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müller, carlos

Carlos Müller nasceu na freguesia de Santa Luzia a 18 de dezembro de 1896, sendo filho de Karl Müller, natural da Bavária (Alemanha), e de Guilhermina da Silva, também natural daquela freguesia. Na conjuntura da Primeira Guerra Mundial, partiu, a 21 de Julho de 1916, com 23 anos, para os Açores, onde cumpriu o exílio no forte de São João Baptista (Angra do Heroísmo) sob o n.º 384, conforme a lista de 1918. Na verdade, a 7 de fevereiro de 1916, fora aprovada uma lei que previa a requisição de matérias-primas e meios de transporte alemães que estivessem em território português. Em 9 de março de 1916, a Alemanha declarara guerra a Portugal, que reagira com vária legislação, nomeadamente a lei de 24 de abril de 1916, em consequência da qual os residentes alemães em Portugal foram banidos ou presos, especialmente os de idades compreendidas entre os 16 e 45 anos. Antes do referido exílio, Karl Müller não permitira a naturalização dos filhos mais velhos, Humberto e Carlos afirmando que “antes morrer que ser português” (WILHELM, 2000-2001). Sua mãe ficou viúva a 5 de setembro de 1916 e morreu a 25 de janeiro de 1922. Pouco depois, a 22 de Junho de 1922, Carlos Müller casou-se com Olga da Paixão de Castro em regime de comunhão de bens; tinham ambos 25 anos. Em 1934 residiam à rua do Conde Carvalhal e, a 14 de setembro de 1939, Carlos Müller naturalizou-se português. Carlos Müller interessou-se pelo bordado da Madeira e fez a sua aprendizagem desta indústria numa sociedade irregular – baseada num acordo verbal, sem recurso a ato notarial – com seus cunhados, Crispim Izidoro (irmão de sua mulher) e Maria Romana de Castro, em 1922. Posteriormente, Crispim constituiu uma sociedade com seu irmão, Alberto Castro, mas, em setembro de 1924, ficou único sócio da empresa, com sede à rua dos Ferreiros, no Funchal. Nesse ano, Crispim, que entretanto emigrara para a América, mandou de lá uma procuração conferindo a Carlos poderes de administrador e de gerente, com um ordenado que oscilava entre 800$00 e 2.400$00, conforme o seu desempenho, especialmente o volume e o montante de bordados exportados; estas funções foram ratificadas em 1932 por nova procuração. No entanto, com o regresso à Madeira de Crispim Izidoro de Castro, surgiram desentendimentos entre os dois, que fizeram com que Carlos iniciasse uma ação judicial no Tribunal da Comarca do Funchal; na versão de Crispim, a repetida e intolerante indisciplina do cunhado (nomeadamente o incumprimento das instruções recebidas) tinham-no obrigado a demitir Carlos, a 9 de Outubro de 1933. Pouco tempo volvido, Carlos retirou a referida queixa, desconhecendo-se a razão. A 9 de Novembro de 1933, Carlos Müller constituiu com seu cunhado Raul Ladislau da Câmara (casado com uma irmã de Olga) a firma Müller & Câmara, sedeada à rua Conde Carvalhal. A 11 de Abril de 1942, os dois sócios procederam à reformulação da mesma e, a 1 de Julho desse ano, ratificaram as escrituras anteriores, ficando como “primeiro outorgante Karl Müller, que também é conhecido e assina Carlos Müller e como segundo outorgante Raul Ladislau Câmara; ambos casados, comerciantes e moradores à rua Latino Coelho, desta cidade”, assim como o tipo de sociedade: “Müller & Câmara Limitada e Madeira Juvenile Export C.º Ltd” (ARM, 2.º Cartório Notarial do Funchal, escritura de 1 jul 1942), com nova sede e aumento de capital social. A 4 de abril de 1946, perante o notário Bacharel Frederico Augusto de Freitas, foi constituída a “sociedade comercial por cotas de responsabilidade limitada, Arte Fina, Limitada”, que teve a sua primeira sede e estabelecimento principal na calçada da Saúde, n.º 10 de polícia. A cláusula 3.ª da mesma escritura refere que o “seu objeto é a realização da indústria e do comércio de bordados da Madeira, e a de qualquer outro ramo de indústria ou de comércio que aos sócios convenha explorar, dentro dos limites da lei”. A cláusula seguinte refere que o capital social está integralmente realizado, que é no valor de 200.000$00 “e fica dividido em quatro cotas – sendo uma, com o valor nominal de noventa mil escudos, pertencente ao sócio Carlos Müller, outra com o valor nominal de dez mil escudos, pertencente ao sócio Humberto Müller, outra com o valor nominal de noventa mil escudos, pertencente ao sócio Raúl Ladislau Câmara, e outra com o valor nominal de dez mil escudos, pertencente ao sócio Avelino Leovigildo Nunes Vieira Aguiar Câmara” (Ibid., escritura de 4 abr 1946). No mesmo cartório, a 3 de agosto de 1957, Raul Ladislau da Câmara e Maria Romana cederam as suas quotas aos restantes outorgantes e, a 2 de outubro de 1957, entraram novos sócios para a firma Arte Fina, Limitada, com sede e principal estabelecimento no Funchal. Os novos sócios são os cônjuges de Avelino Aguiar Câmara e de Carlos Müller, assim como o seu filho, Humberto Müller, médico pediatra, que exercia a profissão em Lisboa. Carlos Müller faleceu na cidade de Lisboa, onde se achava em tratamento, a 15 de dezembro de 1963. No Termo de Apresentação da Relação de Bens constava que residira na Avenida do Infante, no Funchal e que fora casado com Olga de Castro Müller em primeiras e únicas núpcias de ambos e segundo o regime da comunhão geral de bens. No Termo de Declaração constava que o falecido não fizera testamento nem doação, sendo os herdeiros, por direito de sucessão legítima, seus filhos, o declarante e Dolores Elisabeth Müller Câmara, casada, de 39 anos de idade, moradora à dita Av.ª do Infante, e também a viúva, nomeada, por inerência, cabeça de casal. Em sucessivos pedidos de prorrogação de prazo para apresentação do Termo de Apresentação da Relação de Bens, entre vários documentos, estão o extracto do balanço em duplicado da firma Arte Fina, Limitada, e escrituras da mesma firma, de 4 de abril de 1946, 3 de agosto de 1957 e 2 de outubro de 1957. No mesmo processo, consta a Relação dos bens deixados por óbito de Carlos Müller, sendo os n.os 1 a 4 bens móveis e o n.º 5 as cotas sociais (duas) no capital da sociedade Arte Fina, Limitada, com o valor nominal de 110.000$00, tendo a firma capital no montante nominal de 200.000$00, que está realizado integralmente. Quanto aos bens imóveis, havia prédios urbanos à travessa do Lazareto (Sítio dos Louros), ao beco dos Frias (São Pedro), à estrada conde de Carvalhal (Santa Maria Maior) e à avenida do Infante (São Pedro), onde a família residia, e ainda à rua 31 de Janeiro. Nessa relação consta também a quarta parte de dois prédios rústicos, um na Quinta do Salvador e outro no Arrebentão (Terreiro da Luta), freguesia do Monte.   José Luís Ferreira de Sousa (atualizado a 01.02.2018)

Personalidades

mouros

As populações árabes e os berberes oriundos do noroeste de África eram identificados como mouros. O termo mouriscos, por sua vez, era aplicado aos muçulmanos batizados. Ambos os grupos marcam presença na Madeira, dada a proximidade da Ilha à costa africana e os vínculos que se criaram entre o Funchal e a praças portuguesas aí estabelecidas. Palavras-chave: escravos; ataques corsários; batalhas; Norte de África.   Nome dado às populações árabes e aos berberes oriundos do noroeste de África. O termo “mouriscos”, por sua vez, era aplicado aos muçulmanos batizados. Ambos os grupos marcaram presença na Madeira, dada a proximidade da Ilha à costa africana e dos vínculos que se criaram entre o Funchal e as praças portuguesas aí estabelecidas. Perante o Tribunal do Santo Ofício, mourisco era, muitas vezes, sinónimo de professo do islão e não se confundia com a ideia de escravo, na medida em que era numeroso o grupo de mouriscos alforriados ou livres. Ao contrário, aos mouros, passou a estar associada a noção de escravo. As condições particulares da presença portuguesa no Norte de África definiram para este mercado madeirense uma forma peculiar de intervenção. Os escravos eram os presos de guerra resultantes das múltiplas pelejas em que se envolviam Portugueses e mouros. Para os madeirenses que defenderam com valentia a soberania portuguesa nessas paragens, os escravos mouros eram, ao mesmo tempo, um prémio e um testemunho dos seus feitos bélicos. Os principais obreiros do reconhecimento e ocupação da Madeira, como criados da casa do infante D. Henrique, foram impelidos para a aventura africana, destacando-se nas viagens henriquinas de 1445 e 1460 e nas aventuras bélicas nas praças norte africanas, nos sécs. XV e XVI. O capitão de Machico, Tristão Vaz Teixeira, participou pessoalmente numa das expedições de 1445, e João Gonçalves Zarco mandou duas vezes uma caravela, sob comando do sobrinho Álvaro Fernandes. Enquanto Zarco interveio apenas para bem servir o infante, Tristão Vaz fê-lo por “bom desejo para serviço do infante e muito ao seu proveito” (VIEIRA, 1991, 22). Mas Álvaro Fernandes, escudeiro da casa do mesmo senhor, armou caravela “por fazer alguma cousa de sua honra” (Id., Ibid.). Os filhos dos primeiros povoadores madeirenses evidenciaram-se, também, em diversas façanhas bélicas nas praças marroquinas e no oriente, guiados pelo ideal cavaleiresco e interesses económicos. Nas praças marroquinas, intervieram várias casas madeirenses, com especial relevo para os Câmara, os Abreu, os Correia, os Bettencourt, os Dória, os Freitas, os Lomelino, os Vasconcelos, os Ornelas, os Catanho e os Moniz, entre outros. Os Câmara, nomeadamente João Gonçalves, segundo capitão do Funchal, e Simão Gonçalves, terceiro da capitania, marcaram bem a sua presença nestas praças, empenhando nelas os seus haveres e aplicando aí as suas capacidades militares. A participação madeirense no norte de África não se resumiu ao apoio humano efetivo nas diversas campanhas de defesa das respetivas praças, mas também no provimento de cereais e materiais de construção para as diversas fortificações aí implantadas. Todas as despesas inerentes ao socorro das praças foram custeadas com as receitas dos direitos do açúcar. Só em 1508, com o envio de uma armada de socorro a Safim, despenderam-se as receitas da venda de 963 arrobas de açúcar dos direitos reais, enquanto em 1514 se gastaram 83$815 reais. A Madeira, porque próxima do continente africano e envolvida no seu processo de reconhecimento, ocupação e defesa do controlo da Coroa portuguesa, tinha as portas abertas ao comércio de escravos. Deste modo, a Ilha e os madeirenses destacaram-se, nas primeiras centúrias da ocupação da Madeira, pelo seu empenho na aquisição e no comércio desta pujante e promissora mercadoria do espaço atlântico, os escravos. À Ilha chegaram os primeiros escravos guanches (Canárias), marroquinos e africanos que contribuíram para o arranque económico do arquipélago. Este comércio entre a Ilha e os principais mercados fornecedores existiu e foi, em alguns momentos, fulgurante. Ignoramos, todavia, o número de escravos de diversas origens étnicas que entraram na Ilha: as lacunas documentais para os sécs. XV a XVII não permitem a conhecê-lo. De facto, faltam os respetivos registos de entrada da Alfândega do Funchal e as atas notariais. No séc. XIV e inícios do seguinte, o principal mercado de escravos situava-se no mar Mediterrâneo, sob a égide dos mercadores venezianos, mas, a partir de meados do séc. XV, o movimento foi orientado, por iniciativa portuguesa, para o Atlântico. A penetração portuguesa no continente africano, primeiro no norte, em Ceuta (1415) e depois ao longo da costa, a partir da passagem do Bojador (1434), contribuiu para a posição hegemónica dos Portugueses no tráfico de escravos na costa ocidental africana. Os escravos que surgiram no mercado madeirense eram, na sua quase totalidade, de origem africana, sendo reduzidas ou nulas outras proveniências. Apenas o mercado africano, onde se destacava a extensa costa ocidental em poder dos Portugueses, não foi alvo de quaisquer proibições. Aí, as únicas medidas foram no sentido de regular o tráfico, como atestam os contratos e arrendamentos de escravos. O litoral atlântico do continente africano, definido, num extremo, pelas Canárias e costa marroquina e, noutro, pela costa e golfo da Guiné e Angola, era a principal fonte de escravos. A Madeira foi buscar aí a mão de obra necessária para a cultura dos canaviais. Primeiro, foram os escravos das Canárias e de Marrocos, depois, os negros da Guiné e de Angola. Na costa africana, para lá do Bojador, os meios de abastecimento de escravos eram outros. De início, interveio-se violentamente, por meio de assaltos e razias; em seguida, estabeleceu-se um trato pacífico com as populações indígenas. Todavia, um dos meios mais importantes de aquisição de escravos era o corso marítimo nas áreas adjacentes ao mundo muçulmano. Até à definição da rota atlântica para o comércio de escravos negros, a fonte de abastecimento era quase somente as iniciativas de corso no estreito de Gibraltar, as incessantes incursões nas Canárias e os prisioneiros da guerra de cruzada contra os muçulmanos, na Península Ibérica ou em Marrocos. A guerra de corso foi uma prática comum nas primeiras décadas do séc. XV, intervindo nela homens como João Gonçalves Zarco. A tradição diz-nos que terá sido numa destas ações que ele conheceu, pela primeira vez, o arquipélago da Madeira. Aliás, desde 1433, os infantes D. Pedro e D. Henrique usufruíram da isenção do quinto do valor das capturas realizadas, devido à Coroa. Com a tomada de Ceuta, em 1415, abriu-se a possibilidade de novas fontes de abastecimento de escravos. Os cronistas do séc. XV e XVI relevam o ativo protagonismo dos madeirenses na manutenção e defesa das praças em Marrocos. A principal aristocracia da Ilha fez delas um meio para o reforço das tradições da cavalaria medieval, uma forma de serviço ao senhor e uma fonte granjeadora de títulos e honras. Essa ação tornou-se evidente e determinante para a sua presença, na primeira metade do séc. XVI, destacando-se, no contexto, diversas armadas de socorro a Arzila, Azamor, Mazagão, Santa Cruz de cabo Gué e Safim. Aí, assumiram especial função os capitães do Funchal e de Machico, bem como a aristocracia da Ribeira Brava e do Funchal. Foi também a Madeira quem abasteceu estas praças, durante algum tempo, dos cereais necessários à manutenção das gentes. O mesmo sucedeu com o tabuado e a cal para a construção ou reparo de fortalezas. Na déc. de 70 do séc. XV, num momento em que a Madeira se debatia com a quebra da produção cerealífera, este provimento às praças marroquinas e feitorias da costa da Guiné passou a ser assegurado pelos Açores, mantendo-se, no entanto, a Madeira como centro redistribuidor. A dupla intervenção da Ilha no provir das praças marroquinas e portos da costa além do Bojador terá contribuído para a abertura das rotas do comércio de escravos daí oriundos. No caso das praças de Marrocos, a presença assídua dos madeirenses na sua defesa trouxe-lhes algumas contrapartidas favoráveis em termos dos prisioneiros de guerra. Daí terão resultado os escravos mouriscos encontrados na Ilha. Gaspar Frutuoso refere, a propósito da ilha de São Miguel (Açores), que, em 1522, quando do sismo e derrocada de terras que soterraram Vila Franca do Campo, o grupo de escravos mouros que o capitão Rui Gonçalves da Câmara e acompanhantes detinham era numeroso; ora estes, anos antes, haviam ido socorrer Tânger e Arzila. Idêntico foi o comportamento dos madeirenses que participaram, com frequência, nestas campanhas. Os mouros surgiram com maior incidência no Funchal e Ribeira Brava, áreas ondes as personalidades principais mais se distinguiram nas guerras marroquinas. Eles situam-se quase que exclusivamente no séc. XVI, se excetuarmos um caso isolado no Funchal, na déc. de 30 do séc. XVII. Isto resultou das medidas restritivas à posse de escravos dessa origem estabelecidas pela Coroa a partir 1597. A intervenção madeirense nas praças marroquinas aproximou os corsários argelinos da costa do arquipélago, podendo esta ser entendida como uma ação de represália. Eles surgem com assiduidade a partir de 1566, sendo de referenciar, em 1617, o assalto às ilhas de Porto Santo e Santa Maria. Da primeira ilha, levaram como cativos 900 vizinhos, escapando apenas 18 homens e 7 mulheres. O tratamento dado a estes cativos era quase idêntico ao dos escravos da civilização ocidental. O que os diferenciava era a possibilidade que lhes era dada pelos marroquinos, de alcançarem a liberdade antes de entrarem no mercado de escravos, caso fosse possível o pagamento do resgate. A gravidade do assalto de 1617, mercê do avultado espólio, motivou uma ativa intervenção da Mesa de Consciência e Ordens. A celeridade procurada para a resolução do resgate devia-se à presença de inúmeras crianças entre os prisioneiros, temendo-se a sua conversão ao islamismo. O resgaste de cativos era feito pelos alfaqueques. No caso do assalto de 1617, eram frades, Fr. Paulino da Apresentação e Fr. André de Albuquerque. Os contactos entre as partes interessadas faziam-se em Ceuta, Argel e Valença, onde se estabeleciam as formas de resgate. Ele poderia consistir numa troca mútua de cativos ou no pagamento de uma certa quantia em dinheiro. O dinheiro para esta rendição era resultado das esmolas, legados, rendas e multas, e era reunido, pelo mamposteiro-mor dos cativos, no “cofre dos cativos”. Todavia, dos cativos do Porto Santo de 1617, 200 atingiram a liberdade por outros meios, pois o navio que os conduziu à costa da Berberia naufragou e eles foram recolhidos por embarcações portuguesas. Mas nem todos tiveram igual sorte e, em 1656, ainda se providenciava a libertação de cativos do Porto Santo. Alguns porto-santenses entregaram ao governador da Ilha o dinheiro necessário para que, em Lisboa, se providenciasse o resgaste, o que nunca aconteceu. Também as vizinhas ilhas de Lanzarote e Forteventura foram alvo de incessantes assaltos mouros que causaram inúmeros problemas às populações de ambas as ilhas. Gaspar Frutuoso descreve um assalto a Lanzarote, em 1586, mas outros tiveram lugar na centúria imediata. O mesmo autor refere que os lanzarotenhos “são leais a Portugueses e a Castelhanos, e inimigos de mouros da Berberia, aonde vão fazer muitos saltos e trazem muita presa deles, que vendem para a ilha da Madeira” (Id., Ibid., 40). Note-se que o senhorio destas ilhas usufruía do quinto das presas feitas na Berberia. A partir de 1566, estabeleceram-se entraves a estas entradas e, em 1572, ficou exarada a sua total proibição, como forma de evitar as represálias que tinham tido local nesta segunda metade da centúria. A par da organização de armadas castelhanas para saque na área da Berberia, surgiram outras, para resgate dos cativos. Situação semelhante teve lugar em Portugal, em 1461, com a proibição da posse de escravos mouros. A proximidade das ilhas das Canárias à costa africana e as incursões à Berberia para capturar escravos conduziram à valorização deste grupo étnico nas Canárias, havendo em Lanzarote e Forteventura mais de 1500 escravos oriundos daí. Também em Grã Canária e Tenerife eles eram numerosos, como levam a crer as incessantes intervenções do cabido contra a sua presença: primeiro, em Tenerife, no ano de 1530 e, depois, na Grã Canária, em 1541. Diferente foi a situação da Madeira, onde eles não ganharam expressão significativa. Este mútuo temor de represália dos mouros condicionou o comércio e a presença de escravos também mouros, na Madeira e nas Canárias. No caso madeirense, o abandono de algumas praças, no período de 1541-1550 (Alcácer Ceguer, Arzila, Azamor, Safim e Santa Cruz), será um dos fatores que contribuíram para o paulatino decréscimo do número de mouros, que, num e noutro caso, foram substituídos, em condições mais favoráveis, pelos da costa da Guiné. Facto curioso é que o desinteresse canário-madeirense pela rota marroquina de escravos coincide, precisamente, com o avolumar das investidas de represália às ilhas de Lanzarote, Forteventura, Porto Santo e Santa Maria. A partir desta data, inverte-se a situação, surgindo os ilhéus, como vimos, na condição de cativos ou escravos dos mouros. Não obstante os números sobre a presença desta população, na condição de livre ou escrava, serem escassos, são vários os vestígios que revelam a sua permanência no arquipélago. A capela de N.ª Sr.ª da Penha de França (Faial) foi instituída em 1680 por António Teixeira Dória, no local onde, segundo a tradição, terá funcionado uma mesquita clandestina dos escravos mouros. De origem tipicamente mourisca são, no vestuário, o capuz e, na alimentação, o cuscuz e o bolo do caco. Há ainda quem aponte o borracho ou odre como sendo de origem norte africana, o mesmo sucedendo com a canavieira ou roca. Todavia, ainda está por saber se esta importação derivou da presença dos escravos mouros no arquipélago ou das assíduas deslocações dos madeirenses a África, em defesa das fortalezas portuguesas aí existentes. É no Porto Santo, a exemplo do que sucede na ilha de Santa Maria, nos Açores, que se nota uma maior influência, havendo bastantes razões para que isso aconteça. Neste ponto, merecem especial referência os incessantes assaltos de corsários argelinos que, por diversas vezes, levaram como reféns os habitantes da ilha (por exemplo, em 1616). O cativeiro poderá ter sido o meio mais eficaz para a assimilação da tradição do Norte de África. Por outro lado, estes elementos etnográficos de afinidade norte africana poderão ter vindo com os primeiros colonos algarvios, também permeáveis a tais influências. Na toponímia madeirense, a presença dos mouros pode ser testemunhada através dos nomes de alguns acidentes geográficos. Assim, temos o Lombo do Mouro (Paul da Serra), a Cova do Mouro (Porto Moniz), a Cova do Moirão (Arco da Calheta e Serra de Água) e a Furna do Mouro (sítio do Pomar Novo). Já a rua da Mouraria e das Pretas, na cidade do Funchal, terá uma origem diferente: a investigação levada a cabo por Ernesto Gonçalves aponta para que este nome decorra do apelido de pessoas que aí viveram e não da existência de um bairro de “mouros” e “pretos”, coisa que nunca existiu na Madeira. Neste sentido, vale a pena indicar que persistem na tradição oral duas expressões: “há mouro na costa” e “vai-te p’ra Argel”. A primeira, dá conta da permanente insegurança dos insulares, devido às investidas de corsários, em especial, oriundos do Norte de África. O séc. XVII foi o momento mais significativo destas investidas, com os assaltos ao Porto Santo e à Fajã dos Padres, anteriormente referidos. A segunda expressão sinaliza o cativeiro de madeirenses, nomeadamente de porto-santenses, fruto das investidas feitas a esta ilha. Assim, parece existir no imaginário madeirense uma visão pouco abonatória dos mouros, definidos como violentos, o que conduziu a apertadas medidas, expressas nas posturas, quanto à sua mobilidade na sociedade madeirense. Alberto Vieira (atualizado a 01.02.2018)

História Económica e Social

monteiro, josé leite

José Leite Monteiro nasceu no Porto a 27 de setembro de 1841. Foi advogado, professor, escritor e político. Fez o curso de Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em que ingressou em 1859, tendo concluído os estudos em 1864. Estabeleceu-se, em seguida, no Funchal, onde abriu um escritório de advocacia. Diz o Elucidário Madeirense que José Leire Monteiro nutria pela Madeira uma “carinhosa idolatria”, semelhante à que seria possível num filho natural da Ilha (SILVA e MENESES, II, 1998, 227); foi aí que desenvolveu a sua atividade profissional e intelectual. Foi professor no liceu do Funchal, depois de, em 1867, ter alcançado a nota mais elevada no concurso público para professor de Filosofia dos liceus. Passou a sua vida profissional na Ilha, a qual representaria um dos vértices das suas preocupações e dos seus interesses. Na vida pública, desempenhou funções em várias comissões de serviço, como governador civil substituto, como membro do Conselho do Distrito, como presidente da Junta Geral e como presidente da Câmara Municipal do Funchal. De salientar ainda que fez parte do Partido Fusionista e que entrou nas lutas políticas madeirenses de 1868, no âmbito das quais prestou serviços ao Partido Regenerador. José Leite Monteiro colaborou com vários jornais do Funchal, chegando a ser redator do jornal O Direito, órgão da política regeneradora. Também publicou vários livros, entre os quais se destacam O Ultramontanismo na Instrucção Publica de Portugal, de 1863, e Elementos de Direito Civil Portuguez, de 1895. Foi sócio efetivo da Associação de Direito Internacional. Em colaboração com o Cón. Alfredo César de Oliveira, coligiu diversos poemas dispersos de autores madeirenses, que acabariam por ser publicados num volume com o título Flores da Madeira. Morreu no Funchal, a 10 de março de 1920. Obras de José Leite Monteiro: O Ultramontanismo na Instrucção Publica de Portugal (1863); Elementos de Direito Civil Portuguez (1895).   Raquel Gonçalves (atualizado a 01.02.2018)

História da Educação Personalidades

monteiro, joão antónio

Mineralogista e académico de reputação internacional, nasceu no Funchal a 31 maio de 1769. Doutorou-se em Filosofia a 23/10/1791, na Universidade de Coimbra, onde viria a ser docente, tendo ministrado as seguintes cadeiras: Botânica (1793-1794) e Agricultura (1793-1794) como substituto extraordinário; Física Experimental enquanto demonstrador (1795-1796) e como substituto extraordinário (1796-1801); e Metalurgia na função de 4.º substituto (1801-1804), 6.º lente (1804-1813) e 3.º lente (1813-1822). Ocupou ainda o cargo de fiscal da Faculdade de Filosofia (31/07/1794). Traduziu do inglês, a pedido de D. João, o Príncipe Regente, a obra: Indagação sobre as Causas e Efeitos das Bexigas de Vaca […] e Conhecida pelo Nome de Vacina, por Eduardo Jener, M. D. T. R. S., etc. (Lisboa, 1803). Apesar da sua carreira como lente, a sua reputação decorre do seu percurso original de investigação no domínio da mineralogia. O referido percurso teve um grande desenvolvimento quando foi autorizado, por carta régia de 11 de maio de 1804, a empreender uma viagem científica a Paris, viagem que realizou como se estivesse ao serviço da Universidade, pois esta assegurou-lhe a antiguidade, os ordenados e demais prerrogativas. Em outubro de 1815, parte de Paris para Friburgo, na Alemanha, onde se instrui na doutrina de Werner. Várias publicações reputam-no como autor de sucesso nesses países, tendo publicado em vários periódicos internacionais. Em maio de 1814, publica no Journal des Mines um artigo intitulado “Nouvelle Description du Pyroméride Globaire, ou de la Roche Connue sous le Nom de Pophyre Globuleux de Corse”, onde dá conta de uma nova espécie de rocha, que o mineralogista francês René Just Haüy, considerado o pai da cristalografia moderna, adota na sua obra Nouvelle Distribution Minéralogique des Roches. Na sequência das suas investigações, tornou-se sócio correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa e membro da Sociedade de Mineralogia de Jena, da Sociedade Geológica de Londres e da Academia Real de Munique. Morreu em Paris, em 1834. Obras de João António Monteiro: “Mémoire – Sur une Nouvelle Variété de Cuivre Gris”, “Mémoire – Sur le Fer Sulfuré Blanc de Mr. Hauy”, “Tableau du Cours de Minéralogie de Mr. Hauy pour l’Année 1811”; “Apperçu – De l’Analogie du Wernerite avec Leparanthine” (1809); “Mémoire – Sur plusieurs Nouvelles Variétés de Formes Déterminables de Topaze” (1811); “Mémoire – Sur la Chaux Fluatée du Vesuve” (1812); “Mémoire – Sur la Détermination Directe d’Une Nouvelle Variété de Forme Cristalline de Chaux Carbonatée, et sur les Propriétés Remarquables qu’elle Présente” (1813); “Nouvelle Description du Pyroméride Globaire, ou de la Roche Connue sous le Nom de Pophyre Globuleux de Corse” (1814); “Observations et Considérations Analytiques sur la Composition, et sur la Structure du Pyromeride Globaire” (1814).   Rui Gonçalo Maia Rego (atualizado a 01.02.2018)

Personalidades

meneses, rufino augusto

Rufino Augusto Meneses foi um sacerdote católico madeirense, nascido na freguesia da Ponta do Sol, a 27 de abril de 1877. Foi filho de Rufino Augusto de Meneses e de Carolina de Jesus. Quando ainda era criança, partiu para Angola com o pai, que foi para lá como colono, e estudou no Seminário de Huíla, sendo ensinado pelos padres do Espírito Santo. Regressado à Madeira, matriculou-se no Seminário Diocesano do Funchal, seguindo a vida eclesiástica. Foi ordenado sacerdote a 21 de dezembro de 1901 e foi capelão da Sé do Funchal até 1902. A 22 de fevereiro de 1902, foi nomeado pároco do Caniçal, função que exerceu durante os dois anos seguintes, passando a desempenhar, desde 20 de fevereiro de 1904, o múnus de cura de Machico. Em 1905, após o falecimento do P.e Jordão do Espírito Santo, que era vigário na freguesia de Água de Pena, foi nomeado sacerdote daquela paróquia, no dia 4 de julho, ocupando o cargo durante 48 anos. A par da sua vida clerical, Rufino Augusto Meneses foi um homem dedicado às letras, colaborando na imprensa regional e escrevendo textos literários, sobretudo poéticos. Exerceu a sua atividade jornalística no periódico O Jornal, como correspondente em Machico, e assinou, naquele jornal, algumas das suas produções poéticas sob o pseudónimo “C.”. Em 1950, publicou um volume de versos intitulado Visita da Imagem de Nossa Senhora de Fátima (a Virgem Peregrina) à Madeira, em 7 de Abril de 1948: Versos Populares. Neste livro, descreveu em verso a visita da imagem de Nossa Senhora de Fátima à Madeira, no dia 7 de abril de 1948, desde a chegada a bordo do Lima e o desembarque no cais da Pontinha até ao cortejo em direção à Sé do Funchal, onde aquela obra passou a noite. Descreveu as manifestações de regozijo da população, que aguardava a chegada da imagem acenando com lenços, dando vivas e palmas, e evocou os sinos da igreja a tocar e o lançamento de foguetes. Nos seus versos, todo o povo, as autoridades regionais, o clero e outras individualidades madeirenses de diferentes profissões manifestaram o seu contentamento e a sua fé por aquele momento da visita da imagem da Virgem Peregrina. Narrou ainda a visita da imagem a outras freguesias da Madeira, onde, nos dias 8, 9 e 10 de abril, foi sempre aguardada por uma multidão. Depois, mencionou o regresso da imagem ao Funchal, destacando a sua passagem pelas ruas da cidade até chegar à Pontinha, onde embarcaria no Guiné para prosseguir viagem até outras paragens. Estes versos constituem um testemunho de um momento importante da história religiosa da Ilha e oferecem alguns quadros representativos das manifestações de fé do povo madeirense na primeira metade do séc. XX. Rufino Augusto Meneses faleceu em Machico, a 30 de março de 1966. Obras de Rufino Augusto Meneses: Visita da Imagem de Nossa Senhora de Fátima (a Virgem Peregrina) à Madeira, em 7 de Abril de 1948: Versos Populares (1950).   Sílvia Gomes (atualizado a 01.02.2018)

Religiões Personalidades

mendonça, maria

Natural dos Açores, Maria Mendonça (1916-1997), de seu nome completo Maria da Trindade Mendonça, passou 35 anos da sua vida na Madeira. Jornalista e empresária, instala-se no Funchal em 1951 para dirigir, ao longo de 19 anos, o Eco do Funchal. Promove os livros insulares, açorianos e madeirenses, nas ilhas e no continente. Cria a Editorial Eco do Funchal e autores da Madeira terão a satisfação de verem livros seus virem a lume ou serem reeditados nas décs. de 50 e 60. A partir de inícios da déc. de 60, organiza no seu próprio café-restaurante, denominado Pátio, tertúlias e conferências. Em 1972, funda a Sociedade Pátio, Livros & Artes. Em 1978, cria a Edições Ilhatur, lançando até 1982, entre outros títulos, a coleção de livros infanto-juvenis “Canoa”. Entre 1979 e 1981, dirige o histórico jornal humorístico Re-nhau-nhau. Palavras-chave: jornalista; Edições Ilhatur; Editorial Eco do Funchal; Maria Mendonça; Pátio, Livros & Artes; promotora cultural. Natural dos Açores, filha de Manuel Franco de Mendonça e de Maria Raposo, Maria da Trindade de Mendonça (16 de fevereiro de 1916-28 de fevereiro de 1997) passou 35 anos da sua vida na Madeira. Perfila-se como uma pioneira no empreendedorismo cultural. Foi promotora do livro insular, administradora de uma casa editorial, articulista polemista, promotora turística, dirigente associativa e gerente de um espaço cultural e comercial. Sob o lema “Querer é poder”, como patenteia a legenda do ex-líbris que mandou executar em 1956, a sua vida é marcada por encontros e iniciativas culturalmente relevantes. Como adianta Alberto Vieira, a “sua ligação à Madeira estabelece-se a partir de Lisboa, por amigos da Madeira e pela situação de penhora do jornal Eco do Funchal, cujas dívidas aceita cobrir para dar continuidade à sua publicação, assumindo a direção a 25 de março de 1951” (VIEIRA, 2015), cargo que desempenhará até 4 de maio de 1970. Sob a sua direção, esse jornal “de carácter regionalista e independente” (OLIVEIRA, 1969, 17), que era de periodicidade semanal, passa a sair mais vezes por semana (ensaiando-se por uns tempos um trissemanário para depois ficar um bissemanário), e Maria Mendonça introduz-lhe várias secções, em especial “Cultura & Recreio”, a primeira série do suplemento literário “Pedra”, em 1965 (sendo que a segunda série viria a ser publicada no Comércio do Funchal nos anos 1967-1969) e, a 3 de março de 1969, um suplemento quinzenal (com quatro páginas) para crianças, “A Canoa”, organizado por Maria do Carmo Rodrigues. Na página literária “Pedra”, hão de contar-se “vários colaboradores: Duarte Sales Caldeira, Vicente Gomes da Silva, Ana Gouveia, Luís Manuel Angélica, Luciano Nunes, José Manuel Coelho, Leopoldo Gonçalves, Vladimiro Rocha, Luísa Silva, Teresa Macedo, António do Canavial, A. [J.] Vieira de Freitas e José de Sainz-Trueva” (Id., Ibid.). No suplemento infanto-juvenil vão colaborar, entre outros nomes, Alice Gomes, Irene Lucília Andrade, Luíza Helena Clode, Madalena Gomes e Matilde Rosa Araújo. No entanto, por razões económicas, esse suplemento será suspenso meses depois. Decidida a não deixar interromper a dinâmica que o projeto gerara, Maria do Carmo Rodrigues funda então o periódico infanto-juvenil independente A Canoa, que teve grande divulgação a nível nacional entre 1969 e 1971. Fig. 1 – Fotografia tirada provavelmente no restaurante do Casino da Madeira, nos anos de 1960. Em primeiro plano, Horácio Bento de Gouveia e esposa; em segundo plano, ao centro, Maria Mendonça, à direita, Adelaide Félix e, à esquerda, Emília Félix, irmã de Adelaide.Fonte: Colç. de Maria Amélia Bento de Gouveia. Mal se instalou no Funchal, Maria Mendonça começou a participar na dinamização de associações de intercâmbio cultural entre os Açores e a Madeira, designadamente o Clube dos Amigos dos Açores e o Círculo de Amizade Madeira-Açores, chegando a ser dirigente associativa. Como refere Alberto Vieira, “ao abrigo destas estruturas, fizeram-se excursões, intercâmbios de grupos folclóricos, de bandas de música, de clubes desportivos” (VIEIRA, 2015). Em 1951, Rogério Correia promove, durante as festas de fim-de-ano, a Semana do Livro Açoriano, na Academia de Música da Madeira, no Funchal, com a colaboração de Maria Mendonça e J. Silva Júnior. Nos anos sequentes, os mesmos promotores hão de organizar outras semanas do livro, dedicadas às publicações açoriana e madeirense. A chefe de redação do Eco do Funchal vai erguer em Lisboa, em 1954, aquando da 24.ª Feira do Livro, o pavilhão do Livro Insular, que ocupou lugar de destaque. Para esse certame mandou imprimir o Catálogo das Obras Apresentadas no Primeiro Stand Insular da Feira do Livro de Lisboa em 1954, que organizou com o conterrâneo J. Silva Júnior. O público nacional fica assim a saber que a literatura insular é uma realidade tangível. Em 1955, monta o stand do livro insular no Funchal. Realiza a Primeira Semana da Madeira, em Lisboa, no Castelo de S. Jorge, em 1982. De tudo isto fica a ideia de que uma consciência cultural das ilhas se perfilava em Portugal. Por sugestão do poeta Jorge de Freitas, Maria Mendonça funda a primeira casa editora na Madeira, a Editorial Eco do Funchal, apostando assim na afirmação cultural do livro insular e ampliando a ação das duas principais entidades regionais públicas que desempenhavam esse importante papel: a Câmara Municipal do Funchal e a Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. Com a sua chancela, autores da Madeira, tais como Noé Pestana, Baptista Santos, Bernardete Falcão, João Vieira Caetano e Alberto Figueira Jardim, terão a satisfação de verem livros seus vir a lume ou ser reeditados nas décs. de 50 e 60. Sob os mesmos auspícios, os poetas da tertúlia ritziana (assim chamada porque se reuniam no Café-concerto Ritz) publicam em 1952 a coletânea Arquipélago. Meses depois aparece – curioso episódio da história literária madeirense e revelador de um certo espírito irreverente e humorístico – a coletânea Areópago, de tiragem reduzida e destinada aos amigos, uma paródia de Arquipélago, organizada anonimamente por Jorge de Freitas, em colaboração com Alírio Sequeira, Carlos Camacho e Paulo Sá Braz, e impressa nas instalações da referida casa editora. Maria Mendonça vai até correr o risco de editar livros-objeto, de grande porte e requinte. Encomenda a Maria Lamas – uma amiga com quem estreitou laços ao longo da vida – a obra Arquipélago da Madeira – Maravilha Atlântica, publicado em 1956, um volume de quase 400 páginas. O livro apresenta-se como um misto de descrição de lugares do arquipélago da Madeira e de revista ilustrada, sendo enriquecido com fotos a preto e branco, gravuras em extratexto, e capa e vinhetas da autoria de Alírio Sequeira. É também graças a Maria Mendonça que Luís Marino (de seu verdadeiro nome Luís Gomes da Silva) poderá ver concretizada, em 1959, a sua antologia A Musa Insular (Poetas da Madeira). Este monumento-padrão, com capa de Max Römer, reúne os nomes dos poetas insulares desde os tempos do povoamento da Madeira. Com a mesma chancela, saem livros tão importantes para a cultura regional como Falares da Ilha: Pequeno Dicionário Popular Madeirense, de Abel Marques Caldeira e prefácio de Emanuel Paulo Ramos, em 1961, e, em 1968, a sumptuosa reedição a cores de Casas Madeirenses (1.ª ed. de 1937), de João dos Reis Gomes, com colaboração de Edmundo Tavares. Em 1954, Maria Mendonça compila o inquérito “Qual o panorama da Madeira que mais o impressionou?”, levado a cabo junto de personalidades das artes e letras lusas e publicado no Eco do Funchal em 1951-1952, e faz sair do prelo A Ilha da Madeira Vista por Intelectuais e Artistas Portugueses, uma obra que será reeditada em 1969 e em 1985. Não se esquece da terra natal e é com naturalidade que publica Férias nos Açores, em 1955, Os Açores Através da Saudade, em 1957 (reeditado em 1991), e, em 1958, Grupo Folclórico de São Miguel. Lança, também, o guia turístico Isto é a Madeira, em 1960, em português; no ano seguinte, sai uma edição trilingue, que será reeditada em 1963. Coordena outros roteiros: com Luís Jardim, edita Páscoa: Sugestões, em 1965, e, com Osvaldo Pestana, apresenta Natal: Sugestões, em 1966. Editou, ainda, a revista Semana da Madeira, que durou sete anos (1965-1972), em colaboração com António Aragão, Carlos Lélis e Aníbal Trindade, descrita por Américo Lopes de Oliveira como uma “publicação moderna, original, de sentido prático para a utilização do turista nacional e estrangeiro, visto que está redigida nas línguas mais faladas e generalizadas por todo o Mundo”. O mesmo estudioso informa ainda que, da empresa Eco do Funchal, “nasceu [a] agência de publicidade ‘Islena’” (OLIVEIRA, 1969, 17). Em 1957, publica Uma Pequena História (Tema Madeirense), que será reeditada em 1991, e profere palestras sobre os Açores e a Madeira, a convite de agremiações portuguesas, no Rio de Janeiro, em Santos e em São Paulo. A partir dessas experiências, elabora a publicação Presença Madeirense no Brasil, em 1958. Ainda em 1957, Maria Mendonça organiza com confrades da imprensa regional, tais como Manuel Amândio Rodrigues, Manuel G. Abreu, Rui Camacho e Helena Marques, uma confraternização de jornalistas chamada Tertúlia Sem Título, que se reunirá com alguma regularidade. Desses convívios ficará um registo impresso nas oficinas da Editorial Eco do Funchal em 1958: Tertúlia Sem Título. (Jornalistas da Madeira), ilustrado com imagens das reuniões realizadas. A seleção de artigos que publicou no Eco do Funchal, reunida por Ana Isabel de Sousa no livro Eu, Maria, me Confesso (Recordações e Narrativas), de 2001, mostra bem a voz interventiva que Maria Mendonça tinha: o desconhecimento de que os continentais costumavam dar provas relativamente às realidades açoriana e madeirense, a questão dos transportes de bens e pessoas entre as ilhas e o continente, as difíceis condições de vida de muitos insulares e a falta de investimento na educação, o destino das verbas resultantes das taxas e impostos cobrados pelo poder central nas ilhas, a afirmação dos valores culturais insulares eram temas que a articulista não deixava de trazer à liça. Segundo Rui Carita, o assunto da autonomia que Maria Mendonça tocou num seu artigo em 1968 “chegou, mesmo, a ter ampla repercussão no continente, pois foi depois transcrito na Seara Nova, em janeiro do ano seguinte, suscitando várias questões e originando comentários e respostas, depois publicados na mesma revista, no número de maio desse ano de 1969” (CARITA, 2007, 28). Em 1972, retoma com Natália Correia e Vera Lagoa (pseudónimo de Maria Armanda Falcão) o café literário Rés-do-chão: Tertúlia do Livro – Pátio das Artes, à R. da Carreira, estabelecido cerca de 1967-68 por Carlos Lélis, o escultor Anjos Teixeira e o fotógrafo João Pestana; desse café, conta-se que Vera Lagoa terá afirmado que era o primeiro café literário criado no país. Essas três mulheres vão, assim, firmar a Sociedade Pátio, Livros & Artes, cuja atividade incidia na exploração da casa de chá, esplanada, tabacaria, livraria, galeria de arte, e loja de moda e ourivesaria. Essa entidade será, igualmente, “responsável pela aquisição do espólio da antiga Photographia Vicentes” (CARITA, 2007, 28). Dificuldades económicas obrigaram a empreendedora a desfazer-se de algum património da arte fotográfica do acervo. Em 1979, vende ao Governo regional o recheio do estúdio de fotografia: o espaço Photografia-Museu Vicentes será inaugurado em 1982. Nesse “lugar seleto de letras e artes” (HOMEM 1999, 61) chamado Pátio será apresentada, em 1975, pela jornalista Maria Aurora Homem, a coletânea de poemas inéditos Ilha, coordenada por José António Gonçalves. Também não é por acaso que, em 1979, Natália Correia vem a assinar o prefácio da coletânea Ilha 2. Maria Mendonça estreia, em 1978, as edições Ilhatur (1978-1982), com a monografia Vicentes Photographos, de Luís de Sousa Melo. Em 1979, sob os auspícios do Ano Internacional da Criança e ciente do valor dos autores e ilustradores que colaboraram no extinto periódico A Canoa, Maria Mendonça lança a coleção “Canoa”, respondendo assim, mais uma vez, à vontade de constituir organicamente uma projeção literária e artística no meio madeirense. Saem a lume Histórias que o Vento Conta (n.º 1, 1979) de Irene Lucília Andrade; Mimi e os Sapatinhos (n.º 2, 1979) de Luiza Helena (Clode); Camélias Brancas (n.º 3, 1980) e Sebastião, o Índio (n.º 5, 1982), de Maria do Carmo Rodrigues e, finalmente, Os Anjos Descem (n.º 4, 1981), de António Marques da Silva. Tais livros remetem para o mundo das vivências infantis, com narrativas, versos, canções e lengalengas, assentes numa imaginação poética e numa linha de descoberta em liberdade. Entre 1979 e 1981, Maria Mendonça vem a dirigir, após Gonçalves Preto e Gil Gomes, a terceira série do histórico Re-nhau-nhau, criado em dezembro de 1929. Após um interregno, o Re-nhau-nhau renascerá das suas cinzas a 1 de janeiro de 1996, sob os auspícios de António Loja, durante largos meses, até se extinguir. De acordo com familiares e amigos, Maria Mendonça autodefinia-se como “açoriana-madeirense”. Nelson Veríssimo sublinhou “o seu entusiasmo e dinamismo na divulgação dos valores insulares” (VERÍSSIMO, 1995, 13). Num seu ensaio sobre a comunicação social madeirense, Paquete de Oliveira qualificou-a de “batalhadora pelas causas e coisas da Ilha” (OLIVEIRA, 2008, 38). O amigo Luís Marino dedicou-lhe os seguintes versos: “D. Maria Trindade Mendonça/A esta boa amiga da velha guarda./Dona Maria Mendonça/Que não quis ficar pra avó,/Não é amiga da onça/E sabe dar de cipó…/É de meã estatura,/Mas possui uma alma grande/E… de boa catadura,/Com toda a gente se expande…/No Eco e no Re-nhau-nhau,/– Mesmo com riso amarelo –/A tanto e tanto marau,/Vai chegando a roupa ao pelo…/Dona Maria Mendonça,/Muitos amigos conquista,/Por não ser falsa, nem sonsa…/Nem tão pouco vigarista./Deve muito a nossa ilha/A esta ‘grande’ mulher/Que, não sendo dela filha,/Tanto a estima e bem lhe quer!” (SILVA, 1980, 10-11). A título de curiosidade, enquanto empresária, Maria Mendonça introduziu na cafetaria e restauração da Madeira o uso das saquetas de açúcar, chegando a ter o monopólio da sua distribuição no arquipélago, e diz-se que, enquanto figura feminina atípica, disputa com a escultora Manuela Aranha o título de primeira mulher a andar de bicicleta na Ilha. Fig. 2 – Fotografia de uma reunião de O Pátio: um cenáculo de escritores e artistas. Maria da Trindade Mendonça (de costas e de preto, à direita), Maria Aurora Carvalho Homem, Luíza Clode, Margarida Macedo Silva, entre outros.Fonte: Colç. de Ângela Morna. Nos últimos tempos passados na Madeira, Maria Mendonça colaborou com a Direção Regional dos Assuntos Culturais, desempenhando o cargo de responsável pela Inspeção Regional de Espetáculos. Publica nos Açores, em 1984, o livro A Personalidade Multifacetada do Jornalista Manuel Inácio de Melo, que será reeditado em 1990. Há registo de Maria Mendonça ter usado o pseudónimo “Maria Júlia” e “Maria da Ilha” (ANDRADE, 1999, 187). O Governo Regional da Madeira distinguiu-a com o troféu Estrelícia Dourada pelos relevantes serviços prestados à sociedade madeirense. Deixa a Madeira em 1986, mas dela não se desligou, visitando-a regularmente. Os amigos do Funchal recebem-na em casa ou fazem-lhe uma visita quando se deslocam à ilha de São Miguel. Publica em 1988 a entrevista que fez à amiga de longa data, O Concelho de Nordeste Visto por Maria Lamas, reeditada em 1990. Nos últimos anos da sua vida, trabalhou na Direção Regional dos Assuntos Culturais dos Açores. Morre na ilha de São Miguel, aos 81 anos. Obras de Maria Mendonça: Férias nos Açores (1955); Os Açores Através da Saudade (1957); Uma Pequena História Madeirense (1957); Grupo Folclórico de São Miguel (1958); Presença Madeirense no Brasil (1958); Isto é a Madeira (1960); Semana da Madeira (1965-1972); Páscoa: Sugestões (1965); Natal: Sugestões (1966); “Evocação” (1980); A Personalidade Multifacetada do Jornalista Manuel Inácio de Melo (1984); O Concelho de Nordeste Visto por Maria Lamas (1988); Eu, Maria, me Confesso (Recordações e Narrativas) (2001); A Ilha da Madeira Vista por Intelectuais e Artistas Portugueses (s.d.).   Thierry Proença dos Santos (atualizado a 01.02.2018)

Sociedade e Comunicação Social Personalidades