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orçamento

Análise da forma e da evolução dos orçamentos, tendo em consideração os nacionais e os locais, através da Junta Geral e do Governo Regional. Palavras-chave: Orçamento; Junta Geral; Governo Regional. O orçamento é a previsão da receita e despesa para o ano económico. É a partir da Lei do Orçamento, aprovada pelo Parlamento, que o Estado está autorizado a cobrar receitas e a efetuar as despesas. Os orçamentos são uma realidade recente, em termos de contabilidade, pois iniciam-se, formalmente, em Portugal, em 1533. No entanto, há quem aponte a sua existência a partir de 1473. Até então, não passavam de meros relatórios de contas realizados por um contador, sob a supervisão do vedor da Fazenda. Nos sécs. XVI e XVII, eram apenas registos de previsão da despesa realizados pelo vedor da Fazenda; tratava-se de documentos de carácter irregular, que só eram feitos mediante solicitação superior. No que diz respeito ao Reino, temos referências a documentos orçamentais dos anos de 1526, 1534, 1557, 1607 e 1619. Destes, podemos referir para o Estado da Índia os de 1574, 1581, 1588, 1588-90, 1607, 1609-12, 1620, 1635, 1680 e 1687. O orçamento e modelo de gestão orçamental que vigora no começo do séc. XXI, como ato jurídico, foi estabelecido na Constituição de 1822, mas só teve execução a partir de 1834. De acordo com a Constituição de 1822 (arts. 103 e 227), a Carta constitucional de 1826 (arts. 15, 136 e 138) e a Constituição de 1838 (art. 37, 54, 132 e 136), competia às Cortes determinar a despesa pública e os impostos a arrecadar, assim como fiscalizar a sua execução anual. O orçamento foi reformado pela Constituição de 1911 (art. 23, 26 e 54) estabelecendo-se, no art. 54, que deveria ser entregue ao Congresso, para discussão e apresentação, até ao dia 15 de janeiro. Mas nem sempre esta situação aconteceu, por força da instabilidade política que se viveu durante a Primeira República. Assim, entre 1918 e 1926, apenas dois foram aprovados e, ainda assim, com algum atraso. Nestas circunstâncias, recorria-se às Leis de Meios e aos duodécimos. Com a Constituição de 1933 – que surge como resultado do golpe militar de 1926 e da reforma fiscal apresentada por Salazar –, retira-se à Assembleia Nacional a capacidade de aprovar e fiscalizar o orçamento, que passa a ser elaborado e posto em execução pelo Governo. Desta forma, a Assembleia aprova uma Lei de Meios genérica e, ao Governo, fica a liberdade de estabelecer o Orçamento Geral do Estado, que será publicado sob a forma de decreto orçamental. Em algumas circunstâncias, a situação passa por uma norma legal que estabelece o orçamento do ano anterior, como aconteceu entre 1896 e 1910. São aqui referidos os anos económicos sem orçamento definitivo: o período de 1821-1836, 1838-39, 1840-41, 1842-43, 1843-44, 1844-45, 1847-48, 1851-52, 1856-57, 1858-59, 1859-60, 1861-62, 1862-63, 1865-66, 1868-69, 1869-70, 1870-71, 1871-72, 1879-80, 1905-06, 1906-07, 1910-11, 1919-20, 1920-21, 1921-22, 1924-25 e 1925-26. Nesta enumeração, deveremos diferenciar o orçamento das propostas governamentais e dos diplomas de aprovação do mesmo: as propostas governamentais de orçamento reportam-se a 1913-14, 1917-18, 1919-20, 1925-26, 1926-27 e 1936-347. De acordo com os preceitos constitucionais do Estado Novo, a aprovação do orçamento pelo Parlamento fazia-se através de uma lei, chamada Lei da Receita e da Despesa. Assim, o Parlamento deveria aprovar, antes do início do ano económico, o respetivo Orçamento, apresentado pelo Governo. Antes de o submeter à apreciação da Assembleia, o Governo deveria aprová-lo por decreto-lei. Com a Constituição de 1976, foi criada uma Lei do Orçamento de Estado, e o Governo tem de aprovar o Orçamento através de um decreto orçamental. Junta Geral da Madeira (1903-1976) Com a definição da autonomia distrital a partir de 1901 surgiu a figura institucional da Junta Geral, que gere o Governo do distrito do Funchal. Era esta junta que exercia a administração do espaço do arquipélago, mediante competências delegadas. Os orçamentos desta Junta Geral eram elaborados e propostos pela Comissão Distrital do Funchal para aprovação à Junta Geral na última sessão ordinária do ano civil, devendo entrar em execução a partir do dia 2 de janeiro do ano a que se reportavam. A não existência do mesmo na data era considerada motivo para a demissão da comissão que presidia à Junta. Os orçamentos das Juntas Gerais eram equiparados, em termos de contabilidade, aos orçamentos a que estavam obrigados os concelhos de primeira ordem (art. 33), isto é, os mais importantes no quadro da administração municipal. Esta ideia, determinada no Estatuto, implicava uma exigência em termos procedimentos contabilísticos. A lei n.º 88 de 1913 dedica o capítulo II aos orçamentos, onde estão definidas as regras da sua estrutura e elaboração, bem como dos tipos de orçamentos que a Junta pode elaborar: ordinários e suplementares. Os últimos acontecem apenas como resultado de alterações que sucedam no decurso da execução dos primeiros, não havendo qualquer limite quanto ao número dessas alterações. Esta situação e a transferência de verbas orçamentais eram autorizadas pelo governador civil, depois de ouvida a Comissão Distrital. Em termos de política orçamental, a comissão executiva da Junta apenas estava autorizada a proceder a transferências de verbas entre as diversas rubricas. O valor anual do orçamento era imutável, i.e., os orçamentos suplementares não aumentavam nem diminuíam o valor inicial atribuído à receita e à despesa, a não ser que ocorresse uma receita extraordinária e existisse a necessidade de aplicá-la. As principais fontes de receita da Junta Geral eram os impostos (impostos distritais, contribuições diretas e adicionais, imposto do vinho de estufa, imposto para hospitalização de alienados e socorros a náufragos, impostos sobre o açúcar, o álcool e a aguardente, imposto sobre os combustíveis, fundo de viação e turismo, contribuição predial, contribuição industrial, imposto sobre capitais, imposto sobre transações, imposto de camionagem, imposto profissional, imposto de trânsito, imposto de compensação, imposto do tabaco, imposto do selo, imposto de circulação, as cobranças estabelecidas no art. 1.º do dec.-lei n.º 34051 e no art. 2.º do dec--lei n.º 34051, bem como os emolumentos, as multas e taxas, as receitas de diversos serviços, o rendimento das levadas do Estado, os recebimentos para outras entidades, os subsídios, os empréstimos, as dívidas, os subsídios do fundo de desemprego e outras receitas. Devemos ainda assinalar, desde 1956, o adicional de 10 % sobre o imposto profissional, assim como diversos adicionais consignados a certas despesas. Assim, por despacho ministerial de 30 de dezembro de 1953, foi estabelecida uma taxa sobre a entrada e saída de mercadorias para a assistência distrital. A isto acrescentara-se, em 1933, as comparticipações de 50 % do fundo de Desemprego para as obras de utilidade pública. As principais despesas obrigatórias eram: os vencimentos do pessoal; as pensões de aposentação; os encargos de empréstimos; o pagamento de dívidas exigíveis; as despesas com os litígios; as despesas de dotação dos serviços distritais; a hospitalização de alienados. Ainda temos as despesas relacionadas com o funcionamento do Governo Civil, com as escolas do ensino liceal e técnico; com a delegação do Tribunal do Trabalho e Previdência; com o Tribunal do Trabalho; com a direção do distrito escolar; com o Arquivo Distrital; e as despesas de representação do presidente da Comissão e do Governo do distrito. Governo Regional da Madeira A Constituição de 1976 estabelece um regime híbrido entre a Constituição de 1933 e os anteriores textos constitucionais. Deste modo, ao Governo compete elaborar o orçamento, publicado por decreto-lei orçamental, enquanto à Assembleia compete aprovar a Lei do Orçamento. O plano de atividades, que fundamenta a despesa e que até então era apresentado de forma separada, passou a estar integrado no orçamento. Com a revisão constitucional de 1982, a Assembleia aprova o orçamento, e ao Governo compete executá-lo. Na revisão de 1989, a mudança mais significativa prende-se com o regime do plano de atividades. A integração de Portugal na União Europeia implicou alterações da política orçamental, nomeadamente a partir da assinatura do Tratado de Roma, a 7 de Fevereiro de 1992, que determinou a necessidade de convergência económica e financeira. Nesse quadro, releva-se a fiscalização, pela Comissão Distrital, da evolução da situação orçamental, designadamente no que concerne à dívida pública, que, suplantando os limites estabelecidos, implicava pesadas penalizações de carácter financeiro. O orçamento regional é elaborado, desde 1976, pelas regiões autónomas da Madeira e dos Açores. A elaboração e execução destes orçamentos baliza-se pelo Estatuto Administrativo da Região, a legislação de enquadramento do orçamento e das finanças regionais, o programa do Governo regional, o Quadro Comunitário de Apoio e o Orçamento Geral do Estado. De acordo com o primeiro Estatuto, dito provisório enquanto o definitivo não é elaborado pela Assembleia Regional da Madeira, a Região deve elaborar um orçamento e plano económico regional, a enquadrar no Orçamento do Estado, que deve ser submetido à aprovação da Assembleia Regional. Recorde-se que o orçamento regional começou por ser integrado no Orçamento do Estado, o que implicava que a sua plena execução estava sempre pendente do orçamento nacional. A proposta de orçamento é elaborada pela Secretaria Regional das Finanças, aprovada em plenário do Governo por resolução, assinada pelo presidente e pelo secretário das Finanças, e depois submetida à aprovação da Assembleia Regional, quer sob a forma de decreto regional (apenas nos anos de 1977-1978), quer passando depois a resolução desta Assembleia (a partir de 1979), dando lugar a decreto legislativo regional (desde 1988). A execução deste documento é definida por decreto regulamentar regional, sendo as alterações ao mesmo orçamento feitas através de decreto legislativo regional. A situação de dependência do orçamento regional em relação à aprovação do Orçamento Geral do Estado, por forças das verbas, consideradas de acordo com o princípio de solidariedade do Estatuto de 1976 (art. 56), conduzirá a que seja aprovado muitas vezes de forma tardia, como sucedeu entre 1977 e 1986. Até 1988, o orçamento, depois de aprovado pela Assembleia Regional e assinado pelo ministro da República, era remetido ao Governo da República para ser integrado no Orçamento do Estado. A partir desta data, com base no artigo n.º 22 da Constituição, o Governo Regional passou a submeter o orçamento à Assembleia Regional sob a forma de proposta de decreto legislativo regional, que, depois de aprovado pela Assembleia, era assinado pelo presidente da mesma e pelo ministro da República, sendo depois publicado em Diário da República. Esta fórmula era também seguida quanto aos programas e projetos plurianuais do Plano de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração da RAM. As alterações orçamentais, que até 1990 estavam sujeitas à apresentação e aprovação, pela Assembleia Regional, de um orçamento suplementar, deixam de existir (de acordo com o art. 20 do dec.-lei 40/83, de 13 de dezembro), estando o Governo autorizado a realizá-las, desde que não impliquem alteração na despesa, procedendo à sua publicação no Jornal Oficial da RAM. Em termos de execução orçamental, surgiram alguns instrumentos legislativos. A lei n.º 28/92 DR 201/92 Série I-A, de 1 de setembro, estabeleceu as regras referentes ao Orçamento da Região Autónoma da Madeira, os procedimentos para a sua elaboração, discussão, aprovação, execução, alteração e fiscalização, e a responsabilidade orçamental. Foi alterada pela lei n.º 53/93 DR 177/93 Série I-A, de 30 de julho. A lei n.º 91/2001, de enquadramento do Orçamento do Estado, estabelece “as disposições gerais e comuns de enquadramento dos orçamentos e contas de todo o setor público administrativo”. Assim, define “as regras e os procedimentos relativos à organização, elaboração, apresentação, discussão, votação, alteração e execução do Orçamento do Estado, incluindo o da segurança social, e a correspondente fiscalização e responsabilidade orçamental, e à organização, elaboração, apresentação, discussão e votação das contas do Estado, incluindo a da segurança social”. A orgânica da Direcção Regional de Orçamento e Contabilidade foi aprovada pelo dec. reg. n.º 21/93/M DR 157/93 Série I-B, de 7 de julho. A falta de controlo sobre o sistema tributário e a sua arrecadação, associada à insuficiência de recursos financeiros, por parte do Estado, para satisfazer as necessidades de funcionamento das instituições, nomeadamente dos setores da saúde e da educação, criou insistentes problemas de tesouraria às finanças regionais, obrigando a constantes recursos a empréstimos. Assim, as políticas orçamentais geraram conflitos entre os Governos regional e central. A isto associa-se, muitas vezes, a aprovação tardia do Orçamento Geral do Estado, mecanismo que estipula o valor anual das verbas correspondentes às transferências do Estado, que conduz a atrasos na aprovação do Orçamento regional, bem como na definição de políticas orçamentais. Os anos de 1985 e 1986 foram de particular significado para esta conjuntura de difícil execução orçamental, tendo levado à negociação de um programa de reequilíbrio financeiro com o Governo da República. Desta forma, pela resolução 9/86, de 16 de janeiro, o Governo mandatou o ministro da República e o ministro das Finanças para estabelecerem com o Governo Regional um programa de reequilíbrio financeiro da RAM, assinado a 26 de fevereiro de 1986. A 22 de setembro de 1989, houve novo programa de recuperação financeira, que vigorou até 31 de dezembro de 1997.   Alberto Vieira Eduardo Jesus (atualizado a 15.12.2017)

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pautas aduaneiras

As pautas aduaneiras podiam ser únicas ou múltiplas (ou seja, o objeto era alvo de uma tributação única ou variável, de acordo com a sua origem ou condições de importação), ou mistas. A partir da década de 30 do séc. XIX, ocorreram diversas alterações nas pautas, as quais foram apontadas por vários madeirenses como responsáveis pelas dificuldades comerciais do arquipélago. Palavras-chave: Alfândegas; Pautas.   As pautas aduaneiras eram tabelas de mercadorias, com as respetivas taxas de importação e exportação. Estas pautas podiam ser únicas ou múltiplas, ou seja, o objeto era alvo de uma tributação única ou variável, de acordo com a sua origem e as suas condições de importação. Havia, ainda, as chamadas pautas mistas, que contemplavam as duas situações. A necessidade da sua quase permanente adaptação às novas circunstâncias do mercado obrigou as autoridades a criarem comissões para a sua revisão. As alfândegas foram criadas na Madeira em 1477 e o seu funcionamento em termos de regulamentação das taxas foi estabelecido por regimentos (1499). Na documentação da antiga Alfândega do Funchal, existem: as avaliações de artigos de produção e indústria inglesa (1811); a Pauta Geral da Alfândega grande de Lisboa – impresso, cópia e emolumentos (1782-1836); e a Pauta Geral e inglesa para a avaliação das mercadorias (1834). A Pauta Geral da Alfândega era um documento onde se estabeleciam as normas precisas para avaliação dos géneros, sob o ponto de vista fiscal. Foi estabelecida em 1782, por D. Maria I, para a Alfândega de Lisboa, e tornou-se aplicável a todas as do reino, tendo-se mantido até 1832. Entretanto, em 1818, D. João VI, no Brasil, determinou, por alvará régio de 25 de abril, alterações aos direitos pagos nas Alfândegas de Portugal e do Brasil. O facto de as pautas terem sido estabelecidas, de forma geral, para o país, ignorando as especificidades, nomeadamente dos arquipélagos insulares, criou várias situações penalizadoras que fizeram levantar a voz dos insulares. O debate político local, nomeadamente após a revolução liberal, será muitas vezes alimentado em torno destas pautas e dos seus efeitos positivos ou negativos para a vida económica local, insistindo-se na necessidade de adaptações ou de uma pauta específica. Pelo dec. n.º 14, de 20 de abril de 1832, fez-se a reforma da Pauta Aduaneira, a que se seguiu outra, pelo dec. de 10 de Janeiro de 1837. A partir desta data, a Pauta passou a ser geral para todo o país, deixando de existir pautas específicas para cada Alfândega. É nítida uma intenção livre-cambista, mas a necessidade de receita impediu um maior progresso. A 4 de julho de 1835, foi criada uma comissão para proceder à revisão da Pauta. A nova Pauta entrou em vigor pelo decreto de 10 de janeiro de 1837. A Madeira não foi ouvida e apenas foram considerados os interesses da burguesia comercial do Porto e Lisboa. Por essa razão, a referida Pauta revelou-se danosa para as demais regiões, nomeadamente para a Madeira, tendo por isso merecido a contestação dos madeirenses, por permitir a entrada livre de vinhos e aguardentes do continente. Mesmo assim, alguns artigos considerados ruinosos para a Madeira foram suspensos pelas Cortes, por influência do deputado Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, que fora governador e era então deputado eleito pela Madeira. No séc. XIX, a cobrança dos direitos de exportação no Funchal estava regulamentada por duas Pautas: a geral e a inglesa. A última, feita de acordo com o tratado de comércio com Inglaterra (1810), determinava privilégios especiais aos Ingleses. Diogo Teles de Menezes (1788-1872), diretor da Alfândega, decidiu, por sua iniciativa, fundir ambas e criar uma nova Pauta Alfandegária, que motivou um aceso protesto da Associação Comercial do Funchal, que fora criada em 1836. Em 1839, a Associação Comercial submeteu à Câmara do Funchal uma proposta de alteração da Pauta, que não foi contemplada. Todavia, na revisão da Pauta de março de 1841, a Madeira continuaria a manter o regime de exceção para os vinhos aguardentes e os cereais. Neste mesmo ano, surgiu, no Funchal, uma comissão auxiliar da comissão permanente da Pauta Geral das Alfândegas. As diversas alterações e reformas da Pauta Aduaneira que tiveram lugar ao longo do séc. XIX (em 1837, 1841, 1850, 1852, 1856, 1860, 1870, 1882, 1885, 1887, 1892, 1924 e 1926) sempre mereceram reparos dos madeirenses, que a apontaram como responsável pelas dificuldades comerciais do arquipélago, nomeadamente devido à falta de competitividade com os portos vizinhos das Canárias. Com efeito, a Pauta será motivo de permanente reclamação, porque a Madeira está numa situação distinta dos demais portos do reino e as medidas protecionistas apenas ponderam as condições de Portugal continental. A este propósito, diz-nos Paulo Perestrelo da Câmara: “Finalmente deve-se contemplar, na massa dos males, que, ultimamente mais tem pesado sobre a Madeira, a lei das Pautas, que com os seus efeitos proibitivos, nada mais tem feito, senão aperfeiçoar a ciência do contrabando, dando cabo de um comércio já tão enfraquecido. A mania de tudo mudar, levou esses novos legisladores á demencia de por a Madeira na mesma escala de produções e interesses que Portugal, com quem esta ilha não pode comerciar, pois abundando em vinhos excelentes, não os consome aquela, a quem também não pode fornecer os artefactos, de que carece. A Madeira só pode negociar com países não vinhateiros, e deles receber os artigos de que carece, mas com direitos suaves” (CÂMARA, 1841, 95-96). Assentando a economia da Ilha apenas no comércio do vinho e, sendo este o principal alvo das tributações, era difícil conseguir algum lucro e competitividade no mercado externo. Por outro lado, a Madeira necessitava de importar tudo aquilo de que precisava para a sua manutenção, desde manufaturas a cereais. Na mesma linha, a possibilidade de trazer para a Madeira parte da navegação oceânica, como forma de animar o movimento do porto comercial, passaria por medidas que favorecessem essa situação, face às melhores condições oferecidas por outros portos como os das Canárias. Neste caso, existiria a necessidade de estabelecer condições mais favoráveis à entrada e saída no porto do Funchal, através da criação de infraestruturas e de medidas fiscais que não fossem penalizadoras, nomeadamente quanto à entrada e saída do carvão, o principal meio de combustível a partir desta centúria. O grande objetivo era fazer do Funchal a principal estalagem do oceano. Uma pauta penalizadora destas importações era, portanto, prejudicial para a Madeira, fazendo aumentar o clamor por soluções aduaneiras que tivessem em conta esta situação específica, que raras vezes merecia a aprovação e o entendimento dos pares e das autoridades da metrópole. As Pautas necessitavam de permanente atualização, criando-se para o efeito comissões específicas. A Comissão Revisora foi criada para aceitar as reclamações sobre as mesmas e propor a sua reforma, de acordo com a situação da indústria nacional e com as alterações das pautas estrangeiras. Reorganizada por decreto de 31 de março de 1845, foi extinta em 28 de dezembro de 1852, para dar lugar à Comissão para as Pautas Aduaneiras que, por sua vez, deu lugar, por decreto de 25 de outubro de 1859, à Comissão Revisora da Pauta Geral da Alfândega, que estava incumbida da missão de proceder à realização da estatística das fábricas e oficinas do país, à recolha de informações sobre a produção, o consumo e a exportação dos seus produtos e, ainda, ao estudo sobre a importação de produtos das indústrias estrangeiras. Foi substituída, a 3 de novembro de 1861, pelo Conselho Geral das Alfândegas. As reformas das Alfândegas foram estabelecidas pela portaria de 14 de outubro de 1864 e pelos decretos de 7 de dezembro de 1864, bem como de 28 de agosto e de 23 de dezembro de 1869, tendo o corpo auxiliar das Alfândegas sido transformado num serviço de rondas volantes. O decreto de 7 de dezembro de 1864 estabelece a reorganização das Alfândegas, com a extinção da Administração Geral do Pescado, e constitui duas circunscrições: a marítima e a da raia. Na Alfândega do Funchal, a regulamentação de toda a atividade da repartição, bem como o cômputo e a arrecadação dos direitos de entrada e saída regulavam-se através das Pautas de 1843, 1850, 1856, 1860, 1885 e 1887, e por meio das cartas de lei de 1844-1845. Os serviços da Alfândega diferenciavam-se dos do Almoxarifado por estes apenas poderem proceder à cobrança, funcionando, assim, como recebedoria. Com a Pauta de 1892 foram consideradas algumas especificidades locais das ilhas, com salvaguarda o comércio do açúcar na Madeira, nos Açores e no continente, com uma taxa reduzida de 1/4 do seu valor monetário. Com a implantação da República, introduziram-se alterações na cobrança dos direitos, sendo de destacar que apenas em 9 de fevereiro de 1915 se suspendeu a cobrança do imposto de farolagem no porto do Funchal, uma medida reclamada havia muito tempo, que ganhou força de lei pela intervenção do visconde da Ribeira Brava. Por força da desvalorização da moeda e da Primeira Guerra Mundial, ficou determinado, pelo dec. n.º 41.333, de 18 de abril de 1918, que os direitos de importação seriam pagos em ouro. Criaram-se, assim, dificuldades à exportação, assim como à entrada de mercadorias. Por outro lado, o dec. n.º 4682, de 27 de abril de 1918, estabeleceu sobretaxas relativas à importação de diversas mercadorias. A oneração fiscal das importações continuou, pois, pelo dec. n.º 6263, de 2 de dezembro de 1919, e foram duplicados todos os direitos e sobretaxas de importação estabelecidos em 1918, permanecendo a exigência do pagamento em ouro, mas aplicada apenas de metade do valor. Posteriormente, o dec. n.º 1193, de 31 de agosto de 1920, determinou que o quantitativo integral dos direitos e sobretaxas fosse exigido em ouro. A Pauta única nacional vigorou, por todo o séc. XIX, dando lugar, com a reforma de 1921, ao regime de pauta múltipla. Em 1922, insiste-se na falta de funcionários, mas a principal reclamação recaía sobre o quase permanente aumento das pautas, numa altura de grave crise económica, marcada por descidas, quase contínuas, da moeda portuguesa. Pelo dec. n.º 8747, de 31 de março de 1923, foi aprovada nova Pauta Aduaneira em que foram abolidas algumas sobretaxas. Ao mesmo tempo, em 17 de março, criou-se um adicional de 2 % sobre todos os direitos de importação para acudir às despesas com a Misericórdia do Funchal. Depois, a 10 de março do ano seguinte, surgiu mais um adicional de 5 % para o serviço de incêndios. A Pauta foi revista pela lei n.º 1668, de 9 de setembro de 1924, e não gerou consensos; era uma forma de regularizar o comércio externo no pós-Primeira Guerra Mundial. A 12 de outubro de 1926, os combustíveis sólidos ou líquidos passam a ser taxados a 0,5 % sobre o seu valor. No quadro da lista de produtos das pautas alfandegárias, os valores cobrados pelas farinhas e os cereais mereceram, por parte dos madeirenses, uma atitude de permanente repulsa, tendo em conta a dificuldade que tinham em se prover dos mesmos. Com o regime da Ditadura Militar, ocorreu uma reforma da Pauta, consoante o dec. n.º 17.823, de 31 de dezembro de 1929, que era já a expressão plena da mudança das conjunturas mundiais, política e económica. Todavia, as medidas protecionistas continuaram a marcar presença, como se poderá verificar pelos decs. n.º 20.935, de 26 de fevereiro de 1932, que impunha um adicional de 20 % aos direitos de importação, e n.º 24.115, de 29 de junho de 1934, por meio do qual foi estabelecido o regime de proteção de bandeira, ao serem taxadas, através de um adicional de 13,5 %, as mercadorias exportadas em navios estrangeiros. Já o dec.-lei n.º 30.252, de 30 de dezembro de 1939, duplicou o valor dos direitos de exportação específicos e fez incidir 2,5 % sobre a taxa dos direitos de exportação ad valorem. Esta situação perdurou até 1947. No período da guerra, a principal atenção foi para a exportação de volfrâmio.A partir de 1948, com a entrada de Portugal na Organização Europeia de Cooperação Económica, e depois em 1959, com a adesão à Associação Europeia do Comércio Livre, foram operadas outras mudanças nas pautas, pelo dec.-lei n.º 42.656, de 18 de novembro de 1959. Este processo culmina, em 1962, com a adesão de Portugal ao Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio. Entretanto, em 1961, havia sido criada uma zona de comércio livre entre Portugal e as colónias que, por ter sido um fracasso, foi abolida em 1971. Em 1972, Portugal assinou um tratado de associação à Comunidade Económica Europeia que seria o início de uma caminhada para a sua integração nesta comunidade em 1986, com reflexos evidentes, também, nas pautas aduaneiras, como expressado no dec.-lei n.º 19/92, de 5 de fevereiro, que aprovou a Pauta dos Direitos de Importação que conduziu à aplicação da Pauta Aduaneira comum, a partir de 1 de janeiro de 1993. Com a entrada de Portugal na CEE, houve uma alteração das pautas alfandegárias. Assim, a Pauta Aduaneira comum, um dos elementos constitutivos da união aduaneira, é publicada anualmente por regulamento comunitário, que altera o regulamento de base (regulamento CEE n.º 2658/87 do Conselho, de 23 de julho de 1987, relativo à nomenclatura pautal e estatística e à Pauta Aduaneira comum). A Pauta Aduaneira compreende, entre outros elementos, os direitos de importação e a nomenclatura combinada das mercadorias. Além desta, existe a Pauta de Serviço, que é o documento onde se estabelecem as informações sobre a tributação das mercadorias importadas de países terceiros. Constam ainda da mesma as medidas de política comercial comum, nomeadamente restrições quantitativas, direitos aduaneiros, direitos anti-dumping, suspensões e contingentes pautais, bem como as medidas de âmbito nacional, tais como o imposto sobre o valor acrescentado, os impostos especiais de consumo e as informações complementares sobre as condições de desalfandegamento das mercadorias. A Pauta de Serviço é elaborada com base nos elementos integrados da Pauta Integrada das Comunidades Europeias (TARIC) que são recebidos, diretamente, de Bruxelas. Contém, igualmente, informações de carácter nacional (taxas do IVA e informações sobre as condições a respeitar na importação e exportação de mercadorias). Por fim, existe a Pauta Integrada da Comunidade Europeia, que é a Pauta Aduaneira comum, em sentido lato, atendendo a que o regulamento anual não contém diversos elementos essenciais para o desalfandegamento das mercadorias, nomeadamente taxas dos direitos aduaneiros a aplicar no âmbito de regimes pautais preferenciais, suspensões de direitos de importação, direitos anti-dumping, licenças de importação, medidas de vigilância, proibições, etc.   Alberto Vieira (atualizado a 19.12.2017)

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oratória sacra

O povoamento e o consequente desenvolvimento do arquipélago da Madeira concretizou-se segundo a estrutura religiosa e social católica, constituindo a pregação uma das principais formas de morigeração e de educação na fé, bem como de crítica social e política. Enquanto Diocese, e mesmo antes de sê-lo, o arquipélago viu nascer e atuar no seu território variadíssimos virtuosos do púlpito, desde membros da Ordem de Cristo a Jesuítas, passando por membros de outras ordens religiosas e pelos bispos funchalenses, tendo alguns deixado obra homilética publicada e outros apenas a fama perpetuada nos anais. Palavras-chave: oratória; história religiosa e eclesiástica; Igreja Católica.   No arquipélago da Madeira e Porto Santo, originariamente, a assistência religiosa processou-se em sincronia com o povoamento, ficando tais realidades sociológicas acorrentadas à determinação do poder monárquico, ao empenho dos colonizadores e ao espírito missionário do clero regular e secular metropolitano. Placa giratória e apoio relevante para a navegação dos périplos atlânticos, sobretudo ao longo da costa africana, o primeiro achamento da Madeira, segundo o cronista António Cordeiro, jesuíta da charneira dos sécs. XVII e XVIII, foi “casual, e só parcial”, e à ordem do infante D. Henrique se fez a descoberta de toda a Ilha (CORDEIRO, 1981, 67-71), “que do muito arvoredo assim se chama”, como n'Os Lusíadas se lembra (canto V, estrofe 5). Recorde-se que o cronista Zurara, em Crónica de Guiné, relata que, após o segundo cerco de Ceuta (1418), dois escudeiros da casa do infante D. Henrique pediram-lhe licença para ir a caminho da Guiné e, com vento contrário, acabaram por chegar à ilha de Porto Santo, reconhecendo ser fácil povoá-la (ZURARA, 1973, 345). Se crédito simbólico pode merecer a verosímil narrativa legendária do mediévico e infausto incidente do nobre inglês Machim, chegado à Madeira mais por “destino do acaso, do que por impulso do engenho”, o primeiro ato religioso aí praticado consistiria no enterro de Ana de Arfet, noiva do desafortunado fidalgo bretão, que, no local, pôs “de pedra uma campa em cima, e um crucifixo que consigo trouxera a defunta e levantou mais sobre ela uma grande Cruz de pau, com um letreiro em latim, que continha o sucesso, e pedia aos Cristãos que em alguma hora ali fossem, fizessem naquele lugar uma Igreja da invocação de Cristo Senhor nosso” (CORDEIRO, 1981, 67). A verosimilhança do evento da abordagem de Machim, tido por lendário, encontra mero contexto histórico na cartografia do séc. XIV que regista os arquipélagos da Madeira e das Canárias: a carta dita de Medici, de cerca de 1370, onde aparecem indicações de “porto sancto”, ilha de “lo legname”, i.e., Madeira, e ilhas “deserte”, notícias que em Portugal se conheciam. Percorrido o relato quinhentista de Francisco Alcoforado, constata-se que, a 2 de julho de 1419, o Cap. João Gonçalves Zarco, ao saber encontrar-se no sítio da Rocha, “aonde os Ingleses tinham desembarcado”, logo decidiu sair a terra, “e com ele dois sacerdotes, e alguns dos nobres que vinham, e desembarcados todos no lugar das sepulturas, deram as graças a Deus por lhes descobrir aquela nova terra, e fazendo benzer água, na terra a foram lançando, e tomando posse dela em nome do mesmo Deus”. De seguida, “achando uma casa formada dentro do grande tronco de uma árvore, ali prepararam altar, fizeram celebrar Missa, e no fim dela responso de defuntos sobre as duas sepulturas de Ana Arfet, e Machim; e tudo no dia da Visitação de S. Isabel” (Id., Ibid., 69). Não tardou o retorno ao reino, tendo o capitão e seus companheiros chegado a Lisboa no fim de agosto, relatando ao Rei o acontecido. Foi grande o entusiasmo com que D. João I recebeu a notícia do feito de João Gonçalves Zarco, e “tanto o festejaram os Sereníssimos Senhores Rei, e nosso Infante, pai, e filho, que mandaram fazer logo procissões públicas de ação de graças a Deus” (Id., Ibid., 70). Deliberou então o Monarca incumbir Zarco, no verão seguinte, de povoar a ilha da Madeira e as que houvesse em redor, dando “ampla licença a toda a pessoa que quisesse embarcar então, e ir povoar as duas ilhas, de Porto Santo e Madeira, e especialmente aos homiziados, e condenados que houvesse em cadeias do Reino”. Atilado no recrutamento oferecido, Zarco não quis “levar culpado algum por causa da Fé Divina, ou de traição, ou de ladroíce” (Id., Ibid., 71). Em nova viagem, prossegue o narrador Alcoforado, e desembarcados no porto de Machim, lançaram as fundações da igreja pedida pelo inglês, com sua mulher naquela terra sepultados. Entrados no Funchal, que do muito funcho recebera o nome, a iniciativa da fundação da igreja de S.ta Catarina partiria de D. Constança Rodrigues, esposa de Gonçalves Zarco, que assim testemunhava a sua piedade. E daqui se seguiu um rosário de outras: frente à morada do capitão-donatário, sita no alto da baía do Funchal, foi erguida a igreja da Conceição, tendo em vista o seu jazigo; num alto sobranceiro a Câmara de Lobos, demarcou-se o lugar onde se levantaria a igreja do Espírito Santo, e, abaixo, num ponto de serras muito altas, ali traçou outra igreja da vera cruz; ao chegar a uma “furiosa ribeira”, que ficou com “o nome de Ribeira Brava” (Id., Ibid., 73), um sítio escolhido além da Ponta do Sol, destinou-o para uma igreja dedicada ao apóstolo Santiago; depois, “deram em desembarcadouro, a que chamaram Calheta [...] e num alto de boa vista de mar, e terra traçou a Igreja de N. Senhora da Estrela (Id., Ibid., 74). Ficou assim a dever-se-lhe a obra meritória destas primeiras igrejas para as famílias dos colonos, a quem foi entregue a lavoura da terra que as queimadas na densíssima floresta deixavam capaz de cultivo e onde se lançaram gado, aves e animais domésticos que da metrópole os capitães-donatários haviam trazido. De mencionar, ainda, o que, na obra Saudades da Terra, o cronista de finais de Quinhentos Gaspar Frutuoso refere: ao tocarem os povoadores a ilha de Porto Santo, “foram dar a um porto da banda de Leste, onde acharam uns frades da Ordem de S. Francisco, que escaparam de um naufrágio, de que todos pereceram senão eles, os quais acharam quase mortos, por não terem que comer. Donde deram nome a este porto, que ora se chama o Porto dos Frades” (FRUTUOSO, 2007, 43). A propósito, tenha-se presente que os castelhanos começaram desde o séc. XIII a manter grande atividade com Marrocos. Por isso, torna-se natural a passagem pelas Canárias de franciscanos ibéricos para a evangelização do Norte de África muçulmano, segundo o plano de missionação de Raimundo Lulo (1232/1235-1316). Assim se entende que ventos contrários desviassem navios da rota a seguir, provocando naufrágios e acostagens ocasionais ao arquipélago da Madeira. Do povoamento à criação da Diocese do Funchal Coroa e donatários, atuando de acordo com as sintonias exigíveis, lançaram-se na criação de um espaço insular adjacente economicamente inovador, levando a Madeira, segundo o historiador Alberto Vieira, a afirmar-se, no decurso do séc. XV, como “viveiro experimental das culturas que a Europa pretendia implantar no Novo Mundo – os cereais, o pastel, a vinha [de Malvasia] e a cana de açúcar”, trazida da Sicília (VIEIRA, 1999, 26). Ao falar, no capítulo V da Crónica de Guiné, das razões por que o infante D. Henrique mandara povoar as ilhas atlânticas, referindo-se à Madeira, Zurara escreve: “Ele fez povoar no grande mar Oceano cinco ilhas, as quais ao tempo da composição deste livro [Crónica de Guiné], estavam em razoada povoação, especialmente a ilha da Madeira; e assim desta como das outras, sentiram os nossos reinos muito grandes proveitos, scilicet: de pão e açúcar; e mel e cera; e madeira e outras muitas coisas, de que não tão somente o nosso reino, mas, ainda os estranhos, houveram e hão grandes proveitos” (ZURARA, 1973, 30). Com o incremento das terras de sesmarias por regimento do infante D. Henrique, acentua Álvaro Rodrigues de Azevedo, “cresceu prodigiosamente a população” (FRUTUOSO, 2007, 471-476). Reinóis e estrangeiros não cessaram de afluir ao arquipélago: nobres e mercadores, gente dos mesteres mecânicos de Portugal e Espanha, mouros cativos e escravos das Canárias e negros africanos. No âmbito das sociabilidades próprias do tempo, a teia de afinidades consanguíneas de Portugueses “limpos, e nobres”, o cronista António Cordeiro, citando Gaspar Frutuoso, nomeia que, provenientes dos originários povoadores, havia fidalgos e nobres, “como Perestrellos, Calassas, Pinas, Vasconcellos, Mendes, Vieyras, Castros, Nunes, Pestanas” (CORDEIRO, 1981, 67), os quais “se apresentaram logo com a melhor nobreza das outras ilhas” e se tornaram alfobre de militares, magistrados e eclesiásticos (FRUTUOSO, 2007, 512-533). Coube-lhes o exercício da autoridade, da justiça, do governo e da defesa, como pediam o aumento demográfico do arquipélago e o afluxo de abordagens de navios a sulcar o Atlântico, por cabotagem, refúgio e comércio, e o crescente ataque de corsários europeus, por vezes com pilotos portugueses a guiá-los, e de piratas magrebinos. No respeitante ao espiritual, a Madeira dependia da jurisdição da Ordem de Cristo, de que, embora leigo, D. Henrique era o grão-mestre. Pertencia à prelatura eclesiástica assegurar o envio de sacerdotes, o fornecimento de alfaias e o sustento dos ministros e dos lugares de culto, existentes e a edificar. As povoações, centro das capitanias, iam sendo dotadas de vigários e, à medida que os núcleos populacionais se alargavam e tornavam consistentes, surgiam as paróquias, cujas primeiras nove apareceram entre 1430 e 1450, ao longo da orla marítima. No quotidiano, progredia a prática cristã, do batismo à sepultura, da administração dos sacramentos às missas dominicais e de dias de preceito, e às festas e devoções cristológicas, marianas e santorais, em que a alocução homilética de recorte catequético e moralista se fazia ouvir, se proferida por sacerdotes mais zelosos e capazes. Ficava, assim, grande parte da ação religiosa à responsabilidade do priorado dos freires do Convento de Tomar, como cimeira estância hierárquica jurisdicional eclesiástica, e assim se manteve até à criação da Diocese. A escravatura de negros africanos, no espaço antropológico-económico das lavras latifundiárias madeirenses, em constante aumento, a partir da intensificação dos engenhos de açúcar, viria a ser inquestionavelmente uma realidade sociorreligiosa a cuidar. Gaspar Frutuoso, em Saudades da Terra, informa: “No rol da confissão, no ano de 1552, se acharam na Cidade do Funchal entre negros e mulatos cativos, dois mil e setecentos; e depois no mesmo ano foram ter a ela quatro navios com trezentos escravos, que fizeram por todos três mil […]” (FRUTUOSO, 2007, 251). No título 10, constituição décima, das Constituições Synodaes do Bispado do Funchal, ordena-se aos párocos, curas e donatários que promovam o casamento de escravos, pois “muitos escravos e escravas se deixam comummente estar em contínuo pecado de amancebados” (Constituições Synodaes..., 1585, 60). Pode-se, no entanto, conjecturar que, para esta atividade pastoral, no grau permitido pela situação decorrente, apoios vários viessem não apenas da Ordem Franciscana, a primeira a pôr pé no arquipélago, como de clérigos metropolitanos e desembarcados das armadas em trânsito, decididos a permanecer na Ilha in perpetuum, instados ou de livre vontade. Lê-se em Memórias Seculares e Eclesiásticas que, aos franciscanos castelhanos do Porto Santo trazidos com Gonçalves Zarco para a Madeira, foram-se juntando “outros da própria nação, e Italianos, que buscando no inculto da Ilha, a ignorância das suas pessoas, faziam eternos os seus nomes, na cultivação das virtudes. Destes foi um aquele venerável Fr. Rogerio, Pregador, e Castelhano pelos anos de 1430, que depois foi fundador do Convento de S. Bernardino da Atouguia, e veio a dar a vida no exercício evangélico, em ano de 1466, nas Ilhas de Cabo Vede” (NORONHA, 1996, 231-232). Em 1449, a pedido de D. Afonso V e por ordem do provincial franciscano, foram para a metrópole, a fim de fundarem o Convento de Xabregas, dois sacerdotes: Fr. Filipe, castelhano, e Fr. Pedro de Monção, português. Acompanhada da correspondente cifra numérica de vizinhos, em que se regista um número apreciável de vilas, como Machico, Santa Cruz, Ponta do Sol, Calheta e São Vicente – imagem elucidativa do crescimento demográfico e económico, a rondar as 16.000 almas, com relevo para a vila do Funchal, que D. Manuel, em 1508, elevou a cidade e dotou de alfândega e sé catedral –, a panorâmica da distribuição de igrejas e freguesias, descrita pelo P.e António Cordeiro referente a finais do séc. XVII, por historicamente frágil que possa ser quanto à sua fidedignidade, evidencia a evolução atingida pela Madeira no dealbar da era quinhentista. Percebe-se, assim, que tenha havido consistência bastante para a mutação decisiva sofrida pelo arquipélago no religioso: a elevação a diocese em 1514, desmembrada da jurisdição eclesiástica da Ordem de Cristo, e até, com a promoção a arquidiocese, aliás de pouca dura, o facto de ter vindo a englobar outros territórios ultramarinos de soberania portuguesa. Lembre-se que a Diocese do Funchal foi criada pela bula Pro Excellenti Proeminentia, de 12 de junho de 1514, do Papa Leão X. A elevação a arquidiocese, compreendendo as Dioceses de Angra, Cabo Verde, São Tomé e Goa, pelo Papa Clemente VII, ocorreu em 1533, sendo prelado o arcebispo D. Martinho de Portugal, falecido a 1547; esta acabou por ser extinta em 1551, no pontificado de Júlio III. Para primeiro bispo do Funchal nomeou o Monarca um nobre, D. Diogo Pinheiro, pessoa de toda a confiança do Monarca e vigário dos frades tomaristas, que Leão X, apesar de ver preterido o candidato por ele mesmo proposto, confirmou. Nem este nem o sucessor, D. Martinho de Portugal, embaixador e bispo cortesão, pisaram o solo funchalense; nem ainda o carmelita D. Gaspar do Casal, confessor de D. João III e teólogo tridentino de renome, titular que foi de 1551 a 1556, e iam passadas mais de três décadas desde a criação da Diocese. E assim se gorou a expectativa de serem aplicadas no bispado as orientações recebidas do magno Concílio, a começar pelo cumprimento da obrigatoriedade das visitas pastorais e da residência do bispo na sua Diocese. No sólio episcopal funchalense, foram titulares imediatos: D. Jorge de Lemos (1556-1569) e D. Fernando de Távora (1569-1573), ambos frades da Ordem de S. Domingos. O primeiro permaneceu na Ilha durante cinco anos (1558-1563) e aplicou as determinações de Trento, procurando ajustá-las aos circunstancialismos que se ofereciam; o segundo, inquisidor geral, pregador, capelão e esmoler de D. Sebastião, talvez por medo do mar e por falta de visão, nunca foi ao Funchal, tendo o seu governo durado quatro anos. Com a presença destes bispos, seria de pensar no possível estabelecimento da Ordem de S. Domingos na Madeira, o que não aconteceu, tendo-se esvaído assim a esperança de estímulos para uma pastoral de catequese e pregação popular, como era timbre dos dominicanos, na linha tridentina do confrade D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga, cujo Catecismo, com seus esquemas homiléticos, acabaria por ter, na Ilha, assinalável difusão. Pertencendo, desde o início do povoamento do arquipélago, a jurisdição espiritual à Ordem de Cristo, principiou o infante D. Henrique, zeloso no serviço de Deus, a dar-lhe a requerida execução. Di-lo o cronista Gomes de Zurara ao escrever, em cerca de 1453, volvida que era uma trintena de anos, que o envio “lá de outras gentes” fora acompanhado do “corregimento de igreja” e clérigos que se estendeu pela “grande parte” daquela terra em “breve tempo” aproveitada (ZURARA, 1973, 347). E, como a população crescia, passou a existir, então, “em ela moradores, fora outras gentes, que aí havia, assim como mercadores, e homens e mulheres, solteiros, e mancebos, e moços e moças, que já nasceram na dita ilha, e isso mesmo clérigos e frades, e outros que vão e vêm por suas mercadorias e coisas que daquela ilha não podem escusar” (Id., Ibid., 348). Foram surgindo assim, ainda em vida do infante, nas donatarias, vilas e paróquias, a saber: Funchal, Machico, Ribeira Brava e Ponta do Sol, providas de seus vigários, curas e capelães. Cabia-lhes a celebração de missas, dominicais e festivas de obrigação, e a administração dos sacramentos do batismo, da penitência, do matrimónio e da extrema-unção; e, quanto possível, o ensino da catequese e a pregação da palavra de Deus, no momento da homilia. Sucedeu, deste modo, que o infante D. Fernando, filho adotivo do ínclito navegador, a pedido das populações, proveu de mais clérigos as circunscrições carentes. O mesmo procedimento se registou enquanto D. Manuel, duque de Beja, que sucederá no trono a D. João II, foi responsável daquele mestrado. Referem, e.g., fontes históricas que Fr. Nuno Gonçalves seria o primeiro vigário do Funchal, e Fr. João Garcia do Machico, ambos freires tomaristas, ao que se presume. Da vigaria funchalense, a partir de 1490, tomaria conta Fr. Nuno Cão, mestre em Teologia, grande letrado e sujeito de não menor virtude. Sendo deão da colegiada em 1508, continuaria a exercer a função de pároco enquanto “se não criaram os dois curas” (NORONHA, 1996, 68). Antes da elevação da Ilha a Diocese, em 1514, não descurou o vigário-geral da Ordem de Cristo de providenciar o envio de bispos à Madeira, a fim de acorrer ao necessário exercício do ministério episcopal: administração dos sacramentos do crisma e da Ordem, concomitantemente com a visita pastoral e a instrução dos fiéis. Há notícia da passagem pela Ilha de bispos de anel, titulares de dioceses já desaparecidas, e auxiliares de prelados residenciais, que iam da metrópole e de terras vizinhas. Prática continuada no tempo de D. Diogo Pinheiro, primeiro bispo do Funchal, que, em 1516, enviou D. Duarte dumiense, assim mencionado por ser titular da extinta Diocese de Dume, sita no território contíguo a Braga; e, dois anos depois, pediu o mesmo serviço pastoral a D. João Lobo, bispo de anel da prelatura de Tânger, respeitado por sua “doutrina e virtudes”, o qual, em todas as freguesias visitadas, crismou e benzeu cálices e paramentos para o culto, de forma a deixar, no regresso a Lisboa, em 1519, “as igrejas em boa ordem, e os povos com grande consolação” (Id., Ibid., 69-70). A presença do púlpito, no decorrer deste período de estruturação da cristandade madeirense, acompanha o natural ritmo da organização eclesiástica no terreno. É o caso do pregador próprio da Sé do Funchal, havendo até, em 1557, notícia de dois, para cuja remuneração existiam côngruas estabelecidas; e os das colegiadas do Machico e Ponta do Sol, também da mesma década e com idêntica base de sustento. É certo que a oratória sagrada, no quotidiano, pautava a prática religiosa litúrgica e devocional, de que as inúmeras capelas votivas e a multidão de oragos constituem relevante prova. O sermão passa a inserir-se nas ocorrências públicas, em que a ligação ao sagrado expressa, como apelo e ação de graças, a fé arreigada do cristão na intervenção do divino. De resto, os ciclos do Advento, do Natal, da Quaresma, da Páscoa e do Pentecostes, com suas preparações e prolongamentos, dão lugar a uma pregação dita ordinária, ao passo que as festas cristológicas, marianas e de santos originam uma outra, denominada extraordinária, que se estende à ocorrida a pretexto do apelo ao sobrenatural em emergências graves da vida social e da nação, ou motivada por fins preceituados pela hierarquia eclesiástica. Nada, no fundo, de que a metrópole não ofereça abundante exemplário. A ilustrar de alguma forma este último subgénero de pregação, noticiam os anais da Madeira a carta de D. Manuel, de 28 de julho de 1515, a comunicar à Câmara do Funchal que, por bula de Leão X – no intuito de se acorrer às despesas que a Coroa fazia no serviço de Deus e “exaltação de sua Santa Fé, na conquista, e Igreja de África contra os Mouros” –, eram concedidas, para tão “Santa cruzada, muitas e grandes indulgencias que nela em assim para os vivos, como finados”, e “graças, e perdões”. Para sua execução, o Monarca enviava ao Funchal o seu capelão João Vaz com o pregador licenciado Fr. Jorge de Mançoylos e ordenava que o povo da cidade se juntasse na Sé à clerezia e fossem “em procissão receber a dita Santa cruzada à borda de água” e a conduzissem à mesma Sé, a fim de “ouvirem uma pregação, que por o dito Pregador será dita” (Id., Ibid., 492). Por sua vez, em auto da edilidade, relativo a mais um milagre do padroeiro e protetor do Funchal, o apóstolo Santiago Menor, que, a 21 de janeiro de 1521, salvara já a cidade da peste de que a cada dia resultavam muitos doentes e feridos, consta que, a 2 de janeiro de 1538, tremendo “a terra muito grandemente” e sem parar até ao mês de maio, com numerosos feridos e mortes, o alívio sentido o atribuiu o vulgo à intercessão do santo protetor, indo a Câmara, o clero e o povo em solene procissão à sua igreja, onde logo pelos vereadores “foram entregues, e postos sobre o altar as varas dos guardas mores [da saúde pública]; e aí ficaram, e estão em memória”. Ato contínuo, o pregador da cidade, licenciado Fr. Vicente, na oração pronunciada, “denunciou publicamente a todo o povo a determinação dos Regedores, louvando-a muito, e a confiança que puseram em as mãos do Senhor Deus, o que muito contentou a todo o povo […]” (Id., Ibid., 495). Não faltariam, pois, com a multiplicação de novos templos e devoções, motivos para o aumento do ministério do púlpito e, ainda, de oradores sagrados a exercê-lo. Da chegada dos Jesuítas à queda de Pombal A entrada na Madeira da Companhia de Jesus, na segunda metade do séc. XVI, deu ensejo a novo salto da vida religiosa e cultural da Ilha, com acentuada incidência na oratória sacra, pois, como a bula do Papa Júlio III acentua, a congregação inaciana destinava-se a trabalhar na expansão da fé cristã através da pregação da palavra de Deus para a salvação das almas. Reconheça-se que uma casualidade a trouxe. É certo que alguns homens insignes, oriundos de terras madeirenses, tinham, anos antes, ingressado na Ordem Inaciana, por certo por influência de familiares: o P.e Luís Gonçalves da Câmara, nascido no Funchal em 1518, companheiro desde a primeira hora de S.to Inácio de Loiola, mestre e diretor de consciência de D. Sebastião, e irmão de Martim Gonçalves da Câmara, reitor da Universidade de Coimbra e escrivão da puridade do dito monarca; o P.e Leão Henriques, de Ponta do Sol e descendente de capitães-donatários da Ilha, homem da máxima confiança do cardeal D. Henrique, seu confessor e testamenteiro; o P.e Manuel Álvares, nato em 1526 na Ribeira Brava, autor da celebérrima Gramática Latina e reitor da Universidade de Évora; o P.e Sebastião de Morais, nascido no Funchal em 1534, confessor da neta de D. Manuel, a infanta D. Maria, casada com Alexandre Farnésio, duque de Parma, e eleito primeiro bispo do Japão, falecido na viagem quando para lá se dirigia. Circunstância imprevista trouxe, de facto, os Jesuítas à Madeira: a 3 de outubro de 1566, um grupo de corsários franceses atacam o Funchal e 16 dias de saque e barbárie mergulham a população no desespero. Pela narrativa de Gaspar Frutuoso – pormenorizada no descritivo sangrento e devastador, a espelhar assimilada tradição oral, aliás de si bem próxima – se dá a conhecer que, no domingo 18 de outubro, dia seguinte à festa litúrgica de S. Lucas, na missa celebrada no convento franciscano ao lado da Sé, houve um frade dominicano, companheiro de outro, de nome Martinho Tamayo, pregador da cidade, ambos bons letrados e castelhanos da nação, que pronunciou um sermão emotivo ditado pela crudelíssima tragédia ante uma assistência de fiéis que viera à missa. Tomando a afirmação de S.to Agostinho “os males que padeceram nossos pecados os mereceram”, de evidente providencialismo histórico, porquanto argumentava que as vítimas apenas haviam sofrido o que as suas culpas pediam, procurou o frade mostrar “como os pecados daquela cidade foram os que haviam trazido os luteranos a ela a fazer tal estrago de vidas e fazendas, e tais insultos e sacrilégios nos templos de Deus e coisas dedicadas ao Culto Divino; e não ficou nenhum estado [grupo social] sem particular repreensão, com grande choro de todos os circunstantes”. Acrescenta o cronista: “deteve-se o Padre muito em consolar o povo; e que muito lhe seriam prestadas aquelas lágrimas, se tivessem paciência, e melhorassem as vidas” (FRUTUOSO, 2007, 277). Fr. Tamayo, tendo embarcado no segundo ou terceiro dia após o saque num navio saído para Portugal, seria um dos que levaram a Lisboa a notícia do acontecido. Na armada de socorro, logo enviada de Lisboa, foram para a Madeira três membros da Companhia de Jesus: o padre andaluz Francisco Várea, o sacerdote viseense Francisco Gonçalves e o irmão coadjutor Simão. Movia-os o zelo da assistência espiritual aos moradores, de confortá-los na dor, de catequizá-los e levá-los a vida mais santa. O P.e Várea, castelhano, começou a pregar diariamente na Sé, enquanto o P.e Gonçalves peregrinava pelos arredores do Funchal, proferindo sermões de missão para conduzir os povos à vida honesta nos trabalhos e negócios, e à reforma dos costumes licenciosos e das superstições, e os eclesiásticos ao cumprimento das suas obrigações ministeriais. Regressados à metrópole um ano volvido, movem diligências junto de D. Sebastião para a fundação de um colégio na cidade do Funchal. Por sua vez, o jesuíta madeirense P.e Leão Henriques convence o geral, P.e Francisco de Borja, a aceitar o pedido, que em 1568 a Ordem Inaciana aprovaria. Acentuavam as missivas enviadas para Roma ser a Madeira terra onde “passam todas las naves van a las Indias, Brasil, etc.”, de “hluenos aires, mui fértil, empero muy faltas y necessitadas de doctrina spũal [espiritual], e os habitantes “no biv como son obligados”. O P.e Leão Henriques também lembrava haver “gente bastante a prover muito bem o colégio” (RODRIGUES, 1938, 41). E, na carta régia de 20 de agosto de 1569, sublinhava-se que, de sua criação, o fruto a esperar era: “modo e ordem de seu governo, zelo e vigilância na salvação das almas, boa instrução da gente e pureza da santa fé católica com sua doutrina” (CARITA, 1987, 28-29). De seguida, partiram da metrópole os fundadores: três padres, Manuel Sequeira, Pedro Quaresma e Melchior de Oliveira; dois mestres de latinidade e gramática, Vasco Baptista e Baltazar Esteves; cinco estudantes coadjutores. O início das aulas, após a inauguração solene na ermida de S. Sebastião, foi a 6 de maio de 1570, festa litúrgica de S. João ante portam latinam, ou seja S. João Evangelista, que será o orago do templo a ser erguido entretanto. O Colégio recebeu logo visita dos frades franciscanos residentes num convento vizinho, o que foi entendido como sinal de bom augúrio. As relações com os Franciscanos vieram, contudo, a sofrer desagradável desentendimento, pois os frades seráficos, a seguir, hostilizaram os Jesuítas em público, nas igrejas e nos púlpitos, enquanto estes, por seu lado, como se lê num manuscrito portuense inaciano setecentista, “não se dando por sentidos ou afrontados de seus discursos, principiaram também a dali em diante em seus sermões e exortações aos fiéis, a incentivarem que socorressem com as suas esmolas os religiosos de S. Francisco, encarecendo e louvando com os maiores encómios as suas extremadas e observantes pobrezas”. Ao reconhecerem, porém, estes “quanto errados estavam em seus discursos”, passaram a venerar “a caridade dos da Companhia”, e a paz voltou (Id., Ibid., 35-36). Por esse tempo, os padres inacianos, que desde o desembarque no Funchal estendiam as pregações aos “largos mais concorridos”, receberam, em 1570, inesperada, embora passageira, ajuda de cerca de um mês, quando aportaram à cidade os 40 confrades que, conduzidos pelo P.e Inácio de Azevedo, indo na armada de D. Luís de Vasconcelos, se dirigiam à missionação do Brasil, e na cidade prestaram intenso serviço em atos de culto e pregações (Id., Ibid., 36). Tendo saído da Madeira, foi a nau que os transportava apresada pelo corsário francês calvinista Jacques Sória, que chacinou o P.e Inácio de Azevedo e os seus companheiros, ficando estes a ser lembrados como os 40 mártires do Brasil. Para sustentação do Colégio, foi-lhe entregue pela Coroa, em 1569, a soma de 350 mil reis de dízimos da Ribeira Brava e 250 mil da Alfândega do Funchal, empenhando-se os Jesuítas na formação académica do clero diocesano. Em 1577, a cadeira de Casos de Consciência, que três anos antes tinha a frequentá-la 30 alunos, foi entregue ao P.e Pedro de Mascarenhas, de 35 anos e irmão de D. João de Mascarenhas, da melhor nobreza do reino, casado com Aldonça Mendes, filha do capitão-donatário D. Simão Gonçalves da Câmara, conde da Calheta, vila em que os Jesuítas, a pregar pela Ilha, e desde abril em Ponta do Sol, foram mandados exercer, alguns anos depois, o mesmo ministério. Entretanto, vencidas dificuldades económicas em 1586 e ultrapassadas certas oposições à Companhia de Jesus em 1594, encabeçadas, na corte espanhola, em período de domínio filipino, pelo capelão-mor e bispo de Viseu, presidente do Conselho de Portugal em Madrid, procedeu-se às fundações do novo edifício do Colégio em 1599, abrindo o pátio das escolas em 1619 e a monumental igreja de S. João Evangelista 10 anos decorridos. Foram estas realidades com que justamente a Madeira se regozijou nas derradeiras décadas de Seiscentos. Daí resultou: o ensino e a educação da juventude; a docência de Latim, Retórica, Teologia Moral e Casos de Consciência, tão necessários para os ministérios sacerdotais exercidos na cidade do Funchal, vilas dos arredores e zonas rurais do interior; a prática das obras de caridade; a presença crescente de alunos, desde início em média de 200, e de sacerdotes nas aulas de casos de consciência, preparação valiosa para a confissão; o afluxo quotidiano aos sacramentos da penitência e eucaristia, aos sermões e às pregações frequentes dos padres Manuel Sequeira e Fernão Guerreiro (1550-1617), escutados com sumo proveito. Ocorreu a entrada dos Jesuítas durante o governo do dominicano D. Fr. Jorge de Lemos (1556-1569), que, desde 1563, se encontrava na metrópole e seis anos depois resignava, embora em 1573 ainda vivesse. Sucedeu-lhe, em 1569, o confrade e irmão do bispo de Cochim, D. Fr. Fernando de Távora, os dois pertencentes ao grupo de cinco mitrados escolhidos por D. João III para as dioceses ultramarinas. Não estando, pois, na Madeira, que rondaria pelas 20.000 almas, quando os Inacianos desembarcaram, encontrava-se a Diocese administrada, como era de norma, por um vigário capitular, até porque o Funchal dispunha de cabido com deão e cónegos em exercício. Face a este contexto histórico, percebe-se a provável interferência da Companhia de Jesus na nomeação de D. Jerónimo Barreto (1573-1585), sagrado com 29 anos, abaixo dos 30, idade pelo Concílio de Trento fixada como mínima. O eleito, irmão do jesuíta D. João Nunes Barreto, patriarca da Etiópia, era assaz abonado por suas qualidades morais e capacidades intelectuais, sustentadas pelo bacharelato conimbricense em Cânones e Teologia. Contaria, ainda, com o empenho do inaciano P.e Luís Gonçalves da Câmara, confessor e mestre de D. Sebastião, e de seu irmão Martim, escrivão da puridade do monarca. Deve-se a D. Jerónimo Barreto a publicação das Constituições Synodaes saídas do sínodo que convocou a 18 de outubro de 1578, apresentando-as como justas e necessárias por toda a clerezia, “por as que havia no Bispado serem antigas e muito breves”, datadas do governo do arcebispo D. Martinho de Portugal. As então promulgadas foram-no “conforme a variedade e mudança dos tempos”, segundo o deliberado no “sagrado Concílio tridentino, e o Concílio Provincial de Lisboa”, metrópole de que a Diocese do Funchal era sufragânea. Continham “muitas coisas que convinha ser declaradas por constituições”, por fim só em 1585 publicadas. Tornava-se efetivamente imperioso serem conhecidas e postas em prática, pois, escreve o prelado, o exigem “o serviço de Deus, instrução dos sacerdotes, e ministros do culto divino, e da justiça, doutrina de nossos súbditos, reformação de seus costumes, e bens das igrejas do Bispado” (Constituições Synodaes..., 1585). A impressão deixada pela leitura total dos 30 títulos destas Constituições é não se diferenciarem das coevas de outras dioceses, inclusive quanto ao que cabe aos curas dizerem aos fiéis na estação das missas de domingo e dias de preceito (tít. 12, const. IV) e à obrigação de só admitirem sacerdotes a pregar em suas igrejas se aprovados pelo prelado (tít. 23, const. II). O sucessor, D. Luís de Figueiredo de Lemos (1585-1608), que fora provisor da Diocese de Angra no governo do bispo D. Pedro de Castilho (1578-1583), teve o mérito, como prelado zeloso, de aplicar os decretos do Concílio de Trento e das Constituições aprovadas no sínodo convocado por D. Jerónimo Barreto, e por si dadas ao prelo. Tendo, porém, reunido um novo sínodo, a 29 de junho de 1597, na Sé do Funchal, entre as “muitas e graves ocupações” resultantes das visitas pastorais à Diocese, decidiu “prover com estatutos necessários ao bom governo, e bem das almas”, reduzindo-os a umas breves constituições, a que chamou Extravagantes, impressas com prólogo de 15 de agosto do mesmo ano, mas apenas em 1601. Dos 20 títulos estatuídos ressaltam: o XVI, que trata dos ouvidores de sua jurisdição, que inclui o de Arguim, na costa africana; e o XIX, que recomenda aos escrivães dos ouvidores que se conformem “com escrivães seculares, e estilo do Auditório”, o que denota a preocupação de evitar confrontos com a autoridade civil e de subordinação ao poder político (Constituições Extravagantes..., 1601, 34-37 e 40-42). Nos fins do séc. XVI, a Madeira, musculada social e eclesiasticamente, teve de enfrentar duas vicissitudes políticas de crucial importância para o reino de Portugal: o domínio filipino e a Restauração de 1640, podendo-se sentir, nas duas circunstâncias, a relevante intervenção da oratória sacra. Do que é possível conhecer e induzir, ao contrário da reação patriótica de parte relevante do clero religioso e secular das ilhas açorianas, onde houve heroica resistência ao poder castelhano, no Funchal, D. Jerónimo Barreto aceitou a legitimidade de Filipe II à Coroa portuguesa, como aliás fizera em Angra o bispo D. Pedro de Castilho, aquando das incursões patrióticas dos partidários e das forças navais do Prior do Crato, ambos, de resto, compensados: o primeiro com a transferência, em 1585, para a Diocese de Faro, e o segundo para a de Leiria (1578-1604/1605) e com a nomeação para inquisidor-geral. Atitude diferente não se notou, ainda, em D. Luís de Figueiredo Lemos, que, estando ao serviço do bispado angrense, fora criatura de D. Pedro de Castilho. Por sua vez, o bispo D. Lourenço de Távora (1610-1617) – frade capucho, mestre de Teologia no Colégio Universitário de Coimbra, e sobrinho por via materna do vice-Rei Cristóvão de Moura, e ao tempo à frente da Diocese do Funchal – veio a ser, simultaneamente, governador militar da Ilha em 1614, sinal revelador da confiança que merecia à administração filipina. Três anos depois, foi nomeado para Elvas, em óbvia promoção pelos serviços pastorais prestados e pelo cumprimento do que dele se esperava, em conformidade com a política castelhana, sem esquecer a predominância do clã dos Herédias, esteio dos ocupantes castelhanos. Seguiu-se o longo episcopado de D. Jerónimo Fernando (1619-1650), que se recolheu à metrópole em 1641, período em que se revelou o maior orador sacro madeirense do tempo o franciscano Fr. Gregório Baptista, nascido no Funchal em fins do séc. XVI, de vida errante, até religiosa, tendo desaparecido na Catalunha na época das guerras defensivas restauracionistas. No chão da Madeira, pregou na Ponta do Sol e deixou, impressos em 1629, três tomos de sermões sobre as domingas de todo o ano, alguns, por certo, pronunciados em terras da Ilha que lhe fora berço. Durante o bispado de D. Jerónimo Fernando, o Colégio dos Jesuítas do Funchal promoveu soleníssimas festas, com procissões, representações teatrais e, por certo, sermões, por ocasião da canonização de S. Francisco Xavier, o apóstolo do Oriente, e de S.to Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, ocorrida a 12 de março de 1622, não se conhecendo, porém, os pregadores que os terão proferido. No dia 25 de julho de 1632, festa de Santiago Maior, padroeiro do Funchal, foi consagrado o seu templo com missa solene e procissão, tendo a participação da Câmara, do bispo e do governador, havendo pregações oito dias antes e depois. Nesse dia, houve pregação pelo comissário da Ordem Franciscana, Fr. Diogo da Transfiguração, sendo que, no oitavário a seguir feito, houve em cada dia pregação, a saber: no primeiro, pregou o jesuíta P.e Baltazar Saraiva; no segundo, o franciscano Fr. António de Pádua; no terceiro, o jesuíta P.e Manuel da Costa; no quarto, o franciscano Fr. Luis da Encarnação; no quinto, o licenciado P.e Francisco Rabelo, vigário da Ponta do Sol; no sexto, o capelão da igreja de Santiago; e, no domingo seguinte, o jesuíta P.e João de Távora, reitor do Colégio da Companhia de Jesus. Do Funchal era também o presbítero secular Francisco de Castro, mestre em Artes e doutor em Teologia pela Universidade de Évora, que se entregava ao ministério da pregação. De entre os sermões proferidos, só dois se conhecem publicados e ambos em La Rochelle, em França: o da Conceição de Nossa Senhora, em 1653, na igreja da colegiada de S. Pedro da cidade funchalense, a cujo grémio pertencia, por ocasião da missa nova do P.e Matias Aguiar de Menezes, em que, segundo acontecia na parenética patriótica do período aclamatório, deu enfático recorte ao milagre de Ourique na sua dimensão de promessa messiânica do Quinto Império a cumprir por rei português – e D. João IV era Rei, na altura; o da Visitação de Nossa Senhora, em 2 de julho de 1655, data carismática da descoberta da Madeira, na igreja da Casa da Misericórdia. O pregador, no entanto, parece não haver gozado de longa vida, pois faleceu de lepra em Cabo Verde, para onde se teria dirigido em busca de cura. Mais três oradores sacros madeirenses viveram na época da Restauração, até finais do séc. XVII. António Veloso de Lira, natural da Calheta, em 1616, mestre em Humanidades pelo Colégio funchalense dos Jesuítas, que frequentou, e estudante de doutoramento em Teologia, na Universidade de Salamanca, que abandonou mal proclamada a aclamação de 1640, escreveu um importante e curioso panfleto patriótico, Espelho de Lusitanos em o Cristal do Salmo XLIII, editado em Lisboa, no ano de 1643; e, se não deixou impresso qualquer sermão, refere em tom encomiástico, nessa obra, a parénese aclamatória da conjuntura, sendo em 1670 cónego da Sé do Funchal, em cuja cidade, a 4 de janeiro de 1691, faleceu. Nascido no começo do séc. XVII, o Cón. Pedro Correia Barbosa, que exerceu o cargo de vigário-geral e governador do bispado da Madeira, publicou, na oficina lisboeta de Pedro Crasbeeck, entre vários outros, o sermão panegírico de Santo António, pregado na Sé do Funchal, a 13 de junho de 1697, a fechar o oitavário celebrado em honra do grande taumaturgo, de quem era fervoroso devoto. Reconhecida a independência de Portugal, recuperada pela Restauração de 1640, e reatadas as relações diplomáticas com a Santa Sé, em 1670, passou esta a aceitar os bispos nomeados pela Coroa portuguesa, encontrando-se entre as sedes vacantes a do Funchal. O eleito, confirmado em 1671, foi um cisterciense do mosteiro de Alcobaça, D. Gabriel de Almeida, mestre em Artes e doutor em Teologia, lente de Sagrada Escritura na Universidade de Coimbra, capelão de D. Luísa de Gusmão, pregador ao tempo de reconhecida fama, com sermões impressos, um dos quais foi pronunciado em 1649, nas exéquias celebradas em sufrágio do malogrado infante D. Duarte, irmão de D. João IV. Com a duração de um triénio, a finalizar em 1674, foi algo turbulento o seu governo na Diocese, em cuja Sé catedral se encontra sepultado e onde proferiu as paréneses que do seu ministério se esperaria. Ao séc. XVIII, natural do Funchal, em 1697, pertence o franciscano Fr. Manuel Rodrigues que, ainda com 15 anos, embarcou para o Brasil, a fim de se incorporar no regimento de seu tio, o Cap. Manuel Neto Barreto, embora logo em 1715 se alistasse no do mestre de campo Manuel de Almeida Castêlo e seguisse rumo à colónia do Sacramento, em alturas do diferendo entre o Governo de Lisboa e o de Madrid. Sentindo vocação religiosa, entrou em 1719 na Ordem de S. Francisco, no Convento argentino de Córdova, em que se formou, mas veio a acabar a vida, assaz tormentosa, em Lisboa, onde se entregou ao ministério da pregação com geral agrado. Há, no elenco de seus sermões dados ao prelo entre 1732 e 1757, um na festividade do Coração de Jesus, culto ao tempo em rápida difusão, e dois referentes à pessoa de D. João V: o das melhoras pela sua saúde, na altura da grave enfermidade que sofreu em 1742, e o do seu funeral ocorrido em 1750, a enfileirar entre os panegíricos lutuosos da decadência do barroco. No longo bispado de D. José de Sousa Castelo Branco (1698-1721), teólogo e inquisidor, lembrado em seu zelo de pastor nas visitações às paróquias da Diocese, há referências a pregadores franciscanos como Fr. António do Sacramento, Fr. Pedro da Encarnação e Fr. João do Deserto, os quais, a partir de seu convento, atuavam em toda a Ilha. De assinalar será o comportamento do bispo jacobeu D. Frei Manuel Coutinho (1725-1741), de quem a Câmara do Funchal delatava a D. João V escandalizar-se com os pregadores que espalhavam “doutrinas comuns”, isto é, moralmente laxistas. Escrupuloso, no seguidismo da orientação do movimento sigilista, inquietava-se com o teor de semelhantes pregações que divergiam das por ele proferidas em “todas as freguesias” em que pregava “repetidas vezes, e muitas também na catedral, não tantas como devia e queria, porque o impediam as suas contínuas enfermidades” (TRINDADE, 2012, 308). Os desregramentos morais de vários géneros que afligiam o rigoroso prelado corriam a par da profunda ignorância religiosa experimentada pelas ovelhas. Daí revelar o seu zelo a atenção que dava ao anúncio da palavra de Deus nas visitas à Diocese, como em fonte histórica coeva se regista: “uma ou mais práticas ao povo, para o que regularmente vão outros sacerdotes regulares, ou seculares, fora dos oficiais da visita, antes ou depois dela e as vezes com a mesma visita, máxime quando o prelado visitava: os mesmos visitadores suprem muito bem esta falta, se em alguma ocasião a tem havido” (Id., Ibid., 309). Por isso, no relatório aquando da visita ad sacra limina de 1735, entregue em Roma, testemunhava: “segundo as minhas forças, […] a pregação da palavra de Deus frequentemente se realiza, tanto na Catedral como nas povoações suburbanas e do campo, nas quais eu exerço este múnus e os próprios párocos e outros presbíteros louvavelmente desempenham” (Id., Ibid.). Assim aconteceu quando, com alguma demora na passagem pela Madeira, Fr. Luis Reis, dominicano das Canárias, e seus companheiros foram aproveitados para tais fins pelo prelado, que, além do convite a outros sacerdotes que reconhecia hábeis no ministério do púlpito, recorria a membros da sua Ordem Seráfica, a fim de pregarem missões. Ao anuírem, como se deu nos anos de 1735 e seguinte, quatro franciscanos fizeram “uma boa e proveitosa missão em toda a Ilha”. O mesmo sucedeu, em 1737, com os Capuchos da província da Piedade, Fr. João da Palmeira e Fr. Luís Chaves, salvos providencialmente de um naufrágio, ao regressarem de Cabo Verde, os quais, desembarcados na Madeira, a rogo do bispo, se entregaram a esse labor com proveito para tantas almas carentes de sã doutrina. E nunca, de resto, D. Fr. Manuel Coutinho deixava de se esforçar por levar missionários “de fora”, nem sempre, aliás, com êxito (Id., Ibid., 310-312). Ao rastrearem-se as contas de confrarias madeirenses, referentes a pagamentos de sermões festivos durante o governo deste prelado, aparecem os nomes dos cónegos João Rodrigues Oliva, pregador na festa da invocação de N.ª Sr.a do Bom Despacho da freguesia da Sé em 1736 e 1737, e Silvestre Lopes Barreto, que lhe sucedeu em 1738, do Dr. Fr. Manuel Marques, em 1739 e 1741, bem como o P.e João da Silva Seixas, em 1740, e do Dr. António Francisco Bettencourt, convidado no mesmo ano. De assinalar que o dito religioso Manuel Marques, ao incorrer no desagrado de D. Fr. Manuel Coutinho, por motivo do teor de suas pregações, foi por ele suspenso e mantido encarcerado em dependência da Sé Catedral. Pressionou também o superior franciscano de Fr. José de Santo António a penitenciá-lo “com açoites” e retirar-lhe a faculdade de confessar e pregar, sob a acusação, conforme queixa enviada para a corte portuguesa pelo Senado da Câmara funchalense, de haver reproduzido um sermão, há mais de duas décadas pronunciado, em que o bispo se sentira provocado (Id., Ibid., 310). Esta orientação pastoral seria mantida pelo prelado sucessor, D. Fr. João do Nascimento (1743-1751), formado em Cânones por Coimbra, mas franciscano do Convento do Varatojo, caldeado por essa pregação missionária em “muita parte do reino”, antes da sua nomeação episcopal (NORONHA, 1996, 124-128). Referência obrigatória importa fazer às pregações ocorridas por ocasião do terramoto de 1748, no início da madrugada de 31 de março. Os abalos na altura sentidos afetaram “igrejas, vilas, lugares, campos e casas particulares” do Funchal, tendo provocado crudelíssimas mortes em consequência de tamanha destruição. Às explicações naturais aventadas, seguiu-se a publicação de “preces” na Sé, gravemente atingida (FRUTUOSO, 2007, 697). A onda de preces e “rogativas” estendeu-se às comunidades religiosas e colegiadas da cidade, realizando-se uma procissão de penitência em que o bispo, D. Fr. José de Santo António, acompanhou, debaixo do pálio, “a imagem milagrosa do Senhor Crucificado” do Convento de S. Francisco, “e em todas as estações fizeram os Religiosos algumas exortatórias, e doutrinais; recolhida ao mesmo convento, pregou com a sua costumada elegância, o M.R.P. Definidor Fr. Manoel da estrela; e foram tantas as lágrimas, e os suspiros, que chegou o silêncio das vozes a ser o maior panegirista da fatalidade” (Id., Ibid., 699-700). Outro cortejo penitencial saiu, na noite de 5 de abril, com a imagem do Senhor dos Passos da igreja colegiada de Santa Maria do Calhau, que percorreu as estações da Via-Sacra espalhadas pelas ruas, em todas cantando os “melhores músicos da Ilha, tristes e devotos motetes”. À chegada do piedoso préstito, o Cón. António de Freitas e Sousa pronunciou um sermão, no “qual não só incitou as lágrimas, mas comoveu a muitos para novas penitências” (Id., Ibid., 700). Houve, no dia seguinte, outra procissão com o mesmo fim, promovida pelos religiosos do Hospício de N.ª Sr.ª do Carmo, levando a imagem do Senhor dos Passos, e “em todas partes públicas iam pregando, e encarecendo o temor, que deviam todos ter da Divina Justiça, e que aquele castigo fora por causa das culpas dos habitantes daquela Cidade”. Ao recolher, pregou Fr. Bartolomeu do Pilar, comissário da Ordem Terceira do Carmo e orador sacro de reconhecida “autoridade e ciência”. Por fim, a 9 do mês, na presença do prelado, do cabido, do Senado da Câmara e de grande multidão de gente, no púlpito da Sé, o jesuíta P.e José de Figueiredo, “varão de letras e virtudes”, tomando por tema o versículo do cap. 5 da epístola de S. Tiago “Plorate pro miseriis, quae advenient vobis” (“Chorai pelas desgraças que cairão sobre vós”), pronunciou um sermão de tamanha eficácia que, conforme se lê numa relação coeva, datada de 17 de abril, “muitos, que havia anos se não aproximavam do Sacramento da Eucaristia, depostas as culpas, confessados os erros principiaram a fazer nova vida”. De resto, celebrações pias, motivadas pela catástrofe considerada sinal punitivo da cólera divina, tiveram lugar por toda a Ilha, a fim de apiedar a Providência e esperar dela “remédio para as enfermidades da alma” (Id., Ibid., 701). Na onda da jesuitofobia acerada, a que a Madeira não se furtou, a expulsão da Companhia de Jesus desencadeada sob a égide do marquês de Pombal, a terminar com a sua expulsão em 1759, repercutiu-se assaz e negativamente sobretudo no ensino e na vida religiosa, em especial, na pregação e na missionação ultramarina. A este propósito, não passe sem menção o comportamento do bispo do Funchal, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, eleito em 1756 e falecido em 1783, que passava por dever a mitra, em particular, ao P.e José Moreira, confessor jesuíta que fora de D. José, e aos Inacianos em geral, e ao duque de Aveiro a posição de que na Ilha gozava. Temendo parecer conivente na aprovação do atentado ao Monarca, mesmo antes da receção da carta régia a ordenar o banimento dos Jesuítas, proibiu aos padres que dirigiam o colégio da cidade o exercício dos ministérios sagrados. Deliberação que se apressou a reiterar num edital mandado afixar às portas das igrejas. E, embora reconhecesse junto dos Franciscanos do Convento da cidade que tais medidas eram contrárias à assistência religiosa do povo, pois até concordava serem os Inacianos madeirenses “muito diligentes e úteis”, persistiu em suspender-lhes a licença de confessarem e pregarem, considerando-os “autores de erros ímpios”, no que se mostrava de um grande servilismo ao marquês de Pombal na acusação feita e repetida pelos “mentores” das conjuras urdidas contra a Companhia de Jesus no burgo funchalense. Chegou o prelado a ultrapassar mesmo o natural decoro, ao assistir e aplaudir uma comédia “nojenta”, cujo tema era o suplício dos Távoras, com destaque para a idosa marquesa, o jesuíta P.e Malagrida e seus irmãos de religião (MARQUES, 2013, 367). A culminar o controverso consulado pombalino, as autoridades madeirenses engrossaram o movimento, encabeçado pela metrópole, de ação de graças à Providência, por o marquês de Pombal haver saído ileso de um suposto atentado contra a sua vida, por altura da inauguração do majestoso monumento do Rei D. José, na Pç. do Comércio, ocorrida a 5 de junho de 1775, trama assassina atribuída ao quase desconhecido forasteiro genovês José Baptista Pele, que, logo perseguido e preso, acabou barbaramente executado após sumário processo. Na igreja de S. João Evangelista do Funchal, a 20 de janeiro de 1776, na cerimónia religiosa gratulatória, a propósito celebrada, pregou Fr. Inácio José de Verona, carmelita descalço. Escassa é a informação disponível acerca deste religioso, por certo com estreitas ligações ao representante pombalino na Madeira que o escolheu para a celebração, talvez com reservada intenção, na antiga igreja do Colégio dos Jesuítas, os quais, em 1760, haviam sido proscritos da Madeira. O texto do sermão, no mesmo ano publicado, foi pelo autor oferecido ao Cap.-Gen. João António de Sá Pereira, sobrinho do todo-poderoso ministro e presidente da Real Junta da Fazenda da Madeira (1767-1777), considerado por sua ação reformadora na Ilha o “Pombal madeirense”. Pode, pois, ler-se no rosto do sermão: “Oração na ação de graças, que a Real Junta da Fazenda da Ilha da Madeira fez celebrar pela prodigiosa conservação da muito necessária vida do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Marquês de Pombal Sebastião de Carvalho e Melo na Igreja de S. João Evangelista da cidade do Funchal em 20 de janeiro, dirigida pelo seu presidente o Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor João António de Sá Pereira” (Do Conselho de Sua Magestade Fidelissima, 1776). A contrastar com a censurável atitude face aos Jesuítas, D. Gaspar Brandão, que chegara ao Funchal a 5 de agosto de 1757, passa por ter sido um prelado zeloso na pastoreação da Diocese. Levou consigo da metrópole dois padres lazaristas, Alasia e Reis, que durante 10 anos o ajudaram na reforma da disciplina de conventos de frades e freiras e do clero diocesano, e na morigeração dos costumes através das missões evangélicas pregadas ao povo, assinaladas nas cruzes erguidas nos adros de algumas paróquias ilhenses. Do liberalismo ao regicídio O reinado de D. Maria I e o férreo Governo do intendente Pina Manique assistiram impotentes ao desencadeamento da atividade maçónica, de que D. José da Costa Torres, doutor em Cânones e professor da Universidade de Coimbra, eleito bispo do Funchal em 1784, sofreu rude embate, a que frontalmente respondia. Não se mostrava o clero alheio ao envolvimento das lojas maçónicas. No cabido funchalense, o próprio deão Francisco Lopes Rocha não escondia ligações comprometedoras com os pedreiros-livres, como a proteção concedida a um ex-seminarista, Francisco Álvares da Nóbrega, natural de Machico, poeta árcade na gíria conhecido por “Camões Pequeno” que se suicidou aos 34 anos, não sem dedicar um soneto satírico à saída do bispo da Ilha, aquando da sua nomeação, em 1796, para a Sé de Elvas, em que o trata por “flagelo tenaz da humana gente,/ Mais terríbil que fome, guerra e peste. […] Esse aborto da torpe hipocrisia” (BORGES, 1987, 305-306 e 310). À semelhança do que sucedia no continente, não ficavam indiferentes os púlpitos aos ataques feitos contra a religião católica, e os seus representantes acabaram por repetir o que pelos impressos circulava. Passadas as invasões francesas, de nefastas consequências, ao falar delas não ficava o clero pelas menções que se limitassem apenas às mortes e à destruição de bens, embora tudo isso fosse bem trágico e pavoroso: a ideologia maçónica era veneno satírico. Por sua vez, o miguelismo, baluarte de ideários integristas, porfiando luta sem tréguas à Constituição de 1820 e à Carta Constitucional, também travou na Madeira dura batalha, arrastando o clero e o púlpito. Tudo acabara por ser mais uma das sequelas do período de sede vacante da Diocese do Funchal, após a morte do bispo D. Luís Rodrigues Vilares (1796-1811), por recusa do cabido em aceitar para vigário-geral, nomeado em 1811, o bispo de Meliapor D. Fr. Joaquim Meneses de Ataíde, natural do Porto e religioso da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, que a Coroa sustentava. A situação manteve-se até 1820, altura em que D. Joaquim de Ataíde foi nomeado para Elvas, com o resultado à vista, como as pastorais que o prelado publicou, nos anos de 1811 e 1812, documentam. Em 1821, chegou à Madeira o novo bispo, D. Francisco José Rodrigues de Andrade, que teve de se haver com as perturbações e os alinhamentos vindos de eclesiásticos, como o Cón. Pedro Paulo de Abreu e Mota, fiéis a D. Miguel, proclamado em 1828 Rei absoluto. Outros, ao enfrentá-los em radical oposição, com o apoio do governador e futuro conde Bomfim, José Lúcio Travassos Valdez, criaram-lhe uma situação desconfortável que se arrastou até ao triunfo da fação liberal de D. Pedro IV, levando-o, desgostoso e cansado, a emigrar para Génova, em 1835, onde faleceu decorridos três anos de exílio. Pressionado pela delicada situação, naqueles agitadíssimos tempos, fez sair na Madeira ora pastorais verberando em severíssimos termos os eclesiásticos que se tinham manifestado por D. Miguel, ora outra de teor contrário. Entretanto, nos púlpitos, à imagem da metrópole, a controvérsia arrastava-se encarniçada. Se o bispo D. Lourenço de Távora alertava em 1615 para a fé infecionada dos estrangeiros desembarcados na Madeira, o capelão anglicano inglês John Ovington, que conhecia o meio religioso e social da Ilha e por lá passara em 1689, emitia um juízo excessivamente não lisonjeiro sobre os Jesuítas do Colégio do Funchal e os cónegos da Sé, de medíocre nível intelectual. A invasão inglesa do início do séc. XIX, a título de proteção e defesa, mais justificada e militarmente consistente ao voltarem os britânicos em 1807, vigorou até 1814, ocupando para quartel das guarnições o edifício do antigo Colégio jesuítico de S. João Evangelista, onde estava instalado o Seminário, transferido para o pequeno mosteiro novo, e o Convento da Encarnação das Clarissas, que os invasores desalojaram, indiferentes aos protestos levantados. O contingente não chegava a 1500 homens, sendo veemente a discordância do ilustrado vigário capitular D. Joaquim de Ataíde, em carta dirigida à Rainha, então no Rio de Janeiro, a denunciar e a lamentar a usurpação pelo comando inglês, escrevendo ser inaceitável que “um pequeno número de tropa ocupe os mesmos lugares em que se acomodavam muitos milhares de homens” (CARITA, 1987, 243). Acrescia, ainda, a falta que desta forma ficava a haver de “uma casa de educação para aqueles que se não destinam à vida eclesiástica”, carecendo a Ilha sobremaneira de instituições para a mocidade, razão por que os pais “ou mandam seus filhos a Londres, ou ficam sem instrução alguma, sendo aliás esta terra muito fértil em talentos” (Id., Ibid., 243). Contudo, o que fez crescer o repúdio de eclesiásticos e da população, bem notório em 1812, falando-se abertamente de “profanação”, foi a celebração do culto anglicano nas igrejas católicas da Ilha, com saliência para a igreja do Colégio e a pequena capela do Convento da Encarnação (Id., Ibid., 245-246). A resiliência continuava, porém, latente, quando chegou ao arquipélago, em 1839, o médico escocês Robert Reid Kalley (1809-1888), habilitado teólogo protestante, que se tornou o continuador de uma evangelização de resultados promissores. Eleito em 1842 conselheiro-presbítero da comunidade funchalense da Igreja Escocesa, existente desde 1822, fervia em zelo de atrair ao redil protestante os naturais madeirenses, na esteira do que em Portugal se verificava: Helena Boughton, em Lisboa; George Robinson, em Portalegre; Diogo Cassels, em Vila Nova de Gaia – secundados pelo labor dos colportores na difusão de exemplares da Bíblia que a Sociedade Bíblica de Londres espalhava sem custos pelo país inteiro. Chocado com o quadro de pobreza, precárias condições de higiene, analfabetismo e prática religiosa rude e rotineira, que na Madeira encontrou, o cirurgião Kalley aprende português e, autorizado a exercer medicina, desenvolve uma atividade social, em particular junto dos mais carentes, despida de intuitos lucrativos. Recebido o sacerdócio, complementa esta ação benemerente com o ministério de pastor. Ao tempo, a Diocese do Funchal encontrava-se sem bispo católico residente, D. Francisco José Rodrigues de Andrade (1821-1833), que, por miguelista, o regime liberal afastara, tendo sido governada durante 10 anos por um vigário capitular. De notar que, abolida a escravatura e estagnado o preço do vinho, o Novo Mundo abrira à emigração do povo da Madeira destinos económicos atraentes. No entanto, a ação filantrópica e o combate ao analfabetismo de Robert Kalley mereciam da edilidade público encómio. Crescia, porém, a animosidade do clero católico, que, desde 1844, conta com um novo prelado na pessoa de D. José Xavier de Cerveira e Sousa, mas apenas por um lustro, sendo as comunidades protestantes vítimas de perseguição. Alguns fiéis evangelistas chegam a sofrer lamentáveis violências e, à saída da missa dominical de 9 de outubro, na porta da Sé do Funchal, são queimados, como em auto de fé, exemplares da edição protestante da Bíblia, enquanto outros passam a ser escondidos nas cinzas das lareiras, fazendo-se também reuniões de culto em locais clandestinos. Durante duas semanas de graves turbulências, escreveu François Guichard, verificam-se brutalidades várias, destruições, julgamentos sumários, prisões e excomunhões, ante a colaboração forçada e a passividade das autoridades locais. As perseguições de exaltados católicos madeirenses concorreram para levar perto de um milhar de ilhéus a refugiar-se no Brasil – onde Kalley, que residiu no Rio de Janeiro desde 1855 até 1872, funda a Igreja Reformada Fluminense – e nos Estados Unidos, onde organizam, no Illinois e na ilha da Trindade, comunidades presbiterianas. A 30 de outubro de 1846, o bispo do Funchal publica uma pastoral em que pede às suas ovelhas que agradeçam ao Senhor tê-las libertado da heresia, sem que, no entanto, toda a sementeira houvesse sido arrancada. As plantações das Antilhas, as Baamas, a ilha Trindade, os Estados Unidos, o Brasil e outras regiões acolheram muitos prosélitos protestantes – calcula-se que perto de um milhar – mercê desta diáspora social e religiosa. Kalley e o pastor Hewilson, que fora para a Madeira a fim de organizar os núcleos já enraizados, tiveram de abandonar os seus portos e deixar a Ilha. O fim do Antigo Regime, com a difusão no espaço político-cultural do ideário da Revolução Francesa e o choque traumático das invasões napoleónicas, ambos de profundas interferências no conservadorismo católico, acabou por extremar, estimulado pelo ativismo das lojas maçónicas, as posições integristas e liberais, as polémicas doutrinárias e a resistência às mudanças constitucionais, a que as ilhas adjacentes não conseguiram furtar-se. Na Madeira, o clero foi arrastado pelo divisionismo corrente para confrontos, por vezes, virulentos em demasia. O púlpito, a literatura panfletária e o periodismo ideológico eram armas com que as forças se digladiavam. Note-se que durante o séc. XIX ocorreram, no país e na cristandade, eventos de grande relevância: a Patuleia, o fontismo, a questão romana no prontificado de Pio IX, o Concílio Vaticano I, a proclamação dos dogmas da Imaculada Conceição e da infabilidade do Papa, o ultimato e o regicídio. Assuntos que mereciam no púlpito comentários e juízos, desenvolvimentos de natureza teológica, moralizante e patriótica. A parenética apresenta, ainda, um elenco substancioso de pregadores, alguns simultaneamente oradores parlamentares e jornalistas empenhados, autores de sermões impressos e outra obra literária, que importará mencionar, ainda que apenas em referências nominais, e isso mesmo sujeito a omissões involuntárias. Abre o elenco o Cón. João Francisco Lopes da Rosa (1747-1820), doutor em Teologia pela Universidade de Coimbra, político ligado à maçonaria, governador do bispado do Funchal na época conturbada de D. Joaquim de Ataíde, de quem foi opositor militante; sendo os restantes: P.e João Crisóstomo Spínola de Macedo (m. 1828), fundador da folha Pregador Imparcial da Verdade, da Justiça e da Lei (1823), o segundo periódico aparecido na Madeira, controversista truculento e semeador de discórdia, que acabou por partir para Gibraltar como deportado político; Cón. Gregório Nazianzeno Medina e Vasconcelos (1787-1858), irmão do poeta Francisco de Paula Medina e Vasconcelos, deputado, escritor, advogado, mas, sobretudo, orador e jornalista talentoso; P.e Jerónimo Álvares da Silva Pinheiro (1770-1861), natural da Calheta e vigário de Santana, de notória adesão à corrente liberal e de ativismo político entre os eclesiásticos, pregador de assinalável qualidade oratória, governador do bispado funchalense, que teve de refugiar-se no Brasil, donde regressou em 1837, com a guerra civil a lavrar no país; P.e João Manuel de Freitas Branco (1773-1831), que pronunciou na Sé da Madeira o sermão gratulatório no primeiro aniversário do governo constitucional, a 28 de janeiro de 1821, no ano seguinte publicado, e, compelido a exilar-se no Brasil, regressou, em 1828, à Ilha natal, havendo deixado um grande número de sermões manuscritos que se perderam; Fr. José Cupertino, nascido no séc. XVIII, religioso franciscano e orador sacro de grande nomeada, que pregou na igreja de S. Martinho, a 8 de julho de 1823, um sermão pela “feliz restauração” de D. João VI no “trono de seus augustos maiores”, como se lê no frontispício; P.e António Joaquim Gonçalves de Andrade (1795-1868), doutorado em Teologia, cónego e deão do cabido madeirense, orador fluente, indefetível na colaboração ao bispo D. Francisco José Rodrigues de Andrade e acérrimo opositor do pastor anglicano Roberto Kalley e da difusão do protestantismo, tendo sido capelão, confessor e secretário de D. Amélia, Imperatriz do Brasil, a residir no Funchal; Cón. Vicente Nery da Silva, nascido antes de findar a era setecentista e falecido em 1860, que era dotado de raras qualidades de inteligência, veia jornalística, invulgar talento de polemista e raras qualidades de orador sacro, eloquente e desassombrado na crítica social, sem contemplação de pessoas, mesmo ocupando lugares cimeiros religiosos e políticos, verbe émula de José Agostinho de Macedo, o que lhe valeu a prisão, ouvido e apreciado nos púlpitos da Madeira e da metrópole, sendo patente a simpatia demonstrada pelo ideário liberal e a acutilância dos panfletos político-eclesiásticos que deu ao prelo; P.e Patrício Moniz (1820-1898), nascido no Funchal mas educado desde tenra idade no Brasil, para onde fora com o pai, deputado da Madeira às Constituintes de 1821 – vítima do absolutismo miguelista que lhe acarretou o exílio em 1828 no Rio de Janeiro –, que é considerado vulto cimeiro da cultura madeirense, filósofo e jurista, com formatura em Paris, doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana, distinto jornalista, professor no Seminário funchalense nos anos 70, considerado orador de exceção na Ilha e no continente, de eloquência erudita e pendor filosófico-teológico, solicitado para orações de exéquias, como a de março de 1878, em sufrágio de Pio IX, celebrada na igreja conventual dos religiosos de S.ta Clara do Funchal, bem como para festividades solenes, embora com raros sermões escritos, porque confiado no fácil improviso, que veio a falecer em Portugal, na obscuridade e pobreza; P.e Francisco João de Freitas Ferraz (1823-1859), cidadão do Funchal e conhecido anotador da obra Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso, que foi considerado, ao tempo, um dos mais brilhantes ornamentos dos púlpitos madeirenses e metropolitanos, acabando por falecer prematuramente em Lisboa, onde procurava tratamento para a tuberculose que contraíra, não deixando impresso sermão algum; P.e José Nunes (1824-1890), cura na paróquia da Sé, jornalista de cultura provada e cáustico nos discursos que pensava dar à imprensa, o que não se realizou porque a morte o arrebatou antes de materializar a intenção; P.e Fernando Augusto de Pontes (1836-1897), pároco e jornalista de fecunda produção nos periódicos locais, sacerdote ilustrado e de exemplar conduta no ministério da pregação; Cón. Alfredo César de Oliveira (1840-1908), pároco e vigário-geral, político e parlamentar no continente, jornalista brilhante e escritor, consta haver sido o seu génio oratório superior a todos os demais talentos, como testemunharam quantos o escutaram na Madeira e na metrópole, e os dois sermões publicados permitem vislumbrar; P.e Júlio César Pereira da Silva (1845-1912), que nasceu na Madeira e faleceu em Lisboa, capelão do exército, e mais tarde professor do Seminário e do Liceu de Beja, que proferiu no Funchal, em 1903, uma oração fúnebre nas exéquias do Papa Leão XIII, publicada no ano imediato, que se deve juntar a outros discursos sacros a circular, segundo aconteceu, em opúsculos; Cón. António Vicente Varela (1854-1903), natural da Ponta do Sol, formado em Teologia pela Universidade de Coimbra, jornalista combativo e crítico, não sem excessos, e por isso caindo no desagravo da hierarquia eclesiástica, sempre, porém, culto e doutrinário no ministério da pregação; Cón. António Aires Pacheco (n. 1854), nascido em Vilarouco, distrito de Viseu, que acompanhou à Madeira, em 1877, o bispo D. Manuel Agostinho Barreto e, após frequentar o Seminário do Funchal, foi ordenado em 1881, tendo-se dedicado ao jornalismo, como redator de A Verdade, deixando fama de grande vigor polémico, traduzido nos artigos publicados e no escrito O Sudário Negro no Banco dos Réus, desassombrada réplica ao autor de O Sudário, panfleto de Francisco Pinto Coelho (1851-1916) com virulento ataque a D. Agostinho Barreto, ativíssimo prelado madeirense, havendo pronunciado, em 1890, a oração fúnebre nas exéquias do Rei D. Luís, logo publicado; P.e Alfredo de Paula Sardinha (1861-1897), pároco, poeta talentoso e escritor, a quem as doenças apressaram a morte prematura, que foi brilhante orador e pregador de créditos firmados; Cón. António Homem de Gouveia (1869-1916), nascido na freguesia de Ponta de Pargo, deputado pela Madeira às Cortes legislativas de 1905 e 1907, orador sacro, que deixou publicada a oração fúnebre proferida na Sé do Funchal, a 27 de abril de 1922, nas exéquias solenes em sufrágio do Imperador austro-húngaro Carlos I, promovidas pela Câmara da cidade, onde o soberano se encontrava exilado, sendo ainda autor de três discursos proferidos no parlamento e editados: A Escravidão da Igreja em Portugal (1905), Necessidade do Descanso Dominical e A Situação da Madeira, ambos em 1907; P.e Luís Alves Martins (1873-1940), natural do continente, da freguesia de Cardigos, concelho de Mação, que foi como capelão militar para a Madeira em 1905, e pregou na Sé funchalense, em 1907, a oração fúnebre na morte de Hintze Ribeiro, político dos finais da monarquia, e, em 1908, o sermão de exéquias por alma de D. Carlos e do príncipe herdeiro Luís Filipe, publicado no opúsculo Brevi Vivens Tempore, ambos editados no Funchal; P.e José Pereira da Silva (1874-1912), nascido na cidade do Porto, que pertencia à Congregação dos Lazaristas, dado ao ministério da pregação de missões, apostolado de larga tradição na Madeira, onde chegou no mesmo ano da sua ordenação sacerdotal, 1898, e que na Sé Catedral, a 12 de novembro de 1903, pronunciou a oração fúnebre em memória de Leão XIII, logo publicada, sendo ainda professor e vice-reitor do Seminário, que teve de abandonar em 1911, para se recolher ao seu instituto religioso de Paris, onde veio a falecer. Dois grandes oradores sacros fulguram na Madeira na última metade de Oitocentos: os bispos D. Aires d’Ornellas de Vasconcelos (1872-1874) e D. Manuel Agostinho Barreto. O primeiro nasceu no Funchal a 18 de setembro de 1837, de família nobre a entroncar em Gonçalves Zarco. Concluídos os estudos preparatórios no liceu funchalense, a funcionar no antigo edifício do Seminário, rumou a Coimbra, onde já estivera o seu irmão mais velho, bacharel em Teologia, começando o curso em 1854 e doutorando-se em julho de 1860, tendo sido nomeado, no regresso à Madeira, cónego e professor do Seminário e, em 1868, vigário-geral. Esteve em Roma, no primeiro Concílio do Vaticano, merecendo a atenção de Pio IX, que, após a resignação do prelado do Funchal, D. Patrício Xavier de Moura (1859-1872), o nomeou para sucedê-lo, tendo recebido, em 1871, a sagração episcopal. No ano imediato, tomou posse da Diocese, mas só deteve o governo até 1874, ano em que foi eleito arcebispo de Goa, vindo a falecer em Lisboa, a 18 de novembro de 1880, vitimado por grave doença. Pastor zeloso, foi durante anos um pregador eloquente e evangélico, presente nos púlpitos da Ilha, antes e aquando de prelado madeirense. Ressuscitou as missões populares, caídas em desuso na Diocese, chamando padres de fora, a quem mandava pregá-las “onde não podia ir em pessoa”. Eram os sermões pronunciados textos bem preparados e escritos, tal “o respeito do orador pelo ato de ensinar no púlpito”, vindo a ser alguns deles postumamente editados (Obras de D. Ayres de Ornellas..., 1882, 60-61). Ao proferi-los, o estudo que fizera desaparecia, saindo-lhe as palavras espontâneas e ardentes, pois, segundo um contemporâneo, ungia-os a caridade que lhe transbordava do coração de bispo. O outro orador, D. Manuel Agostinho Barreto (1876-1911), que sucedeu a D. Aires d’Ornellas no governo do bispado, era muito culto e teólogo de formação, dotado de grande talento para o ministério da pregação, que aliás exerceu ao longo da vida, embora não deixasse sermões publicados. No ajuizamento de Fortunato de Almeida, “revelou-se igualmente escritor de grande mérito em suas pastorais”, bastante numerosas e de vária temática, sendo algumas “modelares pela substância doutrinária e pela contextura literária” (ALMEIDA, 1968, III, 541). A sua obra maior foi, porém, o Seminário diocesano, que remodelou e dotou de novas disciplinas, primando o ensino ministrado pela atualização científica. A suas expensas e com fundos arduamente conseguidos, ergueu o moderno Seminário da Encarnação, sem o ter visto concluído quando faleceu, em 1911, o ano primeiro do regime republicano. Durante o seu período de governo da Diocese, surgiram, em 1906, o diário católico O Jornal e, em 1908, a Quinzena Religiosa, órgão oficial da Diocese, impulsionados pelo então Cón. António Manuel Pereira Ribeiro, constituindo hoje fontes documentais de inegável valia para a história do catolicismo madeirense. Da implantação da República à contemporaneidade No elenco de pregadores da era presente que se inicia em 1910, ressaltam entre outros mais: P.e Carlos Accioly Ferraz de Noronha (1845-1924), nascido na freguesia de Santana e falecido no Funchal, pároco e professor do Seminário, poeta satírico e conceituado orador sacro; D. António Manuel Pereira Ribeiro (1879-1957), sucessor de D. Agostinho Rebelo na Diocese do Funchal, nascido na freguesia de Friande, concelho de Póvoa de Lanhoso, aluno do Colégio de S. Fiel, dos padres jesuítas, formado em Teologia pela Universidade de Coimbra em 1901, vice-reitor do Seminário de Bragança, cónego da Sé do Funchal, onde chegara em 1905, mais um dos sacerdotes vindos da metrópole durante o episcopado de D. Agostinho Rebelo, a quem sucedeu em 1914, tendo um longo governo assinalado pelo zelo na afirmação do jornalismo católico, com a proibição da leitura, em 1918, de O Vigilante, semanário republicano e anticlerical, e a publicação de duas pastorais sobre o periodismo reconhecido como “porta-voz da incredulidade e do vício”, estendendo ainda a sua atenção de pastor à pregação, que praticava na Sé, onde, já a 8 de dezembro de 1906, pronunciara o sermão da Imaculada Conceição, no ano imediato impresso (nesse mesmo dia, mas em 1955, primeiro centenário da proclamação daquele dogma mariano por Pio IX, durante o pontifical, a que presidiu na Catedral, o Rev. Francisco de Andrade, teólogo e cónego do cabido funchalense, proferiu uma eloquente parénese alusiva à festividade) (POMBO, 1956, 99-100); P.e Eduardo Pereira, nascido em 1887 e ordenado sacerdote em 1913, jornalista, poeta e escritor, autor da oração Delenda Est Carthago, tinha fama de pregador eloquente; P.e António da Silva Figueira, de Arco da Calheta, onde nasceu em 1887, pároco de várias freguesias da Madeira, poeta e jornalista, foi pregador com obra oratória impressa; P.e Alfredo Vieira de Freitas, nascido nos finais de Oitocentos, escritor e poeta de Mãos Suplicantes (1917), professor do Seminário e pregador, pronunciou, na igreja de Santa Maria Maior, o sermão comemorativo do voto da cidade; P.e Francisco de Abreu Macedo Reis, nascido em 1912, na freguesia de Madalena do Mar, exerceu o ministério do púlpito na Madeira, antes de emigrar para a África do Sul; P.e Duarte de Araújo, nascido no Funchal, em 1919, frequentou em Lisboa o Seminário dos Olivais e foi ordenado em 1948, estudioso das problemáticas sociais, escritor e orador sacro. A encerrar este rastreio reconhecidamente lacunar, centrado no período novecentista, cabe destacar o P.e Manuel Gomes Jardim, insigne orador sacro e vigoroso polemista, nascido a 8 de janeiro de 1881, em Porto Moniz, que no Seminário do Funchal cursou Humanidades e Teologia, recebendo em 1904 a ordem de presbítero. Licenciado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, cónego do cabido madeirense desde 1921, foi docente do Seminário diocesano e jornalista católico de reputação firmada pelos temas abordados, sobretudo em matérias religiosas. A Igreja e o Protestantismo, editada em dois volumes em 1940 e 1944, constitui a sua obra de fôlego. Amostra da intensa atividade parenética exercida no arquipélago, deixou publicados: em 1912, o Sermão do Santíssimo Sacramento; em 1915, a Oração Fúnebre, proferida nas exéquias de Pio X; em 1932, A Aurora da Redenção, coletânea de 12 sermões marianos, pregados em várias igrejas e festas, de ática exposição, fluidez estilista e recorte apologético, em sua exaltação da Mãe de Jesus. E aqui fica o resultado da incursão feita à história da oratória sacra na Madeira, a partir de fontes bibliográficas escassas e dispersas, cobrindo o longo percurso de cinco séculos da Diocese do Funchal, no rastreio ao labor do púlpito no espaço insular da “pérola do Atlântico”.   João Francisco Marques (atualizado a 15.12.2017)

Religiões

ogilvie-grant, william robert

William Robert Ogilvie-Grant, ornitólogo britânico, trabalhou no Museu de História Natural de Londres desde 1882 até a sua aposentação em 1918. Realizou numerosas expedições, nomeadamente aos arquipélagos de Socotorá, da Madeira (incluindo as ilhas Selvagens), das Canárias e dos Açores, com a finalidade de melhorar a coleção de aves do Museu e ajudou a organizar e financiar muitas outras viagens. A sua produção científica na área da ornitologia é vasta. Ogilvie-Grant nasceu na Escócia a 25 de março de 1863, estudou no Fettes College em Edimburgo e começou a trabalhar no Museu de História Natural de Londres em 1882. No Museu, incorporou-se como assistente no departamento de zoologia, primeiro na secção de ictiologia e, a partir de 1885, na sala de aves, da qual se tornou responsável em 1909. Em 1913, foi nomeado curador assistente de zoologia, cargo que manteve até à sua aposentação, por motivos de saúde. Entre as várias expedições que efetuou com o objetivo de aumentar a coleção de aves, destacam-se as realizadas aos territórios portugueses, onde visitou as ilhas da Madeira, do Porto Santo e a Deserta Grande em 1890, as ilhas Selvagens em 1895 e os Açores em 1903. Destas explorações resultou a publicação dos seguintes artigos: “Notes on some birds obtained in Madeira, Deserta Grande and Porto Santo” (1890) e “On the birds observed at the Salvage Islands near Madeira” (1896), na revista Ibis; “Expedition to the Salvage Islands” (1895), publicado em conjunto com Cecil Baring, na revista Zoologist; e “On the birds of the Azores” (1905), publicado em coautoria com Ernst Hartert, na revista Novitates Zoologicae, contribuindo significativamente para o conhecimento das aves daqueles locais Ogilvie-Grant também viajou até às ilhas Canárias e a Socotorá, e foi o responsável pela organização e o financiamento das explorações ao monte Ruwenzori (Uganda-Congo) e à Nova Guiné Holandesa. Da sua vasta produção científica são especialmente conhecidos os volumes que escreveu para os Catalogue of the Birds in the British Museum e Catalogue of the Eggs in the British Museum, e a sua importante contribuição para o conhecimento das aves de caça. Foi membro do Conselho da Zoological Society e dos comités da British Ornithologists’ Union, da Avicultural Society, British Ornitologists’ Club e da Royal Society for the Protection of Birds, além de ser um dos fundadores da Society for the Promotion of Nature Reserves. Casou-se, em 1890, com Maud Louisa Pechel e teve um filho e três filhas. Morreu em sua casa, perto de Reading, a 26 de julho de 1924. Obras de William Robert Ogilvie-Grant: “Notes on some birds obtained in Madeira, Deserta Grande and Porto Santo” (1890); Catalogue of the Picariae in the Collection of the British Museum (1892); Catalogue of the Game Birds in the Collection of the British Museum (1893); “Expedition to the Salvage Islands” (1895); “On the birds observed at the Salvage Islands near Madeira” (1896); Catalogue of the Steganopodes (1898); “On the birds of the Azores” (1905); Catalogue of the Eggs in the British Museum (1912).   Pamela Puppo (atualizado a 15.12.2017)

Biologia Terrestre

lopes, carlos marinho

Professor, poeta e jornalista, nasceu na freguesia de São Pedro, Funchal, a 3 de março de 1896 e faleceu, com apenas 43 anos, no Funchal, na casa da R. da Conceição onde residia, no dia 12 de maio de 1939. Os seus pais eram Manuel Joaquim Camacho Lopes e Matilde Firmina Lopes. Formou-se na Escola de Habilitação para o Magistério Primário, a 1 de agosto de 1919, tornando-se professor do ensino primário. Falava corretamente inglês e francês. Na Madeira, foi docente nas freguesias de Tabua, de 1923 a 1924, Santa Maria Maior, em 1931, Serra d’Água, de 1931 a 1934, Camacha, em 1934, Ribeira Brava, em 1927, e Santa Cruz, em 1935. Ainda deu aulas de Inglês, Francês, Escrituração e Contabilidade. Foi fundador, diretor e professor do Colégio Marinho Lopes. Enquanto professor primário, Carlos Marinho Lopes recebeu um louvor da Câmara Municipal da Ribeira Brava, em 1927, pelo sucesso dos alunos por si propostos a exame, e outro da Câmara Municipal de Santa Cruz, em 1935, por ter fundado naquela freguesia um museu e uma biblioteca. Foi membro de uma tertúlia constituída por Octávio de Marialva, Albino de Menezes, Manuel Fernandes Rosa e Abel de Abreu Nunes, entre outros. Foi também cofundador, em 1920, com Horácio Bento Gouveia, Álvaro Favila Vieira, João Pestana Ferreira, Álvaro Manso, Manuel Ferreira Rosa e José Maria de Conceição Carvalho do quinzenário académico Os Novos. Foi um renomado escritor em prosa e em verso. Colaborou assiduamente no Diário da Madeira, onde dirigiu, a partir de 1 de janeiro de 1928, a “Gazeta infantil”. Escreveu também no Diário de Notícias e noutros jornais da Região, recorrendo aos pseudónimos Carlos do Mar, Príncipe Carlos e Príncipe Carlop. Do conjunto de textos publicados na imprensa, é de destacar a conferência “O teatro” que apresentou na Escola de Arte de Representar, de que foi diretor, e que foi publicada nas edições do Diário da Madeira de 24 e 31 de outubro, 7, 22 e 28 de novembro e 5 de dezembro de 1928. Publicou os livros Pensamentos e Blagues (Funchal, s.n., 1927), que pode ser consultado na Biblioteca Municipal do Funchal, A Galera (Funchal, Livraria Popular, 1927), que pode ser lido na mesma Biblioteca, e O Triunfo (1927), novela de que não possuímos mais informações para além da data. Segundo Luís Marino, o autor terá deixado inéditas as obras Flama (novela), Transviado, Claridades e Carta do Além. A crítica considerava-o um autor moderno, possuidor de um elevado sentido estético e de uma curiosa sensibilidade. Os seus textos em prosa eram elogiados pela sua beleza e poder de imaginação. Por ocasião da sua morte, a 12 de maio de 1939, o Diário da Madeira mostrou o seu pesar e exaltou o carácter e brilhantismo de Carlos Marinho Lopes – que, antes de morrer, exercia as funções de professor da escola do sexo masculino da Camacha e mantinha nessa cidade, à noite, um curso de lecionação de instrução primária e secundária, e de contabilidade. Obras de Carlos Marinho Lopes: A Galera (1927); Pensamentos e “Blagues” (1927); O Triunfo (1927).     António José Borges (atualizado a 14.12.2017)

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A existência de livrarias, com espaço físico ou virtual, e a facilidade no acesso ao livro, em termos de preço e disponibilidade no mercado, bem como a vulgarização do livro nas estantes das livrarias e bibliotecas pessoais é uma realidade tardia. Inicialmente, as bibliotecas (designadas de livrarias) eram institucionais. Só as famílias mais destacadas tinham lugar na sua casa para uma biblioteca, uma vez que a maioria da população não dispunha de condições para ter um espaço dedicado a essa função ou, tão-pouco, para comprar um livro. Note-se que em 7 de agosto de 1815, quando Napoleão Bonaparte escalou o Funchal a bordo do HMS Northumberland, a caminho de Santa Helena, o cônsul geral de Inglaterra, Henry Veitch, o visitou para lhe oferecer vinho, livros e fruta fresca. Também, mais tarde, Isabella de França, uma Inglesa casada com um morgado madeirense, que visitou o Funchal em 1853, refere a presença de livros em algumas casas, onde pareciam funcionar como elementos de decoração. Assim, numa visão geral das casas visitadas, refere: “Sobre as mesas encontram-se livros ricamente encadernados, porcelana francesa e outros adornos, entre os quais não faltam jarras de flores delicadas” (FRANÇA, 1970, 67). Sabemos que os livros faziam parte da bagagem dos viajantes, pois Isabella de França testemunha a presença destes no seu baú, entre roupa e outros objetos. Maria Clementina (1803-1867), freira do Convento de S.ta Clara e filha de Pedro Agostinho Teixeira de Vasconcellos e de sua mulher, Ana Augusta de Ornelas, tinha em seu poder uma coleção de livros. Fanny Anne Burney, no jornal que escreveu em 1838 e que só publicou em 1891, refere que a freira era detentora e leitora de obras de Racine, de Corine, de M.me de Stael, da tradução francesa de Abbot de Walter Scott, das Maximes de Chateaubriand, de Paulo e Virgínea, e de Génie du Christianisme. Até ao aparecimento da imprensa, a circulação do livro fazia-se através de cópias entregues a copistas especializados de instituições como conventos. Na Madeira, só com a publicação, em 1821, do jornal O Patriota Funchalense se registou a primeira tipografia, sendo a atividade exclusiva desta a edição de jornais. O primeiro livro que terá sido editado na Ilha foi Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso, com as anotações de Álvaro Rodrigues de Azevedo, em 1873, na Tipografia Funchalense. Por outro lado, não podemos esquecer o controlo da edição de livros que existiu em Portugal, primeiro pela Inquisição e depois por ordem política, que condicionou a circulação de livros. O livro era um produto raro e quase só estava disponível em bibliotecas, ou livrarias, de instituições. Conhecemos a importância das livrarias dos conventos, nomeadamente da livraria do Colégio dos Jesuítas, e da livraria da Escola Médico-Cirúrgica, no Funchal. Também podemos assinalar algumas bibliotecas privadas de instituições industriais, como a de Hinton, ou de técnicos especializados, como João Higino Ferraz, que tinham necessidade de obras especializadas de âmbito científico e que encomendavam, por interposta pessoa, livros editados em França e Inglaterra. Mas, na segunda metade do séc. XIX, a realidade madeirense começa a mudar, de forma que José Silvestre Ribeiro refere as livrarias do Paço Episcopal, dos conventos, do Seminário e da Câmara. Ademais, a tradição dos clubes privados e das associações conduziu à valorização da leitura com a disponibilização de livros. Assinale-se o Clube Inglês, onde se anuncia, com muita pompa, a disponibilidade de uma sala de leitura que vinha colmatar as necessidades de lazer dos súbditos britânicos de passagem. Note-se que os Ingleses insistiam nas carências culturais da cidade funchalense, apontando a falta de teatro, cafés e livrarias, como sucede com Emiline Stuart Wortley, em 1854. A venda de livros na Madeira parece ter começado através do comércio a retalho em lojas, mercearias e bazares, onde se vendia tudo. O comércio por miúdo de produtos em lojas especializadas é uma realidade do séc. XX. Mais tarde, vamos encontrar a venda de livros associada às tipografias em geral, às tipografias especializadas e à publicação de jornais, através de anúncios que publicitavam os locais de assinatura das publicações que apareciam em fascículos, a saber, algumas lojas de referência na cidade, que tinham representações das editoras de Lisboa. Em 1850, John Driver estranha a ausência de livrarias no Funchal, afirmando: “There is no literature – no bookseller's shop – on the whole Island; although a few books may be had in other shops, but very few [Não há literatura – não há nenhuma livraria – em toda a Ilha; embora se possa comprar um ou outro livro noutras lojas, mas muito poucos]” (DRIVER, 1850, 381-382). Dennis Embleton confirma esta ausência de livrarias e conclui: “The want of booksellers' shops is a sure sign of the backwardness of education among the people, and it is a great inconvenience to visitors [A ausência de livrarias é um sinal evidente do atraso educativo do povo, e um grande inconveniente para os visitantes]” (EMBLETON, 1862, 36). Em 1868, Gomes Leal esteve no Funchal e, numa das suas missivas, referiu uma biblioteca na Madeira “que o deixou atónito. Era muito cheia de livros de Jesuítas e, entre eles, um Dicionário Universal composto de 200 volumes. É a coisa mais curiosa que tenho visto” (NEPOMUCENO, 2008, 41). Ainda na mesma data, vemos António Nobre dizer que, na sua viagem para a Ilha, ia carregado de livros: “levo livros, muitos livros e o ‘Regresso’ para o completar: desta vez sempre irá” (NEPOMUCENO, 2008, 50). Em 1885, a situação persiste, afirmando J. Y. Johnson que: “A private library is a thing unheard of, and there is not a Portuguese bookseller's shop on the island. Some of the shopkeepers, it is true, keep books on their shelves, hut they are very few in number and chiefly works of religious devotion [Não há bibliotecas particulares, nem existe uma livraria portuguesa na Ilha. É verdade que algumas lojas vendem livros, mas são muito poucos e são essencialmente obras de devoção]” (JOHNSON, 1885, 55). Por tradição, se os leitores da Ilha não importassem os livros do continente e do estrangeiro, tinham de se sujeitar ao regime de assinaturas, que operava apenas com as publicações mais vulgarizadas. Em 1882, O Crime de Alberto Didot, por exemplo, poderia ser comprado mediante assinatura, que poderia ser feita no Funchal, nas lojas Nova Minerva, Camacho & Irs. e Camisaria Central. Já a assinatura da História de Portugal de Manuel Pinheiro Chagas poderia ser feita diretamente no jornal que publicava o respetivo anúncio. No entanto, em 1877, o Diário de Noticias refere que o Bazar Camacho e Irs. já vende livros e que a Casa Camacho e Carregal tem disponível o Almanach das Senhoras para o ano de 1878. As razões que explicam o facto de o livro ser um produto pouco comum na sociedade madeirense e de ser rara a sua venda em lojas são o elevado custo das publicações e o problema do analfabetismo, que chegou, em parte, ao séc. XXI. A paulatina vulgarização do ensino levou à necessidade de livros escolares e abriu caminho para um potencial de leitores. Assim, em 1889, a Gramática de Língua Portuguesa de João de Nóbrega Soares, que apresentava maior procura, vendia-se em diversos estabelecimentos no Funchal. Já o livro de J. C. Faria, O Archipelago da Madeira, tinha um depósito geral na casa Dilley no Funchal. A déc. de 80 do séc. XIX, marca, portanto, uma mudança de atitude em relação à venda dos livros. As publicações que eram vendidas, quase sempre através de anúncio de jornal, passam a dispor de livrarias e de vários estabelecimentos de depósito de livros. O Funchal passa a ter uma loja especializada para a sua venda. Surge, assim, em 1886, a Livraria e Tipografia Esperança, que perdurou como espaço exclusivo para a venda de livros. Em 1914, esta livraria com projeção nacional mudou-se para a R. da Alfândega e, em 1938, para a R. dos Ferreiros. Em 1973, instala-se definitivamente no número 119 da R. dos Ferreiros, com um stock de 12.000 livros diferentes. Em 1991, a continuidade da livraria foi assegurada com a criação da Fundação Livraria Esperança, Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) declarada como sendo de utilidade pública. Passados cinco anos, ampliou-se o espaço de exposição com a aquisição de um prédio que serve de anexo, com uma área de 1200 m2 e mais de 96.000 livros expostos. A partir do séc. XX, começam a surgir novas livrarias, o que quer dizer que o livro, como produto de venda, tem cada vez mais clientes. Assim, em 1906, temos a livraria Funchalense e, em 1907, a livraria Escolar de Polonia & C.ª. O Almanac Madeirense para 1909 apresenta publicidade ao Bureau de la Presse de J. M. da Rosa e Silva, um quiosque da época sito à Pç. da Constituição, onde se vendia: “livros Nacionais e estrangeiros aos preços das casas editoras – sempre as últimas novidades literárias!” (Almanac de Lembranças Madeirense para 1909, 1908). Em 1910, o Roteiro do Funchal de A. Trigo apresenta as seguintes papelarias e livrarias: Antonio d’Andrade, R. dos Ferreiros, 24 e 26; Bazar do Povo, R. do Bettencourt, 1 a 21; Coelho, Irs., Lg. da Sé, 4; livraria Escolar, R. Camara Pestana, 14; livraria Funchalense, R. do Bispo, 25 a 35; Loja Dilley, R. do Aljube, 13 e 15; Minerva Phenix, R. do Príncipe, 53; Nova Minerva, R. da Alfandega, 45. Já o almanaque ilustrado de 1913 refere em anúncio a livraria Popular de José Eduardo Fernandes na R. de João Tavira, que vende “grande variedade de quinquilharias, vidros, objetos para escritório, livros de estudo e objetos de culto religioso” (1913 – Almanach Ilustrado do Diário da Madeira, 1912). Mesmo assim, Charles Thomas-Stanford, no mesmo ano, fica com a imagem de uma terra que não é de amantes de livros, pela sua raridade: “Book-lovers will deplore the booklessness of the town – which does not boast a bookseller of any sort [Os amantes dos livros não deixarão de lamentar que se trate de uma cidade sem livros – uma cidade onde não existe uma única livraria]” (THOMAS-STANFORD, 1910, 201). No séc. XXI, o Funchal, para além destas livrarias, dispunha de outras com menor dimensão, sendo de destacar as livrarias Bertand, FNAC e Worten. Todavia, devemos salientar que o conceito de livraria corre o perigo de se perder com a assimilação por parte dos espaços de venda de produtos variados, como é o caso da livraria FNAC, que está incorporada numa loja de artigos eletrónicos e eletrodomésticos, e das livrarias dos supermercados, nomeadamente da marca Continente e Pingo Doce. O Funchal contava ainda com a Fundação Livraria Esperança, a Julber papelaria e livraria Lda, a Leya SA, e a livraria Papel e Caneta. Por tradição, as lojas especializadas em serviço de papelaria, como a livraria Figueira, a papelaria Condessa, a papelaria do Colégio e o Bazar do Povo, tinham serviço de venda de livros. A livraria Figueira viria a desaparecer. A papelaria Condessa e o Bazar do Povo cessariam o serviço de venda de livros. Apenas a papelaria do Colégio manteria uma diminuta secção de livros Por outro lado, as instituições oficiais dispõem de expositores e de serviço de vendas de publicações tanto num regime material como num virtual, pela Internet. Assim, a Direção Regional de Cultura apresenta, na R. dos Ferreiros, os livros publicados pela extinta DRAC e pelo Arquivo Regional da Madeira; já o Centro de Estudos de História do Atlântico tem, na R. das Mercês, um expositor e serviço de vendas. Também a Câmara Municipal do Funchal apresenta, no átrio do Teatro Municipal, o seu Serviço de Publicações. Com orientação definida em termos das publicações, deveremos referir a Paulinas Multimédia, que existe no Funchal. Esta livraria dedica-se a publicações de carácter religioso. Podemos referir ainda a livraria Inglesa, que funcionava em diminuto espaço do Pateo Photographia Vicentes e que tinha um serviço especializado de venda de publicações em inglês. Num âmbito especializado da banda desenhada, merece, por fim, referência a livraria Quinta Dimensão, criada em setembro de 2004, que se transformou num polo de divulgação de banda desenhada. Ainda no âmbito do mercado livreiro, não podemos esquecer a realização dos festivais literários e das feiras do livro, organizadas, desde 1975, pela Câmara Municipal do Funchal, que sempre foram um espaço de divulgação e de contacto do público com o livro.     Alberto Vieira (atualizado a 14.12.2017)  

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