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Os estudos sobre a música na Madeira parecem manifestar a forte ligação da Ilha à cultura europeia, com especial ênfase numa identidade marcadamente portuguesa, com traços de outras culturas, tais como a holandesa, a italiana, a espanhola, a inglesa, a alemã, a francesa, a brasileira e de outras nações que tiveram fortes relacionamentos económicos e culturais com Portugal e com a Madeira. Na verdade, a procura de uma identidade própria não se tem mostrado profícua, sendo consensual que muitos dos seus elementos considerados diferenciadores estão igualmente presentes noutros espaços portugueses ou europeus. É possível encontrar exemplos de elementos considerados até há pouco tempo como característicos de uma cultura própria da Madeira – instrumentos tradicionais, trajes, géneros musicais, entre outros –, que, de acordo com os conhecimentos posteriores, se conclui terem ido de outras regiões para a Madeira (ou terem sido inventados há menos de 100 anos, com o propósito de criar uma identidade regional). Entre o início do povoamento, no séc. XV, e o séc. XVIII, é pouco conhecida a história da música na Madeira, embora os escassos dados existentes pareçam indiciar que, tal como em Lisboa, a música foi principalmente relevante em atividades religiosas e palacianas. Foi o período do cantochão do Rito de Salisbury (e, posteriormente, do Rito Romano), da polifonia vocal renascentista e da música barroca de influência italiana. A criação de um teatro público terá acontecido no final do séc. XVIII e a sua atividade foi aparentemente muito intermitente. O início do séc. XIX foi marcado pela revolução liberal e pelo consequente declínio da música sacra. O ideário liberal incentivou o espírito associativista, consubstanciado na fundação de dezenas de clubes e de sociedades que organizavam concertos, executados por virtuosos, e bailes com as novas danças de salão influenciadas pelas modas dos salões dos centros europeus (valsas, quadrilhas, cotilhões, polcas e mazurcas, entre outras). Na transição do séc. XIX para o séc. XX, dá-se um novo movimento de difusão musical, tendo surgido um significativo número de grupos musicais amadores, tais como bandas filarmónicas, tunas e orfeões, que tornaram a prática musical uma atividade comum, inclusivamente nas classes sociais mais desfavorecidas. Esta fase de popularização da prática musical começou a decair na déc. de 1930, embora muitos dos grupos fundados neste período ainda existissem no séc. XXI. Nesta época, também se assistiu a uma importante reforma na música sacra, com o Motu Proprio de Pio X (1903), o qual deixou vestígios durante mais de 60 anos. O período do Estado Novo foi marcado pelas consequências da introdução dos fonogramas, da telefonia e do cinema, que vieram difundir a cultura americana. Foi a era das jazz bands e dos conjuntos, que passaram a constituir as novas formas de modernidade musical. Uma reação a este fenómeno foi a fundação de várias instituições que procuraram promover música “de qualidade”, tais como a Sociedade de Concertos da Madeira, a Academia de Música da Madeira, o Posto Emissor do Funchal e a Orquestra de Câmara da Madeira – antecessora da Orquestra Clássica da Madeira. Foi igualmente o tempo da fundação dos grupos de folclore e da promoção da cultura popular com propósitos turísticos e identitários. No período pós-revolução de abril de 1974, assistiu-se à reforma de várias estruturas culturais e educativas ligadas à música, sendo de destacar a adoção de importantes medidas que vieram facilitar a fundação de associações culturais de índole musical, bem como o rejuvenescimento de antigas coletividades, tais como bandas filarmónicas, coros, grupos de folclore e grupos de bandolins. Instituições como o Conservatório–Escola Profissional das Artes da Madeira e o então Gabinete Coordenador de Educação Artística funcionaram como os dois pilares educativos que permitiram o aumento do número de praticantes, bem como o desenvolvimento das competências musicais de todos os envolvidos na cultura musical madeirense. Do início do povoamento ao fim do Antigo Regime A música fez parte de várias atividades religiosas e palacianas desde o início do povoamento da Madeira. No domínio religioso, é plausível que, no seio de algumas festas litúrgicas – como as festividades respeitantes aos ciclos do nascimento e da morte de Cristo ou dedicadas à Virgem Maria –, se realizassem manifestações musicais ligadas a representações teatrais. Como refere o historiador Rui Carita, permaneceram reminiscências desses antigos autos, nomeadamente das “representações de Natal, com as recitações do Pensar o Menino e as entradas e cantares dos pastores com as ofertas” (CARITA, 2008, 13). Além de menções de atuações teatrais com música, existem igualmente referências documentais a missas cantadas na Madeira. Nos testamentos de Gil Eanes (1479) e de Rodrigo Anes (1486), e.g., alude-se à obrigação de celebração de missas cantadas. No testamento de Gil Eanes fala-se de uma missa cantada na igreja de Machico e no de Rodrigo Anes diz-se que no “dia do enterro lhe dirão oito missas, uma cantada com todo o ofício de ladainhas” (NASCIMENTO, 1933, III, 154-155). Embora não tenha sobrevivido repertório religioso desta época, o aristocrata russo Platon de Waxel, a primeira personalidade a escrever um esboço de uma história da música na Madeira, salienta que o rito seguido nas primeiras igrejas e conventos da Madeira deveria ser o mesmo que em Lisboa: o Rito de Salisbury. Este rito ter-se-á mantido na Madeira até ao início do séc. XVII, não tendo a Madeira acompanhado o sucedido em Lisboa, onde o rito havia sido abandonado em 1536 (WAXEL, 1948, 33). A música religiosa era também executada fora das igrejas, durante procissões religiosas, as quais foram regulamentadas por D. João II em 1483. Nas festas do Corpus Christi, nomeadamente, as confrarias de ofícios desfilavam em carros alegóricos onde se bailavam danças como a “mourisca”, levando o historiador Rui Carita a concluir que estes eventos deviam assemelhar-se mais a cortejos carnavalescos do que a procissões religiosas; entre os exemplos que sobreviveram ao tempo, encontra-se a “dança das espadas” da confraria dos ferreiros (CARITA, 2008, 13). No domínio da música palaciana, apesar da inexistência de partituras e de provas documentais com referência à prática musical, há indícios de que existiria no Funchal uma atividade musical deste género desde os primeiros povoadores. De facto, conhece-se poesia trovadoresca de personalidades madeirenses do séc. XV. Além disso, no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende (1516), é possível encontrar poemas de personalidades como João Gomes (?-1495), pajem e escudeiro do infante D. Henrique, que se fixou no Funchal e que viria a dar nome a uma das ribeiras da cidade; a sua produção poética foi de tal modo apreciada que lhe valeu a inclusão de poemas no cancioneiro de Resende e o cognome de “O Trovador”. Outros poetas madeirenses que constam do cancioneiro são Tristão Vaz Teixeira, identificado como filho do 1.º capitão de Machico, e João Gonçalves da Câmara, que terá sido o 2.º capitão donatário do Funchal. Segundo Rui Carita, o trovador mais importante da época viria a ser, no entanto, Duarte Pestana de Brito, quer pela quantidade, quer pela qualidade da sua produção poética. No início do séc. XVI, a música palaciana continuou a ter um papel preponderante no Funchal, principalmente pela ação de Simão Gonçalves de Câmara (?-1530), 3.º capitão donatário do Funchal, que governou a partir de 1508. Sendo músico e detentor de uma fortuna considerável à época, promoveu uma capela com cantores e tangedores, da qual Gaspar Frutuoso diz fazer “grandes partidos” (FRUTUOSO, 2008, II, 106). A qualidade da capela deveria ser de tal ordem que “competia com a de el-rei”, tendo como “mestre da capela Diogo de Cabreira, castelhano, mui destro na arte de canto de órgão e tal, que o próprio rei lho pediu para cantor para sua capela” (Id., Ibid., 103). Acompanhando o crescimento económico da Ilha, a situação musical religiosa melhorou no início do séc. XVI. O facto de o Funchal ter sido elevado à qualidade de diocese, em 1514, levou a que a atividade musical tivesse acompanhado esse novo estatuto. Assim, em 1518, os cantores da capela da Sé do Funchal, que seriam, até então, apenas quatro, passaram a oito por ordem do rei D. Manuel I, que mandou “criar mais quatro moços do coro”. Dois anos depois, D. Manuel I escreve uma carta, ordenando agora ao deão da Sé do Funchal, o mestre Nuno Cão, “que os cónegos e moços do coro saibam canto do organo [canto do órgão] para os domingos e festas se oficiar as missas com canto de organo [canto de órgão]” (WAXEL, Ibid.). Tendo em consideração esta fonte, é plausível concluir, tal como fez Platon de Waxel, que, no Funchal, a música religiosa era até então composta do mais simples cantochão, passando a partir dessa data a ser, numa base regular, de cariz polifónico. Em data incerta, talvez ainda durante a déc. de 1520, foi criado o cargo de organista na Ilha. A substituição do Cón. Gaspar Coelho (possivelmente o primeiro a ocupar esta função na Madeira) por Luís Mendes (?-1598), em 1554, é prova da existência desse cargo. O ordenado seria de 10.000 réis anuais, tendo o organista sido aumentado posteriormente com mais “dois mil réis em dinheiro, um moio de trigo e uma pipa de vinho” (Id., Ibid.). Entretanto, as normas, mais rígidas, advindas do Concílio de Trento (1543-1554) não foram totalmente aplicadas: de facto, as interpretações teatrais dentro e junto das igrejas madeirenses não foram erradicadas. Em 1565, a chancelaria régia difundiu um alvará para todo o país, onde se proibia a utilização de máscaras na procissão do Corpus Christi e nas igrejas, parecendo corroborar as determinações do Concílio. Apesar disso, sabe-se que no último quartel do séc. XVI ainda se realizavam, “de dia e de noite”, atuações nas igrejas e ermidas, as quais causavam “muitos inconvenientes e escândalos”, segundo a opinião expressa nas Constituições do bispado do Funchal, aprovadas em 1578 pelo Bispo D. Jerónimo Barreto. No mesmo documento, exigia-se que as representações só fossem organizadas com “especial licença do prelado” (CARITA, 2008, 14). Este tipo de atuações seria frequente e estaria relacionado com atividades religiosas de cariz popular, tais como romarias. Gaspar Frutuoso descreve, por exemplo, a romaria de Nossa Senhora do Faial, na qual participavam cerca de “oito mil almas” e onde os peregrinos, vindos de outras zonas da Ilha, descansavam durante dois ou três dias. Neste período, os romeiros faziam “muitas festas de comédias, danças e músicas de muitos instrumentos de violas, guitarras, frautas, rabis e gaitas de fole” (FRUTUOSO, 2008, II, 52). Sendo estas manifestações religiosas de cariz mais popular, é plausível deduzir que se terá gerado algum conflito entre o bispado, que procurava seguir as orientações do Concílio de Trento, e as tradições religiosas já enraizadas na vida do povo. Em meados do séc. XVI, a fixação do bispo Jorge de Lemos, 4.º bispo do Funchal, na Madeira, onde foi o primeiro bispo a residir, coincidiu com um dos momentos mais marcantes da vida musical do séc. XVI. D. Jorge de Lemos era músico e, por isso, terá favorecido a prática musical, tendo inclusivamente levado para o Funchal um mestre de capela; este cargo foi oficialmente criado a 20 de setembro de 1556 por carta régia, tendo o mestre de capela a “obrigação de ensinar canto aos 12 colegiais do seminário, com o ordenado de 25 mil rs”. Na mesma data, também por carta régia, foi criado o seminário do Funchal, estando previsto o pagamento anual de 345 mil réis, sendo “45 mil réis para os mestres de gramática e do canto da cidade do Funchal” (WAXEL, Ibid., 34). Foi durante este período que se criou a primeira instituição dedicada ao ensino de música sacra na Madeira. No séc. XVII, houve alterações importantes no domínio religioso. A principal delas foi a introdução do Rito Romano na Madeira, por alvará datado de 1 de junho de 1629, substituindo-se, assim, o Rito de Salisbury. D. Filipe III de Portugal ordenou que se praticasse “o Ritual Romano no que toca no governo do coro, dignidades, cónegos e capitulares, e nos particulares que não for possível se deve conformar com o que se pratica na Sé de Lisboa” (WAXEL, Ibid., 33). Nesta altura, a Sé do Funchal recebeu dois órgãos: em 1613, Filipe II ofereceu um órgão à Sé do Funchal e, poucos anos depois, um “grande órgão”, que terá sido construído em Córdova, foi dado à mesma Sé (WAXEL, Ibid., 34; SILVA E MENESES, 1978, II, 416). Entre os organistas que sucederam, no séc. XVII, aos músicos Gaspar Coelho e Luís Mendes, conhecem-se o P.e Francisco da Cruz – que em 1664 tinha um ordenado de valor igual ao de Mendes (2000 réis em dinheiro, um moio de trigo e uma pipa de vinho) – e o P.e Pascoal Ferreira que, em 1681, recebia 7000 réis em dinheiro, um moio e 20 alqueires de trigo e duas pipas de vinho. O repertório executado na Sé do Funchal incluía música polifónica de qualidade, referindo Platon de Waxel que “devia ser a melhor que então havia no reino”. Como prova da sua afirmação, o aristocrata russo argumenta que na Sé existia um livro de missas de um dos mais relevantes compositores portugueses da primeira metade do séc. XVII, Duarte Lobo, impresso em Antuérpia em 1639 (WAXEL, Ibid., 36) – trata-se, provavelmente, do Liber Missarum II. São também do séc. XVII as duas primeiras fontes musicais de obras polifónicas da Madeira de que se tem conhecimento. A primeira é pertença do Convento de S.ta Clara: trata-se de uma peça polifónica a quatro vozes (tiple, alta, tenor e baxa) que se encontra transcrita na frente de uma folha em branco de um livro de cantochão, provavelmente escrito na primeira metade do séc. XVII; a composição é anónima e tem como título Jesu Redemtor, sendo a obra polifónica mais antiga de que há registo na ilha da Madeira. A segunda fonte é propriedade da Sé do Funchal e contém partes de missas, salmos e hinos; é um fragmento de um livro de coro (ofícios e missas) copiado no séc. XVIII, cujo repertório é constituído, sobretudo, por polifonia seiscentista, ainda que algumas obras possam ser do final do séc. XVI. Os autores também não estão identificados; Manuel Morais comparou as composições da coleção com obras congéneres de autores portugueses não madeirenses, ativos entre a segunda metade do séc. XVI e finais do XVII, e não encontrou qualquer correspondência (MORAIS, 1998, 50-51). Pouco se sabe sobre os músicos ativos no Funchal neste período, para além do seu nome e cargo. Entre os mestres de capela da Sé do Funchal, conhecem-se os nomes do P.e Manuel de Almeida (em funções a partir de 1618) e do P.e Miguel Pereira (falecido em 1682); sabe-se, ainda, do Cón. Manuel Fernandes, professor de música no Funchal, e de Francisco de Valhadolid, músico madeirense que chegou a ser mestre no seminário arquiepiscopal em Lisboa, citado na Bibliotheca Lusitana e em Os Musicos Portuguezes de Joaquim de Vasconcelos. Francisco de Valhadolid foi o primeiro músico natural da Madeira que se sabe ter ocupado um lugar de destaque a nível nacional. Natural do Funchal, onde nasceu em 1640, foi discípulo do Cón. Manuel Fernandes em composição e, posteriormente, de João Alvares Frovo, em contraponto, em Lisboa. Aquando da sua morte, a 16 de julho de 1700, estaria a trabalhar na publicação de um livro sobre os Mysterios da Musica, assim Pratica como Especulativa, o qual ficou incompleto. Valhadolid deixou uma vasta obra, principalmente composta de missas polifónicas (a 6, 8, 14 e 16 vozes), salmos, responsórios, lamentações, um Miserere, uma ladainha e vários motetes a 3, 4, 7 e 8 vozes. No séc. XVII, as festividades religiosas madeirenses assumiram grande relevância artística. Em 1622, nomeadamente, realizaram-se importantes festas em honra de S.to Inácio de Loiola, de S. Francisco Xavier e do B.º Luís Gonzaga, as quais envolveram as principais formas de arte na Madeira à época: poesia, teatro, dança, música e artes figurativas. No documento, de autor anónimo, denominado Relaçam Geral da Festas que fez a Companhia de Jesús na Provincia de Portugal, na Canonização dos Gloriosos Sancto Ignacio, & S. Francisco Xavier Apostolo da India Oriental no Anno de 1622, existe um capítulo dedicado às cerimónias da Madeira, onde são narrados os acontecimentos festivos ocorridos entre 20 de junho e 31 de julho de 1622. Estes eventos, segundo Manuel Morais, não eram indignos, em fausto e diversidade, das “cerimónias que se representaram na capital do nosso largo Império seiscentista” (MORAIS, 2008, 29). Pela descrição das festas, é possível ter noção da grande diversidade de instrumentos e de danças que então existia – no que concerne a estas, o cronista refere danças com “oito salvagens, vestidos à inteiriça, todos cobertos de musgo”, “danças de marinheiros de barretes, e coletes vermelhos, e ceroulas até baixo”, uma “grave, e aparatosa dança, que em parte alguma do reino pudera sair melhor”, dança da mourisca, “dança de segadores”, “dança de moços pequenos feitos soldados”, danças de “ciganas”, de romeiros e de “meninos à mourisca” e “dança dos rios ou ribeiras de mais nome nesta ilha”. No que diz respeito aos instrumentos musicais, é de ressaltar a sua variedade, salientando o autor a realização de eventos musicais ao som de “frauta, e tamboril”, “trombeta bastarda”, “violas e rabequinha ao som dos quais cantavam algumas letras com muita melodia”, “pandeiro” e “alaúdes”, “castanholas” e “charamelas de cana”, “concertada música”, em que “13 moços […] tangiam todos instrumentos, violas, rabequinhas, pandeiros, cestos, e ginebra, e em quanto se ocupavam os de uma parte em cantar, dançavam os da outra ao redor do tambor, que no meio fazia com ele mil voltas”. Nestas festas participaram os melhores músicos sacros da altura, mencionando o cronista que se organizaram “solenes vésperas com o melhor da capela, e música da Sé, que também ao domingo cantaram a missa” (Id., Ibid., 25-29). O compositor António Pereira da Costa (1697?-1770), cónego e mestre de capela da Sé do Funchal, é o primeiro residente na Madeira a publicar peças musicais; fê-lo em Londres, em 1741, publicando Concertos Grossos, cujo título imita o da coleção de Arcangelo Corelli (1653-1713), 12 Concerti Grossi. O nome completo da obra do compositor português é Concertos Grossos com Doys Violins, e Violão de Concertinho Obrigados, e Outros Doys Violins, Viola e Orgão, e constitui um conjunto análogo ao de Corelli. Por volta de 1755, é impressa em Londres uma nova coletânea de composições de Pereira da Costa para guitarra, desta vez com o título em inglês: XII Serenatas for the Guitar. Estas serenatas parecem trair também a influência de Corelli, que agrupou as suas composições em conjuntos de 12 obras: 12 Sonatas a Tre, 12 Sonatas da Camera a Tre, 12 Concerti Grossi, etc. Segundo Rui Carita, ambas as composições são dedicadas ao morgado João José de Vasconcelos Bettencourt (1703-1766), irmão mais velho da mercadora D. Guiomar Madalena de Sá Vilhena (1705-1789). As composições de António Pereira da Costa são, na Madeira, os primeiros exemplos conhecidos de um novo período marcado por modelos musicais italianos, à semelhança do que aconteceu em Lisboa na primeira metade do séc. XVIII, por intervenção de D. João V. Neste reinado, por volta de 1720, contratou-se o mestre da Cappella Giulia do Vaticano, Domenico Scarlatti, para mestre da Capela Real, bem como um conjunto de outros músicos italianos, que contribuíram para uma progressiva italianização da música portuguesa. De facto, em 1728, a orquestra da Capela Real era constituída principalmente por estrangeiros, sendo quase metade deles italianos: entre os 13 músicos que constituíam a orquestra – sete violinistas, dois violetistas de arco, dois violoncelistas e um contrabaixista – havia seis italianos (um genovês, dois florentinos e três romanos), um francês, dois boémios, três catalães e um português. Para garantir o ensino adequado dos jovens músicos portugueses, D. João V criou, em 1713, um seminário especificamente destinado a esse efeito, o qual viria a ser o seminário patriarcal, instituição que formaria a maior parte dos músicos de Setecentos e que seria decisiva para a replicação dos modelos italianos em Portugal. Além das serenatas e dos Concertos Grossos, Pereira da Costa dedicou-se a cantatas e sonatas, sendo esse facto indício da existência de um repertório marcadamente barroco, de carácter instrumental, em contraste com a polifonia vocal renascentista, de cariz contrapontístico. A Gazeta de Lisboa de 2 de junho de 1750 faz menção do cultivo de cantatas e de sonatas, referindo a participação do compositor nas festividades de N.a S.ra do Monte no Funchal. Existem registos dos vencimentos dos músicos participantes nas festividades de N.a S.ra do Monte. Num livro de receitas e despesas do Convento da Encarnação dos anos de 1767 e 1768 faz-se referência ao salário dos “pretos das xaramelas” por tocarem nas festas de domingo do Senhor, de N.a S.ra do Monte e de S.ta Clara (PEREIRA, 1989, II, 590). No Convento de S.ta Clara, existem também assentamentos de pagamentos, respeitantes ao mesmo período, “aos moleques que tocaram caixa e charamela”, ou simplesmente a “moleques da charamela” (CARITA, 2008, 16). Os gastos com os músicos de capela da Sé do Funchal encontram-se assinalados em documentos de despesa da Provedoria e da Junta da Real Fazenda do Funchal. Tal como acontecia noutras catedrais católicas, a Sé do Funchal tinha uma capela em que os cargos eram os de subchantre, de capelão cantor ou de moço do coro, de mestre de capela e de organista, e os pagamentos realizavam-se em função dos cargos musicais ocupados, como o comprova a folha de pagamentos referente à despesa de 1775 (ver Quadro 1). [table id=107 /] O subchantre dirigiria, provavelmente, o coro de cantochão dos moços de coro, sendo acompanhado pelo organista. O mestre de capela deveria ser responsável pela música polifónica, com vozes e instrumentos. Com base nas despesas registadas no Livro de Assentamento da Capitania, supõe-se que o número de moços de coro, em 1775, seria menor do que em 1518, quando D. Manuel aumentou o número de moços de coro de quatro para oito; de qualquer modo, este número chegaria para cumprir com as funções musicais. Segundo o musicólogo Manuel Morais, na Sé do Funchal encontravam-se 11 livros de cantochão do séc. XVIII e de inícios do séc. XIX, manuscritos e impressos. No âmbito das festividades religiosas, é de mencionar que no séc. XVIII se mantiveram as representações teatrais junto das igrejas. Segundo Rui Carita, existem referências a que estas atuações terão continuado a decorrer até meados do séc. XVIII, inclusivamente dentro de igrejas e de conventos. Em 1751, uma edição no campo dos estudos sobre a tísica viria a influenciar os tempos posteriores na Madeira, tendo consequências também no domínio da música. Neste ano, é publicado um artigo de Thomas Heberden (1703-1769), em Philosophical Transactions, que descreve o clima da Madeira como propício à cura de doenças infectorrespiratórias (a saber, a tuberculose). Influenciados por esta “descoberta” da medicina, centenas de indivíduos da aristocracia europeia começam a passar longas temporadas na Madeira, de modo a procurarem uma cura para si ou para algum familiar próximo. Surge, assim, o turismo terapêutico e são construídas unidades hospitalares e estabelecimentos hoteleiros. Por conseguinte, a influência da alta aristocracia europeia começará a sentir-se na Madeira de forma mais intensa ao longo de mais de um século, estendendo-se ao plano musical, o que virá a contribuir para o estabelecimento de um Funchal de cariz mais cosmopolita do ponto de vista cultural. A literatura estrangeira, principalmente os relatos de viagens, fica muito em voga a partir de meados do séc. XVIII. Grande parte do conhecimento que existe sobre a atividade musical madeirense, tanto erudita como popular, advém das descrições de estrangeiros, sobretudo inglesas. A título de exemplo, em 1777 é publicado em Londres um livro de George Foster – um alemão educado em Inglaterra que acompanhou o capitão James Cook na sua segunda viagem aos “mares do sul”, tendo passado no Funchal em 1772 –, onde se refere que, na Madeira, “o camponês […] é geralmente aliviado com canções, e ao serão reúnem-se vindos de várias cabanas para dançarem ao som da música sonolenta de uma viola”. Em 1792, a visitante Maria Riddel publica, em Edimburgo, um texto referente ao ano de 1788, no qual menciona que os madeirenses “são muito musicais e extremamente galantes. Raramente se passa uma noite na Madeira sem se ouvir serenatas de violas e bandolins em qualquer parte da rua” (MORAIS, 2008, 32). Ainda assim, as narrações de estrangeiros sobre a Madeira são raras no séc. XVIII, começando a ser mais frequentes no séc. XIX. O maior acontecimento musical da segunda metade do séc. XVIII foi a fundação do Teatro Grande ou Casa da Ópera. Como refere o historiador Valdemar Guerra, “Casa da Ópera”, “Casa da Comédia”, “Teatro Grande” ou “Teatro Funchalense” são diferentes designações para o mesmo edifício. Este foi o primeiro espaço de atuações públicas de relevo do Funchal; construído em 1777, foi considerado alguns anos mais tarde como a maior casa de espetáculos de Portugal depois do teatro nacional de São Carlos, tendo sido demolido em 1833 por razões militares, sob as ordens do governador Álvaro de Sousa Macedo. As atividades deste teatro contam principalmente óperas, representações cómicas, danças e entremezes. (salas de teatro) A Casa da Ópera surgiu por iniciativa de dois negociantes, José Rodrigues Pereira e Miguel dos Santos Coimbra. Ambos haviam tido uma pequena “Casa da Ópera”, a qual sofreu um violento incêndio. Devido à necessidade de divertimento da população funchalense e à falta de tradição teatral “digna de relevo”, os empresários iniciaram este novo projeto na expectativa de lucros imediatos. Apesar de a sua construção ter sido concluída no início de 1777, a Casa da Ópera só esteve em atividade até maio, altura em que foi noticiada a morte de D. José e se entrou num período de luto de um ano. Este espaço de tempo acabou por ter uma história conturbada, com vários problemas financeiros que afetaram o cumprimento de temporadas operáticas com uma periodicidade normal. Por ter sido o primeiro espaço cultural de grande dimensão da Madeira, o Teatro Grande dispôs-se a ser um local de fortes confrontos, nomeadamente no plano dos costumes. Por exemplo, encontram-se várias notícias do primeiro quartel do séc. XIX que discutem a moralidade das récitas ali realizadas, chegando a considerar que a Casa da Ópera era um espaço pouco próprio para levar senhoras; ao longo do séc. XIX, a situação repete-se em outros teatros, havendo designadamente notícias de que o Teatro Concordia era “foco da imoralidade e das ofensas vilãs” (CARITA e MELLO, 1988, 41). Supõe-se que, na transição do séc. XVIII para o séc. XIX, as bandas militares terão começado a ganhar importância na Madeira, à semelhança do que aconteceu em Lisboa. No entanto, as primeiras referências a esse facto datam de 1807, desconhecendo-se qualquer alusão à presença das bandas na região no séc. XVIII. Entre os anos de 1807 e 1824, há menções de pagamentos de pão com o objetivo de municiar os “pífanos e tambores de milícias”, o que indicia existirem músicos nas tropas milicianas da Madeira, pelo menos desde esta época; a referência mais antiga que se conhece é de 6 de junho de 1807 e a despesa paga foi no valor de 430$320 réis. Os salários não eram anuais, podendo ser recebidos várias vezes ao ano, em alturas diversas: sabe-se de ordenados pagos em março, no “dia de Corpo de Deus”, “nos meses de julho e agosto”, não havendo, aparentemente, datas predefinidas e regulares. Entre 1815 e 1819, começa a especificar-se o pagamento dos regimentos de milícias da Calheta e do Funchal, e já não da “Ilha” apenas. A qualidade da banda regimental do Funchal de então não é fácil de aferir. O britânico Robert Steele, tenente da Marinha Real inglesa, resumia, no seu diário de viagem, redigido no verão de 1809, o que considerava ser a fraca qualidade daquele contingente musical: “A parada militar é geralmente frequentada pelos oficiais mais graduados, e a banda, tendo muitos encantos, envergonha as tropas portuguesas, que são más em todas as suas atividades” (MORAIS, 2008, 33). O declínio da música sacra e a era dos clubes, das sociedades e da música doméstica A prolongada série de revoluções e de contrarrevoluções ocorridas no período de 1820 a 1851, no contexto da implantação do regime liberal, teve graves efeitos no domínio musical de cariz religioso. A extinção das ordens religiosas, em 1834, e o confisco dos seus bens provocaram o declínio da estrutura religiosa madeirense, algo que se repercutiu na música sacra. Apesar da situação conturbada, houve neste período um conjunto de músicos sacros, muito influenciado por músicos formados na escola de música do seminário patriarcal de Lisboa (extinta em 1834), que deixou um legado musical relevante. Uma das personalidades influentes deste período foi D. Fr. José Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828) que, ainda antes da instauração do regime liberal, por volta de 1812, foi para a Madeira acompanhado de alguns músicos, entre os quais se destacam José Joaquim de Oliveira Paixão (?-1833) e João Fradesso Belo (1791-1862), discípulo de Fr. José Marques e Silva no seminário patriarcal. Além de ser músico e de proteger a música sacra, José Ataíde compôs algumas obras que foram cantadas em igrejas madeirenses, tais como uma missa de Requiem e o motete Sub Tuum Praesidium, ambas a quatro vozes mistas. José Joaquim de Oliveira Paixão era compositor, organista e violinista. Fez parte da orquestra do Teatro Grande como violetista e foi professor de música no seminário. Segundo o investigador João Rufino da Silva, apesar de ter falecido em 1833, as obras musicais de José de Oliveira Paixão ainda eram cantadas nas igrejas madeirenses quase 150 anos depois da sua morte – ou, pelo menos, até aos anos 70 do séc. XX –, principalmente os responsórios de matinas na Semana Santa. Estas obras eram cantadas a duas e a três vozes masculinas e acompanhadas a órgão, orquestra de cordas – 1.º e 2.º violinos, violoncelo e contrabaixo –, flauta e clarinete em si bemol. João Fradesso Belo foi professor no seminário do Funchal e é apontado como tendo ocupado o cargo de mestre de capela da Sé, apesar de se ignorar os moldes em que esta dignidade era neste período exercida. Sabe-se igualmente pouco sobre a sua produção musical, embora se tenha conhecimento de que compôs uma Ave-Maria “muito cantada na Madeira” (SILVA, 2006, 191). Segundo Platon de Waxel, Fradesso Belo teve um papel importante no plano educativo, visto que deixou dois discípulos de grande valor: Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858) e António de Melo, este último considerado pelo aristocrata russo, em 1869, como “o único compositor de música sacra hoje existente do Funchal” (WAXEL, 1949, 205). Um músico sacro muito importante deste período foi António Maria Frutuoso da Silva, que terá chegado ao Funchal no início de 1837. Num anúncio no periódico A Flor do Oceano, de 8 de janeiro de 1837, Frutuoso da Silva apresenta-se como “professor de música, vindo recentemente da cidade e corte de Lisboa”, propondo-se ensinar “piano, rabeca, e cantoria”. Era antigo cantor na Sé patriarcal de Lisboa, tendo fundado e dirigido no Funchal, entre 1840 a 1848, uma sociedade de concertos (Id., 1948, 36). Entre as suas composições sacras estão uma Missa a Grande Instrumental, um Asperges Me (1848) e um Ò Salutaris (1848). Waxel menciona ainda a existência de outros músicos “que escreveram algumas pequenas composições sacras”: Fr. Manuel Gaspar, o Cón. Libório José Furtado, o P.e Barros, José Justiniano da Silveira (?-1864), o P.e António Francisco Drumond e Vasconcelos (?-1864), o P.e José Maria de Faria e Eduardo Maria Frutuoso da Silva (Id., 1948, 35). Se o ideário liberal oitocentista conduziu, por um lado, ao declínio da música sacra, incentivou, por outro, o espírito associativista, tendo sido criadas várias coletividades em Portugal neste período, entre as quais algumas sociedades de concertos de amadores. Em 1822, um dos músicos mais próximos dos ideais liberais, João Domingos Bomtempo (1775-1842), fundou em Lisboa a Sociedade Philarmonica, seguindo o modelo da sociedade congénere londrina fundada em 1813, tendo a instituição portuguesa sobrevivido até 1828. O novo modelo de sociedades de concertos começado em Inglaterra e copiado por Bomtempo em Lisboa foi igualmente seguido no Funchal: parte da elite madeirense foi influenciada pelo novo ideário, tendo surgido no séc. XIX um significativo conjunto de sociedades e instituições privadas com o propósito de promover a organização de concertos ou de entretenimentos com a participação de músicos (e.g., bailes). Desta forma, após um período de alguma instabilidade política, vivida na déc. de 1820, são constituídos, nos anos 30, pelo menos três clubes e uma sociedade. Tem-se conhecimento da fundação do Clube União – o qual terá tido curta duração, havendo poucos dados sobre a sua atividade –, em 1836, e do Clube Inglês, que existiu durante mais tempo, estando ainda em atividade e organizando bailes na déc. de 1850. Em 1838, surge a Sociedade Harmonia, destinada à prática e à fruição musicais (realiza, nesse ano, uma récita no Teatro do Bom Gosto). No ano seguinte, é fundado um dos clubes madeirenses mais importantes do séc. XIX e o de maior longevidade, o Club Funchalense; esta associação era financiada por algumas das principais famílias nacionais e estrangeiras a residir na Madeira e tinha como um dos seus propósitos principais a promoção de concertos de música vocal e instrumental, embora organizasse sobretudo bailes; de origem anglo-saxónica, o nome desta coletividade acusa a influência de estrangeiros residentes na Madeira, principalmente ingleses. O Club Funchalense e a Sociedade Philarmonica – cujo nome indicia a influência da sociedade homónima de Bomtempo – são as instituições que, durante a déc. de 1840, mais frequentemente publicitam concertos ou bailes nos periódicos madeirenses. Não se encontram referências à organização de concertos musicais por parte do Club Funchalense; de qualquer modo, é provável que neste clube houvesse momentos musicais informais, principalmente em redor do piano, visto que um dos seus primeiros presidentes, Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858), era pianista (as suas composições para piano chegaram a ser editadas em Nova Iorque, em 1830). Por sua vez, a Sociedade Philarmonica era uma autêntica sociedade de concertos de amadores. Esta associação foi fundada por António Maria Frutuoso da Silva em 1840; a sua atividade ter-se-á prolongado até 1848. A criação da Sociedade Philarmonica tinha como objetivos formar novos músicos, por um lado, e promover espetáculos musicais em “serões benefecientes, festejos patrióticos e a acompanhar músicos distintos como o violinista Agostinho Robbio, o machetista Candido Drummond de Vasconcellos, o clarinetista Caetano Domingos Drolha e o pianista Ricardo Porfírio d’Afonseca”, por outro (CARITA e MELLO, 1988, 39). Na segunda metade do séc. XIX, proliferam as sociedades de concertos e os clubes que incentivam a prática musical. Sabe-se da existência, em 1850, da Sociedade Aglaia, que fomentaria a realização de bailes, o que se depreende do facto de o pianista e compositor Duarte Joaquim dos Santos ter produzido uma polca para piano dedicada a esta sociedade, cujo título era o próprio nome da coletividade: Aglaia. Em 1855, há referências à fundação do Clube Recreativo, embora nada se saiba sobre o seu funcionamento. A 30 de março de 1871 é fundada a Sociedade Recreio Literário dos Artistas Funchalenses; esta associação dispunha de uma orquestra que começou a funcionar em finais de abril, princípios de maio, “com instrumentos de fôlego e cordas” (FREITAS, 2008, 413). Um dos músicos mais empreendedores na organização de coletividades deste período foi o violinista e maestro Agostinho Martins (1841-1909). Ao longo da sua carreira musical, este artista funchalense fundou várias instituições, entre as quais a Academia Marcos Portugal, a Sociedade de Concertos Funchalenses e a Filarmónica Restauração de Portugal. A par da criação de sociedades e clubes, desenvolve-se no Funchal um novo modo de sociabilidade: os convívios musicais em salões privados. Este tipo de prática musical doméstica, uma moda importada de França, começa a surgir em Portugal pelo menos na segunda metade do séc. XVIII. A emergência de um grande repertório de modinhas neste período é resultado desta nova forma de convivência urbana; neste âmbito, cabia principalmente à mulher a função de entretenimento doméstico através do canto, do piano e de instrumentos de corda dedilhada. Algumas famílias e personalidades madeirenses ficaram conhecidas pelos serões requintados que organizavam nos seus salões, onde entre “contradances, polcas e as valsas se chegava às tantas da manhã” – exemplo disso são a “ilustre família Gordon” e D. António da Câmara Leme, com um teatro no seu palácio (CARITA e MELLO, Ibid., 42). Nos saraus, a música para canto e piano – principalmente árias de ópera – ocuparia um lugar especial, sendo uma das formas de entretenimento mais habitual. Apesar de a cidade do Funchal ter ficado, na déc. de 1830, sem um teatro lírico de grandes dimensões, a prática do repertório de influência operática ter-se-á mantido ao longo de todo o séc. XIX, sendo vários os testemunhos que comprovam esta afirmação – e.g., em 1835, numa receção ao futuro governador civil das “possessões inglesas na Índia”, faz-se referência à execução de “árias, duetos, e romances” acompanhados ao piano por Duarte dos Santos (A Flor do Oceano, Funchal, 18 out. 1835, 4). Juntamente com a prática da música vocal, verificou-se um aumento da importância do piano, da viola e do machete, existindo diversos documentos que confirmam a presença destes instrumentos no quotidiano doméstico e a sua boa execução por madeirenses. Um dos maiores músicos madeirenses deste período foi o compositor e intérprete de machete Cândido Drummond de Vasconcelos. São escassas as informações sobre este músico, pelo que se torna difícil traçar a sua biografia. Como instrumentista de machete, há notícias da sua atividade no Funchal a partir de 1841; foi autor de uma coleção de música manuscrita, de 1846, editada pelo musicólogo Manuel Morais, a qual é constituída por um repertório de elevada qualidade, composto principalmente por valsas, temas e variações, quadrilhas e polcas. Conhecem-se ainda outros intérpretes de machete e de viola, entre os quais se destacam António José Barbosa (1822-1899) e Manuel Joaquim Monteiro Cabral. Entre os pianistas mais relevantes deste período são de vincar os nomes de João Fradesso Belo (1792-1861), Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858), Duarte Joaquim dos Santos (1801-1855) e António José Bernes (?-1880). João Fradesso Belo foi o primeiro compositor para piano na Madeira, tendo produzido música de salão, da qual se conhece uma valsa. Este músico terá ido para a Madeira em 1812, em conjunto com outros músicos, por intermédio do bispo José Joaquim de Meneses e Ataíde, tendo residido no Funchal até ao final da sua vida. Fradesso Belo foi discípulo de Frei José Marques, em Lisboa; Ernesto Vieira refere que o músico terá estudado no seminário patriarcal. Ao longo da sua vida na capital madeirense, João Fradesso Belo tornou-se um músico célebre, sendo mestre de capela da Sé e professor no seminário da cidade. Duarte Joaquim dos Santos foi, igualmente, um dos pianistas mais importantes do Funchal no segundo quartel do séc. XIX, tendo residido nesta cidade desde a déc. de 1840, provavelmente, até à data da sua morte a 24 de maio de 1855. Segundo Rui Magno Pinto, Santos afirmou-se em Londres como compositor prolífico, tendo publicado em editoras como a Payne & Hopkins, a R. Cocks & Co., a Jeffreys & Co.; nos catálogos, estão registadas cerca de 60 peças suas. Entre as suas obras publicadas encontram-se, na British Library, peças para piano a duas e a quatro mãos – quadrilhas, valsas, divertimentos –, transcrições de árias de ópera para piano e uma peça sacra – Alma [Redemptoris Mater] – para coro e órgão. A Biblioteca Nacional dispõe também de algumas quadrilhas da sua autoria, as quais foram publicadas em Portugal na Lithografia Armazem de Musica da Casa Real. O pianista Ricardo Porfírio d’Afonseca é exemplo de um compositor pivô que acompanhou o crescimento da importância das danças de salão no quotidiano madeirense. Assim, se ainda cultivava, no início do séc. XIX, o género sonata, passa progressivamente a dedicar-se a danças de salão, tendo sido um músico pioneiro na composição de valsas e de cotilhões para piano. Finalmente, o pianista António José Bernes foi um conceituado compositor, professor de piano e maestro. Existem poucas referências à sua formação, mas é provável que tenha estudado primeiramente no Funchal, com Ricardo Porfírio d’Afonseca, e mais tarde em Viena e em Nápoles, como nota Platon de Waxel, que o considerava “o único compositor que merecia, até certo ponto, este nome na Madeira” à época (WAXEL, 1948, 35). No Funchal, Bernes foi influente como professor de piano: entre as suas alunas, realce-se Maria Paula K. Rego, uma das pianistas funchalenses mais ativas em saraus de beneficência na segunda metade do séc. XIX. Do seu repertório, chegaram aos nossos dias uma valsa incompleta (Le Diamond) e Il Sogno Amoroso a Nice, com um poema sobre os enganos do amor. Os três instrumentistas compuseram música de salão, seja para piano, seja para viola ou para machete; é possível identificar um repertório destes músicos destinado a saraus musicais privados e constituído tanto por valsas, quadrilhas e polcas, como por temas e variações. Nos saraus musicais no Funchal não atuavam apenas portugueses, mas também visitantes estrangeiros. Em 1853, e.g., a visitante Isabella de França descreve, no seu livro Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal, um convívio organizado por uma família alemã, em que foi “um verdadeiro regalo ouvir” a anfitriã cantar uma ária “com o marido a acompanhá-la ao piano” (FRANÇA, 1970, 170-171). Nesse sarau participaram pessoas de várias nacionalidades, o que demonstra a importância destes encontros para os estrangeiros que ficavam longas temporadas na Madeira. Ao longo do séc. XIX, a disposição do interior das casas acompanhou a mudança de costumes causada por este novo tipo de sociabilidade urbana, e começaram a surgir novas divisões, como salões de música, as quais eram destinadas a festas e saraus dançantes; nestes compartimentos, os tetos em estuque eram decorados com motivos musicais. Alguns dos salões madeirenses tinham excelentes condições para convívios musicais domésticos, estando ao nível das melhores salas privadas europeias, como o testemunham os relatos de visitantes estrangeiros da época: nomeadamente, em meados do séc. XIX, uma das aristocratas que visitou a Madeira, ao descrever um salão de uma casa onde decorria um baile, referia que este “rivalizava com os de Paris e Londres, tendo mesmo uma galeria para a orquestra” (NASCIMENTO, 1933, III, 98). Na Madeira, assiste-se a um ganho de importância da mulher como dinamizadora de salões nobres, sendo costume as senhoras organizarem festas nos seus salões privados, em que, quer as anfitriãs, quer as convidadas demonstravam os seus dotes, cantando ou tocando piano. Apesar de não serem públicos, alguns desses eventos são divulgados na imprensa periódica do Funchal. Enquanto, no plano privado, os saraus domésticos constituíram o tipo de atividade mais comum, no plano público os eventos de cariz musical mais representativos foram, provavelmente, os bailes e saraus de beneficência, os quais eram frequentemente organizados por clubes ou sociedades. No caso dos bailes, é importante referir que se tratava de iniciativas de convívio social de requinte na sociedade funchalense, em que os participantes vestiam a rigor e em que os anfitriões preparavam luxuosamente as salas de dança. Assim, é natural que a música também acompanhasse o primor exigido pelo acontecimento, pelo que os bailes seriam as ocasiões da vida social em que se tocaria a música mais elegante da época, com o maior número e a maior variedade de instrumentos, seguindo a moda então em vigor nos principais centros europeus. Entre as orquestras que tocavam nos bailes no terceiro quartel do séc. XIX, conhecem-se a Orquestra de Augusto Miguéis, da qual existe repertório respeitante ao período compreendido entre 1865 e 1884, e a de Anselmo Serrão (1846-1922), que tocou na Orquestra do Teatro Esperança. As orquestras eram de pequena dimensão. Os arranjos do repertório documentado estavam destinados à seguinte disposição instrumental: cordas (violino 1, violino 2, baixo), sopros de madeira (flauta ou outavino e clarinete) e sopros de metal (cornetim, trompas e barítono). A iniciativa dos saraus de beneficência partia, muitas vezes, de comissões de senhoras que aproveitavam o tempo livre para se dedicarem à caridade. Numa época em que, na Madeira, entretenimentos como o teatro eram considerados moralmente impróprios para mulheres, os saraus de beneficência constituíam uma das poucas oportunidades para aquelas exibirem os seus talentos musicais em público. Encontram-se relatos de espetáculos de beneficência no primeiro periódico madeirense, O Patriota Funchalense. Os motivos de beneficência eram variados: enquanto os primeiros eventos deste tipo da déc. de 1820 são realizados em prol de artistas, a partir da déc. de 1830 há atuações cujas receitas são arrecadadas em proveito do hospital e dos enfermos. Além de exibições musicais para apoio de artistas e de doentes, encontram-se também concertos cujos lucros revertem em favor dos “atormentados pela fome” (CARITA e MELLO, 1988, 40). A importância destes eventos era tal que os estatutos da Sociedade Philarmonica referiam, aquando da sua criação, em 1840, que um dos principais objetivos era o de atuar em serões beneficentes. Deste modo, é normal que, na déc. de 1840, existam diversas notícias, em variados periódicos da época (), a concertos de beneficência no Funchal. Na déc. de 1850, há notícia de vários saraus de beneficência, cujas descrições pormenorizadas permitem saber como decorria um evento deste género. Os saraus organizados no Funchal pela ilustre cantora madeirense Júlia de Atouguia de França Neto, entre 1854 e 1861, foram postos em evidência pela imprensa. Neste período, Júlia de França Neto realizou 10 concertos de beneficência, os quais se destinavam a suprir as necessidades dos pobres e desfavorecidos. Estas iniciativas de maternidade social intensificam-se na déc. de 1860, altura em que uma das principais promotoras destes convívios musicais passa a ser Maria Paula Rego. A participação de estrangeiros nestes saraus deveria ser muito habitual, encontrando-se na imprensa periódica algumas notícias de saraus organizados conjuntamente por senhoras inglesas e portuguesas. Como impulsionadora destes saraus, merece ainda destaque Amélia Augusta de Azevedo. Nascida em 1840, foi uma das mulheres pioneiras no domínio da composição musical na Madeira. Estudou no Conservatório de Música de Lisboa e, segundo Rui Magno Pinto, “possivelmente no Conservatoire National de Musique et de Declamation [Conservatório Nacional de Música e de Declamação] em Paris (ou alguma das suas sucursais)”. Entre as suas composições, contam-se Alma Minha (sobre a poesia de Camões), Le Regret, Paris Russophile e a polca-mazurca Recordações de Cintra (PINTO, 2008, 9). As sociedades, os clubes e as comissões de senhoras tinham salões próprios para o desenvolvimento das suas atividades, os quais se adaptavam a espetáculos de pequenas dimensões e de cariz amador. No entanto, para eventos de maior projeção e com artistas profissionais, foram construídos vários teatros no período pós-revolução liberal, os quais foram os locais privilegiados dos concertos públicos. Entre os muitos espaços existentes no Funchal destacam-se – antes da construção do Teatro D. Maria Pia, que passou a ser a referência no final do séc. XIX – o Teatro do Bom Gosto, a sala da Escola Lancasteriana, o Teatro Prazer Regenerado, o Teatro da Concórdia, o Teatro Tália e Marte e o Teatro Esperança. Entre estas salas de concerto, a sala da Escola Lancasteriana ocupa um lugar de relevo, tendo sido um dos mais importantes pontos de atuação dos virtuosos que visitaram a Madeira. A título de exemplo, mencione-se que o violoncelista César Augusto Cazella, que se apresentava como “violoncelista particular do rei da Sardenha”, atuou na sala da Escola Lancasteriana entre dezembro de 1850 e janeiro de 1851, quase sempre acompanhado ao piano por Duarte Joaquim dos Santos. O violinista Agostinho Robbio – que surgia como “discípulo distinto do imortal Paganini, por quem foi premiado com a sua própria rabeca e medalha de honra” – também atuou neste espaço entre fevereiro e maio de 1850 (CARITA e MELLO, Ibid., 42). Foi igualmente na Escola Lancasteriana que a conceituada intérprete madeirense Júlia de Atouguia de França Neto realizou, a 28 de dezembro de 1854, um concerto em favor dos pobres, o primeiro de uma série de espetáculos de beneficência que decorreram ao longo desta década; a intérprete foi acompanhada ao piano por Duarte Joaquim dos Santos. Até 1873, ano em que deixa de haver notícias sobre a atividade musical nesta sala, vai havendo sempre virtuosos a atuar neste espaço: o flautista Daniel Imbert, o violinista Charles Elliot, o contrabaixista Arthur F. Reimhardt, o pianista brasileiro Hermenegildo Liguori, que tocou como solista, a cantora Nelida Martinon, o violinista Ernesto Mascheck, os irmãos Croner. Todos estes músicos apresentaram repertórios virtuosísticos constituídos por fantasias sobre motivos de óperas, variações, árias com variações, temas e variações, concertos ou duetos brilhantes. Em 1859 é fundado o Teatro Esperança, que passou a ser o local de concertos mais importante do Funchal até ao aparecimento do Teatro D. Maria Pia, em 1888. Este espaço recebeu músicos virtuosos de projeção internacional como a cantora Anna Bishop, que ali realizou alguns concertos acompanhada pelo pianista e vocalista Charles Lescelles, e companhias operáticas como a Companhia Dramática Italiana, que trouxe à Madeira as cantoras Dejean e Sauzin e o tenor Verdini. O diretor de orquestra da Companhia Dramática Italiana era Francisco Vila y Dalmau, que viria mais tarde a instalar-se permanentemente na Madeira e a ser o maestro mais importante do Funchal no último quartel do séc. XIX; esta companhia de cantores terá produzido, na íntegra, várias óperas italianas famosas. Finalmente, é imprescindível salientar a enorme influência das bandas regimentares neste período. Como refere o musicólogo Rui Magno Pinto, a atividade das bandas regimentais incluía atuações em dias festivos régios e exibições em concertos públicos em praças e jardins funchalenses, em festividades e procissões religiosas, no teatro e em bailes. Contudo, o seu trabalho ia para além do exercício de funções próprio a uma banda – na realidade, os regentes e músicos ocuparam também lugares de relevo enquanto solistas, compositores, regentes de agrupamentos musicais diversos e professores. A qualidade das diversas bandas regimentares presentes no Funchal neste período (tais como o Regimento de Infantaria n.º 7, o Batalhão de Infantaria n.º 11 e a Banda de Caçadores n.º 12, a primeira a estar sediada na Madeira, a partir de 1862) levou certamente ao surgimento de filarmónicas civis. A constituição destes grupos musicais foi realizada à imagem das bandas regimentares, normalmente formadas por iniciativa popular, mediante o mecenato de um nobre ou burguês ou como resultado da associação de profissionais de uma mesma atividade. Segundo Rui Magno Pinto, a primeira coletividade deste tipo surgiu na Madeira em 1844, embora se desconheça o seu nome, sendo descrita como uma “banda de curiosos”. A 18 de fevereiro de 1850 foi fundada a Filarmónica Artístico Funchalense, conhecida como Banda Municipal do Funchal. Entre 1859 e 1860 surge a Filarmónica Recreio Artístico Funchalense, ativa até finais do primeiro quartel do séc. XX (PINTO, 2011, 134). A importância das filarmónicas civis crescerá nas décadas seguintes. Até ao primeiro quartel do séc. XX irá surgir um número elevado destes agrupamentos em quase todos os municípios da Madeira, num fenómeno de popularização da música que atingirá o seu cume na déc. de 1930. A popularização da prática musical na transição do século XIX para o século XX Entre 1870 e 1930 assiste-se à emergência de dezenas de grupos musicais amadores de grande dimensão um pouco por toda a Ilha. Este foi um fenómeno incomum, que revolucionou por completo a prática musical na Madeira. A partir da déc. de 1870, com especial impacto a partir de 1880, surgiram na Madeira muitas bandas filarmónicas, tunas de cordofones, grupos corais e orquestras sinfónicas, constituídos maioritariamente por músicos amadores. Alguns agrupamentos teriam perto de 100 elementos, segundo notícias da época. Em poucas décadas, desenvolveu-se na Madeira um extraordinário movimento de democratização musical, em que parte apreciável da população passou a integrar grupos musicais. As causas que estão na origem de uma mudança desta magnitude são várias. No caso das bandas filarmónicas, a sua proliferação deve ter ocorrido principalmente como “fruto do discurso que favorecia a capacidade educacional da música enquanto promotora de progresso e civilização e atribuía mérito e reconhecimento aos detentores de capacidade artística” (PINTO, Ibid., 133). O crescimento do número de bandas também deve ter sido facilitado pelo aumento da produção e a consequente redução dos preços dos instrumentos de sopro ocorridos ao longo do séc. XIX. No que diz respeito às tunas, a influência para a sua fundação terá vindo do meio académico, tendo surgido muitas tunas na Madeira sob inspiração da Tuna Compostellana em Portugal continental, no final do séc. XIX (principalmente a partir de 1888). O facto de haver na Madeira vários construtores de instrumentos de cordas habituais nas tunas – violinos, bandolins, violas, entre outros – facilitou a criação deste tipo de agrupamento musical do ponto de vista económico. Outra causa central para a replicação destes grupos está relacionada com a inexistência ou com a pouca difusão dos meios técnicos que viriam a revolucionar a música na Madeira, principalmente a partir da déc. de 1930: a telefonia, o gramofone e o cinema (a partir desta década, com a emigração e com a diminuição dos preços destes expedientes técnicos, a prática musical amadora reduz-se bastante na Madeira). Finalmente, a valorização do convívio masculino, juntamente com a facilidade de execução das partes instrumentais individuais em grupos grandes, terão contribuído de igual modo para a multiplicação deste tipo de agrupamentos amadores. A grande difusão das bandas filarmónicas na Madeira neste período pode ser atestada na seguinte lista, não exaustiva, na qual se enumera os agrupamentos surgidos na déc. de 1880: em 1881, estava a organizar-se, na vila da Ponta do Sol, uma filarmónica para a elite ponta-solense e uma banda para os operários; em 1883, é fundada a Banda União Fraternal de Santa Cruz; a 18 de fevereiro de 1884, a Filarmónica Recreio dos Lavradores atuou pela primeira vez; em 1886, é fundada a Orquestra Recreio e União; em 1887, é provavelmente criada a Sociedade União e Lealdade na freguesia de São Roque; em 1887, é instituída a Sociedade Recreio Musical, com sede na rua dos Ferreiros; em 1887, funda-se a Filarmónica União Santacruzense; em 1889, cria-se a Banda dos Bombeiros Voluntários Madeirenses; em 1889, estabelece-se a Filarmónica da Ribeira Brava. As tunas de cordofones são outro género de grupo muito na moda neste período. As tunas começam por ter como instrumento melódico principal o violino, mas, progressivamente, o bandolim vai ocupando o lugar de destaque nestes agrupamentos amadores, sendo comum na Madeira designar estes grupos como tunas de bandolins ou orquestras de palheta (esta última denominação é de clara influência italiana – “orquestra de plectro”). Entre 1889 e 1935, são fundadas várias tunas na Madeira, primeiramente com ligações ao meio académico e, posteriormente, de cariz mais popular. Segue-se uma lista, não completa, das tunas: 1889, Tuna Compostellana; 1905, Tuna Académica (Liceu do Funchal); 1906, Grupo de Amadores de Música Passos Freitas; 1913, Grupo Reunião Musical da Mocidade (a ulterior Orquestra de Bandolins da Madeira); 1913, Grupo 6 de Janeiro de 1915 (o posterior Círculo Bandolinístico da Madeira); 1920, Grémio Musical 10 de Junho; 1920, Septeto Dr. Passos Freitas (versão reduzida do grupo original); 1920, Quarteto do Sr. Arsénio (Santa Cruz); 1923, Grupo Musical Faialense; 1930, Núcleo Bandolinístico de Câmara de Lobos; 1934, Grupo Bandolinístico de Santo António; 1935, Grupo Bandolinístico União de Santo António (BUSA); 1935, Grupo Musical Colares Mendes. Apesar de a maioria dos grupos amadores madeirenses ser constituída por bandas e por tunas, são frequentes neste período outros tipos de agrupamento. Entre eles, são de salientar os grupos corais e as orquestras sinfónicas. No caso dos grupos corais, apesar de haver referência à criação de uma escola de canto coral no Funchal em 1885, é principalmente na déc. de 1920 que se encontram grupos corais de grande dimensão. Os três protagonistas deste movimento terão sido o cantor Júlio Câmara (1876-1950), o músico-advogado Manuel dos Passos Freitas (1872-1952) e o capitão Gustavo Coelho (1890-1965). Júlio Câmara dirigia, em 1920, o Orfeon Académico, o qual chegou a ser composto de 85 elementos; Manuel dos Passos Freitas fundou e dirigiu o Orfeão Madeirense, que se apresentou por diversas vezes no teatro e realizou digressões às Canárias; finalmente, o capitão Gustavo Coelho criou um Orfeão Académico, constituído por alunos do Liceu do Funchal e sobre o qual há notícias de estar em atividade em 1925. Gustavo Coelho merece ser posto em evidência, uma vez que foi um dos mais relevantes e conceituados regentes de bandas filarmónicas, orquestras e grupos corais, assim como um prolífico compositor e transcritor de música. Foi chefe da Banda de Música do Comando Militar da Madeira e integrou o corpo docente da Academia de Música, Belas-Artes e Línguas da Madeira. Entre os principais regentes de bandas e orquestras deste período salientam-se ainda os nomes de Nuno Graceliano Lino (1859-1929), “organizador de quase todas as orquestras que se faziam ouvir nos salões aristocráticos e nas grandes solenidades da Diocese” (DN, Funchal, 16 nov. 1929, 3), e de César Rodrigues de Nascimento (1879-1925), compositor, violinista e regente de duas das principais bandas madeirenses, Artistas Funchalenses e Artístico Madeirenses (Guerrilhas). No plano nacional, a transição do séc. XIX para o séc. XX é marcada pela tentativa de criação de uma identidade com a qual os portugueses se identificassem como com algo de próprio e de distinto das outras nações. No caso da Madeira, houve várias ações no âmbito das artes que tiveram nitidamente esse propósito, mas também se deram algumas iniciativas mais específicas, onde, mais do que uma identidade nacional, os autores procuraram criar uma identidade regional madeirense. Uma das primeiras medidas levadas a cabo com este intuito está relacionada com o estudo das tradições do povo rural; em 1880, designadamente, Álvaro Rodrigues de Azevedo faz as primeiras observações e recolhas sobre o folclore regional. Outra das providências estava relacionada com a utilização dos instrumentos considerados típicos da Madeira; nomeadamente, em 1890 há referências à atividade musical da Orquestra Característica Madeirense, dirigida por Agostinho Martins, a qual era constituída por vários tipos de instrumentos, entre os quais se destacam os típicos da Madeira, tais como o machete (vulgo braguinha) – a utilização, em orquestra, deste género de instrumentos parece não deixar dúvidas quanto ao objetivo de criar, ou de executar, música com traços marcadamente regionais. Para além disso, em 1905, o compositor madeirense Filipe Fernandes Madeira (1864-1912) cria uma obra musical intitulada Souvenir de Madere – Rapsodia de Canções Populaire, formada de canções consideradas pelo autor como tradicionais da Madeira, o que constitui outro exemplo da tentativa de reprodução de uma música marcadamente madeirense. À semelhança de Filipe Fernandes Madeira, também o compositor Manuel Ribeiro procura inspiração nas canções populares da Madeira. Provavelmente na déc. de 1910, o então regente da Banda Militar compõe uma rapsódia baseada em alguns cantos típicos madeirenses – charamba, bailinho do Porto Santo, mourisca, etc. –, a qual orquestra para um dispositivo sinfónico. A procura de regionalismos encontra-se também nas produções teatrais com música, nomeadamente na revista musical madeirense, então muito em uso. Neste sentido, Dário Florez (1879-1951), um músico espanhol radicado na Madeira, cria várias peças de teatro de revista com inspiração em elementos regionais, como o exemplifica o título de uma obra sua, Semilha e Alface, de 1917. Além da busca de inspiração na música regional, assistiu-se ao cultivo de géneros nacionalistas. Assim, no primeiro quartel do séc. XX multiplicam-se a composição e a interpretação de fados no Funchal. Uma das referências mais antigas à prática de fados concerne à banda regimental de infantaria n.º 27, que incluía no seu programa de concerto, em 1902, uma versão de um fado de Rey Colaço. Prova da grande difusão do fado, neste período, é o facto de todas as principais salas de espetáculos da Madeira terem artistas que tocam este género musical. No Pavilhão Paris, e.g., é possível ouvir o ator Horácio Campos cantar fados, antes de interpretar um dueto da Viúva Alegre, enquanto no Teatro-Circo Duarte Valério apresenta “canções e fados” (DN, Funchal, 9 fev. 1914, 3); por sua vez, um anúncio do Casino Vitória refere a estreia de Silva Sanches, um “artista distinto” português, que oferece um “repertório fino, de que fazem parte, além de vários números de operetas, lindos fados e canções internacionais” (DN, Funchal, 30 dez. 1919, 1); finalmente, no teatro municipal produz-se uma opereta, da qual se diz ter “imensa graça”, intitulada Tiro ao Alvo, “com as suas canções e fados”(JM, Funchal, 10 jan. 1929, 3). Existem indícios da inclusão do fado em contexto erudito, algo que se verifica no trabalho de vários cantores líricos, que passaram a incluir fados no seu repertório de concerto, juntamente com obras clássicas, de modo regular. Assim, o tenor lírico Ernesto Silva anunciava que iria cantar “novos fados”, a par de uma canção napolitana (Diário da Madeira, Funchal, 9 fev. 1916, 2); a cantora Helena Robini sabia “com mestria interpretar os melhores clássicos” e cantava também “grande número de fados e canções” (DN, Funchal, 27 abr. 1917, 2); Júlio Câmara, tenor lírico que esteve radicado na Madeira durante alguns anos, incluía no seu repertório um “lindo fado sentimental” (DN, Funchal, 5 fev. 1918, 2). No que diz respeito à faixa etária dos fadistas, há notícia de que as crianças eram protagonistas no canto do fado. Assim, no Salão Ideal anunciava-se que, para além da “habitual presença do Quartetto Nascimento, a atriz Luiza Durão de 11 anos, cantará um lindo fado […], com letra e música, original do Sr. Machado Bonança, distinto professor do liceu d’esta cidade” (DN, Funchal, 4 jun. 1911, 1). Esta pequena atriz não foi caso único, encontrando-se uma criança ainda mais jovem, “o menino Fernando Barreto, de 9 anos”, a atuar na Qt. das Cruzes, onde cantou fados e canções portuguesas e do qual se dizia “ser possuidor de uma grande voz” (DN, Funchal, 17 set. 1931, 1). Eng. Luiz Peter Clode.1940 Naturalmente, a intensa atividade relacionada com o fado nos principais locais de espetáculo funchalenses influenciou os músicos madeirenses. Assim, ao longo da primeira metade do séc. XX, sabe-se de vários fados para canto e piano de autores madeirenses ou a residir na Madeira. Entre os autores identificados, além de Dário Florez, com o fado Saudades de Coimbra, conhecem-se, em versões para piano: um fado de Gustavo Coelho (1890-1965), intitulado Oh! Quem Me Dera; o Fado do Desespero, do músico amador Fernando Clairouin (1897-1962); Fado da Feira, Fado “Maria das Dores”, Fado dos Olivais, Fado do Vale e Fado dos Laranjais, da autoria de Luiz Peter Clode (1904-1990); e o “fado slow” Adeus Funchal, do pianista Tony Amaral (1910-1975). Um músico e poeta madeirense que viria a evidenciar-se na história do fado português, mais especificamente do fado de Coimbra, foi Edmundo Bettencourt (1899-1973). Da sua obra ressaltam as gravações de discos pela Columbia, em 1928, com a participação do guitarrista Artur Paredes (pai de Carlos Paredes), que fariam dele um cantor de referência para muitas gerações de músicos do fado e da canção de Coimbra, entre os quais Zeca Afonso. A nível religioso, a execução de música sacra em contexto popular foi muito frequente nesta época. As celebrações religiosas solenizadas com música estavam normalmente associadas “ao calendário litúrgico, destacando-se a Semana Santa, o ‘Mês de Maria’ e o Natal, assim como as cerimónias dos santos populares e dos oragos das freguesias” (CAMACHO, 2010, 19). Um outro aspeto central da música religiosa deste período está relacionado com orientações vindas do papa Pio X. Em 1903, o Papa lança o Motu Proprio, que bane da Igreja a música teatral de estilo florido, “com recitativos, floreados no canto e no acompanhamento […], e melodia das óperas mais conhecidas” (SILVA, 2006, 11). Tendo em consideração que parte significativa da música tocada nas igrejas madeirenses era inspirada em modelos operáticos, esta orientação papal exigiu uma profunda mudança na música religiosa da época. Com certeza, a diretriz vinda de Roma não resultou numa reforma completa e imediata da música na Madeira. Prova disso é o facto de o bispo D. António Pereira Ribeiro ter necessidade de criar, por decreto, uma Comissão Diocesana de Música Sacra, em 1918, com o objetivo de promover “ ‘a escrupulosa observância em toda a Diocese das leis eclesiásticas acerca da música sacra’ ” (SILVA, 2006, 10-11). Considerando que, em 1908, foi publicada na Madeira uma segunda edição de uma coleção de melodias sacras, de acordo com as orientações do Motu Proprio, fica claro que terá havido alguma resistência a retirar, dos templos madeirenses, a música de influência teatral. Apesar disso, existem casos de compositores que criaram um elevado número de obras em consonância com as novas normas emanadas do papa. Um dos casos mais notórios é o do Cón. Fernando Vaz (1884-1954), de quem se conhecem 78 composições, sobretudo cânticos em honra de N.ª Sr.ª e do Sagrado Coração de Jesus. A aludida coleção de melodias sacras compostas para o culto religioso, como alternativa às músicas de inspiração operática, não foi a única solução encontrada para pôr em prática as diretrizes de Roma. De facto, tal como um pouco por todas as dioceses portuguesas, encontram-se nesta época várias referências à tentativa de instituir o canto gregoriano na Madeira. A 15 de outubro de 1909 é anunciado na Quinzena Religiosa da Ilha da Madeira que “todos os alunos do seminário têm aula diária de cantochão ou de música” (SILVA, 2008, 217); entre 1912 e 1915, há notícia de um padre beneditino que realiza um curso de canto gregoriano no Funchal; finalmente, a 1 de março de 1915 são apresentados os princípios elementares do canto gregoriano e da música sacra no Boletim Eclesiástico da Madeira. Neste âmbito, é relevante nomear José Sarmento (1842-1905), que foi convidado pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto para organista da Sé, tendo sido depois mestre de capela e professor do seminário. Sarmento criou e imprimiu vários folhetos intitulados Rudimentos de Música, onde explicou os fundamentos teóricos da música tonal e gregoriana. Promoveu ainda vários concertos de beneficência e audições reservadas na sua Qt. de Santa Luzia, para os quais convidava os músicos que passavam pela Madeira, acompanhando-os ao piano ou ao harmónio. Outro músico que merece relevo na área da música sacra deste período é o compositor Luiz de Freitas Branco (1890-1955). Figura maior da cultura musical portuguesa da primeira metade do séc. XX e considerado o introdutor do modernismo musical em Portugal, foi para a Madeira com a família em 1912, tendo ficado até cerca de 1915. Apesar de ser bastante jovem, aquando da sua estadia na Madeira o compositor já tinha realizado estudos de composição em Berlim (1910) e tido contacto com a estética do Impressionismo em Paris (1911), onde havia conhecido Claude Debussy. No Funchal, compôs três obras de música sacra a pedido do bispo D. António Pereira Ribeiro, as quais se encontram no Arquivo do Seminário Maior: Responsórios de Matinas da Imaculada Conceição; Te Deum, a duas vozes masculinas; Te Deum, a três vozes masculinas. Outra importante mudança ocorrida na transição do séc. XIX para o séc. XX está relacionada com o desenvolvimento de um mercado para os músicos, derivado da criação de um conjunto de espaços de entretenimento que contratava os seus serviços. Enquanto no período de 1820-1880 não há dados sobre a contratação de músicos para atuações regulares em espaços públicos, a partir do final do séc. XIX começam a surgir cafés, teatros, cinemas, casinos, hotéis e outras entidades que necessitam de músicos para entretenimento habitual de madeirenses e de turistas. Passa-se de uma situação em que os músicos eram maioritariamente solicitados para dinamizar bailes esporádicos em clubes ou para atuações pontuais em teatros a uma situação em que existem vários espaços em simultâneo com necessidade, por vezes diária, de atividades musicais. A mudança em questão, aliada à necessidade de regentes para os grupos musicais de amadores então surgidos – bandas, tunas e orfeões –, bem como ao aumento de solicitações de professores de música, alterou profundamente o estatuto dos músicos, criando mais oportunidades de profissionalização para esta classe. Este novo contexto trouxe grandes alterações ao tipo de agrupamentos musicais existentes: enquanto os grupos musicais de amadores eram constituídos por dezenas de elementos, os grupos profissionais eram mais reduzidos. Em poucos anos, surgem vários grupos profissionais de pequena dimensão, normalmente sextetos, quintetos ou quartetos. Assim, principalmente a partir da déc. de 1890, são criados muitos grupos de músicos profissionais, acentuando-se o fenómeno a partir do início do séc. XX: 1895, Café “Águia D’Ouro”; 1905, Quinta Santana; 1906, Monte Stranger Club; 1907, Club dos Estrangeiros; 1909, Casino da Quinta Pavão e Hotel Belo-Monte; 1911, Salão Ideal, Salão Central Cinematographo Gaumont e Pavilhão Paris; 1916, Ateneu Comercial; 1919, Casino “Vitoria” e Teatro Circo; 1920, Novo Club Restauração; 1922, Hotel Savoy. A proliferação de grupos profissionais virá a acentuar-se a partir da déc. de 1940, devido sobretudo ao significativo aumento no número de hotéis e da oferta turística madeirenses. No período de 1890 a 1930 assiste-se a uma primeira fase de profissionalização da classe dos músicos, como está patente na seguinte lista (não exaustiva): 1897, Sexteto de Evaristo Guedes; 1900, Sexteto dos Srs. Nunos; 1905, Sexteto Espanhol da Quinta Santana; 1906, Sexteto Agostinho Martins; 1906, Sexteto António de Aguiar; 1909, Sexteto Espanhol da Quinta Pavão; 1909, Sexteto de Nuno Graciliano Lino (mais tarde, Quarteto); 1909, O Sexteto Nascimento (mais tarde, Quarteto e Quinteto); 1909, Orquestra Belo-Monte; 1911, Quarteto João de Deus; 1916, Sexteto Joaquim Casimiro; 1919, Sexteto Cesar Magliano; 1920, Sexteto Passos Freitas (mais tarde, Septeto, Octeto e Quinteto); 1920, Quarteto Accacio Santos; 1922, Quarteto do Hotel Savoy. O momento mais importante do final do séc. XIX, que influenciaria as artes performativas profissionais ao longo das primeiras três décadas do séc. XX, foi a fundação do Teatro D. Maria Pia, em 1888 (posteriormente Teatro Funchalense, Teatro Manuel Arriaga, teatro municipal Baltazar Dias). As obras de construção terão sido concluídas em 1887, altura em que a Orquestra da Associação Musical 25 de Janeiro deu um concerto para experimentar as condições acústicas da nova sala. A 11 de março de 1888, o teatro é inaugurado oficialmente por uma companhia espanhola contratada pelo negociante espanhol D. José Zamorano, estabelecido no Funchal; a primeira peça a ser representada foi a zarzuela Las dos Princesas. Na sequência da fundação do teatro, experimentou-se um incremento da produção teatral: ao longo de 1888 são apresentados 69 espetáculos (referentes a 34 zarzuelas). De facto, este foi o espaço privilegiado do Funchal para concertos públicos, tendo nele atuado várias companhias de ópera, de revista, de zarzuela e diversos músicos virtuosos. A partir da inauguração do Teatro D. Maria Pia, as representações de teatro lírico de influência italiana começaram a ser mais frequentes – com forte concorrência da zarzuela espanhola –, e o tipo de espetáculo mais comum terá sido o sarau ou a récita com uma mistura de árias das óperas mais famosas de então. Um exemplo deste género de exibição ocorre em 1904, ano em que um conjunto de cantores líricos com formação italiana atua no teatro municipal: o barítono Maurício Bensaúde (teatro alla Scala de Milão), a mezzo soprano Paola Moretti (La Fenice de Veneza) e o tenor Ivo Zaccari (teatro Carlo Felice de Génova), que apresentam um conjunto de êxitos das óperas mais populares. Contudo, no final do séc. XIX as cançonetas ligeiras começam a ganhar a preferência de alguma elite madeirense, ocupando o espaço deixado livre pelos romances (desaparecidos das notícias de imprensa desde a déc. de 1870) e fazendo concorrência às árias de ópera de influência italiana. O termo “cançoneta” começa a aparecer de forma frequente a partir de 1888, coincidindo com o ano de fundação do Teatro D. Maria Pia. As cançonetas eram cantadas maioritariamente por atores e não por cantores líricos; tinham, com frequência, objetivos cómicos: um articulista referia que a cançoneta “De Pernas Para o Ar”, quando interpretada pelo ator Santos, fazia “a gente morrer de riso” (DN, Funchal, 21 out. 1888, 1); outra cançoneta teria o mesmo efeito, sendo descrita como “a engraçadíssima cançoneta: Sol, Lá, Si, Dó que é d’uma pessoa morrer de riso” (DN, Funchal, 13 nov. 1888, 1). Entre as cantoras e compositoras madeirenses, saliente-se Matilde Sauvayre da Câmara (1871-1957), que teve grande influência na vida musical da Ilha na transição do séc. XIX para o séc. XX. Na visita que os reis D. Carlos e D. Amélia fizeram à Madeira em 1901, Matilde Sauvayre da Câmara foi responsável pela organização de uma récita de gala no teatro municipal do Funchal. Sauvayre da Câmara, enquanto artista que alcançou notoriedade a compor e a cantar cançonetas, exemplifica a mudança que se viria a sentir no início do séc. XX, onde a preferência por um estilo musical teatral mais ligeiro, em detrimento das árias de ópera, se veio a confirmar. A cantora madeirense tem sucesso, desde 1893, ao atuar em saraus domésticos realizados em salões nobres de casas de personalidades do Funchal, tais como as do médico Adriano Augusto Larica ou dos Viscondes de Monte Bello; em 1897, surge como protagonista de números dramáticos no Teatro D. Maria Pia, onde também interpreta algumas cançonetas integradas num espetáculo de beneficência. Na área da música para teatro, uma das novidades de maior relevo deste período é a emergência de um repertório original de criação regional de influência lisboeta e espanhola – a revista. A revista madeirense terá provavelmente sofrido o influxo da congénere de Lisboa, por meio dos militares músicos que chegaram à Madeira partidos do continente – como Manuel Ribeiro –, e da zarzuela espanhola, através da ação das várias companhias que estiveram no Funchal neste período. Parece plausível que entre 1909 e a déc. de 1950 tenham sido produzidas no Funchal dezenas de revistas originais, exibidas em espetáculos criativos que misturavam libretistas, compositores e coreógrafos regionais. Ao longo de cerca de 50 anos foi produzido um extenso repertório de revista, mediante o contributo de músicos como Augusto Graça, Manuel Ribeiro, Dário Florez e, no período do Estado Novo, do Cap. Edmundo Conceição Lomelino. No domínio dos libretos, a variedade de autores é maior, destacando-se, entre outros, os nomes de Alberto Artur Sarmento, de Adão Nunes e, na época do Estado Novo, de Teodoro Silva. Nos anos áureos da revista e da opereta regional madeirenses surgiu o tenor lírico Nuno Lomelino Silva (1893-1967), apelidado de “Caruso português”. Nascido no Funchal, no final do séc. XIX, começa a sua atividade de cantor como amador numa opereta na Madeira. Após realizar estudos em Itália, acaba por enveredar por uma carreira internacional, com digressões pela Europa, pela América do Norte, pelo Brasil, pela Ásia, etc. Atuou no Funchal por diversas vezes, acompanhado de excelentes pianistas; entre estes, conhecem-se os nomes de Jacinto C. Baptista Santos, do maestro Jacobs Pierre, de Pedro Guevara e de Regina Cascais. Na área da relação entre a música e o teatro, é ainda de referir João dos Reis Gomes (1869-1950) que, em 1919, publica um esboço filosófico intitulado A Música e o Teatro, o qual ocupa um importante lugar no panorama musicológico madeirense. As novas tecnologias e a emergência do Novo Mundo Os primeiros anos do regime do Estado Novo foram marcados por um conjunto de mudanças tecnológicas que teve um elevado impacto na cultura madeirense. Entre elas encontram-se a telefonia, o cinema e o gramofone, que vieram alterar o modo de recreação dos madeirenses, quer na vida privada, quer na vida social. A telefonia chega à Madeira no verão de 1927, altura em que surgem os primeiros anúncios para venda de material de telefonia da Marconi e Sterling. No entanto, será principalmente a partir da déc. de 1930 que a telefonia se começa a generalizar entre a população madeirense. O cinema ganhou progressivamente a adesão do público, supondo-se que fosse, no segundo quartel do séc. XX, a principal forma de passatempo madeirense. A primeira apresentação do animatógrafo ocorreu no Funchal em 1897; em 1907, ocorreu o lançamento do cinema em termos comerciais. O sucesso obtido por esta arte no Funchal foi de tal ordem que, em 1932, o teatro municipal já funcionava quase exclusivamente como sala de cinema. O gramofone foi outra tecnologia que, na déc. de 1930, marcou de forma indelével o quotidiano e os entretenimentos madeirenses. Pelo menos desde o início da déc. de 1910 que se faz menção desta tecnologia nos periódicos, a qual coincide com o início da decadência da prática musical amadora. É nesta altura que começam a surgir os primeiros anúncios publicitários a vendas de fonógrafos, então designados de “Pathéphone – máquinas falantes” (DN, Funchal, 19 jul. 1910, 3). Estes reclames mantinham-se ao longo de várias semanas, o que indicia que o negócio devia ser rentável. A nova tecnologia era apresentada com grande euforia nos jornais: v.g., afirmava-se que “a descoberta das máquinas falantes para discos sem agulha produziu uma revolução no mundo artístico e musical” (DN, Funchal, 21 nov. 1910, 3) – o que, de facto, veio a confirmar-se nas décadas seguintes. Na déc. de 1930, aparece a denominação “gramofone” num anúncio que informa que “gramofones de origem alemã” podiam ser adquiridos na “rua do Comércio, 166 a 168” (DN, Funchal, 31 jan. 1932, 6). Em espaços comerciais destinados a estrangeiros havia casos de proprietários que preferiam colocar gramofones em vez de pôr música ao vivo: e.g., num anúncio em inglês, a Majestic House informava que todos os dias colocava discos a tocar no seu gramophone, dando especial destaque aos melhores “fados portugueses” (DN, Funchal, 26 jan. 1932, 6). A elevada importância destas tecnologias entre os jovens da déc. de 1930 está bem patente num texto de Luiz Peter Clode, escrito em 1949, onde o autor descreve as motivações para a fundação da Sociedade de Concertos da Madeira, em 1943: “de 1930 a 1943, […] aos rapazes e raparigas dos 15 aos 18 anos pouco interessava a política do espírito. A sua máxima preocupação era o aperfeiçoamento dos gramofones, as atrizes e os atores de cinema, radiotelefonia, o ‘jazz’ e o gosto exagerado pelo futebol” (CLODE, 1949, 1). A difusão destas novas tecnologias na déc. de 1930 contribuiu de forma decisiva para um aumento da influência da música americana na Madeira – tal como no resto da Europa –, em especial através do cinema e dos gramofones. Num anúncio do Jornal da Madeira de 10 de maio de 1924 indica-se existir à venda, na rua da Queimada de Cima, um “grande sortimento de DISCOS entre outros: Fox-trots, Shimmy’s, Boston, Jazz-Band”. Assim, é natural que a música americana começasse a disseminar-se nos entretenimentos madeirenses, principalmente nos diferentes tipos de danças. A influência, não só americana, mas também inglesa chegou à Madeira na déc. de 1920, altura em que se dançava o one step e o fox-trot no Funchal. Entre os compositores madeirenses, encontram-se músicos que criam repertório deste género. O pianista Raul de Abreu compõe, em 1936, uma peça intitulada Kit Cat, Fox-trot, na qual o estilo ragtime é bastante notório. Outro músico madeirense pioneiro nestas novas danças foi Edmundo da Conceição Lomelino, que editou um one-step para piano, intitulado A Little Kiss, Intermezzo Americano, em data incerta (entre 1920 e 1940). A americanização da música de dança e da música em geral continuou no Funchal ao longo da primeira metade do séc. XX, havendo vários indícios dessa aculturação, sobretudo ao longo da déc. de 30, com a difusão de jazz bands. A referência ao jazz é pertinente, principalmente porque é significativa de uma mudança cultural relevante. No Funchal, as notícias sobre jazz bands começaram a surgir sensivelmente a partir de 1927, com menção à prática de jazz habitualmente ligada ao cinema e à dança, confirmando-se assim o paralelismo com a situação em Lisboa. Designadamente, num anúncio a um espetáculo de cinema no Teatro-Circo avisava-se que se estreava “um jazz band, que doravante passa a tocar em todos os espetáculos deste cinema”, acrescentando-se que seria “mais um atrativo para o público” e que esta música estava “muito em uso em todas as partes da Europa” (DN, Funchal, 30 jul. 1927, 2). Poucos meses depois, no Strangers Clube do Casino Victor, anunciava-se que às seis horas haveria “dança com acompanhamento do Jazz-Band do Club” (DN, Funchal, 29 dez. 1927, 3). Durante a déc. de 30, estas referências multiplicam-se, surgindo várias orquestras de jazz que tocam em cafés, hotéis, clubes ou no Casino Vitória: Orquestra Jazz de Manuel Freitas (1932), Orquestra Jazz Café Ritz (1932), Orquestra Jazz Oceânia (1933), Orquestra Jazz Amaral (1933), Abreu’s Dancing Orchestra (1933); Jazz Band de Jacinto Baptista Santos (1935), Orquestra Jazz Senhor Silva (1935), Orquestra de Jazz da Academia Musical Instrução e Recreio (1936), Orquestra Jazz Vanize Meireles (1937), entre outras. Estes grupos incluíam instrumentos como a bateria de jazz, a viola (francesa), o piano, o bandoneon e o saxofone, que em alguns casos continuavam a coexistir com o violino, o clarinete e o trompete. Um dos primeiros músicos madeirenses a ser influenciado pela “nova música” americana e a obter enorme sucesso foi Tony Amaral (1910-1976). No início dos anos 40, o pianista e compositor madeirense criou o Conjunto Tony Amaral e a sua Orquestra, com o qual atuava no hotel Bellavista. Em 1946, muda-se para Lisboa, onde alcança um enorme êxito, inclusivamente junto da crítica. Na capital, sob a designação de Tony Amaral and His Boys, o conjunto atuou em nightclubs, restaurantes, teatros e no Casino Estoril. Em Lisboa, o conjunto era, numa primeira fase, constituído pelos músicos Carlos Menezes (guitarra elétrica), José de Freitas (contrabaixo), Barrinhos (bateria), Tony Amaral (piano) e Max (voz). Em 1949, o conjunto grava um disco com a Valentim de Carvalho, incluindo composições de Tony Amaral e de Max e recriações de canções tradicionais madeirenses, entre as quais o célebre Bailinho da Madeira e a música de influência africano-americana Noites da Madeira. O famoso cantor madeirense atuou no grupo até iniciar uma carreira a solo, na qual atingiria o estatuto de uma das mais populares vedetas da rádio, do teatro e da televisão portuguesa. O agrupamento de Tony Amaral é modelo de um novo tipo de grupo de músicos profissionais, normalmente denominado de “conjunto”, que começa a proliferar de forma mais acentuada na déc. de 1940, principalmente em conexão com o aumento dos hotéis e da oferta turística madeirenses. O termo “conjunto” aplicou-se a vários tipos de formações, mas na Madeira foi sobretudo utilizado, nas décs. de 1940 e de 1950, para designar novos agrupamentos de pequena dimensão e com configurações variadas, que se desenvolveram em torno da bateria de ritmo e com um repertório baseado nas danças em voga. Os conjuntos representam, deste modo, uma nova forma de agrupamento de músicos profissionais ligados ao turismo, a qual vem na sequência dos sextetos, dos quintetos ou dos quartetos que proliferaram no Funchal na transição do séc. XIX para o séc. XX. Os conjuntos distinguem-se dos grupos anteriormente referidos por apresentarem programas de influência anglo-americana e por disporem de um efetivo instrumental que inclui bateria, baixo ou contrabaixo, piano, viola amplificada, habitualmente, e, mais tarde, guitarra elétrica. Alguns conjuntos têm também instrumentos de sopro, como trompete, clarinete ou saxofone. Os conjuntos de Tony Amaral foram os primeiros do género em Portugal que alcançaram um elevado sucesso, tocando música swing, danças latino-americanas e composições de inspiração folclórica em instrumentos elétricos. Assim, é natural que um articulista se referisse ao “quinteto Tony Amaral” como tendo “feito a maior propaganda da Madeira no Continente sendo justamente considerado o primeiro conjunto musical português” (DN, Funchal, 1 jan. 1951, 6). O sucesso alcançado pelo conjunto de Tony Amaral, quer em Portugal continental, quer no estrangeiro, contribuiu certamente para o aparecimento de um grande número de grupos que seguiram o seu modelo, tanto a nível de efetivo instrumental, como de repertório. Assim, ao longo da déc. de 1950, surgem dezenas de grupos musicais que se apresentam sob a designação de “conjuntos” ou de “orquestras”, sem diferenciação substancial entre ambas as denominações, que seguem de perto o modelo do conjunto de Tony Amaral. Entre esses conjuntos, é possível destacar os seguintes, que, de acordo com os periódicos funchalenses, estão em atividade na déc. de 50: Conjunto Blue Moon (1951), Trio “Jess and His Boys” (1952), Conjunto Musical Privativo do Savoy (1954), Conjunto Musical “Tino Cubanos”, Conjunto Musical “Os Rapazes do Ritmo” (1954) – os quais atuam em Luanda em 1957 –, Orquestra “Os Reis do Ritmo” (1954), Orquestra privativa Conjunto “Jorge Brandão” (1954), Conjunto “Flamingo” (1954), Conjunto Irmãos Freitas (1955), Conjunto Académico (1955), Orquestra Zeca da Silva e o seu Conjunto (1955), Conjunto Privativo do Casino (1957), Conjunto Musical “Atlântico Jazz” (1957), Conjunto “Virgílio Cardoso”, (1957), Conjunto Alberto Amaral (1957), Conjunto “Os Amigos da Onça” (1958) – no mesmo ano aparece sob o nome de Orquestra privativa “Os Amigos da Onça” –, Conjunto “Novo Ritmo” (1958), Conjunto Tony Amaral Júnior (1958). Um grupo que merece um destaque especial neste período é o Conjunto de Helder Martins. Em meados dos anos 50, Helder Martins (1929-1978) foi o pianista do Quinteto do Hot e foi pioneiro do jazz em Lisboa, conjuntamente com outros dois madeirenses, o guitarrista Carlos Menezes e o vocalista Max. A partir da déc. de 60, surge uma segunda geração de conjuntos, como o Conjunto Académico João Paulo com Sérgio Borges, Dinâmicos, Demónios Negros, Incríveis, Dancers, entre outros projetos que alcançaram projeção nacional, os quais foram influenciados por grupos como os Shadows ou os Beatles. É também nesta altura que muitos conjuntos começam a acrescentar à sua designação a expressão “ritmos modernos”, a qual se torna comum: Conjunto de Ritmos Modernos “Os Dancer’s” (1965), Conjunto de Ritmos Modernos Tonar’s (1965), Conjunto de Ritmos Modernos “Os Baitas” (1969), grupos musicais de ritmos modernos ou de rock Os Rivais de Câmara de Lobos e os Hamong Band (1970). A título de exemplo, num espetáculo de homenagem à cançonetista Ana Maria, o articulista refere-se à “exibição dos conjuntos de ritmos modernos Vulcânicas e os Dinâmicos” (DN, Funchal, 19 mar. 1965, 7). Entre estes agrupamentos, o Conjunto Académico João Paulo viria a ser o de maior êxito, ocupando o lugar cimeiro da música ligeira regional e nacional, outrora pertencente ao Conjunto de Tony Amaral. A banda nasceu no Liceu Jaime Moniz, no início da déc. de 60, e foi influenciada pela nova vaga de grupos musicais e de cantores dos anos 60, cunhada no estilo dos Beatles. Em 1964, o grupo ganhou um dos concursos de música realizados na Madeira – uma promoção da Rivus, no antigo Cine-Parque – e foi premiado com atuações em Portugal continental, na rádio e na televisão. Na televisão, o grupo participou, com grande sucesso, no programa musical “T.V. Clube”, o que fez catapultar a sua música a nível nacional, de tal modo que os músicos madeirenses acabariam por decidir radicar-se em Lisboa, para dar continuidade ao seu trabalho. Os anos de 1965 e 1966 foram de grande sucesso. Em pouco tempo, o conjunto teve a oportunidade de gravar discos e começou a ser presença assídua em emissões de rádio e de televisão, bem como em espetáculos. Entre as exibições de maior sucesso de início de carreira, salientam-se as realizadas no Teatro Politeama e, depois, no Teatro Monumental. No Politeama, o conjunto tocou para casa cheia durante um mês e meio, num ambiente idêntico ao dos concertos dos Beatles, com uma reação do público inovadora em Portugal, a qual marcaria o início de uma nova era musical. O conjunto participou, por duas vezes, no Festival RTP da Canção, tendo alcançado o 2.º lugar em 1966 e o 1.º lugar em 1970. Da sua extensa discografia salientam-se as seguintes edições, entre 1964 e 1968, sob a designação Conjunto Académico João Paulo: Conjunto João Paulo (EP, Columbia, 1964), De Novo Com João Paulo e o Seu Conjunto Académico (EP, Columbia, 1965), + 1 Disco = 4 Sucessos (EP, Columbia, 1965), Diz-lhe (EP, Columbia, 1966), Eurovisão (EP, Columbia, 1966), Poema De Um Homem Só (EP, Columbia, 1967), L’Amour Est Bleu (EP, Columbia, 1967), Kilimandjaro (EP, Columbia, 1967), O Louco (EP, Columbia, 1967), A Shadow Rounds… (EP, Columbia, 1968). A partir de 1970, os discos são publicados sob a nova denominação de Sérgio Borges e o Conjunto João Paulo: Sérgio Borges com o Conjunto João Paulo (EP, Columbia, 1970), Lavrador (EP, Columbia, 1971), Meu Corpo E Minha Seiva (Single, Columbia, 1970), MAR (Single, Columbia, 1972). A expressão “ritmos modernos” teve tal aceitação na Madeira que, em 1970, é organizado um certame de conjuntos de ritmos modernos, organizado pela Comissão de Festas do Fim do Ano e integrado nas Festas da Cidade do Funchal. Segundo um articulista do Jornal da Madeira, não se podia “esquecer que no tempo eufórico dos conjuntos musicais do género alguns artistas madeirenses nasceram para o music-hall português e até para o internacional”, entre os quais Luís Jardim, que dos “Demónios Negros saltou para o conjunto inglês Bossa Cálida, João Paulo com Sérgio Borges, Valério Silva, o próprio Gabriel Cardoso […], Os Dinâmicos e outros conjuntos de agradável presença” (JM, Funchal, 14 out. 1970, 1 e 7). Depois do desfecho do concurso, a comunicação social noticia que “milhares de pessoas assistiram à final”. O laureado foi o grupo Mud Revolution, que “ultrapassou o Habitat de um ponto e o Comuna Singular de dois”, tendo o júri argumentado que os elementos do conjunto vencedor estavam “industriados naquilo que se denomina música de vanguarda” e que “se realizaram compondo aquilo que apresentaram” (JM, Funchal, 31 dez. 1970, 1 e 3). A introdução de novas tecnologias – fonograma, telefonia e cinema –, bem como a influência da cultura estrangeira (que, por meio daquelas, se tornava acessível), foram acompanhadas de uma reação de resistência cultural com contornos políticos, a qual consistiu na procura da definição da identidade da cultura musical regional. Se, na transição do séc. XIX para o séc. XX, já haviam sido levadas a cabo várias ações de valorização do património musical regional, foi a partir da déc. de 1930 que se realizaram estudos sistemáticos e rigorosos sobre a cultura tradicional madeirense, altura em que as entidades políticas passaram a exercer uma maior intervenção, mais organizada, no âmbito das tradições regionais. De facto, no Estado Novo procurou impulsionar-se as relações entre turismo e folclore, para o que foi criado, em 1933, o Secretariado de Propaganda Nacional (posteriormente Secretariado Nacional de Informação), instituição dirigida por António Ferro entre 1933 e 1950. Este organismo procurou incentivar a perpetuação das tradições folclóricas, em proveito da afirmação nacionalista do regime, através de uma atividade extensível a nível nacional, por meio das diversas repartições e casas do povo (PINTO, 2006, 13). No domínio do folclore e dos estudos sobre as tradições musicais madeirenses, são especialmente relevantes os trabalhos elaborados pelo Visconde do Porto da Cruz (1890-1962) e pelo jornalista e folclorista Carlos Santos (1893-1955). A partir de 1933, aproximadamente, o Visconde do Porto da Cruz (1890-1962) realizou vários trabalhos etnográficos e apresentou conferências sobre as tradições musicais madeirenses (sobre o traje, passando pelas danças, até às trovas e cantigas da Madeira). Salvo raras exceções, estes estudos, usualmente de pequena dimensão (20 a 30 páginas), foram publicados a expensas próprias, destacando-se, na área das tradições musicais, os seguintes: Trovas e Cantigas Madeirenses (1934), Danças Madeirenses (1946), Trovas e Cantigas do Arquipélago da Madeira (1954), Danças e Músicas do Arquipélago da Madeira (1954), O Folclore Madeirense (1955), O Trajo do Arquipélago da Madeira (1955) e As Danças e as Músicas Madeirenses (1959). Carlos Santos realizou igualmente estudos mais aprofundados, com uma argumentação mais sólida, tendo as suas obras alcançado alguma reputação, designadamente as seguintes: Tocares e Cantares da Ilha, Estudo do Folclore da Madeira (1937), Trovas e Bailados da Ilha (1942) e O Traje Regional da Madeira (1952). Estas investigações etnográficas foram acompanhadas de uma componente de prática musical, tendo Carlos Santos dirigido diversos grupos musicais folclóricos, como o Grupo Folclórico dos Louros (1938), o Grupo Folclórico e Cultural Carlos Santos (1939), o Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha (1949), o Grupo Folclórico da Ponta do Pargo, o Grupo Folclórico da Boaventura, o Grupo Folclórico da Ponta do Sol e o Grupo Folclórico do Livramento-Monte. Segundo Rui Magno Pinto, a partir do final da déc. de 1950 assiste-se a um crescimento do turismo e a uma maior procura por espetáculos de folclore em hotéis e em restaurantes. Assim, em plena déc. de 1960, atuavam nos hotéis do Funchal os seguintes grupos: Grupo Folclórico da Camacha (hotel Savoy, Reid’s hotel), Grupo Folclórico do Livramento (hotel Sheraton), Ilhéus (hotel Monte Carlo, Vila Ramos, Casino Park hotel), Grupo Folclórico do Funchal (hotel Madeira Hilton) e Grupo Folclórico do Porto Santo (hotel do Porto Santo). Além disso, a influência do folclore chega ao teatro. Em 1940, um Grupo Folclórico fundado por Carlos Santos, sediado no Patronato de S. Pedro, apresenta Visão Lírica-Coreográfica da Ilha da Madeira, da autoria do próprio Carlos Santos, no teatro municipal. A peça integrava diversos números musicais de cariz tradicional, tais como canções da ceifa, baile corrido, canção da carga, canção dos borracheiros, canção do berço, canção da sementeira, charamba, mourisca, bailes – da Ponta do Sol, dos Canhas, das Camacheiras –, pesado e bailinho de oito. O hábito do teatro de revista mantém-se no período do Estado Novo, pelo menos até à déc. de 1950. Nesta época, um dos compositores de relevo foi Edmundo da Conceição Lomelino (1886-1962), que criou várias peças de teatro de revista inspiradas na realidade madeirense, as quais alcançaram sucesso entre o público do Funchal. Entre as composições teatrais mais importantes ressaltam Água Benta, A Primavera, A Madeira em Festa (1938) – também representada nos Açores –, Carnaval (1939), Bolas de Sabão (1944) e Flores da Madeira (1945). O enredo das peças de teatro estava maioritariamente ligado a acontecimentos sociais e políticos da altura. Exemplo disso é a peça de teatro de revista Carnaval, em que Teotónio da Silva fez uma paródia à conferência de Munique de 1938. O Capitão Lomelino foi autor da música desta peça, com base num texto de Teotónio da Silva (1900-1976), dramaturgo com quem o compositor colaborou mais frequentemente neste âmbito. A introdução das novas tecnologias contribuiu para o declínio da dedicação à música no espaço doméstico e, em menor escala, para a diminuição da prática instrumental e vocal nos grupos de músicos amadores. O piano, nomeadamente, perdeu o seu lugar central nos entretenimentos familiares, papel que passou a ser ocupado pelo gramofone e pela rádio. As lojas que anteriormente incentivavam a compra de pianos para animação defendiam agora ser mais moderna e mais simples a compra de um gramofone. Desta forma, ao longo da déc. de 1930, os jovens começaram a desinteressar-se da prática musical, como refere Luís Peter Clode. De modo a conservar o que tinham por “música de qualidade” e uma “política do espírito”, os irmãos Luiz Peter Clode (1904-1990) e William Clode (1900-1980) reúnem um conjunto de intelectuais e de artistas e formam, em 1943, a Sociedade de Concertos da Madeira (SCMa) e, três anos depois, a Academia de Música da Madeira (AMM). No seguimento destas instituições, os irmãos Clode fundam, conjuntamente com Herculano Ramos e Arlindo Ramos, a rádio Posto Emissor do Funchal, com o propósito de aumentar o nível cultural da população e de lhe incutir o gosto pela música que consideravam de valor. A SCMa tinha o propósito de fomentar a “arte musical” na Madeira, em proveito de “uma sociedade de elite”. Com esse objetivo, a SCMa deveria organizar concertos, conferências e festas de arte que integrassem artistas madeirenses e continentais de mérito reconhecido. Apesar de a SCMa ter uma índole assumidamente elitista, os seus estatutos referiam que poderiam ser promovidos concertos, com artistas contratados para o efeito, para o público em geral. Nomeadamente, o auditório do jardim municipal do Funchal foi inaugurado num espetáculo da Orquestra de Concertos da Emissora Nacional, organizado pela SCMa, o qual contou com a assistência de milhares de pessoas. Inclusivamente, foram realizados concertos populares ao ar livre em vários locais do Funchal; por norma integrados nos Festivais de Música da Madeira, da responsabilidade da SCMa, estes concertos foram realizados em espaços tais como a Qt. Magnólia e o Lg. do Município, tendo a sua difusão atingido o auge principalmente ao longo da déc. de 50. Luiz Peter Clode deixou um vasto legado de obras, na sua maior parte pequenas peças que imitam o estilo dos compositores do barroco, do classicismo e do romantismo. Obras suas foram tocadas por alguns dos eminentes músicos que atuaram no Funchal sob o patrocínio da SCMa. Entre as suas composições mais importantes, contam-se três peças para piano – Canção de Amor, op. 23, Fantasia N.º 1, op. 12 e Fantasia N.º 2, op. 31 – e uma obra sacra, um Tantum Ergo para duas vozes e órgão. A fundação da AMM teve como primeiro intuito o aproveitamento das vocações no domínio da música. No plano curricular, a AMM procurou seguir, desde a sua criação, o modelo educativo do Conservatório Nacional, o que veio a possibilitar aos alunos da AMM o reconhecimento legal, a nível nacional, das suas habilitações. A oferta da AMM permitiu que crianças, jovens e artistas da Madeira pudessem aceder a um ensino baseado no repertório da tradição erudita europeia, de acordo com padrões educativos de conservatórios e de escolas de música erudita então vigentes no mundo ocidental. Desde o pós-25 de Abril ao início do séc. XXI A revolução de 25 de abril de 1974 trouxe mudanças de fundo na cultura musical madeirense. Com a autonomia da Madeira, em 1976, foram regionalizados vários serviços da administração pública, nomeadamente nas áreas da educação e da cultura, em que foram criadas ou semiprofissionalizadas estruturas culturais e educativas ligadas à música. Os primeiros tempos pós-revolução foram conturbados na Madeira, algo que se refletiu no quotidiano de algumas instituições ligadas ao ensino da música: e.g., a 29 de julho de 1974, a Academia de Música e Belas Artes da Madeira foi ocupada por “um grupo representativo de professores, alunos e de mais pessoas interessadas no desenvolvimento do meio cultural madeirense” (DN, Funchal, 30 jul. 1974, 1). A Orquestra e o Coro de Câmara da Madeira tiveram de adequar o seu discurso e o público-alvo aos novos tempos. Assim, menos de um ano após a revolução, noticiava-se que a “Orquestra e Coro de Câmara da Academia, desde outubro, tem vindo a atuar em diversos pontos da Ilha, contribuindo para uma maior difusão da cultura musical” (DN, Funchal, 26 jan. 1975, 1). Poucos meses depois, num anúncio a um concerto no forte de São João Baptista, informava-se que este era destinado “sobretudo aos pescadores, operários e camponeses da freguesia de Machico” (DN, Funchal, 27 abr. 1975, 3). Finalmente, sobre outro concerto, dirigido a associados e familiares do Sindicato Livre dos Operários da Construção Civil e Ofícios Correlativos do Distrito do Funchal, dizia-se ter “como objetivo principal tornar acessível a boa música às camadas da população habitualmente alheia à realização de concertos” (DN, Funchal, 2 jul. 1975, 6). Durante esta época, realizaram-se, no Funchal, eventos musicais de intervenção política, como concertos de “canto livre”, onde se procurava “lançar para o público canções com uma temática de certo significado político-social”, nas palavras do cançonetista Rui Mingas (DN, Funchal, 12 jul. 1974, 4). Neste âmbito, realizou-se, no Funchal, um espetáculo com cançonetistas de intervenção política, em que participaram músicos como Adriano Correia de Oliveira, Rui Mingas, Jorge Letria, Manuel Freire e Carlos Paredes. Alguns destes concertos eram abertos a qualquer pessoa. A título de exemplo, sobre um evento organizado no então Liceu Nacional do Funchal, informava-se que poderiam inscrever-se nele e “participar como intérpretes todos os que se queiram manifestar adentro do contexto de tal género musical” (DN, Funchal, 2 jul. 1974, 8). No entanto, este tipo de exibições musicais foi desaparecendo com o estabelecimento do regime autonómico, mantendo-se apenas, durante algum tempo, em comícios de partidos de esquerda. A forte tradição musical continuou nos hotéis da Madeira no período pós-25 de abril, não tendo os conjuntos sido diretamente afetados pela revolução (no entanto, a partir da déc. de 1990, assistir-se-á a uma forte precarização dos vínculos laborais dos músicos, bem como a uma redução do valor das remunerações por serviço). Entre os músicos e os novos conjuntos que se destacaram nesta altura nos hotéis, mencionam-se, numa listagem não exaustiva, os seguintes: Celso e o seu conjunto (hotel Madeira Palácio); O Pentágono & Zeca da Silva (Sheraton hotel); Conjunto Habitat (Holiday Inn Madeira); Conjunto Musical “Tap Herperi” e Galáxia (hotel Savoy); Roger Sarbib e os conjuntos Octopus e Ària (Casino Park hotel); Conjunto Pégaso (hotel Atlantis); Conjunto Express Band (hotel Vila Ramos); Conjunto Privativo Fire Work (hotel Savoy); Conjunto The Images (Taste Sheraton hotel); Conjunto “Ritmo 5” (hotel Girassol); Conjunto Contacto (hotel São João); Conjunto Musical Zenith (Casino Park hotel); Tony Cruz (hotel Savoy); Conjunto de Tony Amaral Jr. (Casino Park hotel). Tony Amaral Júnior (1938) merece ser posto em evidência, na qualidade de improvisador e de promotor da música jazz (desde o pós-25 de Abril até à sua partida para Cardiff, em 1989). O pianista teve uma carreira semelhante à do seu pai, Tony Amaral, e notabilizou-se pela sua qualidade técnica como intérprete, bem como pelos conhecimentos musicais superiores de que dispunha, derivados de uma formação musical mais completa. Tocou no hotel Miramar (1958), no Casino da Madeira às datas de 1965 e de 1979 e no hotel Savoy (1973). Em 1986, fundou o Madeira Jazz Club, que durante alguns anos foi o ponto de referência do jazz no Funchal. Atuou em festivais de jazz em Portugal, no Reino Unido e na França, tendo atraído muitos alunos particulares em razão do seu prestígio e do seu talento (quer ao piano, quer na improvisação de jazz); alguns dos seus alunos tornaram-se músicos de relevo no panorama artístico funchalense, como Adler Pereira ou Humberto Fournier. A partir de 1976, o Governo da Região Autónoma da Madeira (RAM) implementou um conjunto de políticas na área da educação, o qual teve um impacto significativo na área da música, quer integrada na educação artística em geral, quer no ensino artístico especializado, bem como no regime de ocupação de tempos livres. Instituições como o Conservatório-Escola Profissional das Artes da Madeira (CEPAM) – instituição sucessora da AMM, que se converteu em Conservatório de Música em 1977 – e o Gabinete Coordenador de Educação Artística – depois Direção de Serviços de Educação Artística e Multimédia (DSEAM), integrada na Direção Regional de Educação – funcionaram como dois pilares educativos que permitiram o incremento do número de praticantes, bem como das competências musicais de todos os envolvidos na cultura musical madeirense. Estas duas instituições foram responsáveis pela formação de um conjunto considerável de recursos humanos de elevada competência musical. O aumento de músicos qualificados, juntamente com a opção das entidades governamentais em apoiar projetos com identidade jurídica, incentivou a criação de novos empreendimentos e associações culturais específicas do domínio musical, bem como o rejuvenescimento de antigos agrupamentos – no que toca à idade dos executantes e ao tipo repertório –, tais como bandas filarmónicas e grupos de bandolins. Assumiram identidade jurídica e transformaram-se em associações culturais, entre outros, os seguintes agrupamentos, bandas, grupos musicais e coros: Banda Recreio Camponês-Associação Cultural e Recreativa do Concelho de Câmara de Lobos; Associação Cultural Coro de Câmara da Madeira; Associação Grupo Cultural Flores de Maio; Grupo Coral do Estreito; Banda Municipal Paulense; Associação Musical e Cultural Xarabanda; Associação Cultural Encontros da Eira; Associação de Amigos do Conservatório de Música da Madeira; Associação de Amigos do Gabinete Coordenador de Educação Artística; Associação Tuna Universitária da Madeira. As diferentes coletividades associativas e agrupamentos de bandolins juntaram-se, tendo surgido a Associação de Bandolins da Madeira a 28 de março de 2000; o mesmo aconteceu no caso das bandas filarmónicas e dos grupos de folclore, tendo sido fundadas a Associação de Bandas Filarmónicas da Região Autónoma da Madeira (2000) e a Associação de Folclore e Etnografia da Região Autónoma da Madeira (2005). A AMM e, posteriormente, o CEPAM formaram centenas de profissionais. Muitas das personalidades que vieram a integrar e a liderar a vida musical no último quartel do séc. XX obtiveram formação na AMM e no CEPAM; nos planos musical e do ensino da música, destacam-se personalidades como o tenor e compositor João Victor Costa (autor do hino da RAM, fundador e maestro de vários coros), Tony Amaral Júnior, a violetista Zita Gomes, o violoncelista Agostinho Henriques, o maestro Fernando Eldoro, o pianista e professor João Atanásio, os flautistas Agostinho Bettencourt e Pedro Camacho, os guitarristas João Paulo Henriques e Pedro Abreu, o maestro João Basílio, o tenor Alberto Sousa, o violinista Norberto Gomes, o clarinetista Francisco Loreto, o bandolinista Norberto Cruz, os compositores Nuno Miguel Henriques, Nuno Jacinto e Pedro Camacho, os violoncelistas Luís Bruno Andrade e César Gonçalves, entre outras; no plano dos estudos de cariz musicológico, realcem-se João Rufino Silva – com um trabalho notável ao nível da recuperação das partituras dos cânticos religiosos do Natal madeirense, bem como de quase toda a música religiosa madeirense do séc. XX –, Vítor Sardinha – com estudos relevantes sobre a música nos hotéis e sobre a história mais recente das bandas filarmónicas – e Rui Magno Pinto – com formação académica especializada em musicologia, tendo realizado trabalhos importantes ao nível da história da música na Madeira; finalmente, no plano de altos quadros da administração pública, salientam-se os nomes de Carlos Gonçalves, José Pereira Júnior, Virgílio Caldeira e Natalina Santos. Por sua vez, a DSEAM complementou o trabalho desenvolvido pelo CEPAM no ensino artístico e vocacional, com um trabalho de base no ensino genérico e em atividades de ocupação de tempos livres. Esta ação dupla do CEPAM e da DSEAM permitiu um acesso facilitado e de qualidade à música por parte das crianças e jovens na RAM, nomeadamente devido à existência de extensões do conservatório em vários concelhos, permitindo a aprendizagem em regime supletivo ou a frequência de atividades artísticas extracurriculares a valores muito reduzidos. No início do séc. XXI, devido à intervenção da DSEAM no ensino genérico, os alunos do pré-escolar e do 1.º ciclo do ensino básico têm aulas com professores especializados de música. Acresce ainda que os alunos estudam instrumentos Orff e flauta de bisel, e, de acordo com as competências dos professores, têm a possibilidade de aprender instrumentos de corda, sopro e teclado em contexto escolar, através do projeto Modalidades Artísticas; neste contexto, existem vários professores que ensinam guitarra clássica e elétrica, instrumentos tradicionais, teclados e instrumentos sopro. Através desta iniciativa foi possível inverter a situação de quase desaparecimento dos instrumentos tradicionais, existindo muitas crianças e jovens a tocar os cordofones madeirenses (braguinha, rajão e viola de arame). No domínio da ocupação de tempos livres, criaram-se dezenas de grupos artísticos, os quais realizaram uma temporada anual com cerca de 240 concertos, disseminados pelos concelhos da RAM. Na sequência da aprendizagem artística (também musical), surgiram projetos de grande impacto turístico, tais como a Semana Regional das Artes, que se associou ao Festival Atlântico. Ainda no âmbito da DSEAM, implementou-se, desde 2004, uma política de apoio à investigação no domínio da educação artística, que teve resultados relevantes ao nível da melhoria do ensino, bem como nos âmbitos da conservação do património musical e do estudo dos artistas madeirenses, os quais são inseridos no currículo escolar da RAM. O incentivo à pesquisa foi acompanhado de atividades de divulgação na comunicação social e na comunidade científica, tendo daí resultado vários programas televisivos, edições com conteúdos originais, comunicações em congressos e artigos em revistas científicas. No âmbito da preservação e da difusão dos instrumentos tradicionais madeirenses, é relevante frisar os seguintes nomes, que contribuíram para o reflorescimento na prática dos cordofones tradicionais (braguinha, rajão e viola de arame): Roberto Moritz e Roberto Moniz, pelo trabalho continuado de ensino dos cordofones tradicionais; Vítor Sardinha, pelo ensino e pela gravação de álbuns discográficos com viola de arame e rajão; Manuel Morais, pelos estudos e pelas edições de repertório do séc. XIX para braguinha; Carlos Gonçalves, por ter possibilitado a aprendizagem dos instrumentos tradicionais nas escolas da RAM; e Rui Camacho, pelas exposições e edições de cariz organológico, as quais visaram a divulgação e defesa daqueles instrumentos – esta proteção foi protagonizada pela Associação Musical e Cultural Xarabanda. O papel da Associação Musical e Cultural Xarabanda foi decisivo na renovação da música do legado madeirense, quer através de trabalhos de recolha, quer por meio dos arranjos musicais efetuados sobre canções tradicionais, os quais levaram novos instrumentos e sonoridades à música tradicional. Neste domínio, é ainda relevante mencionar os grupos de música tradicional Encontros da Eira e Banda D’Além que, a par do grupo Xarabanda, foram os principais dinamizadores da nova música tradicional madeirense. Com a entrada de Portugal na União Europeia, a RAM teve acesso a subsídios que contribuíram para o desenvolvimento regional em vários sectores, nomeadamente na área da cultura e da educação, em que foram construídas e recuperadas diversas infraestruturas um pouco por toda a Ilha (como sedes para coletividades e centros cívicos e culturais com pequenos auditórios), as quais melhoraram as condições do exercício da atividade musical. No que diz respeito às pequenas coletividades culturais, houve pouca capacidade dos agentes desta área em concorrer a fundos europeus, por falta de recursos financeiros próprios e, possivelmente, de apoio técnico dos serviços governamentais na área cultural. Assim, as receitas das associações culturais com maior impacto junto dos turistas, tais como a Associação Recreio Musical e União da Mocidade (Orquestra de Bandolins da Madeira) e o Grupo de Folclore e Etnográfico da Boa Nova, são quase exclusivamente provenientes dos concertos e das animações que realizam. Trata-se de exemplos de sucesso, em termos de sustentabilidade financeira, de agrupamentos que conseguiram aliar o trabalho artístico de qualidade à capacidade de comunicação e ao marketing cultural. Ambos os grupos têm trabalhos discográficos importantes e uma elevada preocupação em conservar o património musical regional. No caso de instituições com capacidade financeira, advinda principalmente de financiamento público regional, os fundos europeus recebidos foram aplicados maioritariamente em formação, através do programa Rumos – como aconteceu no CEPAM –, bem como na criação da marca Festivais Culturais da Madeira – com o programa Intervir+ –, mediante a qual se procurou reunir os quatro festivais organizados pelo Governo Regional da Madeira, através da Direção Regional dos Assuntos Culturais (Encontro Regional de Bandas Filarmónicas da RAM, Festival de Música da Madeira, Festival Raízes do Atlântico e Festival de Órgão da Madeira). Os festivais são o corolário de uma política de animação cultural que visou, desde o início da RAM, a organização de eventos que beneficiassem os madeirenses e os turistas, tendo em consideração a vocação turística da região. Nesse sentido, o Governo Regional teve a preocupação de: organizar concertos e sessões de folclore, concertos de música clássica e espetáculos de música tradicional; produzir concertos com artistas de fora da Ilha; e apoiar acontecimentos culturais com potencial turístico, tais como o Carnaval, a Festa da Flor ou a Festa do Vinho, onde a participação de músicos sempre foi uma constante. Outros festejos musicais de relevo neste período foram: o Festival da Canção do Faial; o Festival Internacional de Música Antiga, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Cine Fórum; o Madeira Bach Festival; o Festival Regional de Folclore (mais tarde Festival Regional de Folclore “24 horas” a Bailar); o Festival da Canção Infantil, (posteriormente Festival da Canção Infanto-Juvenil); o Festival de Coros da Madeira; e o Funchal Jazz Festival. Desde o final da déc. de 1990, havia-se assistido a uma semiprofissionalização da Orquestra Clássica da Madeira (OCM) – instituição que sucedeu à Orquestra de Câmara da Madeira –, mais direcionada para a música instrumental, não se aproveitando o seu potencial para áreas de cariz mais cosmopolita, como a ópera, os musicais ou o bailado. Houve, embora de forma intermitente, alguma articulação entre o ensino artístico especializado e a OCM, o que permitiu o aumento de músicos portugueses, após um período em que os lugares da orquestra eram principalmente preenchidos por músicos estrangeiros, na sua maioria oriundos do Leste Europeu, que tinham ido para a Madeira no período após a queda do muro de Berlim. Os músicos de Leste foram responsáveis pela elevação da qualidade da execução musical, maioritariamente na área das cordas, e contribuíram significativamente para a melhoria da OCM. Nos anos 90, no contexto do jazz, há que realçar o grupo Oficina, que procurou alargar o número de adeptos deste género musical. Uma das cantoras mais relevantes do início do séc. XXI foi Vânia Fernandes, que atuou nos hotéis da Madeira antes de se catapultar para o panorama nacional. A cantora madeirense ganhou renome em 2008, com a participação no programa musical “Operação Triunfo 3”, emitido pela RTP, no qual ficou classificada em 1.º lugar. Em março de 2008, no seguimento desta vitória, participou no Festival RTP da Canção, que venceu com o tema “Senhora do Mar”. Entre finais do séc. XX e inícios do séc. XXI, o turismo madeirense evoluiu significativamente, tendo-se caracterizado tanto pelo constante aumento do fluxo de turistas como pelo consequente aparecimento de novas unidades hoteleiras, as quais empregaram um número elevado de músicos, embora sem qualquer vínculo contratual. As causas desta precariedade laboral são complexas, mas deverão estar relacionadas com o aumento exponencial dos músicos de melhor formação no mercado de trabalho (entre os quais alguns músicos do Leste da Europa, habituados a remunerações mais baixas) e com a concorrência no domínio do entretenimento nos hotéis, designadamente dos disc-jockeys ou DJs (as áreas das danças e da animação eram anteriormente dominadas pelos conjuntos). De facto, encontram-se referências a disc-jockeys no Funchal a partir da déc. de 1990: e.g., no hotel do Mar, em 1992, atua o “popular disc-jockey Britânico Biko Bangs, excelente intérprete de temas anglo-saxónicos” (DN, Funchal, 21 fev. 1992, 13). Juntamente com os disc-jockeys começou a emergir, na déc. de 1990, uma geração de grupos de rock e de subgéneros do rock. Os conjuntos que precederam estes novos grupos tocavam habitualmente na hotelaria madeirense para um público maioritariamente estrangeiro, pertencente a uma faixa etária mais avançada em idade; diferentemente, os novos grupos rock pertencem ao fenómeno das “bandas de garagem” e são influenciados pela música grunge, hard rock, heavy metal, rock alternativo, gothic metal e por outros subgéneros do rock; tocam principalmente para públicos jovens, em bares, em discotecas ou em festivais específicos, como a Festa da Juventude, o Super Rock ou o Antena 3 Rock. Entre os grupos participantes em concursos de rock ou que foram noticiados na comunicação social estão os seguintes: Nostradamus, Requiem, Alma Gesto, Nude, Pilares de Bânger, Cães Abstractos, Quarto Quadrante, Sidewalk, Opium, Insania, Crumbs. Ao contrário do que aconteceu em Portugal continental, na Madeira eram poucas as possibilidades de atuação destes grupos, tal como os próprios agrupamentos por vezes reclamavam. Assim, os vários grupos que surgiram foram quase sempre de curta duração e tiveram pouca ou nenhuma projeção nacional (ao contrário do que havia acontecido na era dos conjuntos); a maioria destes grupos não chegou a gravar qualquer disco. Os empresários promotores do rock reconheciam o problema da falta de oportunidades dos grupos madeirenses, cujo panorama era bastante diferente do lisboeta, onde os orçamentos eram elevados e os promotores privados auferiam lucros. Além disso, a contratação de grupos de referência implicava custos difíceis de suportar, tais como os relacionados com “deslocação, alojamento, alimentação aluguer de sala e de tecnologia”, que, aliados aos cachets altos e fixos dos grupos, estorvaram a produção de concertos com grupos de rock do exterior da Madeira (DN, Funchal, 30 jul. 1993, 3). A dificuldade em conseguir apoios de empresas regionais, à semelhança do que aconteceu a nível nacional, tornou complicada a organização de festivais e concertos; a principal causa de afastamento dos patrocinadores deveu-se à concorrência de outros eventos, como ralis e campeonatos de desportos, quer profissionais, quer de modalidades amadoras. Apesar de tudo, os principais e mais famosos grupos de rock portugueses à época atuaram na Madeira, o que foi viável em virtude de estes garantirem mais facilmente “maiores afluências de público” (DN, Funchal, 30 jul. 1993, 3). Assim, nos anos 90 atuaram no Funchal grupos como os Peste & Sida, os Resistência, o grupo de música moderna Rádio Macau, os Madredeus, os GNR, acompanhados dos espanhóis La Frontera, e os Xutos e Pontapés. Nos primeiros 15 anos do séc. XXI, os problemas da Madeira no domínio musical estão relacionados com questões estruturais, não tanto com a qualidade dos intervenientes. Todavia, existem casos de boas práticas em várias áreas, desde o jazz, passando pela música clássica, até à música tradicional e ao rock. Além disso, vive-se nestes anos o resultado da aplicação de um tipo de ensino musical que formou milhares de jovens com razoáveis competências musicais.     Paulo Esteireiro (atualizado a 01.02.2018)

Artes e Design Sociedade e Comunicação Social

monteiro, josé leite

José Leite Monteiro nasceu no Porto a 27 de setembro de 1841. Foi advogado, professor, escritor e político. Fez o curso de Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em que ingressou em 1859, tendo concluído os estudos em 1864. Estabeleceu-se, em seguida, no Funchal, onde abriu um escritório de advocacia. Diz o Elucidário Madeirense que José Leire Monteiro nutria pela Madeira uma “carinhosa idolatria”, semelhante à que seria possível num filho natural da Ilha (SILVA e MENESES, II, 1998, 227); foi aí que desenvolveu a sua atividade profissional e intelectual. Foi professor no liceu do Funchal, depois de, em 1867, ter alcançado a nota mais elevada no concurso público para professor de Filosofia dos liceus. Passou a sua vida profissional na Ilha, a qual representaria um dos vértices das suas preocupações e dos seus interesses. Na vida pública, desempenhou funções em várias comissões de serviço, como governador civil substituto, como membro do Conselho do Distrito, como presidente da Junta Geral e como presidente da Câmara Municipal do Funchal. De salientar ainda que fez parte do Partido Fusionista e que entrou nas lutas políticas madeirenses de 1868, no âmbito das quais prestou serviços ao Partido Regenerador. José Leite Monteiro colaborou com vários jornais do Funchal, chegando a ser redator do jornal O Direito, órgão da política regeneradora. Também publicou vários livros, entre os quais se destacam O Ultramontanismo na Instrucção Publica de Portugal, de 1863, e Elementos de Direito Civil Portuguez, de 1895. Foi sócio efetivo da Associação de Direito Internacional. Em colaboração com o Cón. Alfredo César de Oliveira, coligiu diversos poemas dispersos de autores madeirenses, que acabariam por ser publicados num volume com o título Flores da Madeira. Morreu no Funchal, a 10 de março de 1920. Obras de José Leite Monteiro: O Ultramontanismo na Instrucção Publica de Portugal (1863); Elementos de Direito Civil Portuguez (1895).   Raquel Gonçalves (atualizado a 01.02.2018)

História da Educação Personalidades

noronha, adolfo césar de

Naturalista e homem de cultura natural do Funchal, onde nasceu a 9 de setembro de 1873, Adolfo César de Noronha estudou no Liceu do Funchal e nas antigas Escola Politécnica de Lisboa e Academia Politécnica do Porto. A 11 de dezembro de 1914, foi nomeado bibliotecário da Biblioteca Municipal do Funchal (BMF) e, em 1928, seu diretor, cargo que ocupou até à sua aposentação, em 1943. Com ligações familiares ao Porto Santo, efetuou nesta ilha observações meteorológicas, colheitas de espécimes, em particular fósseis, e ainda observações ornitológicas, que, juntamente com outras colheitas no arquipélago, vieram a servir de base a estudos efetuados por eminentes cientistas da época, com destaque para Ernesto Schmitz  (aves), Z. J. Joksimowitsch, P. Oppenheim e J. Böhm (fósseis). Na área do mar, colheu esponjas e briozoários, muitos deles novos para a ciência. À época, causou sensação a descoberta de uma esponja incrustante, simultaneamente com espículas calcárias e siliciosas, Merlia normani, obtida por dragagens no Porto Santo. Estas dragagens foram feitas em conjunto por Noronha e Randolph Kirkpatrick em 1909, tendo este último publicado a descrição desta esponja num extenso artigo publicado no Quarterly Journal of Microscopical Science, em 1911. Em 1922, encabeçou uma expedição científica às ilhas Selvagens (onde já tinha ido em 1906 e 1909), acompanhado de Adão Nunes e Damião Peres. Por vicissitudes com o navio que os deveria trazer de volta ao Funchal, acabaram por lá permanecer dois meses, causando motivos de preocupação na sociedade madeirense. O seu regresso ao Funchal foi motivo de receção pelas mais altas individualidades da Madeira, conforme noticiado pelo Diário de Notícias do Funchal de 13 de junho desse ano. Dessa expedição resultaram observações meteorológicas e colheitas de espécimes que foram enviadas a especialistas mundiais da época. Com o seu vasto conhecimento da história natural da Madeira e sendo fluente no inglês, francês e alemão, Adolfo César de Noronha foi o correspondente por excelência na Madeira de muitas figuras gradas da ciência do início do séc. XX. Como gesto de reconhecimento, várias espécies novas para a ciência foram-lhe dedicadas: Schizoporella noronhai, briozoário abissal, Pecten noronhai e Spondylus noronhai, moluscos bivalves fósseis, entre outras. Estudou com profundidade os peixes da Madeira, tendo publicado em 1925, no Porto, um ensaio intitulado Um Peixe da Madeira. O Peixe Espada Preto, ou Aphanopus carbo dos Naturalistas e, no ano seguinte, nos Annals of the Carnegie Museum, dois artigos sobre duas espécies novas para a ciência: um peixe da família dos escolares, Diplogonurus maderensis, e um tubarão de profundidade raro, que dedicou ao seu amigo Alberto Artur Sarmento, Squaliolus sarmenti. Em coautoria com Sarmento, publicou também, em 1934, um trabalho de divulgação intitulado Os Peixes dos Mares da Madeira e, em 1948, o segundo volume (Peixes) do importante trabalho Vertebrados da Madeira, editado pela Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. Colaborou ativamente com Fernando Augusto da Silva e com Carlos Azevedo de Meneses na elaboração do Elucidário Madeirense (1922), tornando esta obra numa referência da história natural do arquipélago da Madeira. Logo após a sua nomeação como diretor da BMF, à época instalada no edifício dos Paços do Concelho em exíguas condições, começou a defender a aquisição de um edifício para a sua reinstalação e a criação de um museu que pudesse alojar as suas coleções de história natural e outro património artístico, arqueológico e histórico pertencente à Câmara Municipal do Funchal (CMF). Esta intenção foi concretizada em 1929 com a criação do Museu Regional da Madeira e com a aquisição do palácio de S. Pedro, para a qual foi decisiva a ideia por si realizada de emitir um selo postal da Madeira cuja receita reverteu para esta aquisição. Com a preciosa colaboração de Günther E. Maul, o novo Museu abriu as suas portas ao público em 1933, sendo hoje o Museu de História Natural do Funchal. Ao aposentar-se, a 9 de setembro de 1943, a CMF prestou-lhe homenagem atribuindo o seu nome à sala principal do Museu. A Augusto Nobre (1865-1946), distinto cientista português e catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, são atribuídas as seguintes palavras acerca de Adolfo de Noronha: “possui todos os requisitos para ocupar com distinção uma cátedra em qualquer universidade do país” (SILVA e MENESES, 1965, 426). Adolfo César de Noronha morreu no Funchal, a 6 de abril de 1963. Obras de Adolfo César de Noronha: Um Peixe da Madeira. O Peixe Espada Preto, ou Aphanopus carbo dos Naturalistas (1925); “A New Species of Deep Water Shark (Squaliolus sarmenti) from Madeira” (1926); “Description of a New Genus and Species of Deep Water Gempyloid Fish, Diplogonurus maderensis” (1926); Os Peixes dos Mares da Madeira (1934) (coautoria); Vertebrados da Madeira. Peixes (1948) (coautoria).   Manuel José Biscoito (atualizado a 03.03.2018)

Biologia Terrestre Biologia Marinha Personalidades

música tradicional

A música tradicional madeirense da atualidade resulta da combinação de um conjunto de elementos trazidos por sucessivas levas de povoadores. Na Região Autónoma da Madeira (RAM), estes contributos foram evoluindo de forma isolada, mas recebendo pontuais influências de novas populações, de visitantes ocasionais ou ainda, a partir do séc. XX, dos meios de comunicação social de âmbito nacional, com particular incidência nas estações radiofónicas, ou da generalização do ensino oficial, com a chegada de docentes de diversos pontos do país. Deste modo, popularizaram-se na RAM canções que, com o tempo, têm vindo a assumir, para muitos, um carácter tradicional. Como é natural, trata-se de peças cuja identificação nem sempre é fácil, pois há pouca investigação feita sobre o tema nas diversas regiões do país. No caso particular das cantigas religiosas, é ainda necessário referir a influência de sacerdotes portadores de orientações precisas por parte da hierarquia ou de uma formação padronizada nos seminários que frequentaram. Um último aspeto que poderá estar na origem de algumas influências alheias é o regresso de emigrantes que trazem das terras onde viveram elementos tradicionais passíveis de ser incorporados na tradição. No entanto, seja por o fenómeno ser ainda relativamente recente, em termos de mecanismos de mudança cultural, seja apenas por ainda não ter havido quem o estudasse seriamente, a verdade é que não se sabe, atualmente, se essa componente se manifesta. Não é possível definir características genéricas da música tradicional madeirense. Por esse motivo, e de modo a facilitar a exposição, optou-se por abordar aqui, separadamente, cada um dos grandes géneros musicais, após uma primeira referência ao bailinho, o elemento mais conhecido e identitário da tradição musical da RAM. Aborda-se igualmente a mourisca, que, embora com menor realce, constitui também um modelo musical transversal a diversos géneros. Bailinho Com um padrão rítmico bastante simples, o bailinho é executado geralmente na tonalidade de Sol Maior, por ser aquela a que mais facilmente se adapta a voz. É esta melodia que está na base de muitos dos mais conhecidos bailes regionais, sendo também a forma assumida pela mais popular forma de canto improvisado em despique da RAM (com o nome de bailinho, retirada, meia noite ou outro). Encontramo-lo ainda a dar o “som” de muitos romances tradicionais, cantigas narrativas, cantigas de lazer, etc. De certa forma, é um elemento que, por si só, permite a qualquer não madeirense identificar uma melodia como sendo da RAM, sendo, atualmente, a forma musical mais presente e espontânea em todos os ambientes festivos na Região, acompanhada por qualquer instrumento ou mesmo por formas improvisadas de criar som. É importante chamar aqui a atenção para uma confusão bastante frequente resultante da coincidência do nome deste género musical. Existe uma canção muito conhecida, interpretada pelo cantor madeirense Max, que tem precisamente o nome de “Bailinho da Madeira”. No entanto, apesar da referência na sua letra ao bailinho, musicalmente esta nada tem a ver com ele. Antes pelo contrário, a música tradicional que serviu de inspiração para algumas das suas frases musicais foi o charamba. A grande popularidade desta canção tem feito com que seja frequente a confusão. Mourisca A mourisca madeirense dos começos do séc. XXI apresenta características que a aproximam de um vira valseado. Musicalmente, baseia-se no compasso binário composto, padrão rítmico de 6/8. Harmonicamente, tem a forma tradicional de alternância entre tónica e dominante. Na tradição local, principalmente a que se pode identificar através de recolhas efetuadas em anos anteriores, encontram-se formas de mourisca em diversas circunstâncias. Existem referências e alguns registos de mouriscas cantadas em despique, com letras improvisadas; contudo já não se encontram cultores desta prática, sobrevivendo apenas como canção de letra fixa. A sua grande força é traduzida numa dança, conhecida predominantemente na zona sul da ilha, em torno da Camacha, da Gaula, do Machico e do Caniçal. Existem algumas referências quanto à existência da mourisca dançada pelos populares em outras zonas, como os Canhas. Esta pode ser denominada, de forma indiferente, como mourisca ou chama-rita. No Porto Santo, existia o baile sério, nos começos do séc. XXI executado apenas pelo grupo folclórico desta ilha. Trata-se de uma variante da mourisca madeirense, com uma letra própria. Os habitantes da ilha consideravam-no a dança dos grupos mais abastados da ilha, em oposição à meia volta ou ao baile do ladrão, associados às classes populares. A sua letra é fixa, tal como na mourisca da ilha da Madeira, alternando quadra com refrão. As quadras são entoadas alternadamente por uma mulher e por um homem, sendo o refrão cantado em coro. Cantigas de trabalho Como resultado da transformação dos modos de vida e das atividades produtivas rurais, as cantigas associadas ao trabalho encontram-se atualmente numa situação peculiar. Com efeito, a verdade é que, nas zonas rurais, já não se ouve cantar a chamusca, a cava, a sementeira, a erva, a ceifa do trigo, a malha na eira, a boiada ou cantigas do moleiro, de acartar lenha, dos borracheiros, do linho, dos pastores, etc. Com o desaparecimento das atividades agrícolas que lhes estavam associadas, estas cantigas perderam o seu carácter funcional. De uma forma geral, podemos considerar que as cantigas de trabalho assumem diversas das características a seguir enunciadas: – Género exclusivamente vocal, sem acompanhamento instrumental; – Estrutura musical vulgar, nalguns casos simétrica; – Melodia simples e curta, muitas vezes irregular, com intervalos curtos; – Andamento lento e livre, dependente da respiração de cada um. O seu tempo é relativo e variável, dependendo da sensibilidade de quem canta e também do trabalho associado; – A tonalidade é a que melhor serve ao intérprete. Por vezes, verifica-se um prolongamento da última nota (de 8 ou 12 tempos finais), como, por exemplo, na cantiga da ceifa, da carga ou dos borracheiros. Não há mudança de tom; – Padrão rítmico: 2+2; 4+4; – Canto monódico. No entanto, a sua entoação pode variar, existindo diferentes formas de o fazer: a) Um único intérprete canta a totalidade da cantiga, ou cada um canta a sua quadra; b) Uma voz inicia a quadra e, nos dois últimos versos, os restantes participantes acompanham em uníssono imperfeito; c) Todos entoam, em conjunto, quadras já conhecidas; d) Cada um improvisa a sua quadra. – Sem refrão; – Forma de cantar: alto (agudo), voz de cabeça; – São frequentes os modos arcaicos (sistema modal); As características mais notórias da letra são: – A mesma letra pode servir para diferentes melodias, podendo ser de temática completamente alheia à tarefa. Esta é geralmente pouco profunda, mas ligada à tarefa do dia-a-dia, às dificuldades da vida. São temas recorrentes: Deus, amor, saudade, tristeza, alegria, humor, malandrice; – É frequente a apropriação de versos já conhecidos e pertencentes a cantigas de lazer, de carácter religioso ou romances tradicionais; – O cantar de improviso é um fator importante neste género de música associada ao trabalho caseiro, dependendo da capacidade poética de quem canta; – Entre as quadras ou versos, são frequentes os apupos ou onomatopeias; Listam-se abaixo algumas das mais significativas cantigas de trabalho madeirenses. Borracheiros Na costa norte da Madeira, as uvas eram tradicionalmente apanhadas e levadas para um lagar local. O mosto era posteriormente acartado para as adegas do Funchal, onde iria fazer parte do processo de produção do famoso vinho generoso. A ausência de boas vias de comunicação obrigava a que o seu transporte fosse feito em odres (borrachos) carregados aos ombros de homens pelas veredas da serra. Podiam juntar-se várias dezenas de borracheiros, que, em fila, faziam o percurso até à cidade. Como forma de atenuar a dureza da caminhada, iam entoando uma cantiga específica. O primeiro homem da fila era o chamado candeeiro, que cantava umas quadras de métrica irregular, a que respondiam os restantes (o gado), com vivas. O último do grupo era o boieiro. O canto servia para animar os elementos do grupo, fazendo alusão ao próprio caminho, podendo também incluir elementos de troça em relação a algum componente ou de incentivo ao esforço. A construção de estradas e infraestruturas levou ao inevitável fim dos borracheiros. Em 1974, por iniciativa de Eduardo Caldeira, constituiu-se um grupo, no Porto da Cruz, que recuperou essas tradições, apresentando-as em diversos eventos madeirenses. Cantiga da carga A força humana foi, desde sempre, o elemento que assegurou o transporte na ilha. Mesmo cargas pesadas eram levadas aos ombros ou à cabeça. Por vezes, onde os terrenos o permitiam, podia recorrer-se à ajuda de animais para facilitar a tarefa. No entanto, a ida à serra para recolher lenha para aquecer a casa ou cozinhar, ou para cortar erva para o gado que, no palheiro, a aguardava, dificilmente escapava à necessidade da força humana para o transporte dos pesados fardos. Esta cantiga era entoada naqueles percursos do regresso, aliviando, de certa forma, a dureza do esforço. A letra era composta por quadras, que podiam ser improvisadas, intercaladas por apupos e entoadas numa cadência lenta, acompanhando o ritmo lento da tarefa. Cantiga de embalar Adormecer uma criança é uma tarefa que pode ser árdua e que está muito dependente do tempo necessário para atingir o objetivo. Assim, a tradicional cantiga de embalar tem um andamento muito lento, sem grandes irregularidades. A letra tem versos intercalados por onomatopeias destinadas a fazer adormecer mais facilmente a criança.   Cantigas de carácter religioso O ciclo do Natal O primeiro momento do ciclo do Natal na Madeira, em termos musicais, é constituído pelas Missas do Parto. No seu estudo sobre o tema, Rufino da Silva (1998) afirma que os cantos que têm presença certa nestas cerimónias são conhecidos, pelo menos, desde finais do séc. XIX>, sendo no entanto impossível determinar se são de origem madeirense. Segundo o mesmo autor, estes cânticos apresentam traços de lirismo popular, revelam influência minhota pela harmonização em terceiras e a sua estrutura harmónica é basicamente de alternância entre a tónica e dominante e quase exclusivamente em modo maior. Embora esta seja a caracterização da maior parte das canções, o autor detecta nalgumas delas traços de influência do canto gregoriano.   Romagem. Missa do Galo. Boaventura. Foto: Rui A. Camacho A missa da Noite de Natal é um mais alto momento das vivências religiosas da população regional. Associadas à importância litúrgica de comemorar o nascimento de Cristo, há diversas práticas tradicionais que ajudam a que esta seja realmente a grande Festa. Em alguns locais, esta celebração ainda assume características muito próprias, terminando com as romagens, nas quais grupos de vizinhos, familiares ou amigos percorrem a nave do templo tocando e cantando, para levar até ao sacerdote as suas oferendas. A própria missa é intercalada por diversos momentos de representação e entoação de cantos, como o da “Anunciação aos Pastores” ou a “Pensação do Menino”, tradicionalmente cantados junto do presépio. Possivelmente, estes serão os últimos vestígios de um ancestral auto apresentado na ocasião. A alteração das condições de realização da cerimónia, incluindo alguma necessidade de encurtar a sua duração, poderá estar na origem da eliminação de componentes ou redução do número de estrofes entoadas, daí resultando a sobrevivência de apenas algumas canções isoladas. As romagens são um bom exemplo de uma outra realidade: o que aqui é tradicional é o contexto de interpretação e não a canção em si. Apesar de ser uma tradição que tende a perder-se, nos locais onde se mantém, a principal preocupação dos vários grupos que preparam a sua romaria é mostrar qualquer coisa que as pessoas presentes na igreja não conheçam, pelo menos no que respeita à letra, pelo que muitas vezes se adapta uma música conhecida a uma letra criada. Principalmente nas zonas onde essa preocupação pela conservação da tradição é maior, o grupo que apresente uma romaria que ele ou outro cantou naquela igreja no ano anterior ou dois anos antes, da qual toda a gente se lembra, é alvo de troça, uma vez que não foi capaz de preparar e apresentar uma romagem original, o que obriga a questionar o lugar da tradição. A tradição está na prática de as pessoas de um determinado sítio se reunirem e levarem uma canção para a missa de Natal, com ou sem instrumentos. Por definição, se o que o grupo tem de apresentar é uma novidade, então as músicas não podem ser tradicionais. O que acontece por vezes é que se o público gostar de uma romaria de Natal, seja pela situação em que ela foi apresentada, seja pela qualidade artística da sua melodia ou da sua letra, esta permanece e pode tornar-se tradicional, como uma cantiga de passatempo.   Noite de Reis. Foto: Rui A. Camacho Cantiga de Reis Na noite de 5 para 6 de janeiro, formam-se grupos que percorrem as casas dos vizinhos ou amigos, entoando cantos próprios da época, como forma de desejar um bom Ano Novo. Ao chegar à porta, canta-se enquanto se aguarda que o dono da casa abra e ofereça a todos as bebidas e bolos que os esperam. Depois de uns minutos de convívio, há que prosseguir o percurso, que dura até de manhã. Em cada zona da ilha tende a haver um canto próprio desta noite, embora haja alguns mais conhecidos que são partilhados por várias localidades. A cantiga é entoada em uníssono por todos os participantes. A sua estrutura melódica é constituída por duas partes distintas: uma primeira cantada em compasso de 3/4 e uma segunda em compasso de 3/8, embora haja casos em que surge o compasso 2/4. No final, é frequente haver uma quadra de despedida aos donos da casa. Espírito Santo. Camacha. Foto: Rui A. Camacho Espírito Santo Após a Páscoa, começam as visitas das insígnias do Espírito Santo às casas. Num número de domingos variável em função da quantidade de locais a percorrer, forma-se um grupo constituído pelos festeiros, portadores das insígnias (pendão com a pomba desenhada, coroa e cetro), músicos e duas ou quatro saloias (meninas que transportam cestos para acolher as ofertas). Ao chegar a cada casa, as saloias entoam o Hino, que pode variar de freguesia para freguesia, alusivo à entrada do Espírito Santo, a que se seguem o pedido e o agradecimento das esmolas ao dono da casa. Podem seguir-se outras cantigas, de acordo com pedidos feitos pelos moradores e/ou decisão dos festeiros. Cantigas de lazer Cantos improvisados Brinco em bailinho O despique em bailinho é, ainda hoje, o momento alto da festa popular. Em qualquer arraial tradicional, ou mesmo nas festas familiares, se pode encontrar um brinco. Um músico, pelo menos – tocando rajão, braguinha ou viola de arame, hoje frequentemente substituídos pelo acordeão –, atrai uma roda de cantadores que, à vez, entoam as suas quadras, podendo haver um acompanhamento adicional de palmas (se necessário, pode-se prescindir inclusivamente da presença de músicos). Musicalmente, encontramos uma melodia tonal, com base na harmonia da tónica, dominante.   Despique. Arraial de Ponta Delgada. Foto: Rui A. Camacho O canto é, no essencial, improvisado. No entanto, um bom despicador pode recorrer, se necessário, a quadras decoradas. Esta situação será um recurso aceite no contexto de um despique que se prolongue num arraial. A tentativa de “atirar” quadras críticas ou irónicas sobre os restantes pode proporcionar momentos de grande alegria. A forma poética escolhida é a quadra de verso curto, com rima cruzada (ABAB ou ABCB). Habitualmente, cada verso é bisado, e após o segundo verso toca-se o interlúdio musical. Por vezes, o despicador acrescenta mais dois versos (rima CB ou DB), como mecanismo que permite completar melhor a ideia. Em casos mais raros, poderá ser entoada uma nova quadra completa, tendência que se tem tornado mais comum em tempos mais recentes, possível sinal de uma menor capacidade inventiva e de síntese. A satisfação dos presentes é manifestada por meio de apupos. O despicador, ao chegar a sua vez, pode prescindir de participar, passando a vez ao seguinte. A conclusão mais natural do despique será a que resultar do progressivo abandono dos participantes, vencidos pelo mais inspirado. Num arraial, o brinco poderia prolongar-se por longo tempo, sendo um dos grandes momentos de animação antes da generalização dos grupos de música moderna. Na ilha do Porto Santo, é habitual chamar “Retirada” ao despique em bailinho. Charamba   Charamba. Foto: Rui A. Camacho É hoje a forma musical associada por excelência à viola de arame, embora tradicionalmente pudesse ser acompanhado por outros instrumentos. É uma forma de canto despicado, quase exclusivamente masculino. Na maior parte das vezes, os tocadores não participam no canto, sendo este alternado entre os participantes, que podem cantar quadras ou estrofes mais longas e também com uma métrica variável. A sequência é obrigatoriamente no sentido dos ponteiros do relógio. Ao conjunto dos charambistas que participam numa determinada sessão chama-se “quadrado”. Segundo alguns dos intérpretes tradicionais, o importante neste género musical era o conteúdo do que se cantava. Nalguns casos, acordava-se previamente um tema (fundamento) que estaria obrigatoriamente presente em todas as intervenções. O tema poderia também ser acordado após quadras iniciais entoadas pelos participantes. No momento do canto, o intérprete tem toda a liberdade de definir o andamento e a extensão dos seus versos. Se necessário, o tocador terá de “ir atrás” do cantor, prolongando as frases musicais ou repetindo-as. Para alguns, a opção é ir tocando uns acordes muito simples durante o canto. As quadras são entoadas com repetição de cada verso ou repetindo cada par de versos. Após a repetição, há o indispensável interlúdio musical, que tem uma forma padronizada e bem definida, num padrão rítmico regular de 2/4 (embora possa mudar para 5/8), sendo ele que, musicalmente, define o charamba. A estrutura harmónica é simples, baseando-se na Tónica e Dominante do tom de Sol maior. O seu andamento é lento/andante. Jogos cantados Nos momentos de convívio dos mais jovens, seja entre si, seja com os adultos da família ou amigos, as lengalengas e os jogos ocupavam um lugar importante. Estes apresentam uma grande diversidade de características, podendo ser cantados ou não, tal como ter associada uma coreografia própria. Embora não sendo possível efetuar generalizações, existe um conjunto de aspetos que se podem apresentar como sendo muito comuns aos jogos cantados: – São cantados em tom maior, com refrão e um ritmo simples; – É habitual possuírem refrão, cantado por todos em uníssono, intercalado com outras partes entoadas a solo por algum dos participantes; – Sem acompanhamento instrumental; – Recurso a acompanhamento de palmas; – A sua letra é composta maioritariamente por quadras de verso curto Muitos dos jogos têm uma coreografia associada. Os jogadores podem colocar-se em roda simples ou dupla, podendo ter um elemento no centro, podem estar em fila, frente a frente, etc. Histórias Outra forma muito comum de passar o tempo livre, ou mesmo acompanhar as longas horas de trabalho do bordado, era contando ou cantando histórias. Estas podiam assumir características diversificadas. Tanto podiam ser os antigos romances da tradição hispânica, como narrativas inspiradas em factos da vida real, como ainda histórias de animais ou mesmo lengalengas. Um elemento importante é assumirem, com grande frequência, um carácter didático ou terem uma conclusão moral. A sua componente musical varia muito. Ainda podemos encontrar alguns romances com as suas melodias ancestrais, a par de outros textos a que se foi adaptando uma música mais recente. Nestes casos, o facto de se tratar de uma melodia bem conhecida facilitava a sua memorização e podia tornar mais recetivos os ouvintes. De qualquer modo, são sempre melodias com frases musicais curtas, que se vão repetindo ao longo de todo o texto. Danças As duas formas dançadas mais comuns na RAM são os já referidos bailinho e mourisca. Para além delas, pode referir-se duas outras tradicionais da ilha do Porto Santo, a Meia Volta e o Ladrão, e uma outra, a Dança das Espadas, associada à festa de São Pedro, na Ribeira Brava. Meia volta Na ilha do Porto Santo, os momentos de festa em família ou com vizinhos e amigos tinham lugar nas eiras ou num espaço amplo dentro de casa. Aí, o tocador da rabeca colocava-se no centro e os restantes participantes do baile iam formando pares em roda (pares que nunca se tocavam, realçavam alguns dos mais antigos). Na roda, incluíam-se os tocadores dos outros instrumentos, como o rajão e viola de arame. Caso único nas danças da RAM, existia um mandador que orientava a sequência coreográfica do baile, ao mesmo tempo que cantava e tocava a viola de arame. Os restantes cantadores ficavam fora da roda. A música tem ainda hoje carácter modal (frígio), claro sintoma da sua antiguidade, embora todas as hipóteses até hoje lançadas para explicar a sua origem sejam puramente especulativas. Tradicionalmente, o canto era improvisado. Atualmente extinto da tradição, são elementos do Grupo Folclórico local que preservam a sua recordação. Musicalmente, apresenta uma sequência harmónica de três acordes: Sol, Lá, Sol, tom de Sol maior. O andamento é moderado e mantém-se sempre inalterável, mudando o número de notas musicais, criando uma intensidade sonora e desenvolvendo uma dinâmica rítmica, enquanto o violino executa uma interessante melodia com base na escala de Sol maior. A meia volta é única em relação a todas as outras músicas tradicionais. Dança das espadas Música tradicionalmente executada durante os festejos de São Pedro, na Ribeira Brava. Praticada até meados do séc. XX, esta dança desapareceu progressivamente da tradição, sendo alvo de trabalho de reconstituição em finais do século, tendo posteriormente retomado o seu lugar na festa.   Dança das Espadas. Ribeira Brava. Foto: Rui A. Camacho É interpretada por um conjunto de homens com um trajo próprio, tendo duas partes distintas: uma executada em marcha e a outra com uma coreografia própria. Aspecto peculiar, a dança é apenas instrumental, sem qualquer canto associado, o que faz com que seja a única dança da tradição popular que apresenta essas características. Musicalmente, é simples, baseando-se apenas em quatro compassos, em tom maior. Embora haja registo de ligeiras alterações, podemos definir o acompanhamento musical como sendo feito por rajão, braguinha, viola de arame e pandeiro.   Jorge Torres Rui Camacho (atualizado a 01.02.2018)

Antropologia e Cultura Material Artes e Design Cultura e Tradições Populares Madeira Cultural

heberden, thomas

Thomas Heberden (1703-1769) foi um médico e naturalista inglês, membro da Royal Society desde 1761. Viveu muitos anos nas ilhas Canárias e, posteriormente, mudou-se para a Madeira, onde exerceu medicina até à sua morte, em 1769. Irmão do eminente médico londrino William Heberden (1710-1801), Thomas foi um dos primeiros médicos a recomendar o Funchal como destino para as pessoas que sofriam de doenças pulmonares, tendo prestado importantes serviços durante a epidemia de sarampo que eclodiu na Ilha em 1751. Publicou numerosos artigos sobre a Madeira na Philosophical Transactions of the Royal Society entre 1751 e 1770, entre eles, as primeiras observações meteorológicas da Madeira, “Observations of the Weather in Madeira, A continuation of the account of the weather in Madeira”, com medições de pressão atmosférica e temperatura ao longo dos anos; um relatório pormenorizado sobre o terramoto acontecido na Ilha em 1761, “An account of the earthquake felt in the Island of Madeira, March 31, 1761”; e um artigo sobre o aumento da mortalidade dos habitantes da Madeira, “Of the increase and mortality of the inhabitants of the Island of Madeira”. Na Madeira, Heberden conheceu o naturalista e botânico inglês Joseph Banks, durante a primeira viagem do capitão James Cook a bordo do Endeavour, em 1768, e deu assistência a Banks e ao seu colega Daniel Solander, botânico suíço, na sua atividade de recolha de plantas na Ilha. Estas coleções botânicas foram depositadas no herbário do Museu de História Natural de Londres. Banks dedicou a Thomas um novo género de plantas, Heberdenia, pertencente à família Myrsinaceae. Estas plantas são endémicas à Laurisilva e conhecidas vulgarmente como aderno. Thomas Heberden morreu no Funchal, em 1769. Obras de Thomas Heberden: “Observations of the Weather in Madeira, A continuation of the account of the weather in Madeira” (1754); “An account of the earthquake felt in the Island of Madeira, March 31, 1761” (1761); “Of the increase and mortality of the inhabitants of the Island of Madeira” (1767).     Pamela Puppo (atualizado a 23.02.2018)

Biologia Terrestre Ciências da Saúde Personalidades

avifauna

As aves são animais vertebrados com o corpo coberto de penas; possuem bico e membros anteriores transformados em asas. Tem sido grande o interesse manifestado por numerosos naturalistas e investigadores pela avifauna do arquipélago da Madeira e do arquipélago das Selvagens. No entanto, tendo em conta esse facto, a bibliografia existente tem ficado um pouco aquém do esperado. Na realidade, faltam estudos de ecologia, de sistemática e de outros aspetos biológicos. As primeiras referências às aves da Madeira são de Ca’ da Mosto (1455) e de Frutuoso (1590), às quais se acrescentam, bastantes anos mais tarde, as de Sloane (1707), em que são apresentadas pequenas listas de aves observadas. Em 1851, surge a primeira lista, propriamente dita, de aves do arquipélago da Madeira, elaborada por Harcourt. Do séc. XIX, há ainda a referir o trabalho de Hartwig, “Die Voegel der Madeira Inselgruppe” (1891). Na transição do séc. XIX para o séc. XX, surgem vários trabalhos do P.e Ernesto Schmitz, provavelmente um dos estudiosos que mais contribuiu para o conhecimento da avifauna madeirense (Zoólogos e Naturalistas Zoólogos). Já em pleno séc. XX, foram vários os trabalhos publicados, entre os quais se destaca o livro, em quatro volumes, escrito por David Bannerman e Winifred Mary Bannerman, intitulado Birds of the Atlantic Islands; esta obra, dedicada à avifauna da Macaronésia, aborda as aves das ilhas Selvagens no primeiro volume (do ano de 1963 e da autoria de David Bannerman apenas) e as aves das ilhas da Madeira, Desertas e do Porto Santo no segundo volume (do ano de 1965); ultrapassa, de longe, em termos de conteúdo, os trabalhos anteriores, que consistiam essencialmente em listas de aves e em referências a locais de observação; nela, além da listagem das espécies nidificantes e visitantes ocasionais, são incluídos aspetos relevantes referentes à distribuição, à taxonomia e à ecologia. Após este trabalho de referência, aumentou o número de publicações sobre aves (e de autores nesta área), os quais abordam vários aspetos da biologia, do comportamento, da distribuição, da taxonomia e da conservação das aves no arquipélago da Madeira (e.g., o Guia de Campo das Aves do Parque Ecológico do Funchal e do Arquipélago da Madeira, publicado em 1997 pela Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal, da autoria de Duarte Câmara, e A Conservação e Gestão das Aves do Arquipélago da Madeira, publicado pelo Parque Natural da Madeira (PNM) em 1999, da autoria de Paulo Oliveira). Vários outros trabalhos foram publicados na segunda metade do séc. XX e nos inícios do séc. XXI (v.g., o artigo “Birds of the Archipelago of Madeira and the Selvagens. New Records and Checklist”, publicado por Francis Zino, Manuel Biscoito e Paul Alexander Zino e pelos seus colaboradores, em 1995, que veio atualizar a lista das aves nidificantes de Bernstrom, de 1957). Esta lista, por sua vez, é atualizada, em 2010, num trabalho de Hugo Romano, Catarina Correia-Fagundes, Francis Zino e Manuel Biscoito. Importante é também o livro Aves do Arquipélago da Madeira, de Manuel Biscoito e Francis Zino, publicado em 2002. The EBCC Atlas of European Breeding Birds (Atlas das Aves Nidificantes na Europa), publicado em 1997 pelo European Bird Census Council, referia as aves dos arquipélagos da Madeira e Selvagens. Em 2011, o ornitólogo Garcia-del-Rey publicou o livro Field Guide to the Birds of Macaronesia. Azores, Madeira, Canary Islands, Cape Verde, relevante para o conhecimento e a divulgação da avifauna macaronésica. Outro livro a referir é o da autoria de Tony Clarke, intitulado Birds of the Atlantic Islands, publicado em 2006. Existe uma página na Internet, Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, que é mantida pelo Serviço do PNM e pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves. O número de espécies de aves nidificantes nos arquipélagos da Madeira e Selvagens ronda as quatro dezenas, mas, se considerarmos as espécies migradoras e as ocasionais, o número ultrapassa as 300 espécies. Destacam-se quatro espécies pelo seu carácter endémico: Pterodroma madeira, Pterodroma deserta, Columba trocaz e Regulus madeirensis. As aves marinhas são, nalguns casos, difíceis de observar junto à costa durante o dia. Geralmente, aproximam-se da costa ao anoitecer e durante a nidificação, sendo que pelo menos um dos progenitores está escondido no ninho durante este período. Durante a sua evolução, estas aves escolheram ilhas como locais de nidificação por não existirem predadores nelas. Com a chegada do Homem a muitas destas ilhas, chegaram também com ele vários predadores, entre os quais se destacam as ratazanas e os murganhos. Desde então, são inúmeras as espécies e populações de aves marinhas que enfrentam o perigo de extinção. As aves marinhas mais comuns nos arquipélagos da Madeira e das Selvagens são: Freira-da-madeira (Pterodroma madeira (Mathews, 1934)), também conhecida como alma-penada do-cidrão, devido aos sons que emite, semelhantes a uivos, inclui-se na família Procellariidae, ordem Procellariiformes. É muito parecida com a freira-do-bugio e com o gongon das ilhas de Cabo Verde. É uma ave endémica da ilha da Madeira e encontra-se em perigo de extinção. Já o P.e Ernesto Schmitz referia a sua presença na Ilha em 1903; no entanto, posteriormente, e durante muito tempo, foi dada como extinta, sendo “redescoberta” em meados do séc. XX. Vários aspetos da sua biologia são ainda pouco conhecidos. Com um comprimento total entre 32 e 34 cm e envergadura entre 80 e 86 cm, é mais pequena, mais leve, e possui bico e asas menores do que a freira-do-bugio. É uma ave com bico curto, grosso e escuro. É cinzento-escura no dorso e mais clara na fronte. Em voo, nota-se que a região ventral é clara e os bordos da cauda são escuros. A cauda é clara. As asas formam um V pronunciado e a parte inferior e interna das asas é escura. Isto diferencia-a de outras aves, exceto da freira-do-bugio (Pterodroma deserta). Nidifica essencialmente no maciço montanhoso central da Madeira, uma zona de proteção especial (ZPE) integrada na Rede Natura 2000. Chega a esta zona normalmente em fevereiro ou março; entre março e abril, limpa o ninho, volta em seguida ao mar, e só depois retorna para fazer a postura – este fenómeno é designado por êxodo pré-postura. Um único ovo é posto em maio, em túneis geralmente não retilíneos com mais de 1 m de comprimento, construídos em solo fofo nas encostas escarpadas dos picos mais altos. Nesta espécie, os machos e as fêmeas alternam na incubação. Deixa o ninho em setembro ou outubro. As crias nascidas nesse ano só atingem a maturidade ao fim de seis anos. O efetivo é muito baixo – 60 a 75 casais reprodutores (de acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira) –, tendo eventualmente ocorrido alguma redução do mesmo aquando dos incêndios de 2012. É uma das aves mais ameaçadas de extinção, tendo o estatuto de conservação “em perigo” (nos termos da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), de setembro de 2012). Têm sido realizados vários esforços com vista à proteção da ave – Alexander Zino e João Gouveia, juntamente com Gunther Maul e Francis Zino, deram os primeiros passos neste sentido com o Freira Conservation Project. Programas LIFE e outros projetos têm decorrido e envolvido a recuperação do habitat, a eliminação de vertebrados exóticos (gatos, ratos, coelhos) e a compra de terrenos nos picos mais altos. As principais ameaças à sobrevivência da freira-da-madeira são a predação de ovos e de juvenis pelos gatos e ratos e a destruição do coberto vegetal pelos herbívoros introduzidos (que leva à erosão dos solos e, consequentemente, à redução da área potencialmente apropriada à construção dos ninhos). No passado, os colecionadores de ovos e de aves constituíam uma ameaça de peso. A ave consta do anexo I da diretiva “Aves” e do anexo II da Convenção de Berna. O seu habitat consta do anexo I da diretiva “Habitats”. O local onde nidifica está inserido no PNM e é uma zona da Rede Natura 2000. Apesar dos avanços no conhecimento da espécie, muito há ainda por conhecer, nomeadamente sobre a distribuição espacial da ave ao longo do ano, principalmente no outono e no inverno. Freira-do-bugio (Pterodroma deserta (Mathews, 1934)). Ave da família Procellariidae, ordem Procellariiformes. Nidifica apenas nas Desertas (na ilha do Bugio e, possivelmente, na extremidade sul da Deserta Grande). É muito semelhante à freira-da-madeira. Tem entre 33 e 36 cm de comprimento total e entre 86 e 94 cm de envergadura. É cinzento-escura no dorso e mais clara na região ventral e na fronte. Em voo, as asas formam um V pronunciado e nota-se que a parte inferior e interna das asas é escura – isto diferencia-a de outras aves, exceto da freira-da-madeira. Nidifica entre junho e dezembro, em ninhos escavados no solo, formando túneis não retilíneos, alguns com mais de 2 m; ocasionalmente, pode nidificar em cavidades nas rochas ou em zonas com pedras soltas. Outrora, as populações nidificantes da ilha do Bugio e de algumas ilhas de Cabo Verde (Santo Antão, São Nicolau, Santiago e Fogo) eram incluídas na mesma espécie (Pterodroma feae); durante anos, considerou-se existirem duas subespécies, a Pterodroma feae feae, nidificando em Cabo Verde, e a Pterodroma feae deserta, no Bugio. Em 2009, no âmbito do Projeto LIFE SOS Freira-do-Bugio, foram realizados estudos, utilizando marcadores genéticos moleculares, que demonstraram não haver indícios de cruzamento entre as formas do Bugio e de Cabo Verde e que a distância genética conseguia ser maior do que a existente entre alguns pares de outras espécies definidas. Por isto, as duas formas passaram a ser consideradas espécies distintas, Pterodroma feae e Pterodroma deserta. Segundo o Atlas das Aves das Aves do Arquipélago da Madeira, existirão entre 160 e 180 casais reprodutores e a população é aparentemente estável. Este número é muito baixo. Tendo em conta a área muito reduzida de nidificação (<20 km2 numa única localização), esta ave é, provavelmente, tal como a freira-da-madeira, uma das espécies que apresenta maior risco de extinção na Macaronésia e na Europa. O estatuto de conservação é “vulnerável”, de acordo com o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal. As principais ameaças à sobrevivência da espécie são, além da reduzida área de nidificação, a degradação do habitat e a perturbação das aves por animais introduzidos (como os murganhos, as cabras e os coelhos). O aumento da população de cagarra poderá constituir um perigo (dado que esta espécie poderá competir com a freira-do-bugio pelos lugares de nidificação), bem como a poluição em alto mar. Até à criação da Reserva Natural das Desertas em 1990, a captura ilegal constituía um risco significativo. Após esta data, as ameaças a esta espécie têm sido progressivamente debeladas pelo Serviço do PNM por meio de programas específicos focados na conservação da espécie e do seu habitat. Em 2006, foi iniciado o Projeto SOS Freira-do-Bugio, do Programa LIFE-Natureza, que envolveu, entre outras tarefas, a retirada dos herbívoros introduzidos e a colocação de ninhos artificiais. A ave consta do anexo II da Convenção de Berna e do anexo I da diretiva “Aves”. O local onde nidifica é reserva integral e é uma zona da Rede Natura 2000. Tal como acontece no caso da freira-da-madeira, apesar dos avanços no conhecimento da espécie, muito há ainda por saber acerca dela (designadamente sobre a sua distribuição espacial ao longo do ano, principalmente no outono e no inverno). Cagarra ou pardela-de-bico-amarelo (Calonectris diomedea borealis (Cory, 1881)). Em algumas obras, como no já mencionado Field Guide to the Birds of Macaronesia, de Eduardo Garcia-del-Rey, e na base de dados Avibase, disponível online, há uma alteração de nome, sendo considerada como Calonectris borealis. Inclui-se na família Procellariidae e na ordem Procellariiformes. É a ave marinha mais avistada entre março e novembro nos mares do arquipélago da Madeira e do arquipélago das Selvagens, nidificando em todas as suas ilhas. Tem cerca de 50 cm de comprimento total, sendo a ave marinha de maior porte dos arquipélagos da Madeira e das Selvagens, e é facilmente identificável pelo seu voo rápido e planado, rente às ondas. As asas longas diferenciam-na da gaivota; outra característica que a diferencia de outras aves marinhas que nidificam nestes arquipélagos é a cor amarela do seu bico. Esta ave é branca nas superfícies inferiores e acastanhada nas superiores. Nidifica em cavidades de rochas e por baixo de grandes pedras, nas falésias rochosas ou nos planaltos; nas ilhas Selvagens, nidifica também no solo, entre a vegetação rasteira. A postura compreende apenas um ovo, do qual eclode uma ave que só atingirá a maturidade ao fim de nove anos. Entre dezembro e fevereiro encontra-se no hemisfério Sul, perto da costa nordeste do Brasil. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira existem, no mínimo, 40.000 indivíduos, amplamente concentrados nas ilhas Selvagens (38.000 indivíduos). Embora não seja considerada uma ave ameaçada, a captura ilegal, a destruição do habitat e a predação por gatos e ratos constituem fatores limitantes da espécie. De acordo com o Livro Vermelho e a IUCN, o seu estatuto é “pouco preocupante”. Na Madeira, alguns locais de nidificação da cagarra estão em áreas do PNM e são zonas da Rede Natura 2000. Esta ave faz parte do anexo I da diretiva “Aves” e do anexo II da Convenção de Berna. Durante muito tempo, a cagarra foi caçada, principalmente nas ilhas Desertas e nas Selvagens; segundo o Elucidário Madeirense, eram capturados, por homens de São Gonçalo e do Caniço, cerca de 18.000 indivíduos por ano nas Selvagens. A cagarra era salgada e levada para a Madeira para ser vendida às classes mais desfavorecidas; as suas penas eram utilizadas sobretudo no fabrico de colchões. A última expedição para a captura de cagarra nas ilhas Selvagens partiu do Funchal a 15 de setembro de 1967. A caça à cagarra foi proibida. Patagarro (Puffinus puffinus puffinus (Brunnich, 1764), ou simplesmente Puffinus puffinus (Brunnich, 1764)). Também conhecido como fura-bucho, pardela-sombria, estapagado, papagarro e boieiro; alguns destes nomes são designações onomatopeicas, que imitam os sons característicos desta ave. Pertence à família Procellariidae, ordem Procellariiformes. Distribui-se pelos arquipélagos da Madeira, das Canárias e dos Açores, ilhas Britânicas, costa da Bretanha, Islândia e ilhas Faroé. No arquipélago da Madeira, o patagarro nidifica apenas na ilha da Madeira, em particular nas encostas da ribeira de Santa Luzia, mas também noutras regiões do interior, em vales profundos, em zonas húmidas e cobertas de vegetação, podendo atingir altitudes muito elevadas. O patagarro é negro no dorso e branco nas partes ventrais; o seu bico é longo, preto e direito. O patagarro é frequentemente confundido com o pintainho (Puffinus baroli), diferindo dele pela plumagem preta da cabeça, que desce até abaixo dos olhos (a pelagem que rodeia os olhos do pintainho é branca). Normalmente, o patagarro chega à ilha da Madeira em fevereiro ou março, altura em que começa a escavar e a limpar as tocas (chegando estas a ter mais de 1 m de comprimento). Às vezes, mal chega, parte novamente (êxodo pré-postura). Julga-se que o principal objetivo deste comportamento é a acumulação de reservas para os períodos de incubação do ovo, alternados, entre macho e fêmea, de quatro ou cinco dias de jejum. Por regra, parte em agosto. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, existirão entre 2500 e 10.000 indivíduos. Um dos perigos para o patagarro é a predação por ratos e gatos. No passado, a captura e a perseguição ilegais representavam uma ameaça importante. Segundo a crença popular, era uma ave de mau agoiro: haveria uma morte entre os moradores de uma habitação sempre que um patagarro pousasse sobre ela. Alguns locais onde esta subespécie ocorre fazem parte de zonas da Rede Natura 2000 e do PNM. Alguns dos habitats constam do anexo i da diretiva “Habitats”; a ave está no anexo II da Convenção de Berna. Fig. 1 – Fotografia de patagarro (Puffinus puffinus puffinus). Funchal. Fonte: © José Jesus Pintainho (Puffinus baroli (Bonaparte, 1857)). Considerado por alguns cientistas como a subespécie Puffinus assimilis baroli, é uma ave da familia Procellariidae, ordem Procellariiformes. É uma ave endémica da Macaronésia, sendo que nos arquipélagos da Madeira e das Selvagens nidifica nas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Desertas e Selvagens. Tem patas azuis, dorso muito escuro e ventre claro. O pintainho poderá ser confundido com o patagarro; no entanto, diferencia-se dele pelo facto de a plumagem preta da cabeça não rodear os olhos e por estes serem no pintainho mais pequenos. O voo caracteriza-se por batimentos frequentes das asas. Nidifica entre janeiro e junho em cavidades de rochas ou por baixo de pedras soltas, nas falésias de pequenas ilhas e ilhéus. Geralmente, está presente na área durante quase todo o ano, não se afastando muito dos locais de nidificação. Ocorre em maior número nas ilhas Selvagens (estima-se que haja mais de 2000 casais) e em muito menor número nas ilhas da Madeira, do Porto Santo e Desertas. O seu estatuto de conservação é “vulnerável” no arquipélago da Madeira. A predação por espécies introduzidas pelo Homem poderá representar a principal ameaça à sua sobrevivência; no entanto, em alguns dos locais onde existe (e.g., nas Selvagens) essa ameaça foi debelada pela erradicação de vertebrados introduzidos. A proteção do pintainho é garantida pelo facto de ocorrer em áreas de reserva integral e da Rede Natura 2000 e por estar sob vigilância permanente nas ilhas Desertas e Selvagens. Esta ave consta do anexo I da diretiva “Aves” e do anexo II da Convenção de Berna. Alma-negra (Bulweria bulwerii (Jardine & Selby, 1828)). Ave da família Procellariidae, ordem Procellariiformes, apresenta uma ampla distribuição mundial, ocorrendo desde a Macaronésia ao Havai. Na Macaronésia, nidifica nos arquipélagos da Madeira, das Selvagens, dos Açores, das Canárias e de Cabo Verde. Trata-se da ave marinha de menor porte do arquipélago da Madeira. Completamente negra e com asas pontiagudas (de grande envergadura em relação ao tamanho do corpo), apresenta um voo rápido e planado. Entre abril e setembro nidifica em pequenas ilhas, ilhéus e falésias costeiras. A postura consiste em apenas num ovo, que é posto no chão, em buracos no solo ou em cavidades nas rochas, por baixo de grandes pedras e em muros artificiais. Nas ilhas Desertas e Selvagens, existem mais de 10.000 casais, sendo provavelmente as Desertas o lugar com a maior concentração mundial de indivíduos (no entanto, pouco se sabe sobre o número de aves que poderá ocorrer na Madeira e em Porto Santo). Antes dos programas de recuperação de habitats das Desertas e Selvagens, os ratos constituíam um sério perigo para a sobrevivência da espécie, assim como a captura de juvenis para servirem como isco (prática entretanto extinta). Os ratos, os gatos e as gaivotas constituem ameaças em algumas áreas não sujeitas a programas de recuperação. Já em finais do séc. XX, inícios do séc. XXI, uma ameaça, a formiga-argentina, cresceu e começou a tornar-se preocupante, principalmente nas Desertas. A elevada pressão turística, a degradação do habitat e a erosão dos solos constituem também importantes fatores de risco. O maior número de aves que ocorre e nidifica no arquipélago da Madeira concentra-se em zonas de reserva integral e da Rede Natura 2000. Esta espécie consta do anexo I da diretiva “Aves” e anexo II da Convenção de Berna. Roque-de-castro, paínho-da-madeira, roquinho ou angelito (Hydrobates castro (Harcout, 1851)). Ave da família Hydrobatidae, ordem Procellariiformes. A nível mundial, distribui-se entre as regiões tropicais do Pacífico e do Atlântico, ocupando áreas como o arquipélago da Madeira, o arquipélago das Selvagens e outros arquipélagos da Macaronésia, as ilhas de Ascensão e de Santa Helena, os arquipélagos das Galápagos e do Havai. Trata-se de uma ave de pequeno porte, de coloração negra e com uma faixa branca no uropígio, sendo a cauda ligeiramente bifurcada. No arquipélago da Madeira, existem duas populações com tempos de nidificação diferentes (verão e inverno) e este facto poderá corresponder à coexistência de duas espécies, a exemplo do que acontece nos Açores. No arquipélago dos Açores, o grupo que nidifica no verão tem a designação de Hydrobates monteiroi (Bolton et al., 2008), sendo que o outro se denomina Hydrobates castro. A população total nos arquipélagos da Madeira e das Selvagens poderá ser superior a 10.000 indivíduos. A postura (de um ovo), em ninhos, é efetuada em pequenas ilhas, ilhéus e falésias costeiras e muros de pedra artificiais; nas Selvagens, o roque-de-castro utiliza também ninhos de calcamar abandonados. As principais ameaças à sobrevivência da espécie são a iluminação artificial existente ao longo a costa (principalmente na ilha da Madeira), a predação por animais exóticos (como os ratos) e a perda do habitat em algumas áreas da sua ocorrência. Boa parte da área em que ocorre é reserva integral e corresponde a zonas da Rede Natura 2000. A espécie está incluída no anexo I da diretiva “Aves” e anexo II da Convenção de Berna. Calcamar (Pelagodroma marina hypoleuca (Webb, Berthelot & Mouquin-Tandon, 1841)). Esta ave, da família Hydrobatidae, ordem Procellariiformes, é uma subespécie endémica da Macaronésia e ocorre no arquipélago das Canárias e no arquipélago das Selvagens (as ilhas Selvagens constituem o extremo norte da sua distribuição geográfica). É a ave que nidifica em maior número no arquipélago das Selvagens, fazendo-o na primavera, em ninhos profundos escavados no solo. Chega geralmente após o fim do inverno, abandonando as ilhas entre junho e agosto. A postura é constituída por um ovo apenas. Trata-se de uma ave de pequeno porte com o dorso muito escuro e ventre claro. A plumagem do topo superior da cabeça é escura; já as penas em redor dos olhos são brancas, apresentando uma marca linear escura “transversal” ao olho. As patas são amarelas e longas. O seu nome deve-se ao seu voo característico (a ave parece calcar o mar). O efetivo populacional deverá ser superior a 36.000 indivíduos na Selvagem Grande e a 25.000 na Selvagem Pequena, o que representa a quase totalidade da população europeia da espécie. No passado, antes da recuperação dos habitats terrestres da Selvagem Grande, que incluiu a erradicação dos murganhos e coelhos, a predação pelos ratinhos constituía uma ameaça muito importante à sobrevivência da espécie. As áreas de nidificação no arquipélago são reservas integrais e constituem zonas da Rede Natura 2000. A ave consta do anexo I da diretiva “Aves” e do anexo II da Convenção de Berna. Apesar da sua abundância e da sua importância, as aves marinhas são muito menos observadas durante o dia do que as aves terrestres. Efetivamente, quem está nas ilhas da Madeira e do Porto Santo observa muito mais aves terrestres do que marinhas. Entre as aves terrestres, destacam-se as seguintes: Pombo-trocaz ou pombo-da-madeira (Columba trocaz Heineken, 1829). Trata-se de uma ave da família Columbidae, ordem Columbiformes, endémica da Madeira. De aspeto corpulento, tem entre 38 e 45 cm de comprimento, sendo maior do que pombo-das-rochas. É facilmente identificável pela cor cinzento-azulada, tendo o peito tons de cor de vinho, bico vermelho-vivo, patas de cor carmim (com dedos bastante compridos) e barra clara na cauda (visível à distância). As penas do pescoço apresentam um brilho metálico esverdeado. A fêmea é ligeiramente mais pequena e menos corpulenta do que o macho. Tem como espécies próximas a Columba junoniae, a Columba bollii (ambas das ilhas Canárias) e a Columba palumbus (Europa). Habita essencialmente a laurissilva, mas desce com frequência até aos campos agrícolas, onde provoca grandes danos. Fósseis encontrados na Ponta de São Lourenço sugerem que tinha maior área de distribuição no passado. A sua dieta é muito variada, consistindo em partes de pelo menos 40 espécies de plantas (v.g., bagas de loureiro e de til, agrião selvagem) e ainda em várias plantas cultivadas (e.g., couves). O facto de várias sementes se manterem viáveis, i.e., com capacidade germinativa, após passarem pelo trato digestivo sugere uma ação importante do pombo na dispersão de plantas. Esta espécie nidifica durante todo o ano, sobretudo em alturas em que há alimento suficiente no período entre março e junho. No ninho, camuflado ou escondido numa laje de uma rocha ou numa árvore, é posto geralmente um ovo por casal. Em 2009, existiam entre 8500 e 10.000 indivíduos. Em 2005, o estatuto de conservação desta espécie era “vulnerável”, de acordo com o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal; no entanto, como em 2011 foi confirmada a diminuição do grau de ameaça, o estatuto de conservação passou a “pouco preocupante”. O envenenamento, a captura ilegal e a destruição do habitat da laurissilva constituem riscos para a sua sobrevivência. Esta espécie foi caçada legalmente até 1989, ano a partir do qual passou a ter proteção integral. De acordo com o relato da obra Ilhas de Zargo, a espécie era, no passado, vendida no mercado, sendo a sua carne de excelente qualidade. O Instituto das Florestas e Conservação da Natureza realiza sessões de abate com o objetivo do controle populacional, pois de vez em quando a população aumenta de tal forma que se torna uma praga nos campos agrícolas. Do ponto de vista da proteção, a espécie consta do anexo I da diretiva “Aves” (ao abrigo desta diretiva, o seu habitat, a laurissilva, foi proposto para zona de proteção especial (ZPE)). Grande parte da sua área de distribuição está incluída nas reservas naturais integrais e parciais do PNM e abrange sítios da Rede Natura 2000. O pombo-trocaz foi espécie-alvo de dois projetos LIFE: “Medidas para a Gestão e Conservação da Floresta Laurissilva da Madeira” e “Recuperação de Espécies e Habitats Prioritários da Madeira”. Fig. 2 – Fotografia de pombo-trocaz (Columba trocaz). Espécie endémica da ilha da Madeira. Ribeiro Frio. Fonte: © Carlos Góis-Marques Pombo-claro ou pombo-torcaz (Columba palumbus maderensis, Tschusi, 1904). É uma subespécie endémica que é dada como extinta. Ainda existia no início do séc. XX, tendo o P.e Ernst Schmitz capturado alguns indivíduos. Habitava as montanhas da Madeira, onde fazia ninho nas árvores. Era semelhante às populações europeias da espécie, Columba palumbus, mas um pouco mais escura dorsalmente e com a mancha púrpura do peito maior. Uma das causas de extinção terá sido a caça intensa. Pombo-bravo (Columba livia atlantis, (Bannermann, 1931)). (Espécies cinegéticas e caça). Galinhola (Scolopax rusticola, (Linnaeus, 1758)). (Espécies cinegéticas e caça). Codorniz (Coturnix coturnix confisa, (Hartert, 1917)). (Espécies cinegéticas e caça). Bis-bis (Regulus madeirensis, (Harcourt, 1851)). Trata-se de uma ave da família Regulidae, ordem Passeriformes. É endémica da ilha da Madeira. Existem dúvidas sobre a sua presença e nidificação no Porto Santo. É a ave nidificante mais pequena do arquipélago da Madeira, medindo aproximadamente 8,5 cm de comprimento total. É facilmente identificável pelo tamanho, mas também por ter cabeça listada e pelo seu trino característico (nota aguda e curta, repetida várias vezes). O macho tem a lista da cabeça alaranjada, ao passo que a da fêmea é amarela. Habita essencialmente áreas de maior altitude. Na costa Norte, onde parece ser mais abundante, pode ser encontrada a altitudes menores; aparece com frequência em zonas de floresta indígena, mista e exótica, por vezes em terrenos agrícolas ou áreas rurais; mas é mais comum em zonas de urzais. De acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, a população deverá exceder os 10.000 indivíduos. Nidifica em arbustos, em ninhos formados por musgo e líquenes, geralmente nos meses de maio e junho. É essencialmente insectívora. Esta ave consta do anexo II da Convenção de Berna; algumas das áreas onde ocorre são zonas da Rede Natura 2000 e/ou do PNM. Fig. 3 – Fotografia de bis-bis (Regulus madeirensi). Espécie endémica da ilha da Madeira. Bica da Cana, Paúl da Serra, dez. 2011. Fonte: © José Jesus Pardal-da-terra (Petronia petronia madeirensis (Erlanger, 1899)). É uma ave da família Passeridae, ordem Passeriformes. Petronia petronia petronia é a designação atribuída por alguns cientistas à subespécie na Madeira. Em razão desta indefinição de nomes, discute-se o seu estatuto de subespécie endémica da Macaronésia (Madeira, Porto Santo e Canárias). Tendo entre 15 e 17 cm de comprimento, esta ave apresenta cabeça larga e bico relativamente grosso. É de plumagem pardo-acastanhada, com regiões de castanho e branco-sujo no corpo, exibindo uma mancha amarela debaixo da garganta (observável em especial nos machos). Observam-se também listas escuras na zona da cabeça e manchas brancas nas penas exteriores da cauda, bem visíveis durante o voo, as quais lhe são características. Outrora abundante, nos começos do séc. XXI está representada por uma população muito reduzida (entre 250 e 2500 aves, de acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira). Mesmo em pequeno número, avistam-se alguns bandos, nomeadamente nas freguesias dos Prazeres e da Ponta do Pargo e na ilha do Porto Santo. Distribui-se por áreas abertas com vegetação rasteira, zonas rochosas, falésias sobre o mar e áreas cultivadas, sendo mais frequente nas regiões costeiras e nalguns pontos mais altos das ilhas. Nidifica entre os meses de fevereiro e junho. Alimenta-se essencialmente de sementes e insetos. Devido à sua dieta, esta ave poderá ter tido um impacto negativo sobre os campos agrícolas (ao nível dos grãos) – foi por este motivo que algumas câmaras tentaram combater a espécie. Assim, todos os anos, a Câmara Municipal do Porto Santo obrigava cada chefe de família a apresentar 25 cabeças de pardal durante o mês de junho. Estima-se que as principais ameaças sobre esta subespécie sejam a competição com outras espécies (como o pardal-espanhol) e a predação. O estatuto de conservação é “vulnerável”, segundo o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal. Lamentavelmente, desconhece-se o seu verdadeiro estatuto taxonómico, assim como vários aspetos da sua biologia, e não existe um plano de conservação dirigido a esta ave. A sua proteção é garantida pelo facto de algumas das áreas onde ocorre estarem incluídas no PNM e em áreas da Rede Natura 2000. A ave consta do anexo II da Convenção de Berna. Fig. 4 – Fotografia de pardal-da-terra (Petronia petronia madeirensis). Porto Santo. Fonte: © José Jesus Pardal-espanhol (Passer hispaniolensis hipaniolensis (Temminck 1820)). Trata-se de uma ave da família Passeridae, ordem Passeriformes. A subespécie ocorre no Sul da Europa, no Norte de África, nas Canárias e em Cabo Verde. Nas ilhas da Madeira e do Porto Santo, tem uma distribuição descontínua, vivendo em grupos. Prefere os habitats humanizados (jardins, praças urbanas, zonas agrícolas) e as áreas onde se misturam campos abandonados com vegetação rasteira. Esta ave apresenta dimorfismo sexual: o macho tem cabeça castanha, com partes laterais inferiores brancas e com a parte anterior do pescoço e peito negros, enquanto a fêmea é de coloração mais discreta, mais ou menos uniforme e castanha. O seu comprimento total situa-se entre os 14 e os 16 cm. Entre o final do séc. XX e os começos do séc. XXI, a população de pardal-espanhol decresceu significativamente na ilha da Madeira; no entanto, o Porto Santo manteve uma população numerosa, que deve superar largamente a estimativa de 250 a 2500 indivíduos do Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira. Corre-caminhos (Anthus berthelotii madeirensis, (Hartert, 1905)). De acordo com o Elucidário Madeirense, é também chamado carreiró, carreirote, melrinho de Nosso Senhor, melrinho de Nossa Senhora, em certos locais da Madeira, e pode ser conhecido por bica, no Porto Santo. É uma subespécie da família Motacillidae, ordem Passeriformes, endémica das ilhas da Madeira, do Porto Santo e Desertas. Nas Selvagens, ocorre a subespécie Anthus berthelotii bertheloti (Bolle, 1962), que também se encontra nas Canárias. A subespécie Anthus berthelotii maderensis tem um bico mais longo do que a subespécie típica das Canárias e Selvagens; no entanto, a sua plumagem é muito semelhante à daquela. Na Madeira, é mais frequente na Ponta de São Lourenço, no Pico do Arieiro e na Ponta do Pargo, facto que se deve à sua preferência por terrenos secos e por zonas com vegetação rasteira, desde a costa às cotas mais elevadas. Nas Selvagens, a subespécie Anthus berthelotii bertheloti ocorre essencialmente nos locais de planalto, e menos nas falésias. O corre-caminhos nidifica no chão, no outono e na primavera, e é facilmente identificável pelo seu comportamento. Costuma correr e faz voos curtos, facto que está na origem do seu nome vulgar. Em voo notam-se as retrizes externas brancas. A população de Anthus berthelotii madeirensis situa-se entre as 2500 e as 10.000 aves e parece estável. Faz ninho no solo, entre fevereiro e agosto, pondo cerca de quatro ovos. A população existente nas Selvagens é considerada “vulnerável” devido ao número reduzido de indivíduos que a constitui. Ambas as subespécies podem ocorrer em áreas de reserva integral e parcial do PNM e em zonas da Rede Natura 2000. A espécie consta do anexo II da Convenção de Berna. Fig. 5 – Fotografia de corre-caminhos (Anthus berthelotii madeirensis). Ponta de São Lourenço, abr. 2011. Fonte: © José Jesus Lavandeira (Motacilla cinerea schmitzi (Tschusi, 1900)). De acordo com a obra Elucidário Madeirense, era chamada papamoscas em certos locais do Porto da Cruz. É uma subespécie endémica do arquipélago da Madeira, da família Motacillidae, ordem Passeriformes. Ocorre na Madeira e no Porto Santo. Esta ave é facilmente identificável pela sua forma “esguia”, pelo peito amarelo e pelo movimento característico, vertical e cadenciado, da cauda, quando a ave está assente no solo. Apresenta um voo ondulado acompanhado de chamamento agudo e metálico. Tem entre 17 e 20 cm de comprimento total e encontra-se sobretudo na proximidade de cursos de água e de poços, desde cotas mais baixas até zonas de maior altitude. Põe entre três e cinco ovos em ninho construído em cavidades de paredes ou barrancos. Diferencia-se das outras formas da espécie por ter o dorso mais escuro. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, o efetivo populacional situa-se entre os 2500 e os 10.000 indivíduos. Boa parte da população ocorre em sítios da Rede Natura 2000 e do PNM, o que lhe confere alguma proteção. A espécie consta do anexo ii da Convenção de Berna. Fig. 6 – Fotografia de lavandeira (Motacilla cinerea schmitzi). Subespécie endémica do arquipélago da Madeira. Ribeira Brava. Fonte: © José Jesus Papinho (Erithacus rubecula rubecula (Linnaeus, 1758)). É uma subespécie da família Muscicapidae, ordem Passeriformes, que se distribui por Marrocos, pelos Açores, pelo Oeste das Canárias, pela ilha da Madeira e pela ilha do Porto Santo (onde é rara). Na Madeira, pode ocorrer desde a beira-mar até aos 1700 m de altitude. É facilmente identificável pelo seu peito ruivo. O adulto é castanho no dorso e castanho-claro no abdómen e nos flancos; os juvenis são claros com peito manchado. Mede entre 12,5 e 14 cm de comprimento total. A ave tem um canto melodioso. Ocorre essencialmente em zonas de floresta indígena, floresta exótica, floresta de transição, urzais, áreas agrícolas e jardins urbanos. Alimenta-se de insetos, caracóis e minhocas. Nidifica em arbustos, entre março e julho, pondo dois ou três ovos (raramente quatro ou cinco). O efetivo populacional deverá ser superior a 10.000 indivíduos, segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira. Algumas zonas onde ocorre são áreas da Rede Natura 2000 e do PNM. Consta do anexo II da Convenção de Berna. Melro-preto (Turdus merula cabrerae Hartert, 1901). Subespécie endémica da Macaronésia da família Turdidae, ordem Passeriformes. Distribui-se pela Madeira, pelo Porto Santo (onde é rara) e pelas Canárias (existe em algumas ilhas). É facilmente identificável pelo seu tamanho – é o maior passeriforme nidificante (tendo entre 19 e 23,5 cm de comprimento total) –, pelo seu bico (amarelo no macho e acastanhado na fêmea) e pela sua coloração (o macho é uniformemente preto e a fêmea é castanho-escura com algumas manchas). Encontra-se por toda a ilha da Madeira, numa grande variedade de habitats, desde áreas de floresta indígena, floresta exótica, até zonas urbanas e áreas de cultivo. É muito rara nas áreas secas com vegetação rasteira do litoral. Nidifica em pequenas árvores, bananeiras, jardins e campos agrícolas. A postura ocorre geralmente em maio e junho; a época de reprodução pode estender-se entre janeiro e agosto. Alimenta-se de minhocas, insetos, bagas e sementes. O efetivo populacional da Madeira poderá exceder as 10.000 aves. Algumas áreas do seu habitat estão incluídas em zonas de reserva integral e parcial do PNM e em áreas da Rede Natura 2000. O melro-preto da Madeira consta do anexo II da diretiva “Aves” e do anexo III da Convenção de Berna. Cigarrinho (Sylvia conspicillata orbitalis (Wahlberg 1854)). Sylvia conspicillata bella (Tschusi, 1901) é outro nome científico dado à subespécie (caído em desuso). Alguns cientistas atribuíram-lhe o nome de Curruca conspicillata orbitalis. Há dúvidas sobre se constitui uma subespécie endémica da Macaronésia. Ocorre nas ilhas da Madeira e do Porto Santo, nas Canárias e em Cabo Verde. É uma ave da família Sylvidae, ordem Passeriformes. Mede cerca de 12 a 13 cm de comprimento total e tem dimorfismo sexual (a fêmea tem, em geral, uma tonalidade mais acastanhada, sendo efetivamente castanha na cabeça e no dorso, e o macho tem cabeça cinzenta, garganta esbranquiçada, abdómen claro e rosado e dorso castanho). As formas da subespécie da ilha Madeira são mais escuras do que as das Canárias. O cigarrinho ocorre em núcleos espalhados pela ilha da Madeira, em zonas arbustivas densas com pouca perturbação humana. No Porto Santo, é frequente em áreas com alguma vegetação arbustiva, mas também em terreno aberto. O efetivo desta subespécie “tímida” ou pouco conspícua rondará os 2500 indivíduos (no entanto, esta estimativa deve ser considerada com alguma reserva por faltarem estudos sobre esta ave). A população de cigarrinhos do arquipélago da Madeira, embora apresente um estatuto de conservação “vulnerável”, não é alvo de medidas de conservação. Alguns dos locais em que ocorre são sítios da Rede Natura 2000 e do PNM. A espécie consta do anexo II da Convenção de Berna. Toutinegra (Sylvia atricapilla heinecken (Jardine, 1830)). Trata-se de uma ave da família Sylvidae, ordem Passeriformes. É uma subespécie que ocorre nas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Canárias e em algumas zonas da península Ibérica (principalmente no Sudoeste). Possui um típico barrete – preto nos machos e vermelho-escuro (ou acastanhado) nas fêmeas –, sendo também possível encontrar algumas aves melânicas em que a cor preta do barrete do macho desce abaixo da nuca (pelo que recebem, em alguns locais, a denominação de toutinegras de capelo). O comprimento total no adulto varia entre 13,5 e 15 cm. Pode ser observada em vários habitats (áreas com arbustos densos, clareiras, zonas florestais de transição e jardins), sendo rara na laurissilva. Não ultrapassa os 1400 m de altitude, sendo pouco frequente a partir dos 800 m. De acordo com o Atlas das Aves do Arquipélagos do Madeira, deverão existir mais de 10.000 indivíduos. Entre março e junho, constrói o seu ninho nos ramos das árvores e nos arbustos e põe até cinco ovos. No passado, devido aos seus dotes canoros (o típico “tac-tac”), eram capturadas e aprisionadas em gaiolas; nos começos do séc. XXI, esta prática está proibida. Algumas áreas onde ocorre são zonas da Rede Natura 2000 e do PNM, o que confere alguma proteção à subespécie. A espécie consta do anexo II da Convenção de Berna. Tentilhão (Fringilla coelebs maderensis (Sharpe, 1888)). Trata-se de uma subespécie pertencente à família Fringillidae, ordem Passeriformes, endémica da ilha da Madeira. Tendo entre 14 e 16 cm, possui faixas alares e parte externa da cauda brancas. O dimorfismo sexual é evidente: os machos são mais vistosos, têm tonalidades mais vivas (o peito é rosado ou cor de tijolo, o dorso verde-acastanhado e a cabeça azulada); a fêmea é menos colorida, tendo geralmente tonalidade verde-acastanhada e sendo castanho-clara no peito e na região ventral. Existe apenas na ilha da Madeira, sendo observada em toda a sua extensão, exceto a mais baixa altitude. É frequente em zonas arborizadas, com vegetação indígena ou exótica, em áreas agrícolas e rurais habitadas e em regiões com vegetação arbustiva ou mesmo rasteira; também se observa com regularidade em zonas de merenda (onde “petisca” os restos de comida deixados pelas pessoas). Alimenta-se de sementes e insetos. De acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, a população é numerosa (superior a 100.000 indivíduos). Algumas das áreas em que ocorre pertencem à Rede Natura 2000 e ao PNM. Faz parte do anexo III da Convenção de Berna. Tal como acontece relativamente a outras aves do arquipélago da Madeira, são necessários estudos para conhecê-la melhor. Fig. 7 – Fotografia de tentilhão (Fringilla coelebs maderensis). Subespécie endémica da ilha da Madeira. Macho. Ribeiro Frio, abr. 2016. Fonte: © José Jesus Canário-da-terra ou canário (Serinus canaria (Linnaeus, 1758)). É um endemismo macaronésico da família Fringillidae, ordem Passeriformes. Tem entre 12,5 e 13,5 cm de comprimento. Apresenta dimorfismo sexual: os machos são mais coloridos e têm cores mais vivas – são mais amarelados – e definidas do que as fêmeas, que são mais discretas (têm cores menos vivas e mais acastanhadas). Distribui-se pelas ilhas da Madeira, do Porto Santo e Desertas. É também encontrada nos arquipélagos dos Açores e das Canárias. O habitat da espécie é variado, compreendendo zonas rurais agrícolas, jardins, áreas urbanas, zonas com vegetação rasteira ou arbustiva. Pode ser observada desde o nível do mar, nas proximidades da zona entremarés, como é frequente nas Desertas, até aos picos mais elevados da ilha da Madeira. É frequente observar-se bandos de canários; de acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, o efetivo populacional deverá ser superior a 10.000 indivíduos. A nidificação inicia-se em janeiro (ou fevereiro) e a época prolonga-se provavelmente até junho. Num ano, pode fazer duas ou três posturas. O seu canto é melodioso e muito variado. Algumas áreas de ocorrência e de nidificação estão incluídas em zonas da Rede Natura e do PNM. A espécie consta do anexo III da Convenção de Berna. Aparentemente, desloca-se entre as várias regiões de uma mesma ilha, o que leva à ocorrência de flutuações locais. Fig. 8 – Fotografia de canário (Serinus canaria) fêmea. Deserta Grande, jun. 2011. Fonte: © José Jesus Pintassilgo (Carduelis carduelis parva (Tschusi, 1901)). Esta ave, da família Fringillidae, ordem Passeriformes, distribui-se pelas ilhas da Madeira e do Porto Santo, pelos Açores, pelas Canárias, pela península Ibérica, pela região ocidental do Mediterrâneo e pelo Noroeste de África. É inconfundível pela sua coloração, tendo cabeça vermelha (ao redor dos olhos e do bico), negra e branca. Possui uma barra alar amarela e larga nas asas pretas. A cauda é preta com manchas brancas. Não tem dimorfismo sexual e o seu comprimento total varia entre os 12 e os 13,5 cm. Os juvenis são mais discretos, sem mancha facial. Pode ser encontrada desde a beira-mar até às grandes altitudes, em áreas cultivadas, abertas ou com vegetação rasteira, com gramíneas e compostas, em jardins, na floresta exótica e indígena degradada. Devido à forma como usa o habitat, sofre grandes flutuações a nível local, verificando-se uma forte sazonalidade. Pode formar bandos e a sua população na Região Autónoma da Madeira situa-se entre os 2500 e os 10.000 indivíduos. No passado, esta ave era capturada e mantida em gaiolas; no entanto, nos começos do séc. xxi esta prática está proibida. Alguns habitats onde ocorre estão incluídos em sítios da Rede Natura 2000 e em áreas do PNM. A ave consta do anexo II da Convenção de Berna. Pintarroxo (Carduelis cannabina guentheri (Wolters, 1953)). Na base de dados Avibase, o pintarroxo tem o nome científico de Linaria cannabina guentheri. Subespécie endémica do arquipélago da Madeira, pertence à família Fringillidae, ordem Passeriformes. Esta ave mede entre 12,5 e 14 cm de comprimento total e tem uma cauda relativamente comprida e bico curto, cinzento. Nesta subespécie, ocorre dimorfismo sexual: o macho apresenta peito e fronte avermelhados, nuca cinza e dorso de um castanho homogéneo; a fêmea é de coloração mais discreta, tendo uma tonalidade mais acastanhada do que o macho. Habita em áreas com vegetação rasteira ou com poucos arbustos (onde predominam as gramíneas e as compostas), em terrenos cultivados, jardins e outras áreas humanizadas, tanto em zonas de baixa como de elevada altitude. Pode ser observada em bandos igualmente formados por canários e pintassilgos. As estimativas indicam a existência de 2500 a 10.000 indivíduos, de acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira. Boa parte dos indivíduos desta subespécie relativamente pouco conhecida ocorre em áreas da Rede Natura 2000 e do PNM. A ave faz parte do anexo II da Convenção de Berna. Verdilhão (Chloris chloris (Linnaeus, 1758)). Tem sido muitas vezes referido que o verdilhão da Madeira pertence à subespécie Chloris chloris aurantiiventri (Cabanis, 1850). Trata-se de uma ave da família Fringillidae, ordem Passeriformes. A espécie distribui-se pelo Sul da Europa e pelo Norte de África, tendo sido introduzida em vários outros locais (e.g., Açores, Nova Zelândia, Sul da Austrália e Argentina). Não se sabe se terá sido introduzida no arquipélago da Madeira, tendo-se conhecimento de que aí nidifica a partir da déc. de 60 do séc. XX, exclusivamente na ilha da Madeira. Aparece em áreas de floresta exótica pouco densa, em regiões marginais de floresta, perto de áreas de cultivo, ou em zonas abertas com arbustos, eventualmente em áreas urbanas, em parques e jardins. Esta ave amarelo-esverdeada tem entre 14 e 16 cm de comprimento total; o corpo, a cabeça e o bico são mais robustos do que os de espécies que lhe são próximas. Há dimorfismo sexual: a fêmea tem uma coloração bastante mais discreta do que o macho. De acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, a população deverá ser superior a 2500 indivíduos. Tem-se pouco conhecimento do modo como a espécie ocorre no arquipélago da Madeira. Lugre (Carduelis spinus (Linnaeus, 1758)). É-lhe também atribuído o nome científico de Spinus spinus (Linnaeus, 1758). É uma ave da família Fringillidae, ordem Passeriformes. Encontra-se na região paleártica, nomeadamente entre a Europa Ocidental e a Rússia Meridional, até à costa do Oceano Pacífico. Só em 2002 foi confirmada a sua nidificação na Madeira, e desde então tem-se assistido a um incremento do efetivo populacional, sendo frequente observá-la na região do Poiso e na dos Estanquinhos (Paúl da Serra), entre outras. Este fringilídeo, que mede entre 11 e 12,5 cm de comprimento total, distingue-se pelas suas asas escuras, com marcas branco-amareladas, e pelos lados da cauda, amarelos essencialmente na base (como no verdilhão). A coroa e o babete são pretos. Tem cabeça pequena e cauda curta. Poupa (Upupa epops (Linnaeus, 1758)). Trata-se provavelmente da subespécie Upupa epops epops. É uma ave da família Upupidae, ordem Upupiformes. No arquipélago da Madeira, é frequente no Porto Santo e ocasional na ilha da Madeira (onde ocorre principalmente na Ponta de São Lourenço) e nas ilhas Desertas. A espécie distribui-se pela Europa, pelo Noroeste de África e pela Ásia. Vive em áreas secas, com vegetação rasteira herbácea ou arbustiva pouco densa, e em zonas agrícolas. É inconfundível pela sua silhueta e pelo padrão preto e branco das asas, pelo bico comprido e curvo e pela crista bastante evidente, mesmo quando em voo. Tem um comprimento total que varia entre os 25 e os 29 cm. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, existem entre 250 e 2500 indivíduos. Alimenta-se de invertebrados, como insetos e minhocas. Ocorre em algumas áreas da Rede Natura 2000. Andorinhão-da-serra, andorinha-da-serra ou andorinha (Apus unicolor (Jardine, 1830)). Trata-se de uma ave da família Apodidae, ordem Apodiformes, endémica da Macaronésia, ocorrendo na ilha do Porto Santo, na ilha da Madeira e nas ilhas Canárias. Nidifica em falésias, a qualquer altitude. É observada sobretudo no verão. A maioria dos indivíduos parece migrar, no inverno, para o Norte de África. Esta ave, medindo entre 14 e 15 cm de comprimento total e tendo coloração negra, apresenta um voo rápido bastante característico e uma silhueta em meia-lua (por analogia com fases da lua, parece um quarto crescente ou um quarto minguante). Come essencialmente insetos, pelo que o uso de inseticidas pode constituir uma ameaça para a espécie. Distingue-se de Apus pallidus por ter uma coloração mais homogénea e escura. Ocorre em vários locais, incluindo em áreas da Rede Natura 2000 e do PNM. A espécie consta do anexo II da Convenção de Berna. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, existem entre 2500 e 10.000 indivíduos. Andorinhão ou andorinha-do-mar (Apus pallidus brehmorum (Hartert, 1901)). Trata-se de uma ave da família Apodidae, ordem Apodiformes, que ocorre nas ilhas da Madeira e do Porto Santo e também em algumas ilhas das Canárias, podendo ser igualmente observada nas costas da Europa Meridional (entre a península Ibérica e a Turquia) e no Norte de África. Com um comprimento total que varia entre os 16 e os 18 cm, distingue-se do andorinhão-da-serra (Apus unicolor) por ser um pouco maior do que ele, pela mancha clara na garganta e pela sua coloração menos homogénea. No inverno, parece migrar para regiões situadas a sul do Saara. Embora haja algum desconhecimento quanto à sua distribuição e abundância, sabe-se que esta ave ocorre em vários habitats, desde falésias e ilhéus (onde nidifica) a zonas de interior, entre as quais as regiões de montanha, áreas rurais ou áreas suburbanas. É menos abundante do que a Apus unicolor. A exemplo do que acontece noutras ilhas oceânicas, as aves de rapina estão representadas por um baixo número de espécies, quando comparado com o existente em áreas continentais com características semelhantes. No arquipélago da Madeira e no arquipélago das Selvagens nidificam a manta, o francelho, o fura-bardos e a coruja-das-torres. Manta. Alguns madeirenses conhecem-na como milhafre. Trata-se de uma ave da família Accipitridae, ordem Accipitriformes. Durante muito tempo, foi considerada como a subespécie Buteo buteo harterti (Swan, 1919); no entanto, é considerada por alguns cientistas como Buteo buteo buteo (Linnaeus, 1758). Se considerarmos esta ave de rapina como Buteo buteo harterti, podemos afirmar que a subespécie ocorre nas ilhas da Madeira, do Porto Santo e Desertas, sendo endémica do arquipélago da Madeira. No entanto, se considerarmos a ave como Buteo buteo buteo, então a população do arquipélago deixa de ser tida como endémica, havendo que considerar as populações ocidentais da região paleártica e da África Ocidental como constituintes da mesma subespécie (Buteo buteo buteo). Independentemente das dúvidas taxonómicas quanto ao estatuto da manta, esta é a maior das aves de rapina que nidificam no arquipélago da Madeira, tendo um comprimento total que poderá superar os 50 cm e uma envergadura que poderá chegar aos 130 cm. É frequente observá-la voando, com batimentos de asa lentos, ou planando em círculos, aproveitando as correntes matinais de ar ascendente (pode também efetuar voos curtos e picados). Ocorre em vários habitats: falésias costeiras e interiores, zonas com pouca vegetação rasteira, áreas florestais indígenas e exóticas, áreas agrícolas e suburbanas. A parte superior do corpo é geralmente castanho-escura; o peito é uniformemente castanho-escuro, listado ou manchado de creme-amarelado. Em voo, as asas mostram cinco rémiges primárias soltas (que parecem dedos) e manchas claras e orlas escuras na parte inferior. A cauda é relativamente curta e a cabeça de pequena dimensão. Esta ave alimenta-se de roedores, coelhos, algumas aves (como a perdiz), lagartixas e insetos. Nidifica a média ou elevada altitude, em precipícios e em árvores de grande porte. A construção do ninho começa em fevereiro ou março. Os pintos deixam o ninho nos meses de julho e agosto. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, a população é superior a 2500 indivíduos, essencialmente localizados na ilha da Madeira. No entanto, em 2006 a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves tinha uma estimativa distinta (cerca de 300 aves nas ilhas da Madeira e do Porto Santo). As ameaças que pairam sobre a manta são o envenenamento secundário por pesticidas, a captura e o abate ilegais. No passado, era perseguida e caçada, pelo facto de predar galinhas (e outras aves domésticas) e coelhos. Parte da sua área de ocorrência está incluída em zonas da Rede Natura 2000 e em algumas regiões com estatuto de reserva integral e parcial do PNM. A ave consta do anexo I da diretiva “Aves” e do anexo III da Convenção de Berna. A manta desapareceu das Desertas em 1996, provavelmente vítima de envenenamento secundário, por predação de coelhos envenenados. De facto, nessa altura decorria o projeto Recuperação dos Habitats Terrestres da Deserta Grande, que envolvia a erradicação de coelhos através do envenenamento. No entanto, posteriormente foram feitos alguns avistamentos da manta nas Desertas. Francelho (Falco tinnunculus canariensis (Koenig, 1980)). Na Madeira, há pessoas que os chamam de milhafres. Ave da família Falconidae, ordem Falconiformes, é uma subespécie endémica da Macaronésia que ocorre sobretudo nas ilhas da Madeira, do Porto Santo e Canárias. Na Madeira e no Porto Santo, podemos observar francelhos desde o nível do mar até às altas montanhas, em diversos habitats (como falésias, espaços urbanos e suburbanos, zonas florestais, superfícies com pouca vegetação ou com vegetação rasteira, e áreas agrícolas). É a ave de rapina nidificante mais abundante e a mais pequena do arquipélago da Madeira, facilmente identificável em voo pelas suas longas asas, pontiagudas e arqueadas em forma de foice, e pela sua longa cauda, assim como pelo seu típico “peneirar”, ou seja, pelo bater de asas em voo sem deslocamento (o chamado “parado no ar”). No geral, possui dorso e região ventral malhados; porém, as fêmeas, de maior porte, são castanhas na parte superior e têm listas escuras na cabeça, possuindo cauda listada e dorso mais malhado do que o do macho; o macho tem cabeça e cauda cinzentas, uma barra preta subterminal na cauda, parte inferior de tonalidade acastanhada e clara e asas escuras nas extremidades. O comprimento total dos indivíduos da espécie varia entre 31 e 37 cm e a envergadura entre 68 e 78 cm. O francelho é mais pequeno e mais escuro do que os seus congéneres europeus. Devido ao projeto Recuperação dos Habitats Terrestres da Deserta Grande, e a exemplo do que aconteceu com a manta, o francelho desapareceu da Deserta Grande em 1996, mas voltou a ser posteriormente detetado na Deserta Grande e no Bugio. A sua dieta é variada e condicionada pela disponibilidade das presas principais (a qual, por sua vez, depende do habitat). Come essencialmente roedores, lagartixas, insetos e pequenas aves. Põe quatro a seis ovos em buracos ou fendas de escarpas rochosas. A estimativa do efetivo varia entre 2500 e 10.000 indivíduos, de acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira. As principais ameaças à sobrevivência do francelho são o envenenamento secundário por pesticidas e a perseguição humana (e.g., por meio da captura ilegal). Parte da região da ocorrência da espécie está incluída em zonas que integram a Rede Natura 2000 e em algumas áreas com estatuto de reserva integral e parcial do PNM. A ave consta do anexo i da diretiva “Aves” e do anexo III da Convenção de Berna. No passado, a caça a estas aves era uma realidade habitual: o povo temia-as, pois predavam os pintos de galinha que andavam à solta. Fura-bardos (Accipiter nisus granti (Sharpe, 1890)). Ave da família Accipitridae, ordem Accipitriformes. No arquipélago da Madeira, ocorre apenas na ilha da Madeira, com uma distribuição dispersa. Esta subespécie macaronésica também ocorre nas Canárias. A espécie a que pertence, Accipiter nisus, é conhecida como gavião no continente português e tem vasta distribuição europeia. Por ter hábitos discretos, é difícil de observar. Esta ave habita áreas florestais densas (exóticas ou indígenas), mas também pode ser observada em campos agrícolas. Nidifica nas árvores. Apresenta um porte intermédio entre o do francelho e o da manta e asas arredondadas e relativamente curtas. A fêmea é maior e mais acinzentada do que o macho, tendo o peito e abdómen listados; o macho apresenta tons rosa no peito e no abdómen, cor cinza-azulada no dorso e barras finas e avermelhadas na parte inferior do corpo; ambos os sexos têm corpo estreito, pernas longas e cauda comprida. É a ave de rapina menos conhecida do arquipélago madeirense, pelo que qualquer apreciação a seu respeito deve ser considerada com o devido cuidado. O Elucidário Madeirense refere que é “indígena mas pouco frequente, não tendo sido mencionada na lista de Harcourt” (SILVA e MENESES, 1978, II, 158). Contudo, segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, existem entre 1000 e 2500 fura-bardos. As principais ameaças à sobrevivência da subespécie são a caça (o abate ilegal) e a destruição do habitat por incêndios e corte de árvores. Parte da área de ocorrência da subespécie está incluída em sítios da Rede Natura 2000 e em algumas zonas com estatuto de reserva integral e parcial do PNM. A ave consta do anexo I da diretiva “Aves” e do anexo III da Convenção de Berna. O projeto LIFE Fura-Bardos, compreendendo os anos de 2013 a 2017, tem como fito a conservação da espécie e dos habitats em que ocorre. Coruja ou coruja-das-torres (Tyto alba schmitzi (Hartert, 1900)). Trata-se de uma ave da família Tytonidae, ordem Strigiformes. É uma subespécie endémica do arquipélago da Madeira, ocorrendo nas ilhas da Madeira, do Porto Santo e Desertas. É a única ave de rapina noturna que nidifica no arquipélago da Madeira, sendo facilmente identificada pela sua silhueta durante o voo, pelo disco facial conspícuo e pelo chamamento agudo e estridente. Mede entre 33 e 39 cm de comprimento e tem entre 80 e 95 cm de envergadura. Apresenta um corpo relativamente delgado, asas para o longo e patas compridas. Embora seja mais escura do que as outras formas da espécie, apresenta uma significativa variação na sua coloração, sendo mais invulgar ter aparência clara. A face é pálida, em forma de coração, e os olhos são rodeados de penas escuras. Ocorre em vários tipos de habitat, desde zonas urbanas a áreas de floresta com clareiras, desde o litoral aos vales profundos do interior. Nidifica essencialmente entre abril e junho, em falésias costeiras e interiores. A coruja alimenta-se essencialmente de roedores, insetos e, eventualmente, de algumas pequenas aves. De acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, o seu efetivo situa-se entre os 2500 e os 10.000 indivíduos. Embora esta subespécie não conheça sérias ameaças à sua sobrevivência, a poluição do ambiente por pesticidas, a perseguição e o abate ilegal, bem como as crenças e as superstições em torno dela (são consideradas por muita gente como aves de mau agoiro – segundo a crença, sempre que uma delas passa por cima de uma casa, algo de mau irá acontecer, v.g., o falecimento de uma pessoa) constituem sem dúvida potenciais riscos para ela. No passado, o maior perigo era a perseguição pelas pessoas que as consideravam animais de mau agoiro. Esta ave consta do anexo II da Convenção de Berna e ocorre em muitas áreas do PNM e da Rede Natura 2000. Devido ao projeto Recuperação dos Habitats Terrestres da Deserta Grande, a coruja desapareceu da Deserta Grande em 1996 (tal como aconteceu com a Manta e o francelho). Posteriormente, voltou, porém, a ser detetada. Gaivota ou gaivota-de-patas-amarelas (Larus michahellis michahellis (Naumann, 184)0). “Gaio” ou “gaivoto” são os nomes atribuídos aos indivíduos juvenis, que se distinguem dos adultos pela plumagem escura. Trata-se de uma ave da família Laridae, ordem Charadriiformes. A atribuição de nome científico a estas gaivotas tem sido polémica, e a sua classificação tem variado ao longo do tempo. De todo o modo, vamos considerar que as gaivotas do arquipélago da Madeira e do arquipélago das Selvagens pertencem à subespécie Larus michahellis michahellis. Esta ave ocorre nas várias ilhas dos dois arquipélagos, em todo o tipo de terreno próximo do mar, em locais desabitados, falésias costeiras, zonas de lixeiras e de despejos de resíduos orgânicos e perto de áreas de descarregamento de peixe (lotas). As áreas preferenciais de nidificação são o ilhéu dos Desembarcadouros e o ilhéu de Fora. A postura, até três ovos, dá-se nos meses de abril e maio. Esta gaivota caracteriza-se por ser branca. O dorso e a parte superior da asa são cinzentos (com um pouco de cor branca na extremidade da asa). As patas são amarelas. O anel orbital é vermelho e há uma mancha vermelha no bico. Esta ave alimenta-se de grande variedade de presas, como peixes (muitos obtidos nos desperdícios da pesca, pelo que é considerada oportunista em termos de dieta), micromamíferos, aves marinhas, passeriformes, e de lixo orgânico, etc. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, nas ilhas da Madeira, do Porto Santo e Desertas o número de casais é superior a 3900; nas Selvagens, não ultrapassa os 30. As populações desta gaivota têm crescido devido à sua associação com o Homem. Excetuando nas Selvagens, não está ameaçada. Garajau ou garajau-rosado ou gaivina-rosada (Sterna dougallii dougallii (Montagu, 1813)). Trata-se de uma ave da família Sternidae, ordem Charadriiformes. Ocorre nas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Selvagens, no arquipélago dos Açores, na Europa, na América do Norte, nas Índias Ocidentais e em África. O seu habitat preferido são as falésias localizadas a baixa altitude e os ilhéus situados em zonas remotas. Esta ave possui o peito ligeiramente rosado na primavera, bico de ponta preta; quando pousada, as penas da cauda ultrapassam as asas estendidas para trás. Nidifica essencialmente na Ponta de São Lourenço, nas Selvagens, nos ilhéus rochosos ou arenosos dos arquipélagos da Madeira e das Selvagens, e longe da perturbação humana. Provavelmente, as principais ameaças à sua sobrevivência são a destruição do seu habitat e os predadores introduzidos. Quanto ao estatuto de conservação, a população regional desta subespécie é “vulnerável”; apesar desta classificação, não há qualquer programa de conservação dirigido à espécie. A sua proteção é conferida pelo facto de algumas zonas em que ocorre constarem de áreas da Rede Natura 2000 e do PNM. A ave encontra-se no anexo I da diretiva “Aves” e anexo II da Convenção de Berna. Garajau ou gaivina (Sterna hirundo hirundo (Linnaeus, 1758)). Trata-se de uma ave da família Sternidae, ordem Charadriiformes. Ocorre em todas as ilhas do arquipélago da Madeira e do arquipélago das Selvagens, com maior incidência nas zonas costeiras, a baixa altitude, e em pequenos ilhéus, onde nidifica. Na Selvagem Pequena e no ilhéu de Fora nidifica em praias de areia. Nestes arquipélagos, ocorre essencialmente entre os meses de março e setembro, em colónias de dimensão reduzida. Com um comprimento total entre os 34 e os 37 cm e uma envergadura entre os 70 e os 80 cm, o bico é vermelho e robusto e o peito é branco. Distingue-se do garajau-rosado, entre outros aspetos, pelo facto de, quando pousada, a sua cauda não ultrapassar a ponta das asas compridas e estreitas. Esta ave de patas curtas alimenta-se essencialmente de pequenos peixes, crustáceos e insetos. Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, existirão entre 250 e 2500 aves. As principais ameaças à sua sobrevivência são a ocupação, a alteração e a destruição do litoral. Segundo o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal do ano de 2005 tem o estatuto de conservação “vulnerável”. Esta ave ocorre e nidifica em áreas do PNM e em áreas da Rede Natura 2000. Encontra-se no anexo I da diretiva “Aves” e no anexo II da Convenção de Berna. Galinha-de-água (Gallinula chloropus (Linnaeus, 1758)). Trata-se provavelmente da subespécie Gallinula chloropus chloropus. É uma ave da família Rallidae, ordem Gruiformes. Esta espécie ocorre na Europa, na Ásia, na África e na América. Na Macaronésia, podemos observá-la nos Açores, na Madeira, nas Canárias e em Cabo Verde. No arquipélago da Madeira, a ave nidifica nas ilhas da Madeira e do Porto Santo. O habitat desta ave inclui charcos e lagoas com vegetação densa nas margens, e ela pode ser ocasionalmente vista na foz de algumas ribeiras. Podemos observá-la na lagoa do Lugar de Baixo (ilha da Madeira), na lagoa do Dragoal e na lagoa da Serra de Dentro (ilha do Porto Santo). Também poderá ser observada noutras massas de água com características semelhantes às anteriores. Ave de médio porte, com cerca de 37 cm de comprimento total, facilmente identificável pela plumagem em tons de castanho, azulado e preto, fronte vermelha – tal como o bico, de ponta amarela – e patas claras e esverdeadas. A parte inferior da cauda é branca. Os dedos são bastante compridos. É omnívora, tendo uma dieta à base de plantas aquáticas e suplementada com pequenos animais e ovos de outras aves. Existem poucos indivíduos na Madeira e no Porto Santo, provavelmente menos de 50. Essencialmente pelo reduzido efetivo, mas também pelo baixo número de potenciais locais de nidificação no arquipélago da Madeira, a espécie apresenta o estatuto “em perigo”, de acordo com o Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal na sua edição de 2005. Galeirão-comum (Fulica atra (Linnaeus, 1758)). É uma ave da família Rallidae, ordem Gruiformes. A espécie distribui-se pelas regiões paleártica, indo-malaia e australo-asiática. No arquipélago da Madeira, nidifica, pelo menos, na lagoa do Lugar de Baixo, na Foz da Ribeira do Faial e no Porto Santo. É uma ave de 36 a 42 cm de comprimento total e é facilmente identificável pelo bico e placa da fronte brancos e pelo corpo largo de cor cinzenta fuliginosa (parece preta). A cauda é curta e pequena e a cabeça arredondada e preta. No arquipélago da Madeira, o habitat disponível escasseia e é geralmente intervencionado pelo homem, pelo que o efetivo populacional deverá ser muito reduzido. Há ainda a referir a nidificação frequente da rolinha-da-praia ou borrelho-de-coleira-interrompida (Charadrius alexandrinus (Linnaeus, 1758)) no Porto Santo, onde a espécie tem o estatuto “em perigo”. As construções sobre dunas e a circulação de veículos sobre elas constituem as principais ameaças. Outra ave nidificante do arquipélago da Madeira, não referida acima, considerada na listagem de Romano e colegas do ano de 2010 (mas não considerada noutras fontes, como o Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira), é o pato-real (Anas platyrhynchus (Linnaeus, 1758)). Há algumas espécies nidificantes ocasionais, como é o caso do garajau-escuro (Onychoprion fuscatus (Linnaeus, 1766)) e do pato mandarim (Aix galericulata (Linnaeus, 1758)). Fig. 9 – Fotografia de galeirão-comum (Fulica atra). Espécie com uma população reduzida na Madeira e Porto Santo e com distribuição restrita a pequenas massas de água. Lagoa do Lugar de Baixo, jan. 2014. Fonte: © José Jesus   Rola-turca (Streptopelia decaocto (Frivaldszky, 1838)). Trata-se de uma ave da família Columbidae, ordem Columbiformes. Provavelmente introduzida no arquipélago da Madeira, a espécie é originária do subcontinente indiano. Ocorre nas regiões paleárticas ocidental e oriental. O primeiro registo de nidificação na ilha da Madeira (na Ponta de São Lourenço) data de 2009. É uma ave de média dimensão, de 31 a 34 cm de comprimento total, e elegante. A cauda é longa. A plumagem é pálida; no entanto, existe uma barra preta estreita, delineada a branco, nos lados do pescoço. Alimenta-se essencialmente de matéria vegetal, como grãos. Foram já registados casos de nidificação de outra espécie do género, a rola-comum (Streptopelia turtur), possivelmente também introduzida pelo Homem. Não se conhecem os efeitos da introdução destas duas espécies de rolas. Para prevenir possíveis impactos graves, seria necessário o controlo destas aves e, eventualmente, a sua erradicação. Outras aves nidificantes, presumivelmente introduzidas pelo Homem, são o bico-de-lacre (Estrilda astrild (Linnaeus, 1758)), o pato-mudo (Cairina moschata (Linnaeus, 1758)) e o periquito-de-colar (Psittacula krameri (Scopoli, 1769)). Há ainda outras espécies, possivelmente introduzidas, cuja nidificação na ilha da Madeira não está confirmada, como a caturra (Nymphicus hollandicus (Kerr, 1792)) e o papagaio-do-senegal (Poicephalus senegalus (Linnaeus, 1766)). Fig. 10 – Fotografia de pato-mudo (Cairina moschata). Espécie provavelmente exótica e em plena expansão da área de distribuição. Lagoa do lugar de Baixo, dez. 2011. Fonte: © José Jesus   Muitas espécies de aves foram introduzidas para a caça, mas algumas foram depois dadas como extintas, como é o caso da galinha-d’Angola (Numida meleagris (Linnaeus, 1758)), da perdiz-moura (Alectoris barbara (Bonnaterre, 1792)), do faisão (Phasianus colchicus (Linnaeus, 1758)) e do pavão (Pavo cristatus (Linnaeus, 1758)). Outras espécies, de que existem referências, encontram-se extintas no meio selvagem do arquipélago da Madeira. Têm sido encontradas e descritas espécies fósseis, especialmente encontradas nas dunas da Piedade e no Porto Santo, tais como o mocho (Otus mauli (Rando et al., 2012)), o ralídeo, (Rallus lowei (Alcover et al., 2015)), uma espécie robusta que possuía asas pequenas e não voava, ambas encontradas na ilha da Madeira, e o Rallus adolfocaesaris (Alcover et al., 2015), uma espécie menos robusta do que a anterior e encontrada na ilha do Porto Santo. Muitas outras espécies fósseis das dunas da Piedade e do Porto Santo poderão estar por descobrir ou descrever. A organização BirdLife International tem um programa cujo objetivo é identificar, proteger e gerir uma rede de áreas relevantes para a viabilidade, a longo prazo, de populações naturais de aves, mediante critérios estabelecidos internacionalmente. Estas áreas recebem a designação de Important Bird and Biodiversity Areas [Áreas Importantes para as Aves e Biodiversidade] (IBAs). As IBAs do arquipélago da Madeira e as principais espécies em cada uma delas encontram-se a seguir referidas: Laurissilva (código: PT083, área: 15.242 ha): alma-negra, cagarra, fura-bardos, pombo-trocaz, andorinhão-da-serra e canário-da-terra. Maciço montanhoso oriental (código: PT084, área: 3411 ha): freira-da-madeira, fura-bardos, pombo-trocaz, andorinhão-da-serra e corre-caminhos. Ilhas Desertas (código: PT085, área: 1384 ha): freira-do-bugio, alma-negra, cagarra, pintainho, roquinho, andorinhão-da-serra, corre-caminhos e canário-da-terra. Ilhas Selvagens (código: PT086, área: 265 ha): alma-negra, cagarra, pintainho, calcamar, roquinho, corre-caminhos. Ponta de São Lourenço (código: PT087, área: 321 ha): alma-negra, pintainho, roquinho, gaivina-rosada, gaivina, andorinhão-da-serra, canário-da-terra e corre-caminhos. Ponta do Pargo (código: PT088, área: 1161 ha): roquinho, fura-bardos, andorinhão-da-serra, corre-caminhos e canário-da-terra. Ilhéus do Porto Santo (código: PT089, área: 204 ha): pintainho, andorinhão-da-serra, corre-caminhos, canário-da-terra. Porto Santo-Oeste (código: PT090, área: 929 ha): roquinho, gaivina, gaivina-rosada, andorinhão-da-serra, corre-caminhos, canário-da-terra. [table id=101 /] [table id=102 /]   *Registos dúbios ou não confirmados **Possibilidade/indícios de nidificação   José Jesus (atualizado a 23.01.2017)

Biologia Terrestre