosto menciona a feitura de “muitos doces brancos perfeitíssimos”, aludindo certamente ao alfenim (ARAGÃO, 1981, 37). A primeira referência documental a esta arte da doçaria data de 1469, quando se diz que esta atividade era indústria importante para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que ocupava “molheres de boas pesoas e muytos pobres que lavraram os açuquares bayxos em tamtas maneyras de conservas e alfeni e confeitos de que am grandes proveytos que dam remedio a suas vidas e dam grande nome a terra nas partes onde vam”. Durante os sécs. XV e XVI, o fabrico de alfenim ocupou efetivamente muitos madeirenses e foi uma importante fonte de receita das famílias. Esta era fundamentalmente uma indústria feminina e de fabrico caseiro, mas sabe-se que havia homens que exerciam o ofício de doceiro ou confeiteiro, pois a sua atividade estava regulamentada nos Regimentos dos Oficiais Mecânicos da Cidade de Lisboa. A atividade estava vedada a estrangeiros e mestres de açúcar – apenas os “vizinhos e naturaes da ilha” podiam fazer conservas, alfenim e confeitos. De acordo com um documento de 9 de março de 1490, “em toda essa ylha nom posa fazer nemguem conservas, alfenim, comfeytos nem outra nenhüa fruyta daçucaar soomente os vizinhos e naturais da dyta ylha” (MELO, 1973, 198-199, 241). Em 1494-1495, a Casa Real portuguesa recebeu 71 arrobas de confeitos; entre estes, havia 29 arráteis de alfenim. A crónica de Damião de Góis apresenta D. Manuel como um grande apreciador da doçaria madeirense: “Nas vesporas do Natal consoava publicamente em sala, com todo o Estado de porteiros de maçareis darmas trombetas, atabales, charamellas, e em quanto consoava davam de consoar a todolos senhores, fidalgos e cavalleiros, e escudeiros que estavam na salla, na qual se ajuntavam naquelle dia todos os que andavam na Corte por saberem o gosto que el-Rei levava em fazer este banquete, que todo era de frutas verdes e dasucar, e de conservas, que lhe traziam da ilha da madeira, depois desta consoada” (GÓIS, 1911, 92). Desde o séc. XVI, no Japão, aparecem referências ao fabrico de alfenim (aruheitou) e outras doçarias, como confeitos (komfeiton). A primeira referência ao alfenim é de 1569; no decurso das centúrias seguintes, há notícias do seu consumo, tendo sido sempre, ao longo dos séculos, um dos doces nanbam, de oferta em momentos especiais. Tenha-se em conta que ficou célebre o alfenim madeirense que Vasco da Gama levou para oferecer ao samorim de Calecute. Pela rota da Índia deverá ter chegado ao Japão a arte da confeitaria madeirense, onde persiste nos começos do séc. XXI. Os estudos de Miyo Arao reforçam a ideia da influência portuguesa na confeitaria de Tóquio e estabelecem uma ponte com a Madeira, tendo em conta que muitos dos doces produzidos na Madeira aparecem na culinária do Japão. Além disso, não se pode esquecer que, nos sécs. XVI e XVII, a Madeira era um dos principais centros produtores de alfenim e daí deverá ter partido a técnica de fabrico que, depois, se vulgarizaria noutros espaços, como o Japão. A fama alcançada pela arte da doçaria madeirense está testemunhada na embaixada enviada por Simão Gonçalves da Câmara ao Papa. O facto mais memorável é referido pelos cronistas. Jerónimo Dias Leite diz que “leuou muitos mimos e brincos da ilha, de conseruas, e ho sacro palacio todo feito de asucar e hos Cardeaes hião todos feitos de alfenij […] ho que foi tudo metido em caixas embrulhadas com algodão, que forão mui seguros e sem quebrar” (LEITE, 1947, 37). Escreve Gaspar Frutuoso: “E tão generoso foi, que, tendo seu filho Manuel de Noronha, Bispo que foi de Lamego, em Roma, que servia de secretário do Papa Leão, despachou da ilha um criado seu, por nome João de Leiria, homem muito honrado, prudente, e gentil-homem, o qual mandou a Roma visitar o Papa com um grande serviço, que, além de um cavalo pérsio, que lhe mandou de muito preço, que levava de cabresto um mourisco muito gentil, homem e alto de corpo, vestido em uma marlota de girões de seda; levou mais muitos mimos e brincos da ilha de conservas, e o sacro palácio, todo feito de açúcar, e os cardeais iam todos feitos de alfenim, dourados a partes, que lhe davam muita graça, e feitos de estatura de um homem, o que foi tudo metido  em caixas emborulhados [sic] com algodão, com que foram mui seguros e sem quebrar até, dentro, a Roma, coisa que, por ser a primeira desta sorte que se viu em Roma, estimou-a muito o Papa, e cada uma peça por si foi vista pelos cardeais e senhores de Roma, sendo presente o Papa, que louvava muito o artifício, por ser feito de açúcar, e muito mais louvava o Capitão que lhe tal mandava, largando muitas palavras perante todos em louvor deste ilustre Capitão” (FRUTUOSO, 1979, 248-250). Mas sobre esta embaixada, segundo Luciana Stegagno Picchio, não consta qualquer documento na Cúria Romana, ao contrário do que aconteceu com outras. Terá sido mera invenção dos cronistas, para exaltar a figura do capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara? Atente-se na situação, a ter acontecido. Seriam 72 os cardeais feitos em alfenim e em tamanho natural, o que poderia significar mais de 5000 kg de açúcar. Por outro lado, deve ter-se em conta o próprio processo de fabrico das figuras e a dificuldade em transportá-las intactas até Roma. Será que podemos afirmar que a dita embaixada madeirense nunca existiu e que os testemunhos de Jerónimo Dias Leite e de Gaspar Frutuoso são pura invenção? Em 1550, D. Isabel Mendonça, mulher do referido capitão-donatário, tinha a seu cargo o abastecimento da Casa Real, tendo enviado para Lisboa, em 1551, 105 arrobas de conserva, 24 arrobas de fruta seca e 8 arrobas de alfenim. Em 1567, Pompeo Arditi dá conta da “conserva de açúcar” que se fazia no Funchal, “de ótima qualidade e muita abundância” (ARAGÃO, 1981, 130). Em finais do séc. XVI, Gaspar Frutuoso dava conta de “ricos e esquisitos manjares de toda sorte, como os sabem muito bem fazer as delicadas mulheres da ilha da Madeira, que (além de serem comumente bem assombradas, muito formosas, discretas e virtuosas) são estremadas na perfeição deles e em todolas invenções de ricas coisas, que fazem, não tão somente em pano com polidos lavores, mas também em açúcar com delicadas frutas” (FRUTUOSO, 1979, 264). Esta tradição perpetuou-se na Ilha para além dos tempos áureos da produção açucareira local (segundo Hans Sloane, em 1687, o madeirense produzia o “açúcar indispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comprá-lo ao Brasil” (ARAGÃO, 1981, 158)). Outro testemunho a atestar a abundância deste doce na Madeira é o facto de, a 29 de julho de 1593, o chamado fogo do céu, que queimou parte da cidade do Funchal, dando origem às ruas da Queimada de Cima e Queimada de Baixo, ter queimado alfenim, que havia sido feito com 5000 pães de açúcar. Nos inícios do séc. XXI, não há qualquer referência ao fabrico habitual de alfenim na Madeira (embora ainda haja quem se lembre das pombas do Divino, por ocasião das festas do Espírito Santo). No entanto, em algumas ilhas dos Açores e em alguns estados do Brasil a tradição do alfenim continua viva, alimentada pela persistência das festas em honra do Divino Espírito Santo.    Alberto Vieira (atualizado a 28.09.2016)

Biologia Terrestre História Económica e Social

aguiar, manuel caetano pimenta de

Poeta e dramaturgo. Foi representante da ilha da Madeira nas Cortes Constituintes de 1822 a 1823, tendo sido também deputado, pela Madeira, para a sessão legislativa de 1826 a 1828. Escreveu muitas tragédias de que se conhecem dez: Virgínia (1815); Os Dois Irmãos Inimigos (1816); D. João I (1817); Destruição de Jerusalém (1817); Conquista do Peru (1818); Eudoxa Licinia (1818); Morte de Sócrates (1819); Carácter dos Lusitanos (1820); Arria e D. Sebastião em África. Existe uma tradução francesa do livro Carácter dos Lusitanos publicado em Paris (1823), por Ferdinand Denis. Palavras-chave: poesia; dramaturgia; tragédia; política.   Poeta e dramaturgo, nasceu na ilha da Madeira, na freguesia da Sé, a 16 de maio de 1765 e faleceu, com 67 anos, em Lisboa, na R. Direita da freguesia de São Paulo, a 19 de fevereiro de 1832, vítima de um ataque apoplético. Foi sepultado na igreja paroquial de S. Paulo. Era filho de Bartolomeu Luís Pimenta de Aguiar, doutor em Direito pela Universidade de Coimbra, que foi para a Madeira exercer o lugar de curador geral dos órfãos e lá teve administração duma casa vinculada, e de Maria Felícia de Carvalho. Casou-se com Micaela Antónia de Sá Bettencourt, filha do Cap. Manuel José de Bettencourt e Andrade e de Ana Bárbara de Freitas Drumond Aragão. Teve sete filhos. Um deles, Luiz Pimenta de Aguiar, foi desterrado para Moçambique por ser liberal e lá morreu; outra filha, Isabel Bettencourt de Aguiar, casou-se com António João da Silva Bettencourt Favila. Pimenta de Aguiar habitou uma casa da antiga R. da Carreira, situada um pouco abaixo da travessa com o nome deste notável dramaturgo, poeta de pendor trágico, filósofo das novas ideias do século das Luzes e romântico soldado. Consta que nessa casa escreveu algumas das suas tragédias. Nascido numa família de exemplares virtudes que, formada à sombra da Igreja, gozava de prestígio conquistado desde António Gomes de Aguiar, experienciou uma infância de severo tradicionalismo; foi para Lisboa em 1778, onde deu entrada no Colégio Real de Nobres, fundado pelo marquês de Pombal. Não se sabe se concluiu ali os estudos, mas em 1785, desviado do seu destino de família que apontava para a Universidade de Coimbra, mudou-se para França, como emigrado em busca de glória, a fim de seguir um curso de artes e ciências; durante este período conheceu a literatura francesa, que influenciou toda a sua obra. Durante a Revolução que sairia de França para abalar o mundo, encontrava-se ao serviço do governo francês, tendo alcançado, alistando-se nos exércitos revolucionários, em concreto nas fileiras da cavalaria, o posto de capitão e, pelo seu heroísmo, recebido a Cruz da Legião de Honra. Terminada a luta civil contra o Rei, foi demitido do serviço militar. Até 1815, nada sabemos, de positivo, da sua vida, a não ser o nascimento de quatro filhos. Em 1816, publicou a sua primeira obra, Virgínia, dando à luz o seu último trabalho em 1820. Em tão curto período, trabalhou intensamente, criando 10 tragédias, todas elas obras extensas, seguindo os trâmites clássicos e cultivando o verso. Depois de 1820, com a revolução do Porto – tendo frequentado, na companhia de Borges Carneiro, a casa de Francisco Freire de Melo, deputado da Mesa da Santa Inquisição e amigo de filósofos –, abandonou a atividade literária, desconhecendo-se os motivos que o conduziram a tal decisão. Em 1821 encontrava-se na Madeira; de 1822 a 1823, foi representante da ilha da Madeira nas Cortes Constituintes, tendo sido também deputado pela Madeira para a sessão legislativa de 1826 a 1828. Antes de seguir para Lisboa, apela aos seus concidadãos, no jornal Patriota Funchalense, para que lhe comuniquem os seus anseios para a Madeira. E é com este espírito que vai ocupar a sua cadeira nas Cortes. Cultivou a natureza e a razão, iluminado pelas esperanças de liberdade, entregando-se principalmente ao estudo e ao desenvolvimento das suas predileções literárias. Apresentou vários projetos, entre os quais um que permitia a livre exportação do Vinho da Madeira. No dia 28 de Janeiro de 1822, solenizou-se o aniversário da proclamação da Constituição na Ilha da Madeira. O estabelecimento, em 1828, do governo absoluto obrigou-o a fugir para escapar às perseguições dos emissários miguelistas, que não poderiam poupar quem fora partidário entusiasta da Constituição de 1820 e da Carta Constitucional de 1826. Durante a guerra civil de 1828-34, sofreu as perseguições dos seus inimigos. Intuindo que não havia um verdadeiro teatro em Portugal e inspirando-se nos trágicos franceses, desenvolveu o gosto por este género de literatura. As suas tragédias foram bem recebidas pela crítica. Conhecem-se 10: Virgínia (Lisboa); Os Dois Irmãos Inimigos; D. João I; Destruição de Jerusalém; Conquista do Peru; Eudoxa Licinia (estas 5 publicadas em Lisboa, pela Impressão Régia); Morte de Sócrates; Carácter dos Lusitanos (estas 2 publicadas em Lisboa); Arria e D. Sebastião em África, obras de que se desconhecem capas ou folhas de rosto e sem local ou data de publicação. Existe uma tradução francesa de O Carácter dos Lusitanos, publicada em Paris, em 1823, por Ferdinand Denis. Publicou ainda poemas no Defensor da Liberdade, um semanário do Funchal. Alguns conhecedores da sua obra consideram-no precursor de Almeida Garrett, nomeadamente no que diz respeito à criação do teatro trágico nacional, evidenciando, assim, a importância de Pimenta de Aguiar na história da literatura portuguesa. Muito reconhecido no seu tempo, as suas tragédias, contextualizadas pelos defeitos próprios da época, evidenciavam, sem dúvida, a sua originalidade, um estilo distinto e uma elegância admirável, características pouco comuns naquele período, pelo que o autor era frequentemente aclamado com entusiasmo pelo público. Nascido numa época privilegiada da intelectualidade portuguesa, foi um estilista inteligente e original. No seu Résumé de L'Histoire Littéraire du Portugal, Ferdinand Denis refere-se-lhe de modo bastante lisonjeiro. Ilustre madeirense e distinto escritor, que seguiu a causa de D. Pedro IV, patriota zeloso e intransigente na defesa da independência nacional, M. C. Pimenta de Aguiar não ficou conhecido entre os madeirenses. Contudo, e apesar de ter residido fora da Madeira a maior parte da sua vida, a Câmara Municipal do Funchal decidiu atribuir o seu nome a uma travessa da cidade. Obras de Manuel Caetano Pimenta de Aguiar: Virgínia (1815); Os Dois Irmãos Inimigos (1816); D. João I (1817); Destruição de Jerusalém (1817); Conquista do Peru (1818); Eudoxa Licinia (1818); Morte de Sócrates (1819); Carácter dos Lusitanos (1820); Arria (s.d.); D. Sebastião em África (s.d.).   António José Borges (atualizado a 01.08.2016)

Direito e Política Literatura Personalidades

vilares, luís rodrigues

Segundo algumas fontes, D. Luís Rodrigues Vilares seria “dito natural do Brasil” (PEREIRA, 1968, II, 452), de onde teria saído para estudar em Coimbra, no Colégio de S. Pedro, onde chegou a reger a cadeira de História Eclesiástica. Acabou por regressar a São Paulo, para o desempenho da função de arcediago. Enquanto aí prestava serviço, foi eleito bispo do Funchal a 2 de junho de 1796, recebendo confirmação de Pio VI a 29 de julho de 1797. Foi sagrado a 31 de dezembro do mesmo ano, na igreja de S. Pedro de Alcântara, em Lisboa, e daí rumou à Madeira. Chegado ao Funchal, o bispo viu-se imediatamente envolvido na problemática da governação da Ilha, pois o falecimento, pouco tempo antes, do Gov. D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho impusera uma solução que passava pela existência de uma junta governativa, à qual o prelado passou, desde logo, a pertencer. Em princípio sem grandes qualificações militares, D. Luís Vilares não deixou de se interessar por aquele aspeto da governação, tomando decisões que tocavam às obras de caráter defensivo, sendo, por exemplo, a favor de haver menos edifícios, mas bem guarnecidos, em vez de muitos mal equipados. Graças à instabilidade dos restantes elementos da junta governativa, que mudavam frequentemente, o protagonismo do prelado foi aumentando, sendo mesmo possível encontrá-lo a despachar assuntos – não em S. Lourenço, mas no paço episcopal – sobre promoções militares, a encomendar pólvora e a dar ordens para que se inventariassem equipamentos. No tempo em que se ocupava do governo militar do arquipélago, o bispo indispôs-se com o sargento-mor do Porto Santo por este se ter ausentado sem licença e mandou-o regressar ao Funchal, onde foi feito prisioneiro. Em 1800 chega, finalmente, ao Funchal, um novo governador, D. José Manuel da Câmara que foi recebido pelo bispo em “um muito decente escaler”, sendo que as primeiras impressões que o governador colheu do prelado foram positivas, pois achou-o muito agradável no discurso e nas maneiras; opinião que, no entanto, iria durar pouco tempo, pois dentro em breve as relações entre os dois degradar-se-iam a um ponto sem retorno (CARITA, 2003, VI, 80). Uma das primeiras razões dos atritos formalizou-se com as queixas apresentadas pelo sargento do Porto Santo relativas à sua prisão, às quais o governante deu provimento, encetando, com isso, a muito conflituosa relação que depois manteria com o bispo. Agravou a situação o facto de o governador se pronunciar sobre o exercício do poder da junta governativa, qualificando de “estado paralítico” aquele em que tinha encontrado a administração pública, e atribuindo as causas não só aos últimos anos de D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, mas sobretudo à junta governativa que designava por “miserável” (RODRIGUES, 1999, 184), cujo principal responsável fora, como se viu, o prelado. Em fevereiro de 1801, o bispo escrevia para Lisboa a pedir licença para ir ao reino por razões de saúde que, apesar de existirem, não seriam, com certeza o único motivo que o levava a pretender ausentar-se. Com efeito, o governador fora acompanhado de umas Instruções pelas quais se haveria de reger e das quais constavam alguns pontos que não poderiam deixar de desagradar a D. Luís Rodrigues Vilares, nomeadamente o que dizia respeito à indicação de que “debaixo do pretexto da religião” se poderiam atropelar direitos reais e que era ao governador que estava cometida a responsabilidade da inspeção das escolas públicas (CARITA, 2003, 89). Para além disto, o governante era ainda portador de outra carta cujo conteúdo também não poderia satisfazer o prelado: a missiva em que a Coroa concordava com a passagem da tutela do Colégio dos Jesuítas para o governador, para que servisse de celeiro público. Em 1801, por razões que se prendiam com o clima de guerra internacional advindo das movimentações europeias e marítimas de Napoleão, os Ingleses sentiram que precisavam de um ponto de apoio no Atlântico que lhes garantisse algum controlo da circulação marítima, e decidiram que esse ponto seria a Madeira, pelo que uma esquadra inglesa se apresentou no porto do Funchal e fez saber ao governador que pretendia desembarcar e instalar-se na Ilha enquanto fosse preciso. Sem possibilidades de sequer discutir o assunto, o governador rendeu-se às evidências e os Britânicos rapidamente se puseram em terra, ficando as chefias aquarteladas em S. Lourenço, enquanto se procurava um alojamento definitivo para as tropas que, temporariamente, se tinham instalado ao ar livre, nos ilhéus. A precariedade desta solução obrigou a que rapidamente se procurasse um sítio capaz para se aboletarem as tropas, e a escolha acabou por recair no Colégio dos Jesuítas, solução a que o governador foi muito recetivo, até porque lhe poderia, no futuro, satisfazer a ambição de transformar aquele espaço num quartel. Àquela atitude de D. José da Câmara reagiu, de imediato, o prelado, insurgindo-se contra a cedência do edifício aos Britânicos, tendo em conta que nas suas instalações funcionava o seminário. Logo de seguida, aconteceu nova desinteligência, provocada pela decisão de a oficialidade inglesa não se instalar no Colégio, preferindo uns aposentos quase em frente, então alugados a um cónego de origem inglesa, Duarte Guilherme Allen, que tentou, por todos os meios, evitar a sua saída de casa. Esta atitude do cónego foi logo conotada com a influência que sobre ele teria o prelado, o que mais não fez senão agravar a deterioração das relações entre o governador e o bispo. A tensão subia entre as duas personalidades, que não perdiam uma ocasião para publicamente se manifestarem uma contra a outra, como aconteceu no caso de uma missa de ação de graças que o prelado fez celebrar na Sé, em honra de um tratado de paz recentemente assinado com França, a que o governador se recusou a assistir; e no caso da acusação que D. Manuel da Câmara fez do bispo de não esperar por ele para o início da procissão do Corpo de Deus, fazendo-a, propositadamente, sair mais cedo que o previsto. Neste clima conflituoso, cada desenvolvimento contribuía para aumentar o desgaste e assim, quando, por diversas causas, o governador se travou de razões com o cônsul inglês Pringle, este passou a reunir-se com muita frequência com o bispo, o qual, tendo faltado aos festejos do aniversário do Rei de Portugal, compareceu, por sua vez, ao baile realizado em casa do cônsul em homenagem aos anos de Jorge III, . Nessa mesma residência, segundo se dizia, ocorriam umas reuniões prolongadas entre o prelado, o cônsul e um conjunto de personalidades conotadas com a maçonaria, acabando D. Luís Rodrigues Vilares por vir a ser tido por pedreiro-livre. Outro dado a juntar à acusação de maçonaria provinha do facto de o bispo ter pregado na igreja de Santiago, acompanhado pelo padre de Santa Maria Maior, Francisco de Spínola, “reconhecido pedreiro-livre” (CARITA, 2003, 92). Perante estas suspeitas ocorreu ao governador levantar um processo e equacionar a hipótese de mandar prender o bispo e enviá-lo para Lisboa, ao mesmo tempo que insistia na sua própria transferência para o reino. Estando perto do término do seu mandato, Lisboa optou por não atender a nenhuma das solicitações: nem autorizou a prisão de D. Luís Rodrigues Vilares, nem permitiu a antecipação do regresso do governador. José Manuel da Câmara, cada vez mais indignado, enviava para o reino sucessivas queixas do prelado, em que dava conta das suas “contínuas faltas de consideração e respeito”, defendendo que “para grandes males, grandes remédios” (RODRIGUES, 1999, 191). A tradução prática daquele aforismo entendeu o governador que deveria ser o afastamento do bispo, cujo exílio no Santo da Serra determinou sem consultar a corte, o que o obrigou a, posteriormente, rever a decisão. Durante o seu desterro no Santo da Serra, o bispo entretinha-se a passear, indo frequentemente a um sítio onde acabou por mandar construir um fontenário que foi chamado Fonte do Bispo; mas não descurava a ofensa que lhe fora feita, que queria remir a partir do reino, tendo solicitado, como se referiu anteriormente, licença para lá se deslocar e uma sindicância para as suas ações. Entre as razões elencadas pelo prelado para ir à corte encontravam-se ainda, para além da já mencionada necessidade de cuidados de saúde, a “falta de ilustração do clero”, que ele atribuía à retirada do seminário do Colégio dos Jesuítas e às dificuldades que se lhe deparavam em relação ao provimento dos benefícios (CARITA, 2013, 129). A 22 de agosto de 1803, acabou por ver satisfeita a sua pretensão, quando recebeu um aviso régio para se apresentar na corte. Em dezembro, chegou ao Funchal a fragata Carlota Joaquina, que trazia a bordo o novo governador, Ascenso de Sequeira Freire, um desembargador para sindicar dos problemas havidos entre as duas personagens e ordem para o bispo e o governador seguirem para Lisboa, mas em embarcações diferentes. Assim aconteceu e, terminadas as averiguações, a sentença contra o prelado e o governador foi proferida no Desembargo do Paço em meados de 1805, tendo sido ambos objeto de censura: ao governador, criticava-se o seu mau comportamento com o antístite; sobre este pesavam as injúrias com que teria mimoseado D. José Manuel da Câmara, usando de “palavras impróprias” e pouco consentâneas com a sua qualidade de pastor, de quem se esperava “mansidão e paciência evangélica” (CARITA, 2013, 144). Apesar deste resultado, foram ambos perdoados, sendo o bispo mandado regressar à Madeira, para onde voltou em 1805, com a saúde muito comprometida. Mesmo enquanto membro da junta governativa, não se esqueceu D. Luís Rodrigues Vilares das suas responsabilidades apostólicas, tendo enviado cartas circulares às paróquias e chamado a atenção para aspetos que era necessário corrigir. Assim, em 28 de agosto de 1797, ficou registado no Livro de Provimentos de S. Martinho um desses documentos, no qual o prelado voltava a apelar para o preconizado uso do vestuário eclesiástico, censurando os clérigos que tinham a ousadia de usar um “chapéu redondo” em vez do modelo correto, o de “três ventos da sua volta” (ARM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, Vizita, fl. 81). A 7 de fevereiro de 1800, surgiu uma nova carta pastoral, desta vez reprovando a má prática de quererem os eclesiásticos fazer da sua profissão um negócio, pelo que proibia que se desse mais que o devido aos clérigos solicitados para ajudar nas cerimónias da Semana Santa. A 6 de junho de 1803, pouco antes de se ver desterrado para o Santo da Serra, ainda fazia o bispo um edital apelando à participação na procissão do Corpo de Deus, enquanto a 10 de outubro do mesmo ano, enquanto esperava poder embarcar para o reino, não deixava de fazer um apelo à população no sentido de dar esmolas para ajudar as vítimas da “calamidade ocorrida a nove de outubro”, ou seja, a grande aluvião que fez centenas de mortos na Ilha (SILVA, 1945, 93-95). Enquanto ausente no reino, não se esqueceu D. Luís Rodrigues Vilares da sua Diocese e mandou, através do deão, António Correia de Bettencourt e Vasconcelos, editais para que o povo e o clero comparecessem em procissões. A 8 de setembro de 1808, o mesmo deão volta a assinar outro edital, desta vez para que se celebrasse Te Deum “pela plausível notícia de se achar livre o reino de Portugal da influência francesa” (ACEF, cx. 32, doc. 104). O facto de ser o deão e não o bispo a assinar o edital pode constituir um indício de que a saúde do prelado estava cada vez mais deteriorada e, realmente, a 1 de outubro de 1810, D. Luís Rodrigues Vilares acabou por falecer no Funchal, de “um tubérculo que lhe rebentou e de que provinha a opressão no peito que há tanto tempo experimentava” (CARITA, 2003, 174), vindo a ser sepultado na capela-mor da sé.   Ana Cristina Machado Trindade (atualizado a 20.07.2016)

Personalidades

áfrica do sul

A Madeira singrou, a partir de meados do séc. XV, pela sua vocação atlântica, abraçando ambas as margens do oceano e estabelecendo pontes com os diversos portos atlânticos. A rota de aproximação à costa africana, que culmina no cabo da Boa Esperança, começou desde o início da ocupação do arquipélago e prolongou-se até a atualidade, porque a Ilha e as suas populações se embrenharam, de forma direta, neste processo de descoberta dos portos e litoral atlânticos. Sulcámos o oceano à busca do desconhecido e firmámos uma posição de relevo nas rotas oceânicas que ajudámos a criar. Desta forma, desde muito cedo, o cabo da Boa Esperança esteve presente nas aspirações dos ilhéus, na mira do Índico e do Pacífico e das suas riquezas no mar e em terra. Por força disso, foram-se estabelecendo laços entre a Cidade do Cabo e esse cabo. Desta forma, construiu-se o mundo e as rotas do Atlântico, apostando na importância destes dois pilares, já no séc. XVI. Esta ancestral ligação permaneceu quase até ao séc. XX, com a chamada rota do Cabo e a sempre presente visibilidade dos chamados vapores do Cabo, no porto do Funchal.   Do Funchal ao cabo da Boa Esperança O relacionamento da Madeira com a África do Sul vem dos tempos do descobrimento da costa africana até ao cabo, que implicou um envolvimento direto da Ilha e dos madeirenses, servindo o Funchal, muitas vezes, de base de apoio a essas viagens. Em 1488, Bartolomeu Dias abriu um caminho para o chamado cabo e, desde então, tornou-se notada a presença portuguesa nestas paragens. Todavia, o primeiro português documentado como emigrante no cabo surge apenas em 1722, não havendo, porém, qualquer referência à data da sua chegada. Apenas podemos afirmar com segurança que, nos princípios do séc. XX, a comunidade portuguesa era significativa e que, em 1904, os madeirenses assumiam uma posição maioritária. O facto de os Ingleses ocuparem a Cidade do Cabo aos Holandeses, em 1795, abriu ainda mais as portas a este novo destino para os madeirenses emigrantes e às ligações que se seguiram com o Funchal. Tenha-se em atenção que, entre 1652 e 1784, se desencadeou uma guerra marítima entre Ingleses e Holandeses pela posse dos mares e que esta incluiu a Cidade do Cabo, porto para a entrada no Índico e no Pacífico. Daí o Ato de Navegação de Oliver Cromwell, de 1651, o primeiro testemunho dessa estratégia imperial inglesa, que também amarrou a Madeira à Cidade do Cabo. Para os britânicos, a perda da América do Norte, em 1776, levou a buscar alternativas no Índico e no Pacífico e, para que elas se concretizassem, era preciso controlar a porta de acesso a esse mundo que estava em poder dos Holandeses. A conquista da Cidade do Cabo foi, assim, o início da afirmação de uma nova rota comercial que marcou a vida dos britânicos e da Ilha por muito tempo. Até à déc. de 60, na Ilha, era usual a designação “vapores do cabo” para identificar os navios da Royal Mail Steam Packet Company que, frequentemente, escalavam a Madeira. Estas escalas são uma referência no quotidiano dos madeirenses e eram também a possibilidade de muitos deles encontrarem outros destinos de emigração ou um caminho mais fácil em direção à Inglaterra. Esta rota comercial foi a ponte para a afirmação da comunidade madeirense na África do Sul, nomeadamente, na Cidade do Cabo, em Pretória e Joanesburgo. Os britânicos fizeram do porto madeirense uma peça estratégica na navegação atlântica e no domínio da colónia. O Funchal era quase escala obrigatória para as embarcações do Cabo, Índia e Antilhas, relacionada com a disponibilidade do vinho para o abastecimento dos navios e do comércio nas praças de destino. A rota do Cabo era, assim, uma rota consolidada na história da Madeira que só a plena aviação comercial destronou. Para além desta rede de rotas oceânicas, que estabelecem um vértice importante na Madeira, com a plena afirmação da máquina a vapor, outros vínculos importantes amarram a Madeira à África do Sul. Com o advento das comunicações por cabo submarino, a Ilha voltou a cumprir uma missão importante nesta ponte atlântica. Assim, em 1901, tivemos o cabo submarino da Eastern Telegraph Company, que ligava a Inglaterra ao cabo, com pontos de amarração na Madeira e em Cabo Verde. Tenha-se em conta que a conjuntura da primeira metade do séc. XX é favorável ao rápido desenvolvimento da telegrafia sem fios (TSF). A Primeira Guerra Mundial (1914-1919), os conflitos militares isolados, como os que aconteceram com os boers na África do Sul, criaram a necessidade de um rápido e eficaz sistema de comunicações, só possível com a TSF. A utilização, a partir de 1905, do rádio nas comunicações militares e a acuidade destes conflitos, nos primeiros decénios do séc. XX, traçaram o caminho para a plena afirmação das comunicações via rádio. Foi Marconi quem, durante a guerra, divulgou, no seu país, o serviço de telegrafia e telefonia e, no que diz respeito à Madeira, impulsionou a propagação dos serviços de TSF no espaço atlântico, prestando um inestimável serviço às colónias inglesas e à África do Sul. Não obstante, o serviço do cabo submarino persistiu até a atualidade. A 16 de outubro de 1927, a Western Telegraph Company encerrou o seu Hotel e escola em Santa Clara. O cabo submarino precisava, contudo, de ser substituído, dada a sua idade e os constantes reparos a que fora sujeito em 1928, 1931, 1933, 1934, 1936. O seu desaparecimento foi protelado em 1929, com o estabelecimento de um pacto de colaboração entre as duas companhias. Mas, aos poucos, a companhia do cabo submarino foi perdendo o controlo da exploração no espaço português: em 1943, era estabelecido um acordo telegráfico com o Brasil que dava uma posição privilegiada à Marconi, enquanto no acordo celebrado entre o governo português, a The Western Telegraph Company e a Cable and Wireless Limited, em 4 de abril de 1969, não lhe é concedido qualquer exclusivo. Portugal reservava-se o direito de estabelecer e explorar, diretamente ou mediante concessão, outro cabo submarino ou quaisquer outros sistemas de telecomunicações. Vingou a última situação com a concessão daquele direito à Marconi, a 11 de agosto de 1966, de que resultou a inauguração da estação de cabo submarino de Sesimbra, que estabelecia a ligação entre Londres e a África do Sul. A segunda fase de concessão, iniciada em 1956, é definida pelo recurso a novos e mais adequados meios de comunicação. Este serviço (Sat-1), inaugurado a 18 de fevereiro de 1969, divergia para uma ligação de Londres a Portugal e à África do Sul, num comprimento total de 10.787 km e com capacidade para 360 circuitos, atingido o limite da sua utilização em 1978. Ao longo do percurso, estabeleceram-se três amarrações (Tenerife, Sal e Ascensão). Seguiram-se outros que estabeleceram a ligação com a Madeira (1971), França (1979), Portugal/Senegal/Brasil (1982), Marrocos (1982) e África do Sul (1992). A 8 de março de 1990, foi assinado um acordo de intenção, subscrito pela Companhia Portuguesa Rádio Marconi, Correios e Telecomunicações de África do Sul, France Telecom, Telefónica de Espanha, British Telecom, Bundespost Telekom. O cabo de fibra ótica Sat-2, cuja inauguração teve lugar a 28 de abril de 1993, surge em substituição do Sat-1. O Sat-2 vai ligar o continente à Madeira, Canárias e África do Sul, numa extensão de 9000 km e com capacidade para 15.000 circuitos bidirecionais e 30 canais de televisão, sendo avaliado em 30.000 contos. Este meio veio propiciar, ainda, aos 20.000 assinantes da rede telefónica da Madeira o acesso telefónico direto à Europa e a alguns países da África e da América, uma maior aproximação entre os madeirenses residentes na Ilha e aqueles que se encontram emigrados nos mais diversos destinos. Neste contexto, merece referência um acontecimento prévio, a inauguração, a 20 de fevereiro de 1984, das ligações telefónicas diretas com a Venezuela e África do Sul. Esta ligação direta abrangeu mais de 70 países, graças ao Centro de Telecomunicações, capaz de corresponder a esta realidade. Aberto em 25 de setembro de 1992, o Centro passou a coordenar toda a atividade da empresa em termos do tráfego dos cabos submarinos de fibra ótica e transmissão digital (Euráfrica, Sat-2, Columbus-2, Inland), rede móvel e satélites. Esta infraestrutura concentra todos os serviços que estavam dispersos pelo Porto Novo, Garajau e Funchal. Aí está instalada a nova estação de cabos submarinos dos sistemas Euráfrica e Sat-2. A inauguração do Centro foi feita em simultâneo com a do cabo submarino internacional Euráfrica, à qual se seguiria a do cabo Sat-2. Este último é o maior cabo submarino do Atlântico e o terceiro no mundo. Deste modo, a Ilha continua a ser, por diversas formas, um pilar importante no mundo atlântico. Navegação e comércio Múltiplas e variadas razões fizeram com que o Funchal se afirmasse, a partir do séc. XVIII, como centro das transformações sociopolíticas operadas de ambos os lados do oceano. O arquipélago da Madeira não podia alhear-se das mudanças políticas geradas pela difusão de novas ideias, na segunda metade de Setecentos. O seu protagonismo deve-se a vários fatores: a vinculação ao império britânico, que é evidente no quotidiano e devir histórico madeirenses dos sécs. XVIII e XIX, o fogo cruzado que se ateou entre o velho e novo mundo e o papel ativo da Madeira no relacionamento com a comunidade inglesa. No decurso do séc. XVII, o arquipélago firmou a vocação atlântica, contribuindo para isso o facto de os Ingleses não dispensarem os portos e os vinhos insulares na sua estratégia colonial. Os atos de navegação de 1660 e 1665, corroborados por tratados de amizade como o de Methuen (1703), abriram caminho para que as ilhas entrassem na órbita da influência inglesa. Aos poucos, a comunidade ganhou uma posição, por vezes incómoda, na sociedade madeirense. A feitoria inglesa é uma realidade insofismável no séc. XVIII e contribuirá para firmar a vocação e protagonismo atlântico do porto do Funchal. A partir da déc. de 70 do séc. XVIII e até aos princípios do século seguinte, os conflitos que tiveram como palco os continentes europeu e americano alargaram-se ao Atlântico. Aliás, o oceano é um ativo protagonista das disputas entre os três principais beligerantes: Espanha, França e Inglaterra. Era permanente a preocupação com a organização militar e a defesa da costa, porque o perigo espreitava no mar a qualquer momento. A conjuntura de afrontamento levou à presença dos corsários, com forte incidência em dois momentos: o período que decorre entre 1744 a 1736, marcado pelo afrontamento de Inglaterra com a França e Espanha; a época das grandes transformações do século, com a proclamação da independência das colónias inglesas da América do Norte (e a consequente Guerra de Independência, até 1783) e a Revolução Francesa em 1779, com as convulsões que se seguiram até 1815. A dimensão assumida pela guerra de represália está bem patente nas presas. Perante o perigo da investida francesa, os Ingleses ocuparam a Madeira por duas vezes, sendo esta atitude entendida como uma forma de preservar os interesses dos “súbditos de sua majestade” e de estabelecer uma barreira ao avanço francês além oceano. O corso, que incidia preferencialmente sobre as embarcações espanholas e francesas, motivou uma resposta violenta das partes molestadas, como sucedeu com a investida francesa contra os Ingleses em 1793, 1797, 1814. A afirmação e controlo vital da vida económica e das relações externas levaram à conquista de novas regalias e a afirmação no plano político, por meio de tratados ou de uma interessada ligação, às autoridades da Ilha e do país. A feitoria, ao nível local, as autoridades consulares, no reino e na ilha, conjugavam-se para o mesmo objetivo. A situação dos Ingleses era especial. Desde o séc. XVII, a feitoria inglesa definiu um estatuto à parte para a comunidade, que lhe permitia ter conservatória e juiz privativo. O espírito de união da feitoria, que persistiu até 1842, favoreceu a posição na sociedade madeirense e demarcou o fosso com os naturais da Ilha. Com o tratado de 1661, abriram-se, de novo, as portas para o domínio inglês do mercado insular, mercê de medidas de privilégio e da isenção dos direitos de exportação do vinho. Em 1689, foi-lhes concedida a faculdade de se fixarem com casas comerciais de vinho, comestíveis e manufaturas, fazendo entrar na Ilha os artigos de luxo. Com o Tratado de Methuen, em 1703, pôs-se cobro à situação criada em 1684, ao mesmo tempo que se afirmou a dependência do mercado local ao mercado inglês. Os portugueses tornaram-se consumidores dos panos ingleses e fornecedores de vinho ao mercado inglês. Segundo A. R. de Azevedo, o Tratado trouxe para a Madeira a mais apertada vassalagem ao mercantilismo britânico. Daí que a entrada da África do Sul na órbita colonial inglesa se assuma como algo importante para a Madeira. Desde as últimas décadas do séc. XVIII que temos notícia da exportação do vinho para o Cabo da Boa Esperança: em 1792, são 6 pipas e, em 1796, tivemos 18 pipas. Depois, entre 1823 e 1847, apenas 41 pipas de vinho foram carregadas por João Cairns, Diogo Bean, João Caetano Jardim, Scott Pringle With & Ca., Richard Dover, Newton Gordon Murdoch & Scott, Grouth & Holway. Outra informação avulsa aparece no séc. XX (nos anos de 1904, 1905, 1907 e 1912), destacando a solicitação de vinho para Durban, entre 1904 e 1907, num total de 1 quartola, 32 quartos e 36 caixas de vinho Madeira. Como se pode verificar, não era um mercado muito significativo em termos do consumo do vinho Madeira, tanto mais que, a partir do séc. XVII, com os huguenotes franceses, esta cultura chegou ao cabo da Boa Esperança. E, no decurso do séc. XIX, teve um incremento significativo com os Ingleses. Mesmo assim, parece-nos que esta situação não foi concorrencial com o vinho Madeira. É provável que as ligações entre a vinha e o vinho da África do Sul e da Madeira, tendo em conta as constantes e permanentes ligações que existem entre os portos do Funchal e do Cabo, a partir de finais do séc. XIX. Várias famílias inglesas, como os Blandy, com ligações à Ilha, mantêm ligações frequentes com a Cidade do Cabo. Por outro lado, sabemos que, em 1906, seguiram duas grades de bananeiras para o Natal. O mesmo poderia ter sucedido com as parreiras. Esta atividade comercial com o cabo da Boa Esperança não se limita ao vinho e alarga-se a uma diversidade de produtos, alguns apenas com destino a este porto. Disto nos fala Michael Comport Grabham (1840-1935), casado com Mary Anne Blandy (1834-1914): “Exportam hortaliças verdes em grande quantidade, as bananas formam um negócio importante; e é tal procura de ovos para o cabo de Boa Esperança, que esta pequena mas admiravelmente fértil Ilha, chega a produzir e empacar, em cesto indígenas, muito bem feitos, e exportar mais de 200.000 ovos por semana, para povos distantes inúmeras léguas” (GRABHAM, 1901, 29). Sobre os ovos, situação excecional nas exportações madeirenses, temos testemunho nas exportações da Alfândega entre 1904 e 1907, com a saída de 9321 cestos com ovos, o que deverá corresponder a cerca de 225.000 ovos. Note-se que este mercado da África do Sul foi ainda abastecido com fruta, figos e peros. Dos primeiros, temos a saída, em 5 de janeiro de 1905, de cinco caixas de figos, que, nesta altura, só podem ser secos. Surge ainda a fruta madura da Ilha, fundamentalmente pêros – tivemos, em 1904, 1905, 1906 e 1912, 1029 caixas e 139 cestos. São referidas, em 1904, 1905, 1906 e 1912, 1431 cestos e 4116 caixas de fruta. Para a alimentação, temos, em 1904, a saída de 1210 caixas e 100 grades de cebola e 52 caixas de alhos, que, pela informação que temos de Demerara, deveria ser para a alimentação dos madeirenses, que atribuíam grande valor a estes ingredientes na sua dieta alimentar nesta época. A partir do séc. XIX, a navegação oceânica ganha um estatuto distinto, através da afirmação das companhias de navegação, que passaram a assegurar um serviço regular de passageiros e carga entre diversos destinos europeus e o espaço colonial. Para garantir esta regularidade dos serviços, surgiram os agentes que, nos diversos portos, funcionavam como intermediários e prestavam todo o apoio necessário às embarcações. É por parte da Inglaterra que vamos ter o maior número de companhias a navegar com regularidade entre os portos ingleses (Southampton, Bristol, Liverpool, Manchester, Edimburgo, Glasgow, Dublin) para o cabo da Boa Esperança, Natal, e África Oriental. A partir de 1943, os vapores da Union Castle servem os portos de Southampton e Durban, com escalas em ambos os percursos no Funchal. Com a guerra, perdeu 6 dos 26 vapores, mas, em 1953, aparece com 6 novos vapores, com peso superior a 20.000 t. Quase todos os vapores provenientes destes portos faziam escala obrigatória na Madeira e, para alguns, acontecia uma segunda nas Canárias. Desde meados do séc. XIX, é de assinalar o serviço regular dos navios da Royal Mail Steam Packet, conhecidos na Ilha como “mala real”, que permitiam não só o serviço regular com a Grã-Bretanha, mas também com Portugal, fazendo escala em Lisboa. Nos finais do séc. XIX, temos várias companhias de navegação com um serviço regular de embarcações entre os diversos portos da Europa. O movimento destas embarcações entre a Madeira e o cabo é uma grande oportunidade para os madeirenses. A imprensa regozijava-se com esta presença, de forma que, a 4 de novembro de 1897, o Diario de Noticias afirmava, com a passagem do Hawrden Castle, que “uns foram até ao Monte e outros andaram em carros ou a pé visitando diversos pontos da cidade e fornecendo-se d’artigos da nossa indústria” (DN, 4 nov. 1897). Assim, para a Ilha e para os madeirenses, esta era uma nova via que se abria, da qual a Madeira tirava grandes vantagens. Primeiro, com a abertura de mais um destino fácil de emigração, depois, pelas oportunidades de negócio, nomeadamente com os passageiros em trânsito que adquiriam bordados e obras de vimes. Havia, inclusive, muitos passageiros em trânsito que permaneciam alguns dias no Funchal. No dia 21 de abril de 1906, houve 570 passageiros em trânsito, no vapor Walmor Castle e, a 10 de maio de 1910, foram outros 602 passageiros, do Balmoral Castle, na mesma situação. Muitas das principais famílias britânicas residentes na Ilha tiveram ligações à África do Sul, como foi o caso dos Blandy, dos Hinton e dos Phelps. Entre finais do séc. XIX e princípios da centúria seguinte, a economia foi muito valorizada com esta nova demanda de produtos pelos forasteiros, mercadoria muitas vezes oferecida a bordo, através dos chamados bomboteiros, que tiveram um papel muito importante no acolhimento a estes forasteiros. Pelas suas mãos saíram todo o tipo de bordados e obras de vimes, produtos que acabaram por estar limitados pelas barreiras alfandegárias nos portos de destino. Em 1928, passou a existir uma taxa portuária, no valor de 3 a 7 xelins, para produtos saídos, como cadeiras ou sofás de vime, provocando uma reação veemente da Câmara de Comércio e Indústria da Madeira (ACIF/CCIM), em 23 de janeiro. Este comércio de obras de vime era frequente com a África do Sul desde finais do séc. XX, registando-se a saída de 96 t no ano 1896. Depois disso, entre 1904 e 1912, aparecem registos sobre a exportação de vime e obras de vime. Assim, temos 111 molhos de vime, em 1411 atados de obras de vime e 3050 volumes em obra de vime. Este movimento, nomeadamente com a Cidade do Cabo, transformava a vida do Funchal, que vivia quase exclusivamente para o porto. Os jornais anunciavam diariamente tudo o que deveria acontecer, relativamente ao movimento de navios na baía e todos os madeirenses estavam avisados do movimento dos vapores do cabo. O Funchal assumiu o papel de antecâmara das colónias europeias, recebendo todos os que circulavam nos dois sentidos. Dizia-se até que todos os que estavam de regresso à metrópole não dispensavam esta paragem de alguns dias para se habituarem ao clima europeu. E a Madeira é exímia na arte de bem receber, de forma especial, aristocratas e políticos. Em 1906, o Gen. Louis Botha; o príncipe Alberto, que depois foi rei da Bélgica, em viagem ao cabo da Boa Esperança e ao Estado Livre do Congo, em 30 de abril de 1909. São inúmeros os casos dos britânicos que transitaram entre os dois portos e que aproveitaram o intervalo da paragem dos vapores para visitar o Funchal e serem mimoseados pela população e autoridades. Não devemos esquecer que o Funchal tinha uma função importante de apoio e abastecimento à navegação com o fornecimento de água, víveres frescos, vinho e carvão, a partir de meados do séc. XIX. Segundo Biddle, o Funchal era “uma importante estação de abastecimento de carvão para a maior parte das linhas dos navios de Inglaterra e do continente europeu para a África do Sul” (BIDDLE, 1896, 101). Sabemos que alguns madeirenses participaram como fogueiros a bordo destes vapores. Em agosto de 1915, regressaram à Ilha 14 fogueiros do vapor Walmer Castle, sendo rendidos no Funchal por outros 14. Os primeiros vapores a sulcarem os mares da Madeira com serviço regular organizado foram os da referida Mala Real Inglesa, como indicámos, a Royal Mail Steam Packet Company, com destino às Índias Ocidentais, e os da Union Castle Mail Steamship Company. O primeiro serviço de abastecimento de carvão no Funchal foi montado, em 1838, pelos Ingleses Jacob Ryffy e Diogo Taylor. A partir da déc. de 70 do séc. XIX, consolidou-se o predomínio da navegação a vapor nas rotas transatlânticas, sendo imprescindível o serviço de abastecimento de carvão. Assim, surgiram empresas apostadas neste serviço, primeiro, a firma Blandy Brothers, depois, em 1898, a Cory Brothers Co. Limited e, em 1901, a firma Wilson Sons C. Limited. Mas, a partir de princípios do séc. XX, os barcos da África do Sul passam a abastecer-se, no Natal, de carvão das minas sul-africanas, não precisando escalar o Funchal no retorno, o que se refletiu, de forma negativa, na Madeira. Mesmo assim, isto não se espelhou no movimento de passageiros em escala, tendo-se mesmo atingido, no período de 1902 a 1909, o maior valor de escalas, com 126.000 passageiros contabilizados entre 1906 e 1909. Emigração e retorno A emigração madeirense orienta-se de acordo com os laços comerciais e de navegação definidos para a Ilha. O facto de a Madeira ser uma base de apoio de grande importância para o império colonial inglês, desde o séc. XVII, dita que seja nesse sentido que se orientam muitos dos destinos dos emigrantes madeirenses. As portas estão abertas e os aliciadores da emigração clandestina atuam de acordo com estes destinos, que são os mais proveitosos. Por outro lado, há uma política favorável e incentivadora por parte das autoridades inglesas. Mesmo assim, continua a existir emigração clandestina e a utilização de Lourenço Marques como passagem com destino a África do Sul. Em janeiro de 1897, foram detidos, no vapor Trojan, seis madeirenses, todos naturais do Estreito da Calheta. Em setembro de 1903, um outro indivíduo da Ponta do Pargo e dois da Calheta foram repatriados pelo vapor Norman por terem embarcado de forma clandestina. Depois, em julho de 1904, há notícia de que um madeirense, cabo de polícia em Lourenço Marques, arranjava, por 5 a 30 libras, passaportes falsos para a saída de madeirenses para o Transval, tendo-se descoberto a situação. Em julho de 1911, um outro madeirense, com 12 anos de idade, foi expulso do Cabo por aí estar estabelecido com “casa suspeita”. O recrutamento de emigrantes contou com o apoio do Governo Civil e dos consulados no Funchal, que atuavam como angariadores de potenciais emigrantes, sendo uma constante no séc. XIX. A presença madeirense alargou-se também a outros quadrantes, sendo de salientar a África do Sul e Austrália. No primeiro caso, a vinculação portuguesa é muito antiga, remontando à viagem de Vasco da Gama, mas foi a partir do séc. XVIII que tivemos notícia dos primeiros portugueses na Cidade do Cabo. No séc. XIX, a rota regular dos vapores do cabo que escalavam o Funchal permitiu a definição de um novo rumo para a emigração madeirense. Esta presença torna-se mais notada a partir de 1904, no sector da pesca, mas foi nos anos 50 que este destino ganhou dimensão significativa. Entretanto, de janeiro a junho de 1977, temos a informação de um pedido de pescadores madeirenses para a safra do atum. Os livros de passaporte, de que temos registo desde 1872 até 1915, testemunham os pedidos de passaporte por parte de 962 madeirenses (362 entre 1872 e 1900 e de 600 entre 1901 e 1915), o que revela ter havido uma forte incidência de pedidos nos primeiros anos do séc. XX. As solicitações são feitas a partir do Estreito da Calheta, Calheta, Prazeres, Fajã da Ovelha, Jardim do Mar, Canhas, Paul do Mar, Ponta do Sol, Ponta do Pargo, R. Janela, Porto Moniz, Machico, Gaula, Estreito de Câmara de Lobos, Caniço, Boaventura, Camacha e das diversas freguesias do Funchal (Monte, São Gonçalo, São Pedro, Santa Maria Maior). A partir de 1878, houve diversos cidadãos sul-africanos que pediram o passaporte, por razão da sua estância temporária, em escala, na Ilha. O primeiro que temos registado é “Mrs. Duncan”. No séc. XIX, a maioria dos registos é para o cabo da Boa Esperança; apenas em 1896 há registos de outros locais, em concreto, Natal e, em 1900, Durban. A partir de 1901, passa a definir-se o destino como África do Sul, surgindo ainda outros: Transval (1910-1916), novamente Natal (1902-1915) e Durban (1900, 1912). Em 1901, saíram Agostinho de Agrela Helena, Francisco Gomes, Agostinho Ferreira Neto, Domingos Teixeira, Francisco Gonçalves Cabeleira, João da Câmara, João Rodrigues Faias, João de Sousa Júnior, João Sardinha Branquinho, Manuel Afonso Jardim, João Fernandes Camacho, António de Agrela, João Rodrigues Faias, Agostinho Ponte Santo António, João Rodrigues Jardim, João Nunes e outro com o mesmo nome, também do Paul do Mar, Manuel de Agrela, Manuel Ferreira Gomes, Manuel de Agrela Rei Júnior, Manuel Correia e sua mulher Philley Correia, Manuel Ferreira Ferro, Manuel Gonçalves Borrageiro, Manuel Gonçalves da Costa, Manuel Gonçalves Guerra, Manuel Rodrigues Sequeira, Manuel de Sousa Alegria, António de Abreu Pestana, Maria Elisa Figueiroa Silvado, Ilda, sobrinha de D. Maria Elisa Rodrigues, Tomé António de Abreu, Maria da Conceição de Sousa, Olímpia Fernandes, Manuel dos Santos da Câmara, Agostinho Joaquim com sua mulher Narcisa Joaquina, António de Abreu Pestana, António de Agrela, António Fernandes Pateta. O maior número destes é da Calheta e Estreito da Calheta, o que parece indiciar uma emigração em grupo, que poderá ter, na origem, algum angariador. Temos informações de que o mesmo nome Agostinho de Agrela Helena, denominação pouco vulgar, surge, em 1903, a pedir autorização para embarcar, de novo, com destino ao cabo da Boa Esperança e, em 1907 e 1912, para os EUA e, em 1909, para o Brasil. Por outro lado, assinala-se o número dos oriundos do Jardim do Mar e Paul do Mar, o que poderá ser indiciar o facto de se terem dedicado à atividade piscatória, contribuindo para a importância dos madeirenses neste sector. Surgem ainda informações de que, neste grupo, se inclui gente da Ponta do Sol, Ponta do Pargo, Prazeres, Caniço e Fajã da Ovelha. Para o período de 1872 a 1915, temos uma emigração madeirense de origem diversificada, não obstante com forte incidência no Estreito da Calheta, com 178 pedidos, seguido de Prazeres, com 79 e Fajã da Ovelha, com 74. Para o período de 1872 a 1900, este movimento parece ter apenas como destino o cabo da Boa Esperança, pois, dos 260 pedidos de passaportes, só 2 foram para Durban, em 1900. Já no novo século, foram pedidos passaporte para a República Sul-Africana: o destino do Cabo continua a ser maioritário, mas temos 27 pedidos para Natal (1902, 1906, 1911, 1913, 1914 e 1915), 4 para Joanesburgo/Transval (1911 e 1913), 29 para Transval (1906, 1911, 1912, 1913 e 1914) e 1 para Durban (1912). Alguns episódios marcaram esta emigração entre finais do séc. XIX e princípios do seguinte. A 17 de outubro, saiu do Funchal, a bordo do vapor Scott, Maria Júlia Rodrigues, para se juntar ao marido no Cabo, mas, um dia antes da chegada, atirou-se ao mar e morreu. No mesmo sentido, a 27 de dezembro de 1905, António Baptista, após sete anos na África do Sul, decidiu fazer uma surpresa à família, mas, ao chegar a casa, encontrou a esposa morta, tendo o falecimento ocorrido momentos antes. Desde princípios do séc. XX que se tornou notória a presença da comunidade madeirense na África do Sul, nomeadamente em Pretória e Joanesburgo. Os madeirenses tiveram uma função importante na pesca e na agricultura. No primeiro caso, dominaram o mercado de tunídeos e de lagosta, enquanto no segundo detiveram o controlo dos produtos hortícolas. Sempre foram a comunidade mais representativa dos portugueses, constituindo mais de metade dos emigrantes, o que lhes permitiu antes e ainda no começo do séc. XXI uma posição importante na sociedade. O P.e Mário José Lobo de Matos, natural da Contenda e falecido em 1988, foi secretário de D. Teodósio Clemente de Gouveia, arcebispo-bispo da Arquidiocese de Lourenço Marques, teve um papel importante no apoio aos gauleses que pretendiam emigrar para a África do Sul, conseguindo os vistos e os contratos de trabalho necessários. Foi ainda administrador da igreja de S.to António dos Portugueses em Benoni, Joanesburgo. Os dados oficiais disponíveis atestam a evolução destes rumos da emigração madeirense após a Segunda Guerra Mundial e evidenciam que os destinos se diversificaram, de acordo com a demanda de mão de obra e as oportunidades oferecidas pelos principais mercados de trabalho. No caso da África do Sul, tivemos 2526 saídas entre 1945 e 1949; 5118, entre 1950 e 1959; 579, entre 1960 e 1969; 683, entre 1970 e 1979.   Casa da Madeira em Pretoria com Miss Comunidades A presença madeirense fica assim mais clara no período posterior à Segunda Guerra Mundial. A déc. de 50 do séc. XX foi o momento de consolidação desta comunidade. A atestar a importância da mesma, evoca-se a digressão do Grupo Folclórico da Camacha, em 1965, junto das comunidades. A grande concentração de madeirenses, e também de continentais, acontece em Joanesburgo, Benoni, Boksburg, Brakpan, Germiston, Kempton Park, Krugersdorp, Randburg, Randfontein, Roodepoort, Springs, mas também na Cidade do Cabo, Pretória, Durban, Vanderbijlpark, Welkom, Vereeniging, Bloemfontein, Port Elizabeth, Klersdorp, Witbank, East London, Sasolburg, Harrissmith, Saldanha Bay, Kimberley, Pietermaritzburg, Nigel, Heidelberg. Por força da importante comunidade emigrante madeirense, também se desenvolveram, contactos políticos. Aliás, esta relação é antiga, sendo tradição das autoridades de passagem pela Ilha fazerem um visita de cortesia ao governador civil, no palácio de S. Lourenço. Em 26 de dezembro de 1900, lord Roberts, ao comando de uma expedição para dominar o Transval, fez essa visita. Já em 1812, o Gen. Robert Meade, que estava com uma força militar na Ilha, por ser nomeado governador do Cabo da Boa Esperança, na África do Sul, saíra da Madeira para o seu cargo, que ocupou em 1813.   Encontro de responsáveis do Governo Regional da RAM com um representante da Comunidade Madeirense na África do Sul   A partir de 1964, houve uma tentativa de aproximação comercial, que trouxe à Madeira, em 1972, o secretário do embaixador. Os principais produtos que asseguraram as relações comerciais foram o bordado e a obra de vime. Depois, a partir de 1976, o Governo Regional tomou especial cuidado no relacionamento com a África do Sul, no sentido de preservar a comunidade. Foi neste sentido que se estabeleceram relações com as autoridades desse Estado. Em 13 de novembro de 1986, o presidente sul-africano, Pieter Botha e o seu ministro dos negócios estrangeiros, Pik Botha, fizeram uma visita algo tumultuada à Madeira. Depois, em 2000, Pik Botha representou o governo sul-africano na inauguração das obras do aeroporto da Madeira. Recorde-se que o Gen. Louis Botha (Greytown, hoje no KwaZulu-Natal, 27 de setembro de 1862-Pretória, 27 de agosto de 1919) e família, em maio de 1907, estavam de passagem no Funchal, rumo à Inglaterra, tendo sido bem recebidos pelas autoridades e visitando a freguesia do Monte, no intervalo da paragem do vapor. Muitos madeirenses tiveram sucesso naquele país e conseguiram o tão ambicionado pecúlio para retornar à Ilha e viver em condições. Outros escolheram lá ficar e adaptaram-se às mudanças sociais e políticas ocorridas na mudança para o séc. XXI. De entre estes emigrantes, felizmente muitos tiveram sucesso, mas aqui destacamos apenas alguns. Joe Berardo (José Manuel Rodrigues Berardo, nascido em 1944) que, aos 18 anos, emigrou para a África do Sul, radicando-se na cidade de Joanesburgo, onde se dedicou à atividade comercial e industrial. Aí ergueu e dirigiu o grupo Egoli Consolidated Mines Ltd., que congregava diversas explorações mineiras de ouro, a partir de recuperação em areias auríferas, transformando-se rapidamente numa das 100 maiores empresas sul-africanas. Na sua quinta do Monte possui, desde 1988, no Jardim Tropical Monte Palace, uma coleção de cicas da África do Sul, onde estão representadas 60 espécies. Em 1986, Joe Berardo regressa à Madeira, envolvendo-se em múltiplas atividades, como o turismo, os tabacos ou os vinhos, com o mesmo sucesso. Evidenciou-se como colecionador de arte, dispondo de uma coleção de mais de 40.000 obras, que está exposta, desde 2007, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa e no Sintra Museu de Arte Moderna Colecção Berardo. Em 1985, recebeu o grau de comendador da Ordem do Infante D. Henrique. Os Sousa Pestana são uma família com forte implantação no turismo nacional e madeirense que também teve o seu início na emigração para a África do Sul: Manuel Sousa Pestana (1919-2005) emigrou para Joanesburgo, onde conseguiu os proventos para erguer, a partir da Madeira, o seu império na área do turismo. Destacamos, por fim, José Alfredo Quintal, mais conhecido por Joe Quintal, fundador do Club Sport Marítimo de Joanesburgo, da Casa da Madeira e da Academia do Bacalhau, e conselheiro das comunidades madeirenses. As questões que envolvem o apartheid não tiveram implicações na comunidade madeirense e, mesmo depois de 1990, não foram visíveis situações de conflito com essa comunidade. Os problemas sociais que aí sucederam foram comuns a todos. Nas áreas de maior concentração de portugueses (na Cidade do Cabo, Port Elizabeth, Pretória, Durban, Pretória e Joanesburgo), temos diversas associações de emigrantes portugueses onde os madeirenses conquistaram um lugar de relevo. A mais conhecida e já referida, a Academia do Bacalhau, surgiu em 1960, sendo uma referência para a comunidade portuguesa. Ainda podemos salientar algumas associações, como o Club Sport Marítimo de Pretória, o já mencionado Club Sport Marítimo de Joanesburgo, a Casa Social da Madeira (Pretória), o Grupo Folclórico Madeirense de Joanesburgo, a Casa da Madeira de Joanesburgo, a Associação Familiar Pérola do Atlântico, Representante da Comunidade Madeirense de Natal (Durban). A viragem no processo da emigração madeirense aconteceu na déc. de 70. As mudanças políticas resultantes da revolução do 25 de Abril de 1974 conduziram à valorização do espaço socioeconómico da Ilha, condicionando a emigração. As mudanças políticas ao nível mundial, a situação dos habituais mercados recetores de mão de obra madeirense, em contraste com a melhoria das condições de vida na Ilha, fizeram com que o madeirense buscasse o Eldorado na sua própria terra e que muitos regressassem. Primeiro, foram os chamados retornados, das ex-colónias e, depois, os da Venezuela e África do Sul. Esta rota marítima que ligava a Madeira à África do Sul foi muito importante para estabelecer uma aproximação entre as duas regiões e permitir o transplante de inúmeras flores, muitas delas por iniciativa da comunidade inglesa. Em sentido contrário, tivemos o envio, em 1906, de bananeiras para o Natal e certamente algumas das vinhas do cabo não são alheias à Madeira. Na passagem para o séc. XXI, a riqueza das flores da Ilha deve muito a essa situação. Segundo o inventário de Rui Vieira, temos as seguintes: agapanthus praecox e agapanthus africanus (L.) Hoffmgg. ou agapanthus umbellatus L´Hérit. (agapantos, coroas de henrique); aloe arborescens, aloe ciliaris, aloe plicatilis, aloe arborescens Mill. (aloés, babosa, foguete-de-natal); amaryllis belladonna L.; antholyza aethiopica L. ou chasmanthe aethiopica (L.) N.E.Br.; arctotis stoechadifolia Berg.; asystasia bella; banksia integrifolia; bolus hy br.; calodendrum capense Thunb. (castanheiro do Cabo); carissa grandiflora A.DC.; gerbera jamesonii; clivia miniata e clivia nobilis (clívias); dombeia nyuica; encephalartos trispinosus e encephalartos transvenosus; eriocephalus africanus (alecrim da virgem); erythrina lysistemon (coralina cafra); euphorbia cooperi (eufórbia) e euphorbia ingens (eufórbia gigante); iboza riparia; kniphofia uvaria (L.) Hook. (foguetes); leonotis leonurus (L.) R.Br. (rabos de leão); leucospermum conocarpodendron (protea); melianthus major (arbusto do mel); ochna serrulata; oxalis purpurea L.; pandorea ricasoliana Tanf. ou podranea ricasoliana Sprague (trepadeira); phoenix reclinata (palmeira do Senegal); plumbago auriculata e plumbago capensis Thunb.; polygala mynifolia (pera doce); protea cynaroides (protea real); strelitzia alba, sterlitzia nicolai (estrelícia gigante) e strelitzia reginae Banks (estrelícias ou aves do Paraíso); scholia brachypetala; senecio macroglossus DC. (trepadeira); tecomaria capensis Thunb. Spach (camarões); tibouchina semidecandra (Schrank et Mart.) Cogn. (aranha); tritonia crocata (L.) Ker Gawl. (manuelas); Watsonia ardernei hort. (hastes de S. José); yucca gloriosa L. (iúca); zantedeschia aethiopica (jarros). Depois, tivemos ainda a permuta de variedades da agricultura industrial. Ao nível da produção açucareira, com as variedades de cana elefante e bambu, Porto Mackay, rajada e yuba do Natal (1897). Esta situação resultou do facto de a espécie existente na Ilha ter sido, em 1881-1882, alvo de um ataque pelo fungo conyothyrium melasporum. Note-se o facto de, no começo do novo milénio, na África do Sul, tais culturas da cana e da vinha assumirem um papel na economia do país; por algum tempo, a Madeira importou melaço daqui para suprir carências da Ilha. A História do Atlântico passa por estes importantes portos: o Funchal e o cabo da Boa Esperança. Construiu-se, desde muito cedo, uma ponte entre as duas cidades e portos, que teve um papel fundamental na história.   Alberto Vieira (atualizado a 14.09.2016)

Madeira Global