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Rabino, impressor, diplomata e autor de um relevante conjunto de obras em torno da exegese dos textos sagrados hebraicos, Menasseh Ben Israel, nascido Manoel Dias Soeiro, em 1604, descendia de uma família de cristãos-novos portugueses. O seu pai, Joseph Ben Israel, converso ao judaísmo uma vez estabelecida a família em Amesterdão, foi por várias vezes preso pelo Tribunal do Santo Ofício. Juntamente com a mulher, Rachel Soeiro, Joseph terá conseguido escapar secretamente às malhas inquisitoriais, viajando de Portugal até à cidade portuária francesa de La Rochelle, de onde, na companhia dos filhos, partiu para a Holanda. As origens portuguesas da família parecem, pois, indiscutíveis. Porém, diferentes fontes, da autoria de Menasseh, dão conta de uma divergência quanto ao seu local de nascimento. Com efeito, no seu registo de casamento, datado de 1623, Menasseh Ben Israel declarava que procedia de La Rochelle. Já em Orígen de los Americanos […] (1650), chama “pátria” a Lisboa (ISRAEL, 1881, 97). Cecil Roth, divulgador da hipótese de que o autor terá nascido na ilha da Madeira, na biografia que lhe dedica, A Life of Menasseh Ben Israel: Rabbi, Printer, and Diplomat (1945), chama a atenção para o facto de Ben Israel, na versão hebraica da referida obra, se referir a Lisboa como cidade-natal do seu pai, em passagem correspondente. Além disso, um documento da Inquisição publicado por Maximiano Lemos, em 1909, apresenta uma chave quanto à sua proveniência madeirense. Atente-se, pois, no depoimento de Duarte Guterres Estoque, datado de 14 de novembro de 1639, presente no documento em causa, o Caderno 19 da Inquisição de Lisboa, fólio 21: “Disse mais que haveria oito ou nove anos pouco mais ou menos na dita cidade de Amesterdão na sinagoga dos judeus viu ele denunciante a um cristão-novo o qual estava na dita sinagoga com uma toalha branca sinal com que costumam estar os judeus na dita sinagoga e que falando com o dito judeu português lhe disse que se chamava Manoel Dias Soeiro e que era natural da ilha da Madeira e depois soubera de outras pessoas que o dito cristão-novo se chamava do dito nome e que era natural da dita ilha, o qual em hebraico se chamava na dita cidade Menasseh Ben Israel e que era público rabino e professor da lei de Moisés o qual disse a ele declarante que tinha mandados dois caixões de livros que tinha composto a Espanha um caixão e ao Brasil outro e que o livro se intitula Reconciliações de la Sagrada Escritura” (LEMOS, 1909, 361). Partindo desta referência, Roth delineia o percurso da família Dias-Soeiro da seguinte forma: partem de Lisboa para se refugiarem na Madeira e, posteriormente, deslocam-se a La Rochelle, onde se estabelecem temporariamente, passando a Amesterdão ainda durante a infância de Menasseh Ben Israel, que, por essa altura, tinha dois irmãos, Efraim e Ester. Reunindo todo um conjunto de figuras eminentes das letras, da política e da finança, a recém-formada comunidade judaica de Amesterdão compõe-se, na sua génese, por homens e mulheres de origem portuguesa e espanhola nascidos e criados como cristãos. Com um passado marcado pelo cativeiro da Inquisição, muitos encontram na Holanda o ambiente de tolerância propício ao refúgio. O português e o espanhol são usados não só em reuniões de negócios, mas também nos exercícios religiosos. Dentre os instrutores de Menasseh Ben Israel, destaca-se um importante nome da filosofia e exegese talmúdica, rabi Isaac Uziel, nascido em Fez. Com apenas 13 anos, Menasseh torna-se membro da Santa Irmandade de Talmud Torah, fundada em 1616. Neste contexto, tem as suas primeiras experiências como orador e começa a desenhar-se a sua carreira como escritor, compondo, para começar, uma gramática de hebraico (Safah Berurah). Cedo vê reconhecidos os seus talentos de estudioso. Assim, após a morte de Uziel, sucede-lhe na qualidade de professor de Talmud e vem também a ser ordenado rabino, ainda antes de completar 20 anos. Pouco depois, casa-se com Rachel Abrabanel, cuja família procedia de Guimarães e reclamava parentesco com D. Isaac Abrabanel, filósofo e homem de finanças de D. João II e dos Reis Católicos, pai de Leão Hebreu, autor dos Diálogos de Amor (1535). Menasseh e Rachel tiveram três filhos, Gracia, Joseph e Samuel. Com a finalidade de prover ao sustento da família, estabelece-se como impressor, a partir de 1626. Manterá esta atividade durante cerca de 30 anos. Do seu prelo saem diferentes obras judaicas, desde livros de orações a textos clássicos, como a Mishna. Entre outros títulos, publicou o clássico de filosofia Emunot Vede’ot, de Saadia Gaon, bem como o tratado messiânico do já referido Isaac Abrabanel, Ma’yene ha-Yeshu’ah. A partir da déc. de 30 do séc. XVII, assumem relevo, por outro lado, as publicações originais da autoria de Menasseh Ben Israel. Uma das suas mais significativas obras intitula-se Conciliador, o de la Conveniencia de los Lugares de la S. Escriptura, que Repugnantes entre si Parecen. Com vários tomos, publicados entre 1632-1651, tal como o título indica, neste texto o autor pretendeu efetivar uma conciliação entre passagens do Velho Testamento aparentemente divergentes. Graças à ilustração do escolasticismo judaico junto dos intelectuais não-judeus, levada a cabo em Conciliador […], Ben Israel ficou célebre no círculo de intelectuais da Holanda e dos países vizinhos, cuja proximidade vem a desempenhar um importante papel na sua vida. Estabelece, pois, a partir daqui, relações de amizade com vários teólogos e filósofos cristãos, como Gerhard Johann Vossius, Huig Grotius, Samuel Bochart e Simon Bischop, e igualmente, entre outros, com o místico da Silésia, Abraham von Frankenburg, discípulo de Jacob Boehme. Aquele terá dirigido correspondência a Menasseh, na déc. de 40, evidenciando a sua apreensão em torno da vinda do Messias, expectativa que estava na ordem das preocupações dos intelectuais contemporâneos. Na esfera portuguesa, são assinaláveis as relações entre Israel e o P.e António Vieira, em 1646 e 1647, aquando das missões diplomáticas do jesuíta ao Noroeste Europeu, sob a égide de D. João IV. Vieira teve um contacto próximo com os refugiados marranos e chegou a assistir a um sermão pregado por Israel. A convergência entre o pensamento de um e outro autor foi já alvo de abordagem por parte de vários estudiosos. Christopher Lund refere o espírito de conciliação, similar ao de Conciliador […], que perpassa obras como História do Futuro e Chave dos Profetas, de António Vieira. Aponta também, no seio dos intercâmbios teológicos judeu-cristãos na Holanda e em Inglaterra, que o pensamento de Menasseh e de Vieira se terá tornado cada vez mais estreitamente sinónimo no que toca à iminência, urgência e vantagem de uma reconciliação entre judeus e cristãos num Quinto Império, expectativa que preside à elaboração de dois significativos textos de ambos: Esperança de Israel (1650) e Esperanças de Portugal (1659), respetivamente. Na déc. de 40, Menasseh torna-se professor da academia Talmud Torah, onde todas as crianças da comunidade recebiam instrução. Assim, não parece destituída de sentido a hipótese de ter sido mestre de Bento de Espinosa, outra figura célebre da comunidade sefardita de Amesterdão. Sobre a atividade de estudioso de Menasseh Ben Israel, Cecil Roth põe em relevo não só o facto de ter contribuído para dignificar e popularizar os estudos judaicos entre os não-judeus, mas também o de a exposição sistematizada da teologia judaica por si levada a efeito ter servido de base ao movimento de recuperação e estudo crítico da literatura, cultura e tradições judaicas que tem lugar no séc. XIX, o chamado Jüdische Wissenchaft. É sobretudo no plano da erudição e da antologia que a obra do autor assume relevo, de acordo com Roth. Com efeito, sobressaem, da sua pena, publicações como Humas de Parasioth y Aftharoth (1627), tradução para o espanhol dos textos do Pentateuco e dos Profetas, e Thesouro dos Dinim (1645-1647), em português, que se apresenta como uma sistematização da lei judaica para orientação dos marranos recém-conversos ao judaísmo, passando por itens de observação religiosa, como a oração, os deveres morais, jejuns e festas e preparação da comida. Ainda na déc. de 30, vêm a lume De la Ressureccion de los Muertos, Libros III (1636) e De Termino Vitae (1639). No primeiro, como se indica no título em frontispício, o autor teve o propósito de provar a imortalidade da alma e a ressurreição dos mortos. No segundo, faz uma apologia do livre-arbítrio face à ideia de predestinação, operando, em suma, uma afirmação da liberdade humana perante o seu destino, noções que assumem centralidade no seio do debate teológico nas Províncias Unidas, durante o séc. XVII. Já em Piedra Gloriosa o de la Estatua de Nebuchadnesar (1655), a sua última obra, o autor oferece uma interpretação do sonho de Nabucodonosor, segundo o comentário do profeta Daniel. Sustenta, aqui, a vinda do Messias (a “pedra gloriosa”) e a eminência do seu império temporal sobre as restantes quatro monarquias assinaladas (babilónios, persas, gregos e romanos), concluindo com uma exaltação da eternidade e perdurabilidade do povo de Israel (ISRAEL, 1655, 259). Trata-se de uma obra para a qual o pintor Rembrandt, amigo e retratista de Ben Israel, realizou quatro estampas. Antes ainda, em 1650, publicara a já referida Orígen de los Americanos, Hlarsy Hvqm, esto es Esperanza de Israel, obra igualmente relevante do ponto de vista de uma parénese do retorno do povo israelita à Terra Santa, inerente ao messianismo judaico. Neste texto, partindo do relato de um viajante ao continente americano – Antonio de Montezinos, ou Aharon Levi, que chega a Amesterdão em 1644 –, Menasseh Ben Israel procura demonstrar a migração de parte das 10 tribos de Israel para a América. Este judeu de religião, e português de nação, também ele, em tempos, preso pela Inquisição, alegava (e jurou perante o tribunal rabínico) ter contactado com povos, na região das Índias Ocidentais, cujos hábitos e práticas se assemelhavam muito às do judaísmo. Tomando a sua narrativa como credível, Ben Israel procura conferir fundamento ao relato de Montezinos através da citação de autores judeus (Abraham Aben Ezra, Levi Ben Guerson, etc.) e não-judeus (Platão, Baronio, Beroso, Arias Montano, Malvenda, etc.). As conclusões finais do livro traduzem de forma clara a perspetiva defendida pelo autor: as Índias Ocidentais foram antigamente habitadas por descendentes da casa de Israel, que desde a Tartária passaram pelo estreito de Anian, ou da China, e ainda vivem ocultos em partes desconhecidas da América, preservando a sua religião. Dispersadas as 10 tribos por várias partes do mundo, Ben Israel sustenta o seu recolhimento futuro nas províncias de Assíria e Egipto, donde passarão a Jerusalém. Segundo o autor, estas tribos reunir-se-ão num reino sob o governo de um só príncipe, o Messias, filho de David, “y nunca mas seran expulsas de sus tierras” (ISRAEL, 1881, 114-115). Menasseh Ben Israel responde, desta maneira, aos anseios messiânicos dos seus contemporâneos. Em termos práticos, a sua ação diplomática a favor do perseguido povo judaico traduziu-se numa procura de resultados concretos. Em 1655, viaja até Inglaterra com a finalidade de obter permissão para que os judeus possam estabelecer-se neste país, sem restrição ao direito de praticar a sua religião. Em última instância, e de acordo com as profecias bíblicas em Daniel 12, 7 e Deuteronómio 28, 64, apenas quando as 10 tribos estiverem definitivamente espalhadas pelo mundo a restauração da casa de Israel pode ter lugar. Aparentemente, faltava então o estabelecimento em Inglaterra do francês Angle-Terre, o “limite da terra” (cf. ROTH, 1945, 206-207). Fundamentos místicos à parte, Menasseh submete um pedido de readmissão dos judeus a Cromwell. Depois de inúmeros debates decorridos no seio do Conselho de Estado, não consegue obter o estabelecimento da comunidade de acordo com as condições que pretende. Desapontado, regressa dois anos depois à Holanda, na sequência do falecimento do seu filho Samuel, em setembro de 1657. Dois meses depois, no dia 20 de novembro, o pai segue o filho, falecendo em Middelburg. Os esforços iniciados por Menasseh Ben Israel revelaram-se, anos mais tarde, proveitosos, sendo que a comunidade judaica inglesa conseguiu de Carlos II um alvará de proteção, em 1664. Finalmente, em 1698, o Act for Suppressing Blasphemy reconheceu legalidade à prática do judaísmo em Inglaterra. Obras de Menasseh Ben Israel: Safah Berurah (s.d.); Humas de Parasioth y Aftharoth (1627); Conciliador, o de la Conveniencia de los Lugares de la S. Escriptura, que Repugnantes entre si Parecen (1632-1651); De la Ressureccion de los Muertos, Libros III (1636); De Termino Vitae (1639); Thesouro dos Dinim (1645-1647); Orígen de los Americanos, Hlarsy Hvqm, esto es Esperanza de Israel. Publicado en Amsterdam 5410 (1650) (1650); Even Yeqarah. Piedra Gloriosa o de la Estatua de Nebuchadnesar. Con Muchas y Diversas Authoridades de la Sagrada Escritura y Antiguos Sabios (1655).     Marta Marecos Duarte (atualizado a 03.02.2017)

Religiões Personalidades

islamismo

A relação da Madeira com o mundo islâmico é tão antiga quanto o próprio reconhecimento e povoamento do arquipélago, pois dois dos três futuros capitães do donatário – Zarco e Teixeira – evidenciaram-se aos olhos do infante D. Henrique na tomada de Ceuta e, posteriormente, no descerco da mesma cidade. A expansão portuguesa, começada, precisamente, no norte de África, deu origem à formação de um contingente de cativos que, feitos escravos, iriam, mais tarde, para o arquipélago, onde, aparentemente, foram usados, mais do que no cultivo da cana-de-açúcar, como elementos representativos do patamar social elevado dos seus possuidores. Apesar de irmanados no estatuto, os escravos não eram todos tratados da mesma maneira, conforme cedo se evidencia e foi captado por Júlio Landi, um conde italiano que escreveu, em 1530, sobre as impressões que lhe ficaram da Madeira. Diz, então, Landi, que os escravos que se encontravam na Ilha o eram por uma de três causas: “ou pela religião, como são os que eles chamam mouros, pois observam a religião de Maomé; ou pela cor, como os etíopes, por eles chamados negros; ou ainda pela procriação, como os que nascem de um negro ou de uma branca, ambos escravos, ou então de uma negra e de um homem livre, ou vice-versa, e estes são chamados mulatos”. Um pouco adiante, registava o Italiano que eram muitos os mouros criminosos que fugiam dos patrões, o que se explicava pela dificuldade que tinham em suportar a escravatura, “pois primeiramente foram livres; mas quando são feitos prisioneiros de guerra logo são reduzidos à escravidão e mantêm-nos agrilhoados”. O mesmo se não passava com os negros, tidos como, “na maior parte, bons e fiéis, embora de engenho rude”, caraterísticas que, apesar de os não isentarem de uma vida dura, faziam com que não andassem “agrilhoados como os mouros, a não ser por qualquer crime” (ARAGÃO, 1981, 92). Segundo Eduardo Pereira, a população madeirense devotava mesmo um ódio particular à comunidade mourisca, o que o autor ilustra com a existência, no alto da serra do Porto Moniz, de um sítio chamado Cova do Mouro, onde se encontra um monte de pedras que assinalaria o local onde teria sido morto um escravo mouro. A persistência da desconfiança que os ilhéus nutriam pelos muçulmanos atesta-se pelo facto de, ainda séculos depois, a população que por ali passava atirar pedras ao mouro, ato que se fazia acompanhar da imprecação “aquele cão” (PEREIRA, 1968, 192). A maior aversão que os madeirenses nutriam pelos escravos de religião islâmica, se comparada, por exemplo, com alguma tolerância que demonstravam aos negros ou mulatos, pode encontrar justificação também no permanente estado de guerra que opunha Portugal e a Berbéria, particularmente nos sécs. XV e XVI, conflito que mantinha aceso o espírito de cruzada e que implicava penosos contributos da Madeira, em gentes e bens. Os elevados custos que essas campanhas representavam para o arquipélago aguçavam a animosidade contra o mouro que, privado de liberdade, acorrentado e ainda negativamente discriminado, reagia, procurando praticar o seu culto, de acordo com uma tradição que atribui a estes escravos a escavação de um tufo de pedra mole, na freguesia do Faial, onde funcionaria uma improvisada mesquita, depois descoberta e destruída por Irvão Teixeira. Um descendente deste último, António Teixeira Dória, mandou edificar, nesse mesmo local, quase à laia de exorcismo, a capela de N.ª Sr.ª da Penha de França, que se instituiu em 1680. As guerras do norte de África, porém, não geravam apenas mouros cativos. O reverso desta medalha era, precisamente, o aprisionamento de cristãos em terras muçulmanas, contingente que se acrescentava com as razias que as embarcações muçulmanas periodicamente faziam às costas do arquipélago da Madeira, onde se visava, sobretudo, o Porto Santo, que era muito mais difícil de defender. Assim, esta ilha era presa fácil de piratas berberes e, por essa razão, com alguma frequência arrasada, sendo a grande maioria da sua população aprisionada e levada para o norte de África, onde a aguardava a servidão, e, em casos assinalados, o resgate, quase sempre muito bem-vindo. Há, no entanto, que registar alguns casos em que, ao contrário do que seria expectável, os cativos não apreciavam a libertação, como aconteceu com um cativo que foi resgatado por Tristão das Damas, filho de Tristão Vaz Teixeira, e segundo capitão de Machico. Tristão filho, também chamado “das damas”, por atos da sua vida privada que implicaram acusações de trato ilícito com mulheres, inclusivamente da sua família próxima, acabou por ser preso e condenado a um exílio que fez com que, passados 10 anos, viesse solicitar ao Rei D. Manuel I um perdão que o obrigou a diversas penalizações, entre as quais se contava a obrigação de resgatar dois cativos do norte de África. O capitão assim fez, tendo contribuído para a libertação de “um João, criado de Bartolomeu Sampaio” e de “Diogo Peres, morador em Palmela”. Se Diogo Peres aceitou o fim do cativeiro, o mesmo não aconteceu com João, o “qual tornara a fugir para terra de moiros com uma moira” (FERREIRA, 1959, 168-169), o que demonstra que, por vezes, os cativos acabavam por reconstruir a sua vida em terras de infiéis, preferindo voltar a essa existência a trocá-la pela anterior permanência entre cristãos. A maioria das situações de cativeiro, porém, resultava na conversão forçada de cristãos à fé muçulmana, com obrigação de cumprirem os rituais islâmicos, de adotarem traje e nome “de turco” e de se sujeitarem aos variados trabalhos impostos pelos seus amos, conforme se pode confirmar pelos processos da Inquisição que se reportam a antigos cativos que, depois de alcançarem a liberdade, se entregavam ao Santo Ofício para se penitenciarem do desvio da ortodoxia católica. O modo como estes madeirenses tinham sido feitos reféns variava entre estarem embarcados e a nau em que seguiam ser aprisionada e serem moradores no Porto Santo e apanhados pelas razias muçulmanas. Depois de levados a Argel, eram comprados como escravos, e os amos, ao mesmo tempo que lhes forneciam aptidões profissionais – jardineiros, tecelões, alfaiates –, pressionavam-nos a adotar a fé islâmica. Os interrogatórios a que, mais tarde, depois de se entregarem ao Santo Ofício, eram sujeitos insistiam na averiguação do grau de compromisso dos “renegados” com a nova religião, sendo inquiridos sobre se tinham ou não sido circuncidados (a maioria fora-o), se alguma vez tinham entrado em mesquitas, se sabiam as orações muçulmanas, se praticavam o jejum dos mouros (o Ramadão), e se se tinham abstido do consumo de carne de porco e de vinho. As respostas eram normalmente afirmativas, mas a justificação para esse comportamento vinha sob a forma do medo das represálias e dos maus tratos a que se poderiam sujeitar caso o não fizessem. Declaravam, porém, os cativos que a sua fé era apenas aparente, proferida com a boca, mas mantendo o coração fiel à doutrina da Santa Madre Igreja. A forma como se tinham conseguido libertar do jugo muçulmano passava, geralmente, por, a dado momento, os seus senhores os terem resolvido empregar em atividades de corso. A bordo, por vezes, a tripulação era maioritariamente constituída por cristãos “renegados” que aproveitavam a disparidade de forças para se revoltarem contra os muçulmanos e forçarem o desembarque em terras cristãs. Também acontecia alcançarem a liberdade através de um naufrágio ou da captura por barcos franceses ou espanhóis, o que lhes proporcionava o regresso a Portugal, onde se entregavam, então, às mãos da Inquisição. Apesar de serem incontestáveis as razias mouras ao Porto Santo, o inverso também acontecia, como se pode constatar a partir de uma descrição que consta de um manuscrito, Lembranças de Algumas Coisas Antigas que Estão Esquecidas de Algumas Gerações da Ilha do Porto Santo com transcrição de Maria Favila Paredes. Nesse documento, dá-se conta de que no tempo em que o “Marquês de Lançarote ia fazer saques aos mouros de Safim e Sal […] vinha ao Porto Santo” buscar pessoas que o acompanhassem, levando-as para fazer assaltos de que resultavam apreensões de “gados, e bestas e gente”. Destes saques obteve o Porto Santo a receção de uma casta de gado preto e branco e “das carnaduras borquilhas”, mas também de escravos, entre os quais de uma escrava moura, que morreu afogada num poço que se passou a chamar o “poço da moira” (PAREDES, 2005, 68). O contacto de alguns séculos entre madeirenses e muçulmanos acabou por deixar marcas na cultura insular, que fazem, mesmo, parte da identidade madeirense. Desta forma, temos, em termos gastronómicos, o cuscuz e o bolo do caco; no campo do vestuário, a carapuça tradicional; enquanto na toponímia as alusões aos mouriscos são encontradas no Lombo do Mouro, no Paul da Serra, na Cova do Mouro (Porto Moniz), na Cova do Moirão (Arco da Calheta e Serra de Água), e na Eira da Moura. A tolerância religiosa viria a tornar-se uma realidade no seio das sociedades ocidentais, nas quais se integra o arquipélago da Madeira, que viu abrir a primeira mesquita no Funchal a 14 de dezembro de 2009, passando a pequena comunidade muçulmana a dispor de local adequado às suas reuniões que, até então, se faziam numa habitação particular.   Cristina Trindade (atualizado a 03.02.2017)  

Religiões

confrarias

As confrarias ou irmandades são organizações religiosas muito antigas, que se instituíram desde a Idade Média e se estabeleceram na Madeira com os primeiros povoadores. As confrarias eram então especialmente instituídas para os que desejavam as vantagens de ação prática que ofereciam as organizações religiosas, no sentido de uma certa proteção religiosa, social e até económica, na vida e na morte, mas que não sentiam vocação para entrar para as verdadeiras ordens religiosas. Dentro deste quadro, os madeirenses, desde os meados do séc. XV, resguardaram-se em confrarias, devendo as mais antigas da Ilha ser as dos marítimos e pescadores, sob a proteção do “Corpo Santo”, denominação popular de S. Pedro Gonçalves Telmo (1190-1246), arrogando-se a do Funchal de ser a mais antiga de todas as confraria da Madeira. As primeiras informações que temos do funcionamento de confrarias não apontam, no entanto, para a do Corpo Santo, mas sim para a da igreja de Santa Maria de Cima, onde depois se viria a levantar o convento de Santa Clara. Na vereação da câmara do Funchal, de 7 de fevereiro de 1489, foi perguntado a Gonçalo Eannes, cerieiro, “pela cera que tinha da confraria de Santa Maria de Cima e do círio”, ao que o mesmo respondeu que iria ver no “seu livro e o que achasse, diria por juramento” (COSTA, 1995, 238). Não se volta a mencionar o assunto e, na vereação de 17 de setembro de 1491, acordaram os vereadores a esse respeito que Pero Correia, que então tinha a “cera da confraria de Santa Maria de Cima”, “a emprestasse por peso” a quem o quisesse, devendo a mesma ser pesada perante o secretário da câmara (Ibid., 293). Não é fácil interpretar corretamente o que seria esta confraria à época e tal não invalida que, no cabo do calhau de Santa Maria, não estivesse já a funcionar a Confraria do Corpo Santo, cuja capela é mencionada nesses anos como já levantada. Quase todas as organizações profissionais do Antigo Regime tiveram, de acordo com o espírito do tempo, carácter religioso, e esse aspecto da sua atividade tinha, no sentir dos membros, tanta importância como a sua finalidade secular. Em muitos casos, os oficiais que formavam uma corporação organizavam-se independentemente desta numa confraria religiosa para em comum praticarem os atos de devoção, dentro dos princípios da caridade, fé e piedade. Existe assim um certo paralelismo entre corporação e confraria, quando não mesmo uma certa confusão e sobreposição. Às primeiras deviam corresponder os aspectos técnicos e profissionais, devendo organizar-se no âmbito camarário e dos ofícios e mesteres reunidos na Casa dos 24, e às segundas os encargos pios e de assistência, com especial relevância para o acompanhamento dos enterros, organizando-se no âmbito geral da paróquia ou freguesia onde estivessem instituídas. As primeiras confrarias teriam assim tido por base vínculos profissionais, num quadro, ainda herdado da Idade Média, no qual as atividades profissionais passavam de pais para filhos, servindo também as confrarias para a manutenção desses vínculos. Os oficiais mecânicos do Funchal, e.g., como os ferreiros, os serralheiros, os caldeireiros, os cutileiros, os ferradores, os picheleiros e afins, que trabalhavam com o ferro e o fogo, associavam-se sob a bandeira de S. Jorge, proclamando que a Confraria da Sé do Funchal tinha sido fundada em 1515, embora depois refiram 1562 e só se conheça documentação a partir de 1667. Num curto espaço de tempo, esta passou a associar também os barbeiros, os douradores e outros, aparecendo inclusivamente, na segunda metade do séc. XVII, mulheres e escravos e datando, assim, dos meados desse século o esbatimento progressivo dos iniciais vínculos profissionais nestas organizações. As confrarias organizavam-se sob a proteção de um orago e de acordo com um compromisso, sendo administradas por um juiz, um reitor ou um presidente, um escrivão, um tesoureiro e um número definido de mordomos, de acordo com os seus estatutos, sendo o de confrades mais ou menos ilimitado. A base económica eram as esmolas de entrada dos confrades, a que se seguiam as cotizações e os legados pios, sempre carregados com missas pela alma do doador, de forma a ser encurtada por esses sufrágios a sua permanência no Purgatório, como em muitos testamentos se refere. Uma das primeiras preocupações e obrigações da confraria era assim a aquisição de uma arca para guardar os seus bens e documentos, que só podia ser aberta na presença dos elementos diretivos. Sendo associações detentoras, por vezes, de avultada capacidade económica e financeira, concediam empréstimos em numerário aos seus confrades, mas também os apoiavam noutras situações – não só a eles como às suas famílias na eventual falta dos mesmos –, podendo conceder pensões, constituir pequenos hospitais e recolhimentos, etc. No quadro geral da sua constituição, encontram-se as Misericórdias, essencialmente assistenciais, com base nas quais vão surguir os primeiros hospitais e a assistência aos pobres de uma forma geral, à infância, presos e condenados, assim como ao enterramentos dos mortos (Cemitérios). Ao longo do séc. XVI, a constituição de confrarias na Madeira terá sido exponencial, embora mais em intenção que em efetivação. Ainda assim, com a crise religiosa vigente na Europa nos meados desse século e com a resposta católica que se consubstanciou na reativação dos tribunais da Inquisição, na implantação do Santo Ofício e, depois, na divulgação das normas emanadas pelo Concílio de Trento, a sua multiplicação é um facto. A Igreja assume então aspectos algo repressivos e, ao mesmo tempo, sigilosos, pelo que a proteção dada pelas confrarias passa a ser quase essencial à comum vida social e até profissional de qualquer cidadão. A sua multiplicação e capacidade de angariação de fundos levarão, entretanto, também a uma crescente necessidade de um maior controlo por parte das autoridades religiosas. As primeiras normas centralizadoras em relação às confrarias aparecem nas Constituições Sinodais de D. Jerónimo Barreto (1543-1589), promulgadas em 1578 embora só editadas alguns anos depois, especificando que no “sagrado Concílio Tridentino é ordenado que os administradores assim eclesiásticos como seculares da fábrica de qualquer igreja, ainda que seja catedral, hospital, confraria, ou outros quaisquer lugares pios sejam obrigados em cada um ano a dar conta aos ordinários da sua administração e cargo”. Acrescenta-se ainda: “e não vindo os mordomos dar a tal conta, os confrangerá a isso com penas pecuniárias que aplicará para a dita confraria e meirinho, e com censuras, se necessário for” (BARRETO, 1578, 138-139). As normas de 1578 tinham carácter geral e visavam, essencialmente, as fábricas e os legados pios, tal como as receitas e despesas, quer das igrejas quer das confrarias, insistindo: “e o que se ficar devendo fará logo com efeito entregar e meter na arca da fábrica, que em cada igreja deve haver com duas chaves, uma das quais terá o recebedor e outra o escrivão do cargo”, determinação depois ampliada para três chaves, no caso das arcas de confraria, sendo a terceira para o vigário ou para o reitor da confraria, muitas vezes a mesma pessoa. A fiscalização das contas deveria ser feita “pelo S. João” ou até “oito dias depois da festa de que é a confraria” (Id., Ibid.), embora este assunto só se cumprisse verdadeiramente nas visitações. Nas seguintes Constituições, chamadas Extravagantes – porque fora do que já havia sido promulgado e por as anteriores “serem breves e não compreenderem tudo”, tendo havido ainda “casos que tinham necessidade de outras novas”, como mandou escrever D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) na abertura das editadas em 1601 (LEMOS, 1601, fl. 2) –, logo se determina que as eleições das confrarias da Sé tinham obrigatoriamente de ter a assistência do deão, ou seu representante, salvo a do Santíssimo (Id., Ibid., fl. 29). Associada às eleições estava a apresentação das contas, a serem entregues oito dias depois ao vigário geral, e, caso tal não acontecesse, seriam multadas em 1$000 réis “para a chancelaria e meirinho” (Id., Ibid., fl. 30), o que anteriormente não ficara estipulado. Para além disso, deixava-se cair o dia de S. João para só se mencionar a festa do orago. Canonicamente as confrarias passaram a reger-se, a partir de 1604, pela Constituição de Clemente VIII e, a partir de 1610, pela de Paulo V. Voltava-se a insistir que para a sua fundação se requeria o consentimento do prelado, que examinava os seus estatutos, geralmente sob a forma de “compromisso” depois alargado a “estatuto”, a quem competia dar-lhes ou negar-lhes a aprovação. Podiam fundar-se em todas as igrejas, embora a Congregação do Concílio de Trento, em 1595, proibisse as de homens nos conventos de religiosas. Clemente XIII também proibiu duas confrarias do mesmo santo ou evocação na mesma povoação, excetuando as “sacramentais” e as de doutrina cristã, que deveriam funcionar em todas as paróquias. As confrarias, para além do aspecto religioso, constituíam também um espaço de afirmação social, ostentando os irmãos eleitos para a mesa as suas varas nas festas, muitas vezes em prata, que lhes conferiam o estatuto e os restantes as suas capas, diferenciando-se assim dos demais. Por outro lado, as suas mesas de reunião, geralmente anexas aos respetivos altares, eram um local de encontro privilegiado, ali se trocando informações e, inclusivamente, fazendo negócios. O visitador da sé do Funchal regista, e.g., em 1601, ter visto nas mesas das confrarias, durante as missas, ajuntamentos de algumas pessoas que “se encostam a praticar com os estão nelas sentados, no que dão torvação e se ocasionaram já desordens”. Para evitar esses encontros, que perturbavam os atos religiosos, determinou, sob pena de excomunhão, “que mais se não juntem nem encostem a praticar nas ditas mesas” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 33, fls. 30-30v.). As questões de prestígio social de uma confraria incluíam igualmente a aproximação às autoridades eclesiásticas, como era o caso dos elementos do cabido que, como membros de um órgão coadjuvante do prelado, especialmente numa diocese com longos períodos de sé vacante, motivavam as confrarias a solicitarem constantemente a sua presença, palavra e proteção. Na sequência das Constituições de D. Jerónimo Barreto e da implantação da organização tridentina, o cabido deliberou inclusivamente, em 1584, “não irem daqui por diante a uma solenidade de confraria, fora das da Sé, sem que pelo caminho se dessem dois mil réis, fora a esmola da missa e dos ministros que se vestem para ela, que será o que somente costumam dar” (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, liv. 2, 151v.-152). Nos primeiros anos de fundação da sé do Funchal, não devem ter funcionado ali confrarias, pois as primeiras teriam sido instituídas na velha igreja de N.ª Sr.ª do Calhau e lá continuaram a funcionar, salvo a do Santíssimo Sacramento, obrigatória em todas as igrejas matrizes, que em 1566 já tinha altar próprio na sé, dado então como do Santo Sacramento (Sé do Funchal). Esta confraria só oficializou o seu compromisso no séc. XVII, mas no século seguinte arvorava-se na mais antiga da sé, com início logo da primeira metade do XVI, anterior ainda a 1515, data que depois várias delas citam como a da sua fundação, o que se referia, com certeza, à vaga intenção de se reunirem como tal, longe de toda a oficialização a que foram posteriormente obrigadas. Nesse quadro, talvez se tenha igualmente instalado, pela mesma altura, a confraria de S. Miguel Arcanjo, anjo protetor de Portugal, cujos confrades alegavam a sua fundação também em 1515. O arcanjo S. Miguel era então devoção muito especial da casa real portuguesa e de D. Manuel em particular, pelo que logo após a instituição da sé do Funchal seria lógica a fundação de uma confraria dessa evocação na catedral, o que, a ter-se verificado, não foi, no entanto, no quadro institucional que determinou depois o Concílio de Trento. Nesse quadro, somente bastante mais tarde, em 1572, a mesma veio a ser instituída e associada aos santos irmãos padroeiros dos sapateiros, provavelmente para, juntando as duas devoções, ganhar um outro peso económico. Mas tal também alegaram depois as confrarias de S. Jorge e de S. Roque. Em 1602, requeriam os “mordomos da confraria do Bem-aventurado S. Roque sita na sé da cidade do Funchal da ilha da Madeira, que no ano de 1521, por causa do grande mal da peste, que o povo da dita cidade padecia”, se juntaram as autoridade da cidade e, lançando sortes, saíra por padroeiro Santiago Menor (Voto da cidade do Funchal), “ao qual logo dedicaram casa e votaram por si e por seus sucessores fazer-lhe a festa cada ano”, o que, como já escrevemos, só veio a ocorrer depois. Acrescentam ainda os mordomos que “logo tomaram juntamente por seus protetores os Bem-aventurados S. Sebastião e S. Roque” e que a câmara ficara de apoiar economicamente as suas festas. Acontecia que a câmara apoiava as festas de S. Sebastião “cada ano, por ordinária, na renda da imposição dos vinhos”, com vinte mil réis, pelo que requeriam ao rei que o mesmo se passasse com a sua confraria, ao que o rei acedeu a 25 de abril de 1603 (Ibid., avulsos, mç. 22, doc. 24). No entanto, uma coisa seria a Confraria de S. Sebastião, instalada numa capela da câmara do Funchal, e outra seria a Confraria de S. Roque, instalada na Sé, mas o Rei aceitou as razões evocadas. Em carta do bispo D. Fr. Fernando de Távora (c. 1510-1577), datada de 15 de junho de 1572 e escrita em Lisboa, pois que nunca foi à sua diocese, mandava o prelado que se levantassem mais dois altares no transepto, dado que os existentes eram poucos para o serviço da Sé, prevendo-se a instalação de mais duas confrarias, cujos estatutos enviou depois. Não foram, no entanto, enviados diretamente ao cabido, como seria lógico, mas para os confrades das Confrarias de S. Miguel e, posteriormente, da Ascensão do Senhor, que os apresentaram, depois, para aprovação ao mesmo cabido. A Confraria de S. Miguel e dos santos irmãos Crispim e Crispiniano, aos quais tinham os sapateiros do Funchal obrigação de mandar “cantar missa no dia” 24 de outubro, dia que lhes era dedicado, foi instituída oficialmente por aprovação do prelado de 26 de agosto de 1572, ordenando-se-lhe que para ela fizessem um “retábulo muito bom” (Ibid., avulsos, liv. 2, fls. 114-115). O assunto foi apresentado depois ao cabido, em reunião na sacristia, a 29 de setembro, pedindo os membros da confraria para se servirem do altar de S.to António, no qual “pudessem fazer sua confraria, com sua mesa e oficiais”, obrigando-se os suplicantes ao encargo do “ornato” e da festa anual do seu santo protetor. Prometiam os confrades de S. Miguel, S. Crispim e S. Crispiano também recompensar o cabido com “a esmola acostumada que dão por missa, que é de mil réis de pensão, além da esmola que se costuma dar ao sacerdote e ministros que os visitem”, entre outros compromissos. O auto foi assinado no transepto da sé, sobre o altar da Ascensão (Ibid., liv. 2, fls. 117-118). A situação indica desde logo um aspecto importante: que os altares eram do cabido da sé, que sobre os mesmos exercia absoluto controlo, assim como uma coisa era a institucionalização da confraria, da responsabilidade do prelado, e outra era o seu funcionamento, da responsabilidade do cabido. Talvez daí o pormenor do auto ter sido assinado no braço oposto do transepto, onde estava então o inicial altar da Ascensão. A confraria veio a funcionar talvez de início e como pediram, no altar de Santo António, mas depois em altar montado na parede nascente da mesma capela, na sequência do altar de S. Roque, que já existia em 1566 (FRUTUOSO, 1968, 347) (Saque dos corsários ao Funchal). Em 29 de outubro de 1572, instituiu-se a Confraria da Ascensão do Senhor, de “irmãos nobres”, cujo pedido a D. Fr. Fernando de Távora partiu de “um nobre da casa d’el-rei” e da qual foi primeiro reitor Gaspar Mendes de Vasconcelos, por certo o interlocutor em causa, chegando a instituição da confraria ao cabido na mesma forma da de S. Miguel. A confraria pretendia celebrar e instalar-se na capela de Santana, referindo o bispo, em Lisboa, que tinham a obrigação de fazer retábulo e obras “conforme suas possibilidades” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 2, fl. 115), o que não entendemos bem, dado já existir um altar da evocação da Ascensão. As contrapartidas em relação ao cabido eram também nos mesmos termos das anteriores. Os confrades da nova Confraria da Ascensão do Senhor, pouco tempo depois, entre 1573 e 1590, fazendo jus à condição de “irmãos nobres”, encomendariam ao célebre pintor Fernão Gomes (1548-1612) o retábulo para o altar, das melhores tábuas e com as maiores dimensões existentes não só na sé como em toda a ilha, dado possuir mais de três metros de altura. Em 1603, em princípio, temos informação também da existência de uma Confraria de S.to António na Sé. O assunto parece ter sido despoletado por um milagre ocorrido na aluvião do primeiro de dezembro de 1601, conforme escreve Henriques de Noronha. Segundo este autor, nesse dia a Ribeira de João Gomes transbordou e começou a inundar a igreja do Calhau, chegando a “quatro palmos de água, quando os sacerdotes e seculares mais zelosos se arrojaram a salvar o Santíssimo Sacramento e as imagens”. Com a de Santo António se abraçara “Diogo Barbosa, ourives de oiro e a depositou em sua casa”, reparando então “que tinha a cor do rosto desnudada, os olhos elevados ao céu, vermelhos e chorosos, com algumas lágrimas que tinham corrido sobre o Menino Jesus”. A imagem foi depois levada para a igreja de Santiago, posterior matriz de Santa Maria Maior, e “repetiu o Santo outra vez as lágrimas e [foi] justificado o sucesso, primeiro pelo vigário-geral, António Moniz da Câmara, e logo pelo prelado, o venerável bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos”, pelo que, ouvido depois “um conselho de teólogos”, foi lavrada sentença sobre o milagre e a mesma publicada a 12 de janeiro de 1602 (NORONHA, 1996, 338-339). A 23 de maio de 1603, a pedido da Confraria de S.to António da Sé e da congénere de N.ª Sr.ª do Calhau, D. Luís Figueiredo de Lemos, ordenava que fosse “festa de guarda o dia de Santo António” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 6, doc. 18). A confraria deveria estar em instalação e, com o falecimento do prelado, não se deve ter passado à sua oficialização com estatutos, pois não se volta a referir a Confraria de S.to António da Sé até aos finais do século, quando os mordomos pediram ao Rei a reforma do altar e, na desmontagem do antigo, na tarde de 20 de fevereiro de 1697, o pedreiro Teodósio Pestana caiu de cima do mesmo. O pedreiro salvou-se por ter conseguido agarrar-se à corta do lampadário, tendo o sucedido sido considerado um milagre e lavrando-se auto em 1702 (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, mç. 4, doc. 20). Estas organizações eram detentoras, por vezes, de avultada capacidade económica e financeira, especialmente no Funchal. Administravam prédios arrendados e foros, que tinham herdado com determinadas obrigações pias, concediam empréstimos em numerário aos seus confrades, e não só, constituindo os juros uma das suas principais fontes de rendimento. Não admira assim que a principal preocupação das autoridades religiosas fosse o controlo das contas e dos elementos colocados à frente das confrarias. Cite-se, e.g., o “instrumento de obrigação de juro a retro”, assinado na casa do cabido da sé a 5 de setembro de 1697, entre o Cón. Pedro Bettencourt Henriques, em nome da Confraria do Amparo, e o P.e Daniel Gonçalves Jardim, por si e em representação da sua mãe e irmãos. A confraria emprestava 100$000 réis com um juro anual de 6$250 réis, “em dinheiro de contado”, “que é por razão do estilo da praça, de 6 e 4 por cento”, isto é 6,25 %. Como garantia, os devedores hipotecavam diversas propriedades na freguesia da Ponta do Pargo, cultivadas de vinhas, árvores de fruto e inhame (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, mç. 21, doc. 5). As confrarias estendiam-se, entretanto, por toda a cidade, com sede nas igrejas matrizes, mas também pelos conventos da cidade e da ilha, tal como pelas freguesias rurais e respetivas matrizes, estando também, no entanto, pontualmente sedeadas em determinadas capelas isoladas, as ermidas. Porém, o movimento de doações e de encargos, face à concentração populacional na área do Funchal, quase não tem comparação com o que se passa no resto da ilha. O P.e Francisco Vaz da Corte, vigário de S. Pedro do Funchal, e.g., a 3 de dezembro de 1608, deixou à Confraria do Santíssimo da sua igreja uma naveta de prata para o incenso, “no valor máximo” de 20 cruzados; mas também 15 cruzados à congénere Confraria da Sé e 2$000 réis à da Candelária de S. Pedro, para a ajuda do retábulo; e 2 cruzados por ano à do Bom Jesus da sé, impostos numa fazenda que tinha na Carne Azeda (VERÍSSIMO, 2000, 390). No séc. XVIII, algumas confrarias do Convento de S. Francisco do Funchal funcionavam quase como se se tratassem de casas de penhores, o que aliás acontecia com quase todas as restantes da ilha, mas aqui de forma institucional e oficial, registando o empréstimo, inclusivamente na secretaria do governo em S. Lourenço. A 23 de março de 1757, e.g., o P.e Manuel Franco Herédia, de Machico, solicitou um empréstimo a esta confraria de 20$000 réis, com um juro anual de 1$000, apresentando como penhores um cordão de ouro e um par de sevilhanas, avaliados em 38$950 réis (Id., Ibid.). O Convento de S. Francisco do Funchal detinha uma excecional importância na vida social insular e era tradição, e.g., entre os finais do séc. XVIII e os meados do séc. XIX, os governadores, entrarem para membros da Confraria de N.ª Sr.ª da Soledade como “Irmão Protetor e Presidente da Confraria”, após tomarem posse. O último foi o prefeito e Cor. Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, com a mulher, “a Ilustríssima e Excelentíssima Senhora D. Anna Mascarenhas de Athaide”, que assina o termo a 14 de março de 1835, “prometendo não só guardar as obrigações do Compromisso, mas também promover o aumento Espiritual, e temporal da Mesma Confraria” (ABM, Governo Civil, liv. 246, fl. 71). O Convento de S. Francisco do Funchal, entretanto, foi extinto e desocupado por forças militares, a 9 de agosto do mesmo ano de 1834, às ordens do mesmo prefeito, que pouco depois mandava o provedor da Alfândega do Funchal tomar conta do edifício. Entre os finais do séc. XVI e os inícios do séc. XVII instituíram-se assim confrarias um pouco por toda a ilha, sendo comum, inclusivamente, as pessoas pertencerem a várias confrarias instituídas em várias igrejas, entretanto também abertas a mulheres. Nos meados do séc. XVI, e.g., já se detetam nove confrarias na freguesia de Santa Cruz, sendo ainda criadas no século seguinte as de S. Benedito, dos Santos Passos e da Ordem Terceira de S. Francisco. O testamento de Filipa de Sousa, de 1680, benfeitora da Misericórdia daquela vila, declara que era irmã das Confrarias de N.ª Sr.ª do Rosário, dos Santos Passos, N.ª Sr.ª da Piedade, de S.to António e de S. Benedito. Outra benfeitora, Catarina de Ornelas, tinha declarado, em 1658, que era irmã de N.ª Sr.ª do Rosário, S.to António, Nome de Deus e S. Bento do Convento, que, cremos, era no Convento da Piedade de S.ta Cruz, tal como também aí seria sedeada a dos Irmãos Terceiros (Convento da Piedade de Santa Cruz). A instalação das confrarias no norte da ilha foi mais tardia e difícil, dada a escassez de recursos e o isolamento geral dos pequenos núcleos populacionais. A exceção vai para a freguesia de S. Jorge, com uma certa liderança naquela costa, que logo nos inícios do séc. XVI, a 4 de dezembro de 1515, era dotada com um importante conjunto de alfaias enviadas de Lisboa. Pelos provimentos das visitas da primeira metade do séc. XVII, publicados pelo P.e Silvério Aníbal de Matos, antigo pároco de S. Jorge, temos muitas informações sobre a vivência das confrarias, então montadas sem estatutos superiormente aprovados. Tal terá sido o caso da Confraria do Santíssimo Sacramento, que teria resultado de um privilégio dos reis de Portugal a essa freguesia para celebrar a Festa do Corpo de Deus no seu dia próprio e à qual deveriam concorrer os eclesiásticos das restantes paróquias do Norte. Nos provimentos da visita de 20 de julho de 1647, refere-se um pedido feito pelos irmãos dessa confraria, que dado se terem “comprometido a dar um arrátel de cera cada um, em cada ano para a dita Confraria e os gastos que se fazem com os padres na Semana Santa”, pretendiam colmatar parte dessa despesa com a posterior venda da cera “para pagamento dos ditos padres” (MATOS, 2000, 16), solicitação não atendida pelo visitador. As festas da Semana Santa, a que deveriam acorrer os demais vigários da costa norte, os quais, nesta época, se limitavam praticamente só ao de Santana e a alguns outros que, entretanto, se encontrassem na área, levantaram sempre inúmeros problemas. Na visita de 1636, refere-se que “alguns fregueses se queixam da opressão que tinham em darem de comer aos padres que vinham fazer a festa e que antes lhes queriam dar dinheiro seco” a cada um deles, “pelos três comeres da véspera, do dia e do seguinte”. Nessa altura o visitador estabeleceu então a verba de $450 réis, “os quais lhes darão os mordomos de seus bolsos, não lhe dando de comer”, entendendo que tal dinheiro deveria sair “das esmolas das confrarias”. Entretanto, também o vigário de S. Jorge entendia que deveria ser pago pelo trabalho acrescido desses dias, tal como acontecia aos outros padres, acabando o visitador doutor Lucas Gonçalves Correia, a 18 de agosto de 1650, por entender que deveria ser igualado “na benesse com os vigários das outras paróquias”, até por “saber cantar” e “pelo trabalho dos tais dias, porque conforme sua obrigação, não está obrigado a tanto quanto a devoção cristã se tem aumentado nas procissões, paixões e mais cerimónias da dita semana” (Id., Ibid., 17). A festa do Corpo de Deus, no entanto, envolvia grandes custos e, na visita de 23 de julho de 1681, o cónego Dr. Marcos da Fonseca Cerveira, “informado que os mordomos do orago desta igreja, sendo seis, tinham muitos gastos para assistirem nela à festa do Senhor S. Jorge, mas também em dia de Corpo de Deus”, determinava uma nova articulação dos encargos. Assim, deveriam eleger-se dez mordomos, “a saber, seis para a festa de S. Jorge e quatro para assistirem com o sustento aos padres que vierem para a procissão do Corpo de Deus”, repartindo os encargos por um número superior de fregueses, “para que lhes seja aliviado o gasto” (Id., Ibid., 18). Teria sido na sequência do aumento dos encargos sobre os fregueses, que vinha de uma anterior visitação, que, logo em 1643, “algumas pessoas devotas e zelosas do serviço de Deus” se queixavam ao visitador, o licenciado Francisco Rebelo, vigário da Ponta do Sol, “que se extinguiram nesta igreja de alguns anos a esta parte, algumas confrarias e devoções que nela havia”, pelo que se não faziam as festas a alguns santos, entendendo-se que era “falta muito notável em um povo tão cristão”. O visitador insistia então perante “todos que de novo tornem a ressuscitar as suas antigas devoções, e se ofereçam a servir e festejar os santos, que seus pais e avós com tanta devoção festejavam”, acrescentando: “E obriguem os mesmos Santos a intercederem por eles a Deus Nosso Senhor na Sua Glória” (Id., Ibid., 17). A inicial igreja do calhau de São Jorge tinha altar-mor e dois altares colaterais ou laterais – um dos quais, provavelmente, servindo de altar do Santíssimo –, devotados ao Bom Jesus e a Nossa Senhora da Encarnação. Embora não encontremos referências concretas à articulação interna da matriz, a referência a três altares e as determinações de instituição de confrarias com as devoções do Bom Jesus e de Nossa Senhora da Encarnação levam a pensar já se encontrarem levantados, claro que sem a qualidade dos que viríamos a conhecer na matriz da Achada. As visitações referem ainda a necessidade de constituição de uma confraria do orago da freguesia, o que era obrigatório na sequência das determinações do Concílio de Trento, que funcionaria depois no altar-mor com essa evocação. Nesse quadro, nos provimentos da visita de 1631, o licenciado Francisco de Aguiar determinava “ordenar a Irmandade do Bom Jesus” de modo a que tivesse os seus compromissos devidamente assinados, tal como os da irmandade de Nossa Senhora da Encarnação, para serem assinados e terem “licença do Ordinário”. Os compromissos teriam sido mais ou menos elaborados, pois, 10 anos depois, na visitação de 11 de julho de 1641, o mesmo licenciado Francisco de Aguiar atendia a uma súplica dos irmãos da Confraria de Jesus, que pediam que se “lhes baixasse a pensão de cento e cinquenta réis que todos os anos pagam à confraria, em razão do compromisso da irmandade” para um tostão, ou seja, $100 réis, pelo que o visitador assentou que nessa “parte revogo o dito compromisso e mando que daqui em diante paguem somente um tostão” (Id., Ibid., 16). Mais tarde, nos provimentos de 20 de julho de 1647 do licenciado Simão Gonçalves Cidrão, era de novo determinada a organização da confraria do orago da freguesia: “Mando ao Reverendo Vigário que ordene com os fregueses que haja Irmandade da Confraria de S. Jorge” (Id., Ibid.). Os confrades, em princípio, não elaboravam de forma detalhada os estatutos das suas confrarias, facto de que se queixou, nos meados do século seguinte, o bispo D. frei João do Nascimento (1741-1753) em visitação pessoal a esta e às outras freguesias, mandando então que esses fossem elaborados por toda a ilha, daí resultando a grande parte dos estatutos que conhecemos. Na visita de 1647, também foram registadas outras prescrições referentes à organização económica das confrarias, já determinadas nas Constituições Sinodais de alguns anos antes: “E para melhor governo das confrarias e para que cessem as queixas de se dizer que se salvam os mordomos ou outras pessoas dos sobejos delas, ordeno que se faça uma caixinha de três chaves, dentro da qual se lançará todo o dinheiro e um livro em que se irá assentando o que à confraria pertence”. As indicações do visitador contrariavam em princípio as vigentes depois nas confrarias da Madeira, que determinavam que as chaves ficassem na posse do vigário, do procurador da igreja e a outra de “quem o reverendo vigário e procurador parecer” (Id., Ibid.). Na maioria das confrarias que conhecemos, a maior parte com estatutos dos meados do séc. XVIII, as chaves ficavam com o juiz da confraria, o tesoureiro e o escrivão, embora as duas últimas funções fossem muitas vezes e alternadamente ocupadas pelo vigário da freguesia. O visitador determinava ainda que a “caixinha” deveria estar “em outra, dentro da igreja ou na parte que aos três parecer mais segura, a qual se fará dentro de um mês” (Id., Ibid., 17). Desconhecemos se chegou a ser feita nessa altura a “caixinha” em causa, só havendo depois referência a uma arca das três chaves, mas para todo o serviço da freguesia. A especial devoção da freguesia de São Jorge, no entanto, deveria ser a de Nossa Senhora da Encarnação, devoção que aliás se manterá depois na igreja da Achada. Assim, o cónego Cidrão, na visitação de 1647, faz um provimento curioso, mandando abrir “uma fresta de quatro dedos em largo, e um palmo pouco mais ou menos em comprimento” na porta principal da igreja, “para que os devotos vejam a Senhora e santos e se encomendem mais a eles com mais fervor e devoção”. Uma das referências mais interessantes nos provimentos é a prática penitencial para expiação dos pecados, especialmente nas sextas-feiras da Quaresma e, muito especialmente, na Quinta-feira Santa. Nos provimentos de 1641, estabelece o visitador, sem referir quais as penitências, “que os que se disciplinarem em Quinta-feira das Endoenças ou Sexta-feira da Quaresma, o não façam por entre as mulheres, da porta travessa para cima” (MATOS, 2000, 16-17), donde se deduz ficarem as mulheres dessa porta para a frente e os homens para trás. Tomando como exemplo as confrarias do Porto do Moniz, as mesmas só se teriam instalado verdadeiramente nos finais do séc. XVII, facto de que se queixavam amargamente os visitadores. A Confraria do Santíssimo de N.ª Sr.ª da Conceição, e.g., ainda não estava instalada em 1666, determinando o visitador a sua montagem com a escrituração de um livro onde constassem as entradas de irmãos, bem como a receita e despesa da irmandade. A confraria estava montada nos finais do século, tendo aderido à mesma os principais proprietários locais, mas não era acessível aos restantes fregueses, dado o pagamento de uma cota de $600 réis anuais. Vieram assim a surgir as Confrarias de S. Sebastião, dos Fiéis de Deus, que utilizavam uma bandeira de Misericórdia, mas que pertenciam ao Santíssimo, tendo de ser alugadas, e cujas cotas eram de $060 réis anuais, e ainda uma Confraria das Almas. A Confraria das Almas seria acusada pelo visitador de 1685 de não cumprir as suas obrigações, quer no acompanhamento dos defuntos quer na satisfação das esmolas, que nesta Confraria era de $200 réis. O visitador advertia, inclusivamente nos seus provimentos, que quem não cumprisse o pagamento das “esmolas” deveria ser expulso, excetuando os que, devido à sua pobreza, não pudessem pagar. A situação não melhorou nos anos seguintes e o visitador de 1689 mencionava que as Confrarias das Almas eram das principais em qualquer igreja, ainda que, no Porto do Moniz, parecesse “não haver almas nem quem se lembrasse delas” (RIBEIRO, 1996, 230). Os provimentos parecem não ter tido especial efeito, pois, em 1691, voltava-se a registar em novo provimento que deveria haver um livro de contas e das entradas dos irmãos. Os problemas económicos, quase mais que os religiosos e de costumes, parecem atravessar grande parte dos provimentos das visitações. Assim aconteceu na igreja de S. João Batista da Fajã da Ovelha, em 1678, quando o cónego Marcos Cerveira condenou os empréstimos a juros praticados pelas confrarias e ordenou ao vigário que cobrasse todas as importâncias em dívida, “assim por escritos, como sem eles”, porque eram necessárias à “obra do retábulo” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal, Provimentos e Visitações..., mf. 144-145, fl. 113-113v). Situação diversa era a vivida na cidade do Funchal, onde, embora sempre ocorressem queixas de falta de verbas, as confrarias proliferaram e, com as mesmas, os luxos das suas festas e dos seus altares. Temos assim ainda na Sé as Confrarias do Senhor Jesus, por reforma da de Santa Ana, de N.ª Sr.ª do Rosário e de N.ª Sr.ª do Amparo, devoções comuns aos finais do séc. XVI e inícios do séc. XVII, da Conceição, dos meados do séc. XVII, de S. José e, ainda, a das Almas, com compromisso aprovado pelo bispo, D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), a 6 de maio de 1713, e a do Senhor dos Passos, dos meados do séc. XVIII. A Confraria de S. José, incorporando os oficiais carpinteiros e pedreiros, mas também entalhadores e outros, deve ter seguido o exemplo dos sapateiros, instituídos em confraria em 1562, e a dos ferreiros, instituídos em 1572, mas só lhe conhecemos documentação da segunda metade do século seguinte. Um alvará de 23 de dezembro de 1688, assinado pelo arcediago do Funchal, doutor António Valente de Sampaio, por ordem do então vigário geral e provisor do bispado, José Mendes de Vasconcelos, autoriza oficialmente os irmãos da Confraria de S. José a “levarem Cruz em Procissão”, acrescentando que a mesma deveria ser acompanhada de “pelo menos, seis irmãos” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal..., Regimento Geral das Capelas…, liv. 19, fl. 33). Por essa época, os mordomos da Confraria de S. José da Sé exploravam uma pedreira no Cabo Girão. O problema da pedra regeu-se, durante o Antigo Regime, pelo alvará manuelino de 9 de fevereiro de 1502, que liberalizava o seu corte e utilização enquanto “bem comum”. A primeira dificuldade teria ocorrido nos finais do séc. XVII, sendo objeto de uma sentença do juiz de fora da Ilha, Manuel de Sousa Teixeira, datada de 28 de março de 1696, a favor da Confraria de S. José da Sé do Funchal e contra o P.e Aires de Ornelas e Vasconcelos. O padre entendia possuir direitos contra a provisão citada, “alegando o direito de posse sobre as terras da pedreira de Cabo Girão” e “exigindo um tributo de 600$000 réis, por cada barco de pedra caída e 400$000 réis, de cada barco que se tirasse da mesma pedreira”. O despacho do juiz de fora foi confirmado pelo ouvidor Teotónio Martins de França, a 24 de maio seguinte, e, mais tarde, pelo ouvidor Francisco de Vasconcelos Coutinho (1665-1723), a 18 de abril de 1698. Subiu ainda à Relação de Lisboa, onde voltou a ter o mesmo despacho, a 15 de dezembro de 1699, assim como o do juiz da Coroa, a 13 de fevereiro de 1700, ficando tudo registado na Alfândega do Funchal (BNP, reservados, cod. 8391, fls. 29-33) e na Câmara do Funchal (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fl. 247v.), devendo o P.e Aires de Ornelas e Vasconcelos pertencer à família dos instituidores da capela de S.to António visto conseguir fazer todos estes recursos. A relevância desta confraria no séc. XVIII é notória pelo recurso à eleição como juízes dos representantes da família dos Bettencourt de Vasconcelos e Sá, onde se sucedem, em 1760, João José de Vasconcelos Bettencourt (1715-1766), reeleito nos anos seguintes, e, em 1768, a irmã, a “Ilustríssima e Excelentíssima Senhora Dona Guiomar Madalena de Sá e Vilhena” (1705-1789), como vem escrito, que assina a partir daí as atas, sendo esta situação, a de uma mulher aparecer como juiz de uma confraria de homens, neste caso dos pedreiros e carpinteiros do Funchal, única na Ilha, com muito pouco paralelo em Portugal (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 25-27, 29 e 32). D. Guiomar assinaria os termos de eleição até 1779, inclusivamente o termo de 17 de maio de 1771, onde se levantou na mesa o problema do empréstimo das cortinas da confraria e onde se deliberou “que nenhum escrivão nem tesoureiro emprestassem as cortinas”, sob pena de pagar “a condenação imposta pela visita”, repor às suas custas as mesmas e “ser lançado fora do serviço” da confraria. Excetuavam-se, no entanto, os empréstimos “a S. Francisco, ao Corpo Santo, ao Rosário, a Santa Clara e ao Carmo” (Ibid., fl. 34). A morgada faleceu em 1789, pelo que na eleição desse ano, a 19 de março, era eleito para juiz o sobrinho, o “Ilustríssimo Senhor” João de Carvalhal Esmeraldo Vasconcelos Bettencourt de Sá Machado (1733-1790), que assina a folha já com uma letra algo trémula (Ibid., fl. 54), falecendo pouco depois. A 15 de novembro de 1790, fez-se eleição para novo juiz e, “na falta de seu pai”, como filho mais velho, foi eleito o coronel Luís Vicente de Carvalhal Esmeraldo Vasconcelos Bettencourt Sá Machado (c. 1752-1798), que assina com uma letra de excecional segurança para a sua época (Ibid., fl. 56). O coronel faleceria em 1798, mas só em 1800 a confraria deve ter conseguido que aceitasse a eleição para juiz o futuro conde de Carvalhal (1778-1837), embora não assine a folha (Ibid., fl. 66). O futuro conde de Carvalhal continuaria a ser oficialmente juiz da confraria até 1808, quando já saíra da ilha em 1802. Na eleição de 20 de março de 1809, presidida pelo cónego João Francisco Lopes Rocha, que assina o termo, já não se faz referência à eleição de qualquer juiz, o mesmo acontecendo na seguinte, a 20 de maio de 1814, presidida pelo mesmo cónego, agora também arcediago, que já nem assina a ata. Como se pode ver pelo espaçamento das datas das eleições, as velhas confrarias dos ofícios agonizavam lentamente, não havendo referência a mais eleições até aos meados do séc. XIX. As confrarias religiosas foram confrontadas ao longo do séc. XVIII com uma complexa situação de centralização do poder régio. Ao longo desse século, as relações da corte portuguesa com Roma foram um longo "braço de ferro", tentando-se transformar a igreja em Portugal numa “igreja portuguesa”, logo sob a superintendência da coroa e dentro de um processo de centralização do poder régio. Em relação à Madeira, numa primeira fase, assistimos à tentativa do recrudescimento do papel da Inquisição e, depois, à campanha rigorista da “jacobeia”. A campanha dos bispos jacobeus na Madeira assentou num especial rigorismo de interpretação dos preceitos religiosos, com enfâse na prática da confissão, na educação do clero, na moralização geral dos costumes e na centralização do poder episcopal, com o primeiro prelado jacobeu, D. frei Manuel Coutinho (1715-1741), e, após o terramoto de 1748, com o seu sucessor, D. frei João do Nascimento. Os princípios por que se orientavam os jacobeus assentavam no propósito de fazer observar escrupulosamente os preceitos religiosos do catolicismo, tanto ao nível do clero como entre os seculares. Tentavam adequar os costumes das populações à ética cristã, aprofundando uma piedade mais espiritual e interior do que ritualista, estimulando a prática quotidiana da “oração mental”, o regular exame individual da consciência, a correção fraterna dos que pecavam, a frequência dos sacramentos, com particular destaque para a confissão, a mortificação dos vícios e das paixões desordenadas, os jejuns, o desprezo do mundo, a pobreza no vestir e a frugalidade no comer. Nesta mesma linha de cuidados, surgia a necessidade de se observarem as contas das confrarias, das quais não se encontravam registos em quase lugar nenhum, o que se atribuía à incúria de um clero pouco vigilante, depois das capelas e legados pios, dos conventos e recolhimentos, etc. As reações dos clérigos ficaram traduzidas no relatório que o vigário geral apresentou ao bispo em finais de 1725. Nesse relatório foram apresentadas as queixas dos ministros eclesiásticos por serem obrigados a fazer exame, a apresentar habilitações “de genere”, a entregar a tempo os róis de confessados, a dar as contas das confrarias, etc., o que de todo estranhavam, “dizendo que o rigor era demasiado” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal..., doc. 270, fls. 195-202). A situação da freguesia de S. Jorge face às novas diretivas emanadas pelo bispo D. frei Manuel Coutinho está bem patente na visita de 10 de outubro de 1727 feita pelo doutor Silvestre Lopes Barreto, vigário e ouvidor eclesiástico da colegiada de N.ª Sr.ª da Conceição da vila de Machico, àquela freguesia, quando era ali vigário o P.e António Fernandes Barradas. Regista o visitador nos seus provimentos que achara não existir “livro do tombo das missas e obrigações e pensões anexas”, mas “tão-somente uma pauta muito diminuta”, ordenando que “em termo de seis meses” se fizesse o respetivo tombo, onde se haveria de registar os encargos, legados e obrigações, que se era preciso ir sempre atualizando. O mesmo se deveria passar em relação a cada uma das confrarias e às ermidas, acrescentando ainda que, em relação às missas, havia então determinações muito específicas do prelado para se não aceitarem “pensões de missas perpétuas”, salvo se com seu consentimento (MATOS, 2000, 17). Teceu em seguida o visitador uma série de considerações sobre as confrarias, com especial destaque para o que se encontrava regulado pelas Constituições Extravagantes sobre a eleição dos novos mordomos, de que se deveriam fazer os termos de eleições, as responsabilidades dos tesoureiros e do vigário, que deveria aprovar as contas do tesoureiro, etc. Explicava ainda os inconvenientes resultantes da falta de registos, como era o caso “do grande número de missas caídas, a que era obrigada a dizer a Confraria de N.a Sr.a da Encarnação desta igreja, que todas mando satisfazer para alívio e bem das almas dos testadores” (Id., Ibid.), onde se deveriam encontrar as inúmeras missas deixadas no testamento do P.e Tomé Caldeira. Silvestre Lopes Barreto refere ainda a vistoria que fizera no Livro da Arca das Três Chaves, onde achara “tudo na mesma confusão, no lançar do dinheiro na dita arca e nos termos do dito livro”, voltando a insistir na separação das entradas e das saídas, assim como nos títulos dos bens das confrarias. Sobre os fregueses de S. Jorge, refere o visitador que fora informado de que, devendo ir ouvir missa, chegavam atrasados, pelo que determinava “que dobrando o sino pela segunda vez” viessem todos para a igreja, para que à terceira vez que tocassem os sinos já estivessem todos reunidos para ouvir o vigário, sob pena de multa em $200 réis “para a fábrica da igreja”. O visitador também fora informado de outras infrações no adro da igreja, “ajustando contas e armando conversas, de que muitas vezes resulta haver pendências e gritadas”, tudo contribuindo para o descrédito dos lugares sagrados. Os infratores deveriam ser multados também em $200 réis, mas pagos no aljube (ABM, S. Jorge, Registo de Provimentos..., mf. 681, cota 58, fls. 1-3v.). A seguinte visita ocorreu a 28 de agosto do seguinte ano de 1728, então pelo bispo D. Fr. Manuel Coutinho, cujos provimentos se iniciam com uma ríspida admoestação ao P.e António Fernandes Barradas, na medida em que este não tinha elaborado o “tombo da sua igreja”, nem o que dizia respeito às “missa e obrigações”, ameaçando-o “com pena de suspensão do seu ofício” se não desse princípio àquela obra e continuasse a ter somente uma “pauta das missas”. Dava-lhe assim mais seis meses para elaborar os tombos, após o que viria a S. Jorge o juiz dos resíduos para “tomar conta das capelas nesta paróquia” (Ibid., fls. 35v.-36v.), mas o vigário, quase de imediato, era afastado. O projeto de D. frei Manuel Coutinho era o de “plantar nova cristandade” no território insular, como se registou nas memórias que mandou elaborar sobre o seu trabalho na Madeira. A delimitação da área de manobra das confrarias, a tentativa de chamar à diocese o controlo absoluto sobre os legados pios, envolvendo os bens e seus encargos, criou uma profunda crispação que, aliás, foi apanágio de todos os episcopados jacobeus, como o do seu sucessor, D. João do Nascimento, dentro de um programa de ação rigoroso e reformador, que raramente conheceu desvios. Data deste episcopado a reforma de uma parte substancial dos estatutos das confrarias madeirenses e a criação de uma nova confraria, a dos Escravos de Nossa Senhora do Monte, a 6 de abril de 1750, “dia em a Igreja Católica solenizou os Prazeres da mesma Senhora”, na sé do Funchal e em todas as mais igrejas, revelando bem o título adotado o espírito jacobeu estirado no compromisso de serem “escravos servos” (ABM, Confrarias, liv. 53, fl. 1). Numa segunda fase, temos a centralização pombalina, que levou à extinção da Companhia de Jesus, “um estado dentro do próprio Estado”, à delimitação das entradas nos conventos e ao controlo económico das confrarias. O governo da Diocese foi então entregue a D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1703-1784), que se pautou por um certo autoritarismo, certamente inspirado no gabinete pombalino e, provavelmente, no facto de ter iniciado o seu episcopado na Madeira, assumindo o governo de armas. Assim, em 1760, o juiz dos resíduos e provedor das capelas, Pedro Nicolau de Bettencourt Freitas, queixava-se do bispo e do vigário-geral pela prisão arbitrária e vexatória do seu filho João José Bettencourt e Freitas e do seu irmão Francisco José Bettencourt e Freitas. O problema da provedoria e do juízo das capelas, onde constavam os registos das missas das confrarias, mas não só, arrastou-se com as interferências contínuas do prelado em tudo o que dissesse respeito a esse assunto e não pararia de extremar até aos finais do século, pois era impossível cumprir os legados pios estipulados, por vezes, centenas de anos antes. Entre as principais lesadas estavam as confrarias, cuja vida assentava, principalmente, nos legados pios, assunto que em breve passava para o foro civil, sob a tutela do governador. No quadro da centralização régia, em 1766, procedera-se à incorporação na coroa das capitanias, sendo estas extintas na déc. de 90 juntamente com as ouvidorias. Procedeu-se também a reformas na organização religiosa, na tentativa de reduzir as regalias, posse de bens e a percentagem de membros pertencentes ao clero em relação à população ativa, aspectos que começaram a ser sensíveis logo em 1766 com a retirada progressiva da superintendência do bispo sobre as confrarias, passando nessa altura a aprovação dos estatutos para a coroa, assunto que levaria anos a resolver. Foram igualmente colocados em causa os beneficiados da diocese, ordenando, uma vez mais, o rei, a 27 de julho de 1768, o envio de listas completas e atualizadas de todos os beneficiados e de todas as colegiadas insulares. Acumulavam-se, entretanto, em Lisboa as queixas contra a ação do prelado e dos seus visitadores, principalmente na área dos resíduos e capelas. Uma das queixas foi emanada pela câmara da Ponta do Sol, em novembro de 1779, e assinada por todos os vereadores. A queixa era acompanhada de um relatório assinado pelo então provedor José Vicente Lopes de Macedo Correia e referia as violências e vexames praticados pelo visitador eclesiástico, bacharel Manuel Roque Ciríaco de Agrela, com os tesoureiros e administradores das confrarias e irmandades da Ilha, narrando circunstanciadamente vários casos (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 542 e 553). As queixas repetiram-se no ano seguinte, novamente pelo provedor e então também pela Câmara Municipal do Funchal, envolvendo, genericamente, os abusos e excessos de jurisdição frequentemente exercidos pelo bispo e seus visitadores, vigários e párocos sobre as confrarias. A situação não deixou de piorar nos anos seguintes e, com a chegada do novo governador João Gonçalves da Câmara Coutinho, em 1777, o ministro Martinho de Melo e Castro (1716-1797) teve mesmo de admoestar o governador e o bispo. A carta abre com um pedido de desculpas: “Vossa Senhoria desculpe a um ministro velho, com alguma experiência do mundo, a sincera liberdade do que lhe disser; na certeza de que toda ela nasce do ardente desejo que tenho de que sirva bem”. Ao longo de 16 páginas, não deixando de criticar a ação do bispo, “demasiado zeloso”, e do vigário geral, “mais pronto a atear conflitos, que os resolver”, admoesta o governador para que não se repetissem mais questões entre as duas autoridades, “para que nem Vossa Senhoria tenha o desgosto, nem eu o pesar, de que elas cheguem à Real Presença” (Ibid. doc. 71, fl. 15). A nomeação para novo bispo do Funchal recaiu em D. José da Costa Torres (1741-1813), prelado que iria enfrentar corajosamente, acrescente-se, uma das situações políticas e económicas mais complexas da história portuguesa e insular, com o rescaldo da guerra de independência das colónias inglesas da América do Norte, de 1775 a 1782, e, depois, as ideias maçónicas que iriam conduzir à Revolução Francesa, em 1789. A ação do prelado estendeu-se depois, mais uma vez, ao juízo da provedoria dos resíduos, sobre a qual exerceu algumas pressões que parecem ter-se estendido ao “conteúdo das contas”, pelo que o tribunal da mesa da consciência e ordens, em 16 de outubro de 1780, ordenou ao governador: “fareis ouvir por escrito ao reverendo bispo do Funchal” sobre esse assunto, devendo depois comunicar os resultados aos deputados daquela mesa (ABM, Governo Civil, liv. 535, fls. 13v.-14). Em causa estava a superintendência régia sobre o juízo dos resíduos e capelas, estabelecida deste a vigência do gabinete pombalino, sobre o que, logicamente, a Igreja mantinha as maiores reservas, entendendo ser assunto seu. Tentou a igreja madeirense nesses anos recuperar algum espaço de manobra perdido anteriormente através de uma nova imagem, de acordo com os gostos da época, dentro da tentativa de recuperação do antigo protagonismo regional do prelado. As obras envolveram a abertura de duas grandes janelas na fachada e a montagem de uma varanda corrida e, interiormente, o alargamento das paredes das naves laterais para que aí tivesse lugar a remontagem da maioria dos altares das confrarias, até então no transepto. O problema foi a sequente montagem dos altares, a que as confrarias, de certa forma, resistiram. Para fazer face à situação, D. José da Costa Torres tentou acabar com as antigas irmandades de ofícios, que haviam levantado parte dos altares do transepto, por provisão episcopal de 18 de abril de 1792, alegando a sua “irregular ou nula administração”, passando os seus documentos e receitas para a fábrica da sé, que se encarregou do cumprimento das respetivas obrigações pias. O assunto, no entanto, não era linear e as confrarias tinham, de certa forma, personalidade jurídica independente, pelo que, embora não afrontando o prelado, os novos altares só vieram a ser montados nos anos seguintes. Tal como no continente, também na Madeira se viveu um clima de grande agitação com a proclamação da Constituição de 1820, a reação absolutista de 1823 e a Carta Constitucional de 1826. Se, por um lado, era ideia dos liberais a completa separação entre Igreja e Estado, a liberdade religiosa e a delimitação de outras áreas, como a que conduziu à extinção imediata dos conventos, por outro lado, tiveram que contemporizar com toda uma tradição ancestral, definindo a Carta Constitucional que os portugueses apenas podiam professar a religião católica romana, credo oficial do reino. A partir desta data, algumas confrarias iniciam timidamente a sua reformulação, enviando os seus novos estatutos ao governo de Lisboa, como a Confraria de S. Miguel da Sé, que os reforma em 1819 e em 1839. Com os acontecimentos políticos que se desenrolaram com a implantação do governo constitucional, e que protelaram o preenchimento das dioceses em Portugal, houve uma rutura entre o governo português e a cúria romana. Assim, o bispo D. Francisco José Rodrigues de Andrade (1761-1838) saiu da Madeira em maio de 1834 e só em junho de 1843 foi confirmado D. José Xavier de Cerveira e Sousa (1810-1862) como bispo do Funchal. Chegado ao Funchal no ano seguinte, foi durante o seu episcopado que ocorreram as sedições contra os calvinistas e, com a chegada à Madeira de José Silvestre Ribeiro (1807-1891) em finais de 1846, também o bispo D. José Xavier saía, nos inícios de 1848, do Funchal, ficando a sé vacante até meados de 1859. A atuação dos seguintes governadores foi algo mais contemporizadora e a da Igreja mais tradicional. Dentro de uma nova segurança, tentou então recuperar algumas das suas estruturas, incentivando as velhas confrarias, como podemos ver no Livro da Confraria de São José. Por ata de 20 de fevereiro de 1859, tentou-se assim a reativação da confraria. Tinha então falecido o último tesoureiro, António Rodrigues Santos, pelo que os confrades rogaram a presença do cónego João Frederico Nunes, “atual Mordomo da Reverenda Fábrica” da sé, para que presidisse à sessão, “fazendo as vezes de conservador, como é costume na confraria”, pedido a que o mesmo anuiu, tomando assento na mesa (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 73). Até então, no entanto, nunca tinha sido costume nesta confraria a figura do “conservador”, embora existente noutras confrarias, como na do Senhor Bom Jesus, citado desde 1735 nos estatutos da confraria e entregue a um capitular, e na Confraria de S. Miguel, lugar entregue ao próprio deão. Compareceu então à eleição da nova mesa da Confraria de S. José o genro do falecido tesoureiro, que pediu à mesa “em seu nome, pelos mais herdeiros, suas cunhadas e sogra” que tomasse conta das alfaias, livros e mais objetos pertencentes à confraria, à guarda do seu sogro, e que os desobrigassem dessa responsabilidade, o que, depois de conferido, foi aceite. Foi então eleito o cónego para conservador, “por escrutínio secreto”, tendo este aceitado. Foi ainda solicitado ao mesmo cónego que escrevesse ao 2.º conde de Carvalhal (1831-1888) participando-lhe de que havia sido eleito para juiz da confraria, “como tem sido feito aos Maiores de Sua Ex.ª”, colocando-se em primeiro lugar o nome de D. Guiomar, depois João de Carvalhal, o filho e coronel Luís Vicente de Carvalhal “e, ultimamente, o falecido Exmo. Sr. Conde de Carvalhal”, que aliás falecera em 1837, ou seja, 22 anos antes (Ibid., fl. 74). Foi ainda decidido aceitar como novos irmãos os oficiais dos diferentes ofícios de carpinteiro e pedreiro, “que espontaneamente comparecerão e declararão que queriam entrar”, perdoando-se-lhes, “por essa ocasião somente”, “a joia do costume” ($400 réis), ficando a pagar anualmente $100 réis no dia da festa do orago. Seguidamente, foram então eleitos o tesoureiro, o escrivão e os 12 mesários e mordomos (Ibid., fls. 73v.-74v.). O livro apresenta depois algumas folhas em branco e, a folhas 77, uma interessante cartela, embora algo ingénua, encimada pelas armas do 2.º conde de Carvalhal e com o termo de eleição do conde, assinada por “O Irmão da Mesa servindo de secretário o fiz e assino”, António Joaquim Abreu Jardim. Mais à frente, aparece a lista dos “Irmãos antigos” (Ibid., fls. 79-82v.), somente 10, e a lista dos novos irmãos, que entraram naquele dia 20 de fevereiro de 1859, discriminados com o nome completo, estado e morada: 113 membros, o que não deixa de ser espantoso. A 5 de maio do mesmo ano, ainda entraram mais 17 irmãos, a 26 de fevereiro do seguinte ano de 1860, mais 5, a 28 de abril, mais 1 e, a 29, mais 2. No entanto, as folhas seguintes estão em branco, sinal de ter sido “sol de pouca dura”. As confrarias de ofícios tiveram um importante papel de coesão social no Antigo Regime, estabelecendo normas de comportamento, disciplinando e desenvolvendo hierarquias, bem como socorrendo e prestando assistência, especialmente aos doentes, pobres e defuntos. Com a centralização do poder régio, a partir do gabinete do marquês de Pombal, o seu controlo passou a ser objeto de disputa entre a Coroa e a Igreja, sendo progressivamente cerceada a sua autonomia, que se apagou discretamente ao longo do regime liberal. As velhas confrarias dos ofícios extinguiam-se, assim, progressivamente ao longo da segunda metade do séc. XIX, resistindo somente as sacramentais, ou seja, as do Santíssimo e as dos oragos de cada freguesia. Pontualmente, no entanto, subsistem outras, renascendo também algumas dentro de uma certa liturgia de celebração, no âmbito, hoje exclusivo, das paróquias. Não é, pois, de excluir futuros renascimentos de associação e devoção que nos ultrapassam, como a adesão de mais de 100 novos membros à confraria de São José da sé em 1859.   Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

Religiões Sociedade e Comunicação Social

convento de são bernardino

O primeiro convento franciscano que se fundou fora do Funchal teve por titular S. Bernardino de Sena, um dos grandes santos da mesma ordem, e foi fundado na freguesia de Câmara de Lobos, entre 1459 e 1460, em lugar ermo e solitário, a certa distância da igreja matriz, a norte do Pico da Torre, ainda restando grande parte dos seus edifícios, embora das campanhas de obras dos sécs. XVIII, XIX e XX. O convento teve uma humilde e obscura origem, mas tornou-se célebre e afamado em toda a Ilha, e até no continente, por ter ali vivido e falecido Fr. Pedro da Guarda (1435-1505), a que o povo chama “santo servo de Deus” (VERÍSSIMO, 2002, 79-91). A fundação é atribuída a Fr. Gil de Carvalho, um humilde frade franciscano que veio do continente do reino para a Madeira, quando os Franciscanos que ocupavam o hospício de S. João da Ribeira acabavam de sair da Ilha para irem estabelecer uma comunidade nas proximidades de Lisboa, em Xabregas, que fundaram em 1456, sobre as ruínas do antigo paço de Xabregas e a invocação de S.ta Maria de Jesus, mas que ficou mais conhecido por Convento de S. Francisco. Desejando Fr. Gil viver em lugar desértico como eremita, como escreveu depois o deão, António Gonçalves de Andrade (1795-1868), anotador da História Insular do P.e António Cordeiro (1641-1722) a partir da História Seráfica, levantou um pequeno cenóbio com dois cubículos “em dois pés de terra semeada entre rochas”, num dos quais habitava o fundador e no outro João Afonso e Martinho Afonso, os quais esmolavam pelo povoado para a sustentação dos três (SOLEDADE, 1705, III, 170-171). Crescendo o número de religiosos, trataram de levantar um pequeno convento em terreno que lhes foi doado por João Afonso Correia (c. 1435-1490), escudeiro do infante D. Henrique, e sua mulher, Inês Lopes, que na Ilha foram o tronco da casa Torre Bela. A nova casa religiosa erguia-se num sítio afastado da povoação, cercado de um lado pela ribeira e do outro, por uma rocha, sendo bem própria para o género de vida a que se dedicavam. Passados alguns anos reuniram-se outros religiosos, que formaram a comunidade inicial, mas uma enchente da ribeira, pelos anos de 1480, haveria de destruir a pequena ermida e os primeiros cubículos, o que desgostou irremediavelmente Fr. Gil de Carvalho, que se retirou para o continente, entregando a direção a Fr. Jorge de Sousa. Foi Fr. Jorge de Sousa que reconstruiu o convento, um pouco mais acima, ao abrigo das correntes caudalosas da ribeira, tendo sido levantada nova e mais vasta igreja, com novas celas, “que logo foram habitadas”, tendo ficado o espaço inferior do inicial ermitério para “algumas oficinas de menor importância” (SOLEDADE, Ibid., 173). Data dos finais do séc. XV aos inícios do XVI a organização canónica do convento como uma verdadeira casa monástica, depois de ter melhorado consideravelmente as condições materiais através de doações, contratos de arrendamento, etc., como era hábito, pois estes mosteiros funcionavam também como empresas agrícolas. A fama e o desenvolvimento da comunidade encontram-se decididamente ligados à presença ali de Fr. Pedro da Guarda que, nascido na Guarda, em 1435 e que, tendo professado por 1455, “querendo subtrair-se à admiração que causavam as suas virtudes” (SILVA e MENESES, 1998, II, 103), se refugiou em S. Bernardino por 1485. Falecido em 1505, logo a sua fama se espalhou pela Ilha e pelo continente, sendo referido por Fr. Marcos de Lisboa (1510-1591), depois bispo do Porto, na terceira parte das suas Crónicas de los Frayles Menores, editadas em Salamanca, em 1570, não tendo nunca cessado o culto popular que lhe tem sido devotado. A comunidade de S. Bernardino foi crescendo ao longo do séc. XVI e, por 1584, Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) refere que ali viviam permanentemente 7 a 8 religiosos, sendo o Convento “abastado de toda a fruta e vinhos” (FRUTUOSO, 1968, 122). Em 1598, no Recenseamento dos Fogos, Almas, Freguesia, e Mais Igrejas, registavam-se 10 a 12 religiosos, sinal de continuar a crescer a população residente do Convento e, por certo, pela devoção suscitada com a ocorrência, no ano anterior, da localização da sepultura de Fr. Pedro da Guarda. No início do ano anterior, a 9 de janeiro de 1597, registam as vereações do Funchal não se ter realizado sessão da parte da manhã, por falta de comparência dos oficiais do concelho, que haviam sido informados de que os franciscanos tinham descoberto os restos mortais de Fr. Pedro da Guarda (ABM, Câmara Municipal do Funchal, 1313, 3 v.). A exumação oficial deve ter ocorrido depois, a 28 de janeiro desse ano, na presença, de novo do bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), do reitor do colégio do Funchal, P.e Cristóvão João “e outras pessoas qualificadas”, como regista a História Seráfica (SOLEDADE, Ibid., 173). O certificado de transladação de Fr. Ambrósio de Jesus, à época definidor-geral e comissário dos conventos franciscanos da Madeira, datado de 23 de maio de 1624, regista somente tal ter ocorrido em janeiro de 1597 e reivindica para si o ter encontrado, nos claustros, os restos do corpo de Fr. Pedro da Guarda (Girão, 1992, 8, 396-397). A capela-mor da nova igreja foi fundada por Rui Mendes de Vasconcelos (c. 1460-c. 1520), filho mais novo de Martim Mendes de Vasconcelos e de Helena Gonçalves, filha de Zarco, e a sua mulher Isabel Correia, que era filha dos doadores do terreno em que se tinha levantado o primitivo convento. Pajem da rainha D. Leonor e um dos homens-bons do concelho do Funchal, onde serviu de vereador, guarda-mor da saúde e procurador do concelho, Rui Mendes de Vasconcelos mandou redigir cédula de testamento a 15 de setembro de 1515, antes de seguir para o reino, onde determina vir a ser enterrado no meio da capela-mor, junto dos seus filhos já falecidos. A capela teria sido reconstruída por 1533 e a lápide em causa, nessas ou nas obras seguintes, transferida para o adro da igreja, onde se encontra. Mais tarde, o neto homónimo Rui Mendes de Vasconcelos deixou ainda em testamento, de 16 de abril de 1569, 160$000 réis da sua terça para sufrágios por sua alma. Com essa importância deveriam ainda ser compradas várias alfaias e paramentos, como um cálice de prata dourada, de três marcos, uma vestimenta, uma capa e um frontal de seda de damasco. O remanescente seria aplicado em bens de raiz, “em boa terra, em Câmara de Lobos, e em água” para subsistência dos frades, tudo ficando enfeudado, “enquanto o mundo durar” (VERÍSSIMO, 2002, 33), a duas missas semanais rezadas, às quartas e às sextas, pela sua alma e as dos seus filhos. O seu testamento não veio a ser aprovado, fazendo-se inventário e partilhas, de forma a assegurar o legado. Os bens destinados a esse efeito, embora ligeiramente inferiores aos inicialmente destinados, à época, cumpriam suficientemente o determinado, mas o mesmo não viria a ocorrer alguns anos depois. O neto do segundo Rui Mendes de Vasconcelos, por via materna, também padroeiro da mesma capela-mor, João de Bettencourt de Vasconcelos (1535-1615), nos finais do século, requeria ao bispo do Funchal a redução das missas em questão. O bispo D. Luís Figueiredo de Lemos já tinha exposto a situação para Roma e havia recebido uma carta da Sagrada Congregação dos Cardeais, de 4 de outubro de 1589, concedendo-lhe o poder para reduzir as capelas e missa dos administradores do seu bispado “que se sentissem carregados com grande número de missas e encargos, ao justo e razoável, conforme as propriedades e rendimentos” (ABM, Juízo da Provedoria de Resíduos e Capelas, tombo 3, 608-608 v.). O despacho do pedido do administrador da capela-mor de S. Bernardino teve a data de 19 de dezembro de 1593, reduzindo o bispo o número de missas de duas semanais para uma por mês, mas mantendo as demais obrigações dos padroeiros, que eram o pagamento de azeite, pão, peixe ou carne e vinho para a subsistência dos frades. João de Bettencourt de Vasconcelos, a quem, regista Henriques de Noronha (1667-1730) (Noronha, Henrique Henriques de) no seu Nobiliário Genealógico, chamavam “o Cavaleiro, de alcunha”, tendo passado à Índia por capitão da nau São Gregório, sucedeu, entretanto na terça dos seus avós, por morte de seu irmão Rui Mendes de Vasconcelos, homónimo dos vários avós e que falecera sem descendência. Por testamento aprovado em 12 de dezembro de 1607, como administrador dos bens do irmão, refere que a terça do mesmo ainda tinha como obrigação para o Convento de S. Bernardino uma pipa de vinho novo, quatro arrobas de azeite e 3$500 réis de missas rezadas e cantadas, pelo que deve ter havido ainda outras alterações a estes legados. No seu testamento, João de Bettencourt de Vasconcelos deixou vinculada a sua terça nas fazendas por cima de Câmara de Lobos e abaixo da quinta da Torre, deixando-a aos frades de S. Bernardino. Determinou que a administração desta capela, depois conhecida como “Terça dos Frades”, deveria passar à sua filha Helena de Vasconcelos (c. 1572-1625), instituidora da capela-mor da igreja do Colégio do Funchal, dado o filho Henrique de Bettencourt não ter descendência e falecer pouco depois, em 1620, e Guiomar de Bettencourt (c. 1571-1607), a irmã mais velha, já ter falecido. Data de cerca de 1633 a construção de três pequenas capelas na cerca, para além de outros melhoramentos nos edifícios do Convento. As capelas de homenagem a Fr. Pedro da Guarda ficavam, uma junto à sepultura do “santo”, identificada nos finais do século anterior, outra junto da cozinha, onde a tradição contava ter havido anjos a ajudá-lo nos seus trabalhos e a última, junto à pequena lapa onde costumava meditar, isolado de tudo e de todos. Por esses anos igualmente se fizeram obras nos claustros e na casa do capítulo, para o que Rui Mendes de Vasconcelos (II) deixara os materiais, como madeira de cedro e que a mandara colocar na loja do mosteiro. Saliente-se, no entanto, que nem sempre estas determinações testamentárias eram cumpridas, pois que no documento em questão se refere a importação de uma laje da Flandres, que não temos informação de alguma vez ter existido, tal como determina que se fizessem grades de ferro, de varões grossos, lavrados e dourados para a capela-mor, de modelo idêntico aos da capela do Santíssimo da sé do Funchal, a fim de substituir os de madeira que já estavam velhos, que também mais ninguém volta a referir. Alguns anos depois Henrique Henriques de Noronha descreve pormenorizadamente o Convento, a “uma légua da cidade do Funchal, para poente”, por cima do lugar de Câmara de Lobos, que com os anos fora aumentando o número de edifícios, especialmente graças à contínua romagem do “Servo de Deus”, constituindo-se numa das melhores casas franciscanas e a segunda da Custódia de S. Tiago Menor da Madeira. Tinham então boas oficinas e “excelentes cómodos” para os 18 religiosos que habitavam no Convento. Compreendia três dormitórios, que com a igreja formavam um “perfeito quadro”, com um claustro rodeado de varandas sobre pilares de “cantaria fina” e no meio uma fonte de “perene água” (NORONHA, 1996, 250-251). O cronista descreve as várias capelas, uma das quais no claustro, dedicada a Fr. Pedro da Guarda, “onde misteriosamente foram achadas as relíquias na sua sepultura, pelo bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos, em oito de janeiro de 1597”, o que, se de algum modo pode ser confirmado pelas vereações camarárias do Funchal, que no dia seguinte não tiveram sessão por todos terem acorrido a Câmara de Lobos, embora esteja em desacordo com o que escreveu Fr. Fernando da Soledade, que regista o dia 28 de janeiro, e, logicamente, omite ter sido o bispo do Funchal a fazer o achado. Refere-se ainda à capela construída na antiga cozinha, também dedicada ao “santo”, onde “vinham os anjos beneficiar o comer, enquanto ele se ocupava em outra maior contemplação”, figurando aí a sua imagem de joelhos, em oração, dentro da antiga chaminé “e os anjos ocupados no ofício do Santo” (Id., Ibid.). Nos claustros havia outra capela, que servia de capítulo aos religiosos, dedicada a N.ª Sr.ª da Piedade, “cuja imagem é de maravilhosa pintura”, capela fundada por André Afonso Drumond e sua mulher Branca de Atouguia. Fora do claustro, junto à portaria e à igreja ainda havia outra capela, dedicada às almas, com uma confraria e, a “poucos passos adiante”, ainda a capela de S. Lourenço, dentro da qual, do lado da epístola, ficava uma “lapa fechada com grades de ferro” (Id., Ibid., 252), que ainda subsiste, onde era tradição que Fr. Pedro da Guarda se retirava para oração. A igreja era “proporcionada ao convento”, de uma só nave, com capela-mor e dois altares colaterais: o do lado do evangelho dedicado ao Senhor Jesus, com irmandade e, o da parte da epístola, à Conceição de N.ª Sr.ª. O retábulo-mor possuía três nichos, sendo o central ocupado pela imagem de S. Bernardino de Sena e os laterais, pelas imagens de S. Francisco e de S.to António. Na parede do lado da epístola figuravam as armas dos Vasconcelos e, no lado oposto, havia uma tribuna. Na porta lateral que saía para os claustros havia uma laje com as letras A e D, indicação de que ali havia sido enterrado Fr. António Descalço, “religioso leigo cuja virtude e largas penitências lhe adquiriram larga veneração” (Id., Ibid.), mas na lápide aí existente no começo do séc. XXI figura o nome por extenso do frade leigo, por certo bem anterior aos anos de 1722, em que foram escritas as memórias do cronista Noronha. Fr. António Descalço havia sido canavieiro de açúcar de António Correia, o Grande (1457-1572), filho dos doadores do terreno inicial do Convento, tendo entrado como donato, ou seja “consagrado ao Senhor”, em referência a alguém mais novo e que estaria a preparar-se para seguir a vida religiosa, professando depois, mas como leigo. Passou a usar o nome de Descalço, “porque jamais calçou alparcatas” e quando se “faziam gretas nos pés, do exercício, as cozia com fio de sapateiro”. Faleceu em 27 de maio de 1590, o que parece corresponder à lápide depois colocada, tendo escrito Noronha que foi contemporâneo de Fr. Pedro da Guarda, “que sem dúvida seria o modelo do seu espírito”. No entanto, tendo o “santo” falecido em 1505, não podem ter sido contemporâneos, pois embora o antigo amo, António Correia, tenha falecido com 115 anos, um canavieiro que sempre andou descalço dificilmente teria passado dos 70 anos. Escreveu também Noronha que sobre a sua sepultura “se viam algumas vezes luzes” e ouviam cânticos amenos, com “um suavíssimo cheiro, que saindo dela se fundia por toda a igreja” (Id., Ibid., 251-253). Na descrição de Noronha do então oratório de S. Sebastião da Calheta, refere-se que no Convento de S. Bernardino se havia homiziado Pedro Bettencourt de Atouguia (1622-c. 1680), o qual tinha assassinado, por problemas de coleta de impostos, o corregedor Gaspar Mouzinho de Barba, a 29 de dezembro de 1642. O corregedor viera à Madeira para investigar uma série de tumultos ocorridos no ano anterior e, tomando conta da fazenda real, passou a tratar dos vários pagamentos em atraso. Entre esses pagamentos encontravam-se os de Pedro de Bettencourt, Manuel Homem da Câmara e outros, pelo que dirigindo-se à Câmara do Funchal, então nas traseiras da sé, para prender o último, foi assassinado às portas da mesma por Pedro de Bettencourt. Conta então Noronha, que foi depois preso, em princípio, pelo seguinte corregedor Jorge de Castro Osório, por sua vez, morto por envenenamento poucos meses depois (Aclamação de D. João IV). O morgado Pedro de Bettencourt teria, entretanto “arrombado a prisão” e passou a viver homiziado, de início, no Convento de Câmara de Lobos, “mas com tal mudança de vida”, que despendia a maior parte dos rendimentos do morgado em benefício da caridade, tendo feito “à sua custa as varandas do claustro de S. Bernardino”. Aí permaneceu até 1670, data em que comprou o terreno para o oratório de S. Sebastião da Calheta, cuja construção se iniciou por essa data, professando ali como Fr. José da Encarnação, onde “andou sempre descalço” e foi depois sepultado na capela-mor daquele oratório (Id., Ibid., 257). O Convento de S. Bernardino beneficiava, entretanto do púlpito da colegiada de S. Sebastião da Câmara de Lobos, pelo menos, desde o alvará de D. Filipe II, de 20 de outubro de 1612, que atribuiu ao guardião um ordenado anual de 15$000 réis e a obrigação de pregar na colegiada no Advento e na Quaresma, o mesmo acontecendo com os restantes conventos franciscanos, em relação às colegiadas das matrizes das freguesias próximas. Mais tarde, com a dinastia dos Bragança, as porções e esmolas dos sermões auferidas pelos religiosos estariam isentas do pagamento da décima, por provisão régia de maio de 1650. Os frades de S. Bernardino, e o Convento em geral, a partir dos inícios e meados do séc. XVII, vieram a beneficiar com o recrudescimento da devoção de Fr. Pedro da Guarda, tendo sido contínuas as tentativas de beatificação e os processos enviados para Roma. O Papa Urbano VIII, a 30 de agosto de 1625 ordenou, inclusivamente ao bispo do Funchal, D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), que, com dois dignatários da Sé, fizesse nova inquirição por autoridade apostólica. O processo foi concluído em 1628, sendo enviado para Roma, mas não tendo conhecido despacho. Novas tentativas foram feitas pelo P.e Fr. Baptista de Jesus, que se deslocou a Roma para negociar a causa, ainda sendo conduzida outra tentativa pelo deão, vigário-geral e provisor do bispado em sé vacante, Pedro Moreira (c. 1600-1674), em 1652, igualmente sem resultados. O erário público, entretanto concorreu igualmente para os processos de beatificação, determinando o rei D. João IV, por alvará de 3 de setembro de 1653, que os ministros da justiça aplicassem na Ilha metade das condenações pecuniárias para ajuda das despesas. A determinação de D. João IV foi confirmada cem anos depois, pelo bisneto D. José, por novo alvará, em 27 de fevereiro de 1753, para que se mantivesse a ajuda das despesas ao processo de beatificação do “Santo Servo de Deus” (BNP, Índice Geral do Registo da Antiga Provedoria da Real Fazenda, 118 v.), assunto cumprido ao longo dos séculos seguintes, mas sem resultado, ainda se arrastando o processo por Roma. O Convento de S. Bernardino veio a ser totalmente reconstruído nos inícios e meados do séc. XVIII, quase que somente se tendo preservado a lapa e a sepultura de Fr. Pedro da Guarda, assim como algumas das lápides sepulcrais. As obras devem ter-se iniciado por 1735, como atesta a data inscrita na base da cruz do frontispício da igreja e prolongaram-se, pelo menos para além de 1747, como se inscreveu no lintel de uma das janelas próximo da torre. A igreja ficou então dotada de três portas com molduras assentes em colunas oitavadas e conjunto rematado por cornija relevada sobre a qual assenta um pequeno nicho de cantaria aparente. O conjunto das portas parece ter tido o risco de um mestre das obras reais anterior, talvez Manuel de Vasconcelos, mas toda a fachada deve ter sido reformulada nos inícios do XIX, depois da aluvião de 1803 e ainda nas obras de 1924 a 1928, não sendo fácil deduzir o que ficou das campanhas de obras mais antigas e, inclusivamente, se não se aproveitaram cantarias de outros locais do Convento. Para estas obras, em princípio, o guardião e demais frades tiveram autorização da Câmara do Funchal, por alvará de 13 de janeiro de 1742, licença para cortar vinte e cinco paus nas serras do concelho. Entre 1730 e 1740 também se encomendaram vários painéis de azulejos para os claustros a uma das boas oficinas de Lisboa, de que chegaram aos nossos dias dois muito bons e grandes arcanjos, podendo ter sido mais. De 1740 a 1750 também deve ser o lavabo da sacristia, dos mais interessantes existentes na Região e que, contra o que seria de esperar, recupera o trigrama de S. Bernardino de Sena, de que se haviam apropriado os Jesuítas para a sua emblemática oficial, o que à época teria sido uma atitude corajosa. O Convento voltou a ter obras após o terramoto de 1748, que afetou bastante toda esta área e, então quase uma nova reconstrução, após a terrível aluvião de 9 de outubro de 1803. A descrição da aluvião de João Pedro de Freitas Drumond (1760-1825), o célebre “Dr. Piolho”, dada a fraca estatura, feita a pedido da Câmara do Funchal, refere que a ribeira da Saraiva ou ribeiro dos Frades levara “a cerca, claustros, cozinha, refeitório e adega” do Convento, de que só ficara a igreja e a casa dos romeiros. Uma testemunha ocular, a 15 de outubro seguinte, refere mesmo que “o convento do Servo de Deus também foi ao mar” e “dizem que escapou parte do refeitório e um pequeno celeiro” (VERÍSSIMO, 2002, 65). No livro de Receita e Despesa dessa época registam-se “o gasto que se fez depois do dia 10 deste mês de outubro, quando amanheceu a triste cena do aluvião, que levou este nosso convento com as alfaias que nele se achavam, etc.”. Os frades tiveram assim que adquirir quatro panelas, um tacho, uma frigideira, duas peneiras, seis copos, um cutelo, dois quartos, balança e pesos, tendo tudo custado 16$350 réis. Tiveram também de contratar um carpinteiro, por dois dias, “para consertos”, como regista o escrivão Fr. João de Santa Rosa (ANTT, Conventos, Convento de São Bernardino de Câmara de Lobos, liv. 2, fl. 87). No pedido depois feito pelo guardião Fr. Matias de São Boaventura para se fazer uma vistoria, refere-se que os frades tiveram de trepar pela rocha vizinha do lado nascente, pois a água havia tomado a saída do Convento, demolido a portaria e entrado na igreja. Os frades tiveram que se recolher nas instalações dos Terceiros e na casa dos romeiros, pois haviam ficado sem os dormitórios e mais instalações, solicitando poder utilizar o rendimento da capela instituída por João de Bettencourt de Vasconcelos para a reedificação do Convento. A vistoria determinada pelo provedor dos resíduos e capelas só veio a ocorrer a oito de julho de 1805, levada a cabo pelo então mestre das obras reais e antigo mestre entalhador Estêvão Teixeira de Nóbrega (1746-1833), assessorado pelo mestre António José Barreto, que lhe haveria de suceder. Os prejuízos tinham sido muito grandes, perdendo-se na totalidade o muro da cerca, as latrinas, o dormitório que estava ao lado do ribeiro, a cozinha e loja anexa, a casa de profundis, o refeitório, a adega, metade do claustro, a capela da cozinha do servo de Deus, a da cova do “santo”, a sacristia e a varanda que lhe ficava em cima, tal como as celas junto da mesma varanda. Na igreja, encontrava-se perdido o teto sextavado, o altar teria de ser refeito, e os azulejos, porque em mau estado, teriam de ser retirados. A ribeira dos Frades alterara o seu leito, passando então junto à porta travessa da igreja, que ia para a capela-mor, tudo necessitando de ser assim corrigido. As obras tiveram autorização do provedor-proprietário das capelas, Pedro Nicolau Bettencourt de Freitas e Meneses, devendo ser colocados em praça “os frutos” do morgadio instituído por João de Bettencourt de Vasconcelos, para se liquidarem pela melhor oferta. Satisfeitos os legados pios, deveria aplicar-se o remanescente na reconstrução do Convento e da capela-mor, de acordo com as diretivas deixadas no auto de vistoria. Ao longo dos anos seguintes as obras arrastaram-se, ainda havendo pagamentos em julho de 1822 e, em 1827, o síndico do Convento queixava-se que a vistoria às obras se achava por completar, em relação à capela-mor, oficinas do Convento e outras instalações. Estes anos foram muito complexos em Portugal com a implantação do primeiro liberalismo e com a contrarrevolução do infante D. Miguel, seguindo-se a guerra civil que, não tendo afetado fisicamente a Madeira, levou à emigração dos principais quadros eclesiásticos insulares, como grande parte dos cónegos da sé e dos vigários das freguesias. As obras do Convento nunca teriam sido completadas. A vida quotidiana da comunidade de S. Bernardino entre os finais do séc. XVIII e os inícios do XIX pode ser analisada pelos quatro livros de receita e despesa que sobreviveram. A documentação do Convento parece ter-se perdido parcialmente com a aluvião de 1803, tendo ficado alguns livros de despesas de obras no conjunto proveniente da provedoria do Funchal; os quatro livros de receita e despesa foram depositados na Torre do Tombo, indo integrar o núcleo dos conventos, tendo a documentação avulsa ficado no núcleo do Ministério das Finanças do mesmo arquivo. O estado de conservação dos cadernos iniciais do Livro de Contas de setembro de 1792 a 1798, quando era guardião o P.e Fr. António do Amor Divino, é testemunho da dificuldade por que deve ter passado toda a documentação do Convento. As receitas do Convento provinham essencialmente de foros e de missas, inclusive nos altares das confrarias, capelas e oratório do síndico, sermões na Quaresma e no Advento na colegiada de Câmara de Lobos, tal como da venda de túnicas, hábitos de saial e de burel para mortalhas, aspeto que era igualmente praticado nos restantes conventos franciscanos masculinos da Ilha. Um hábito de burel e o acompanhamento de um funeral registados, e.g., na primeira semana de setembro de 1792, custaram 2$500 réis, embora um outro enviado para o campanário na mesma semana tivesse custado somente $8000 réis. Os hábitos para mortalha eram feitos no Convento, comprando-se periodicamente uma vara de burel, como nos inícios de fevereiro do ano seguinte, que custou 6$000 réis. As túnicas também ali deviam ser feitas, vindo o linho sedado ou em rama, da Ponta do Pargo e da Fajã da Ovelha, em princípio, como esmola. Na última semana de maio de 1798, e.g., entre os inúmeros envios de hábitos de burel e de saial, registam-se verbas de 4$000 réis, para o do burel enviado para o funeral de Manuel de Sousa, das Eiras, acompanhado por dois religiosos “a 500 réis cada um” e 9$000 réis, para o hábito de saial enviado para Rita dos Santos, da Várzea, cujo funeral foi acompanhado por seis religiosos. Nessa semana também se receberam 3$000 réis pelo “caminho e assistência” ao ofício das exéquias do governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, falecido no Funchal, a 30 de março desse ano, determinadas pelo Cap.-mor Filipe Esmeraldo e nas quais participaram cinco religiosos “a 600 rs.” (ANTT, Conventos, Convento de São Bernardino de Câmara de Lobos, liv. 2, f. 1v.). As verbas auferidas pelas missas eram também variáveis, registando-se, e.g., na primeira semana de fevereiro de 1793, 35 missas, que renderam 2$800 réis; na segunda semana, 25 missas, 2$000; na terceira, 33 missas, 2$050; e na quarta, 35 missas, 1$800, dependendo assim de onde eram celebradas e dos acordos anteriormente estabelecidos. Havia uma série de missas que eram obrigação do Convento, outras de outras obrigações, tal como as das capelas e das confrarias, nem todas pagas. Na última semana de abril de 1798, no livro de contas de quando era guardião o P.e pregador Fr. Manuel da Piedade, especifica-se que se “disseram” 23 missas, 7 do Convento, 3 de obrigações, 3 das confrarias e 4 de “ofícios de frades”, somente tendo sido pagas quatro, a 200$000 réis, pelo que houve de receita 800$000 réis (Ibid., liv. 2, fl. s/n.ºv.). Nas semanas seguintes variam os quantitativos, havendo missas pagas a $200, a $300 e, inclusivamente, a 1$550 réis, como ocorreu na terceira semana de maio desse ano de 1798 e que parece corresponder à missa que antecedeu ou finalizou o “Noturno da confraria de Jesus” (Ibid., liv. 2, fl. 1) As festas dos padroeiros das confrarias sedeadas no Convento eram igualmente fontes de receita, principalmente se tivessem sermão, podendo chegar aos 3$000 réis. Os foros representavam ainda maiores fontes de receita, como os provenientes da antiga Terça dos Frades, que a célebre morgada Guiomar Madalena de Sá Vilhena (1705-1789) chegou a colocar em tribunal, em 1771, face à aplicação da lei pombalina de 4 de julho de 1768 e do alvará de 12 de maio do ano seguinte sobre os bens vinculados, mas que veio a ter despacho da Relação de 14 de dezembro de 1776, favorável ao Convento e condenando a morgada ao pagamento das custas do processo. Os seus sucessores acabaram por continuar a pagar a célebre “terça”, como o seu sobrinho-neto João de Carvalhal (1778-1837), futuro conde de Carvalhal, que em janeiro de 1811 pagou pela “sua capela”, 16$440 réis, para além de ter rendido ao Convento, “do merecido da Capela da Terça”, mais 49$400 réis (Ibid., liv. 3, fl. 3). Outra fonte de rendimento eram os peditórios, que extravasavam, em princípio as áreas estabelecidas, pois concorriam com o pequeno Convento de S. Sebastião da Calheta e mesmo com o oratório da Porciúncula da Ribeira Brava. Os peditórios decorriam em determinados períodos, consoante as festas em causa e os produtos a recolher, como era o caso do vinho, do trigo e do pão, para o que o Convento adquiria o vasilhame para a recolha e pagava a determinados “moços” ou donatos para fazerem o peditório, tal como depois pagava pontualmente os transportes, quando excediam as quantidades transportáveis pelo homem. Uma vez recolhidos no Convento, uma parte dos mesmos era vendido. As despesas do Convento eram essencialmente na alimentação, feita à base de peixe de aquisição local, ao contrário dos conventos do Funchal onde a aquisição de peixe era mais difícil, mas também de bacalhau, de salmão fumado, de carne e legumes. Na última semana de março de 1793, e.g., uma das principais despesas foi a do peixe fresco, quase 7$000 réis, mas sendo ultrapassada pela do bacalhau, em que se gastou 7$200 réis. Compraram-se ainda feijão “fradinho”, legumes vários e fruta, vários tipos de azeite, inclusivamente “de peixe”, e lenha para cozinhar, uma despesa sempre corrente; nessa semana, foram 23 feixes, 15 a $150 réis e 8 a $100, num total de 3$050 réis (Ibid., liv. 1, f. 11v.). Os frades cultivavam ainda terrenos na sua cerca e em outras propriedades, inclusivamente, contratando pessoal em épocas de maior trabalho. Tinham vinhas e produziam vinho em adega própria e aguardente, tal como criavam animais. Pontualmente compravam um porco “para o chiqueiro”, que depois deviam matar pelo Natal, tal como também compravam galinhas e tinham ovos, pois, pontualmente, aparece o envio de ovos para o Convento de S.ta Clara, de onde depois recebiam doces. No dia de Jesus, ou seja 1 de janeiro, havia cavacas, tal como também nesse mês, a abertura da arca do servo de Deus era assinalada com um jantar de galinha. Pelo Entrudo consumiam carne de vaca e sonhos, antes do jejum e abstinência da Quaresma. Na Quinta-feira Santa não faltava o arroz-doce e em toda a Semana Santa tinham biscoitos, havendo cavacas do dia de S. João Batista, tal como carneiro e cerejas, aparecendo para outras datas festivas aquisições de especiarias, presunto, queijos e outros doces. As despesas gerais incluíam ainda nesses dias festivos o pagamento de músicos, tal como o do transporte de determinadas entidades que visitavam o Convento, vindas, geralmente, do Funchal, que incluíam, não só o barco como o de rede até S. Bernardino. Uma das contínuas despesas era ainda o tabaco, por certo para consumo do Convento, mas também para pagamento de “mimos” a visitantes, funcionários e simples trabalhadores. Contínua era também a despesa com os irmãos doentes, que obrigava à alteração da alimentação, que passava, essencialmente, a dieta de frango e canja, tal como exigia o pagamento dos medicamentos. Em 1834, no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecido pelo “mata-frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas. A execução do decreto na Madeira foi determinada pelo prefeito da província da Madeira, Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1846), que a 27 de agosto desse ano enviava ao provedor do concelho do Funchal, Manuel de Santana e Vasconcelos (1798-1851) instruções precisas a esse respeito, embora somente cumpridas quase um ano depois. As primeiras diligências ocorreram assim a 7 de abril de 1835, na presença do provedor do concelho, do tabelião Domingos João de Gouveia e do fiscal da fazenda Manuel Joaquim Lopes. Elaborado o inventário do Convento, registaram-se como objetos sagrados, uma custódia, uma âmbula, quatro cálices e um relicário de prata dourada, assim como nas capelas se inventariaram quatro lampadários de prata, um turíbulo, um naveta e três castiçais. Os objetos sagrados foram entregues ao P.e Alexandrino Salgado, vigário capitular da Diocese, e os não sagrados recolheram à provedoria da Fazenda, tendo seguido, a 28 de maio de 1836, no brigue de guerra Tejo, para a Casa da Moeda de Lisboa, de que o prefeito da Madeira havia sido provedor. Todo o conjunto de paramentos e vestiária foi entregue à Diocese e inventariou-se ainda os adornos de prata das diversas imagens. Foram ainda inventariados os livros de coro: um saltério, um antifonário, um livro de missas e um livro de calendário, conjunto entregue à Diocese. No entanto, o conjunto dos 35 livros da biblioteca, os manuscritos de contas do Convento, e um maço de 78 papéis avulsos de escrituras, títulos, provisões e outros documentos, recolheram ao governo civil, sendo depois entregues na provedoria da fazenda. Inventariou-se também todo o mobiliário do Convento, como mesas, cadeiras e, inclusivamente, vidros, loiças, cobres e demais objetos de cozinha, posteriormente vendidos em hasta pública. No mesmo dia do inventário os funcionários da provedoria da fazenda tomaram posse oficial do conjunto dos imóveis, tal como dos bens do Convento, que depois de inventariados e avaliados, previa-se também colocar em hasta pública. Tal aconteceu pouco depois com as diversas propriedades, mas o mesmo não veio a acontecer de imediato com o imóvel. Uma parte do recheio do Convento, a cargo da colegiada da matriz de S. Sebastião de Câmara de Lobos e do vigário-geral da Diocese, foi sendo distribuído pelas matrizes limítrofes, como já havia acontecido com o património dos Jesuítas e aconteceu então com os conventos franciscanos. Na altura do inventário, tal como a paramentaria foi entregue à Diocese, alguns móveis, como os cinco confessionários, duas cadeiras e duas escadas para armações, foram de imediato transferidos para a matriz de Câmara de Lobos. Em abril de 1835, o vigário da freguesia do Estreito de Câmara de Lobos recebeu o sino maior do Convento e o menor foi entregue à matriz da Santíssima Trindade da Tabua. Refere o P.e Pita Ferreira que a imagem de N.ª Sr.ª da Conceição seguiu para a matriz, o sacrário foi oferecido à igreja da Piedade do Curral das Freiras, em 1850, e a imagem do Senhor Jesus foi oferecida à capela da Vera Cruz, na Quinta Grande, em 1866. Com a implantação do Governo liberal foi nomeado para o Funchal um novo vigário capitular e governador do bispado, o Cón. António Alfredo de Santa Catarina Braga (c. 1795-c.1845), que se havia refugiado em Cabo Verde e depois no Brasil, em razão das suas ideias liberais. Tendo já publicado no Porto um folheto contra o culto do “santo”, uma vez na Madeira, a 2 de junho de 1835, fez uma visita extraordinária à capela e lapa de Fr. Pedro da Guarda no extinto convento de Câmara de Lobos. Tendo examinado o monumento onde se guardavam os restos mortais do Franciscano, junto do altar-mor da igreja, mandou-os destruir, o mesmo mandando fazer à pintura existente na capela do “santo” e demais imagens que encontrou, tudo sendo queimado em novo “auto de fé” ao sabor do antigo regime. Entendia assim cumprir o seu “rigoroso dever, para desagravar a verdadeira e sã doutrina do cristianismo”, pois que nunca havia sido canonicamente autorizado o culto de Fr. Pedro da Guarda (A Flor do Oceano, 21 jun. 1835, 30). Se esfriaram e diminuíram momentaneamente estes preitos de devoção e piedade, mas não se extinguiram de todo, tendo-se transformado na sede da paróquia de S.ta Cecília, um número considerável de indivíduos procura a sepultura, onde foram depostos os restos mortais de Fr. Pedro da Guarda. As imagens só se retiraram da igreja de S. Bernardino a 18 de junho de 1837, umas para a igreja paroquial e outras para a posse de algumas famílias que as conservaram, passando a incorporá-las na procissão anual das Cinzas. Entre estas, encontra-se o busto relicário de Fr. Pedro da Guarda, aparentemente datável dos meados ou finais do séc. XVII, que pertenceu à família de Jorge Sabino de Castro, que em outubro de 2002 a doou ao antigo Convento de S. Bernardino. O edifício do Convento foi vendido em hasta pública, a 12 de março de 1872, por 811$000 réis, a Manuel Joaquim Lopes, sendo registado como Convento Velho, e não integrando a capela dos Terceiros e a casa dos romeiros, então registadas como Convento Novo. A venda já se enquadrava num outro contexto político e religioso, pois desde 1857 já funcionava no antigo convento uma escola feminina e, pelo menos desde 1867, se pretendia reedificar o convento e retomar o processo de beatificação do santo, editando-se folhetos sobre a vida do mesmo e reativando-se a devoção através da Ordem Terceira e dos Salesianos, que ali instalaram uma escola. Fig. 1 – Luís Bernes, Desenho do Convento de São Bernardino em Câmara de Lobos, Luís Bernes. Fonte: Semana Ilustrada, 9 out. 1898, 217. O edifício do velho convento, entretanto, arruinava-se decididamente, como comprova o desenho editado pelo pintor Luís António Bernes (1864-1936) na Semana Ilustrada de 9 de outubro de 1898, assim como algumas fotografias da época, mas que ao mesmo tempo demonstram o interesse que passara a haver pelo imóvel. Efetivamente, a 6 de julho desse ano de 1898, os proprietários tinham vendido o convento velho por 60$000 réis ao prelado diocesano D. Manuel Agostinho Barreto (1835-1911), mas que era mais uma doação do que uma venda, pois foi vendido muito abaixo do preço pelo qual o haviam adquirido. As ruinas do velho convento vieram a ser pontualmente recuperadas por iniciativa da M.e Mary Jane Wilson (1840-1916). O projeto de recuperação do edifício teve início por volta de 1911, mas só foi concretizado em meados de 1916 para funcionamento do curso preparatório para o seminário diocesano. Foi neste edifício que a M.e Mary veio a falecer, em 18 de outubro desse ano, não tendo assistido à chegada dos alunos. O edifício voltaria a ter obras de reabilitação, por iniciativa do pároco de Câmara de Lobos, P.e João Joaquim de Carvalho (1865-1942), entre janeiro de 1924 e meados de 1928. A igreja sofreria uma total remodelação, eliminou-se grande parte das preexistências, como a antiga tribuna e as armas dos Vasconcelos nas paredes norte e sul da capela-mor, removeram-se igualmente as lápides sepulcrais e encomendou-se em Braga um retábulo-mor com amplo camarim, executado naquela cidade pela antiga oficina do entalhador Leandro de Sousa Braga (1837-1897), que ainda usava o seu nome. O retábulo custou 12$000 réis e chegou ao Funchal a 24 de setembro de 1926, procedendo à montagem um dos mestres entalhadores da mesma oficina. No ano seguinte ainda haveriam de chegar os altares colaterais, em abril de 1927. A igreja seria de novo benzida pelo bispo do Funchal, D. António Manuel Pereira Ribeiro (1879-1957), a 24 de outubro de 1926, durante as festas de S. Francisco, nesse ano ligeiramente adaptadas para coincidirem com as celebrações do 7.º centenário da morte do patriarca dos Franciscanos. Até 1933, continuou ali a funcionar o curso preparatório do Seminário Diocesano, que nessa data foi integrado no Seminário da Encarnação. O conjunto voltaria a sofrer reabilitação em 1960, para a instalação da paróquia de S.ta Cecília, tendo decorrido, em 2014 e 2016, novas obras de reabilitação geral do conjunto, a cargo da mesma paróquia e com o apoio da Ordem de S. Francisco, segundo projeto de 2006 do ateliê dos arquitetos Victor Mestre e Sofia Aleixo.     Rui Carita (atualizado a 20.02.2017)

Arquitetura Património Religiões Madeira Cultural

corpo santo

Ordenação de São Pedro Gonçalves Telmo. Capela do Corpo Santo do Funchal. Foto BF Corpo Santo é a denominação popular de S. Pedro Gonçalves Telmo (1190-1246), religioso leonês, em princípio, que teria nascido em Astorga ou Placência, tendo entrado para a ordem dos dominicanos e sido prior de S. Domingos de Guimarães. O seu culto aparece associado ao fogo-de-santelmo, eflúvio luminoso que aparece nos mastros dos navios em determinadas condições atmosféricas, bem como noutros lugares, e que deve o seu nome ao congénere padroeiro dos navegantes mediterrâneos, S. Telmo. O seu culto espalhou-se pelas comunidades marítimas do centro e norte de Portugal e da Galiza, sendo o padroeiro, por exemplo, da Diocese de Tui-Vigo. A capela do Corpo Santo do Funchal deve ser uma das capelas mais antigas da cidade, devendo datar dos finais do séc. XV, sendo já referência toponímica na vereação de 21 de fevereiro de 1497 e, em 9 de agosto de 1505, como limite oriental da vila. Entre os finais do séc. XV e os inícios do séc. XVI, os pescadores e marítimos madeirenses organizaram-se em confrarias religiosas sob a devoção do Corpo Santo, devendo a do Funchal ser a mais antiga da Ilha, pelo menos disso se vangloriando os seus membros, o que parece confirmar-se pela sua capela, onde o portal deverá ser pré-manuelino. Pouco depois, provavelmente, ter-se-iam organizado os marítimos da Calheta, que tiveram capela junto da praia, da qual sobreviveu a imagem do orago, dos meados do séc. XVI, e um livro de receita e despesa para os anos de 1738 a 1789, tal como os marítimos de Câmara de Lobos, embora se tenham organizado canonicamente apenas no século seguinte, e dos quais se conhece mais documentação. Os marítimos de Santa Cruz e a sua Confraria ainda foram mais tardios em se organizar, nunca tendo tido instalações próprias, funcionando no altar de N.ª Sr.ª da Conceição da igreja matriz do Salvador, onde ficou uma pequena cartela pintada a óleo com uma fragata, provavelmente dos meados a finais do séc. XVIII. Os marítimos de Machico parecem ter-se integrado nas confrarias ligadas à Misericórdia daquela vila, na capela dos Milagres, e os do Porto Santo ter-se-ão organizado na Confraria de S. Pedro, de que não conhecemos documentação, embora tenham subsistido festejos em honra desse orago. O mesmo parece ter-se processado com os marítimos da Ribeira Brava, organizados na Confraria de S. Pedro e fazendo-se representar nas procissões com a barquinha, miniatura de um barco de pesca, aspeto referido nos compromissos das confrarias do Corpo Santo, nomeadamente na do Funchal, de 1745: “para pompa e crédito da confraria”, quando sair “a bandeira e a barquinha serão acompanhadas por aqueles que se costumam reservar e destinar para esse efeito” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 2, § 2.º). A Confraria e a capela do Corpo Santo do Funchal deve ter gozado de um certo desafogo económico, fruto dos tradicionais “quartões”, ou seja, a quarta parte de quinhão do pescado, entregue pelos seus membros para as campanhas de obras a que a capela foi sendo sujeita. O edifício que sobreviveu parece confirmá-lo, com um portal de arquivolta apontada, muito simples e sem marcação dos capitéis, por certo do séc. XV. O edifício teve uma reconstrução manuelina, com campanário de desenho tardo-gótico sobre a empena da fachada e gárgulas em forma de canhão na abside (Arquitetura religiosa e Gárgulas). Interiormente, ostenta a tábua pintada do orago da primeira metade do séc. XVI, inclusivamente com o santo a abençoar uma nau manuelina em dificuldades, que será a mais antiga representação de uma embarcação na Madeira. Teto da Capela do Corpo Santo do Funchal. Foto BF Da mesma campanha de obras poderão ser as restantes tábuas do retábulo-mor com uma Nossa Senhora da Conceição, um S.to António pregando aos peixes, um S. Lourenço, provavelmente em memória da barca do primeiro reconhecimento feito à Madeira por Zarco e Tristão, e ainda outra tábua dificilmente identificável. O conjunto assenta em predelas igualmente pintadas sobre madeira, com S. Pedro e S. Paulo, havendo uma imagem de Deus Pai a encimar o retábulo, todos estes trabalhos parecendo de uma oficina portuguesa da primeira metade do séc. XVI, conjunto entretanto refeito ao gosto maneirista nos inícios ou meados do séc. XVII. Mais tardia deve ser a pintura da porta do sacrário, com um Senhor dos Passos. A capela do Corpo Santo teve obras em 1559, data que apareceu “na verga de uma fresta que se tapou na parte do norte”, como se registou no frontispício do “livro do compromisso e termos de entrada de irmãos”, tresladado de 1738 (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 80, fl. 1). Entre 1567 e 1570, a capela já apresentava a configuração geral que tem persistido, com um adro mais amplo, à frente e para o lado do mar, como aparece na planta do Funchal de Mateus Fernandes (III) (c.1520-1597), arquivada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNB, Cart. 1090203). A capela do Corpo Santo voltaria a ter obras nos finais do séc. XVI, encontrando-se uma das janelas da capela com a data de 1594. As duas décadas finais desse século teriam sido excecionais para os marítimos do Corpo Santo do Funchal, pois a Confraria possuía um fantástico cálice de prata dourada, com campainhas, datado de 1580, depois exposto no Museu de Arte Sacra e, entre os finais desse século e os inícios do seguinte, mandou executar nas oficinas madeirenses três lampadários de varetas (Ourivesaria e prataria). Por 1590, encomendou a um dos melhores pintores em atividade em Portugal, Fernão Gomes (1548-1612), um novo retábulo de S. Lourenço, que curiosamente já se encontrava pintado no retábulo-mor, o retábulo de Nossa Senhora da Estrela, talvez de outra oficina continental, mas dentro dessa época. Ora se Nossa Senhora da Estrela se encontra dentro das normais devoções dos marítimos e é igualmente invocada para casos de doença, funcionando a confraria com especial ênfase no apoio aos doentes, o recrudescimento da devoção de S. Lourenço encontra-se nessa época, por certo, ligado ao facto de ter assumido o trono de Portugal o Rei Filipe II de Castela (1527-1598). A tábua com um S. Lourenço no retábulo-mor parece indicar, assim, já haver a sua devoção entre os elementos da confraria antes de Filipe II assumir o trono de Portugal, devoção que se manteve no séc. XVIII, tendo o altar missa todas as sextas-feiras e, a 10 de agosto, dia do santo, missa cantada e sermão. Esta evocação, inclusivamente em altar próprio, parece poder confirmar a informação, depois divulgada pelos cronistas do final do séc. XVI, de ter tido a barca em que João Gonçalves Zarco e Tristão fizeram a primeira viagem à Madeira esse nome, que ficou depois como topónimo da primeira ponta que tiveram de dobrar para aportarem à Ilha. Parece também poder-se associar o protagonismo da confraria à estadia no Funchal do Cap. Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) como governador (Encarregado de negócios da guerra), que a partir de 1585 prolonga a muralha do Funchal para oriente (Muralhas da cidade). Por 1600, a muralha atingia as arribas por baixo da então igreja de Santiago Menor, dando origem à necessidade de construção de uma nova fortaleza: Santiago (Fortaleza de Santiago), tendo havido um forte investimento em obras em toda esta área urbana. As obras na capela do Corpo Santo também não pararam, tendo sido a capela-mor totalmente revestida com pinturas sobre a vida do santo protetor, algumas datadas de 1615 e 1616, com um monograma, provavelmente “LSA”, que não levou à identificação do autor. Uma das representações de S. Pedro Gonçalves Telmo, no teto, é acompanhada de uma detalhada representação de uma importante nau, com as armas de Portugal pintadas no castelo da popa e, no mastro grande, a bandeira pessoal dos Reis de Castela. As confrarias do Corpo Santo eram essencialmente constituídas por marítimos. O compromisso da Confraria de Câmara de Lobos, de 1691, que deve transcrever o do Funchal, também reformulado nesse ano, mas que não conhecemos, refere taxativamente que a entrada estava reservada aos homens do mar e pescadores. Pelo compromisso do Corpo Santo de Câmara de Lobos pode concluir-se que, por esse tempo, os pescadores e mareantes daquela localidade procuraram legalizar a sua confraria nos moldes da Confraria do Funchal, cujo compromisso tinha então sido confirmado pelo bispo da Diocese, D. Fr. José de Santa Maria (c. 1640-1708), que tomara posse em março de 1691. Desconhece-se o fundador da capela da Conceição de Câmara de Lobos, sede da Confraria local do Corpo Santo, bem como a data da primitiva construção desta capela, porém sabe-se em 1569 decorriam ali obras. Rui Mendes de Vasconcelos, um dos descendentes de Zarco (c. 1390-1471), deixou, por testamento de 16 de abril de 1569, 3$000 réis para ajuda do lajeamento da “casa de Nossa Senhora da Conceição” (ABM, Misericórdia do Funchal, liv. 684, fl. 52v.). Gonçalo Pires, em 8 de dezembro desse ano, legou, também por cláusula testamentária, 2$400 réis para aquelas obras. Duas sepulturas colocadas a descoberto em 1986, a primeira de António Garcia, tabelião público em Câmara de Lobos, e sua mulher Brásia Soares, datada de 1587, e a segunda de Joana de Atouguia (c. 1550-1631), mulher de Mendo Rodrigues de Vasconcelos (c. 1550-1609), indicam os Atouguia, pelo menos, como financiadores desta capela. Assim, Mendo Rodrigues de Vasconcelos, como neto de um primeiro Rui Mendes de Vasconcelos (c. 1460-c. 1520) e de Isabel Correia, que tinham instituído a capela-mor do convento de S. Bernardino, optara por ali ser sepultado com os pais e avós. Pela altura da oficialização ou reforma do compromisso de 1691, os homens do mar de Câmara de Lobos vão chamar a si a capela de N.ª Sr.ª da Conceição, que se encontrava em estado arruinado e onde já tinham a imagem do seu orago. Em 1702, o bispo do Funchal autorizou a confraria a reconstruir a capela, com a condição de manutenção da imagem de Nª Sª da Conceição no altar-mor e de se reservarem 12 sepulturas para se enterrarem os confrades dos escravos da Confraria da Conceição, mas desta Confraria não restou qualquer documentação. A 9 de maio de 1710, um mandado do Conselho da Fazenda autorizava a arrematação do muro da capela de Câmara de Lobos a João Bettencourt Perestrelo, por 1870$000 réis, sinal provável de que as obras já teriam terminado. O retábulo da capela, datado de 1723, foi executado pelo mestre entalhador açoriano Manuel da Câmara e seu filho e homónimo. No compromisso dos irmãos do lugar de Câmara de Lobos de 1691, a entrada na Irmandade ainda estava exclusivamente reservada aos homens do mar e pescadores. Contudo, no Funchal, o novo compromisso de 1745 admitia já irmãos não vinculados à atividade marítima, desde que pagassem de esmola de entrada $600 réis e um tostão de esmola anual, cobrada no dia da festa do patrono ou quando fosse pedida de porta em porta. Este alargamento a outras profissões, não previsto no compromisso antigo, fizera-se “por serem poucos os homens do mar, como para lhes suavizar as obrigações e poupar suas esmolas para a confraria” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 1.º, § 2.º). Pelos termos de entrada na Confraria do Funchal, concluímos que dos 335 irmãos, com profissão identificável, admitidos entre 1738 e 1772, apenas 49 não eram marítimos: 12 eram sacerdotes católicos, 11 alfaiates, 6 mercadores, 5 sapateiros, 4 barbeiros-sangradores, 2 pedreiros, 2 tanoeiros, 2 ferreiros e mais 4 homens, um de cada uma das seguintes profissões: vendeiro, oleiro, prateiro e carpinteiro, havendo ainda um estudante. Quanto aos clérigos, eram na sua maioria da colegiada de Santa Maria Maior, então Santa Maria do Calhau, cujo vigário presidia à mesa da Confraria do Corpo Santo. Os padres eleitos, capelães “de boa vida e costumes” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 4.º, § 1.º), entravam habitualmente para a irmandade. Assim, para a Confraria do Corpo Santo do Funchal, ao longo do séc. XVIII, tinham passado a entrar elementos não marítimos, mas com interesses relacionados com o mar ou de relevo para os confrades. Francisco Mendes, v.g., era oficial de tanoeiro, mas proprietário de uma embarcação de pesca que varava nas Fontes, e, em 20 de outubro de 1766, entrou para a Confraria sem dar esmola de entrada, por contribuir com o quartão do seu barco. A Confraria tinha conveniências na admissão de irmãos de profissões da terra, numa troca de benefícios recíprocos. Em 20 de abril de 1738, foi admitido na Irmandade do Corpo Santo do Funchal o mestre sangrador Ambrósio Homem, sendo-lhe dispensada a habitual esmola de entrada, mas com a obrigação “de sangrar e deitar ventosas a todos os irmãos homens do mar, suas mulheres e filhos, e a todos aqueles que cada um dos ditos irmãos homens do mar tiverem em sua taxa de obrigação” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 80, fl. 8). Quando não pudesse cumprir esta obrigação, teria de, à sua custa, contratar algum substituto. Só assim gozaria de privilégios idênticos aos que desfrutavam os homens do mar, nomeadamente os 3$000 reis para o hábito de defunto. Mais tarde, em 14 de agosto de 1770, Domingos João de Ornelas, barbeiro, morador em Santa Clara, fez-se irmão do Corpo Santo e também não pagou os $600 réis de entrada, sob a condição de fazer três sangrias por $100 reis aos “irmãos do sítio das Fontes” (Ibid., fl. 67v.), provável indicação de dois grupos de mareantes: os de Santa Maria do Calhau e os do sítio das Fontes de João Dinis. No dia 20 de março de 1772, Jerónimo José Tavares, oficial de barbeiro, foi admitido na Irmandade, sendo-lhe também dispensada a esmola de entrada, em troca da obrigação de sangrar aos irmãos da confraria, cobrando “por cada duas aventaduras”, que pensamos ser a aplicação de ventosas, $100 reis (Ibid., fl. 73v.). No ano de 1743, 6 alfaiates ingressaram também na Confraria, em troca de consertos nas capas de seda que vestiam os irmãos em momentos solenes. As confrarias do Corpo Santo, no entanto, eram essencialmente irmandades de homens do mar e contavam sobretudo com a contribuição destes. O compromisso do Funchal de 1737 determinava que todo o mareante e irmão entregasse $010 de cada 1$000 réis ganhos, e os pescadores dessem uma esmola de peixe, para além das esmolas particulares. Os irmãos de Câmara de Lobos cotizavam, de todos os barcos de pesca e de carreira, meio quinhão para a sua Confraria, o mesmo fazendo os da Calheta. No compromisso de 1745 do Funchal, estipulava-se o quinhão de cada barco, para os marítimos. O quartão, ou seja a quarta parte de um quinhão, era um excecional contributo dos barcos dos mareantes do sítio das Fontes do Funchal. Porém, antes de ser estipulado o quinhão, aquele donativo já era prática corrente. Reunidos em 12 de outubro de 1766, comprometeram-se os arrais daquele sítio, todas as vezes que fossem ao mar em pesca, a entregar ao tesoureiro da Confraria um quartão do pescado. Quando um arrais entrava para a Confraria, normalmente, toda a tripulação do seu barco ingressava também na Irmandade. As mulheres dos marítimos, a partir dos inícios do séc. XVIII, acompanhavam habitualmente os seus maridos na admissão à Confraria, não pagando a esmola de entrada. Pelos termos de entrada na Confraria do Funchal, concluímos que, entre 1738 e 1772, foram admitidos 335 homens e 183 mulheres, das quais apenas 28 ingressaram individualmente, sendo as restantes conjuntamente com os maridos. As confrarias madeirenses do Corpo Santo realizavam anualmente a festa solene do seu patrono, S. Pedro Gonçalves Telmo, e a do Funchal fazia também a festa de S. Lourenço, como estava estabelecido no compromisso e para o que, na sua capela, existia altar consagrado àquele mártir. Os irmãos, de opas brancas, deveriam acompanhar a confraria nas procissões em que habitualmente saía, com a bandeira e a barquinha, como na procissão do Corpo de Deus, e nos funerais dos irmãos falecidos. No Funchal tinham, para além das missas nos domingos e dias santos, missa todas as sextas-feiras no altar de S. Lourenço, nove Missas do Parto e três pelo Natal. No oitavário de Todos os Santos, a confraria ficava obrigada a celebrar um ofício de nove lições, com vésperas, em sufrágio dos irmãos defuntos, e de suas mulheres e filhos. As preces pelas almas dos mortos constituíam grande preocupação da gente marítima que, desprovida de bens materiais para uma capela vinculada, encontrava na confraria o dispositivo adequado para a celebração de missas e outras orações em sua memória. Por cada irmão que morria, por sua mulher, ou por filhos com idade superior a 18 anos e sob poder paternal, a confraria tinha a obrigação de mandar rezar um ofício de três lições, segundo os compromissos de Câmara de Lobos, de 1691, e do Funchal, de 1737, enquanto o seguinte desta cidade, de 1745, estabelecia quatro missas. Os filhos falecidos com mais de 10 anos e menos de 18 tinham direito a duas missas rezadas por suas almas, enquanto aos menores de 10 a confraria apenas facultaria dois círios para o funeral. O compromisso de 1745 do Funchal refere que anteriormente a obrigação por cada irmão defunto, sua mulher ou filhos menores de 18 anos sob a proteção do pai constava de um noturno, mas que se havia mudado, porque as missas “têm mais valor porque são infinitas” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 3.º, § 2.º). Contudo, em Câmara de Lobos, faziam-se habitualmente noturnos pelos irmãos defuntos, como atesta o tesoureiro João da Costa nas contas que presta entre 1776 e 1785. As viúvas dos marítimos desfrutariam destes sufrágios desde que não viessem a casar-se com homens de terra. Os filhos dos homens do mar receberiam idêntica penalização quando abandonassem o ofício de seus pais, e as filhas, quando se casassem com homens de terra. As confrarias do Corpo Santo serviam, assim, também para perpetuar o grupo e evitar ligações fora do mesmo. Os irmãos e suas mulheres tinham direito, por altura da sua morte, à quantia de 3$000 réis, para ajuda da mortalha ou do enterro. Em janeiro de 1742, a Confraria de Câmara de Lobos tornou este privilégio extensível aos filhos dos homens do mar, pescadores ou tripulantes de navios de carreira, contribuintes com o meio quinhão para a Irmandade. O tanger do sino à hora do enterro lembrava à Irmandade do Corpo Santo a sua obrigação estatutária de acompanhamento do funeral do irmão defunto, com as suas opas brancas, a cruz, as insígnias e os círios, “a cera que para essas funções deve se haver pronta”, como se refere no compromisso do Funchal de 1745 (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 2.º, § 2.º). Aos mareantes vítimas de naufrágios ou assaltos em viagem, a confraria tinha a obrigação de dar esmola para o seu sustento. Os irmãos pobres ou enfermos, as viúvas necessitadas e os órfãos recebiam igualmente esmolas, do fundo das sobras. No compromisso do Funchal de 1745, ficou estipulado que apenas uma quarta parte das sobras seria utilizada nestas manifestações de solidariedade. Ainda dentro deste espírito de socorros mútuos, mas já não como esmola, faziam-se empréstimos de dinheiro. Por alguns registos deduz-se que se procedia a cobrança de juros, à razão de 5 % ao ano, o que encontramos em outras confrarias. Estas confrarias contavam, aliás, como a maioria das restantes, com rendimentos oriundos de juros. Em 3 de junho de 1760, v.g., o Cap. João Bettencourt Herédia ingressou na Irmandade do Corpo Santo do Funchal, dando 2$000 réis de esmola de entrada, com a condição de não lhe cobrarem as anuais. Esses 2$000 réis seriam postos “a juro a razão de cinco por cento, que é um tostão, que será para a confraria e ainda depois de sua morte, ficar à dita confraria” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 80, fl. 38v.), conforme declaração do escrivão. Na conta apresentada por João da Costa, tesoureiro da confraria de Câmara de Lobos, dos anos de 1776 a 1785, o capítulo “Rendimento” subdivide-se em “Juristas e alugueres e meias partes” (ABM, Juízo dos Resíduos..., cx. 3). Em 1776, os “juristas” entregaram à confraria 34$830 réis, o que corresponde a 22,5 % das receitas desse ano. O rendimento principal da confraria era constituído pelas esmolas do quinhão, meio quinhão ou quartão. Porém, era uma receita suscetível de variações, por ser uma percentagem e depender do número de saídas para o mar. Outras receitas eram as esmolas anuais, $100 réis no Funchal, esmolas espontâneas, alugueres de casas e, claro, os juros do dinheiro emprestado. Sobre o pescado entregue à confraria, os compromissos estabeleciam normas a fim de se evitarem fraudes. Determinava-se no compromisso de Câmara de Lobos que o meio quinhão de cada barco deveria ser registado pelo escrivão “com toda a inteireza e verdade e se assentará por adições com distinção e clareza no livro” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 1, fl. 18v.). Na Calheta, em 11 de setembro de 1766, ficou determinado pelo juiz do resíduo secular, face ao procedimento pouco correto de alguns tesoureiros nas contas das meias partes, que o seu registo não se fizesse em papéis avulsos, por ocasião das arrematações em praça, mas num livro próprio e pelo escrivão. Em cada termo, deveriam constar os nomes do arrais e do proprietário do barco, do arrematante, que deveria assinar, e a respetiva importância. Para estas arrematações, realizadas na presença do vigário da colegiada da vila da Calheta, o povo deveria ser convocado com oito dias de antecedência. A partir dos finais do séc. XVII, as confrarias do Corpo Santo eram presididas pelo vigário da freguesia, que servia, assim, de juiz, e administradas pelos mordomos da mesa, um escrivão e um tesoureiro. Em Câmara de Lobos eram 3 os mordomos e no Funchal, 12. Os cargos de escrivão e tesoureiro – referindo o compromisso de Câmara de Lobos o escrivão e o arrecadador – eram eleitos em assembleia de irmãos, realizada no dia do patrono e presidida pelo vigário. Segundo o compromisso da confraria do Funchal, de 1745, os 12 irmãos da mesa e o escrivão deveriam ser irmãos da terra, enquanto o tesoureiro seria obrigatoriamente homem do mar. Esta regra criou alguns problemas ao normal funcionamento da Confraria, pois tornava-se difícil o recrutamento de tão grande número de homens da terra, quando a Irmandade se compunha maioritariamente de marítimos. Em 16 de maio de 1756, a Confraria reuniu na capela do Corpo Santo e deliberou retomar os preceitos estatutários antigos, ficando a administração cometida apenas ao escrivão e ao tesoureiro que os homens do mar escolhessem, sem, à partida, estar a elegibilidade condicionada pela atividade profissional em terra ou no mar. As razões apontadas e registadas em ata prendem-se com o reduzido número de irmãos da terra e o facto de estes, normalmente, pertencerem e servirem outras confrarias, recusando a eleição para a do Corpo Santo. Nesta assembleia, os homens do mar reafirmaram a sua posição hegemónica e fizeram valer o seu pragmatismo, para continuação e bom funcionamento da Irmandade “que foi erigida e feita pelos homens do mar e estes até agora, desde sua criação sempre a sustentaram à custa das esmolas que lhes dão do ganho de suas pescarias” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 79, fl. 43). O vigário, o tesoureiro e o escrivão detinham, cada um, uma das três chaves da arca onde se guardavam valores e o dinheiro da confraria, de que subsistiu uma pequena arca na capela do Corpo Santo do Funchal, talvez já dos inícios do séc. XX. Tanto o juiz, como o escrivão e o tesoureiro eram portadores de varas de prata quando participavam em atos públicos da confraria ou em cerimónias em que esta se fazia representar, das quais subsiste ainda uma, de meados do séc. XVIII, assinada por “VIF.”, marca de ourives não identificado. Ao escrivão cabia a guarda dos livros da irmandade, a admissão de novos elementos, e o acompanhamento do tesoureiro na cobrança dos quinhões dos barcos e na arrecadação das esmolas. O tesoureiro ficava ainda responsabilizado pelo inventário da prata e de outros bens móveis. No Funchal, os irmãos do Corpo Santo pertenciam também à Confraria do Santíssimo Sacramento da freguesia de Santa Maria Maior do Calhau, sem esmola de entrada, com direito a todos os sufrágios. Do quinhão que davam dos seus barcos, o tesoureiro da Confraria do Corpo Santo entregava, no final de cada ano, 1/6 ao tesoureiro da Confraria do Santíssimo, ficando assim “os homens do mar mais aliviados de fazerem as suas contas e pagar a 2 cobradores porque em tempos antigos pagavam também um quartão àquela Confraria” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 10.º, § 3.º). Nas confrarias do Corpo Santo os marítimos podiam assim contar com uma série de apoios em vida, quer em casos de naufrágios e de ataques corsários, quer na doença, onde “as necessidades não esperam nem sofrem demoras” (Ibid., § 7.º) e, depois, no sufrágio da sua alma e da dos seus parentes mais próximos, satisfação reconfortante em tempos de profunda crença na eternidade, e sabiam ter o seu corpo direito a um funeral condigno. Em vida, a confraria assegurava-lhe socorro em acidentes e contribuía para a sua sobrevivência, quando doentes ou na velhice, proporcionava cuidados médicos, concedia empréstimos e investia em casas de habitação para arrendamento. As confrarias começaram a conhecer dificuldades quando, ao longo do séc. XVIII, começaram a ser alvo de disputa entre os poderes eclesiásticos e reais, na base dos quais, essencialmente, se encontravam os aspetos económicos. As primeiras ações régias foram para chamar a si a aprovação dos compromissos, o que foi logo transmitido à Madeira e aceite pelo bispo jacobeu D. João do Nascimento (c. 1690-1753), ordem que, a 11 de julho de 1750, transmitiu às confrarias, mas que poucas cumpriram. A 17 de novembro de 1766, haveria nova ordem, então para o provedor das capelas da ilha da Madeira e do Porto Santo, registada na Câmara do Funchal. A Confraria do Corpo Santo do Funchal, v.g., só então enviou os seus estatutos para aprovação em Lisboa, recebendo a aprovação com data de 29 de agosto e a confirmação a 24 de outubro de 1767. A partir de então os conflitos institucionais dispararam, tornando muito difícil a vida das confrarias. A Confraria do Corpo Santo do Funchal ainda estava bem ativa entre 1881 e 1887, período da execução do conjunto dos lampadários e da cruz processional em prata, pelo ourives Guilherme Guedes Mancilha, ensaiador do Porto, e a Confraria de Câmara de Lobos, quando empreendeu, em 1908, uma ampla campanha de reabilitação da capela da Conceição, entregue ao pintor Luís Bernes (1864-1936). Os marítimos madeirenses estiveram, inclusivamente, na base da fundação do mutualismo moderno, quando, em reunião de 17 de outubro de 1897, 177 irmãos decidiram a instalação de uma caixa de montepio marítimo. Mais tarde, a 10 de dezembro de 1950, em cerimónia solene e numa iniciativa da Empresa do Cabrestante, Ld.ª, a gente do mar atribuía o título de arrais ao seu santo patrono, S. Pedro Gonçalves Telmo. A capela do Corpo Santo do Funchal foi classificada pelo dec. nº 30.762, de 26 de setembro de 1940, como imóvel de interesse público, e um decreto de 1974, por intercedência da DRAC, que esclarece que a capela não se designa de Corpo Santo, como normalmente é referida, mas do Espírito Santo; a razão deste esclarecimento é um enigma. Em 1954, a Direção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais procedera a obras de arranjo e reparação, com a demolição do alpendre e da antiga sacristia, a colocação do óculo sobre a porta principal e a substituição da cobertura. As obras prolongaram-se por 1955 e 1957, com beneficiações do exterior, e concluíram-se em 1960. Em 1987 foi efetuado levantamento sumário dos bens, entregue na Diocese e na paróquia de Santa Maria Maior, e nesse mesmo ano a DRAC e a oficina Arte e Restauro executaram a recuperação geral das telas da capela-mor. Em 1995, procederam à limpeza sumária da tábua central do altar-mor e à recuperação geral, para abertura ao público.   Rui Carita

Religiões

clarissas

A presença de Franciscanos e do seu ramo feminino, as Clarissas, desde muito cedo se fez sentir no arquipélago da Madeira. Os frades de S. Francisco acompanharam Zarco e Teixeira na sua jornada de (re)descobrimento das ilhas e foram os primeiros arrimos espirituais dos povoadores. As irmãs de S.ta Clara foram a Ordem escolhida por João Gonçalves da Câmara, segundo capitão do donatário, para ocupar, na Madeira, o primeiro convento feminino. A intenção de dotar a Ilha de uma casa conventual começou a materializar-se a 4 de maio de 1476, quando a bula Eximiæ Devocionis Affectus foi publicada pelo Papa Sisto IV, em resposta a um pedido que lhe fora endereçado pelo capitão, o qual sentia a necessidade de prover a Ilha de um mosteiro onde se pudessem recolher duas das suas filhas, que então se encontravam no Convento de N.a S.ra da Conceição, em Beja, mas também outras jovens que decidissem seguir a vida religiosa. A mesma bula concedia, ainda, a João Gonçalves da Câmara e mulher, D. Maria de Noronha, o padroado do convento, o qual era extensível aos seus descendentes. Para este empreendimento pode, ainda, ter contribuído o empenho de D. Manuel, enquanto duque de Beja e mestre da Ordem de Cristo, que, a 17 de julho de 1488, enviava para a Madeira uma carta onde dizia que o próprio Pontífice se lhe dirigira a solicitar diligências para a fundação de uma casa de religiosas na igreja da Conceição de Cima, comprometendo-se o futuro Rei a doar esmolas para a manutenção das freiras. A localização escolhida foi, como se viu, a zona que circundava a igreja de N.a S.ra da Conceição de Cima, a qual, por sua vez, se situava muito perto da moradia do capitão, nas Cruzes. Determinado o local e em posse da autorização pontifícia, o início das obras foi, no entanto, adiado por razões que se desconhecem, e a edificação só teve lugar a partir da concessão de nova autorização, que o Papa Inocêncio III expediu a 1 de fevereiro de 1491, datando o princípio da construção desse mesmo ano, ou, o mais tardar, dos primeiros meses de 1492. Dadas as frequentes ausências do capitão para a corte, onde era conselheiro do Rei, o acompanhamento das obras ficou entregue a uma das suas filhas, D. Constança, o que talvez explique a demora na conclusão do edifício, que só se verificou em 1497. Uma nova bula, agora a Ex Injunto Nobis, de Alexandre VI, com data de 30 de março de 1495, concedia a licença definitiva e estipulava que o mosteiro fosse de clausura perpétua, subordinado ao guardião franciscano do Funchal, e obedecesse à Regra de Urbano IV, também chamada Segunda Regra de Santa Clara. Esta Regra, fundada em 18 de outubro de 1263, distinguia-se da Primeira pela concessão de benefícios às freiras, que incluíam o direito de receber e ter em comum “rendas e possessões”, o que contrariava o espírito muito mais restritivo e humilde que estava na mente de S.ta Clara, aquando da instituição da sua Ordem (FONTOURA, 2000, 27). Assim, e dentro do quadro da Segunda Regra ou Regra Urbaniana, às irmãs de S.ta Clara do Funchal era ainda autorizado o consumo de laticínios e ovos em todos os dias em que a Igreja permitisse esse tipo de alimentação aos seculares, bem como terem criadas para o seu serviço dentro dos muros do Convento. A inauguração das instalações deu-se com a entrada de quatro ou cinco freiras originárias do Convento de N.a S.ra da Conceição de Beja, entre as quais figuravam uma filha de João Gonçalves da Câmara, D. Isabel, que se tornaria a primeira abadessa do Convento. O facto de as primeiras irmãs terem vindo do Mosteiro de Beja prende-se com a ligação que esta casa monástica tinha à família de D. Fernando, grão-mestre da Ordem de Cristo, a que presidia na qualidade de sobrinho e filho adotivo do infante D. Henrique, sendo casado com D. Beatriz e pai de três senhores da Madeira, D. João, D. Diogo e D. Manuel. Fora, com efeito, por determinação conjunta de D. Afonso V, do irmão, D. Fernando, e da cunhada, D. Beatriz, que se obtivera, do Papa Pio II, autorização para a fundação de um mosteiro da Segunda Regra de Santa Clara, o qual veio a ser precisamente o já referido Mosteiro de Beja. Assim, sem sobressaltos de adaptação a novas condições de profissão, saíram de Beja para o Funchal a filha do capitão e outras quatro companheiras, que iniciaram a vida conventual em S.ta Clara, no Funchal. Uma vez que a Regra Urbaniana permitia a existência de propriedades entregues ao Convento, o património das freiras cedo se começou a consolidar, para o que muito contribuiu a anexação do dote das filhas de João Gonçalves da Câmara, sendo que o plural “filhas” se reporta não só à abadessa, D. Isabel, como a D. Constança, que ingressou também no Convento, embora não chegasse a professar, por ser doente, e a D. Elvira, que igualmente entrou na altura da fundação. Estas irmãs receberam de seu pai uma vasta extensão de terreno que o mesmo tinha adquirido para aquele fim a Rui Teixeira e mulher, D. Branca, a 11 de setembro de 1840, e que até então se chamava Curral Grande. A partir do momento em que passou a pertencer ao Convento, a propriedade mudou de nome e ficou conhecida pela designação de Curral das Freiras, tendo sido nela que, em 1566, aquando do saque dos corsários franceses, as religiosas se refugiaram, tirando partido do carácter recôndito da sua localização. Na senda desta primeira doação, outras muitas se lhe juntaram, tanto mais que D. Manuel, por carta de 17 de julho de 1488, determinara que as freiras que se haveriam de recolher no Mosteiro fossem recrutadas entre “as filhas e as parentes dos principais da terra” (Arquivo Histórico da Madeira, XVI, 1973, 212-213), o que, naturalmente, favorecia a acumulação de bens patrimoniais para a instituição. Do acervo de propriedades que foram entregues ao Convento, contam-se prédios rurais e urbanos, situados, nos sécs. XVI e XVII, no Funchal, em Câmara de Lobos e em Ponta do Sol; no séc. XVIII, foi enriquecido com doações em Santa Cruz, na Calheta e no Porto Santo. Destas terras, cultivadas por colonos ou arrendatários, provinham não só produtos que se exportavam – o açúcar e o vinho – como também bens alimentares fundamentais para a subsistência das freiras e de outro pessoal ao serviço do Convento, pois a pequena cerca situada no interior do Mosteiro não conseguia suprir todas as necessidades dos residentes. Outro recurso financeiro que ajudava a equilibrar a contabilidade conventual era o empréstimo de dinheiro a uns módicos 5 % de juros, montante que a Igreja consentia e que fazia de S.ta Clara uma espécie de casa bancária, permitia às irmãs uma vida desafogada e ainda autorizava as diversas campanhas de obras e melhoramentos que o edifício foi sofrendo ao longo dos tempos (Convento de S.ta Clara). O montante do dote necessário para o ingresso no Mosteiro é um dos critérios que sublinha o carácter elitista da casa religiosa. O montante em questão era, na altura da fundação do Convento, de 200.000 réis, mas, no princípio do séc. XVIII, já alcançava os 600.000, atingindo, mais tarde, o valor de um conto de réis, o que, como facilmente se depreende, não estava ao alcance de famílias com poucos recursos. A idade mínima de entrada no Convento era de sete anos, embora se tenham registado casos em que ingressaram meninas mais novas, e o destino das jovens que o demandavam podia seguir uma de duas vias: ou a educação esmerada, dispensada a quem se destinava, mais tarde, a ser mãe de família e senhora de sociedade, ou o prosseguimento da vida religiosa, alcançando o noviciado e, um ano depois, a profissão. Independentemente do percurso, as educandas do Mosteiro eram instruídas nas artes de ler, escrever e contar, seguidas da aprendizagem da música, do latim e da caligrafia, sendo as freiras famosas, ainda, pelos seus atributos nas artes decorativas, nos bordados e nos cozinhados. No âmbito das suas competências culinárias incluem-se os famosos doces do Convento, o mais célebre dos quais, e segundo Eduardo C. N. Pereira, seria o famoso bolo de mel, de reputação internacional. Confirmações dos atributos das religiosas nestas áreas são ainda obtidas por testemunhos, que foram ficando, de visitantes do Convento, um dos quais do médico inglês Hans Sloane, que, em 1707, se deslocou ao Convento a pedido da abadessa, a fim de observar o estado de saúde das irmãs. Pelo relato que deixou dessa incursão se fica a saber que achou que as freiras sofriam de tuberculose e “clorose” (anemia), motivada esta última por uma “vida melancólica, solitária, sedentária”, à qual faltava exercício. Mas constatou o médico, igualmente, que se tinha deliciado com uma refeição de frutas e compotas, consumida numa divisão cuja mobília tinha tido o contributo das irmãs, crê-se que na decoração, concluindo que “até agora, quer nas compotas, quer no mobiliário nunca vi coisas tão boas” (SILVA, 2008, 27). Um século depois, eram as flores, umas de cera, outras de penas pintadas, que, em conjunto com as compotas, eram compradas no locutório do Convento por visitantes, alguns dos quais Ingleses que passaram a incluir uma visita a S.ta Clara no seu itinerário insular, atraídos pela beleza singular, e muito nórdica, de uma freira em particular – a irmã Clementina. Para além desta irmã, cujo encanto ficou famoso, outras havia, donas também de grande formosura – de que são exemplo Genoveva e Cândida Luísa, cuja presença justificava o afluxo, às vezes enorme, junto do parlatório do Convento. No conjunto dos visitantes encontravam-se cavalheiros que, embora contentando-se com “um olhar do coro, uma palavra na grade, um suspiro no ralo”, não deixaram de ser apodados de freiráticos e seguidores de um movimento que já nascera no século anterior (SILVA, 1987, 178). Com efeito, encontram-se sinais destas práticas logo em 1734, quando uma visita ao cabido da Sé do Funchal, ordenada por D. Fr. Manuel Coutinho, identificou dois cónegos que mantinham “correspondência ilícita” com as freiras de S.ta Clara, tendo um deles sido visto a receber “uma cestinha… que parecia ser presentinho de freira” (ACDF, cx. 47-A, doc. 15, fls. 5-6v.). Esta interação entre o exterior e o interior do Convento vinha de longe e tinha muitos protagonistas. Por um lado, ao abrigo da Regra que professavam, estavam as freiras autorizadas a ter criadas e escravos para o seu serviço no Mosteiro, os quais, não estando limitados por votos de nenhuma espécie, saíam e entravam livremente na cerca, trazendo e levando notícias. Por outro, era também tradição que senhoras da sociedade, familiares ou não das professas, solicitassem autorização para permanecer alguns dias, anos, ou para sempre no Convento, aumentando assim o número de pessoas que passavam a residir no interior, situação que se agravava pelo facto de elas também se fazerem acompanhar de servidores. Assim, não admira que as instalações, que, nos finais do séc. XVI, registavam cerca de 60 residentes, passassem a contar, em 1722, com 170, das quais 100 supranumerárias, decrescendo depois o número para perto das 150, em 1764, embora, depois, as vicissitudes económicas e políticas que trouxe o séc. XIX acabassem por o reduzir para perto de 50. Com efeito, a conjuntura adversa para as congregações religiosas, que se registou com o advento do liberalismo, afetou profundamente a vida no Convento, que não conseguiu manter-se imune às circunstâncias que se alteravam fora dele, antes repercutindo o comportamento das freiras os reflexos das mudanças. A própria Ir. Clementina, já antes referida, admitia, perante os seus admiradores, ser apreciadora das obras de Madame de Staël, figura importante do Iluminismo francês, e a imprensa regional fazia-se palco dos desabafos de uma “Freira Constitucional” que, em 1821, utilizava as páginas de O Heraldo da Madeira para criticar a governação do Convento e a sua excessiva sujeição ao custódio de S. Francisco. Numa tentativa desajeitada para contrariar as denúncias, “Uma Freira Zeladora da Verdade” e um “Donato Constitucional da Portaria”, que se pensa ser o leigo que controlava os ingressos no Mosteiro, publicavam uma resposta que mais não fazia que confirmar as queixas da “Freira Constitucional”, quando repudiavam ser responsabilidade da abadessa o que se via no parlatório e que incluía “funções de comer, beber, tocar e cantar” (SILVA, 1987, 179). Para agravar este mal-estar contribuía, também, o descalabro das contas do Mosteiro, o qual, desde os finais do séc. XVIII, vinha a acumular uma série de anos de saldo negativo, que, em 1871, já atingia os dois contos de réis. Outra manifestação da conjuntura adversa encontra-se no aumento do número de pedidos para interromper a clausura por parte de freiras que alegavam motivos de saúde e necessidade de tratamento, reclamando igualmente para si os benefícios da liberdade conferida por D. Pedro IV na sua Carta Constitucional. A vitória definitiva do liberalismo produziu legislação muito lesiva da vida monástica, como se atesta pela publicação do decreto de 5 de agosto de 1833, que impedia os conventos de aceitarem candidatos ao noviciado, seguido, pouco depois, a 30 de maio de 1834, do decreto de Joaquim António de Aguiar, o “mata-frades”, que implicava o encerramento imediato das congregações masculinas. As femininas não foram atingidas por esta última determinação, tendo, porém, de seguir o estipulado no decreto de 1833, que as condenava a um lento agonizar. Desta longa caminhada para o fim, atingido em 1890, com a morte da derradeira freira, ficou um testemunho na visitação que o bispo fez ao Convento em junho de 1860, pela qual se constata que as freiras, idosas e doentes, apenas se queixavam de serem maltratadas pelas criadas, ao mesmo tempo que afirmavam nada haver a declarar como transgressão à regra e confirmavam a observância dos “atos corais” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. 103, fls. 111v.-115). Apesar de falecida a última irmã, ainda havia no Convento um grupo de pessoas, no qual se contavam 31 senhoras, entre pupilas, servas e recolhidas, que pediram licença para que se pudessem conservar no edifício, a qual, depois de concedida, acabou por transformar o antigo Convento em recolhimento. Quando, em 1896, o prédio foi entregue à Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas, elas continuaram a poder viver em algumas dependências, e ali se mantiveram até pelo menos 1940. Em 1898, a Associação conseguiu instalar em S.ta Clara a Congregação das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, que ali se entregaram à preparação de irmãs destinadas a prestar serviço nas colónias, bem como às outras finalidades contempladas na concessão do prédio: colégio, refúgio para retemperar as forças das freiras regressadas do ultramar e asilo para raparigas pobres. A implantação da república veio, no entanto, obrigar ao abandono do edifício por parte da Congregação, tendo o edifício passado sucessivamente para as mãos da Câmara Municipal, da Santa Casa da Misericórdia e do Auxílio Maternal. O reacender da necessidade de investimento em África determinou, em 1926, a passagem da construção para a tutela do Ministério das Colónias, que o devolveu à Associação Auxiliar das Missões Ultramarinas e às Franciscanas Missionárias de Maria. A partir de 1928, no antigo Convento de S.ta Clara esteve um lar para estudantes, uma escola primária, e finalmente um infantário. Convento de N.a S.ra da Encarnação O Convento de N.a S.ra da Encarnação nasceu do cumprimento de uma promessa que o Cón. Henrique Calaça Viveiros fizera, no sentido de instituir uma casa religiosa, caso conseguisse ver, de novo, um Rei português no trono de Portugal. Alcançado esse desígnio com o golpe de 1640, que devolveu o governo do reino a um representante da Casa de Bragança, D. João IV, o cónego deu, de imediato, andamento à concretização do seu projeto. Proprietário de uma quinta, “no melhor sítio da cidade”, em terreno anexo à capela de N.a S.ra da Encarnação e sobranceiro ao Funchal, o cónego logo tratou de nela fazer construir um recolhimento para donzelas, cujas obras se iniciaram em novembro de 1645 (FONTOURA, 2000, 152-153). Em 1652, já nele se encontravam as primeiras recolhidas, a quem o fundador dotou da Regra Terceira da Ordem do Carmo, e cujo número foi crescendo, pois, quando, em 1658, o cónego solicitou à Rainha autorização para que o recolhimento passasse a mosteiro, já se contabilizavam 20 entre as que lá residiam (GOMES, 1995, 18). Antes disso, porém, já Calaça Viveiros impetrara ao Papa Inocêncio X licença para que o recolhimento passasse a convento, a qual lhe foi concedida por breve de 16 de novembro de 1651, que autorizava, ainda, a saída de uma freira de S.ta Clara que pudesse desempenhar no novo estabelecimento as funções de abadessa, desde que houvesse o compromisso de que a Regra a professar fosse uma das existentes. A Ordem Terceira do Carmo cumpria esse critério, mas o facto de impedir o consumo de carne às suas seguidoras foi o fator que pesou na sua não adoção, pois, naquela altura, a falta de pescado existente na Ilha não permitia assumir um compromisso desse tipo. O Convento, devidamente autorizado pelo Pontífice e pela Rainha, e dotado dos rendimentos necessários ao funcionamento, cedidos pelo fundador, pôde receber as primeiras professas, por alvará de 15 de novembro de 1659, ainda que a Regra a que obedeceria tivesse deixado de ser a do Carmo, substituída pela Segunda Regra de Santa Clara, em razão das restrições alimentares já referidas. Uma outra razão que também contribuiu para a pronta aceitação da fundação de um mosteiro de freiras no Funchal prendia-se com a necessidade que a Ilha sentia de mais uma casa conventual feminina, pois a única existente, o Convento de S.ta Clara, era manifestamente incapaz de acolher todas as candidatas, cujo número aumentava na proporção do crescimento populacional que o arquipélago vinha registando. A demora no surgimento do segundo convento feminino não deixou, no entanto, de ser estranha, particularmente se se contrastar o que se passava na Madeira com o que sucedia nos Açores, onde, entre o séc. XVI e o séc. XVIII, surgiram pelo menos 16 casas de Clarissas, conforme registado em estudo de Margarida Lalanda, mas a intervenção do Cón. Calaça veio permitir o colmatar da lacuna. Outras condições subjacentes à fundação da casa monástica eram o número de professas, que deveria ser de 30, alterável com autorização régia, e a sujeição ao prelado da Diocese, ao contrário do que acontecia com S.ta Clara, que obedecia ao custódio franciscano. O padroado do Convento ficou para o cónego fundador, ainda que este se tivesse esforçado por prescindir dele, na medida em que tentou transferi-lo para a Coroa, a qual, contudo, pelo mesmo alvará de 15 de novembro de 1659, já atrás mencionado, lho voltou a atribuir. O cónego até renunciava a ser sepultado no Mosteiro, argumentando que, como membro do cabido, teria túmulo na Sé, mas as freiras nisso não consentiram, jazendo o seu corpo na capela da Encarnação. Por escritura mencionada no seu testamento se estipulou, ainda, que a família Andrada, possuidora do lugar da Provedoria da Fazenda régia na Madeira, se tornasse protetora do Mosteiro, o que explica que os provedores se tornassem amparos do Convento e nele se fizessem enterrar. O ingresso no Mosteiro podia fazer-se a partir de idade muito jovem, encontrando-se nos registos conventuais casos de meninas que ali entraram com idades que variavam entre os 5 e os 12 anos, de origem social diversa. Tanto podiam provir, e muitas eram essas situações, de meios familiares abastados e favorecidos, destinando-se a serem educadas para a sociedade, ou a professar, se essa viesse a ser a sua vontade, ou a da família, como se encontram jovens pobres, cuja estadia era subsidiada pela própria casa conventual ou pelo bispo. A organização interna do Mosteiro passava pela obediência à abadessa, eleita de três em três anos e impedida de permanecer dois períodos consecutivos à frente dos destinos da comunidade, sendo escolhido, para assessorar a superiora, um número variável de freiras, que podia oscilar entre três a oito, conforme o número de professas que o Convento ia tendo. Esse conjunto de auxiliares diretas intitulava-se “discretório”, e, para além deste conselho restrito, o normal funcionamento do Convento exigia, ainda, reuniões semanais do capítulo provincial, às quais compareciam todas as professas, que tinham de ser informadas sobre os atos maiores da administração, quer fossem de ordem material, quer espiritual. As jovens admitidas à vivência conventual eram, depois, sujeitas a um percurso educativo que as levava da aprendizagem do básico (ler, escrever e contar) até ao domínio de conhecimentos mais sofisticados, do latim e da música, e.g., necessários tanto às que saíam e se queriam superiormente instruídas, como às que permaneciam e tinham de colaborar em celebrações litúrgicas, lendo os textos em latim ou cantando para acompanhar os ofícios sagrados. Outras artes eram também ministradas no Convento: as decorativas (o desenho, a pintura, o bordado) e as da culinária, nas quais, mais uma vez, se celebrizou a produção conventual. Testemunhos dos consumos na área dos cozinhados ficaram exarados em documentos recuperados por Cabral do Nascimento, que os publicou e a partir dos quais se pode constatar a fartura e a variedade que ia à mesa das freiras. Os recursos materiais para manter aquele nível de vida vinham, como seria de esperar, da pertença do Convento à Segunda Regra de Santa Clara, o que implicava, como se viu, a posse de dotes vultosos para ingresso na comunidade, sendo esta casa monástica, à semelhança do que acontecia com S.ta Clara, beneficiada pela acumulação de propriedades rústicas. Estas situavam-se, sobretudo, na Calheta, em São Vicente, em Santana e em Câmara de Lobos, enquanto na cidade se localizavam alguns prédios urbanos, havendo outros no Porto Santo, terra de origem do Cón. Calaça. Das propriedades lhes vinham os legumes necessários ao quotidiano, mas também trigo, e outros cereais, açúcar e vinho, que se comercializavam. Outro produto que também figura nos bens transacionados pelo Mosteiro é o tabaco, que chegava ao Convento como forma de pagamento usada pelos Ingleses, que se serviam dele para pagar encomendas de vinho. Inicialmente considerado medicinal, uma vez que tinha propriedades relacionadas com o alívio da dor e adjuvantes da cicatrização, o seu uso, sobretudo inalado, vulgarizou-se, não só dentro, como fora do Convento, sendo também utilizado para presentear colaboradores da instituição. A vivência religiosa desta casa conventual registou momentos de grande elevação, compendiados por Noronha, que já fizera o mesmo em relação às freiras de S.ta Clara, e que elencou os casos mais assinalados de freiras que levaram vidas exemplares, mas também situações que não podem deixar de ser reprovadas e que resultavam, sobretudo, da forte contaminação que a vida intramuros sofria do exterior. Assim, em tempos de D. Fr. Manuel Coutinho (D. Fr. Manuel Coutinho), um bispo jacobeu que fora para a Madeira com intenções de “plantar nova cristandade” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, l. 1346, fl. 65), e que rapidamente se envolvera em conflitos, que, entre outras entidades, implicavam a Câmara Municipal, à frente da qual se encontravam parentes das freiras, registou-se um enfrentamento entre prelado e professas nunca dantes visto. Sendo a abadessa parente próxima de importantes homens da governança, as más relações entre o bispo e o senado ultrapassaram os muros do Convento e estiveram na origem de um rompimento de clausura que muito escandalizou a população da cidade. Os acontecimentos precipitaram-se quando o prelado, usando de uma prerrogativa sua que condicionava a nomeação de titulares de ofícios conventuais, decidiu mudar a porteira, numa tentativa de impedir o acesso indiscriminado às freiras por parte de elementos da sociedade civil. Entendendo que esta atitude violava privilégios que tinham como adquiridos, as freiras alvoroçaram-se e decidiram sair do Convento, descendo a Calç. da Encarnação em direção ao paço episcopal, sendo travadas já muito perto de atingirem o seu objetivo, e, depois de convencidas pelo desembargador José de Sequeira, acabaram por recolher a casa. Em tempos de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1756-1784) o bispo incumbiu dois sacerdotes vicentinos que o acompanhavam desde o reino, os padres José Alásio e José dos Reis, de visitar conventos, entre os quais o da Encarnação, e o relato que os sacerdotes deixaram das suas averiguações é muito pouco abonatório das práticas que lá encontraram. Segundo o que ficou registado, o P.e Alásio dava conta de que, no Convento da Encarnação, as freiras “traziam véus de seda, veiados de pano fino, e ornavam a testa (pouco juízo havia nela!) com um bico mui comprido. Andavam vestidas de azul (linda cor) e para afetar a sua gravidade, arrastavam uma grande cauda” (PEREIRA, 1993, 48). Se se tiver em conta que a cor dos hábitos das Clarissas é o castanho, com véu branco ou preto, conforme forem noviças ou professas, não é de estranhar o espanto do P.e Alásio, agravado, ainda, pela tomada de consciência de quanto os valores do mundo exterior se refletiam num universo que se desejava despojado, centrado na oração e no abandono das práticas mundanas. Talvez influenciado pelas notícias que recebera das formas de vida daquele Convento, o bispo seguinte, D. José da Costa Torres (1874-1796) em carta que endereçou ao ministro Martinho de Melo e Castro, com data de 10 de agosto de 1788, na qual abordava várias questões da Diocese, referia-se ao Convento da Encarnação, começando por afirmar que subscrevia a posição já tomada por D. Fr. Manuel Coutinho, que há mais de 50 anos deixara escrito que “melhor fora que não o houvesse” (AHU, Madeira, pasta 5, capilha 842). As razões em que apoiava a sua opinião prendiam-se com diversas irregularidades, nomeadamente a de o Convento ter sido fundado para 30 freiras, mas já ter atingido as 140, e de as freiras serem servidas por 30 criadas que lá ainda se mantinham, apesar de, à época, aquelas serem apenas 69. Como o número ainda era excessivo, o prelado fazia por se manter “surdo” aos apelos da abadessa, que queria deixar entrar mais noviças, acrescentando que se não fossem alguns condicionalismos que o embaraçavam, já teria mandado pôr na rua “uma grande parte delas”. Em termos económicos, o Mosteiro também deixava muito a desejar, pois as rendas eram muito escassas, ou por má gestão ou por roubo dos administradores, pelo que as freiras se encontravam sem o “necessário para viver”, padecendo muitas “necessidades”. Com alguma candura, o prelado confessava “estar tremendo” de ir visitar o Convento, pois temia que qualquer providência que pretendesse aplicar tropeçasse na falta do “necessário comum, que é a primeira causa de toda a relaxação”. A proposta do bispo para resolver esta situação aflitiva era a da fusão deste Mosteiro com o de S.ta Clara, que tinha “melhor governo”, o que permitiria utilizar o prédio da Encarnação para nele se instalarem Salésias, vocacionadas para o ensino de meninas, o que o bispo considerava de “suma utilidade”. Assim, pedia ao ministro que intercedesse junto da Rainha para que se autorizasse a vinda de quatro Ursulinas, cujo sustento o bispo providenciaria pelo menos por 10 anos (Ibid.). A opção episcopal quer por Salésias, quer por Ursulinas, duas Ordens vocacionadas para a educação de jovens raparigas, umas mais nobres (Salésias), outras mais pobres (Ursulinas), mostra bem onde se localizava parte das preocupações do bispo, para as quais ele considerava não haver resposta possível por parte das freiras da Encarnação, nem também das de S.ta Clara. A pretendida união dos Conventos da Segunda Regra de Santa Clara então existentes na Madeira não se operou com a proposta de D. José da Costa Torres, mas acabou por se verificar quando, fruto da ocupação inglesa, as tropas britânicas necessitaram das instalações da Encarnação para alojamento militar, pelo que, em janeiro de 1810, aquilo por que as autoridades eclesiásticas tanto tinham ansiado acabou por se concretizar, fruto de circunstâncias muito diversas. As duas comunidades viveram juntas até que, depois da saída dos britânicos, em 1814, as religiosas da Encarnação puderam regressar às suas antigas instalações e, assim, cumprir uma vontade que desde há muito as animava. Aquilo que as esperava não era, porém, o que haviam deixado. A presença inglesa e as obras de adaptação do Convento a hospital das tropas britânicas tinham modificado profundamente a estrutura do edifício e a sua requalificação para Convento foi feita a expensas das próprias religiosas. Esta circunstância, acrescida da mudança dos tempos, com a vitória do liberalismo, e a constante integração na comunidade de recolhidas e servas vindas do século, não fizeram senão agravar a já muito débil economia da comunidade, pelo que o conjunto cada vez mais diminuto de freiras residentes acabou por se extinguir com o falecimento da última religiosa, em 1890. Passado o edifício, que, de resto, estava “velho e desmantelado”, para a posse do Estado, encaminhadas as derradeiras recolhidas, umas para S.ta Clara, outras para a família, e ainda algumas para o labor de funcionárias públicas, era preciso decidir sobre o futuro do prédio. Depois de ponderada a sua passagem para a misericórdia e para as Oficinas de S. José, que ainda lá chegaram a instalar-se, ainda que por pouco tempo, em 1904, o bispo D. Manuel Agostinho Barreto intercedeu junto do Ministério da Fazenda para que lhe cedessem a posse do velho edifício, pois lhe parecia ideal para lá fazer edificar o Seminário Diocesano, que desde a sua fundação cumpria uma longa itinerância por vários locais do Funchal. Obtida a autorização, o bispo meteu ombros à tarefa e, com fundos seus, da Diocese e provenientes de dádivas de particulares, o novo edifício, uma vez que o velho fora demolido, foi crescendo a bom ritmo, de modo que, em 1909, embora ainda não estivesse pronto, pôde já recolher os primeiros estudantes. Escasso foi, porém, o tempo de funcionamento do Seminário, pois, logo em 1910, a implantação da república ditaria o seu fim, no imediato. A construção foi cedida para que nela se instalasse uma escola de Belas Artes, que principiou a funcionar em 1914, à qual se seguiu a utilização do prédio para a Junta Geral do Distrito, que o comprara ao Estado. Uma nova alteração das circunstâncias políticas da nação, proporcionada pelo golpe de Estado de 28 de maio de 1926, fez com que o edifício retornasse à posse da Diocese, o que não se concretizou sem que a Junta Geral apresentasse veemente protesto. Ultrapassados os entraves levantados, foi então possível que, em 1933, o Seminário lá voltasse a instalar-se. Aquela construção, sempre muito atingida pelas vicissitudes políticas de épocas diversas, voltaria a ser perturbada no pós-25 de Abril de 1974, quando um grupo de estudantes decidiu ocupar as instalações do Seminário, que pouco antes fora encerrado por decisão do bispo D. Francisco Santana. A partir de então, e até 2004, funcionou ali a Escola Básica de 2.º e 3.º Ciclos Bartolomeu Perestrelo, a qual, nessa data, e por ter sido dotada de edifício novo, se transferiu para novas instalações. Em 2015, o velho edifício da Encarnação estava na posse da Diocese, ainda que, à data, sem utilização. Convento de N.a S.ra das Mercês O Convento de N.a S.ra das Mercês foi, tal como o recolhimento que o antecedeu, fundado por Gaspar Berenguer, um descendente de Pedro Berenguer de Lemilhana, médico natural de Valência que, em finais do séc. XVI, se estabeleceu na Calheta, em lugar que se chama Lombo do Doutor. Vários membros desta família foram para o Brasil combater, quando os territórios portugueses se acharam ameaçados pela presença holandesa, e entre eles contava-se, precisamente, Gaspar Berenguer, o qual, pela bravura demonstrada em combate, foi agraciado com o título de fidalgo d’El-Rei e com o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo. Regressado à Madeira, tornou-se senhor do morgadio do Lombo do Doutor e casou-se com D. Isabel de França, mulher com quem se irmanava no fervor religioso. Juntos, determinaram fundar a capela de N.a S.ra das Mercês, a qual seria, posteriormente, acrescentada de um recolhimento, primeiro, e de um Convento, depois. A capela acabaria por ser erguida num terreno “ainda selva”, situado nas proximidades quer do Convento de S.ta Clara, quer da igreja de S. Pedro, e foi consagrada a N.a S.ra das Mercês, por estar esta invocação muito ligada ao resgate de cativos, e Gaspar Berenguer, dada a sua vida aventurosa de combatente, se sentir particularmente ligado a quem intercedia pela libertação dos prisioneiros. Pode, inclusivamente, e em abono desta tese, registar-se um episódio em que um parente de Gaspar Berenguer, António Berenguer de Andrade, tendo ficado prisioneiro no Arraial do Bom Jesus, conseguiu depois ser resgatado por uma quantia elevada, graças à intercessão de Nossa Senhora. A escolha da localização da capela está ligada à primeira lenda das várias que se entrelaçam com a história desta casa monástica. Segundo se contava, na altura, alguém, de “reconhecida virtude”, viu aparecer, durante algumas noites consecutivas, no local onde depois nasceria o Convento, a Virgem, rodeada de luz, a combater uma legião de demónios, que assim manifestavam a vontade de que ali se não construísse uma torre que abrigasse “uma milícia de virgens”. Esta convicção ficou tão enraizada na população que nem o liberal Álvaro de Azevedo ousou questioná-la, tanto mais que na primitiva igreja do Convento se encontrava uma figuração do episódio, representando a Virgem na mira de flechas disparadas pelos seres malignos, que o anotador de Saudades da Terra considerava não ser de “moderna data”, sendo, pois, respeitável pela antiguidade (FRUTUOSO, 2008, 591). Azevedo, contudo, e um tanto paradoxalmente, uma vez que reproduz muitas das lendas que rodeiam a fundação deste Convento, não se exime de reprovar que as Constituições do bispado não contenham qualquer alínea que impeça a proliferação de relatos fantasiosos que povoam a história eclesiástica da Madeira. Ainda que se desconheça a data da construção da capela, sabe-se que o Jesuíta João Ribeiro, amigo íntimo do casal Berenguer, logo incentivou Berenguer a que prosseguisse a obra, juntando-lhe um recolhimento para “donzelas nobres e virtuosas” (NORONHA, 1996, 283), tendo o projeto arrancado com dinheiro de família, a que se acrescentou mais algum, proveniente de contribuições de diversos particulares. De acordo com nova lenda, outros fundos teriam surgido por intervenção da própria Senhora das Mercês, que, numa noite, aparecera em sonhos a D. Isabel de França, na altura muito preocupada com o depauperado estado das suas finanças, o que ameaçava impedir a continuação da obra. A Virgem ordenou-lhe, então, que se desfizesse de todos os bens que pudessem ajudar à construção, inclusive da “camisa” (FRUTUOSO, 2008, 592), e, ao assim proceder, conseguiu D. Isabel o essencial para dar início à construção. A 12 de outubro de 1655, lançou-se a primeira pedra do edifício, e a obra foi progredindo, apesar de um variado número de obstáculos que se apresentavam, entre os quais estavam a oposição movida quer pelo governador, D. Francisco de Mascarenhas, quer pelo deão, Pedro Moreira. Para obviar à perseguição do governador, que ameaçava prender os trabalhadores da obra, aparece de novo uma outra lenda, que diz que D. Isabel de França recolhia, durante o dia, os homens envolvidos na construção em sua casa, os quais só de noite prosseguiam os trabalhos, ajudados pela própria patrona. Esta, que continuava com problemas de dinheiro, mais uma vez os viu resolvidos pela intervenção de Nossa Senhora das Mercês, que em sonhos lhe apareceu, informando-a de que, junto a uma pedra de moinho que havia no jardim, se encontrava o montante suficiente para a conclusão das obras. Depois de acordar, D. Isabel de França deslocou-se ao local indicado e lá encontrou um brinco de ouro e mais dinheiro, com os quais confortavelmente se pôde terminar a obra. Outras circunstâncias providenciais se encarregaram, no entanto, de prosseguir com a remoção das animosidades manifestadas à progressão do projeto. Do lado do governador, a sedição de 1668, encabeçada precisamente pelo deão, acabou por conduzir à sua prisão e deportação. No tocante ao deão, surge, mais uma vez, uma lenda que explica que, tendo o capitular ido ao Porto Santo, no desempenho das suas obrigações, sofreu um naufrágio na viagem. Vendo-se em grande aflição, atribuiu o sucedido à má vontade que manifestava em relação ao recolhimento das Mercês e logo ali se encomendou àquela Senhora, jurando mudar de atitude para com as recolhidas. Esta é, portanto, uma explicação para a futura disponibilidade que Pedro Moreira mostrará para com o recolhimento e o Convento das Mercês. Com o avanço das obras, foi possível que, a 15 de junho de 1656, nele entrassem as primeiras sete recolhidas, entre as quais se contava a irmã mais nova do fundador. A 12 de fevereiro de 1658, o deão, Pedro Moreira, visitou as instalações e, por as achar conformes, autorizou que o recolhimento assumisse um cariz religioso, com sacrário e outras graças concedidas a “lugares pios” (FONTOURA, 2000, 253). Cresceu a instituição em número de recolhidas e de práticas devocionais, manifestando as senhoras residentes uma vontade cada vez maior de se tornarem professas. Nesse sentido, o vigário geral prometeu tomá-las à sua responsabilidade, que se estendia também a futuros bispos da Diocese, e foi esta a conjuntura que levou Gaspar Berenguer a encetar diligências para transformar o recolhimento em Convento, para o que endereçou uma petição ao Rei, secundada pela Câmara Municipal, pelo governador e pelo provedor da Fazenda. Perante uma tal coincidência de vontades insulares, o Rei não demorou a conceder a mercê solicitada, estipulando que o Convento se fundasse com lugar para 21 professas, sob a Primeira Regra de Santa Clara, e tendo como padroeiros Gaspar Berenguer e a mulher, que beneficiavam de dois lugares para jovens da sua família, e vinculavam à manutenção da casa o rendimento de 130.000 réis por ano. O novo Convento ficava também, e à semelhança do da Encarnação, sujeito à jurisdição episcopal. Concedida a licença régia por alvará de 15 de agosto de 1661, posteriormente reafirmada a 19 de maio de 1662, só a 20 de dezembro de 1663 saiu de Lisboa o documento, o que explica a demora no pedido de autorização endereçado às autoridades eclesiásticas, as quais só a 5 de julho de 1664 receberam a petição do Cap. Berenguer. Depois de auscultados o comissário do Convento de S. Francisco e o vigário de S. Pedro que oficiava no recolhimento, o deão e vigário geral, Pedro Moreira, deu, então, a última das autorizações, i.e., aquela que finalmente possibilitava a ereção canónica do Convento. Como uma das condições para o seu funcionamento era a de estar dotado dos bens suficientes à sustentação das freiras, que, por serem da Primeira Regra de Santa Clara, a de mais rigorosa pobreza, não podiam ter propriedades, o fundador complementou a renda anual já anteriormente estipulada com mais 11 moios de trigo por ano, os quais, acrescentados aos 3 que já abasteciam o recolhimento, passaram, então, a ser 14. Seguiu-se o breve pontifício que legitimava todos os passos anteriormente dados, o qual foi dado em Roma a 17 de agosto de 1665, e chegou ao Funchal em finais de 1666. A 13 de junho de 1667, recebeu o Convento a sua primeira abadessa, novamente uma freira de S.ta Clara que para ali se mudou, a fim de dotar o Mosteiro das regras necessárias ao seu bom funcionamento. Com efeito, e de acordo com outra das várias lendas que se encontram associadas a esta casa monástica, as freiras, que começaram por professar a restritiva Regra de Santa Clara, cedo se interrogaram se nela deviam continuar, ou antes mudar para a Regra Urbaniana, bem mais generosa para com o quotidiano conventual. A fim de tomarem uma decisão sobre o assunto, reuniram-se em capítulo, mas então desencadeou-se uma tal tempestade que “de repente começaram a abalar os alicerces e a abanar o pavimento”, pelo que as freiras, “com sumo temor caíram na conta de que a vontade de Deus era que se fizesse de pobreza, como o fizeram, e se conserva”, ficando, pois, definitivamente estabelecida a obediência à Primeira Regra de Santa Clara (FRUTUOSO, 2008, 593). Dentro do espírito dos estatutos, o Convento acolhia não só jovens provenientes dos mais altos escalões da sociedade local, mas também meninas pobres, nas quais se verificasse uma forte vocação religiosa. Este estado de alma era, de resto, muito considerado pelas abadessas que se esforçavam para que este desígnio estivesse sempre presente aquando da admissão das candidatas e, quando tal não acontecia, muito se empenhavam em que as jovens fossem devolvidas ao seio da família. Uma gritante exceção a esta regra encontra-se, porém, no processo da M.e Isabel Filipa de Santo António, que, em inícios da déc. de 1740, foi obrigada, por familiares, a ingressar em N.a S.ra das Mercês, e cujo comportamento acabou por ser objeto de processo na Inquisição. Passou-se o caso no seio da família Câmara Leme, uma das principais da sociedade madeirense, quando uma jovem adolescente, órfã de pais e dependente do irmão mais velho, Jacinto Câmara Leme, se apaixonou por homem abaixo da sua condição. Determinado a proibir a união, o irmão tudo fez para que a jovem ingressasse no Convento, contra a sua expressa e reiterada vontade. Em profundo desespero, Isabel Filipa, conforme por diversas vezes afirmou ao comissário do Santo Ofício, fez um pacto com o demónio, ainda antes de entrar na casa religiosa, e, uma vez lá dentro, procurou, por todos os meios possíveis, forçar a libertação. Com esse fim em vista, confessou ao comissário ter tido relações carnais com o diabo, ter contribuído para a morte de dois dos seus irmãos, usando uns pós que o demónio lhe fornecera, ter cuspido no cruxifixo e pisado no chão partículas consagradas, até, finalmente, ter tentado matar toda a comunidade, fazendo uma sopa com vidro moído. O ruído produzido no processo de moer o vidro traiu-a e conduziu-a à prisão, onde se encontrava enquanto decorriam as diligências judiciais, processo em que conseguiu acesso a um advogado que tentou obter, junto do Papa, a anulação dos votos. Gorado este propósito, nada mais se sabe da dita freira, a não ser que deveria ser transferida de Convento, mas não libertada para voltar à condição de secular. Este episódio pungente mostra que, apesar de toda a boa vontade posta pela comunidade no sentido de só aceitar as verdadeiras vocações, o peso das circunstâncias familiares era, por vezes, excessivamente grande para ser evitado, acabando por condenar muitas jovens a uma vida de clausura que lhes repugnava e para a qual não sentiam a menor inclinação. Apesar de ser inegável que nem todas as mulheres que professavam o faziam por verdadeiro chamamento, a verdade é que, de um modo geral neste Convento, a Regra se observava sem sobressaltos, até porque o facto de ser de menores dimensões que os seus congéneres insulares, de receber muito menos educandas e senhoras do exterior, acrescido da impossibilidade de terem criadas, por exigência estatutária, proporcionava às professas um maior recolhimento e isolamento do mundo secular. Apesar disso, o Mosteiro acabou por se ver envolvido, sem que isso fosse por sua direta responsabilidade, em questões que se arrastaram pelos tribunais e que se prendiam com a posse do padroado. Com efeito, por morte de Gaspar Berenguer, ficara instituído que aquele título passaria para o filho mais velho, o P.e Bartolomeu César Berenguer, tendo transitado depois para o seu irmão José de França Berenguer, que o conservou até 1720. Fora este José Berenguer, pai de vários filhos, o mais velho dos quais falecera ainda em vida do pai, que, por testamento, entregara o padroado do Mosteiro ao seu filho segundo, Agostinho César Berenguer. Esta situação acabou por causar um grave conflito na família, quando os herdeiros do falecido primogénito, de seu nome João de Andrade Berenguer, sentindo-se preteridos na herança, levaram o caso a tribunal, por onde se arrastou cerca de 100 anos. Quando, em 1725, D. Fr. Manuel Coutinho se torna bispo do Funchal, é informado do diferendo, ainda agravado pela suspeita de que o protetor do Convento em funções, Agostinho César Berenguer, se estaria a aproveitar da situação para desviar verbas da sacristia do Convento em proveito próprio, prejudicando, assim, as condições de vida das freiras. O prelado logo impôs um inquérito à contabilidade conventual e, pouco depois, suspendeu o protetor, substituindo-o por um clérigo da sua confiança e seu familiar, o P.e António Mendes de Almeida. À situação da disputa do padroado se refere, ainda, D. José da Costa Torres quando, em 1788, se corresponde com o ministro Martinho Melo e Castro e menciona que “ainda corre litígio” por não se terem verificado as promessas dos instituidores no sentido da doação de certas rendas para “a sustentação das freiras” (AHU, Madeira, pasta 5, capilha 842). Apesar disso, o bispo não deixa de opinar que “floresce neste convento disciplina regular e religiosa […] com grande edificação desta cidade”, não necessitando as freiras dos familiares para sobreviver, porque “o convento lhe[s] subministra o necessário”, para além de que ainda recebem esmolas que de muito boa vontade lhes dão “muitos dos mesmos parentes e estranhos”. Em relação às finanças do Convento, os problemas criados por Agostinho César Berenguer parecem ultrapassados, pois o prelado declara que “além de dois legados perpétuos por cujos rendimentos têm todas as freiras túnicas e hábitos de dois em dois anos, tem o convento seiscentos mil reis cada ano […], juros dos dotes com que entram, que são de quatrocentos mil reis aplicados à sacristia e dos quais […] se sustentam; estes juros são bem pagos, o que é de admirar, se o síndico é zeloso, como o atual, e se não descuida”. E, a terminar, deixa o bispo escapar um desejo: “Assim fora o convento da Encarnação, que também me é sujeito” (Ibid.). A administração interna do Mosteiro fazia-se de acordo com a Regra de Santa Clara e era constituída por uma abadessa eleita por períodos de três anos, não imediatamente renováveis, coadjuvada por uma vigária, um discretório e a habitual reunião semanal do capítulo. O sistema eleitoral que vigorava não só para a abadessa, mas também para os outros cargos, procurava atribuir as funções a pessoas com o perfil certo para as cumprir, e isto, a juntar a um isolamento bem maior do exterior, fazia com que a vida corresse nesta casa monástica sem os sobressaltos que perturbavam a existência das suas congéneres madeirenses. A legislação pombalina de 1764 atingiu, de certo modo, a vida conventual, ao proibir o ingresso de noviças, mas a subida ao trono, pouco depois, de D. Maria I fez reverter o processo, pelo que, a 20 de agosto de 1777, já era autorizada a entrada de seis candidatas. Em 1786, porém, fruto do falecimento de quatro freiras, o número das professas tinha-se tornado demasiado pequeno, o que levou a abadessa a solicitar à Rainha a possibilidade de se admitirem mais algumas, pois nesta comunidade, como o trabalho era executado pelas próprias freiras, a necessidade de braços fazia-se sentir de forma mais aguda. Nesse sentido, argumentava a abadessa que as freiras estavam, de um modo geral, velhas, “seis se acham na enfermaria, e as demais não podem acudir às obrigações do convento, pelas suplicantes não terem servas e serem elas que fazem todo o serviço […] de cozinhar e servir as enfermas, por cuja razão só cinco das suplicantes vão ao coro e às vezes menos” (FONTOURA, 2000, 296). Consultado o bispo, ainda D. José da Costa Torres, este mostrou-se favorável à conservação do Mosteiro, “porque ele é observantíssimo e de singular exemplo de virtudes no meu Bispado” (Id., Ibid., 297). Deste modo, obtiveram as freiras autorização para irem repondo os lugares que fossem vagando, desde que se não ultrapassasse o limite de 24, o máximo autorizado. Apesar dos excelentes indicadores que se foram registando da vivência deste Convento de N.a S.ra das Mercês, ele também foi apanhado nas malhas do liberalismo e sujeito, como os outros, ao encerramento preconizado para aquando da morte da última freira. Acontece, porém, que, talvez graças ao respeito que esta comunidade merecia da população e das autoridades locais, esta casa monástica não sofreu o destino das restantes e continuou a receber candidatas, designadas “pupilas” para não desobedecer à proibição de aceitação de noviças, mas, no resto da vida conventual, a situação manteve-se como sempre fora, embora o ingresso no Convento fosse lentamente decaindo, até que, em 1910, data da implantação da república, já lá se encontravam apenas 15 religiosas. Em 1901, aquando da legalização dos institutos religiosos sob a forma de associações, o Convento de N.a S.ra das Mercês transformou-se em associação, permanecendo as religiosas, então designadas “sócias ativas”, na sede da associação, ou seja, no Convento, sendo responsáveis pela sua administração. A república veio, porém, pôr um ponto final a esta situação que se prolongava, de resto, para além do expectável, e, a 13 de outubro de 1910, as últimas freiras foram levadas do Convento para o palácio de S. Lourenço, onde aguardaram que as famílias as resgatassem. O edifício do Mosteiro foi, a pedido da Câmara Municipal do Funchal, destinado a cadeia, desígnio que se gorou quando se constatou o elevado montante que seria preciso despender até lhe dar a configuração exigida pelas novas funções. Assim, destinou-se, depois, a “Escola Modelo, Biblioteca Popular ou Museu Municipal”, mas também estas ambições não foram adiante, preferindo-se antes atender a um pedido da edilidade para que se demolisse uma parte do prédio para alargamento das vias circundantes. A outra parte, abandonada durante algum tempo, acabou igualmente por ser demolida, construindo-se de raiz, naquele espaço, um edifício destinado ao Auxílio Maternal do Funchal (FONTOURA, 2000, 384-385).   O Convento de N.a S.ra da Piedade, na Caldeira O destino das freiras provisoriamente acolhidas em S. Lourenço foi o regresso a contextos mais ou menos familiares, i.e., enquanto algumas, entre as quais se contava a M.e Virgínia Brites da Paixão, superiora do Convento, regressaram de facto a casa dos pais, outras conseguiram retomar a vida em comunidade, partilhando habitações particulares da posse de parentes seus. Assim aconteceu em Câmara de Lobos, onde, no sítio da Palmeira, um grupo de sete freiras se juntou em casa que havia pertencido aos pais da Ir. M.a Matilde da Circuncisão, enquanto um outro núcleo, desta vez com três professas e uma candidata, fixou residência no lugar da Caldeira, em casa dos pais da Ir. M.a Francisca da Anunciação. Aí se mantiveram juntas, usando hábito – risco que corriam apesar da legislação anticongreganista da Primeira República –, rezando e trabalhando como sempre haviam feito. A M.e Virgínia, apesar de se manter instalada em casa de família, era visita assídua quer de uma quer de outra das comunidades, ajudando a manter vivo o espírito da Primeira Regra de Santa Clara. A propriedade da Caldeira ficava junto de uma capela consagrada a N.a S.ra da Piedade, fundada em finais do séc. XVIII pelo P.e Manuel Gonçalves Henriques, que a dotara de todos os requisitos para nela se celebrarem os ofícios divinos. Por altura da expulsão das freiras do seu Convento das Mercês, pertencia a referida capela ao P.e António Rodrigues Dinis Henriques, o qual, quando deixou a paróquia de que estava encarregado, se devotou ao acompanhamento espiritual das freiras suas vizinhas e igualmente se comprometeu com o desígnio de dotar as madres de novo convento. Com esse fim em vista, deixou, em testamento, a propriedade onde se encontrava a capela à paróquia de Câmara de Lobos, estratégia encontrada para salvaguardar a posse dos terrenos que, se entregues à Diocese, poderiam ser retomados pelo Estado. O tempo político não era, porém, favorável a projetos congreganistas, pelo que foi preciso esperar por nova mudança de regime, operada com o golpe de 28 de maio de 1926, para que o desejo do P.e Dinis e das freiras egressas pudesse começar a tomar forma, o que veio a suceder logo em 1927-1928, altura em que começaram as obras da nova casa conventual, as quais sempre contaram com o apoio do bispo da Diocese, D. António Manuel Pereira Ribeiro. O Mosteiro foi, assim, nascendo, fruto da colaboração de muitas vontades, entre as quais a da própria população da zona, que contribuía com o que podia, quer doando materiais, quer oferecendo dias de trabalho. A 16 abril de 1931, as oito freiras que ainda viviam, do pequeno grupo que saíra do Convento das Mercês, puderam finalmente voltar a reunir-se entre muros conventuais, conseguindo assim o feito único em Portugal de uma comunidade que ultrapassou as adversidades, reorganizando-se, uma vez mais, sob a Primeira Regra de Santa Clara. Com o aumento das solicitações para ingressar no Convento, houve necessidade de proceder a um redimensionamento das instalações, o que veio a acontecer em 1954, embora, pouco tempo depois, um incêndio, ocorrido em 1959, viesse, uma vez mais, obrigar a comunidade a ultrapassar outra dificuldade. Recebidas pelas Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria, então instaladas no Convento de S.ta Clara, as freiras aguardaram pela reconstrução, e, uma vez mais ou menos terminada, regressaram à Caldeira e às suas costumeiras ocupações de fabrico de hóstias, tratamento de roupa para a Sé e outras paróquias, bordados, jardinagem e lavoura. Por ter o bispo D. David de Sousa, Franciscano como elas, constatado que a população vizinha do Convento vivia muito isolada, com dificuldades de acesso à catequese e até ao ensino primário, solicitou às freiras a prestação desse serviço social, ao que elas prontamente acederam, tendo ficado responsáveis por aquelas missões durante 19 anos. Nos inícios do séc. xxi, a comunidade permanece instalada no sítio da Caldeira, mas o crescimento do número de candidatas à profissão determinou que se expandisse, dando origem a novas casas de religiosas, uma das quais em Santo António, nos arredores do Funchal.   O Mosteiro de S.to António A M.e Virgínia Brites da Paixão foi viver, conforme se disse, para casa de seus pais, no Lombo dos Aguiares em Santo António, onde continuou a levar uma vida muito próxima da de clausura, dedicada à oração e pontuada das experiências místicas com visões de Nossa Senhora que a acompanhavam desde muito nova. O seu modo de viver despertava a admiração não só das suas correligionárias de Câmara de Lobos, como da população em geral, e, anos depois da sua morte, ocorrida a 17 de janeiro de 1929, começou a germinar a ideia da fundação de um Convento junto da casa onde habitara e que se encontrava na posse de umas sobrinhas. Apresentado o projeto ao bispo do Funchal, D. João Saraiva, este logo se entusiasmou e envidou esforços no sentido de se concretizar o desígnio, para o qual igualmente contribuiu a doação da propriedade por parte das sobrinhas. Em março de 1967, transferiram-se para instalações ainda provisórias as primeiras três irmãs oriundas do Convento de N.a S.ra da Piedade, e, em 1971, o prelado funchalense começou a equacionar a possibilidade de aquela casa passar a mosteiro autónomo. Com este fim em vista, diligenciou a obtenção de licença junto da Congregação dos Religiosos e Institutos Seculares, em Roma, que respondeu a 21 de julho, confirmando a aceitação do pedido. Em posse do documento, D. João Saraiva tudo fez para tornar realidade o novo Convento e, a 2 de outubro do mesmo ano, em reunião da comunidade, o bispo procedeu à nomeação da madre abadessa. A ereção canónica tardou ainda quatro anos, mas, em 1975, por ação do bispo D. Francisco Santana foi alcançada, passando, desde então, a Madeira a contar com mais uma casa conventual de Clarissas.     Ana Cristina Trindade (atualizado a 25.02.2017)

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