Mais Recentes

género

Além dos estudos de género, as relações homem-mulher têm sido abordadas pelos estudos culturais, pelos estudos da mulher, pela sociologia da violência simbólica, numa perspetiva reflexiva ou libertária ou emancipatória, assim como por uma consolidada antropologia do género. No que respeita à sociedade insular, o conhecimento produzido até ao começo do séc. XXI era insatisfatório. Os estudos literários sobre a ficção madeirense e alguns outros trabalhos avulsos constituíam exceção. A investigação disponível permite uma abordagem exploratória com vista a delinear mais pistas de análise. Para além da relação assimétrica entre géneros, da de cada um deles no seu seio, e da existência frequentemente apagada da voz feminina, pretende-se indagar a dinâmica da condição de ser mulher no arquipélago. Serão analisadas as relações de género predominantes na sociedade insular na base das representações literárias a que deram origem, considerando, por um lado, a sua projeção na semiosfera, e por outro, a sua (des)construção no plano literário. Estas vertentes devem ser entendidas como um substituto duma investigação social incidindo sobre a supremacia masculina na sociedade madeirense e as dinâmicas nela geradas pelos fatores tempo e território. Definindo este arquipélago atlântico como uma sociedade patriarcal, tem pertinência refletir sobre o modo como na narrativa de ficção se dá espaço à identidade feminina e se obriga o leitor a ponderar sobre o estatuto da mulher numa cultura em que ela é subjugada. Insistir-se-á no significado e na distribuição dos papéis sociais que escritores ensaiaram, nomeadamente no campo das relações amorosas e no universo familiar, já que o espaço público era, até meados do séc. XX, vedado às mulheres. Estabelecendo um corpus constituído por textos dos sécs. XIX e XX socialmente reconhecidos na esfera cultural madeirense, de fundo histórico, testemunhal, memorialista e/ou autobiográfico – da autoria, e.g., de João dos Reis Gomes (1869-1950), Horácio Bento de Gouveia (1901-1983), João França (1908-1996), Carlos de Freitas Martins (1909-1985), Helena Marques (n. 1935), Maria Aurora Carvalho Homem (1937-2010) e Irene Lucília Andrade (n. 1938) –, tentar-se-á examinar as ressonâncias afetivas e ideológicas que problematizam as imagens que a Madeira constrói de si própria, numa modernidade em devir. Nestes discursos sobre homens e mulheres ficcionados da periferia insular, procurar-se-á compreender o processo de transformação que a cartografia dos géneros propõe em contexto de redefinição identitária e renovadas mobilidades sociais e culturais. No arranque do processo de povoamento da Madeira, essa terra verdejante, com belas paisagens e sem animais perigosos foi naturalmente equiparada a um cenário bíblico, onde se impunha, para o povo católico que o reino de Portugal então abrigava, o modelo de família patriarcal da tradição judaico-cristã que persistiu na sociedade portuguesa. Rezam as crónicas, como ilustra o conto “Aquele campo de funchos”, de João França, que Gonçalo Aires, companheiro de Gonçalves Zarco (o povoador do arquipélago da Madeira), foi pai das primeiras crianças – gémeos falsos – que nasceram na Ilha; ao menino foi dado o nome de Adão, e à menina, o de Eva. Nesse tempo de desbravamento, de lavoura e depois de construção de levadas e de engenhos, o narrador de A Ilha e o Tempo, romance histórico que o mesmo João França publicou em 1972, faz notar que os povoadores “queriam braços másculos, mas também mulheres para sossegar os homens” (França, 2006, 31). Mas o problema não se ficava por aí. Eram também precisos homens de boa linhagem para dar continuidade às famílias de estirpe, como adianta o cronista Jerónimo Dias Leite (séc. XVI), em Descobrimento da Ilha da Madeira: “por ser a terra nova e não haver na Ilha com quem pudessem casar segundo o merecimento de suas pessoas, mandou o dito capitão Zarco pedir a Sua Alteza homens conformes à sua qualidade para lhe dar suas filhas em casamento” (Leite, 1989, 41). Vale recordar que, na sociedade da época, de configuração feudal, um dos princípios era, consoante a epígrafe do já referido romance de João França, “Enquanto houver filho macho, não herdará a fêmea” (França, 2006, 13), sentença então validada pelo Rei D. João III. Vivia-se no regime de morgadio, que consistia em legar os bens fundiários ao filho mais velho, que devia ampliá-los através de um casamento de conveniência com uma filha de outra família de condição similar. Este sistema excluía da herança os restantes filhos, a quem – muitas vezes, mas não forçosamente – destinavam à vida eclesiástico-monacal ou à carreira militar, com o fito da recompensa de bens ou cargos ou, já nos sécs. XVIII e XIX, à aventura da emigração, no Brasil ou em Demerara, como mostra o romance Os Íbis Vermelhos da Guiana, de Helena Marques. Noutro livro de João França, António e Isabel do Arco da Calheta, o escritor sublinha a importância dos dotes e das alianças políticas entre as casas da nobreza seladas através do casamento, a relevância dos laços sanguíneos, dos preconceitos de casta e da “desgraçada convenção sobre as idades” (França, 1985, 26), que inibia o enlace de um homem com uma mulher mais velha, mesmo que a diferença fosse apenas de três anos. Naquele tempo, para as meninas fidalgas, estava determinada apenas uma alternativa, dois horizontes opostos um do outro: ou eram destinadas ao casamento, a uma vida submissa ao marido e ao dever da procriação, ou eram encaminhadas para a vida conventual, sendo a família obrigada ao pagamento de um elevado tributo para o efeito. No entanto, tal não sucede com Isabel Balda, a protagonista de A Ilha e o Tempo, que vai, em contracorrente face aos valores e práticas dominantes, forjar o próprio destino, distinguindo-se das demais mulheres do seu tempo. João França projeta, pois, na sua narrativa de ambientação histórica uma criatura de papel representativa de um inusitado ato de rebeldia para a época. O casamento e a família constituem o principal meio de controlo social dos seus elementos, coadjuvados pelo próprio tecido social em que se inserem. Exercem uma vigilância constante dos comportamentos dos seus membros, sobretudo das condutas vistas como moralmente reprováveis da mulher, podendo pôr em causa a sua honra e reputação. Em regra, era o pai que tomava a decisão sobre o partido que a filha havia de aceitar. Ainda em meados do séc. XIX, não aceitar a vontade paterna tinha consequências, como ilustra a seguinte tirada do Luís da Cunha, um proprietário e negociante próspero do Funchal, ao responder a Clara, a filha rebelde, no romance Saias de Balão, vindo a lume em 1946, de Ricardo Nascimento Jardim (1906-1990): “– Desgostas-me. A tua atitude é tola, porque perdes um bom partido, e desobedeces-me, o que é pior. Até aqui, ninguém se atreveu a desobedecer-me. Ninguém! Mereces um castigo… és muito velha para levares umas palmadas minhas, que é o que merecias! Castigo-te de outra maneira: se não casares com Tony, deserdo-te! Deixar-te-ei da minha fortuna apenas a pequena parte a que a lei me obriga – tudo o resto irá para tua irmã, já de si mais rica do que tu, pelo que herdou da tia Maria. Vai-te!” (Jardim, s.d., 178). Esse quadro manteve-se até ao séc. XX, como atestam os idílios frustrados pelos progenitores de Pedrinho, o filho-família, com Constança, a filha do caseiro, em Águas Mansas, romance de Bento de Gouveia, e de Ricardo Meireles, o filho de um republicano, com Lúcia, a filha de um monárquico, em Uma Família Madeirense, romance póstumo de João França. Os princípios da compatibilidade social entre os noivos e/ou o casamento arranjado estavam tão arreigados nos costumes, que dificilmente havia lugar para o sentimento amoroso. Nesse contexto, também não admira que a sexualidade dos homens fosse resolvida fora do matrimónio, à custa de mulheres muitas vezes desprotegidas ou marginalizadas, como observa o ensaísta António Ribeiro Marques da Silva: “Pensamos que não, embora muitos estudos, sobretudo os de Maria de Lourdes Freitas Ferraz aludam ao excessivo número de expostos, pelo que as ligações fora do casamento e, sobretudo, o hábito do cavalheiro de posses ter a sua amante determinam o aparecimento de muitos ilegítimos” (Silva, 2008, 122). Na verdade, parece que a monogamia oficial encobria infidelidades masculinas, quando não uma poligamia de facto: lê-se, em A Ilha e o Tempo, que nas casas senhoriais dos sécs. XV e XVI proliferavam as mulatinhas e que muitos bastardos eram filhos de fidalgos, a exemplo de José Travanca, filho de Afonso Balda com uma “degredada lisboeta” (França, 2006, 19-20), a Travanca, que acabaria num prostíbulo, e de Bento Enjeitado, igualmente filho de Afonso e de “uma camponesa limpa mas sem recursos” (Id., Ibid., 20); na Madeira do final do séc. XIX e início do séc. XX, que Helena Marques reconstituiu no seu romance de estreia, O Último Cais, um homem de idade avançada, Ferdinando, é rejeitado pela jovem mulher, Luciana, quando esta descobre que o marido satisfaz os seus apetites sexuais com as criadas: fecha-lhe definitivamente a porta do quarto e regulariza as visitas que irá fazer às serventes. Num período situável no primeiro quartel do séc. XX, é, e.g., revelado em Águas Mansas, de Horácio Bento, que um dos donos de engenho da Ponta Delgada, Germano Teixeira, tinha, ao mesmo tempo, “duas mancebas: mãe e filha”, “além da mulher” (Gouveia, 1963, 74). A propósito deste comportamento masculino que parece consubstanciar uma sociedade das aparências, vale a pena consultar o romance Madeira: Mar de Nuvens, de Carlos de Freitas Martins (1909-1985), com cenário implantado nos anos 30-40 do séc. XX. A personagem Magno Amundsen, um dos alter-egos do autor, faz o seguinte comentário: “um dia […] assisti […] à passagem de uma procissão. Senti um impulso de revolta e nojo, em ver muitos […] de capa e tocha na mão. Cínicos, que ainda na véspera, sábado, tinham-me acompanhado em orgias!” (Martins, 1945, 91). Se a infidelidade conjugal era prática comum dos homens, parece não haver, no universo literário reverberador da sociedade madeirense, exemplos de mulheres casadas que praticassem o adultério até meados do séc. XX. Essa constatação pode indiciar duas atitudes: por um lado, não se impunha à visão masculina dar conta de uma realidade transgressora que não lhe convinha, por outro, é crível que para a mulher insular virtuosa o casamento e a família fossem a base de tudo, a sua razão de ser. Talvez isso explique aquele caso em que uma mulher acolhe, décadas depois, o marido que tinha emigrado para longe sem nunca ter dado uma satisfação ou sinal de vida, sem dinheiro que se visse, como sucede com Artur, da Achada do Castanheiro, no romance Torna-Viagem, de Horácio Bento (Gouveia, 1979, 214-215). Falta referir que, numa sociedade presa a preceitos rígidos, um namoro rompido tinha, quase sempre, consequências vexatórias para as comprometidas que ficavam, por assim dizer, marcadas. Tal situação votava-as ao celibato, condenando-as à condição de “velha menina”, tal como a Emília e a Clara do conto bentiano “Alma negra”. Entre a resignação e a amargura, entre a solidão e a reserva, estas mulheres levavam, muitas vezes, uma existência sem objetivos. Outro destino teriam as viúvas, que sempre tinham filhos ou netos para cuidar. Em Quando Lançaram Meu Corpo ao Mar, Gualdino Rodrigues (n. 1946) recorda o sujeito poético “o rapé e os lenços negros que as viúvas de Câmara de Lobos escondiam” no tempo do Estado Novo (Rodrigues, 1983, 48). Quanto ao aspeto físico das mulheres da sua Ilha natal, posicionando-se provavelmente na ótica do padrão estético eurocêntrico, o poeta José António Monteiro Teixeira (1795-1876) distingue a maioria, criaturas sem graça, da minoria, figuras capazes de rivalizar em primor com as mulheres mais encantadoras do mundo civilizado. Faz, numa nota de rodapé, a seguinte apreciação: “Il faut bien l’avouer: les femmes ne sont pas ce que la nature a fait de mieux dans cette île […]. Il s’y trouve pourtant des dames aussi accomplies au physique et au moral, que les plus parfaites des pays les mieux partagés à cet égard; mais elles ne sont pas en majorité, bien au contraire [Convém reconhecer: as mulheres não são o que a natureza fez de melhor nesta Ilha [...]. Encontram-se, no entanto, senhoras física e moralmente tão dotadas como as mais perfeitas dos países mais beneficiados a este respeito; mas não são a maioria; muito pelo contrário]” (Teixeira, 1861, 110). Essa minoria, abonada, distinta e ilustrada, concentrava-se, no essencial, no Funchal. Em Saias de Balão, o recém-chegado à Ilha Gastão Lencastre escreve ao amigo José que está no continente: “A Madeira, meu caro, é muito linda, e as meninas… não te conto nada: uns amores! Interessantes e instruídas, são de um recato extremo que as torna ainda mais desejadas. Lembram aquelas figurinhas de ‘biscuit’, que se colocam cautelosamente sobre prateleiras, com receio de as quebrar” (Jardim, s.d., 130) Isto é: bem-nascidas, decorativas, frágeis e de tez clara – imagem que não favorece apenas a distinção social, mas também o preconceito étnico. Em sintonia com a elite centro-europeia, a preferência do cavalheiro distinto era para as donzelas e senhoras brancas em detrimento das raparigas trigueiras. Nas narrativas de ambientação madeirense, é nítido o sentido de valorização, quer espiritual, quer físico, agregado à construção da mulher branca. Mesmo na ficção relativa ao séc. XX, a mulher alta e alva é espécie rara de se achar e, como tal, uma tentação irresistível. E.g., no conto “A última luz da candeia de três bicos”, de Elmano Vieira (1892-1962), publicado em 1946, o narrador retrata uma jovem camponesa do seguinte modo: “A beleza da rapariga era apetitosa como um pomo. Alta, branca, corpo modelado em ritmos de escultura, impressionava sobretudo por ser um desses tipos rurais em que se adivinham enxertias de raças finas, porventura vindas de remotas mancebias” (Vieira, 1990, 83). Não será por acaso que, na narrativa de ficção do séc. XX, a estrangeira, bonita e culta (inglesa, alemã ou nórdica) representa o alvo preferencial dos galãs madeirenses. Na verdade, quando os autores privilegiam nos seus enredos as (jovens) mulheres insulares, realçam mais as qualidades morais e espirituais do que as físicas, de que poderá ser exemplo a personagem Maria Germana no romance Margareta, de Horácio Bento, descrita como uma jovem “esbelta”, de “rosto angélico”, com “graça juvenil”, mas “donzela ingénua” (Gouveia, 1980, 68), que deixava adivinhar nela uma “dona de casa extraordinária” (Id., Ibid., 75), ou seja, o oposto da “beleza” física da dinamarquesa Margareta, que, essa sim, “fascinava” (Id., Ibid., 68-69). A exceção confirmando a regra é proposta por Reis Gomes, em duas narrativas de inspiração histórico-lendária, a saber, O Anel do Imperador e O Cavaleiro de Santa Catarina. Em ambos os casos, o que temos é uma jovem madeirense – um tipo de Portuguesa que Reis Gomes idealiza – que se rende a um distinto estrangeiro do centro da Europa. Naturalmente, o contraste de fisionomia é também efeito cénico e simbólico. Em O Cavaleiro de Santa Catarina, cujo enredo se enquadra nos primórdios do povoamento da Ilha, no séc. XV, a futura mulher do lendário cavaleiro (mais conhecido como Henrique Alemão), é “donzela de nobre estirpe e, então, uma morena alegre e buliçosa” (Gomes, 1941, 48). Senhorinha Anes de seu nome, será apresentada ao jovem estrangeiro, “loiro e melancólico” (Id., Ibid., 48), que por ela se apaixona. Em O Anel do Imperador, Reis Gomes anima a imagem romântica da bela Portuguesa morena, ilustrada e casta, rendida à figura de Napoleão Bonaparte, na personagem da jovem madeirense Isabel, espécie moderna de vestal, como sintetiza Paulo Miguel Rodrigues: “de dezassete anos em flor e bem-nascida”, “alta, elegante, de corretíssimo perfil, boca breve e olhos negros”, com um “rosto oval, moreno-mate”, “calma”, sugerindo a “doçura duma bela virgem de Dolci” “formosa”, mas de “penteado simples”, e “culta”, porque lhe “eram familiares os poetas do renascimento” e porque pintava quadros, tocava harpa e sabia falar inglês e italiano, além do francês (Rodrigues, 2011-2012, 89-90). Em todo o caso, será preciso um olhar feminino para alterar essa visão masculina. Espécie de síntese de todas as etnias que coexistiram na Ilha ao longo dos tempos, Irene Lucília Andrade vai reabilitar, no seu romance de estreia Angélica e a Sua Espécie, a figura feminina nativa, esboçando o protótipo moderno da “bela madeirense”: “o rosto de Angélica, ora […] aparecia [a João Sérgio] em molduras de talha exprimindo a nobreza e a plástica serena das figuras de Van Eyck, ora sobre grandes murais exibindo a sensualidade dourada dos perfis egípcios. O azul dos olhos sobre a pele morena e os cabelos escuros evocavam uma semelhança com raças mestiças em que se fundiam várias origens, incluindo as negras africanas e as arianas do Eufrates” (Andrade, 1993, 81). Quanto à mulher feia e pobre, já se sabe: é particularmente difícil a obtenção de uma passagem para o sucesso. E, mesmo quando não era desfavorecida pela natureza e/ou pelo berço, ser simplesmente nativa da Ilha podia também não jogar a seu favor. No romance António e Isabel do Arco da Calheta, embora oriunda da Madeira, uma senhora da corte, Joana de Eça, aia da rainha, via com maus olhos o interesse que o filho, António Gonçalves da Câmara, nutria por uma jovem viúva nobre, Isabel de Abreu, que nunca saíra da Ilha, por desconfiar de que esta seria demasiado acanhada. Passando para um cenário posterior, como em Madeira: Mar de Nuvens, de Carlos Martins, ou em Margareta, de Bento de Gouveia, constata-se que os protagonistas madeirenses aspiram a uma vida mais estimulante do que aquela que o Funchal proporciona, quer do ponto de vista intelectual, quer do ponto de vista do prestígio social, quer do ponto de vista da experiência hedónica, e, por isso, tendem a preferir jovens mulheres do continente ou estrangeiras, desvalorizando as suas conterrâneas, vistas como sensaboronas, previsíveis e provincianas. A esse respeito, faz notar o narrador de Margareta, referindo-se ao protagonista do romance epónimo: “Às raparigas da Ilha verificava ele que lhes faltava espírito como dote expansivo de comunicação de vida interior” (Gouveia, 1980, 185). Com efeito, em múltiplas narrativas de ficção de escritores da Madeira, são vários os testemunhos de uma atração pela beleza e liberdade da mulher continental e cosmopolita, extrovertida e desenvolta, por contraste com os costumes madeirenses e com a mulher insular introvertida. Não admira que os bons partidos do Funchal se tivessem virado para as “gibraltinas”, mais desempoeiradas, quando estas foram levadas para a Madeira durante a Segunda Guerra Mundial. Em contrapartida, o fascínio que os recém-chegados cavalheiros bem-apessoados exerciam junto das melhores famílias funchalenses tinha muitas vezes equivalência na ingenuidade que caracterizava as raparigas bem-nascidas. Desvalorizando os pretendentes da terra, acabavam por ser vítimas da sua sobranceria e do seu deslumbramento pelo forasteiro. Do continente, chegavam de quando em vez à Ilha figuras aperaltadas, entre eles alguns caçadores de dotes, que iam cortejar filhas casadoiras de ricos proprietários. Com o Funchal de meados do séc. XIX em fundo, entra em cena, em Saias de Balão, um tal Gastão de Lencastre que vai esposar Matilde da Cunha, e que, quando o sogro, Luís da Cunha, morre, toma conta dos bens da família para os dilapidar em noitadas, jogo, libações alcoólicas e amantes. Outro exemplo é o de Frederico de Magalhães, em O Último Cais, com quem Constança se casa por amor, sem saber que o marido já contraíra matrimónio em Lisboa. Em ambos os casos, a jovem comprometida é condenada a um triste desenlace: um casamento infeliz com final dramático ou um casamento desfeito que a deixa, para o resto da vida, amargurada. Até meados do séc. XIX, a mulher do povo é praticamente invisível aos olhos dos escritores. As viloas (camponesas), ceifeiras, vendeiras, mulheres de pescadores, lavadeiras, criadas de servir, bordadeiras, curandeiras, bilhardeiras (i.e., coscuvilheiras), devotas ou marginalizadas (as mendigas e as despudoradas), anónimas embrenhadas na luta diária pela sobrevivência, apresentam-se como meros figurinos, ignorantes e boçais, que constituem o pano de fundo, a cor local, conferindo ao enredo uma tonalidade quase sempre bucólica e risonha. Ainda assim, paralelamente às narrativas etnográficas bem-humoradas, não são poucas as estórias de contornos dramáticos de morgados que tentam seduzir jovens viloas; mais engraçadas e raras são aquelas em que estas lhes resistem. Uma das exceções é a protagonista de A Justiça de Deus, de João Augusto de Ornelas (1833-1886), cuja ação se passa na Ponta do Sol de inícios do séc. XIX. O enredo destaca Luísa, uma rapariga séria e caridosa, que enjeita o morgado Lúcio d’Andrade, a encarnação da maldade. Filha da classe trabalhadora que gera consensos, Luísa fará jus à família honrada de que descende, apesar da perseguição do morgado e de este ter mandado assassinar Alfredo, o prometido da camponesa. Por regra, os morgados não encontram dificuldade em conquistar as raparigas do campo, abandonando-as grávidas para se casarem com viúvas ricas ou jovens da sua condição, como exemplifica a peça A Família do Demerarista, estreada em 1858, de Rodrigues de Azevedo (1825-1898), e o conto “À borda d’água”, dado à estampa em 1904, de João Gouveia (1880-1947). A conduta da personagem-tipo do morgado manteve-se na literatura e na sociedade sob a figura do sedutor com ar citadino e bem-falante. E.g., no romance Lágrimas Correndo Mundo, de Bento de Gouveia, uma vendeira de idade avançada na Calheta dos anos 20-30 do século XX avisa o protagonista, João de Freitas, um agente que ali se deslocou para distribuir trabalho em bordado, da má fama que a sua condição tem junto das mulheres da terra: “Vieram pr’aí três caixeiros montados a cavalo como se fossem fidalgos” e “desonraro muitas raparigas da Calheta, aqui há anos” (Gouveia, 1959, 84). Uma suicidou-se, as outras fugiram de casa sem darem mais notícias, porque a sociedade da época não tolerava a uma rapariga a perda da virgindade e a atividade sexual antes do casamento, atos considerados como transgressão moral e desonestidade social. Na sociedade patriarcal, perdoa-se com facilidade a fraqueza de um homem, mas quase nunca a de uma mulher. Todavia, a literatura de ambientação madeirense oferece, pelo menos, duas situações em que um morgado se casa por amor com uma camponesa: o romance Da Choça ao Solar, baseado numa história dita verídica do séc. XVIII e saído em folhetim na imprensa ponta-solense em 1917, da autoria de João Vieira Caetano (1883-1967); e o conto de estilo leve e irónico “Mariana do Passeio”, de Carlos Cristóvão (1924-1998). Em ambos os casos, as narrativas, pontuadas por peripécias, representam uma visão romântica do amor que prevê a possibilidade de uma aliança entre plebeias e morgados e o sentimento de comunidade de destino. Porém, se, no caso da Mariana, o que temos é uma noiva que deixa plantado no altar um lavrador abastado para fugir com o jovem morgado, conseguindo redimir-se, mais tarde, aos olhos dos seus, quando souberam que a sua relação era assumida pelo morgado, no caso de Antónia dos Canhas, o que temos é uma viloa que, depois de reconhecida como morgada, se torna altiva e intransigente nos princípios conservadores da recusa da miscibilidade social e não aceita a relação de filhos dela com plebeus. Voltando à Ilha de meados do séc. XIX, a mulher pertencente à fina-flor funchalense é figura quase icónica de uma Madeira de ambiente romântico. Vive em quintas resguardadas, ajardinadas e opulentas, cultivando o conforto (de gosto inglês), as obrigações morais e as relações sociais. Em finais de tarde, espairece pelo Passeio público da cidade em saia de balão, rodeada de crianças e criadas. Vai às missas dominicais e eventualmente ao teatro e a bailes exclusivos para a alta-roda. Organiza piqueniques e ceias. Nesses saraus, toca piano e machete, recita poesia, fala francês e inglês. Os poetas locais dedicam-lhe versos. Na verdade, como espelha o romance Saias de Balão, essas mulheres da elite vivem na ociosidade e na ignorância dos aspetos práticos, comportamentais e sociais da vida. Submetidas a uma educação doméstica que as forma à obediência passiva e ao preconceito social, tornam-se facilmente vulneráveis ante às adversidades. O mundo aparentemente perfeito em que vivem desmorona-se quando o pai, o irmão ou o marido lhes falha, por morte, doença ou ausência. Tendo recebido pouca educação formal, não sabem depender de si próprias e mostram-se impreparadas para evoluir fora da redoma de vidro em que vivem. Ainda assim, no final do romance, num pormenor simbólico, antevê-se uma mudança significativa na liberdade de ação dessas mulheres, visto a nova indumentária ser menos constrangedora: “Apanhando o vestido – felizmente que a moda das saias de balão já passara; com a tournure era mais fácil uma pessoa mover-se! – Clara dirigiu-se a correr para a livraria” (Jardim, s.d., 304). Ao papel da mulher adstrita ao lar opõe-se o escritor Carlos Martins. Ateu de sólidas convicções, crítico da sociedade insular, mas defensor de um regionalismo cosmopolita, Martins propõe, em Madeira: Mar de Nuvens, num registo individualista com recorte autobiográfico, uma visão cortês da mulher, com o protagonista, Fernando Porto Moniz, alter-ego do autor, que se encanta com o noivado, mas revela desprezo do matrimónio pois, no seu entender, “o casamento mata o amor” (Martins, 1972, 95), deixando no ar a pergunta: “para quê constituir família?” (Id., Ibid., 99). Nesse sentido, o narrador-autor perfila-se como adepto do amor livre e intenso, e da exaltação da virilidade. Segundo essa ordem de ideias parece prosseguir a voz narradora de Um Buraco na Boca, romance experimental de António Aragão (1925-2008) publicado em 1971, considerando, ainda que num tom provocatoriamente sexista, a moderna contraceção tão favorável à mulher como ao homem, porque concebe uma sexualidade sem medo de uma gravidez indesejada: “e continuava apalpando a desviada doçura das mamas de Fernanda: a pílula dá mesmo resultado. ter filhos para quê? ehhhhhh gente: quem começa uma ideia de existir que sirva? porque não tudo mudado?” (Aragão, 1993, 135). Não deixa de ser curioso observar que na narrativa de ficção ambientada no arquipélago da Madeira a figura do padre é raramente posta em causa e não custa imaginar o motivo que conduz o ficcionista a evitar as histórias, de que há ampla memória na Ilha, de padres que tinham filhos. Outro tema que tem sido abordado de forma tímida na narrativa de ficção em análise é o da homossexualidade. Se não faltam exemplos desse tipo de relação na obra romanesca de Bento de Gouveia, o certo é que nela impera uma visão preconceituosa sobre essa preferência afetiva e sexual. É na contística de Maria Aurora Carvalho Homem, designadamente em “Malvasia”, integrado na coletânea A Santa do Calhau, que surgem imagens da homossexualidade e da bissexualidade sem qualquer filtro moralista, numa escrita sugestiva do prazer erótico. Na última década do séc. XX, autoras como Helena Marques, Irene Lucília Andrade e Maria Aurora Homem encenam, a par de figuras de recorte tradicional, personagens femininas fortes, senhoras do seu destino – solteiras, casadas, divorciadas ou viúvas –, mulheres decididas que acabam, nalguns casos, por se realizar. Quer pela opção de vida tomada, quer por traços psicológicos diferenciadores, tais protagonistas distinguem-se na narrativa em que evoluem das figuras consentâneas com o comportamento que a sociedade induz. Nas obras dessas autoras – às quais se poderiam juntar ficcionistas como Maria do Carmo Rodrigues (1924-2014), Lília Mata (n. 1967) e Graça Alves (n. 1964) –, a mulher é muitas vezes tema central ou, pelo menos, ponto de vista para compreender a vida e o mundo, a partir da sua condição. Por exemplo, na contística de Maria Aurora Homem, designadamente nos livros A Santa do Calhau e Para Ouvir Albinoni, de 1995, encenam-se o drama e os anseios de mulheres, aspetos anedóticos dos pequenos meios, o leque de opções que a vida cosmopolita e desafogada oferece, o espírito conformista e egoísta dos homens. Nessas ficções, predomina uma refinada ironia, ou então o sentido trágico da vida. Ainda assim, as referidas escritoras não se fecham nessa perspetiva filosófica e, por via da força que a literatura lhes confere, não se coíbem de imaginar e narrar histórias na ótica de um protagonista. Por vezes, procuram a essência, esbatendo a distinção sexual. Assim acontece, e.g., em Angélica e a Sua Espécie, de Irene Lucília Andrade, em que a instância narrativa, embora referindo-se a uma personagem feminina, descreve a ânsia de evasão que tende a habitar a juventude, independentemente da sua origem geográfica e do seu sexo: “O desejo de evasão, a construção dos ideais, a procura do conhecimento e da alegria, a partilha da liberdade, o vigor das mãos, o brilho dos olhos e o frémito da vontade constituem em cada ser em todos os tempos um desígnio” (ANDRADE, 1993, 31). Até ao séc. XIX, a imagem da mulher madeirense é gerada em mente masculina, ora idealizadora, ora reveladora de preconceitos de classe, de género e até de fisionomia. Em sintonia com o que se passava em Portugal, as vozes femininas que fizeram uso da palavra escrita na Madeira do séc. XIX, tirando raras exceções como a autora de romances históricos Maria do Monte de Sant’Ana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt (1823-1884) e a escritora-viajante Maria Celina Sauvayre da Câmara (1855/60-1929), autora do diário De Nápoles a Jerusalém (1899), acantonavam-se aos temas quase exclusivos das mulheres bem-nascidas e casadas: família, educação, receção mundana, devoção religiosa e obras de caridade. Na segunda metade do séc. XX, esbatendo-se as fronteiras de classe e de género, os textos de autoria feminina criam alguma rutura e abordam mais livremente todo o tipo de temas, quer sociais, quer políticos, quer culturais, quer sexuais. Despontam cenas em que se invertem os papéis de género tradicionais: homens frágeis e mulheres fortes, homens acanhados e mulheres audaciosas. É certo que a mulher-povo não escreveu sobre si própria como a das classes favorecidas; mas, no dealbar do séc. XX, alguns escritores emprestam-lhe a sua voz, e ficamos a saber um pouco mais sobre camponesas, bordadeiras, curandeiras, prostitutas, mulheres de pescador, empregadas em casa particular, comércio ou fábrica, ou mulheres de bairro popular, como as da freguesia de Santa Maria evocadas no livro Dona-Joana-Rabo-de-Peixe, de João Carlos Abreu (n. 1935). A mulher deixa de ser uma figura idealizada, um mero objeto de desejo, torna-se o sujeito do seu corpo e da sua voz, a condutora da própria vida, mau grado as dificuldades que a sociedade ainda lhe coloca. O lugar que a escrita masculina concede à mulher não tem em mente um projeto ou sequer índole emancipatórios, mas tratar-se-á de um subterfúgio para censurar aspetos da realidade com os quais o autor se confronta. Na ficção produzida, os autores descrevem e denunciam, não militam. A escrita feminina também descreve e denuncia, além de enumerar as liberdades que foram sendo adquiridas. Na produção literária passada em revista, predomina um contingente constituído por hommes de lettres colocado perante uma representação numericamente mais reduzida de femmes de lettres. Relação que se inverte a partir de finais do séc. XX, em que as mulheres se apoderam da comunicação textual e da ficção em especial. Mas foi num contexto temporal anterior que se criou o feminino literário insular, com um discurso assente quase exclusivamente na mulher pertencente ou introduzida nas elites, nas classes privilegiadas, silenciando, esquecendo, desdenhando e, por conseguinte, procedendo à subalternização das mulheres do povo. Em termos de representação do género, uma minoria oculta a vivência quotidiana da maioria. O fator insularidade reflete-se no género e na vivência feminina. Conhecer o exterior permite adquirir vantagens competitivas nas relações sociais dentro do espaço insular. Na ficção, este capital é várias vezes referido. Viaja-se para conhecer, para desfrutar e, de regresso, comparar. De fora chegam ou trazem-se novidades e inovações. Faz-se uma apropriação mental diferenciada do exterior, em que a emigração secular desempenha um papel central. Emigram homens e mulheres, povo e senhores, pobres e ricos. A maioria não “torna-viagem”. Nesta mobilidade transoceânica, a mulher vai apagada, porque subsumida em família, ou deixada em terra para posterior oportunidade. Só mais tarde adquire visibilidade, ao protagonizar movimentos sazonais de mão de obra, como ocorre na indústria hoteleira das ilhas do Canal britânicas. Tirando a obra bentiana (vejam-se, e.g., as narrativas “Ana Maria”, incluída em Alma Negra, Margareta e Luísa Marta), a ficção mal aborda esta faceta que caracteriza a mulher assalariada. A mulher camponesa pouca atenção mereceu, salvo exceções raras, sendo uma delas as referências que lhe faz, em 1853, a inglesa Isabella de França (1795-1880) ao descrever a longa lua de mel que passou na Ilha. No período novecentista, com o desenvolvimento da indústria do bordado – introduzida no século anterior por empresários britânicos – aparecem, tanto no campo da Madeira e do Porto Santo, como na cidade, as bordadeiras e, nas fábricas respetivas, as operárias do bordado; umas fazem trabalho ao domicílio e recebem à tarefa, as outras são assalariadas e formam um proletariado insular essencialmente feminino, como ilustra o romance Lágrimas Correndo Mundo, de Bento de Gouveia. É por esta via que a mulher do povo ganha visibilidade. A pertença de classe distingue-a no seio do componente género. Com a Revolução de 25 de abril de 1974, a presença da mulher trabalhadora institucionaliza-se na sociedade insular; do seu seio surgem lideranças políticas, como será o caso de Guida Vieira (n. 1950). A ficção suscita outras questões, como a da fluidez entre o visível e o invisível, o revelado e o silenciado nas relações entre géneros, remetendo-se à mulher responsabilidades fundamentais, mas secundarizadas pelo homem, investido no papel de pai, irmão ou marido. Trata-se de gerir legados materiais e simbólicos. Por um lado, é devida obediência à autoridade paterna (ou ao seu equivalente), no que respeita às regras no mercado matrimonial. Uma mulher constitui um capital reprodutor, sendo o fator estético (mulher alva e mulher trigueira) atributo que se lhe adiciona, assim ainda outro, desta feita ligado ao risco (castidade e adultério ou fidelidade e infidelidade). Para além dos comportamentos reais, existem os entendidos ou assumidos. Na prática, funcionaria uma escala de gradações fluidas. Matrimónio liga-se a património e a regras e práticas de herança de combinações multifacetadas. Mesmo referindo a mulher e a sua opressão, o escritor homem tem uma visão masculina da ordem jurídica da sociedade. A invisibilidade da mulher na gestão de imóveis – que só deixava de o ser se enviuvada – estendia-se a outras vertentes do património menos expostas, por isso negligenciadas. Cabia-lhe preservar, ampliar e transmitir um conjunto de conhecimentos ensinados nos missais, sendo que na esfera do religioso se refletiam aspetos das relações entre os géneros; o padre podia constituir a presença rival suspeita pela insuspeição devida. Era ela que perpetuava o saber-fazer culinário, compilando receitas, escritas à mão e mantidas em encadernação improvisada. Cuidava de enxovais, que se herdavam e ampliavam. Destacavam-se peças da indumentária cerimonial, valorizadas não só pela durabilidade da matéria-prima, mas sobretudo pelo bordado incorporado; atestam-no exemplares destes artefactos integrados em coleções museológicas, confecionados para uso em ritos de passagem (batizado, casamento). Era ainda tarefa feminina, embora discreta, zelar pelas garrafas de vinho tratado – como faz a tia Leocádia no conto ambientado no séc. XIX “Rua da Carreira, ocaso”, de José Viale Moutinho (n. 1945), mulher para quem “o melhor vinho do mundo” (proveniente de uma quinta do Douro) não consegue rivalizar com “os seus melhores Madeiras” (Moutinho, 2007, 48-49) –, que se transferiam de geração; constituíam como que uma reserva de sangue social, em reforço do fisiológico. A lide doméstica organizava-se em torno duma cozinha, em funcionamento quase contínuo. Era um espaço exclusivo de vozes femininas; umas de comando, outras de obediência. Ali se manipulavam substâncias animais e vegetais, com vista à alteração controlada dos seus estados. Apuravam-se sabores, intensificavam-se cheiros. Transformavam-se crus em cozidos, estufados ou assados. Um jogo calculado com os trânsitos entre natureza e cultura. Nestas liminaridades, a mulher dispunha de autoridade, poder e imunidade.     Thierry Proença dos Santos Jorge Freitas Branco (atualizado a 23.02.2018)

Antropologia e Cultura Material Literatura

beckett, samuel

Samuel Beckett. Wikimedia Commons   Nasceu em Dublin, em 1906, morreu em Paris, em 1989, e viveu uma temporada no arquipélago da Madeira, entre 1968 e 1969. O dramaturgo e escritor irlandês chegou ao Funchal no dia 2 de dezembro de 1968, mas mudou-se logo depois para a ilha do Porto Santo, permanecendo aí até meados de fevereiro de 1969. Deste período madeirense de Samuel Beckett, é conhecida correspondência diversa, que, além do interesse biográfico inerente – pois, para alargar e completar o conhecimento dos grandes homens, publicam-se-lhes as cartas, todos os papéis íntimos e até as contas do alfaiate, dizia Eça de Queirós –, apresenta um valor testemunhal e documental ímpar sobre o ambiente urbano do Funchal e a vivência no Porto Santo naquele tempo. Samuel Beckett contava 62 anos quando, como tantos outros desde o séc. XIX, procurou a Madeira pela fama do seu suposto clima profilático e terapêutico, ideal para os que sofrem de patologias de âmbito respiratório. Mas o bulício e o barulho rodoviário do Funchal, e sobretudo o mau tempo e a humidade extrema, não lhe facultaram a tranquilidade esperada. Numa carta de 5 de dezembro de 1968 enviada a Barbara Bray, tradutora, crítica literária e amiga chegada, começa por dar nota do seu desagrado e compara a cidade do Funchal a um buraco sombrio e sinistro, emparedado pelas vertentes montanhosas, onde se precipitava em vagas uma chuva grossa; ao amanhecer, camiões com bananas, aves e hortaliças atravessavam a roncar a estrada Monumental, sob a janela do seu quarto na Vila Marina, seguindo para o mercado dos lavradores. Na mesma data, afiançava ao amigo pintor Henri Hayden que o Funchal era uma cidade ainda mais ruidosa do que Paris, enxameada de táxis e densa de edificações, encavalitadas pela encosta acima. E, apesar do mau tempo, a cidade efervescia, entregue ao formigueiro dos adventícios preparativos da festa natalícia. Enclausurado no hotel pela borrasca, vendo que o Funchal não lhe proporcionaria o ambiente e o bem-estar que procurava, Samuel Beckett decide partir logo que possível para o Porto Santo; a Ilha Dourada tinha-lhe sido recomendada – talvez por Luís Jardim, agente de turismo na Madeira – como sendo um pouco mais quente e seca. No caso de não haver condições para ali permanecer, seguiria para o Algarve ou para Cascais, no início do ano novo. Na carta de 11 de dezembro de 1968, anuncia a Barbara Bray a partida para o Porto Santo, fugindo assim à cidade do Funchal, que descrevia outra vez a traços de chumbo, tomada por um excesso de automóveis fumarentos e ruidosos, cheirando a gasolina, com chuva, vento e frio, a neve nos picos, sob um céu pesado. Na circunstância descrita, a impressão pessoal que Samuel Beckett retém e que nos deixou do Funchal é, pois, bastante negativa, na perspetiva de quem esperava encontrar durante o inverno um local pacato e de clima ameno para uma temporada de restabelecimento da saúde. Samuel Beckett aterrou na Ilha Dourada no dia 12 de dezembro de 1968 e instalou-se no Hotel Porto Santo – então o único alojamento turístico moderno, inaugurado poucos anos antes, em 1962. Num postal telegráfico para Barbara Bray, mostra-se muito satisfeito com a quietude e ambiência da pequena ilha, o sossego do hotel, que dava para a praia esplêndida, o clima suave. O Porto Santo agradou a Samuel Beckett desde o primeiro momento. O isolamento da ilha mantinha-o afastado do mundo – correio, só três vezes por semana; jornais, os que a tripulação da TAP deixava no hotel. Passava os dias tranquilamente, entre caminhadas pela praia e, mais raramente, passeios à vila, a uma distância de uns 10 minutos a pé. Uma vez por outra, uma breve incursão ao interior insular, ou à Camacha, no Norte. A falta de estradas condicionava as deambulações. Impressionava-o a aridez da paisagem ilhoa. Nesta quadra do ano, o Hotel Porto Santo acolhia poucos hóspedes – apenas alguns Alemães se deixavam ficar, pelo conforto do meio inverno meridiano. Apesar da monotonia, Samuel Beckett sentia-se bem e foi adiando a partida. Com o sol de janeiro, pode experimentar-se uma ilusão de primavera na Ilha Dourada. E, na delícia de uma hora dessas, Samuel Beckett não esconde o seu fascínio pelo Porto Santo: numa carta do dia 28, confidencia a Barbara Bray que esta pequena ilha seria o sítio ideal para se passar com simplicidade e harmonia os derradeiros dias da vida, numa casita chã de frente para o mar, com um quintal em redor. E, com certo humor, acrescenta que só tinha pena que não houvesse dentistas por ali – até aos anos 80, os habitantes do Porto Santo consumiam a água salobra das nascentes da ilha e por isso os seus dentes adquiriam uma aparência acastanhada resultante da acentuada oxidação. Samuel Beckett deixou o Porto Santo no dia 14 de fevereiro de 1969, num voo da TAP para Lisboa. Deteve-se em Cascais durante duas semanas e regressou a Paris no dia 2 de março. Neste mesmo ano de 1969, ser-lhe-ia atribuído o Prémio Nobel da Literatura. Esta passagem e permanência de Samuel Beckett em Portugal é referida, designadamente, na biografia de referência Damned to Fame: The Life of Samuel Beckett (1996), de James Knowlson. Grande parte da correspondência de Samuel Beckett está depositada na Beckett International Foundation, na Univ. de Reading; no Harry Ransom Humanities Research Center e no Trinity College da Univ. de Dublin (caso das cartas a Barbara Bray referidas); na Irish Literary Library, Emory University, Austin, Texas; e na John J. Burns Library, Boston College, Massachusetts. Nestes arquivos, encontram-se também postais ilustrados do Porto Santo, com vistas da Foto Perestrellos, alguns endereçados ao seu editor, Robert Pinget. A Beckett Foundation/Cambridge University Press, em parceria com várias instituições universitárias, começou a publicar sistematicamente, em 2009, a correspondência de Samuel Beckett, mas as cartas remetidas do Porto Santo, designadamente para Barbara Bray e Henry Heiden, permaneciam inéditas em 2016, altura em que estava prevista a sua inclusão no volume IV da coleção The Letters of Samuel Beckett. O acesso ao conteúdo destes manuscritos foi obtido graças à generosidade do diretor da Beckett International Foundation, Mark Nixon, e ao envolvimento de David Murray e Jennie Wadley, Inglesesresidentes no Porto Santo.   José Campinho (atualizado a 23.02.2018)

Literatura

pilar de banger

Pilar de Banger. 1935. O Pilar de Banger foi construído pelo comerciante inglês John Light Banger em 1798. Com a sua altura de quase de 30 m, foi levantado para servir como guindaste e cabrestante no transporte de mercadorias dos navios fundeados ao largo da praia do Funchal. O aumento geral da envergadura dos navios inviabilizou essa ideia, se alguma vez chegou a ser posta em prática. Este pilar foi utilizado como registo dos navios que entravam no porto. Acabou por ser demolido em 1939, quando a avenida do Mar foi construída, mas a sua memória continua viva na sociedade madeirense. Foi uma das curiosidades mais registadas da cidade pelos inúmeros viajantes do séc. XIX e XX. Palavras-chave: Pilar de Banger, guindaste, cabrestante, transporte de mercadorias, registo de navios, avenida do Mar; memória patrimonial, urbanismo.     Pilar de Banger. Max Römer. 1947 O chamado Pilar de Banger foi construído pelo comerciante inglês John Light Banger (1726-c. 1798), em 1798, ano apontado como o mais provável do falecimento deste comerciante. O Pilar tinha como finalidade servir, com a sua altura de quase de 30 m, como guindaste e cabrestante para o transporte de mercadorias dos navios fundeados ao largo da baía do Funchal para a praia. O aumento geral da envergadura das unidades de transporte marítimo e o assoreamento da baía inviabilizou rapidamente essa utilização, pois os navios passaram a ancorar a uma considerável distância da praia. Mas o Pilar tornou-se, pela sua volumetria e localização junto da entrada da cidade, numa das mais importantes referências do porto do Funchal, e fazia as delícias dos viajantes que demandavam a Ilha da Madeira, sendo objeto de inúmeros desenhos, aguarelas e, depois, de fotografias. Com a sua demolição em 1939, tornou-se numa das memórias históricas da cidade e continuou nos anos seguintes a ser pintado, por Max Römer (1878-1960) e outros; conhece-se mais de uma dezena de exemplares das décs. de 40 e 50 desse século. . Pilar de Banger. 1901. A construção do Pilar de Banger, que foi levantado em cantaria no Cabo Girão, custou 1350 libras esterlinas, e tinha como intenção recolher as mercadorias a partir de navios situados ao largo da baía do Funchal, de forma a deixar o comerciante isento de uma série de taxas alfandegárias, pelo menos as ligadas ao embarque e desembarque de mercadorias. O falecimento prematuro de John Banger, que em 1801 ainda usufruía de autorização da Câmara do Funchal para utilizar uma estufa para purificação do grão, invalidou o projeto. Em meados do séc. XIX, o Pilar passou a ter a função de registar os navios que entravam no porto. Este serviço estava, nos finais do mesmo século, entregue à Casa Blandy através da Associação de Comerciantes do Funchal. Os exportadores das encostas da cidade eram avisados da chegada dos navios ao porto e a que companhias pertenciam. A comunicação era feita para as encostas da cidade, especialmente para o lugar Avista Navios, na Nazaré, através de uma bandeira hasteada no Pilar. Cada companhia tinha uma bandeira própria e, desta forma, os comerciantes sabiam que navio estava para entrar no porto, se tinham mercadoria a receber ou a despachar, se chegava a correspondência ou os jornais que lhes interessavam, etc.     O Pilar foi erguido sobre um afloramento rochoso na praia do Funchal, mas não deve ser verdadeira a tradição que diz que na época da sua construção se passava “em canoa, entre ele e a muralha de defesa da cidade” (CALDEIRA, 1964, 131), pois ficava muito acima da linha da praia-mar marcada na planta da cidade elaborada em 1805, poucos anos após a sua construção, por Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832. Nos meados ou finais do séc. XIX, o topo do Pilar foi dotado de uma pequena esplanada com varanda de ferro – que aparece nas fotografias – tendo ao centro um grande mastro com mastaréu de sinais. Como era utilizado para registo dos navios e, em alturas especiais e dias festivos, chegava a embandeirar em arco, como também registam fotografias e como aconteceu na visita régia de 1901 (Visita régia), tinham de subir ao Pilar homens amarrados pela cintura num cabo de pita ou de aço, que girava com o auxílio de uma polé. Algumas vezes, a ascensão era feita numa cadeira de vimes presa ao mesmo cabo (CALDEIRA, 1964, pp. 31-132). Pilar de Banger. 1925. Pilar de Banger, vista Norte. Pilar de Banger.1900   Pilar de Banger. 1890.   Nos meados da déc. de 30 do séc. XX, Fernão de Ornelas (1908-1978), à frente da comissão administrativa da Câmara do Funchal, iniciou uma enorme campanha de obras em toda a cidade do Funchal, seguindo de muito perto o arrojado plano de melhoramentos feito pelo arquiteto Miguel Ventura Terra (1866-1919), em 1914 e 1915, que propunha a construção de uma marginal, tal como havia nas grandes cidades portuárias e turísticas da Europa. Nesse quadro, projetaram-se inúmeras demolições, entre as quais a do velho Pilar de Banger, o que desencadeou uma acesa polémica na comunicação social. Re-nhau-nhau. 20. Jul.1939 Foi até publicada no Re-Nhau-Nhau uma caricatura (Caricaturistas) de Paulo Sá Brás (c. 1920-c. 2000), onde João Abel de Freitas (1893-1948), personificando a Junta Autónoma dos Portos, encarregada pela Junta Geral do arranjo da marginal, brande uma picareta para demolir o Pilar, enquanto o defendem o P.e Fernando Augusto da Silva (1863-1949), empunhando uma espingarda de baioneta calada, o investigador Carlos Santos (1893-1955), que se agarra ao Pilar, e a condessa de Torre Bela, D. Isabel Constance Gordon Bolger (1863-c. 1945), que atiça o seu cão (Torre Bela, condes de). A legenda especifica: “Por mais que Carlos Santos se agarre ao Pilar de Banger com unhas e dentes, o Sr. P.e Fernando se atire de alma, coração e carabina, à Junta Autónoma, e a Sr.a Condessa de Torre Bela lance os seus cães à perna da dita Junta, a triste verdade é que o Pilar de Banger, que naquele sítio nunca fez mal a ninguém, está-se indo à vida” (Re-nhau-nhau, 20 jul. 1939, 10). .   A Câmara Municipal do Funchal e a Junta Geral do distrito mantiveram o projeto, que já vinha da época de Ventura Terra, e o Pilar foi desmanchado nesse mês de julho 1939, para a construção da marginal do Funchal, a futura Avenida do Mar. O material do Pilar dispersou-se por vários proprietários: uma parte foi utilizada numa construção privada no Caminhos dos Pretos (Cabo Verde), outra parte terá sido adquirida pela Casa Blandy, para obras na Quinta do Palheiro, etc. Nas obras de manutenção e repavimentação da Avenida do Mar de 1990 foram encontradas as fundações do Pilar de Banger por baixo da faixa de rodagem norte. Não sendo possível fazer a reposição no local, as pedras da base do pilar foram remontadas no jardim anexo e fronteiro, ligeiramente mais para nascente, acompanhadas de uma placa informativa. A memória do enorme Pilar sempre foi mantida em certa sociedade madeirense, renascendo constantemente a ideia de o reerguer. Em 22 de junho de 2015, apareceu uma petição no Diário de Notícias para esse efeito (“Erguer o Pilar de Banger”, DN, 22 jun. 2015).   Demolição do Pilar de Banger. 1939. Demolição do Pilar de Banger. 1939   Pilar de Banger, após a recolocação de 1990.   Rui Carita (atualizado a 24.02.2018)

História Económica e Social

santana

Neste texto, são tratados de forma sintética aspectos relacionados com a administração municipal, funcionários, atividades socioeconómicas, evolução da população, património e principais personalidades que se destacaram no concelho de Santana. Palavras-chave: Santana; São Jorge; Arco de São Jorge; Faial; São Roque do Faial; Ilha.   Em 1578, Santana era identificada na documentação como ficando “detrás da Ilha” (RIBEIRO, 2001, 75), mas já em 1821 é referenciada em Paulo Dias de Almeida como as “freguesias do Norte, Porto da Cruz, Faial e Santana” (CARITA, 1982, 171). Antes, em 1722, Henrique Henriques de Noronha já afirmara que “a Paróquia de S. Jorge, que foi a mais antiga de todas as da parte do Norte; por cujo respeito iam em tempos mais antigos os vigários circunvizinhos com suas cruzes assistir nela à procissão do Corpo de Deus; cuja observância guardam ainda hoje as duas que lhe ficam mais próximas, que são a de S. Ana, e do Arco” (NORONHA, 1996, 206). Para muitos, este concelho afirma-se pela forte presença das imagens da casa de madeira e restolho, como pelas suas paisagens bucólicas. Todos, ou quase todos, os visitantes da Ilha, cientistas, escritores e políticos de diversa origem visitavam este lugar e levavam imagens e registos escritos que nunca se apagaram. Aliás, Santana fica no caminho que ligava o sul da Ilha com o norte, sendo um espaço de acolhimento para os que por aí circulavam. Ferreira de Castro escreveu parte significativa do seu romance Eternidade (1933) aqui. Dos escritos destes visitantes, tivemos várias expressões elogiosas do local. Assim, em 1927, o marquês de Jácome Correia considerava-o “o jardim agrícola da Madeira” (CORREIA, 1927, 160) A memória histórica do concelho de Santana está limitada pela ausência de documentos que desapareceram num incêndio no edifício da Câmara, em 1948. Por este motivo, os Paços do Concelho tiveram novo edifício, inaugurado a 28 de abril de 1958. Ao contrário do que aconteceu noutros concelhos, os tumultos populares de 1868 e 1887 não provocaram o saque e queima da documentação. O município de Santana integra as freguesias de Arco de São Jorge, Faial, Ilha, Santana, São Jorge e São Roque do Faial. A 19 de outubro de 1852, a freguesia do Porto da Cruz foi desanexada deste concelho, passando a pertencer ao de Machico. A 26 de novembro de 1879, foi publicado um decreto, anexando a freguesia do Arco de São Jorge à de São Jorge e a de São Roque do Faial à do Faial. O nome de Arco de São Jorge tem origem na forma em arco das montanhas que a circundam. A primeira capela, da invocação de N.ª Sr.ª da Piedade, surgiu no Sítio dos Casais, mas, devido ao seu estado de ruína, foi ordenada a construção de outra, em 1740, que abriu ao culto em 1744. A primeira capelania do Faial surgiu em 1519, na ermida dedicada a N.ª Sr.ª da Natividade, surgindo a freguesia por alvará régio de 20 de fevereiro de 1550. O topónimo deverá ter origem na abundância de faias (Myrica faya) que aí encontraram os primeiros colonos. A localidade de São Jorge tem origem no padroeiro de uma ermida, que deu origem à primeira igreja, no Chão da Ribeira, cerca de 1551, destruída pela aluvião de 1883. A freguesia da Ilha foi criada em 1989, ano em que se desanexou de São Jorge. A designação resulta da sua localização entre duas ribeiras, que a faz assemelhar-se a uma ilha. A tradição aponta a presença de açorianos nos princípios do povoado. Em 1559, existiriam dois morgadios, conhecidos como Ilha e Carvalhal, ligados a Lopo Fernandes Pinto, considerado o primeiro povoador. A primitiva ermida do orago de S.ta Ana foi elevada a sede de freguesia em 8 de agosto de 1564. Entre 1509 e 1521, temos referência a um capelão de São Jorge e Santana. A partir de 1519, foi capelania, elevada a freguesia por alvará régio de 2 de junho de 1564. Em 1835, foi vila e sede do concelho. Segundo Paulo Dias de Almeida, em 1817 era “a melhor freguesia que tem a ilha” (CARITA, 1982, 72). A 1 de janeiro de 2001, foi elevada à categoria de cidade. São Jorge foi uma das primeiras áreas do atual concelho a serem povoadas, sendo já referenciada em 1425 e, como paróquia, em 1519, não obstante haver, em 1509, um documento que fala do ordenado do vigário de São Jorge, o qual, em 1535 e 1550, acumulava funções também em Santana. O núcleo primitivo situava-se na zona do Calhau, junto ao mar. A escolha do santo guerreiro para dar nome à localidade estará, segundo alguns, relacionada com a bravura da ribeira, mas outros apontam a capela consagrada a São Jorge como a razão mais provável. Em 1817, Paulo Dias de Almeida é perentório ao caracterizar São Jorge como “a paróquia é a melhor de toda a ilha” (Id., Ibid., 71). Administração Em 1744, com a criação da nova vila e sede do concelho em São Vicente, os lugares do Porto Moniz, Seixal, Ponta Delgada, Arco e São Jorge estiveram sob a sua alçada. Em 1822, foi apresentado nas cortes um projeto de divisão municipal da Madeira que propunha São Jorge para sede do concelho, mas que não teve aprovação. A reorganização da estrutura municipal de 1835 conduziu ao aparecimento dos municípios, como o de Santana e o de Porto Moniz, pelo que São Vicente ficou reduzido à atual área. Foi depois extinto, pelo dec. de 10 de dezembro de 1867, passando as freguesias do Faial e de São Roque do Faial para o concelho de Machico e as do Arco de São Jorge e de São Jorge para o de São Vicente, contudo, o decreto não teve execução, uma vez que os concelhos foram pouco tempo depois restabelecidos. O concelho de Santana começou por ser constituído pelas freguesias do Arco de São Jorge, São Jorge, Santana, Faial, São Roque do Faial e Porto da Cruz. Por dec. de 15 de outubro de 1852, a freguesia do Porto da Cruz foi desmembrada e acabou, de novo, integrada no concelho de Machico. Com os decs. de 10 de dezembro de 1867 e 18 novembro de 1895, o concelho regressou à área inicial. A 5 de julho de 1955, o dec. n.º 40.221 fixou os atuais limites do concelho de Santana. Desde 1 de janeiro de 2001, Santana foi elevada à categoria de cidade, sendo, por isso, considerada a primeira cidade do séc. XXI e da costa norte. População Como o povoamento da Ilha foi predominantemente litoral, pelas dificuldades colocadas pela orografia na penetração da mesma, o progresso habitacional dos núcleos interiores foi lento. Em 1817, Paulo Dias de Almeida referia que “Os caminhos de comunicação para a freguesia de St.ª Ana são péssimos, embora o que vai ao porto não é mau, ainda que passe por um formidável despenhadeiro” (Id., Ibid., 72), e que o pequeno porto que existia em São Jorge, e servia também na freguesia de Santana, oferecia condições precárias: “O porto tem muita rocha e os barcos que ali vão receber os vinhos não chegam a terra e não encalham, recebendo as pipas ao vaivém, e muitas se perdem porque batem contra a rocha” (Id., Ibid., 72). Por isso, planearam-se estradas pelo maciço central da Ilha para aproximar o norte do Funchal, no entanto, apenas em pleno século XXI essa solução atingiu a sua plenitude. O primeiro passo nesse sentido teve lugar nas décs. de 30 e 50 do séc. XX. Neste contexto, foi um marco relevante a construção da ponte do Faial, que, desde 30 de outubro de 1940, foi um avanço na aproximação daquela área ao Funchal. Na déc. de 90 do séc. XVI, Gaspar Frutuoso afirma que Santa Ana tinha apenas 30 fogos, enquanto São Jorge, com bom porto e junto ao mar, já apresentava 150. N.ª Sr.ª do Faial, presa entre duas ribeiras, apresentava 100 fogos e era considerada um lugar de romagem. Esta era também, na visão de Frutuoso, a localidade que apresentava maiores proventos aos seus habitantes. Já no recenseamento de 1598, temos Santana, com 55 fogos e 184 almas, São Jorge, conhecida como Ribeira de São Jorge, com 87 fogos para 280 almas, e o Faial, designado Ribeira do Faial, com 42 fogos e 188 almas. Em Corografia Insulana (1713-1714), António Carvalho da Costa refere a freguesia do Faial, com 100 vizinhos, Santana, com apenas 70, e São Jorge, com 200 “quase espalhados” (COSTA, 1930, 76), não havendo qualquer referência à Ilha e ao Arco. Em 1722, Henrique Henriques de Noronha dá conta, no Faial, de 666 almas, depois Santana, com 298 fogos e 1294 pessoas. São Jorge, considerada a freguesia mais antiga do norte, regista 230 fogos e 715 pessoas, e, por fim, o Arco, com 86 fogos e 243 almas. Em 1821, Paulo Dias de Almeida refere o ponto da situação da população: o Faial com 619 fogos e 3097 habitantes, Santana com 600 fogos e 2629 habitantes, São Jorge com 520 fogos e 2230 habitantes e o Arco de São Jorge com 800 fogos e 3214 habitantes. Para o período de 1835 a 1847, temos apenas a indicação do número de habitantes: 14.799, em 1835, 15.011, em 1839, 15.009, em 1843, e 12.132, em 1847. Em 1850, temos, de novo, os dados por freguesia: o Faial com 670 fogos e 2650 habitantes, Santana com 563 fogos e 2672 habitantes, São Jorge com 580 fogos e 2700 habitantes, e o Arco de São Jorge com 143 fogos e 572 habitantes. As dificuldades sentidas na déc. de 40, com a fome, refletiram-se na população, principalmente por força da emigração. Assim, entre 1886 e 1899, há registo de 2621 emigrantes oficiais registados neste concelho, representando, juntamente com a Ponta de Sol, o concelho com maior emigração. Desta forma, em 1864, temos um total de 8315 habitantes. As condições entretanto melhoraram na economia e, em 1878, já se fala em 9475 habitantes, 9013 em 1900, e 9337 em 1900. Em 1930, a população era de 10.910 almas. Com os censos de 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1990, 2001 e 2011, temos, respetivamente, 14.097, 15.663, 14.038, 15.543, 13.971, 12.850, 11.253 e 7719 habitantes. Economia Gaspar Frutuoso, na déc. de 90 do séc. XVI, referindo-se ao local de Santana, afirma que “São terras de lavrança de muito pão e criações; tem muita castanha e noz, e muitas águas e frutas de toda sorte” (FRUTUOSO, 1966, 131). Em São Jorge, subjaz a vantagem do mar na sua importância económica: “[…] a par do mar, com muito bom porto; tem muitas vinhas de bom vinho de carregação, e muitas terras de lavrança de pão e criações, e muita fruta de toda sorte, com muitas águas” (Ibid., 131). A situação de N.ª Sr.a do Faial, não obstante o acidentado criado pelas duas ribeiras, “tem muita fruta de espinho, de cidras e limões, peras e peros e maçãs, e castanha e noz. Sendo a igreja de boa grandeza, […] a oito de setembro se ajuntam de romagem de toda a ilha passante de oito mil almas, onde se vê uma rica feira de mantimentos de muita carne de porco e vaca, e chibarro, a qual é uma extremada carne de gostosa naquela ilha, ainda que em outras muitas terras e ilhas seja a pior de todas. Ali se ajuntam muitos cabritos e frutas, e outras coisas de comer, para comprarem os romeiros, que muitas vezes se deixam estar dois, três e mais dias em Nossa Senhora, descansando do trabalho do caminho, […] e juntos fazem muitas festas de comédias, danças e músicas de muitos instrumentos de violas, guitarras, frautas, rabis e gaitas de fole pelas fraldras das ribeiras, que têm grandes campos, no dia de Nossa Senhora e em seu oitavário, se alojam os romeiros em diversos magotes, fazendo grandes fogueiras entre aquelas serranias” (Id., Ibid., 130). Sem dúvida, porém, que a principal riqueza está nos canaviais, nos dois engenhos de açúcar, um de Luís Doria e o outro de António Fernandes das Covas, e numa serra de água, “[…] que foi um grande e proveitoso engenho, em que dois ou três homens chegam por engenho de pau de vinte palmos de comprido e dois e três de largo à serra, e, por arte, um só homem, que é o serrador, com um só pé […] leva o pau avante e a serra sempre vai cortando e, como chega ao cabo com o fio, com o mesmo pé dá para trás, fazendo tornar o pau todo, e torna a serra a tomar outro fio; de maneira que quem vir esta obra julgará por mui grande e necessária invenção a serra de água naquela ilha, onde não era possível serrarem-se tão grandes paus, como nela há, com serra de braços, nem tanta suma de tabuado, como se faz para caixas de açúcar […]” (Id., Ibid., 130). António Carvalho da Costa, em Corografia Insulana (1713-1714), refere em Santana a sua riqueza agrícola: “[…] pela terra dentro está situada em vistoso plano, que regado com muitas águas faz aquele terreno abundante de saborosas frutas, em dilatados pomares” (NASCIMENTO, 1949, 76). Depois temos São Jorge, que “[…] produz alguns vinhos suficientes para embarque, muitas frutas, além de pão, que em mais quantidade se lavra em toda esta parte do Norte” (Id., Ibid., 76). Em 1722, Henrique Henriques de Noronha dá-nos a imagem de Santana, como sendo terra “regada de muitas águas; com que produz excelentes frutos” (NORONHA, 1996, 206). Na primeira metade do séc. XIX, o concelho adquiria importância na cultura da vinha, sendo dominado pelas freguesias de Santana e São Jorge. O porto de São Jorge era a principal via de escoamento deste vinho. A zona do porto era servida de armazéns e de um forte. Em 1821, a produção de vinho no concelho era de 4623 pipas por ano, sendo 1128 em São Jorge, 295 no Arco, 1800 em Santana e 1400 no Faial. Em 1848, a água das chuvas inundou o concelho de Santana, tendo sido arrastadas pelas águas as benfeitorias produtivas mais importantes. A isto junta-se, no início da déc. de 50, o oídio, que provocou perdas no concelho no valor de 103.670$000. A cultura da vinha é importante para o concelho, como o atestam os números de produção em hectolitros: 11.214 em 1787, 28.760 em 1813, 25.576 em 1837, 23.341 em 1851, 931 em 1852, e, mais próximo de nós, tivemos, em 1986, a produção de 19.092 hl, o que atesta o dinamismo da cultura. Em 1863, eram 11 os lagares em funcionamento. Os cereais também têm importância na atividade agrícola do concelho, não apenas os cereais trazidos pelos europeus, mas também outros exóticos, como o milho, trazido para a Madeira, em 1847, por iniciativa de Laureano Câmara Falcão e plantado no sítio da Ilha, em São Jorge. Na Madeira, a cana sacarina, usufruindo do apoio e proteção do senhorio e da Coroa, conquista o espaço ocupado pelas searas, atingindo todo o solo arável da Ilha em duas áreas: a vertente meridional (de Machico à Calheta), com um clima quente e abrigada dos alísios, onde os canaviais atingem 400 m de altitude, e a área da vertente norte, dominada pelas plantações da capitania de Machico (Porto da Cruz e Faial até Santana). No concelho de Santana, apenas se registam engenhos em São Jorge, Arco e Faial. Na freguesia de São Jorge, temos notícia dos seguintes engenhos para o fabrico de aguardente: 1858, de Manuel Fernandes de Nóbrega; 1859, de Manuel José Catanho; 1896, de João Francisco Jardim; 1896, de Luzia Augusta; e 1899, de Francisco da Cunha. No Arco de São Jorge, referem-se os seguintes: 1859, de Maurício Castelo Branco & C.ª; 1896, de António Joaquim França; do mesmo ano, de Francisco José Brito Figueiroa; e 1905, de José Oliveira Jardim Júnior. Em São Roque do Faial, tivemos um engenho no Sítio das Covas desde 1859, que, em 1899, era pertença do Dr. João Catanho de Menezes (1854-1942) e de Leocádia Maria Menezes, tendo-se mantido no ativo até 1939. Surgiu outro nos Terreiros, em 1899, propriedade de Albino Rodrigues Sousa. Em meados do séc. XIX, com o retorno da cana-de-açúcar, surgem os primeiros engenhos, em São Jorge e no Faial e, depois, em Santana. As áreas de cultivo dos canaviais continuam a manter a tradição histórica. Para o ano de 1865, temos indicação dos valores de produção, por conselho. O facto mais significativo é o concelho de Santana, cuja produção incide no Faial e alastra, depois, a São Jorge e Arco de São Jorge. A cultura foi conquistando importância e captando o interesse dos agricultores em toda a Ilha, mesmo em terras impróprias. Deste modo, os problemas do mercado da primeira metade do séc. XX levaram o Governo a delimitar áreas de produção, ficando de fora os concelhos de Santana e São Vicente, que, em 1953, reclamavam o direito à mesma. A partir de 1956, a Estação Agrária da Madeira criou viveiros em toda a Ilha, de forma a alargar a cultura da cana a todo o espaço arável. Isto surgiu por imposição das câmaras de São Vicente e Santana, que haviam solicitado, em 1953, ao ministro do Interior o restabelecimento da cultura na vertente norte. Todavia, o dec. de 1955, que alargou a área de cana, não o contemplou. Contudo, a Junta Geral estabeleceu campos experimentais em ambos os concelhos, no sentido de conhecer as possibilidades da cultura. A par disso, é de realçar, também, a insistência das gentes do norte, representadas através dos municípios de São Vicente e Santana, em pretenderem furar as limitações impostas pelas autoridades para a área de produção de cana, que não acautelavam a vertente, devido ao baixo teor de sacarose, levando a Junta Geral, em 1955, a contrariar as ordens do Ministério do Interior, implantando dois campos experimentais, em São Vicente e Santana. A situação é resultado do facto de a cana ser um complemento importante da pecuária e um dos poucos meios de assegurar a subsistência dos lavradores, tendo em conta a total desvalorização da vinha. Nas décs. de 60 e 70, a Junta Geral do Funchal procedeu a estudos de diversas variedades de cana, nos postos agrários do Caniçal e Lugar de Baixo, com o intuito de encontrar a que mais se adequava aos solos do arquipélago. As variedades CP.44-101, CP.36-105, POJ.-2725 apresentavam-se com maiores possibilidades de adaptação. Património No quadro do património histórico, a referência vai para a igreja de São Jorge, pelo recheio da sacristia, a beleza da imaginária e a sua talha barroca. A primitiva igreja paroquial foi destruída por uma aluvião de 1660 e foi construída a nova, que hoje conhecemos, concluída na segunda metade do séc. XVIII. Sobre esta igreja, diz-se: “Na Madeira, um dos primeiros sacrários que demonstra alguns motivos rococós e a decadência do barroco está patente na capela-mor da igreja matriz de São Jorge, ostentando os motivos decorativos análogos à restante talha da capela, embora numa escala menor e trabalhados com maior minúcia. Como nos retábulos, também nos sacrários o trabalho de marcenaria e carpintaria foi-se sobrepondo ao de entalhe, começando a aparecer espaços progressivamente mais lisos, primeiro pintados em coloridos marmoreados, mas depois com uma cor muito mais uniforme e até, progressivamente, branca” (LADEIRA, 2009, 171). A memória da arquitetura primitiva e popular da Madeira ainda se preserva, neste concelho, com a chamada casa de palha, que ficou popularizada como a casa de Santana. Dentro da mesma ligação de raiz tradicional, temos o Festival 48 Horas a bailar, que se realiza, desde 25 de agosto de 1985, em finais de julho e que tem sido um meio de reavivar e valorizar a música e as tradições populares da Ilha. O quadro completa-se com o Parque Temático da Madeira, inaugurado em 2004. Personalidades a recordar Aponta-se Baltazar Dias, poeta, romancista e dramaturgo madeirense do séc. XVI, como tendo nascido no concelho. Do séc. XIX, temos outra figura popular, que foi Manuel Gonçalves, o “feiticeiro do Norte”, que nasceu no Arco de São Jorge. Temos ainda outras personalidades de relevo, que especificamos por freguesia. Arco de São Jorge: P.e António Alexandrino França e Vasconcelos (1791-1884); Faial: o médico Dr. Francisco Simplício Lomelino de Vasconcelos (1821-1890), o P.e João de Freitas Alves (1930-1984), a poetisa Joana de Castelbranco (1856-1920), Alfredo de França (1883-?), o frade mendicante João José Bartolomeu dos Mártires Martins (190?-1976) e o médico Dr. João Albino Rodrigues de Sousa (1872?-1922); São Jorge: o advogado e poeta, João Brito Câmara (1909-1967); Santana: o P.e Carlos Acciaiuoli (1845-1924), o matemático Abel Almada do Nascimento (1905-1970), o médico Dr. João Francisco de Almada (1874-1942), o médico Dr. João Maria Jardim (1879-1962), o médico Dr. Lino Cassiano Jardim (1845-1895), o proprietário Carlos Teixeira de Mendonça (1909-1968), o advogado e escritor Albino de Meneses (1890-1949), a freira Maria do Cenáculo de Meneses (1833-1949), o médico Dr. Francisco Assis do Nascimento (1877-1956), o médico Dr. Albino Rodrigues de Sousa (1901-1966), o Prof. Álvaro Rodrigues de Sousa (1902-1975), Manuel Marques da Trindade, presidente da Câmara em 1958 e iniciador das obras dos Paços do Concelho (1917-1971), e o Cón. Fernando de Meneses Vaz (1884-1954); e em São Roque do Faial: o bispo D. Manuel Ferreira Cabral (1918-1981).   Alberto Vieira (atualizado a 15.02.2018)

História Económica e Social História Política e Institucional

prostituição

Define-se como troca de favores sexuais por dinheiro. Sendo o Funchal uma cidade portuária, cedo se tornou visível a prática desta atividade na ilha da Madeira. “Junto ao mar” se alimentava o negócio, sobretudo à conta das embarcações de passagem que aportavam à baía, havendo registos de “molheres”, “mancebas” e “meretrizes” desde o séc. XV. Por outro lado, documentos oficiais permitem-nos verificar a importância desta atividade para o entorno do porto. Apenas alguns exemplos: a propósito das estimativas das receitas para a construção da cerca do Funchal, em 1493, foi determinado que “toda a molher de partido que for achada na ylha paguara trecentos reaes e pode valer por anno seys mil rs” (SILVA, 1995, 705). Por esse tempo, estariam contabilizadas cerca de 20 meretrizes no Funchal e, em 1495, numa representação à Câmara, pedia-se que a mancebia “fosse tirada junto do mar, porque os de fora saltavam com as mancebas, faziam arruído e se acolhiam aos batéis e a justiça não os prendia” (ABM, Vereações, n.º 1301, fl. 78). As vereações da Câmara Municipal do Funchal referem ainda o facto de “ali terem acontecido mortes de homens”, o que indicia alguma violência naquele meio. Das outras referências a “mancebia”, destaca-se o facto de os homens bons terem dedicado algum tempo, nestas reuniões, a procurar o melhor lugar para a instalação de uma mancebia, mercê feita por El-Rei a Martim Mendes. É então decidido, na vereação de 12 setembro de 1496, que “Martim Mendez de Vasconcelos ffaça mancebia em Valverde, na rua Direita”, e “que a dicta rrua sse tape da banda da rua e lhe faça as portas contra a rribeira e que ffaça as casas na dicta mancebia” (COSTA, 1995, 540). Por outro lado, há referência a algumas casas que agasalhavam os escravos e que também funcionavam como antros de prostituição, ou lugares de jogo, ou de “desonestidades”. Aliás, roubos, furtos, jogos ilícitos e prostituição faziam parte do quotidiano dos escravos forros. No foral da capitania do Funchal, datado de 6 de agosto de 1515, o Rei D. Manuel estabeleceu, com clareza, que todo aquele que fosse apanhado na “mancebia com armas, assim de dia como de noite, perdesse as armas e pegasse de pena 500 reis, e que todo o homem casado que se provasse ter mancebia ‘theuda e mantheuda’ pagasse a quarentena de metade da fazenda que tivesse” (SILVA e MENESES, 1984, III, 158). Giulio Landi, na sua Descritione de l’Isola di Madera (1530), associou-lhe três pragas – ratos, pulgas e meretrizes. A Ilha parece, então, por este tempo, estar conotada com falta de higiene e desregramento de costumes: Giulio Landi conta de uma velha cortesã ali existente e de relações escandalosas entre uma mulher branca e um escravo negro. Nas posturas da Câmara, aprovadas em meados do séc. XVI (por volta de 1550), fica estabelecido que “nenhuma mulher solteira que ganhar dinheiro por seu corpo publicamente não viva entre as casadas sob pena de quinhentos reis viverão nos lugares limitados convém a saber Beco detrás da cadeia a Rua que vai ao longo da Ribeira da ponte da cadeia até à travessa de Pero Gonçalves cavaleiro e no cabo do calhau na Rua do Monteiro e Rua adiante e nos becos de Joham Seraiva e de dom Joam”, o que indicia alguma preocupação em preservar as famílias do contacto com esta prática, delimitando os locais das “mancebias”, muitas vezes designando o lugar de residência ou de serviço das prostitutas (ABM, Posturas, liv. 1685, fls. 10-14). As mulheres que se dedicassem à prostituição incorriam num pecado de tal modo grave que o sacramento da confissão não o absolvia. A devassidão conduzia à excomunhão, conforme o texto das Constituições Synodaes do bispado do Funchal: “ainda que as mulheres públicas por seus maus costumes, e impenitentes corações se não hajam de absolver, são todavia obrigadas pelo dito tempo da Quaresma a confessar inteiramente todos seus pecados, dos quais os confessores as ouvirão, declarando-lhes que não vão absoltas, e admoestando-as que se apartem do estado de condenação em que estão, e se convertam ao Senhor e não cumprindo assim, incorrerão nas ditas penas postas aos não confessados” (BARRETO, 1585). A questão da luxúria voltará a colocar-se, ao longo dos séculos, de forma mais ou menos evidente. Rui Carita cita uma ordem do prelado diocesano, datada de 1725, segundo a qual todo aquele que se “entregava ao vício”, muitas vezes pela miséria – e incluem-se aqui outros grupos para além das “meretrizes” da cidade, i.e., os escravos e escravas (“pretos e pretas cativos”), assim como as amas dos expostos –, estava obrigado a pagar 1050$000 réis “de condenação, cada uma [cada mulher] pelo seu trato”. A queixa da Câmara contra esta ordem de D. Fr. Manuel Coutinho, também citada pelo já referido autor, acrescenta que, para poderem pagar tal condenação, “era-lhes forçoso fazerem mais ofensas a Deus, como muitas declararam no palácio episcopal ao escrivão da câmara” (CARITA, 1999, 250). Um alvará de setembro de 1726 mostra a preocupação do bispo relativamente à entrada de “mulheres suspeitas” na Ilha, ordenando ao meirinho geral, escrivão de armas ou qualquer outro oficial que notificasse da resolução todos os capitães e proprietários de embarcações, sob pena de excomunhão e 50 cruzados. As Constituições Synodaes do Bispado do Funchal preconizavam três admoestações para as mulheres que publicamente viviam mal. Se não se emendassem, a pena podia ir até ao desterro. Sabe-se que, ao longo do séc. XVIII, com a cidade do Funchal cada vez mais aberta ao mundo, a prostituição aumentou. Houve, então, algum cuidado na delimitação das ruas públicas, sempre muito concorridas, numa cidade muito frequentada por marinheiros. Não sendo a prostituição exclusiva da cidade, era, porém, na baixa que mais prostitutas se encontravam, sobretudo nas ruas “da área do calhau”. Nas vereações de novembro de 1725, era “determinado a todas as mulheres mundanas e públicas, que se achassem a morar no centro da cidade, pelo muito escândalo que dão a esta República”, que se deslocassem para “o Valverde”, um quarteirão acima da R. do Bom Jesus. Sabe-se, ainda, de “furtos e desonestidades” num “bequinho” entre o beco do Forno e a ribeira, denunciado pelo P.e Manuel Rodrigues Faleiro, cura da Sé, em 1707. Sabe-se, ainda, que no beco da Malta “assistem as mulheres públicas” e se praticam “atos torpes” (CARITA, 1999, 250). Rui Carita refere, ainda, situações de ações que, nomeadamente ao longo do séc. XVIII, nos indicam uma das formas de angariação de clientes. Afirma o autor que uma das formas de se intrometerem com os passantes era cuspirem-lhes em cima, sobretudo quando aqueles não lhes prestavam a atenção desejada. Apresenta, como exemplo, o caso de Domingos Caetano Pereira de Melo (1776), que, à custa do processo que resultou do facto de ter ferido algumas mulheres com a sua espada, teve de “se passar” para Lisboa e daí para Espanha. Para que pudesse regressar à Ilha, duas das queixosas, cujos nomes são omitidos, de forma a que “pelo nome não percam”, comprometeram-se a perdoar-lhe as ofensas corporais, mediante determinada quantia (Id., Ibid., 250). De registar a expressão “que pelo nome não percam”, usada para que os nomes não figurassem nos documentos oficiais, o que nos leva a colocar duas hipóteses: a vergonha e/ou a mancha de quem os escrevesse ou o facto de as ditas queixosas não serem identificadas como “meretrizes”, sendo elementos da sociedade. Está ainda documentada a atitude paternalista do Gov. João António de Sá Pereira (1767-1777): em abril de 1770, pede ao vigário Bentos Gomes de Jardim “a diligência de reduzir ao matrimónio” Isabel de Melim, natural do Porto Santo, mas a levar uma vida dissoluta no Funchal, adiantando, para o efeito, 40$000 réis. Igual procedimento tem relativamente a Josefa Joaquina Rosa de Almeida, que “levava uma escandalosa vida e depravado procedimento”, presa na cadeia do Funchal e transferida para Santana, “para sossego daqueles que lhe frequentam a comunicação”, dadas as “muitas visitas” que recebia. Ainda relativamente ao séc. XVIII, um documento de um processo decorrido no Tribunal Eclesiástico fornece uma das muito poucas informações sobre os preços praticados: assim, quando se acusa um frade foragido das Canárias de procurar prostitutas, menciona-se o montante de um tostão atirado à prostituta em pagamento dos serviços, enquanto, um pouco mais adiante, se refere o valor de cinco tostões prometidos a uma escrava, caso ela aceitasse manter relações com o dito frade. Estes dados permitem verificar que as quantias atribuídas ao pagamento do ato variavam substancialmente de acordo com o estatuto da destinatária (TRINDADE, 2012, 106). Mais para o fim do século, a atitude da Igreja madeirense parece alterar-se: D. José da Costa Torres, num documento avulso de 1796, propõe a angariação de fundos para construção de um recolhimento de prostitutas, um lugar “em que possam viver cristãmente fazendo penitência de seus pecados, e ocupando-se em trabalho honesto. […] uma boa obra, muito meritória e agradável a Deus” (Id., 1999, 203). Este bispo do Funchal (1784-1796) apela à Rainha, no sentido de mandar retirar da Madeira o Corr. António Rodrigues Veloso de Oliveira, sob vários pretextos, entre os quais a sua falta de esforços para reprimir a prática da prostituição na cidade do Funchal. Nas devassas de 1794, 1795 e 1813 são acusados 18 crimes de prostituição, todos cometidos por mulheres, sendo um outro pecado contra o 6.º mandamento, “não cometerás adultério”, a mancebia, praticado por 143 mulheres e 152 homens. Em 1813, duas devassas são claras quanto ao “grandíssimo número de públicas e escandalosas prostitutas” (Id., Ibid., 139). Uma outra questão surge ligada à prostituição: a colonização do Brasil. No princípio do séc. XVII, eram organizados embarques de pequenos grupos de jovens órfãs para casarem no Brasil e, deste modo, povoarem o espaço. Não sabemos, contudo, se havia jovens madeirenses nestas condições. Sabemos, apenas, que a Coroa terá apoiado um recolhimento para apoiar estas donzelas à chegada, evitando que a incerteza do futuro que as esperava as fizesse cair na indigência e na prostituição. O assunto “Brasil” volta a ser tratado no séc. XIX, num momento difícil, “uma crise medonha”, numa reunião da Junta Geral do Distrito, no dia 4 de maio de 1854, pela voz de António Gil Gomes. Nesta “malfadada terra sem governo que lhe dê vida”, onde se verificam “cenas dolorosas e de amarguras por que têm passado os Madeirenses, que desconsolados gemem no seu drama de agonia desde a fatal época de 1852”, apresenta algumas propostas no sentido da “salvação comum […] a salvação desta bela porção do território português, à qual estamos presos pelos vínculos mais sagrados”. A primeira proposta é de carácter moral e reporta-se ao tráfico da escravatura branca, “esse tráfico de sangue”. O deputado acusa a “vergonha das vergonhas” da emigração ilegal e refere-se especificamente a mulheres e ao Brasil, assim: “que trafica escandalosamente com as mulheres, convertidas em objetos comerciáveis, fazendo das cidades uns lupanares de abominável devassidão, como nós temos presenciado no nosso Funchal que deve ser limpo desta praga, e como temos notícia de estar acontecendo no Brasil onde a beleza da mulher imigrante é posta em hasta pública, para fins de brutal sensualidade!” (ABM, Governo Civil, liv. 269, fls. 98-101v.). Na verdade, e mesmo durante o séc. XX, sobretudo no princípio, a emigração clandestina foi um dos motores da prostituição de madeirenses no Brasil. Uma monografia sobre gentes de Gaula que embarcaram para a terra prometida indica-nos casos de moças que, para pagarem a passagem, se fizeram criadas de servir, e que sobreviveram graças à prostituição exercida nas baiucas e pensões da cidade de Santos (FREITAS, 2000, 248). Outros documentos, assim como notícias de jornal, dão conta de casos de prostituição em terras de acolhimento de emigração. É o caso de uma nota publicada no Diário de Notícias de 30 de julho de 1889, referente à colónia portuguesa das ilhas Sandwich, em que se transcreve o Luso Hawaiano, jornal que se publicava em Honolulu, que apresentava a “decadência moral” da comunidade, a perda de todas as noções de moralidade e o lançamento na prostituição das filhas pelos pais. Na Ilha, ao longo do tempo, continuou a ser à volta do porto que a prostituição se operava com maior relevância, sobretudo nas alturas de crise económica. Dizia-se que, na Madeira, havia gente a morrer de fome. Em 1847, muitos mendigos da cidade foram recolhidos, à força, num armazém da Fazenda Nacional, sito à R. dos Medinas, para onde também tinham sido afastadas as prostitutas por ordem da Câmara, de 1838. Sabe-se, porém, dos poucos resultados deste afastamento, na medida em que há registos de que elas continuaram a escandalizar as boas famílias, nomeadamente no teatro, que estavam proibidas de frequentar. Vários autores, efetivamente, relacionam o aumento do número de meretrizes com os momentos mais dramáticos da história do arquipélago: as primeiras décadas do séc. XVIII, quase todo o séc. XIX e os primeiros decénios do séc. XX. Por outro lado, e para além da necessidade de sobrevivência – um dos grandes móbiles da prostituição –, às crises económicas costumam juntar-se outras, nomeadamente de ordem moral e social, bem patentes na quantidade de expostos nas misericórdias e conventos e no engrossar das fileiras de mendigos e prostitutas. De acordo com António Loja, citado por Rui Nepomuceno, “as instituições ruem”, referindo-se ao momento da crise vitivinícola, o mesmo acontecendo em outros momentos. Essa é também a interpretação de Rui Nepomuceno, que associa falências, despedimentos, assaltos, furtos, violência ao aumento do número de prostitutas na Ilha (NEPOMUCENO, 1994, 209). Nas Pastorais do bispo Manuel Agostinho Barreto, prelado do Funchal entre 1877 e 1911, é clara a preocupação com este problema. Aí se critica o “vício que emurchece a flor da vida, arrancando a pudicícia da alma e o verniz das faces” e se afirma serem poucos aqueles que “estigmatizam a escandalosa e pública prostituição, os fundos golpes dados na moral dos esposos e dos filhos, a purulenta relaxação dos costumes” (BARRETO, 558). Depois da aluvião de 1856, as meretrizes começaram a estabelecer-se em ruas que, dantes, pertenciam a famílias ilustres da cidade, ou, mesmo, à Escola Lancastriana – as ruas do Ribeirinho de Baixo e dos Medinas. As crianças são, neste tempo, uma preocupação: “Acossados pela necessidade e dificuldade da existência, os proletários impelem os filhos para a rua muito antes que estes estejam preparados para o conflito da vida; e o resultado é a vagabundagem, a mendicidade e a prostituição em uma proporção assombrosa e deplorável” – pode ler-se no Diário de Notícias de 17 de agosto de 1889, sob o título “Protecção e educação ás creanças”, tema desenvolvido na rubrica “Assuntos gerais” (“Protecção e educação ás creanças”, DN, 17 ago. 1889, 1). O mesmo diário, datado de 5 de janeiro de 1896, num artigo sobre “Hygiene publica”, dirigido ao visconde de Cacongo, e a propósito da necessidade de melhorar as ruas da cidade, refere alguns dos “vícios sociais e físicos” da “população infeliz” do Funchal: “o crime da embriaguez, a prostituição, a escrófula e o raquitismo” (“Hygiene publica”, DN, 5 jan. 1896, 1). A questão sanitária é um dos aspetos que, desde o séc. XVI, preocupa as autoridades civis e religiosas. O contágio e a propagação de doenças como a sífilis tornam-se, desta forma, um problema de saúde pública. Parece, assim, que esta preocupação é a verdadeira razão pela qual surge, pela mão de Pina Manique, em Lisboa, a 27 de abril de 1781, a obrigatoriedade da inspeção das meretrizes. Na Madeira, porém, apesar das recomendações de Mouzinho de Albuquerque, em 1843, e do Cons. José Silvestre Ribeiro, em 1846, só em 1854 estas mulheres estão obrigadas a vigilância médica. A preocupação com as doenças sexualmente transmissíveis foi, deste modo, uma constante, conforme se pode inferir das informações seguintes: a 5 de novembro de 1834, a Câmara terá recebido da parte do prefeito da província a decisão de pagar ao Hospital da Misericórdia o tratamento das mulheres públicas entre 21 de outubro e 4 de novembro daquele ano; em 1836, no dia 8 de março, o Governo mandou entregar 1:000$000 réis à Comissão da Misericórdia do Funchal, para ajudar o curativo das meretrizes afetadas por doenças venéreas, assim como os pobres que as tivessem apanhado, sugerindo mesmo que a referida Comissão se socorresse de subscrições para angariar os meios que fossem necessários para evitar a propagação das doenças (ABM, Governo Civil, liv. 1, 2.ª repartição). Em Lisboa, são produzidos regulamentos, em 1858 e 1865, que servirão de modelo a outras cidades do país. Esta regulamentação parece indiciar uma relativa compreensão pública pelas razões que teriam levado muitas mulheres à prostituição – sempre entendida como uma atividade feminina. O discurso legislativo, “tolerante”, reúne preceitos morais, preocupações sanitárias e um esforço de regular a atividade. É assim que, desde meados do séc. XIX, a prostituição, reconhecida como profissão, é permitida em casas “toleradas” – casas autorizadas pelo Estado, sujeitas a periódicas inspeções sanitárias. No entanto, há vozes que se levantam, não propriamente contra a regulamentação desta atividade, mas contra o imposto do consumo: nesse Estudo Offerecido à Comissão do Protesto Nacional na Reunião Popular Realisada em 9 de Outubro de 1906, fala-se na (falta de) lógica da moral oficial que consente, regula e tributa a prostituição, um “vício, e dos mais perigosos”, explicando o autor que o Estado considera esta prática um mal necessário, impossível de erradicar (LIGA DE DEFESA DOS INTERESSES PÚBLICOS, 1906, 18). Na Madeira, a 13 de fevereiro de 1908, o Diário de Notícias anuncia um crime de morte perpetrado contra M.ª Virgínia dos Passos, “mulher de fáceis costumes”, procurada na sua residência por mais de um homem. O teor da notícia lança algumas pistas sobre um dos motivos pelos quais algumas mulheres enveredavam pelo caminho da prostituição: “Dado o primeiro passo errado, a desgraçada não teve mão em si, deixando-se arrastar no caminho vicioso e desregrado que a levou à prostituição e à morte”. Consta que terá tido um filho, “fruto dos amores ilícitos da mísera, e que ela enjeitou para a freguesia da Ribeira Brava” (DN, 13 fev. 1908, 2). Vivia na mais completa miséria. Em 1900, o Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade de Lisboa segue o Regulamento de 1865 e inicia uma série de outros regulamentos para outras cidades do país. Conhece-se a referência a um para a cidade do Funchal, datado de 22 de março de 1886, que há de ser revogado por um novo, também específico, assinado pelo governador civil, o Cor. José Maria de Freitas, em 1931, e confirmado a 1 de julho de 1944. Este Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal está dividido em 7 capítulos e 76 artigos: “Toleradas”, “Registo”, “Cancelamento”, “Casas de tolerância”, “Inspeções sanitárias”, “Disposições penais” e “Disposições gerais”. O texto começa por definir o que são meretrizes: todas as mulheres que habitualmente e como modo de vida se entregam à prostituição. De entre estas, havia aquelas que se achavam inscritas no registo policial, denominadas toleradas, podendo viver em domicílio próprio ou em comum com outras, sob direção de uma “dona da casa”. Estas “casas” não poderiam ficar situadas nas proximidades das igrejas, das escolas, dos jardins públicos, das residências das “pessoas honestas”, nos largos, praças ou ruas de muito trânsito ou, ainda, em rés do chão ou lojas. Entre outras restrições, como ausentar-se de casa por determinados períodos ou mudar de casa sem informar o comissariado de polícia, estavam proibidas de sair à rua vestidas de forma indecente, abrir janelas para a rua, permanecer à porta ou à janela de casa, escandalizar o público com palavras, gestos, ou atos e provocar quem passasse, atentando ao pudor, demorar-se para além do tempo necessário nas tabernas, botequins ou em quaisquer outros estabelecimentos. O artigo 10.º deste regulamento reporta-se à interdição de ter, em casa, filhos ou menores com mais de dois anos, assim como de receber menores de 18 anos. Muitas vezes, quando isto acontecia, havia denúncia e eram instaurados processos às “diretoras das casas”. No arquivo do Tribunal da Comarca do Funchal, um processo de 17 de outubro de 1925 dá conta, ao presidente do Tribunal da Tutoria da Infância da Comarca do Funchal, de um caso destes, em que, nos termos do § 4 do art. 4.º e do art. 12.º do dec. n.º 10.767, de 15 de maio, se prova que a menor de 14 anos, Antonieta Corrêa, filha de Sara Correa, moradora à rua Alferes Veiga Pestana, n.º 49, frequenta a casa de passe de que é diretora Filomena de Freitas, de 65 anos, viúva, sita à rua Latino Coelho, n.º 4 desta cidade, levada por Maria das Neves, mais conhecida por “barbuda”. A participação foi feita por uma concorrente, Amélia Augusta, que acusou Filomena de Freitas de consentir a entrada, na mesma casa, de menores de 16 anos. Um outro processo dá-nos conta de uma denúncia similar. Da análise destes processos se infere o nível socioeconómico destas meretrizes, a avaliar pelo das diretoras. São analfabetas, pelo que são as testemunhas presentes no Tribunal que assinam as declarações e as duas têm, apensos aos processos, atestados dos regedores das suas paróquias de residência, afirmando a sua extrema pobreza, isentando-as de pagar os 200 escudos de multa a que foram condenadas, por se terem provado os factos. As toleradas estavam impedidas de exercer a prostituição em hospedarias, lugares públicos ou em casas clandestinas, não obstante termos encontrado, na Matrícula das Meretrizes, observações como: “Hotel Benfica”, “pensão Moderna” ou “foi viver para casa particular, sob proteção de um indivíduo”. Percebe-se, pois, que a grande preocupação deste controlo apertado era a transmissão de “moléstia sifilítica, ou venérea” (art. 14.º). As meretrizes eram, então, inscritas num livro do comissariado da polícia, voluntária ou coercivamente, depois de realizado um interrogatório acerca da sua identidade – nome, filiação, naturalidade, estado, profissão anterior, instrução, sinais característicos, causas da prática da prostituição, devendo estes dados ser assinados pela própria ou por duas testemunhas, no caso de esta não saber escrever. No entanto, vistos os livros, não encontramos qualquer referência à profissão anterior ou às causas que terão levado estas raparigas para a prostituição. Quanto à instrução, na linha das “Observações”, há, a lápis, a inscrição “analfabeta”. Nenhuma das meretrizes assina a sua matrícula, sendo todos os verbetes assinados pelo comissário da polícia. Fora desta inscrição, deveriam ficar as menores de 18 ou de 21 anos, quando reclamadas pelos pais, maridos ou tutores. Por este regulamento se sabe da existência de casas de regeneração, entendidas como lugares onde são internadas as menores de 21 anos de nacionalidade portuguesa. Um processo judicial datado de 1935 dá conta de um caso destes: uma menor de 17 anos confessou frequentar casas suspeitas “a fim de ter relações com homens para ganhar a sua vida”. Na sentença pode ler-se que, “de acordo com o art. 7.º foi aconselhada a procurar vida honesta e prometendo a mesma deixar de ser prostituta e ir viver para casa de sua mãe e que se voltasse ao exercício da prostituição seria julgada como desobediente e mandou que a mesma fosse posta em liberdade” (ABM, Juízo de Direito da Comarca do Funchal, Autos Crime de Corpo de Delicto, 1935, 1.ª vara, 1.ª secção). No livro das meretrizes, encontramos, entre 1914 e 1924, 21 mulheres com idades inferiores a 18 anos. Não conseguimos apurar a razão pela qual puderam ser matriculadas com idade inferior à que a lei preconizava. Quanto às estrangeiras, deveriam ser repatriadas e, caso regressassem e continuassem a atividade, deviam ser presas e julgadas como desobedientes. A verdade, porém, é que se encontram muitas estrangeiras nas listas de meretrizes que residem nas casas toleradas, sobretudo espanholas e francesas que nos parecem ser “cabeças de cartaz” das casas. São, muitas vezes, governantes e têm, na generalidade, idades superiores às portuguesas. Um olhar sobre as fotografias que alguns livros ainda possuem, apesar de muitos retratos terem desaparecido, sido descolados ou cortados – situação para a qual não encontramos explicação –, permite-nos também perceber que se trata de mulheres com um outro tratamento e com uma forma de vestir mais cuidada e, quiçá, mais arrojada: decotes maiores, plumas e adereços diferentes das portuguesas. Num universo de 792 inscritas, 73 são estrangeiras, sobretudo espanholas, 43, e francesas, 19. Esta inscrição era gratuita, assim como um livrete sanitário atestando o bom estado de saúde da tolerada. Um dado deste regulamento faz-nos acreditar que, em alguns casos, a situação destas mulheres podia ser alterada e os registos cancelados ou suspensos: em caso de casamento, de ausência do país, de reclamação por parte de algum parente, de menoridade, de prova do abandono da prostituição, de mudança de residência ou de passagem a “teúda e manteúda”, quando se tornavam exclusivas de um determinado homem, réplicas das verdadeiras esposas, muitas vezes com o conhecimento das mesmas, a quem era montada casa e de quem tinham filhos. Já há indicações desta situação nas devassas das visitações, nomeadamente a que foi feita à freguesia de Santa Maria Maior, em 1813 (ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, Devassa…, 1813). Qualquer destas situações era suscetível de ser alterada e, se a mulher recaísse na prostituição, seria reinscrita, coercivamente, sem mais formalidades. Um outro aspeto destas regras diz respeito às casas de tolerância, divididas, por lei, em três: casas sob a direção de uma dona da casa; casas em que as toleradas viviam em comum; casas de passe, onde as toleradas iam exercer a prostituição. Essas casas podiam ser sujeitas a inspeções frequentes, de forma a verificar as condições higiénicas, “a mobília e os utensílios indispensáveis ao bom regime e asseio” (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art. 22.º). Nessas casas, estava proibida a venda de bebidas alcoólicas. Entre 1888 e 1937, há registo, nos livros da Polícia, de 56 casas toleradas, com alvará, com o número de meretrizes que as dão como residência, fora outras casas, de menor dimensão, que têm o nome da dona da casa. Note-se que as casas mais importantes tinham nomes, sendo assim identificadas nos livros de registo: Casa da Varanda, Casa dos Envergonhados, Casa Nova, Casa Americana, Casa Encarnada, Palácio de Cristal, Casa do Cevada (ABM, Polícia de Segurança Pública, Registo de Alvarás de Casas Toleradas, liv. 47). As infrações eram punidas com multas pecuniárias que iam desde 10$00 a 100$00, podendo mesmo ir até à cassação das licenças e dos alvarás de funcionamento das casas. Para as casas de tolerância abertas sem as respetivas licenças, a multa ascendia aos 300$00. As casas eram dirigidas por uma governante que, em muitos casos, ia mudando de casa, o mesmo acontecendo com a maioria das mulheres que, geralmente, não permaneciam muitos meses no mesmo lugar. As “donas de casa”, ou “diretoras”, como aparece nos processos do tribunal, tinham a obrigação de zelar pela segurança das “suas toleradas”, não podendo explorá-las com empréstimos de dinheiro a juros ou com contratos que, de algum modo, as prejudicassem; não permitindo o acesso a “estranhas” ao serviço da casa ou de indivíduos alcoolizados; e visavam ainda o respeito pelos restantes habitantes da rua. Por isso, ficavam obrigadas a não consentir em jogos, danças, canto, toques de qualquer instrumento ou qualquer divertimento suscetível de produzir ruído, a não permitir o acesso a menores de 18 anos, de ambos os sexos, sob qualquer pretexto. Um dado interessante é relativo ao facto de ter de ser comunicada à polícia a tomada de criadas da parte das “donas” das casas: estas tinham de estar devidamente identificadas e não podiam ter menos de 45 anos de idade (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art. 61.º). O estabelecimento dos preços era, também, objeto de regulação, quer por parte do aluguer dos quartos das toleradas, quer dos serviços prestados, havendo, para o efeito, “em cada quarto uma tabela bem visível com os preços por visita ou dormida, sobre os quais não poderá ser exigida maior importância” (Ibid., art. 35.º). Todas as toleradas eram sujeitas a inspeções médicas. Uma ficha com fotografia ficava arquivada no dispensário, em dia, sendo nelas anotadas as informações relativas à saúde destas mulheres: baixas ao hospital, tratamentos, análises, etc. Eram obrigatórias e gratuitas, ficando apenas dispensadas as toleradas grávidas de sete ou mais meses, as convalescentes de doenças não contagiosas, as criadas e as donas das casas de tolerância que já tivessem completado 45 anos de idade. Podiam, ainda, ser solicitadas inspeções ao domicílio, custando, em 1944, 50$00 por cada mês de visitas, e 5$00 por cada visita do médico a casa, em caso de doença. Há informação de um dispensário ou posto médico, situado na R. Júlio da Silva Carvalho, que, no mesmo documento – um processo do Tribunal Judicial do Funchal (n.º 638/1935) –, aparece localizado na R. do Carmo. De referir que uma das testemunhas deste processo de agressão de uma tolerada, “pensionista do chamado Palácio de Cristal, à Rua dos Medinas”, a uma outra, tolerada também, era um criado do posto médico onde se deu a agressão, “por ocasião da Inspeção Sanitária feita semanalmente às meretrizes” (Tribunal Judicial do Funchal, proc. n.º 638/1935). Do registo policial, percebemos que a algumas meretrizes era concedida a possibilidade de serem revistadas no seu domicílio, pagando, para isso, 11$25, em selos constantes da respetiva folha. Quando grávidas, ficavam isentas de “revista” e os filhos eram entregues à ama geral dos expostos, que os dava a criar, conforme deliberação da Câmara; e.g., em sessão de 2 de julho de 1896, a filha da meretriz Maria Lasly, nascida a 23 de junho de 1896, “foi dada a uma ama para criação”, sendo este apenas um dos casos referidos (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações, n.º 1385). Uma multa de valor semelhante, acrescida de pena de prisão, acontecia quando qualquer mulher “não prostituída” ia para uma casa de tolerância “com falsas promessas de ser empregada noutro mister”. Nestes casos, a mulher era enviada à terra da sua origem e quem a recebera ou, de alguma maneira, tivesse sido responsável por tal facto, pagaria as despesas, a multa e a pena de prisão estabelecida pelo Código Penal, sendo, para esse fim, remetida ao juiz competente. O mesmo acontecia a qualquer indivíduo que procurasse lançar “no caminho da prostituição, qualquer mulher por coisas independentes da sua vontade, ou ainda por outra circunstância” (Regulamento Policial das Meretrizes da Cidade do Funchal, art.º 61.º). Estas multas eram enviadas ao Governo Civil do Distrito. Por outro lado, os indivíduos – homens ou mulheres – que auferiam lucros da prostituição eram julgados como vadios e entregues ao Governo. As casas de prostituição estariam concentradas na zona urbana – no Funchal, portanto. Por outro lado, os números oficiais das prostitutas registadas não representariam a totalidade do conjunto. Um estudo da época apresentou uma estimativa de 5276 prostitutas e 485 casas situadas sobretudo em Lisboa, no Porto, em Coimbra e em Évora. No caso da Madeira, e tendo apenas os dados constantes da Matrícula das Meretrizes da Polícia de Segurança Pública, sabemos que, entre 1914 e 1931, foram matriculadas cerca de 760 mulheres, provenientes de várias freguesias da ilha da Madeira, mas sobretudo de Portugal continental, faltando, assim, livros respeitantes aos outros anos, não nos permitindo uma contabilização mais apurada. No dito regulamento, há algumas ruas indicadas como “lugares exclusivamente habitados por toleradas”: R. dos Medinas – quase todas as casas –, Trav. da Malta, R. do Monteiro, Trav. João d’Oliveira, R. do Ribeirinho de Baixo, R. do Anadia, R. da Figueira Preta, tendo, de acordo com estudo de Abel Marques Caldeira, algumas dessas artérias desaparecido, por efeito da urbanização (CALDEIRA, 1964, 35). As casas toleradas detinham um alvará, havendo delas registo em alguns livros da Polícia. Dos dados disponíveis, registamos, entre 1918 e 1936, 226 licenças para casas toleradas. Em pleno Estado Novo, houve, então, a necessidade de ordenar, sistematizar e funcionalizar uma atividade com que era necessário conviver, pelo que regressou, ao menos em termos oficiais, o discurso moralista e higienista de Oitocentos. Por outro lado, os pagamentos de licenças, multas e inspeções sanitárias eram mais uma contribuição para o erário público. Isto depois de, nos anos 20, alguns sectores político-sociais se erguerem contra aquilo que consideravam ser a dissolução dos costumes, associando o jogo, a prostituição e o crime. Em 1949, uma lei sobre a propagação das doenças infetocontagiosas (lei n.º 2036, de 9 de agosto) veio impor restrições à prostituição, fechando as casas que podiam ser um perigo para saúde pública e proibindo a abertura de novas casas de prostituição, o que apenas veio contribuir para o aumento da prostituição clandestina. Até 1963, a prostituição era, deste modo, regulamentada, e incluía consultas e exames médicos às prostitutas. Foi a lei n.º 44.579, de 19 de setembro de 1962, que tornou ilegal a prostituição a partir de 1 de janeiro, tendo sido encerrados os bordéis e outros lugares similares. No entanto, a lei teve pouco efeito prático e, no novo Código Penal de 1983, foi parcialmente alterada. O art. 6.º do dec.-lei n.º 400/82, de 29 de agosto, que revogou o art. 1.º do dec.-lei n.º 44.580, fez desaparecer a criminalização das prostitutas. De acordo com a revisão de 2005 da legislação europeia, Portugal foi considerado abolicionista, no sentido em que não apresenta proibição ou regulamentação nesta área, quer para a atividade particular quer para a pública, apesar de existirem restrições alfandegárias controladas pela Polícia: há zonas onde a atividade não pode ser exercida e restrições relativamente aos locais onde a prostituição pode ocorrer, não podendo nenhuma casa ser arrendada para negócio de prostituição, incorrendo os seus proprietários no crime de lenocínio (art. 169.º do Código Penal). A prostituição individual feminina (a masculina só foi reconhecida muito mais tarde) era permitida, apesar de se proibir a sua exploração. Era possível acusar as prostitutas de ofensas à moral e à decência públicas, o que raramente acontecia, e o cumprimento da lei estava na mão das autoridades locais. Geralmente em Portugal, tal como noutros países onde a atividade sexual das mulheres antes do casamento não era bem vista, sobretudo antes dos anos 70, era prática comum os rapazes, muitas vezes acompanhados pelo pai, iniciarem a sua vida sexual com uma prostituta, “evitando que os jovens rapazes caíssem em fantasias e experiências homossexuais entendidas como perversas, viciosas e doentias”, como explicou Isabel Freire (FREIRE, 2013, 57). Nos anos 60, um caso veio abalar a sociedade madeirense. O “caso Sandra”, ainda no resguardo da lei, ficou conhecido como o “ballet rose” do Funchal, envolvendo, segundo testemunhos de indivíduos ligados ao Tribunal Judicial do Funchal, gente da alta sociedade funchalense. Depois de 1974, com a liberalização dos costumes, encontramos referências a prostituição em algumas ruas do Funchal, nomeadamente em prédios abandonados e devolutos: é o caso de uma denúncia na última página do Diário de Notícias do dia 5 de outubro, sob o título “Rua do Sabão: prostituição ao ar livre!”. O que esta notícia nos traz de novo é o facto de (d)escrever o modo de angariar os clientes: “Frente à desembocadura da Rua dos Murças, no esqueleto dum prédio incendiado e seus anexos (sem tapume) recebem os seus clientes, angariados normalmente por menores (rapazitos a quem oferecem uma comissão sobre a receita angariada)”. Por outro lado, descreve a falta de condições e higiene verificada “nos covis imundos de lixo desse prédio derrubado, onde fazem ‘o leito do amor’ com palha e cartões de caixas que antes embalaram mercadorias que não o seu corpo”. Em 1995, 1998 e 2001, a lei foi alterada, de forma a abranger a prostituição infantil e o tráfico humano. O mês de março de 1998 traz a lume uma série de informações sobre pedofilia na Madeira: estudos, denúncias, ligações a redes pedófilas estrangeiras; questões sociais; envolvimentos de personalidades da Ilha. Por entre as páginas de jornais, alguns relatos permitem localizar em Câmara de Lobos a origem de grande parte das crianças que se prostituem no Funchal, muitas com idade inferior a 12 anos e com conhecimento dos pais. As causas apresentadas ligam-se, sobretudo, a fatores de ordem socioeconómica: famílias numerosas, má gestão do orçamento familiar, consumismo excessivo, falta de valores. Dos locais assinalados para a prática ou o aliciamento dos jovens, destacam-se: o Funchal, algumas artérias e jardins da cidade, Câmara de Lobos, o bairro da Nogueira, na Camacha, e o Caniçal. Encontraram-se referências a boîtes ou casas de alterne, que o tempo foi fechando: o Fugitivo, o Campolide, o Royal, o Mambo, o Executive Club. Explica Lília Bernardes, num artigo sobre as noites da Madeira, que a realidade da prostituição tem novos contornos: “Faz-se em apartamentos com contactos por telemóvel. Mas a rede está montada” (BERNARDES, DN, 19 ago. 2009). Faz-se com madeirenses e com gente do mundo inteiro. A atividade é, ainda, exercida em diversos lugares da cidade: em determinadas ruas e praças, em casas de massagens e bares, em discotecas, residenciais e pensões que, de forma mais ou menos discreta, servem de bordéis. Em 2013, a resolução da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira n.º 24/2013/M (publicada no Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira, 1.ª sér., n.º 176, de 17 de dezembro de 2013) vem deliberar sobre a prostituição e a abolição da escravatura do séc. XXI, no seguimento do 63.º aniversário da Convenção das Nações Unidas para a Supressão do Tráfico de Pessoas e da Exploração de Outrem (1949). Num dos considerandos, afirma-se com clareza que “em Portugal, e, em especial, na Região Autónoma da Madeira, a prostituição é um fenómeno de dimensão nacional e transnacional que vitimiza, por forma dramática, muitas mulheres e crianças, havendo múltiplas redes de tráfico atuando no território nacional”. Sendo manifestamente reconhecido que as principais causas da prostituição são a pobreza e a discriminação social das mulheres e das crianças, mais vulneráveis, deliberou-se a tomada de medidas de apoio às prostitutas e às vítimas de tráfico para efeitos de exploração sexual, nomeadamente linhas de atendimento, criação de redes de apoio e abrigo, adoção de estratégias de integração social das vítimas de prostituição.   Graça Alves (atualizado a 15.02.2018)

História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

sociedade de desenvolvimento da madeira

A constituição da sociedade concessionária da administração e exploração da Zona Franca da Madeira (ZFM), o Centro Internacional de Negócios da Madeira (CINM), inscreveu-se no quadro da Convenção de Quioto de 1973, que admite a gestão de zonas francas por autoridades públicas ou por pessoas singulares ou coletivas. Para esse efeito, a Região Autónoma da Madeira (RAM) assinou, em 1984, em Nova Iorque, um protocolo com a Pelican Finance Corporation, a qual se comprometeu a constituir a Madeira Investment Company como veículo para um investimento até 20 milhões de dólares na ZFM, enquanto sócia da sociedade a constituir em parceria com a RAM, ficando estipulado que a RAM deteria 25 % do capital social, com direitos especiais de voto. No desenvolvimento e aprofundamento do protocolo foi constituída a Sociedade de Desenvolvimento da Madeira (SDM), em cerimónia decorrida a 30 de novembro de 1984 na Quinta Vigia, sede da Presidência do Governo Regional da Madeira (GRM), com a intervenção do notário privativo do Governo. Em 1986, a Assembleia Regional da Madeira autorizou o GRM a adjudicar a administração e exploração da ZFM em regime de concessão de serviço público, o que veio a acontecer em 1987. Nesse ano, a SDM transformou-se em sociedade anónima e o capital social detido pela Madeira Investment Company foi adquirido pelo empresário madeirense Dionísio Pestana. A opção por uma gestão em moldes empresariais privados derivou não só da aplicação dos princípios de simplificação e desburocratização administrativas, com reconhecimento da detenção de know-how por parte da concessionária, mas também da conveniência e vantagem de a interlocução com o mundo empresarial ser assegurada num plano e registo de igual natureza e pulsação. A concessão foi adjudicada por um prazo de 30 anos, sem prejuízo da sua renovação ou prorrogação. No exercício das suas competências, por força da lei e do contrato de concessão, a SDM procedeu à construção das infraestruturas internas da Zona Franca Industrial (ZFI), cabendo ao GRM adquirir os imóveis, que permanecem na sua titularidade, necessários à instalação da ZFI e assegurar o abastecimento dos serviços básicos até ao perímetro da ZFM. Após a celebração do contrato de concessão, a SDM iniciou a atividade concessionada e, em 1989, procedeu à primeira ação promocional do CINM, através de um seminário realizado na Law Society, na cidade de Londres, dando, assim, o primeiro passo formal para a promoção da Madeira em mercados onde o seu nome era desconhecido na sua qualidade de centro internacional de negócios. Esse trabalho foi desenvolvido por meio de seminários, de conferências, de reuniões com instituições, de empresários e escritórios de advogados, de auditores e consultores económicos e financeiros em todos os continentes, como também mediante uma rede de correspondentes e representantes contratados para o efeito pela SDM. Em 2012, a Assembleia Legislativa da Madeira, a propósito do processo de revisão dos limites máximos aos benefícios fiscais (plafonds), reconheceu o trabalho da SDM, numa resolução tomada sem votos contra e com os votos favoráveis dos três partidos do arco governamental (PSD, CDS e PS), considerando que a promoção efetuada era tão difícil como eficaz, tão complexa como eficiente e persistente. Além destas competências, a concessionária tem, ainda, a faculdade de emitir uma pronúncia sobre o mérito das candidaturas ao licenciamento de atividades, com emissão, por delegação de poderes, da respetiva licença, de aprovar os projetos de instalação, com emissão de licença de construção, das empresas na ZFI e de fiscalizar o exercício das atividades pelas entidades licenciadas. Para além das obrigações legais e contratuais, a concessionária, com o estatuto de parceiro institucional do Governo da República e do Governo Regional, participa, desde sempre, no processo de produção legislativa e de solução de questões emergentes, nas negociações dos regimes fiscais do CINM junto da Comissão Europeia, bem como na modelação inicial dos tratados, para evitar a dupla tributação, e ainda no Código de Conduta para a Fiscalidade das Empresas, no âmbito da União Europeia, e no Fórum para as práticas fiscais prejudiciais, que foi encetado no contexto da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico. A concessionária permitiu ao erário público, inclusivamente, a existência de um regime flexível e exequível de cobrança das taxas de instalação e anuais de funcionamento, pagas pelas empresas licenciadas no CINM, recebendo a RAM uma percentagem das mesmas, assim como a usufruição de dividendos, enquanto acionista da concessionária.   José António Câmara (atualizado a 31.12.2017)

Economia e Finanças História Económica e Social