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ribeiro real, visconde do

Visconde do Ribeiro Real. 1885. Arquivo Rui Carita João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo nasceu no Funchal, a 21 de dezembro de 1841, filho do morgado Francisco António de Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo e de Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo. Casando-se, a 24 de junho de 1882, já com mais de 40 anos, com Teresa da Câmara Carvalhal, filha do 2.º conde de Carvalhal, recebeu o título de visconde do Ribeiro Real. Passara, entretanto, pela Junta Geral e depois pela presidência da Câmara do Funchal, onde defendeu o caminho de ferro do Monte e acabou a construção do Teatro Municipal D. Maria Pia. Na sua vereação camarária ainda se fundou o corpo de bombeiros voluntários e procedeu-se a reformas urbanas na área do cemitério britânico, tendo hoje o seu nome o largo que fica mais a sul. Foi ainda cônsul de França e elevado a conde do Ribeiro Real, título que parece não ter usado. Faleceu em 1902. Palavras-chave: bombeiros voluntários; Câmara Municipal do Funchal; cemitério britânico; caminho de ferro do Monte; Teatro Municipal.     João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo nasceu no Funchal, a 21 de dezembro de 1841, filho do morgado Francisco António de Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo, de São Pedro, no Funchal, e de Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo, de Ponta Delgada. Casando-se, a 24 de junho de 1882, com Teresa da Câmara Carvalhal (1857-c. 1925), filha do 2.º conde de Carvalhal (1831-1888), recebeu o título de visconde do Ribeiro Real por decreto de 23 de março desse ano, sendo depois elevado a 1.º conde, por decreto de 16 de fevereiro de 1899, após a sua passagem pelo governo civil do Funchal, em 1897, como interino. Para além do cargo que ocupou na Junta Geral e da presidência da Câmara do Funchal, onde defendeu o caminho de ferro do Monte e acabou a construção do Teatro Municipal D. Maria Pia (Teatro Municipal), ocupou também o lugar de cônsul de França. O futuro visconde do Ribeiro Real deveria ser uma figura muito discreta e reservada, não sendo fácil recuperar o seu percurso político e social. Casou-se bastante tarde para a época, já passando dos 40 anos, não havendo descendência do seu casamento. A primeira referência política a seu respeito é como procurador da Junta Geral, quando se pronuncia sobre a lei de 13 de maio de 1872, que criara as bases da nova regulamentação. Como vogal, João Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo esteve na reunião de 11 de março de 1874 e na de 11 de abril seguinte, aprovando as alterações que o vogal do conselho de distrito, visconde de S. João, Diogo Berenguer de França Neto (1812-1875) mandou imprimir a 14 de abril desse ano. A sua ação mais relevante foi à frente da Câmara Municipal do Funchal, onde sucedeu ao sogro, 2.º conde de Carvalhal, que somente ocupara o lugar no quadriénio de 1882-1885 por ser, ainda, o maior proprietário latifundiário do Funchal, mas cujas funções tinham sido desempenhadas pelo vice-presidente, morgado João Sauvaire da Câmara e Vasconcelos (1828-1890). A partir de 1886, a Câmara do Funchal teve uma interessante atividade, entre outras coisas, acabando as obras do Teatro Municipal, apresentado aos funchalenses a 29 de julho de 1887, e inaugurado oficialmente a 11 de março de 1888. Nessa altura, teve o visconde de se defrontar com o primo, João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos (1829-1902), conde de Canavial e então governador civil, que queria ocupar o camarote da presidência, o que veio a acontecer, mas como convidado, pois o Teatro era propriedade da Câmara. A questão do camarote do Teatro ocupou então as primeiras páginas da imprensa da cidade. Foi durante a presidência do visconde do Ribeiro Real, quando tinha o pelouro dos incêndios o Dr. José Joaquim de Freitas (1847-1936), então também médico do hospital da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, que se fundaram os bombeiros voluntários do Funchal, serviço inaugurado oficialmente a 24 de setembro de 1888. A apresentação pública do inúmero material adquirido para esse serviço, de que existe abundante documentação fotográfica, foi feita junto à fachada do referido hospital, a 7 de abril de 1889. O primeiro quartel foi construído na antiga R. do Príncipe (assim designada em homenagem ao príncipe, depois D. João VI (1767-1826)), posteriormente R. 31 de Janeiro, passando, duas décadas depois, para a R. da Princesa (em referência a D. Carlota Joaquina (1775- 1830)), posteriormente R. 5 de Outubro. José Joaquim de Freitas era um republicano de arreigadas convicções (República), mas tal não obstou ao apoio que sempre lhe foi dado pelo visconde do Ribeiro Real, tendo-se registado, inclusivamente, um forte apoio das mais destacadas famílias funchalenses à criação dos bombeiros voluntários, existindo fotografias destes anos de inúmeros dos seus elementos fardados de bombeiros, independentemente da sua filiação partidária e, inclusivamente, nacionalidade; há mesmo fotografias de comerciantes britânicos, o que só se explica pelo apoio dado à iniciativa pelo visconde. João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo foi igualmente um dos principais impulsionadores do projeto do caminho de ferro do Monte, numa altura em que o projeto poderia ter sucumbido ao conflito de interesses entre os comerciantes britânicos radicados na Ilha e os financeiros alemães, que o apoiavam. Ao nível do Governo central, o apoio ao projeto não foi muito evidente, exceto na isenção de impostos que concedeu à Companhia do Caminho-de-Ferro do Monte, aquando da entrada na Alfândega do Funchal do material fixo e circulante para a via-férrea. O grande apoio partiu da Junta Geral, que adquiriu algumas ações, e, especialmente, da Câmara do Funchal, através do vereador João Luís Henriques e do presidente, o visconde do Ribeiro Real, tendo a Câmara adquirido 250 obrigações. As transformações ocorridas na malha urbana da cidade permaneceram e decorrem da urbanização envolvente do traçado da via-férrea e da montagem de uma série de instalações turísticas de apoio, como o Hotel do Bello Monte, e depois das instalações do Terreiro da Luta, consolidando a estruturação da freguesia de Santa Luzia e a ligação da cidade à freguesia do Monte, e contribuindo para a visão geral de anfiteatro que da encosta do Funchal. Foi também a vereação do visconde de Ribeiro Real que permitiu e apoiou a ampliação do cemitério britânico (Cemitério britânico), como contrapartida pela expropriação de uma faixa do terreno do mesmo. Foram então demolidas duas das vielas anexas entre aquele espaço e a R. dos Aranhas, do que resultou a R. 5 de Junho, depois R. Major Reis Gomes, onde viria a ser construído o largo com o seu nome. Os viscondes do Ribeiro Real habitaram o palácio de S. Pedro que, desde 1883, era partilhado com o Colégio de S. Jorge, dirigido pela futura M.e Mary Jane Wilson (1840-1916). Também ali faleceu, a 4 de fevereiro de 1888, o 2.º conde de Carvalhal, António Leandro Carvalhal Esmeraldo e, em 1897, ainda se instalou em parte do palácio o Clube Internacional. O visconde do Ribeiro Real seria elevado a conde do Ribeiro Real, a 16 de fevereiro de 1899, mas parece nunca ter usado o título, falecendo a 22 de março de 1902, altura em que se encontrava já retirado da vida pública, não havendo, por exemplo, qualquer referência a seu respeito na visita régia de junho de 1901. A condessa do Ribeiro Real, em 1921, deu início ao processo de venda do palácio, mas a mesma foi contestada pelos coproprietários, conde de Resende e família de Eça de Queiroz, descendentes de sua irmã, Maria das Dores Carvalhal (1855-1910). A a 20 de janeiro de 1923, a condessa mandou vender em leilão o recheio do palácio, momento em que se dispersou aquele importante espólio. Deverá ter falecido pouco depois dessa data. O espadim de honra do visconde do Ribeiro Real, como fidalgo da Casa Real, deve ter sido logo entregue à Câmara Municipal do Funchal, por legado do mesmo. A sua liteira, no entanto, com as armas de visconde envolvidas pelos atributos utilizados pela Câmara, um ramo de videira e outro de cana-de-açúcar, tal como o seu monograma, encimado por coroa de visconde, deve ter ido então a leilão, tendo passado a mãos particulares e depois ao Museu Quinta das Cruzes, sendo dos poucos exemplares deste tipo de transporte que sobreviveu. É provável que do leilão de 1923 tenha sobrevivido uma fotografia, onde aparece um dos dois óleos de Tomás da Anunciação (1818-1879), encomendados pelo 2.º conde de Carvalhal em 1865, e que fazem igualmente parte do acervo do Museu Quinta das Cruzes. No mesmo leilão deve ter sido vendido o retrato das duas filhas do 2.º conde de Carvalhal, depois depositado na Fundação Eugênia de Canavial.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

Direito e Política História Militar História Política e Institucional

topografia marinha

A topografia marinha, também denominada relevo oceânico, refere-se aos diferentes relevos da crosta terrestre que se encontram debaixo do nível do mar. Os oceanos possuem uma estrutura comum e foram criados, sobretudo, por movimentos das placas tectónicas que cobrem a superfície da Terra e que são as mesmas que deram origem aos continentes. Na Terra, existem 15 placas principais e muitas mais placas pequenas. Estas placas são de dois tipos: as placas oceânicas – que estão totalmente cobertas pela crosta marinha – e as placas mistas – que estão cobertas em parte pela crosta oceânica e em parte pela crosta continental e que, ao se elevarem por cima do nível do mar, formam os continentes. Assim, a estrutura dos oceanos começa com a plataforma continental – a parte da placa continental que se encontra debaixo do nível do mar até aos 200 m de profundidade –, continua pelo talude continental – compreendido entre os 200 e os 4000 m de profundidade e que apresenta muitas formas de relevo: vales, montanhas e desfiladeiros submarinos – e termina na planície abissal com mais de 4000 m de profundidade. Existem, ainda, as dorsais oceânicas, grandes cadeias de montanhas submarinhas que atravessam os oceanos no meio dos continentes e que resultam do lento afastamento das placas tectónicas. Estas dorsais submarinas atingem elevações entre os 2000 e 3000 m por cima dos fundos oceânicos e possuem um sulco central, conhecido como rift, ao longo do qual são produzidas emissões de lava provenientes do magma que se encontra debaixo da superfície da terra.   Ilhas vulcânicas Ao contrário das dorsais oceânicas, que se originam nos limites das placas tectónicas, a origem das ilhas oceânicas é vulcânica, o que quer dizer que se formam através de um ponto quente (hotspot) devido à ascensão de magma, à maneira de um vulcão, resultando na formação de um monte submarino que depois cresce em virtude da atividade vulcânica até ultrapassar o nível do mar. Os arquipélagos são conjuntos de ilhas que se formam quando o mesmo hotspot origina uma cadeia de vulcões devido ao movimento da placa oceânica. As ilhas oceânicas, por definição, nunca estiveram em contacto com o continente, já que se originam da atividade vulcânica submarina, sendo assim diferentes das ilhas continentais, que têm uma conexão com o continente, embora estejam rodeadas de água. As maiores ilhas da Terra são de origem continental, e.g., a Grã-Bretanha, a Irlanda, a Gronelândia, Madagáscar, etc. As ilhas vulcânicas comportam-se de maneira similar a organismos biológicos, no sentido em que nascem, crescem, envelhecem e desaparecem. Assim, pode distinguir-se as seguintes fases no ciclo de vida das ilhas oceânicas: i) nascimento e construção submarina – o monte submarino forma-se no fundo oceânico como resultado do hotspot; ii) emersão e construção sobre o nível do mar – a ilha cresce pela sucessiva atividade vulcânica até atingir a sua máxima altura e área; iii) erosão e desmantelamento – os processos destrutivos, como a erosão, modificam fortemente o relevo e a ilha começa a diminuir o seu tamanho; iv) planície – devido à forte erosão, a ilha aparece como uma planície de baixa altitude sobre o nível do mar; v) desaparecimento – a ilha fica quase submersa; vi) guyot – torna-se num monte plano submarino. As ilhas que compõem um arquipélago, ao serem originadas pelo mesmo hotspot, têm diferentes idades e, por isso, encontram-se em diferentes fases deste ciclo de vida. Além da erosão, outros eventos catastróficos, como grandes escorregamentos de terra, colapso de caldeiras e/ou atividade vulcânica, também modificam a superfície e o tamanho de uma ilha.   Os arquipélagos da Madeira e Selvagens Os arquipélagos da Madeira e das Selvagens formam parte da região biogeográfica conhecida como Macaronésia, nome que provém do grego makarios, feliz ou afortunado, e nessos, ilhas. Esta região é composta por um conjunto de cinco arquipélagos localizados no oceano Atlântico: Açores, Madeira, Selvagens, Canárias e Cabo Verde, que possuem características ecológicas, florísticas e faunísticas comuns. Estes arquipélagos localizam-se na placa continental africana, com exceção dos Açores, que se encontram situados na confluência das placas africana, euro-asiática e americana. O arquipélago da Madeira é composto pelas seguintes ilhas: Madeira (com uma superfície de ca. 730 km2), Porto Santo (69 km2), situada 45 km a nordeste da Madeira, e três ilhas conhecidas como Desertas (15 km2 no total): Chão, Deserta Grande e Bugio, localizadas mais de 60 km a sudeste da Madeira. Este arquipélago está situado sobre uma crosta oceânica datada de cerca de 140 Ma de antiguidade, com cerca de 2000 m de profundidade e uma elevação máxima sobre o nível do mar que atinge os 1862 m no Pico Ruivo (Madeira). O arquipélago das Selvagens, por seu lado, é composto por três ilhas (cerca de 3 km2 no total): Selvagem Grande, Selvagem Pequena e ilhéu de Fora, e 16 ilhéus. Embora estes dois arquipélagos, Madeira e Selvagem, assentem na plataforma continental africana, o arquipélago da Madeira pertence à província vulcânica da Madeira, enquanto o arquipélago das Selvagens pertence à província vulcânica das Canárias (fig. 1). Isto quer dizer que a Madeira, o Porto Santo e as Desertas foram formados por um só hotspot, enquanto as Selvagens foram originadas pelo mesmo hotspot que deu origem às Ilhas Canárias. Fig. 1 – Mapa das províncias vulcânicas da Madeira e das Canárias, indicando as ilhas e os montes submarinos mencionados no texto. As linhas brancas transparentes mostram a provável rota do movimento do hotspot em cada província. Foto do Google Earth, modificada com base no trabalho de Fernández-Palácios et al., 2011. A província vulcânica da Madeira inclui, além das ilhas que atualmente compõem o arquipélago, outros montes submarinos, mais antigos, que outrora foram ilhas e que agora se encontram novamente submersos debaixo do nível do mar. Estes montes submarinos são: Ormonde, o mais antigo da província, com uma idade estimada de cerca de 60 Ma, Ampere e Coral Patch, de cerca de 30 Ma, e Unicorn e Seine, de cerca de 20 Ma (figs. 1 e 2). Durante o Terciário, estes montes submarinos eram ilhas que constituíam um arquipélago (Paleo-Madeira), podendo ter desempenhado um papel importante na dispersão da fauna e flora do continente para as ilhas e para o arquipélago canário. Atualmente, a ilha mais antiga desta província é Porto Santo, que se encontra já no estado de planície. A sua superfície tem sido bastante erodida, e a parte superior da ilha é plana, atingindo uma altitude máxima de 517 m (Pico do Facho). Aliás, calcula-se que o edifício vulcânico desta ilha possua uma volumetria total de 5000 km3, embora só cerca de 0,1 % seja visível sobre o nível do mar. As primeiras atividades vulcânicas na crosta oceânica, que deram origem ao Porto Santo, terão acontecido há 19-18 Ma, durante o Mioceno, embora a ilha só tenha emergido há 14-11 Ma. As Desertas, por seu lado, são um prolongamento do edifício vulcânico da Madeira, apesar de a ponte que as conecta estar debaixo do nível do mar e de a profundidade entre as ilhas ser de 200 m, dando a impressão de serem ilhas diferentes. A Madeira e as Desertas são as ilhas mais jovens do arquipélago com cerca de 5 Ma e encontram-se na fase de erosão e desmantelamento. As suas áreas e elevações foram maiores no passado, sendo atualmente os processos destrutivos mais fortes do que os processos construtivos, o que faz com que reduzam o seu tamanho cada vez mais. Atualmente, a volumetria deste edifício calcula-se em cerca de 9000 km3, embora a parte emersa constitua, em termos percentuais, só cerca de 4,2 %. O edifício Madeira-Desertas é diferente do edifício de Porto Santo e, apesar de estas ilhas estarem separadas por uma distância de só 45 km, o oceano entre elas apresenta profundidades superiores aos 2000 m.   Fig. 2 – Ilhas e montes submarinos da província vulcânica da Madeira. Os números entre parêntesis indicam os intervalos de atividade vulcânica e os números romanos, na parte inferior, indicam a fase do ciclo de vida em que cada elemento se encontra. Figura baseada no trabalho de Fernández-Palácios et al., 2011. Outro dos elementos da topografia marinha da província vulcânica da Madeira é, e.g., a ocorrência da denominada crista do Funchal, uma série de cones vulcânicos submarinos de 1,5-3 km de diâmetro e alturas até 600 m, alinhados a sul da ilha da Madeira, à altura da longitude do Funchal. Assim mesmo, é importante salientar a planície abissal da Madeira, localizada a uma distância de cerca de 600 km a oeste da Madeira, com uma extensão aproximada de 68.000 km2 e uma profundidade na ordem dos 5000 m. As Selvagens, por seu lado, são muito mais antigas do que as ilhas que compõem o arquipélago da Madeira e, como mencionado anteriormente, pertencem à província vulcânica das Canárias. As Selvagens assentam numa crosta oceânica datada de há cerca de 135 Ma, embora se calcule que as ilhas tenham emergido há cerca de 30 Ma e ainda tenham tido duas fases posteriores de atividade vulcânica, uma há 12-8 Ma e a última há cerca de 3 Ma. A Selvagem Grande é a maior ilha deste conjunto, apresentando uma superfície de cerca de 2,5 km2 e uma altitude máxima de 163 m (Pico da Atalaia). Esta ilha encontra-se na fase de planície. A Selvagem Pequena está na fase de desaparecimento, tendo uma superfície e uma altura variáveis consoante o nível do mar. Em média, a altitude desta ilha é de 10 m, embora o seu ponto culminante seja 49 m sobre o nível do mar (Pico do Veado). A sua superfície atinge os 0,65 km2 em baixa-mar. O ilhéu de Fora está localizado a oeste da Selvagem Pequena e, assim como esta ilha, também se encontra na fase de desaparecimento. A sua superfície é igualmente variável e o seu ponto mais alto está na cota dos 18 m.   Pamela Puppo (atualizado a 07.12.2017)  

Geologia Ciências do Mar

collett, robert

Robert Collett é um dos pioneiros da investigação zoológica norueguesa, tendo nascido em Christiania (depois Oslo) a 2 de dezembro de 1842 e falecido na mesma cidade a 27 de janeiro de 1913. Entre 1854 e 1859, Collett e a família viveram em Lillehammer, pequena cidade rural no condado de Oppland, Noruega, rodeada de montanhas e à beira do lago Mjøsa. Aqui, Robert apurou o seu gosto pela natureza. Completou os seus estudos em Christiania e começou a trabalhar para o Museu Zoológico, tornando-se assistente do Prof. Halvor Rasch. Em 1874 tornou-se conservador do museu e em 1885 professor de Zoologia na Universidade de Christiania, cargo que ocupou até à sua morte. O seu interesse inicial foram as aves, tendo estudado as aves da Expedição Polar Norueguesa, dirigida por Fridjof Nansen, de 1893 a 1896. Contudo foram os peixes que proporcionaram a Collett o seu reconhecimento internacional. A sua relação com a Madeira faz-se precisamente através destes. Em 1886, com base num exemplar capturado nos mares da Madeira em 1877, descreveu um género e uma espécie novos, Linophryne lucifer, peixe batipelágico da subordem Ceratioidei. A descrição e respetiva ilustração são muito detalhadas, atestando o carácter muito minucioso de Collett. Mais tarde, em 1890, Collett publicou um trabalho sobre alguns peixes capturados na Madeira pelo príncipe Alberto I do Mónaco, no qual identifica nove espécies, uma das quais, o tubarão de profundidade Chlamydoselachus anguineus, é reportado pela primeira vez para o oceano Atlântico. Durante a sua vida, Robert Collett publicou, entre muitos outros, 32 trabalhos sobre peixes, contendo descrições originais de muitas espécies novas para a ciência.   Obras de Robert Collett: “Lycodes sarsii, n. sp. ex ordine Anacanthinorum Gadoideorum, descripsit” (1871); “On two apparently new species of Gobius from Norway” (1874); The Norwegian North-Atlantic Expedition, 1876-1878, Zoology, Fishes (1880); “On a new pediculate fish from the sea off Madeira” (1886); “Sur quelques poissons rapportés de Madère par le Prince de Monaco” (1890), Poissons Provenant des Campagnes du Yacht "L'Hirondelle" (1885-1888). Résultats des Campagnes Scientifiques Accomplies sur Son yacht par Albert I, Prince Souverain de Monaco (1896); “On some fishes from the sea off the Azores” (1905).     Manuel Biscoito (atualizado a 27.10.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

bowdich, thomas edward

Thomas Edward Bowdich, escritor e viajante inglês, nasceu em Bristol a 20 de junho de 1791 e faleceu em Banjul, capital da Gâmbia, a 10 de janeiro de 1824. Na sua juventude estudou em escolas públicas em Bristol, demonstrando maior inclinação para as letras do que para as ciências. Inicialmente pensou em seguir advocacia, mas seu pai, fabricante de chapéus e comerciante, colocou-o como sócio na firma. Em 1813 casou-se com Sarah Wallis, com a qual partilhava o interesse pela natureza, as viagens e a aventura. Inscreveu-se ainda em Oxford, mas não concluiu os estudos aí. Em 1814 conseguiu um lugar de escriturário na Royal African Company e partiu para a cidade de Cabo Corso, no Gana. Em 1816 integrou uma missão, que acabou por chefiar, ao Império Asante na Costa do Ouro, tendo obtido um acordo com o Rei no qual se assegurava a paz e se preservavam os interesses ingleses na região. Regressado a Inglaterra em 1818, Bowdich denunciou a corrupção e a ineficiência na Royal African Company. Mudou-se, dois anos depois, para Paris, onde estudou matemática, física e história natural. Aí tornou-se íntimo do barão Georges Cuvier, assim como de Alexander von Humboldt e outros eminentes sábios, que o receberam muito bem e o ajudaram na consolidação da sua cultura científica. Durante a sua estada em Paris publicou diversos trabalhos científicos, incluindo de história natural. Ficou famoso o seu ensaio sobre as superstições, os costumes e as artes comuns aos egípcios, abissínios e asantes, que constitui o primeiro grande estudo da cultura e história da África ocidental. Em 1822 viajou com a mulher para Lisboa, onde esteve pouco mais de um mês, consultando aí arquivos públicos e privados, e escrevendo um trabalho sobre as descobertas dos Portugueses em Angola e Moçambique que viria a ser publicado em 1824. De Lisboa seguiu para o Funchal, onde chegou no dia 14 de outubro de 1822. Permaneceu na Madeira um ano, tendo sido hóspede do comerciante e cônsul inglês Henry Veitch. Efetuou várias viagens pela Ilha visitando também Porto Santo. Durante esta estadia, efetuou observações meteorológicas assim como colheitas de plantas e animais. Observou os costumes da população e anotou as suas impressões sobre a política e a sociedade madeirenses. Todas estas observações ficaram registadas numa obra cuja publicação se deveu à sua mulher, a qual também a ilustrou, sendo editada em 1825, um ano após a sua morte. Este trabalho inclui também listagens, ou simples referências, de plantas, insectos, moluscos, aves e peixes. Neste último caso, incluiu a descrição original do chicharro, Seriola picturata, posteriormente chamado Trachurus picturatus, com a respetiva ilustração, da autoria de sua mulher. Neste trabalho Bowdich denota um grande interesse pelas medições de temperatura, pressão, humidade relativa e altitude durante as suas excursões pela Madeira, uma característica que lhe foi sem dúvida incutida por Humboldt durante a sua estada em Paris. Embora detalhado na descrição e até ilustração de aspetos da geologia da Madeira e do Porto Santo, não soube contudo, interpretá-los e determinar a origem das ilhas, negando a sua origem vulcânica submarina. Contudo, esta e outras incorreções não desmerecem o valor desta obra, pela riqueza e diversidade de observações registadas, não só de âmbito natural, mas também cultural, social e político da Madeira do primeiro quartel do séc. XIX. Bowdich, a mulher e os três filhos deixaram a Madeira no dia 26 de outubro de 1823, num brigue americano, em direção a Cabo Verde, dada a inexistência de navios com destino à Serra Leoa, o objetivo desta sua terceira viagem a África. Em Cabo Verde, onde chegou por volta de 10 de novembro, fez observações idênticas às que tinha feito na Madeira na ilha da Boavista, onde permaneceu algumas semanas. Visitou ainda a ilha de Santiago durante um dia, tendo prosseguido para Banjul, à época Bathurst, na Gâmbia, onde chegou no início de dezembro de 1823. Aí iniciou de imediato um trabalho de colheita de plantas e animais e o levantamento topográfico da foz do rio Gâmbia. Atacado pelo paludismo, morreu no dia 10 de janeiro de 1824. Sarah Bowdich e os três filhos regressaram a Inglaterra e um ano depois da morte do marido foi publicado o livro sobre a sua derradeira viagem a África.     Obras de Thomas Edward Bowdich: Mission from Cape Coast Castle to Ashantee, with a Statistical Account of that Kingdom, and Geographical Notices of Other Parts of the Interior of Africa (1819); Essay on the Superstitions, Customs, and Arts Common to the Ancient Egyptians, Abyssinians, and Ashantees (1821); An Introduction to the Ornithology of Cuvier (1821); Elements of Conchology Including the Fossil Genera and the Animals (1822); An Account of the Discoveries of the Portuguese in the Interior of Angola and Mozambique (1824); Excursions in Madeira and Porto Santo (1825).   Manuel Biscoito (atualizado a 27.10.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

borges, joão gonçalves

João Borges nasceu a 22 de setembro de 1922, na freguesia do Monte, concelho do Funchal, e faleceu nesta cidade a 26 de novembro de 2008. Empresário, desportista náutico e governante, destacou-se sobretudo nos sectores do turismo e do mar. A sua paixão pelo mar vem de muito novo quando, sendo asmático, encontra no mar alívio para a sua maleita. Ficaram célebres os seus mergulhos no Lido, pelo tempo que permanecia imerso. Foi pioneiro na caça submarina na Madeira, tendo ganho o primeiro lugar no primeiro concurso desta modalidade organizado pelo Clube Naval do Funchal, no Paul do Mar, em 27 de setembro de 1953. Foi também pioneiro no mergulho com escafandro autónomo, tendo acompanhado a equipa do Com. Cousteau (Cousteau, Jacques-Yves) durante a sua visita à Madeira em agosto de 1956. Em julho de 1966, acompanhou também os mergulhos do batiscafo francês Archimède na Madeira, tendo promovido uma conferência proferida no Funchal pelo Com. Georges Houot e pelo Eng. Henri-Germain Delauze, responsáveis pelo batiscafo. No plano associativo, pertenceu aos corpos dirigentes do Clube Naval do Funchal desde 1962 até 1988, tendo sido comodoro, vice-presidente e presidente da respetiva Assembleia-Geral. O entusiasmo pelo mar levou-o a interessar-se pela colónia de lobos marinhos, Monachus monachus, das ilhas Desertas, que nos anos 80 do séc. XX estiveram muito perto da extinção. Fruto deste interesse e das suas observações, participou na 1.ª Conferência Internacional sobre o Lobo Marinho, realizada em Rodes em 1978. Nesta apresentou uma comunicação intitulada “The monk seals of Madeira”, na qual deu conta da situação precária em que estes mamíferos marinhos se encontravam. Efetuou também várias deslocações às ilhas Selvagens, na companhia do seu amigo Paul Alexander Zino, tendo colaborado nos estudos das aves marinhas realizados por este ornitólogo amador. A sua capacidade de comunicação, as suas áreas de interesse e a fluência em línguas estrangeiras fizeram de João Borges um relações-públicas nato, levando-o a contactar com inúmeras personalidades que visitaram a Madeira. Em 1953, o realizador de cinema John Houston deslocou-se à Ilha para realizar algumas cenas do seu filme Moby Dick, tirando partido da existência, nessa época, de atividade baleeira. João Borges participa no filme, vestindo a pele de uma baleia branca. João Borges, na sua qualidade de “homem dos sete ofícios”, foi também um técnico de precisão muito conceituado, tendo fundado a relojoaria Big Ben em 1947, na então recentemente aberta Av. de Zarco. Na sua oficina, reparou muitos equipamentos náuticos de precisão, não só de desportistas locais, como também de iatistas que escalaram a Madeira. Esta sua aptidão levou-o a ser cronometrista de muitas provas náuticas, entre elas a Regata Oceânica Lisboa-Madeira, cuja primeira edição teve lugar em 1950. O seu talento para os contactos pessoais conduziu-o inevitavelmente ao sector do turismo. Assim, em 1969, ingressa na Delegação de Turismo da Madeira, ao lado de José Ribeiro de Andrade e António Bettencourt da Câmara, ficando responsável pelos sectores da promoção e das relações públicas. Torna-se assim o primeiro promotor oficial do turismo da Madeira, cargo que desempenhará por muitos anos, e que o levará aos principais países de onde são originários os turistas que visitam a Madeira. Na sequência da Revolução de 25 de abril de 1974, foi nomeado membro do Gabinete de Informação situado no Palácio de S. Lourenço e encarregado de dar informações aos jornalistas estrangeiros presentes, assessorando a primeira conferência de imprensa dada pelas novas autoridades no Funchal. Já na Direção Regional de Turismo, foi nomeado em 1981 diretor dos serviços de promoção, relações públicas e publicidade, e recebeu nesse ano o Golden Helm, galardão atribuído pela Associação Internacional de Relações Públicas. A 10 de janeiro de 1984, foi nomeado diretor regional de Turismo, cargo que ocupou até à sua aposentação, em 1992. A 18 de maio de 1986, o Governo regional da Madeira atribuiu-lhe a Medalha de Ouro de Mérito Turístico, e em 1987 recebeu a Medalha de Mérito Turístico instituída pela Associação Portuguesa das Agências de Viagem e Turismo, no decurso do seu XIII Congresso, em Marraquexe. Aquando da sua aposentação, os diretores dos centros de turismo de Portugal, reunidos no Funchal, homenagearam João Borges oferecendo-lhe uma placa na qual se lê a seguinte inscrição: “Ao ilustre embaixador da Madeira em todo o mundo, João Gonçalves Borges, como homenagem pelos relevantes serviços prestados ao turismo português”. A 10 de junho de 1993, é agraciado com o grau de comendador da Ordem de Mérito pelo Presidente da República, Mário Soares. João Borges foi casado com Deirdre Mary Isabella Shanks Borges, e teve dois filhos.   Obras de João Gonçalves Borges: “The Monk Seals of Madeira” (1978).   Manuel Biscoito (atualizado a 27.10.2017)

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lei regional

O sistema vigente de repartição de competências legislativas entre o Estado e as regiões com autonomia político-administrativa Distribuição horizontal de competências: recomposição do modelo de lista plural Em termos de modelo de repartição de competências entre o Estado e as regiões autónomas (RA), o paradigma da lista plural conservou‑se com a revisão constitucional de 2004, mas com um retorno parcial à arquitetura primitiva consagrada em 1976, no sentido da equação de duas “listas” constitucionais de poderes, uma estadual e outra regional, às quais acresce uma terceira lista subconstitucional de enumeração de poderes regionais (com reservas ao sistema de listagem no período que antecedeu a revisão constitucional de 2004, veja-se Maria Lúcia Amaral, “Questões regionais e jurisprudência constitucional…”; já no sentido da admissão de um sistema de listas, no período posterior a esse ato de revisão, com uma lista regional desconstitucionalizada, veja-se a obra, da mesma autora, A Forma da República). Tratou‑se de um retorno apenas parcial à versão constitucional de 1976, na medida em que se passou, com a revisão constitucional de 2004, a atribuir expressamente aos Estatutos Político-Administrativos (EPA) das Regiões Autónomas um papel central na discriminação de matérias das respetivas competências, nas quais incidirão os poderes legislativos autonómicos de tipo comum. Deste modo, foi conservada na Constituição da República Portuguesa (CRP): uma listagem de matérias de competência estadual, exclusivamente reservadas aos órgãos de soberania (exceção feita a certas matérias da reserva de competência legislativa do Parlamento que são delegáveis nas regiões); uma listagem, por via remissiva, de matérias de competência legislativa regional com carácter delegado (art. 227.º, n.º 1, alínea b))complementar (alínea c)) do mesmo preceito, bem com um elenco de matérias de competência mínima (art. 227.º, n.º 1, alíneas i), j), l), n), p), e q)); e uma remissão importante das restantes matérias de virtual competência autonómica para uma terceira lista regional de natureza subconstitucional inscrita nos Estatutos (art. 227.º, n.º 1, alínea a) e art. 228.º, n.º 1), a qual coexiste num universo concorrencial com competências dos órgãos de soberania integradas numa reserva móvel. É neste domínio de concorrência paralela que confluem, em binários diferentes dentro de uma mesma matéria, o exercício das competências regionais comuns e o exercício de poderes soberanos. Há, contudo, que separar nessa mesma matéria do domínio concorrencial uma esfera ou nível de poder regional e uma outra esfera atribuída aos poderes do Estado.   Taxatividade da enumeração estatutária das matérias respeitantes à competência legislativa regional comum ou primária Outra regra estruturante da revisão constitucional de 2004, que reforçou a listagem das competências regionais comuns, resultou, no nosso entendimento, da imposição de uma taxatividade da enumeração constitucional e estatutária dos poderes legislativos das regiões (refira-se que Jorge Miranda, que sempre militou em favor de uma lista aberta, alterou posteriormente a sua posição em favor de uma enumeração estatutária taxativa). Essa taxatividade parece decorrer: (i) do proémio do n.º 1 do art. 227.º da CRP, confirmado pelo n.º 1 do art. 228.º, que reza: “A autonomia legislativa das regiões autónomas incide sobre as matérias enunciadas no respetivo estatuto político‑administrativo [adiante designado por Estatuto] que não estejam reservadas aos órgãos de soberania”. Ora, semelhante fórmula não deixa grande margem para o exercício de poderes legislativos de tipo comum fora do limite positivo e negativo do Estatuto. Isto, sem prejuízo dos poderes legislativos de tipo mínimo – referimo‑nos às escassas matérias de competência legislativa regional que se encontram dispersas no n.º 1 do art. 227.º e que se designam, por vezes, de “competências mínimas” e da faculdade de as regiões poderem desenvolver leis de base estaduais e regionais em domínio de competência concorrencial (alínea c) do n.º 1 do art. 227.º); (ii) da supressão da antiga alínea o) do art. 228.º, que permitia expressamente legislar fora das listagens constitucional e estatutária. Em face do exposto, crê‑se que será organicamente inconstitucional um ato legislativo das regiões que incida sobre uma matéria que, fora dos domínios respeitantes às alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 227.º da CRP, não seja previamente definida como de âmbito regional no Estatuto, já que não existe, diversamente do que sucedia no período que mediou entre as revisões constitucionais de 1997 e 2004, uma norma constitucional que habilite o exercício de poderes legislativos comuns fora das matérias que se encontram elencadas no marco estatutário. O n.º 2 do art. 67.º do Estatuto, na redação dada pela sua terceira revisão, “testou” essa taxatividade, estabelecendo uma cláusula residual habilitante do exercício de competências na área concorrencial fora do marco estatutário. O Tribunal Constitucional (TC), numa primeira argumentação translúcida, esquivando-se a uma pronúncia clara sobre a admissibilidade de uma cláusula residual e sobre a taxatividade estatutária (que passou a ser uma realidade à luz do n.º 1 do art. 228.º da CRP), acabou por admitir de algum modo essa mesma taxatividade mediante uma formulação lateral, aludindo ao novo papel central dos Estatutos na definição das competências regionais. Para o ac. n.º 402/2008, “o Tribunal entende, pois, que a cláusula geral do artigo 67.º, n.º 2, do Estatuto não cumpre satisfatoriamente o mandato constitucional a ele cometido, no que diz respeito à competência da Assembleia Legislativa, de definir e enunciar as matérias por ela abrangidas. Pelo seu teor irrestrito e indeterminado, com total omissão de qualificações materiais delimitadoras, ela não atinge o grau de densificação constitucionalmente exigível. Temo-la por ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da CRP”. Posteriormente, outros arestos do TC (acs. n.º 304/2011 e n.º 187/2012) tornaram ainda mais claro o papel incontornável dos Estatutos na definição das matérias de âmbito regional atribuídas à competência legislativa regional comum.   Cláusulas gerais Para o efeito dessa separação ou delimitação de domínios numa mesma matéria, torna‑se relevante o uso de limites à competência regional sediados em cláusulas gerais. Tal é o caso dos conceitos jurídicos indeterminados do “âmbito regional” e, segundo o entendimento do TC, da “reserva de competência dos órgãos de soberania” na sua variante móvel ou não expressa.   A substituição do limite positivo do interesse específico pelo conceito constitucional de “âmbito regional” A revisão constitucional de 2004 extinguiu o limite positivo do interesse específico (cláusula geral que operava como pauta de repartição horizontal ad casum dos poderes legislativos das regiões em matérias onde também incidiam os poderes do Estado), cessando um conceito indeterminado que permitia à justiça constitucional invalidar diplomas regionais que não dispusessem sobre matérias que apenas ocorriam na RA ou que aí tivessem uma especial configuração. A grande maioria das declarações de invalidade de atos legislativos regionais desde 1976 fundou‑se, precisamente, no vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação do interesse específico. Doravante, as regiões passam a legislar relativamente às matérias do universo concorrencial paralelo, no “âmbito regional”, uma medida de valor constitucional igualmente indeterminada que configura um novo critério de delimitação competencial. De acordo com o n.º 4 do art. 112.º, todos os decretos legislativos, independentemente do tipo de competência ao abrigo do qual são aprovados, “têm âmbito regional”. A expressão “âmbito regional” constitui, ainda assim, um conceito inovador indeterminado que se encontra sujeito ao teste da descodificação jurisprudencial.   O conceito comporta um elemento espacial e um elemento substancial. Trata-se de um limite mais linear do que o da noção de “interesse específico”, dado aludir fundamentalmente à projeção de uma dada matéria no âmbito geográfico ou espacial de uma RA. Assim, uma política pública que ocorra num domínio como o turismo deve decompor‑se, sob o ponto de vista legislativo, numa esfera geral de incidência estadual e numa esfera especial de carácter regional, sendo as mesmas reguladas por leis distintas. Apenas se a lei regional for revogada sem substituição ou se ostentar lacunas é que a lei geral aprovada pelo Estado poderá aplicar‑se na RA, já que aí vigora supletivamente (art. 228.º, n.º 2 da CRP) – no sentido de uma circunscrição predominante da noção de “âmbito regional” à dimensão espacial dada pelo elemento geográfico ou territorial são de referir Jorge Miranda e Rui Medeiros, que decantam a existência do que afirmam ser um “elemento institucional” que impeça, salvo disposição constitucional em contrário, os atos normativos dos parlamentos regionais de se projetarem em outras pessoas coletivas (MIRANDA e MEDEIROS, 2007, III, 351). O conceito pode sofrer um alargamento no plano substancial, ditado por exigências de especialidade. Na verdade, certos bens jurídicos e imperativos institucionais de alcance unitário e relevo imediato para todos os cidadãos, mas com repercussão no âmbito geográfico das regiões, podem carecer de um denominador comum à luz dos princípios da unidade e solidariedade nacionais (art. 225.º, n.º 2 da CRP), denominador que poderá ser negativamente afetado por legislação regional antitética passível de inviabilizar ou depreciar os próprios objetivos da lei do Estado e os interesses de toda a população residente em Portugal. Nessas circunstâncias, não seria improvável que o TC viesse a enxertar, na noção de “âmbito regional”, um limite simultaneamente negativo e positivo, soldado, no plano substancial, à ideia de especialidade regional dos bens e interesses tutelados. E que viesse a julgar a inconstitucionalidade de decretos legislativos regionais que projetassem indiretamente os seus efeitos fora desse âmbito. Ora, efetivamente, com o emblemático ac. n.º 258/2007, o TC procurou fixar o seu entendimento sobre a descodificação do conceito indeterminado de âmbito regional, em termos não muito distantes da sua primitiva noção de interesse específico. Assim, em primeiro lugar, o TC fez caber no conceito de “âmbito regional” a componente mais ampla da noção póstuma de “interesse específico”, na sua dimensão de interesse especial (como referimos em “As competências legislativas das regiões autónomas….”); o interesse específico desdobrava‑se numa componente de interesse exclusivo (matérias que apenas ocorrem nas RA) e numa componente de interesse especial (matérias que podem ocorrer nas demais partes do território, mas têm neste uma especial configuração). Reza a este propósito o acórdão citado: “Crê‑se não ser abusivo associar a expressão ‘âmbito regional’, para além de uma referência territorial, às expressões ‘matérias que dizem [digam] respeito às Regiões Autónomas’, constantes dos Projetos de revisão constitucional n.os 2/IX e 3/IX, definidas ‘em função da especial configuração que as matérias assumem na respetiva região’ (como se lê na exposição de motivos do Projeto de revisão constitucional n.º 1/IX), e surgindo aquela expressão como sucedânea da anterior menção a ‘matéria de interesse específico para as respetivas regiões’, ainda utilizada nos Projetos de revisão constitucional n.os 4/IX e 6/IX”. Em segundo lugar, o TC considerou que o critério geográfico deveria ser completado por um critério material. Segundo o ac. n.º 258/2007, “há, na verdade, que atender aos fundamentos, aos fins e aos limites que a Constituição assinala à autonomia regional, no seu artigo 225.º: os fundamentos dessa autonomia assentam nas características geográficas, económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da Madeira e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares; os fins consistem na participação democrática dos cidadãos, no desenvolvimento económico‑social, na promoção e defesa dos interesses regionais, mas também no reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses; os limites derivam da não afetação da integridade da soberania do Estado e do respeito do quadro constitucional. Assim, a circunstância de a legislação regional se destinar a ser aplicada no território da Região não basta, só por si, para dar por verificado o apontado requisito”. Ora, segundo o mesmo aresto, na componente material, avulta um critério negativo de acordo com o qual as leis regionais não podem afetar a ordem jurídica nacional “atentas as pessoas (designadamente, pessoas coletivas públicas) envolvidas e os interesses e valores em jogo”. Do que resulta que, mesmo que o ato legislativo regional se aplique apenas na RA, de acordo com o critério geográfico, violará o limite configurado pelo âmbito regional caso se projete sobre interesses e fins qualificados de ordem geral e unitária prosseguidos pelos órgãos de soberania, sendo para o efeito irrelevante que a matéria não figure expressamente na reserva de competência dos mesmos órgãos.   O limite da reserva de competência implícita dos órgãos de soberania O posicionamento do TC acabado de referir implicou uma retoma da tradicional construção de recorte centralista, tecida pelo mesmo órgão previamente à revisão constitucional de 2004 (ac. n.º 711/97), retoma essa que pressupõe o entendimento segundo o qual se se concluir, por aplicação do critério substancial da noção de âmbito regional, que as normas regionais dispõem sobre um domínio que se repercute ou projeta em questões de interesse ou fim público geral, elas serão organicamente inconstitucionais, na medida que invadem um domínio implícito da reserva de competência dos órgãos de soberania. O TC mantém a sua controvertida jurisprudência, no sentido de integrar, na reserva não expressa dos órgãos de soberania, os domínios materiais que requeiram a intervenção legislativa estadual em razão de exigências soberanas. Com efeito, a alínea a) do n.º 1 do art. 227.º da CRP veda às RA o poder de legislarem sobre matérias reservadas aos órgãos de soberania (sendo o mesmo preceito alterado pela revisão de 2004, que modificou a primitiva fórmula, “reserva própria” dos órgãos de soberania). Ora, tal como é sabido, o TC, antes da revisão constitucional de 2004, através de uma jurisprudência não isenta de polémica, integrava, na referida reserva, quer matérias expressamente reservadas aos órgãos de soberania (mormente nos arts. 164.º e 165.º da CRP, entre outros), quer matérias e domínios materiais não enumerados na CRP, sempre que, em nome dos princípios da unidade e da solidariedade nacional, aqueles detivessem um relevo imediato para todos os cidadãos (ac. n.º 348/93). Tratou‑se, no segundo caso, de um domínio móvel da reserva, que permitia, casuisticamente, ao Tribunal integrar, no binário soberano da concorrência paralela entre o Estado e as RA, áreas que ia entendendo serem de relevo unitário e, como tal, subtraídas à competência regional. Ter‑se‑á verificado uma jurisdicionalização subtil de um critério de mérito soldado à noção de interesse nacional ou de interesse coletivo unitário. O ac. n.º 258/2007 sustenta que “há que atentar que a matéria em causa, tendo uma natureza relacional, não se esgota nem pode ser perspetivada isoladamente a propósito da definição dos estatutos de cada uma das entidades envolvidas. O que ocorre é que, englobando nesse tratamento relacional titulares de órgãos de soberania, o órgão legislativo para tal competente não pode deixar de ser o legislador nacional, por ser o único que se situa numa posição de supraordenação relativamente a todas essas entidades. Trata‑se, assim, de matéria que, mesmo que se considere não incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, sempre reclamará a intervenção do legislador nacional, justamente por afetar o posicionamento institucional de entidades pertencentes a distintos poderes do Estado e outros corpos públicos, sendo certo que as reservas assinaladas a este entendimento ‘amplo’ da ‘reserva da República’, que padeceria de um ‘sincretismo de critérios’, se esbateram face ao desaparecimento do critério reportado ao respeito das leis gerais da República”. À luz dessa jurisprudência, haveria que considerar, uma vez mais, a existência, a par da reserva explícita ou listada dos órgãos de soberania, de uma reserva implícita dos mesmos órgãos, a qual incide sobre domínios materiais indeterminados da esfera concorrencial paralela entre o Estado e as RA, que se encontram subtraídos ao âmbito regional. Daqui se retirará que o conceito constitucional de “âmbito regional”, previsto no n.º 4 do art. 112.º da CRP, como limite fixado à legislação das RA, assume uma relação de estreita conexão com outro limite, também ele constitucional, que é o da reserva dos órgãos de soberania na sua dimensão implícita. Com efeito, relativamente a cada matéria da esfera de uma concorrência paralela ou complementar entre Estado e Região Autónoma existem dois âmbitos, um estadual e outro regional, cuja delimitação é operada através do recurso à convocação e à harmonização de medidas de valor, como o conceito de âmbito regional e os princípios da unidade e da solidariedade nacionais, que sustentam o recorte da reserva soberana. E, na verdade, se uma dada disciplina exceder os limites espaciais ou materiais do âmbito regional, enfermará de inconstitucionalidade orgânica por invasão de uma reserva (móvel) de competência dos órgãos de soberania, cujas fronteiras são recortadas por cláusulas gerais fixadas na CRP.   A distribuição vertical de competências legislativas regionais: a tipologia das competências legislativas das RA A distribuição vertical de poderes reporta‑se às modalidades de competências legislativas que as regiões podem exercer numa relação de observância dos limites de natureza unitária que as vinculam. Quanto a esses mesmos limites, verifica‑se que parâmetros da legislação autonómica que se retiram do processo de distribuição horizontal de poderes (como os do “âmbito regional” ou da “subsidiariedade”) se combinam com outros limites próprios da distribuição vertical e que resultam da projeção da hierarquia material de certas leis estaduais (estatutos, leis de autorização, leis de bases, leis‑quadro e regimes gerais) sobre diferentes categorias de leis regionais. Assim, cada tipo de competência legislativa regional se encontra pautado por limites gerais (como é o caso do âmbito regional) e limites específicos (o tipo e o regime operativo das leis parâmetro do Estado que os correspondentes atos legislativos regionais devem observar).   A competência legislativa comum Noção O poder legislativo em epígrafe encontra‑se previsto na alínea a) do n.º 1 do art. 227.º, em conjugação com o n.º 4 do art. 112.º e o n.º 1 do art. 228.º da CRP. Trata‑se da competência que tem por objeto o maior acervo de matérias sujeitas ao exercício de poderes legislativos regionais, e que uma parte da doutrina designa por competências “primárias” (MIRANDA e MEDEIROS, 2007, III, 307).   Critérios reitores do exercício da competência legislativa regional comum Os decretos legislativos regionais aprovados ao abrigo deste tipo de competência devem incidir sobre matérias enumeradas nos EPA, devem conter-se no “âmbito regional” e, ainda, respeitar a reserva explícita ou implícita de competência dos órgãos de soberania da república. Procurando explicitar esta asserção, importa destacar que a competência legislativa em epígrafe se exerce no respeito dos seguintes critérios: (i) a RA pode legislar apenas no “âmbito regional” (CRP, art. 112.º, n.º 4) decantado nas matérias enumeradas no correspondente EPA, o qual, depois de 2004, passou a constituir‑se inequivocamente como um ato‑condição dessa categoria de legislação regional, já que só os Estatutos podem definir o objeto material do exercício da competência legislativa comum; (ii) essas matérias disponíveis à regulação regional não podem invadir a reserva de competência dos órgãos de soberania; (iii) existindo, nestes termos, um fenómeno de confluência legislativa em domínios territoriais e substanciais da mesma matéria (concorrência paralela entre leis do Estado e da RA em matérias não reservadas expressamente aos órgãos de soberania), verifica‑se que, no contexto de uma dessas matérias (v.g., turismo, comércio ou artesanato), os decretos legislativos regionais disciplinam um domínio parcelar da mesma que corresponda ao seu “âmbito regional” e a legislação da República domínio remanescente situado fora do correspondente âmbito; (iv) a densificação do âmbito regional, em situações concretas e dilemáticas de fronteira com as competências soberanas, pode justificar a convocação do princípio da subsidiariedade, o qual permite que a regulação de um domínio em particular possa ser cometida às regiões no caso de se demonstrar que a lei regional (e o respetivo sistema de execução – cf. conexão entre a lei e a sua execução administrativa no plano da incidência do princípio da subsidiariedade na sentença n.º 303 de 2003, do TC italiano) exibe uma maior eficácia e adequação do que uma lei da república, na disciplina jurídica desse domínio; (v) a enumeração estatutária daquilo que eram, antes da revisão constitucional de 2004, matérias de interesse específico foi elaborada de forma excessivamente generalista e indeterminada (facto que não permitiu assegurar uma salvaguarda efetiva dos direitos regionais contra a compressão do poder legislativo estadual concorrente), parecendo não se ter apercebido o legislador autonómico que, caso consagrasse um mínimo de definição do núcleo de competência regional na lei estatutária, essa definição constituiria um defeso com eficácia relativa contra legislação invasiva de leis concorrentes do Estado (já que as leis estaduais devem respeitar os direitos regionais expressos em estatuto, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 281.º da CRP); (vi) a aprovação da terceira revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro), pese as suas graves deformidades constitucionais, corrigiu a insuficiência referida na alínea precedente, a qual sempre foi por nós sublinhada, tendo pormenorizado o objeto de cada matéria da reserva de competência legislativa regional, do que resultou uma maior garantia contra a intromissão indevida de leis da república; (vii) contudo, se é certo que a forma concreta como o âmbito de uma dada matéria atribuída ao poder legislativo regional se encontra definido no Estatuto Político-Administrativo pode assegurar uma maior garantia do exercício dos poderes regionais contra legislação estadual excessivamente densa ou intrusiva, certo é, também, que essa densificação estatutária deverá, ela própria, ser compatível com a noção constitucional de “âmbito regional”, não consistindo a enumeração estatutária uma salvaguarda absoluta em relação à contenção de cada diploma no limite positivo representado pelo referido âmbito – se as leis da república não podem revogar decretos legislativos regionais que disponham sobre matérias elencadas estatutariamente como de “âmbito regional” (sob pena de ilegalidade), o facto é que a própria definição do referido âmbito de uma dada matéria, no estatuto, deve ser conforme ao conceito constitucional de âmbito regional, o qual já foi objeto de uma caracterização exploratória por parte da justiça constitucional; assim, se a definição estatutária atribuir às regiões o poder de emitir legislação que exceda a esfera geográfica da RA e se repercuta, sem credencial constitucional habilitante, na esfera de poder de outras instituições não regionais ou, ainda, se puser em causa regimes jurídicos estatais que devam ter repercussão igual e mediata em todos os cidadãos, à luz dos princípios constitucionais da unidade, solidariedade nacional e subsidiariedade, ela será inconstitucional; (viii) embora as leis do Estado da esfera concorrencial possam circunscrever o seu âmbito de aplicação ao território continental, o facto é que não estão obrigadas a fazê-lo, podendo dispor em geral para todo o território nacional, não sendo por esse facto organicamente inconstitucionais com fundamento em invasão de domínios reservados à competência regional – um pouco à semelhança dos ordenamentos espanhol e italiano, a nova regra da supletividade acabou por afastar a relação de desvalor de inconstitucionalidade das leis estaduais que incidam sobre domínios materiais reservados à competência regional, em sede de concorrência paralela, já que, podendo os órgãos de soberania legislar para todo o território nacional, a sua legislação que incida sobre domínios de “âmbito regional” será apenas desaplicada pelo operador administrativo e jurisdicional, quedando‑se no status de direito supletivo; contudo, é defensável que legislação especial do Estado reportada às RA que intente revogar expressamente legislação regional emitida no âmbito reservado à competência dos entes autónomos poderá ser ilegal, com fundamento em violação de direitos regionais constantes do EPA (art. 281.º, n.º 1, alínea d)) –, devendo aplicar‑se nas RA como direito supletivo ou subsidiário (art. 228.º, n.º 2 da CRP); (ix) a aplicação subsidiária do direito dos órgãos soberanos terá lugar: sempre que a Assembleia Legislativa regional não fizer uso do seu poder legislativo; caso se verifique a revogação não substitutiva ou a caducidade de diplomas regionais em domínios que requeiram regulação; ou sempre que numa dada disciplina legislativa regional se registarem vazios regulatórios e lacunas em leis regionais (embora estas, a serem integradas pelos tribunais, devam ter em conta, preferentemente, o espírito da lei regional ou a reconstituição do pensamento do legislador regional).   As competências delegadas Objeto das autorizações legislativas à RA Os pressupostos constitucionais das autorizações legislativas oriundos da revisão constitucional de 2004 permitem às RA aceder a algumas das matérias da reserva relativa de competência da Assembleia da República previstas no art. 165.º da CRP, mediante delegação legislativa parlamentar, o que, na generalidade, representou um acréscimo de poderes legiferantes sobre matérias de indiscutível relevo político. Trata‑se de uma derrogação ao quadro geral do sistema de repartição horizontal de competências, dado que permite a disponibilização, às regiões, de algumas áreas da competência expressa dos órgãos de soberania. Muitas das matérias integradas na reserva relativa da Assembleia da República não se encontram disponibilizadas às RA. De acordo com a alínea b) do n.º 1 do art. 227.º da CRP, por força de remissão para disposições do n.º 1 do art. 165.º, excluiu‑se do objeto deste tipo de autorizações matérias da reserva relativa da Assembleia da República de mais evidente recorte unitarista ou relevo imediato e geral para todos os cidadãos, v.g.: estado e capacidade de pessoas; direitos, liberdades e garantias; definição de crimes, penas e medidas de segurança; regime geral do ilícito disciplinar; bases do sistema de Segurança Social e do Serviço Nacional de Saúde; criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas; composição do Conselho Económico e Social; sistema monetário e padrão de pesos e medidas; organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respetivos magistrados, bem como de entidades não jurisdicionais de composição de conflitos; estatuto das autarquias locais e regime das finanças locais; associações públicas, garantias dos administrados e responsabilidade civil da administração; bases do regime e âmbito da função pública; definição e regime dos bens do domínio público; regime dos meios de produção integrados no setor cooperativo e social de propriedade; regime e forma de criação das polícias municipais.   Trâmites e vicissitudes da autorização legislativa Nos termos do n.º 2 do art. 127.º da CRP, que, segundo alguma doutrina, integra o critério ou “cláusula de junção” (GOMES CANOTILHO, 2003, 813), as propostas de lei de autorização devem ser acompanhadas do anteprojeto do decreto legislativo regional a autorizar, o que representa um forte condicionamento do processo de delegação. As leis delegantes devem, nos termos da remissão feita pelo mesmo preceito para os n.os 2 e 3 do art. 165.º, conter os requisitos típicos das leis de autorização legislativa. De todo o modo, considera‑se, tal como já foi antecipado, que o legislador regional não se encontra vinculado a editar uma normação legal idêntica à do anteprojeto, contanto que o diploma legal por si aprovado se contenha nos limites da autorização. O anteprojeto constitui apenas uma formalidade instrutória de natureza obrigatória, que permite ao legislador parlamentar estadual balizar os parâmetros da delegação legislativa requerida pela RA. As autorizações caducam com o termo da legislatura ou a dissolução da Assembleia da República ou da Assembleia Legislativa da RA a que tenham sido concedidas (CRP, art. 127.º, n.º 3). Os decretos legislativos regionais autorizados devem invocar a correspondente lei de autorização e podem, ainda, ser sujeitos a apreciação da Assembleia da República, nos termos do art. 169.º com as devidas adaptações para efeitos de cessação de vigência (de acordo com o n.º 4 do art. 227.º). Considera‑se que não será admissível que a apreciação parlamentar nacional envolva alterações, já que tal implica uma intromissão constitutiva do Estado no exercício de uma competência reservada à RA, com a depreciação desta última, devendo entender‑se que a aplicação do art. 169.º da CRP às leis regionais delegadas, ao operar com adaptações, envolve a exclusão da possibilidade da apreciação parlamentar com emendas. Sendo a Assembleia da República o órgão normalmente competente e titular primário das competências delegadas nas RA e sendo a autorização legislativa uma delegação legislativa e não uma transferência de poderes, entende‑se que o Parlamento da República pode alterar a sobredita lei de autorização antes de a mesma ter sido esgotada e revogar o diploma autorizado, no quadro de uma avocação de poderes, idêntica ao que sucede com as autorizações legislativas ao Governo. Considera‑se, no entanto, que não poderá alterar o diploma regional. Na verdade, uma coisa será avocar os poderes delegados e proceder ao seu exercício pleno e outra, modificar o diploma regional, descaracterizando‑o e procedendo a uma estatização parcial de uma disciplina jurídica regional. O modelo horizontal e vertical de distribuição e repartição de competências entre Estado e RA revela ser incompatível com leis mistas, editadas pelas regiões no âmbito regional e alteradas pelo Estado no uso de uma espécie de “tutela corretiva” adaptava à função legiferante. Se a Assembleia da República fosse o órgão normalmente competente para revogar os decretos legislativos regionais por ela autorizados, deveria fazê‑lo expressamente, pois a simples emissão, pela mesma Assembleia, de legislação geral que seja superveniente à aprovação de um decreto legislativo regional autorizado não supõe a revogação deste, nos termos do princípio da especialidade que determina que lei geral não revoga lei especial, salvo vontade inequívoca do legislador nesse sentido. Do mesmo modo, a mera emissão de legislação geral do Estado, depois de aprovada uma lei de autorização à RA ainda não utilizada, não determina, só por si, a revogação tácita dessa autorização, podendo assumir a natureza de normação legal supletiva.   A competência complementar A competência a que se refere a alínea c) do n.º 1 do art. 227.º da CRP reporta‑se ao desenvolvimento para o âmbito regional dos “princípios” ou das “bases gerais dos regimes jurídicos” contidos em leis que aos mesmos se circunscrevam. Corresponde a mesma à faculdade de desenvolver e concretizar o conteúdo de leis de bases e leis de enquadramento e ditar disciplinas legais de conteúdo especial não contrárias a regimes gerais da reserva da Assembleia da República. No texto constitucional anterior à revisão de 2004, as Assembleias regionais poderiam desenvolver, quer leis de bases relativas a um domínio concorrencial indeterminado (matérias não reservadas à competência da Assembleia da República), quer as bases gerais reportadas a algumas matérias da reserva relativa daquela Assembleia. O novo regime constitucional permite, em abstrato, o desenvolvimento para o âmbito regional de qualquer base geral, sem aceção de matéria, abrangendo, em tese, quer as áreas concorrenciais, quer os domínios da reserva absoluta ou relativa da Assembleia da República, quer ainda matérias cobertas por decretos legislativos regionais de bases. Doravante haverá a considerar as seguintes leis parâmetro, para efeito do exercício de competências legislativas regionais complementares: (i) leis de bases (bem como leis de enquadramento e regimes gerais) da reserva dos órgãos de soberania de alcance geral e aplicáveis a todo o território nacional; (ii) leis de bases respeitantes a matérias não reservadas aos órgãos de soberania, com âmbito geral; (iii) decretos legislativos regionais de bases, nomeadamente os habilitados por uma lei de autorização legislativa dos órgãos de soberania. O presente enunciado permite, em tese, o desenvolvimento de bases em todas as matérias relativamente às quais estas sejam passíveis de edição, nomeadamente as matérias de reserva absoluta. Não se exclui, e.g., que, no âmbito regional, os entes autonómicos desenvolvam as bases gerais da reserva absoluta de competência da Assembleia da República, tais como as “bases gerais da organização, do funcionamento, do reequipamento e da disciplina das Forças Armadas” e as bases do Sistema de Ensino (cf. o ac. n.º 262/2006, onde se reconhece esta faculdade). Embora, no primeiro caso, razões lógicas de ordem unitária (excedência do “âmbito regional”) mandem que se tenha como proibido esse desenvolvimento, o mesmo já se não passa no segundo, pese o facto de causar alguma perplexidade a admissibilidade de diversos regimes legais de detalhe entre o continente e os territórios dos arquipélagos, em relação a uma matéria de evidente interesse e relevo para a unidade nacional. O desenvolvimento das bases do art. 164.º da CRP deveria encontrar‑se vedado às RA. Considera‑se, contudo, que, depois da revisão constitucional de 1997, as RA não poderão, na falta de bases gerais previamente editadas pelos órgãos de soberania sobre matérias reservadas à Assembleia da República, legislar apenas com referência a princípios gerais decantados ou deduzidos pelos órgãos regionais da legislação estadual comum, dado que essas leis de bases são legislação‑pressuposto dos atos legislativos complementares autonómicos que as deverão necessariamente invocar (CRP, art. 227.º, n.º 4). O contraponto desta ampliação dos poderes regionais no desenvolvimento das bases gerais dos regimes jurídicos consiste na faculdade de os órgãos de soberania ditarem leis de bases fora da respetiva reserva, ou seja, no universo concorrencial, as quais, no nosso entendimento (que, no entanto, não foi seguido na terceira revisão do EPARAA), deverão ser respeitadas por toda a legislação regional emitida ao abrigo da competência comum.   As competências residuais ou mínimas Trata‑se das faculdades legislativas diretamente exercitáveis a partir de diversas alíneas do n.º 1 do art. 227.º da CRP, encontrando‑se os mesmos poderes misturados com outros de natureza administrativa. Uma destas responsabilidades regionais assume carácter tendencialmente primário, tendo a CRP como uma base fundamental de referência: é, numa primeira leitura, o caso da elevação de povoações à categoria de vilas ou cidades (art. 227.º, n.º 1 alínea m)). Outras exercem‑se no respeito de leis estaduais paramétricas: é o caso de leis relativas à disposição do património, as quais são instrumentais em relação à lei prevista na alínea v) do art. 165.º da CRP no respeitante ao regime dos bens do domínio público (art. 227.º, n.º 1, alínea h)); da criação, extinção e modificação da área das autarquias, a qual deve observância à lei prevista na alínea n) do art. 164.º; do exercício de poder tributário próprio, de acordo com as leis previstas na alínea i) do n.º 1 do art. 165.º (art. 227.º, n.º 1, alínea i)); e da aprovação do orçamento regional, na observância do regime legal constante da alínea s) do art. 164.º (art. 227.º, n.º 1, alínea p)).   A competência relativa à transposição de diretivas da União Europeia Com a revisão constitucional de 2004, corrigiu‑se o excesso da revisão constitucional de 1997, que vedava a transposição de diretivas da União Europeia por ato legislativo regional e depreciava a sua esfera de competência legislativa. A nova redação do n.º 8 do art. 112.º da CRP permite à RA transpor, mediante decreto legislativo regional, diretivas em matérias situadas fora da reserva de competência dos órgãos de soberania que sejam reconhecidas, através das listagens constitucional e estatutária, como fazendo parte do âmbito regional.   Síntese sobre as relações de tensão entre atos legislativos do Estado e da RA Volvida a eliminação das leis gerais da república, as quais geraram complexas dúvidas sobre o seu regime de prevalência em relação aos atos legislativos regionais, o quadro das relações inter-legislativas entre o Estado e as RA ficou simplificado com a revisão constitucional de 2004.   Solução de antinomias no plano jurisdicional Os tribunais comuns dispõem de uma ampla margem de competência para solucionar antinomias derivadas das relações entre as leis do Estado e das RA, a qual lhes é dada pelo art. 204.º da CRP, que os investe no direito‑dever de desaplicar normas inconstitucionais, e pelo art. 280.º, que confirma a mesma regra e a alarga à faculdade de desaplicarem leis estaduais e regionais violadoras de normas legais com valor reforçado. Caem, nomeadamente, no âmbito das desaplicações legais fundadas em juízos de inconstitucionalidade: (i) a violação do objeto e extensão (inconstitucionalidade orgânica) e duração (inconstitucionalidade material) das leis de autorização legislativa por decretos legislativos regionais autorizados); (ii) a incursão de norma legal do Estado ou de decreto legislativo regional, na reserva do Estatuto (inconstitucionalidade formal); (iii) a violação do limite positivo do “âmbito regional” por decreto legislativo regional que invada no campo vedado das competências expressamente reservadas aos órgãos de soberania, ou do âmbito da concorrência entre o Governo e a Assembleia da República ou no âmbito da competência da outra RA (inconstitucionalidade orgânica). Os tribunais podem, no quadro de antinomias que impliquem uma violação ao conteúdo de leis com valor reforçado, julgar a ilegalidade de: (i) decretos legislativos regionais que ofendam as normas paramétricas constantes das bases gerais dos regimes jurídicos, leis de enquadramento, regimes gerais da reserva da Assembleia da República ou de outras leis com valor reforçado que os vinculem especificamente; (ii) normas que definem o sentido das leis de autorização legislativa (sem prejuízo de, discutivelmente, o TC aferir esta antinomia em sede de inconstitucionalidade orgânica, em cumulação com a violação do objeto e da extensão); (iii) leis dos órgãos de soberania que ofendam direitos regionais constantes dos Estatutos de autonomia e decretos legislativos regionais que violem o disposto nos referidos Estatutos. Colocam‑se dúvidas a respeito de colisões entre decretos legislativos regionais que incidam sobre matérias do âmbito regional e leis dos órgãos de soberania respeitantes a matérias situadas fora da sua reserva explícita de competência legislativa. Os tribunais devem, de acordo com o critério da especialidade, articulado com o critério da competência, dar aplicação preferencial, nas RA, à lei que contenha uma disciplina particular e cuja esfera de aplicação se circunscreva necessariamente ao âmbito das RA, sendo essa lei o decreto legislativo regional. Em consequência, a lei do Estado terá a sua eficácia bloqueada ou suspensa nas RA sempre que tiver preferência um decreto legislativo regional sobre a mesma matéria. Contudo, nos termos do n.º 2 do art. 228.º da CRP, a lei estadual vigorará supletivamente nas RA e poderá ser aplicável na falta de legislação regional (caso de não emissão de legislação autonómica, caducidade, revogação puramente supressiva ou declaração de invalidade sem repristinação de diplomas regionais antecedentes).   Solução de antinomias legislativas pelo operador administrativo A Administração Pública, estadual e regional, não tem competência para solucionar antinomias impróprias, ou seja, para desaplicar leis com fundamento em inconstitucionalidade ou ilegalidade, sem prejuízo de, num quadro de antinomia, a administração estadual periférica se dever abster de aplicar leis regionais que disponham sobre as matérias da reserva expressa de competência da Assembleia da República e do Governo, onde não existe concorrência e os atos regionais se encontram absolutamente vedados. Daí que, salvo situações excecionais, em que as normas da CRP se apliquem diretamente, e na falta de cláusulas constitucionais de solução imediata de conflitos, a Administração Pública deva conferir, nas RA, como decorrência do princípio da especialidade, aplicação prevalecente aos diplomas regionais sobre os estaduais, no âmbito das matérias situadas fora da esfera da reserva.     Carlos Blanco de Morais (atualizado a 11.02.2017)

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