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fortes da ribeira dos socorridos

Quando Zarco e os seus companheiros deram a primeira volta de reconhecimento à Ilha, ao passarem por uma ribeira caudalosa, dois rapazes de Lagos que acompanhavam o futuro capitão aventuraram-se a nado na foz da mesma; por terem sido socorridos, ficou o nome de ribeira dos Acorridos ou ribeira dos Socorridos. Com uma larga praia propícia a desembarques, podia ser testa-de-ponte para ataques à vizinha localidade de Câmara de Lobos ou ao Funchal, como tinha sido a praia Formosa. Assim, as primeiras informações que temos da construção das defesas da ribeira dos Socorridos devem-se a Mateus Fernandes, no seu sumário relatório de cerca de 1595. Escreveu o mesmo, que “na ribeira dos Acorridos, a uma légua do Funchal, mandou sua alteza, que está em glória”, em princípio D. Sebastião, embora os alvarás tivessem sido assinados pelo seu tio-avô cardeal D. Henrique, “fazer uns lanços de muros com seus traveses, com os quais se fecha a dita cidade pela parte de poente e todos os que vêm por terra daquela parte entram por uma porta que está no dito muro, entre traveses que a defendem” (ANTT, Cartas Missivas, 2-53). Acrescenta ainda, que “dos quais traveses, um deles ficara com a praça desentulhada e é necessário ver-se quem a desentulhou, para que a torne a terraplanar à sua custa” (Id., ibid.). O pano de muralha que envolvia, assim, a escarpa nascente da ribeira, que ainda fotografámos na década de 80 do século passado, com os seus traveses e espaldões para bocas-de-fogo, constituiu, portanto, o forte da ribeira dos Socorridos, cujas muralhas desciam até à praia e tapavam qualquer acesso ao Funchal. Temos várias informações de terem ocorrido obras nesta área ao longo do séc. XVII, apontando o forte como, essencialmente, uma vigia (Vigias), tal como indica a reconstrução de 1642. Neste ano, em março, foram entregues ao capitão Bartolomeu Fernandes Pereira, da companhia de ordenanças da ribeira 4$000 réis de 500 telhas, a cinco réis cada e pagaram-se mais $300 réis ao ferreiro Gaspar Gonçalves, por quatro “camelos” para o ferrolho da porta do muro e da fechadura e chave, com seus pregos. O transporte foi feito duas semanas depois, pagando-se aos quatro negros que as levaram aos barcos, $080 réis, remunerando-se também Manuel Gonçalves, arrais, por transportar no seu barco as portas, 500 telhas e duas sacas de cal. No entanto, chegadas as portas à foz da ribeira dos Socorridos, descobriu-se que lhes faltavam os suportes, que só então foram mandados fazer. Pagou-se depois, ao mesmo Gaspar Gonçalves, serralheiro, por dois mancais e duas argolas para a porta do muro, $320 réis. Em abril desse ano, no entanto, as contas da obra da ribeira dos Socorridos não estavam todas saldadas, pagando-se ainda mais algumas telhas ao capitão Bartolomeu Fernandes. Nos séculos seguintes, quer o reduto da ribeira dos Socorridos, quer outros dois pequenos redutos feitos na área, eram tidos como fortes. O tenente-coronel António Pedro de Azevedo (1812-1889) em 1868, teceu algumas considerações sobre a necessidade de reconstruir os fortes da foz da ribeira dos Socorridos. Nessa data, encontrava-se em construção a nova estrada de ligação a Câmara de Lobos, na continuação da estrada monumental, pelo que as reticências anteriores sobre as difíceis comunicações em breve deixaram de ser verdade, impondo-se uma outra atenção para esta área. A bateria da ribeira dos Socorridos era constituída por uma esplanada de 16 m, a morrer na falda da escarpa e com uma casa da guarda interior, com 7 m x 4,75 m, confrontado com terrenos do 2.º conde de Carvalhal (1831-1888). As recomendações do engenheiro não tiveram acolhimento e, a 1 de janeiro de 1895, a área foi arrendada a João Blandy, por 1$400 réis. No entanto, a muralha envolvendo a escarpa e marcada por cordão relevado ainda subsiste. A margem oposta da ribeira dos Socorridos, entretanto, foi igualmente dotada de um pequeno forte, que recebeu o nome de uma fazenda e produto da área: Pastel. A construção deve ser posterior a 1817, dado Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832) não fazer qualquer referência ao edifício, e deve datar da época das campanhas liberais. Muito provavelmente, terá sido feito por um dos proprietários locais, possivelmente o 1.º conde de Carvalhal (1778-1837) dado que eram terrenos seus. O reduto do Pastel era “uma insignificante bateria”, como escreveu António Pedro de Azevedo (DSIE, Gabinete..., n.º 5525, 1A-12A-16), com 10 m x 4 m, embora ocupasse uma importante posição estratégica na escarpa. Possuía somente lugar para duas bocas-de-fogo e uma “escavação, ou abrigo aberto na rocha”, ou seja, uma furna, onde chegou a residir o fiel de munições (Id., Ibid.). Confrontava por todos os lados com terrenos pertencentes então ao 2.º conde de Carvalhal. Escreveu ainda o engenheiro Azevedo que teria possuído uma escada de nove degraus, obstruída em 1868 pelas obras da nova estrada. Veio a ser entregue às Obras Públicas depois de 1896, para ampliação da estrada monumental. Numa pequena plataforma das margens da ribeira dos Socorridos, foi levantada, por instituição de Francisco de Bettencourt, em 1594 e como sede de morgado, uma capela dedicada a N.ª S.ª da Vitória, que estaria concluída em 1609, conforme a data que ainda ostenta. Segundo António Pedro de Azevedo, por volta de 1831 e em apoio a um engenho de açúcar da casa Carvalhal, foi erigido um pequeno forte que confrontava, em 1868, com terrenos dessa casa senhorial que passaram depois à posse de João Blandy e do antigo caseiro do conde, Manuel Afonso, cujo terreno era necessário transpor para se chegar ao forte. O forte de N.ª S.ª da Vitória era uma pequena bateria montada num baluarte pentagonal, com entrada por nascente e que utilizava como casa da guarda também uma furna, logo à entrada. Muito arruinado, foi arrendado, a 31 de janeiro de 1896 e sobreviveu até aos finais do séc. XX, tendo sido parcialmente demolido em 1989, com a ampliação das instalações industriais ali construídas.     Rui Carita (atualizado a 31.01.2017)

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sintaxe

    Variação sintática em variedades do português A investigação sobre a variação no domínio da sintaxe do português, sobretudo nas suas variedades europeias, ou Português Europeu (PE), não tem merecido a atenção dos linguistas. Como sublinha Ernestina Carrilho, “As informações disponíveis sobre aspetos da sintaxe do PE dialetal são, assim, normalmente escassas e encontram-se, em grande parte, dispersas em muitos trabalhos monográficos” (CARRILHO, 2003, 19), ocupando um lugar muito marginal nos trabalhos dialetológicos. Assinale-se, a título de exemplo, as poucas páginas consagradas à sintaxe por Leite de Vasconcelos na sua tese de doutoramento Esquisse d'une Dialectologie Portugaise, de 1901 (VASCONCELOS, 1987, 121-122), obra de referência na dialetologia portuguesa, ou ainda a ausência de critérios de tipo sintático na caracterização sistemática de dialetos portugueses proposta por Manuel de Paiva Boléo e Maria Helena Silva (1961) e por Luís Filipe Lindley Cintra (1971). A investigação em variação sintática tem sobretudo privilegiado o contraste entre variedades nacionais do português, o PE e o Português do Brasil (PB), não só no âmbito da Teoria da Variação e da Mudança Linguística, proposto no clássico artigo de Uriel Weinreich, William Labov e Marvin Herzog (1968), “Empirical Foundations for a Theory of Language Change”, pioneiro da sociolinguística variacionista, mas também na perspetiva do Modelo de Princípios e Parâmetros (CHOMSKY, 1981) ou doutros modelos compatíveis com os pressupostos teóricos da Gramática Generativa. Os principais fenómenos que têm chamado a atenção de investigadores portugueses e brasileiros encontram-se na secção “Colóquio Português Europeu/Português Brasileiro: Unidade e Diversidade na Passagem do Milénio”, integrada no volume dedicado às Actas do XVI Encontro da APL (CORREIA e GONÇALVES, 2001), e prendem-se, entre outros, com o parâmetro do sujeito nulo (BARBOSA et al., 2001, 539-550), as estratégias de realização de objeto direto (KATO e RAPOSO, 2001, 673-686), o artigo antes de possessivo (BRITO, 2001, 551-575), as construções relativas (CORRÊA, 2001, 615-626), a concordância verbal com a gente (COSTA et al., 2001, 639-656) e o uso do gerúndio (NETO e FOLTRAN, 2001, 725-735). O primeiro trabalho de referência sobre sintaxe dialetal, sob o título de “Aspectos da Sintaxe do Português Falado no Interior do País”, foi realizado por João Malaca Casteleiro (CASTELEIRO, 1975), a partir de uma amostra de dados de português falado coletados no âmbito do projeto corpus Português Fundamental (NASCIMENTO et al., 1987). O seu estudo focaliza-se, entre outros aspetos sintáticos, na estrutura da frase e na sintaxe verbal, mais especificamente nos usos dos tempos e modos verbais, e permite observar algumas tendências da sintaxe do português falado por 45 informantes com nível baixo de escolaridade (4.ª ano do ensino básico) ou analfabetos, de oito distritos do interior de Portugal Continental, tais como o uso do “gerúndio precedido de em, isto é, em + gerúndio. [...] com valor e é muito utilizada na linguagem popular”, como em “Entra às nove, e em sendo aí meia-noite, uma hora, tem ali cama, vai-se deitar (Rececionista de um hotel, instrução primária, de Beja, R-297)” (CASTELEIRO, 1975, 62), ou ainda o recurso de “frases simples justapostas, sem coordenação explícita [...]” (Id., Ibid., 64) e da repetição como forma de se fazerem entender, sendo a frase passiva pouco utilizada. No que se refere à sintaxe do verbo, são de referir o uso frequente dos pronomes pessoais, as formas sujeito, com os verbos, embora tal não seja necessário, uma vez que no português as desinências verbais fornecem a informação relativa às categorias gramaticais de pessoa/número, como em “Mas nós temos a impressão que nem toda a gente se adapta ao nosso ambiente, porque felizmente nós temos aqui um ambiente bom (Bordadora, 4ª classe, Castelo Branco L-183)” (Id., Ibid., 65), ou ainda o uso de a gente com o verbo na 1.ª pessoa do plural, sobretudo no Sul do país, como em “A gente não tivemos festa, andamos de luto (Trabalhadora rural, analfabeta, de Sta Suzana, Évora, Q-42)” (Id., Ibid.). Os resultados deste estudo são, segundo o autor, “apesar da exiguidade da amostragem, [...] no domínio sintático, [...] pertinentes” (Id., Ibid., 58). O autor chama ainda a atenção para algumas características linguísticas de falantes pouco instruídos, cuja fala “não é nem mais pobre, nem mais rica do que a dos falantes média ou altamente alfabetizados. É apenas diferente em vários aspetos da organização das estruturas sintácticas. [...]. As dificuldades de comunicação só surgem – e surgem nos dois sentidos – quando há intercâmbio entre falantes de meios sociais diferentes. Neste aspeto, tanto tem que aprender o falante altamente alfabetizado com o pouco ou nada alfabetizado, como vice-versa. A linguagem de uns e doutros tem, por conseguinte, o mesmo valor linguístico e deve ser igualmente descrita pela Gramática” (Id., Ibid., 74). Merece igualmente destaque a publicação de João Andrade Peres e Telmo Móia, Áreas Críticas da Língua Portuguesa (PERES e MÓIA, 1995), na qual os autores selecionam seis áreas críticas do português contemporâneo a partir da análise de material linguístico retirado de uma amostra de textos jornalísticos produzidos entre 1986 e 1994. As áreas selecionadas, nas quais se observa o uso de variantes não normativas, são indicadas em (1), seguidas de alguns exemplos: 1) a. estruturas argumentais: e.g., “supressão de argumentos”, como em “Desta vez atuaram no Porto, espancando um jovem negro até ficar inconsciente, colocando posteriormente sobre uns carris da linha de comboio” [Diário de Lisboa, 24/11/1989, p. 10] vs. “Desta vez atuaram no Porto, espancando um jovem negro até ficar inconsciente, e colocando-o posteriormente sobre uns carris da linha de comboio”[versão padrão proposta] (PERES e MÓIA, 1995, 60); b. construções passivas: por exemplo, “supressão de preposição”, como em “A nova onda chama-se Peugeot 309 Chorus. Uma onda fácil de entrar (apenas 1.460 contos) e agradável de estar” [Expresso, 31/12/1988, p. C-7 (publicidade)] vs. “A nova onda chama-se Peugeot 309 Chorus. Uma onda em que é fácil entrar (apenas 1.460 contos) e agradável estar” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 233); c. construções de elevação: como em “As conclusões deste estudo estavam previstas virem a ser apresentadas ainda no decorrer deste mês […]” [O Independente, Dinheiro, 23/12/1993, p. 5] vs. “Estava previsto as conclusões deste estudo virem a ser apresentadas ainda no decorrer deste mês […]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 266); d. orações relativas: e.g., “supressão de preposição de constituinte relativo”, como em “Os temas que os portugueses gostam [...]” [O Jornal Ilustrado, 31/3/1989, p. 35] vs. “Os temas de que os portugueses gostam [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 290); e. construções de coordenação: e.g., “supressão de constituintes relativos”, como em “[…] é o caso de Aspects of Love, que estreou-se no mês passado em Londres e já foram vendidos cinco milhões de libras de bilhetes [...]” [Europeu, 18/5/1989, p. 24] vs. “[…] é o caso de Aspects of Love, que se estreou no mês passado em Londres e de que já foram vendidos cinco milhões de libras de bilhetes [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 413); f. concordâncias: como em “Desta vez coube-nos em sorte três novelas de Mateus Maria Guadalupe [...]” [O Jornal Ilustrado, 12/5/1989, p. 20] vs. “Desta vez couberam-nos em sorte três novelas de Mateus Maria Guadalupe [...]” [versão padrão proposta] (Id., Ibid., 453). Cerca de 20 anos depois deste texto de referência, o projeto CORDIAL-SIN (Corpus Dialectal para o Estudo da Sintaxe), coordenado por Ana Maria Martins, do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa (CLUL), vem dar ênfase à investigação em variação sintática no PE. Iniciado em 1999, este projeto visa estudar a variação sintática dialetal do PE, com recurso a dados empíricos, no âmbito da Teoria de Princípios e Parâmetros da Gramática Generativa. Para tal, foi constituído um corpus anotado de PE (CARRILHO e MAGRO, 2010), cuja extensão atual é de cerca de 600.000 palavras (70 horas de gravações que incluem um conjunto geograficamente representativo (42 pontos) de excertos de discurso livre e semi-dirigido). Estes dados foram selecionados a partir do arquivo sonoro do CLUL, construído ao longo de 30 anos, contendo no total cerca de 4500 horas de gravações, obtidas em mais de 200 localidades do território português, no âmbito dos projetos ALEPG (Atlas Linguístico-Etnográfico de Portugal e da Galiza, coord. de João Saramago), ALLP (Atlas Linguístico do Litoral Português, coord. de Gabriela Vitorino), ALEAç (Atlas Linguístico-Etnográfico dos Açores, coord. de João Saramago) e BA (Fronteira Dialectal do Barlavento do Algarve) (SEGURA, 1988). O desenvolvimento de uma área de interesse como a da descrição sintática do português trouxe, ao longo das duas últimas décadas, “avanços relevantes no conhecimento empírico dos dialetos e da variação sintática que as línguas naturais apresentam” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 125), e tal deve-se em grande parte ao projeto CORDIAL-SIN. Este recurso permitiu observar a dimensão geográfica da Sintaxe Dialetal, nomeadamente a distribuição geográfica de algumas construções sintáticas não-padrão do PE (CARRILHO e PEREIRA, 2011 e 2013). Para além destes trabalhos, há a registar, no domínio da sintaxe do gerúndio, e com recurso a dados do CORDIAL-SIN e a monografias dialetais, a presença da variante flexionada, numa área relativamente extensa do Sul de Portugal Continental e, pontualmente, no arquipélago dos Açores (LOBO, 2000, 2001, 2002 e 2008), de que são dados alguns exemplos a seguir, retirados de LOBO (2000): 2) a. orações adjuntas modificadoras da frase sem conector: “Sendem dois, são dois feixes, sendem quatro, são quatro feixes. (Odeleite, in Cruz (1969))”; “Tu querendos, podemos namorar às descondidas. (Monte Gordo, in Ratinho (1959))”. b. orações adjuntas introduzidas por preposição em (ou ende): “vendem a pessoa assim {pp} ou com uma idade {pp} [AB|ou, ou] ou mal ou qualquer coisa, {pp} uns têm consciência, outros não têm. (Cordial, PAL7)”; “Em sendem crescidos, levo-os a Lisboa. (Baixo Alentejo, in Delgado (1951))”. c. orações adjuntas introduzidas por advérbios: “Onde é que eles mesmo /trabalhandem/ /trabalhando/, em ganhando o dinheiro, podiam semear alguma coisinha para eles. (Cordial, PAL11)”. d. orações relativas livres introduzidas por onde e quando: “Onde estando a menina está alegria. (Nisa, in Carreiro (1948))”; “Quando ele estando demais, já cheira a azedo. (Cordial, PAL30) (27)”. Por fim, merece ser sublinhado o trabalho realizado por Eva Arim, Maria Celeste Ramilo e Tiago Freitas, do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), publicado em 2004, a partir de dados retirados do corpus Rede de Difusão Internacional do Português: rádio, televisão e imprensa (REDIP) (que contempla materiais de fala produzidos na rádio, televisão e imprensa, em Portugal, em 1998), sobre construções relativas em PE. Este trabalho põe em evidência o uso de construções relativas não-padrão nos meios de comunicação social portugueses, algo que já tinha sido observado para o PB. Com efeito, esta variedade, e de acordo com o trabalho de Marcos Bagno (2001), referido pelos autores, cujos resultados tiveram por base o corpus de PB falado do Projeto NURC (Projeto da Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro) aponta para o uso de uma percentagem elevada de relativas não-padrão (79,5 %), com a seguinte distribuição: variante relativa cortadora, com supressão da preposição (94 %) e variante relativa resuntiva, com marcação não-padrão do caso do constituinte relativo (6 %). O mesmo autor mostra que na língua escrita, com base em material jornalístico, a percentagem de variantes não-padrão se mantém elevada (94 %). Tal como no PB, observa-se o uso de variantes de relativas não-padrão em PE, sendo a cortadora a mais frequente, com 59 % no registo oral, mas apenas 3 % no registo escrito, a seguir ilustrado, com dados retirados da publicação: 3) a. Relativa não-padrão (cortadora), oral: “A linha de crédito que precisariam seria de cento e cinquenta mil milhões de dólares” [Noticiário, RDP]; padrão: “A linha de crédito de que precisariam seria de cento e cinquenta mil milhões de dólares”; “O audiovisual também está neste conjunto que eu chamo multimédia e comunicações interativas” [Dinheiro Vivo, RTP2]; padrão: “O audiovisual também está neste conjunto a que eu chamo multimédia e comunicações interativas”; “São passos no sentido daquilo que se chama mais união política” [Noticiário, RDP]; padrão: “São passos no sentido daquilo a que se chama mais união política”; b. Relativa não-padrão (cortadora), escrita: “Os investigadores encontraram quatro linhagens diferentes que chamaram A, B, C e D” [Expresso, secção de ciência e tecnologia]; padrão: “Os investigadores encontraram quatro linhagens diferentes a que chamaram A, B, C e D”; “O diretor de O Jogo aumentou de dois para quatro pontos a vantagem que dispõe sobre o trio perseguidor” [Expresso, secção de desporto]; padrão: “O diretor de O Jogo aumentou de dois para quatro pontos a vantagem de que dispõe sobre o trio perseguidor”. Já a variante resuntiva é a menos produtiva e mais marcada. Como afirmam os autores, “das duzentas e sessenta e cinco orações relativas encontradas no corpus, apenas as duas que se seguem são claramente resuntivas” (ARIM et al., 2004): 4) Relativa não-padrão (resuntiva), oral: “É sobretudo a síntese de tudo aquilo e das pessoas que viveram à minha roda e que eu consegui dar-lhes forma” [“Acontece”, RTP2]; padrão: “É sobretudo a síntese de tudo aquilo e das pessoas que viveram à minha roda e que eu consegui dar forma”; “Pôr em causa um princípio que antes não pensavam muito nele” [Debate sobre o Referendo sobre a Regionalização, RDP]; padrão: “Pôr em causa um princípio em que antes não pensavam”. Variação sintática e sintaxe não-padrão nas variedades do português falado na Madeira Os estudos descritivos e sistemáticos sobre variação sintática da variedade do Português falado na Madeira (doravante, PFM), sobretudo sobre a “Variedade do Português Europeu falada no Funchal” (ou PE-Funchal), são muito recentes, como sublinhado por Aline Bazenga (BAZENGA, 2014b). As principais referências surgem após as coletas de dados empíricos realizadas por investigadores do CLUL nos anos 70 e 80 do séc. XX e no início do séc. XXI. Projeto CORDIAL-SIN (CLUL) O projeto CORDIAL-SIN, dedicado ao estudo da variação sintática, permitiu a reflexão e estudo de fenómenos variáveis do PE nos quais surgem algumas particularidades em uso na variedade do PFM. De entre os trabalhos publicados no âmbito deste projeto, merecem especial atenção aqueles que mostram a existência de algumas construções não sintáticas mais confinadas à Madeira e aos Açores, tais como os usos de (i) ter existencial, ilustrado pelo exemplo de uma ocorrência deste tipo num informante do Porto Santo, “Porque aqui à nossa frente, tinha um alto, tinha um moinho de vento e (eu) não via a casa da minha mãe! (PST)” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 129); (ii) as construções com possessivo pré-nominal sem artigo, como no exemplo a seguir, de um informante de Câmara de Lobos: “Ah, meus filhos já vieram daí para cá. (CLC)” (Id., Ibid., 132); e (iii) com o uso do gerúndio, precedido de verbos aspetuais como “estar”, “ficar”, “andar”, como, por exemplo, no seguinte enunciado produzido por um falante madeirense do Porto Santo: “[…] toda a gente estava desejando de chegar ao Natal, que era para comer massa e arroz e um bocadinho de carne” (Id., Ibid., 130). Projeto Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e europeias (CLUL-Portugal e UFRJ-Brasil) O estudo da variação sintática na variedade madeirense tem vindo a desenvolver-se essencialmente desde 2008, data de início do Projeto Estudo comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras e europeias, projeto internacional coordenado por investigadores do CLUL (Portugal) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (Brasil) e financiado pelo CAPES/GRICES (Brasil), mais concretamente a partir de 2010, data em que a Universidade da Madeira (UMa) passa a integrar o projeto, através da investigadora do CLUL e docente desta Universidade Aline Bazenga. Os primeiros estudos variacionistas sobre sintaxe do português insular, a partir de dados da variedade falada no Funchal, capital do arquipélago da Madeira, começaram a ser publicados a partir desta data. Os trabalhos publicados enquadram-se na perspetiva variacionista e laboviana da variação, na qual a heterogeneidade sistemática observada nos sistemas linguísticos é condicionada por fatores sociais. Para o corpus Concordância-Funchal, foram realizadas as primeiras entrevistas sociolinguísticas de informantes madeirenses do Funchal. O projeto de constituição do corpus, inicialmente previsto para obtenção de dados de falantes insulares e urbanos, tem vindo a ser alargado a outros pontos de localização na ilha da Madeira (Calheta/Paul do Mar, Porto Moniz, Funchal, Santa Cruz, Boaventura, Ribeira Brava, Caniçal, Santana e Câmara de Lobos), com vista à constituição de um corpus Madeira. Em 2014, o corpus Concordância-Funchal passa a ser designado por corpus Sociolinguístico do Funchal (CSF) e integra-se no Corpus Madeira, que inclui amostras de outras localidades insulares. No mesmo ano, o CSF contém dados de 60 informantes, num total de 34 horas e 45 minutos de gravações. Os informantes foram escolhidos em função dos critérios sociais defendidos por Labov, atendendo às variáveis idade, género, localidade e nível de escolaridade. Os dados recolhidos têm sido objeto de estudo e analisados em trabalhos de investigadores, não só por Aline Bazenga, em publicações, comunicações e trabalhos de alunos sob sua orientação, como também por Juliana Vianna, em Semelhanças e Diferenças na Implementação de a gente em Variedades do Português (dissertação de doutoramento, defendida em 2011), Lorena Rodrigues, sobre os pronomes e clíticos em variedades do português (dissertação de doutoramento, em curso em 2016), e Catarina Andrade, em Crenças, Perceção e Atitudes Linguísticas de Falantes Madeirenses (dissertação de mestrado, defendida em 2015), todos membros do Centro de Investigação em Estudos Regionais e Locais da Universidade da Madeira (CIERL-UMa), dirigido por Paulo Miguel Rodrigues. Construções sintáticas não-padrão em uso na Madeira A investigação realizada no âmbito dos projetos anteriormente referidos permitiu aprofundar a investigação em torno de algumas áreas da gramática do PE, para as quais os falantes madeirenses mais contribuem, através de usos de variantes sintáticas não-padrão. Assim, para além da variante com gerúndio em construções aspetuais com o verbo estar e do uso de possessivo pré-nominal sem artigo, são de assinalar, nas construções existenciais, o uso da variante com o verbo ter e, nas construções pronominais, o uso de a gente e variantes com ele e lhe em função objeto direto (OD), entre outras particularidades ligadas à sintaxe posicional dos clíticos. São de referir ainda as variantes de terceira pessoa do plural (PN6) na morfologia verbal, em vogal [u], com ou sem traço de nasalidade, e em ditongo nasal [ɐ̃j̃] alargado a outros paradigmas verbais, o que conduz à regularização das classes temáticas dos verbos no presente do indicativo e no pretérito imperfeito, para além da variante em vogal, isomorfa de terceira pessoa do singular (PN3), cuja produção parece estar motivada por fenómenos de fonética sintática. Muitos destes fenómenos, que serão apresentados de modo mais sucinto nas secções seguintes, são referidos no trabalho de Elisete Almeida, publicado em 1998, sobre as “Particularidades dos Falares Madeirenses, na Obra de Horácio Bento de Gouveia”, elaborado a partir da recolha de dados retirados da escrita de Horácio Bento de Gouveia, escritor madeirense que, tendo a perceção do uso de algumas variantes não-padrão, sobretudo por informantes menos escolarizados da ilha da Madeira, procurou integrá-las na caracterização de personagens do povo nos seus romances. Construção com possessivo pré-nominal sem artigo O exemplo atestado em Câmara de Lobos “Ah, meus filhos já vieram daí para cá.” (CLC), e citado por Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 132), ilustra a variante da construção-padrão, com realização do artigo definido a preceder o possessivo, como em “Ah, os meus filhos já vieram daí para cá.”. As autoras acima referidas, apesar de observarem a realização da construção sem artigo em várias localidades situadas em Portugal continental, reconhecem “um padrão de distribuição geográfica predominante na área insular, em especial no arquipélago da Madeira” (Id., Ibid.), sobretudo quando os possessivos são seguidos de nomes de parentesco. Outras ocorrências desta variante não-padrão são citadas por Aline Bazenga (BAZENGA, 2011c), tendo por base uma amostra do CSF: 5) a. tava eu tua avó e teu avô [padrão: a tua avó e o teu avô] tava-se ali sentades (FNC11_MC1.1 159-60); b. mas mê maride [marido] [padrão: o meu marido] não podia ajudar em nada (FNC11_MC1.1 200); c. minha mulher [padrão: a minha mulher] teve seis filhes [filhos] (FNC11_HC1 207); d. salete _mas [mais] minha prima [padrão: a minha prima] (FNC11_MA1 016); e. quande mê [meu] pai faleceu [padrão: o meu pai] mê [meu] pai [padrão: o meu pai] foi tratado pior que um cão (FNC11_MB2 079-80). Construção aspetual estar + gerúndio Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (CARRILHO e PEREIRA, 2011), com recurso a dados de informantes madeirenses integrados no corpus CORDIAL-SIN, observam também, em algumas zonas de Portugal Continental, sobretudo nas variedades dialetais centro-meridionais e insulares, o uso da variante da construção aspetual com o verbo “estar” seguido de gerúndio, para além da variante-padrão, com verbo no infinitivo. Na Madeira, esta construção está também atestada, conforme o exemplo a seguir indicado e retirado deste trabalho: 6) “[…] toda a gente estava desejando [padrão: estava a desejar] de chegar ao Natal, que era para comer massa e arroz e um bocadinho de carne (PST)” (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 130). A propósito desta construção e do seu uso no PFM, Elisete Almeida crê que esta se deve ao contacto linguístico e cultural da comunidade madeirense com os ingleses, a um processo de transferência linguística da construção inglesa “it’s rainning” para “está chovendo” (ALMEIDA, 1999, 75). Construção com ter existencial A construção com ter existencial tem sido referida como uma variável que permite contrastar duas variedades normativas do português, PE e PB, como nos exemplos a seguir indicados e retirados de Maria Helena Mira Mateus (2002): 7) a. PB: tem fogo naquela casa; PE: há fogo naquela casa. b. PB: no baile tinha muitos homens bonitos; PE: no baile havia muitos homens bonitos. Yvonne Leite, Dinah Callou e João Moraes observavam que o “uso de ter por haver tem sido objeto de estudo sistemático e costuma-se dizer que essa substituição, em estruturas existenciais, constitui uma das marcas que caracterizam o português do Brasil [sublinhado nosso], afastando-o do português de Portugal e aproximando-o do de Angola e Moçambique” (LEITE et al., 2003, 101). Muito estudada no âmbito do PB (VIOTTI, 1999; MATTOS e SILVA, 2002; DUARTE, 2003; LOPES e CALLOU, 2004; CALLOU e DUARTE, 2005; AVELAR, 2006a, entre muitos outros), só recentemente esta construção foi objeto de análise no âmbito do PE. O artigo de Ernestina Carrilho e Sandra Pereira (2011), com base no CORDIAL-SIN, mostra que esta construção está presente em variedades do PE, nos arquipélagos dos Açores e Madeira (fig. 1): Fig. – Mapa com a distribuição de “ter” impessoal e existencial no CORDIAL-SIN (CARRILHO e PEREIRA, 2011, 130). Trata-se de uma construção em que o verbo ter é usado não com o seu valor de posse, como na gramática da variedade normativa do PE, mas sim como verbo existencial, em vez da variante normativa com haver, fenómeno que se encontra ilustrado através dos exemplos, em (7), retirados deste trabalho: 7) a. “Porque aqui à nossa frente, tinha um alto, tinha um moinho de vento e não via a casa da minha mãe! (PST16)”; b. “Mas tinha muitos moinhos por aqui fora. (CLH03)” (Id., Ibid., 129). Aline Bazenga (BAZENGA, 2012a, 2012b), com base no CSF, confirma a vitalidade desta construção: 8) a. “nunca tive oportunidade só_só italiano lá em baixo no centro onde tem [padrão: há] um italiano espetacular. (FNC11_HA1)”; b. “Porque no Continente tem as discotecas onde vai toda a gente e tem [padrão: há] as discotecas que são escondidas só vai quem quiser. (FNC11_HA2)”; c. “no meu trabalho onde eu trabalho tem [padrão: há] muita gente de idade e há velhotes que têm pensões. (FNC11_MB2)”; d. “tem [padrão: há] bastantes colégios aqui na Madeira. (FNC11_MA3 111-2)”; e. “tem [padrão: há] pessoas com estudos e não têm trabalho. (FNC11_MC1.2 177)”; f. “na rua dos ilhéus onde tem [padrão: há] dez_vinte prédios de apartamentos. (FNC_CH 3.1 102)”. Em trabalhos de mestrado realizados em 2014, sob a orientação de Aline Bazenga, foi possível realizar um estudo sociolinguístico, recorrendo a duas amostras de seis informantes cada. Estas duas amostras, uma com informantes pouco escolarizados (TER-Funchal 1) e a outra com informantes licenciados (TER-Funchal 3), permitiram obter os primeiros dados quantitativos e configurar a variação no domínio das construções existenciais na variedade do PFM. A seguir (cf. figs. 2 e 3), são apresentados os resultados globais obtidos, em termos de percentagens: [table id=84 /] Estes resultados permitem concluir que o uso da variante construção existencial com ter é frequente na variedade popular do Funchal, i.e., junto de informantes pouco escolarizados e, por esse motivo, com menor contacto com a variante-padrão veiculada pela escola, sobretudo do sexo masculino (63,70 %) e mais jovens (faixas etárias A e B, com 68,3 % e 53,8 %, respetivamente). É, também, de salientar a preferência deste grupo de falantes pelo uso do verbo ter neste tipo de construções com o verbo no presente do indicativo (58,5 %) e quando seguido de um sintagma nominal (SN) cujo nome (N) apresenta um traço semântico [+ animado] (62,3 %). Os dados deste tipo de informantes contrastam com os produzidos por informantes com formação universitária e maior contacto com a variante-padrão (fig. 3). Neste conjunto, observa-se uma percentagem reduzida de ocorrências da variante com ter. [table id=85 /] A variante com ter com valor existencial estava presente na língua portuguesa nos sécs. XV e XVI, em concorrência com a variante em haver, primeiro com valor de posse, mas também com valor existencial, conforme exemplos dados em (9) e em (10): 9) valor de posse (dados do séc. XV) a. ter: “quanta herdade eu ey” (MATTOS e SILVA, 1997, 270); b. haver: “Ele non pode aver remedio” (MATTOS e SILVA, 1989, 591). 10) valor existencial (dados do séc. XVI retirados de VIOTTI (1988,46)) a. haver: “Hum dos nobres que hy ha ca este aiuda os dous” (AX 120.5); “Avya hi hua donzella muy fremosa” (CGE 93.12/13); “Ouve hy muitos mortos e feridos” (CGE 94.17); b. ter: “Antre esta coroa darea e esta ilha tem canal pera poder sahir” (MNS 314.2); “Para cima tendo dous bons canais hum aloeste e outro ao leste” (MNS 324.9); “Na sua ponta da banda da sua tem hua terra alta” MNS 326.19. De acordo com Evani Viotti (1988) e Rosa Virgínia Mattos e Silva (1989), a percentagem de uso da variante com ter (42 %) em construções de posse no séc. XV já se aproximava da variante com haver. No séc. XVI, o uso de ter de posse (86 %) suplanta o de haver, começando também a ser usado em construções impessoais com valor existencial. Nas variedades do PE continental, observa-se uma fixação nos usos destes dois verbos: o verbo ter em construções de posse e o verbo haver em construções existenciais impessoais, o que não ocorre de modo categórico na gramática de alguns falantes madeirenses. Nas variedades insulares do PE e nas variedades extraeuropeias do português, manteve-se o uso conservador da variante ter existencial, com maior ou menor frequência, segundo as situações discursivas e a influência exercida por fatores linguísticos e extralinguísticos anteriormente referidos. Construções pronominais Neste domínio da gramática do português, alguns dos fenómenos que mais têm sido estudados na variedade do PFM prendem-se com (i) as diferentes estratégias de marcação da função OD e as construções sintático-semânticas com o pronome a gente. Estratégia de marcação de OD de terceira pessoa: pronome ele, clítico lhe e OD nulo – O CSF permitiu observar o uso de variantes não-padrão (BAZENGA, 2011c), tais como a variante com o pronome ele, em (11), e a variante com o clítico lhe, em (12): 11) a. “ponho ele [ponho-o] a ver bonecos. (FNC11_MA1 243)”; b. “meto ele [meto-o] a andar de bicicleta. (FNC11_MA1 243)”; c. “e depois o marido deixou ela [deixou-a] e ficou na quinta. (FNC11_MC1.1 453)”. 12) a. “Tento-lhe explicar e lhe informar [informá-lo] sobre as coisas. (FNC11_HA1426)”; b. “Levo-lhe [levo-o] à escola. (FNC11_MA1 006)”; c. “eu não gostava dele nem lhe [nem o podia] ver à frente. (FNC11_MA1 204-5)”. Outras estratégias utilizadas são a variante em OD nulo, em (13), e a repetição lexical, em (14): 13) a. “faço o jantar sirvo [sirvo-o] à família. (FNC11_MA1:010)”; b. “a minha licenciatura termina-se antes do tempo pretendido_ tive que me enquadrar no bolonha e tive que [a] acabar mais cedo – (FNC-MA3.1:013)”. 14) a. “gostava de comprar uma mota_ e os meus pais detestam [detestam-nas] motas – (FNC-HA1:004)”; b. “queria a minha roupa vestia a minha roupa [vestia-a]. (FNC11_MA1:067)”. A seguir, apresentam-se os resultados de estudos quantitativos realizados com amostras retiradas do CSF – OD-Funchal-A(jovens), OD-Funchal-C(idosos) e OD-Funchal-1(pouco escolarizados) –, cada uma composta por seis informantes, que permitem observar as principais tendências no que se refere às estratégias de marcação de OD, por falantes inseridos numa comunidade urbana e insular do PE, o Funchal, capital da ilha da Madeira.   Fig. 4 – Gráfico OD-Funchal-A(jovens) (NÓBREGA e COELHO, 2014).     Fig. 5 – Gráfico OD-Funchal-C(idosos) (CAIRES e LUIS, 2014).       Fig. 6 – Gráfico OD-Funchal-1 (pouco escolarizados) (AVEIRO e SOUSA, 2014).     Os resultados mostram que o uso do clítico em função OD (-o, -a, -os, -as e as suas variantes contextuais, -no, -na, -nos, -nas e -lo, -la, -los, -las), e que corresponde à variante-padrão, é a estratégia, logo a seguir à variante com lhe (9 % (fig. 4), 2 % (fig. 5) e 4,2 % (fig. 6)), menos utilizada pelos falantes do Funchal, quer sejam jovens (cf. fig. 4, com 16 %), idosos (cf. fig. 5, com 18,2 %) ou com nível de escolaridade baixo (cf. fig. 6, com 2,8 %). As estratégias preferenciais traduzem-se pelo recurso à repetição lexical e à não-marcação desta função ou OD nulo. O uso da variante com ele apresenta valores mais expressivos quando se trata de falantes mais idosos (16,4 %) e pouco escolarizados (19,6 %); já a variante em -lhe regista a sua maior percentagem de uso na amostra dos seis informantes jovens (9 %). O fator “nível de escolaridade” (que categoriza os falantes em três níveis: com formação até ao ensino básico (nível 1), secundário (nível 2) e superior (nível 3)) parece ser aquele que maior incidência tem no uso da variante-padrão com clítico -o. A título de exemplo, podemos observar os resultados obtidos quando se tem em conta este fator na amostra de informantes mais idosos (fig. 7), no gráfico a seguir apresentado:   Fig. 7 – Gráfico OD-Funchal-C(idosos) e variável nível de escolaridade (CAIRES e LUIS, 2014).     Os falantes idosos mais escolarizados (com estudos do ensino superior) não recorrem, por exemplo, à variante com ele, muito utilizada por aqueles que têm poucos estudos (22 %); inversamente, utilizam a variante-padrão (25 %), em contraste com o uso pouco significativo (5,6 %) por parte de falantes menos escolarizados. Um estudo posterior, de Lorena Rodrigues (RODRIGUES, 2015) e da mesma autora juntamente com Aline Bazenga (RODRIGUES e BAZENGA, 2016), realizado junto de 412 estudantes da UMa, permite observar a forma como as variantes em ele e em -lhe, do PFM, sobretudo na variedade do Funchal, ou PE-Funchal, são avaliadas (fig. 8):   Fig. 8 – Gráfico com os resultados globais da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016).     A fig. 8 mostra que a variante não-padrão em ele é avaliada como de menor prestígio, sendo também maior o número de informantes que admite utilizar a variante em -lhe na oralidade. Relativamente à variante -lhe, dos 29 % que manifestam a sua discordância com a hipótese 1, a de se tratar de uma variante errada, e declaram não a usar nem na fala nem na escrita, são os jovens do sexo masculino aqueles que mais a aceitam (31 %), com 12 % dos inquiridos a afirmar a sua utilização na fala e na escrita e 8 % a considerar que se trata de uma variante correta (fig. 9).   Fig. 9 – Gráfico com os resultados da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016): fator social (género dos inquiridos).   A percentagem de aceitação desta variante aumenta quando estão reunidas duas propriedades linguísticas de N anafórico: nome [+humano] e do género masculino (vi-lhe [o Pedro] na missa). Assim, quando reunidas estas condições, 15 % dos inquiridos afirma utilizar esta variante na oralidade, em situações do discurso informais, e 11 % considera-a como sendo correta. Fig. 10 – Gráfico com os resultados da avaliação das variantes OD ele e -lhe por estudantes da UMa (RODRIGUES, 2015; RODRIGUES e BAZENGA, 2016): fatores linguísticos (traço semântico [humano] e género de N).     Estes resultados parecem configurar uma ainda ténue distribuição na perceção social das duas variantes: a variante ele é mais estigmatizada pela jovem elite insular e a variante -lhe parece estar a progredir em termos de aceitabilidade. A variante a gente, forma estigmatizada e alternante com nós, é também muito usada na oralidade. Ambas as variantes podem denotar uma entidade plural, mas requerem, do ponto de vista normativo, formas verbais na 3PS (terceira pessoa do singular, no caso de a gente) e 1PP (primeira pessoa do plural, no caso de nós). No entanto, os falantes utilizam muitas vezes na oralidade uma estratégia regularizadora, transferindo os traços de nós para a variante a gente, de que resulta, por exemplo, a gente vamos. O trabalho de Juliana Vianna (VIANNA, 2011), intitulado Semelhanças e Diferenças na Implementação de a Gente em Variedades do Português, com recurso aos dados coletados em 2010 para o Projeto Concordância (UFRJ – CLUL), que integram o CSF atual, permite observar que, dentro das variedades do PE, o uso de a gente adquire maior expressão na variedade falada no Funchal (fig. 11). [table id=86 /] Este facto ganha ainda maior visibilidade quando considerados alguns fatores sociais, nomeadamente o fator nível de escolaridade (fig. 12) e género (fig. 13) dos informantes.     Fig. 12 – Tabela com os resultados dos usos das variantes a gente e nós em variedades do PE, atendendo ao fator nível de escolaridade dos informantes (VIANNA, 2011). Os resultados mostram que a variante a gente é utilizada pelos setores mais marginalizados da sociedade insular, ou seja, maioritariamente por informantes com um nível de escolaridade baixo (52 %) e do sexo feminino (51 %), gozando, por este motivo, de pouco prestígio social. Outra construção sintática não-padrão e na qual se encontra a forma pronominal a gente, estudada por Ana Maria Martins (MARTINS, 2009), encontra-se em (15), a seguir, com dados de um falante de Câmara de Lobos: 15) a. “Não sabem o que a gente se passámos aí. (CORDIAL-SIN. CLC)”; b. “Este pode ser a coisa que a gente se diz peixe-cavalo. (CORDIAL-SIN. CLC)”.   Este tipo de construções, designadas por “duplo sujeito”, observada nos dados do CORDIAL-SIN, cujos informantes obedecem a um perfil social específico (geralmente idosos, analfabetos e que nunca saíram da região onde nasceram, sendo por este motivo considerados mais autênticos), está muito presente na ilha da Madeira, embora não seja específica da variedade insular, como referido pela autora em nota de rodapé: “The double subject SE construction is found in the archipelagos of Azores and Madeira as well as in continental Portuguese. It is much more common in the Centre and South of Portugal than in the North (where nonetheless it is also attested). It is fully ungrammatical in standard EP and has gone totally unobserved by philologists and linguists who dealt with dialect variation in European Portuguese” [A construção de duplo sujeito SE pode ser observada nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, bem como no português continental. Esta é muito mais frequente no Centro e no Sul de Portugal do que no Norte. É totalmente agramatical no PE-padrão, tendo passado despercebida a filólogos e linguistas que trabalham a variação dialetal no Português Europeu] (Ibid.). O CSF fornece mais exemplos deste tipo de construção, o que atesta a sua vitalidade, que não se limita ao seu uso por parte de falantes de comunidade rurais ou piscatórias, mas também de uma comunidade urbana, como a do Funchal: 16) a. “eu ainda falo um pouco lá como a gente fala-se lá na Calheta. (FNC11_HA1152-3)”; b. “a gente pede-se o bilhete de identidade tira-se o nome tira-se tudo gravas e depois vão dormir. (FNC11_MC1.1 099)”; c. “e cada vez a gente ouve-se  mais falar sobre isso. (FNC-MA3.1 271)”. Variantes de terceira pessoa do plural no verbo em contexto de concordância verbal O estudo da aplicação variável da regra de concordância verbal de 3PP (ou PN6) é o fenómeno morfofonológico e sintático mais estudado na variedade do PE-Funchal, sendo possível observar algumas tendências, em termos quantitativos e qualitativos, no que se refere aos padrões de variantes em coexistência nesta variedade urbana e insular do PE. Em termos de resultados globais de realização da concordância verbal com PN6, incluindo produções padrão e não-padrão da marca de Pessoa e Número (PN) no verbo neste contexto, Aline Bazenga (BAZENGA, 2012b) registou, a partir de uma amostra de dados retirados do Corpus Concordância, 84 % de concordância, percentagem que se relaciona fundamentalmente com o facto de ter incluído ocorrências do tipo tem/têm e construções com o verbo ser antecedido de SN topicalizado. Num estudo posterior, Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA, 2013), recorrendo também a uma amostra do mesmo corpus, mas adotando critérios uniformizados, registaram um índice de concordância de 94,7 %, valor que se situa numa posição intermédia, quando comparado com os resultados obtidos nas outras amostras, tanto europeias, como brasileiras e africanas: 99,1 % (Oeiras) e 99,2 % (Cacém), as duas amostras do PE continental; 89,1 % (Copacabana) e 78,2 % (Nova Iguaçu), do PB; e 92,1 % na amostra de São Tomé. Estes índices gerais permitem observar o contraste entre variedades do português, quanto ao tipo de regra (LABOV, 2003): as variedades do PE continental caracterizam-se por apresentarem uma regra semicategórica de concordância de terceira pessoa do plural, enquanto as variedades não europeias exibem uma regra variável. A variedade do PE-Funchal apresenta um comportamento que se situa no limite entre uma regra semicategórica e variável. Fica patente também neste trabalho, tal como em outros estudos variacionistas da concordância verbal de PN6 (MONGUILHOTT, 2009; RUBIO, 2012; MONTE, 2012), que o conjunto de fatores em atuação nas variedades do PE parece obedecer a condicionamentos morfofonológicos (sândi externo, um fenómeno de fonética sintática que ocorre no encontro de duas palavras, envolvendo uma vogal ou consoante final de uma palavra e uma vogal ou consoante inicial da palavra que está imediatamente a seguir, como em “bebe bem”, com a seguinte alteração ['bɛbɨ 'bɐ̃j̃]  ['bɛ 'bɐ̃j̃], ou em “gosta da amiga”, ['gɔʃtɐ dɐ ɐ’migɐ]  ['gɔʃtɐ da'migɐ]) e sintático-semânticos do tipo genérico ou de natureza “universal” (sobretudo posição e tipo de sujeito), restrições que afetam as línguas, independentemente da sua tipologia, como referido no trabalho de Greville Corbett (CORBETT, 2000). No entanto, tanto no trabalho de Aline Bazenga (BAZENGA, 2012b) como no já referido de Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (RODRIGUES e BAZENGA, 2013), a variedade do PE-Funchal distingue-se das variedades urbanas do PE por apresentar um conjunto de padrões de variantes flexionais de terceira pessoa do plural mais rico, comparável com os dados de subvariedades rurais ou semiurbanas (MOTA et al., 2003; MOTA e VIEIRA, 2008; MOTA, 2013) ou da variedade de Braga, estudada por Celeste Rodrigues (RODRIGUES,2012). Com efeito, na variedade do Funchal, para além das variantes flexionais-padrão (falam), foi possível constatar o uso de variantes não-padrão, marcadas pela realização de (i) um ditongo nasal não conforme com a morfologia verbal-padrão (falem, ou variante -EM) e (ii) da vogal oral (comero) ou nasal (comerõ) (variantes -U), para além da variante em vogal oral, resultante da não realização do traço de nasalidade, isomorfa de PN3, observada, ainda que de forma pouco produtiva, nas variedades do PE continental e normalmente analisada como não contendo a marca de número exigida pelo contexto de concordância verbal de PN6 (fala). Variantes flexionais não-padrão em contexto de concordância verbal de PN6 – A comparação das variantes flexionais não-padrão de PN6 (-EM e -U) atestadas no CSF (VIEIRA e BAZENGA, 2013) com as ocorrências observadas em amostras das subvariedades rurais/semirrurais do PE continental (dialetos setentrionais e dialetos centro-meridionais), retiradas de corpora (PE1, BB e AA) referidos no trabalho de Celeste Rodrigues e Maria Antónia Mota (RODRIGUES e MOTA, 2008), revela alguma especificidade da variedade urbana insular, caracterizada por uma maior diversidade, no que se refere tanto ao número de variantes como ao dos paradigmas verbais. Nesta variedade, o pretérito imperfeito do indicativo é objeto de maior variação, não só em termos quantitativos, mas também qualitativos. As gramáticas de falantes madeirenses do Funchal incluem neste tempo verbal, para além da variante-padrão e a variante isomórfica de PN3, as variantes -EM e -U. Na fig. 14, onde consta o conjunto de variantes atestadas no Funchal no trabalho de Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA, 2013), é possível observar que, depois da variante de PN6-padrão, inequivocamente com a realização canónica da concordância verbal (85,7 %), a variante mais expressiva, em termos quantitativos, é a que corresponde à forma verbal com uma terminação em ditongo nasal “deslocada” do seu paradigma e estendida a outros, representada por -EM (8,2 %), logo seguida da variante em vogal oral, isomórfica de PN3, analisada no referido trabalho como de não aplicação da concordância verbal de PN6.   Variantes não-padrão em vogal oral = isomórfica de PN3 Variante não-padrão em –EM Variante não-padrão em –U Variantes-padrão N.º de oc. % N.º de oc. % N.º de oc. % N.º de oc. % 48 /914 5,3 % 75/914 8,2 % 8/914 0,9 % 783/914 85,7 %   Fig. 14 – Tabela com as variantes flexionais em contexto de concordância verbal PN6 (VIEIRA e BAZENGA, 2013). As duas variantes (-EM e -U) representam cerca de 9 % dos dados, ou seja, 83 em 866 ocorrências totais de marcação explícita da concordância verbal, nos dados analisados por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (VIEIRA e BAZENGA 2013), e quase o dobro das realizações sem a marca de número de PN6 (5,3 %). A realização em [ɐ̃j̃], presente no paradigma do presente do indicativo dos verbos com vogal temática (VT) /e/ e /i/, estende-se aos verbos com VT /a/, estabelecendo uma convergência na marcação PN6 Este processo de nivelamento na marcação de PN6 é também observado nos paradigmas do pretérito imperfeito do indicativo e do pretérito perfeito do indicativo (fig. 15), ilustrados pelos exemplos atestados em (17)-(19).   Variante PN6 não-padrão Presente Ind. Pretérito Imperfeito Ind. Pretérito Perfeito Ind. Totais VT /a/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ -EM [ɐ̃j̃] 19 oc. 24 oc. 16 oc. 9 oc 4 oc. - 3 oc. 75 oc. Totais 19 49 7   Fig. 15 – Tabela com a variante flexional -EM não-padrão na variedade do Funchal (VIEIRA e BAZENGA, 2013). 17) Presente do indicativo a. “aqueles carres [carros] que andem [andam] de noite. (C1h)”; b. “os próprios portugueses massacrem [massacram] os outros.” (C2m). 18) Pretérito imperfeito do indicativo a. “tanto é qu’as minhas primas elas diziem [diziam]. (B1M)”; c. “eles me chamavem [chamavam] madeirense de segunda. (C2m)”. 19) Pretérito perfeito do indicativo a. “as casas caírem [caíram]. (C1m)”; b. “depois eles mandarem-me [mandaram-me] reformar. (C1h)”. Os paradigmas verbais do PE dispõem de duas formas para marcação de PN6, ambas ditongos nasais, [ɐ̃w̃] e [ɐ̃j̃], mas com distribuições distintas. No português-padrão, a variante [ɐ̃j̃] integra os paradigmas do presente do indicativo dos verbos com VT /e/ e /i/, os do presente do conjuntivo dos verbos com VT /a/ e os do futuro do conjuntivo e do infinitivo pessoal, no conjunto das três conjugações (verbos com VT /a/, /e/ e /i/). Observam-se ainda alterações nas realizações fonéticas dos radicais dos verbos pôr (no pretérito perfeito) e ter (no pretérito imperfeito), transcritas como em (20): 20) a. “ponhem [punham] em terra gastava no calhau. (C1h)”; b. “todos eles tenham [tinham] dom. (B2h)”. Estas alterações poderão estar condicionadas por uma combinatória de restrições, relacionadas com as alterações que sofrem as realizações fonéticas das vogais tónicas /u/ e /i/ na variedade madeirense, por um lado, e pela estratégia de regularização de radicais (p[o]nhem/p[o]r; t[e]nham/t[e]r), por outro. As variantes com ditongo de PN6 da não-padrão realizam-se maioritariamente em contextos sintáticos em que o sujeito expresso está anteposto ao verbo (53,3 % e 40/75 ocorrências). Também ocorrem em 45,3 % (34/75) em contexto de sujeito não expresso, sendo de registar apenas uma ocorrência com sujeito posposto. A realização desta variante não parece ser condicionada por esta variável sintática. O mesmo não acontece em amostras de localidades situadas na zona dos dialetos centro-meridionais do interior do PE analisados por Maria Antónia Mota, Matilde Miguel e Amália Mendes, nas quais “a realização de vogal nasal está relacionada com a presença de sujeito nulo, o que indica a necessidade de se aprofundar o estudo das relações entre o marcador de PN6 e o tipo de sujeito (no caso, uma ‘redução’ fonética, do tipo ditongo nasal > vogal nasal ou uma não ditongação da estrutura /vogal n/): 54 % das ocorrências estão em frases com sujeito nulo; 24 %, com sujeito nominal; 20 %, com sujeito pronominal” (MOTA et al., 2012, 172). Quando considerados os contextos fonéticos adjacentes (forma verbal seguida de palavra iniciada por vogal, consoante (C) nasal, consoante não nasal e de pausa), observa-se a seguinte distribuição das ocorrências (fig. 16):   Variante de PN6 não-padrão + vogal + C nasal + C não nasal Pausa # -EM [ɐ̃j̃] 30 oc. 8 oc. 25 oc. 12 oc.   Fig. 16 – Tabela com a variante flexional -EM não-padrão e contextos fonéticos adjacentes (BAZENGA, 2015b). Esta variante não parece ser sensível ao contexto fonético à sua direita. Na variedade geográfica do Funchal, o ditongo [ɐ̃j̃], forma “peregrina” ou de “empréstimo” aos verbos com VT /e/ e /i/ cuja realização se estende aos verbos com VT /a/, insere-se num padrão marcado pela uniformização do marcador de PN6 no verbo, nos paradigmas verbais do presente, pretérito imperfeito e pretérito perfeito do indicativo. As variantes com final verbal em -U atestadas, no total oito, incidem apenas sobre o pretérito imperfeito (fig. 17), todas de um informante da faixa etária (36-55 anos), do sexo feminino e com escolaridade básica: 21) a. “quando os meus pais moravo na casa”; b. “eles vinho brincare”; c. “alevantavo-se durante a noite cede”.     Variante PN6 não-padrão Presente Ind. Pretérito Imperfeito Ind. Pretérito Perfeito Ind. Totais VT /a/ VT /e/ VT /i/ VT /a/ VT /e/ VT /i/ -U [u] ou [ũ] - 5oc. 1 oc. 2 oc. - - - 8 oc.   Fig. 17 – Tabela com a variante flexional -U não-padrão e paradigmas verbais no CSF (BAZENGA, 2015b). Tal como a variante -EM, a variante em -U realiza-se maioritariamente em contexto de sujeito expresso (5/8 dos dados), situação que não parece corresponder ao observado por Maria Antónia Mota, Matilde Miguel e Amália Mendes em dados de variedades centro-meridionais, nos quais existem “indícios de que a realização de vogal nasal está relacionada com a presença de sujeito nulo, o que indica a necessidade de se aprofundar o estudo das relações entre o marcador de PN6 e o tipo de sujeito” (Ibid.). De acordo com as autoras, as realizações fonéticas em vogal nasal de PN6 corresponderiam a uma fase do processo morfofonológico anterior à realização canónica de ditongo nasal da forma fonológica /vogal N/. A variante em -U está também presente no conjunto de variantes observadas em fala espontânea informal na variedade urbana de Braga, que integra os dialetos setentrionais do PE, como mostra o estudo de Celeste Rodrigues (2012), com dados retirados do CPE-Var, um corpus que inclui 180 entrevistas sociolinguísticas de falantes de Lisboa e Braga, coletadas entre 1996 e 1998 (fig. 18). Variantes de PN6 [ɐ̃w̃] [ɐ̃w̃] 53 % [õ] 35,7 % [u] 8,1 % [ũ] 1,4 % Sem produção da terminação verbal = 1,6 % Variantes de PN6 [ɐ̃j̃] [ɐ̃j̃] 41,4 % [ẽ] 41,4 % [ẽj̃] 4,4 % Sem produção da terminação verbal = cerca de 12 % Fig. 18 – Tabela com as variantes flexionais de PN6 atestadas na variedade de Braga – PE (Corpus CPE-Var, utilizado em RODRIGUES, 2003; 2012, 221-222). Atendendo ao conhecimento histórico das mudanças ocorridas no português, a variante em -U (oral ou nasal) da forma padrão PN6 poderá ser considerada “histórica” ou “conservadora”, podendo ser associada às vogais nasais existentes no período arcaico da história do PE (-ã, -õ e -ão) (fig. 19), antes da convergência em ditongo nasal [ɐ̃w̃], que já no séc. XVI integrava a variedade-padrão do PE (português literário e língua culta do centro do país).   Nomes Flexão verbal -ã -áne -ánt -ant Indicativo presente dos verbos dar e estar e futuro de todos os verbos; Indicativo presente dos verbos da 1.ª conjugação, imperfeito, futuro do pretérito e pretérito mais-que-perfeito de todos os verbos e conjuntivo presente dos verbos da 2.ª e 3.ª conjugações. -õ -one - udine -unt -úm -unt Indicativo presente do verbo ser; 1.ª pessoa do singular do indicativo presente do verbo ser; Pretérito perfeito de todos os verbos. -ão -anu - anu   Fig. 19 – Tabela com as vogais nasais do português arcaico (CARDEIRA, 2005, 113). Clarinda de Azevedo Maia, fundamentando-se nas observações de Duarte Nunes de Leão, um gramático do séc. XVI, refere que “a pronúncia -õ era tida pelos gramáticos da época como característica da região interamnense” (MAIA, 1986, 604), o que leva Rosa Mattos e Silva a supor que durante o processo de convergência teriam convivido “como variantes no diassistema do português o ditongo [ɐ̃w̃], proveniente do etimológico [-anu], e do [ɐ̃], do etimológico [-ane] e [-ant]; e o ditongo [õw̃] de [õ], do etimológico [-one] e [-unt]”, com a norma que se estabelece no séc. XVI a selecionar o ditongo [ɐ̃w̃] como forma de prestígio em detrimento do ditongo [õw̃], avaliado negativamente e ainda hoje marcado como “popular, arcaizante e regional” (MATTOS e SILVA, 1995, 76). De salientar ainda o facto de as variantes em -U (vogal nasal [ũ] e vogal oral [u]) atestadas na amostra do Funchal analisada por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga (2013) corresponderem à realização de PN6 apenas do pretérito imperfeito do indicativo, o que não está em conformidade com a vogal etimológica -o < -UNT) do pretérito perfeito de todos os verbos (fig. 19). Assim, apesar de poderem ser consideradas variantes não-padrão arcaizantes, as formas em -U da variedade urbana insular contêm traços inovadores. As variantes flexionais de PN6 não-padrão realizadas por uma vogal oral isomórfica de PN3 correspondem a 5,3 % dos dados atestados na variedade do Funchal (VIEIRA e BAZENGA, 2013), ou seja, a 49/914 ocorrências. Neste tipo de variantes, poderá estar em causa apenas a associação ou não do autossegmento flutuante /N/, tal como a representação formulada para o PE-padrão de Maria Helena Mira Mateus e Ernesto d’Andrade. Segundo esta proposta, as variantes sem ditongo podem resultar da propriedade de leveza que caracteriza os ditongos nasais finais não acentuados, de PN6 em formas verbais do PE-padrão. Estes ditongos, mas também aqueles que ocorrem em formas nominais simples (homem) ou com sufixo -agem (paragem, lavagem), são considerados pós-lexicais pelo facto de se encontrarem em palavras marcadas pela ausência de constituinte temático, por oposição aos ditongos nasais lexicais, gerados no léxico e que atraem o acento para o final de sílaba (pão) e admitem, como único segmento em coda, a fricativa /S/ (pães). Nos ditongos pós-lexicais, a semivogal é epentética, atendendo à sua inexistência a nível lexical, e surge após o processo de ditongação, ocupando os dois segmentos uma única posição no núcleo. O autossegmento flutuante /N/ projeta-se sobre o núcleo silábico, nasalizando os dois segmentos em simultâneo. O facto de este autossegmento nasal apenas se projetar no núcleo impede que qualquer segmento em posição de coda possa ser nasalizado (MATEUS e ANDRADE, 2000, 133). Considerando o efeito do contexto fonético à direita, observa-se que o contexto que mais favorece a realização da variante flexional em vogal oral é aquele em que a palavra seguinte se inicia por vogal (fig. 20).   + vogal + C nasal + C não nasal Pausa # 29/48 oc. 60,4 % 8/48 oc. 16,6 % 8/48 oc. 16,6 % 3/48 oc. 6,25 %   Fig. 20 – Tabela com as variantes PN6 não-padrão em vogal oral (isomórficas de PN3) e contextos fonéticos à direita da forma verbal (BAZENGA, 2015b). Atendendo a que “o contexto precedendo pausa […] é o que mais favorece a ativação do padrão com ditongo nasal” (MOTA et al., 2012, 171) e que, no âmbito da fonética sintática (sândi externo), podem ocorrer alterações fonéticas, nomeadamente quando a palavra seguinte se inicia por vogal ou consoante nasal, podemos considerar que, do ponto de vista da realização da forma verbal requerida em contexto sintático de concordância verbal em contexto sintático de PN6, apenas 11 das 49 ocorrências com vogal oral final nas formas verbais correspondem à não aplicação da regra de concordância, desprovidas da ambiguidade (oito ocorrências em 49, seguidas de consoante não nasal e três ocorrências seguida de pausa). Esta questão será abordada posteriormente, quando considerada a hipótese de concordância implícita, já referida na análise das variantes em -EM e -U, mas na sua versão mais recente e desenvolvida no artigo de Maria Antónia Mota de 2013. As variantes em vogal oral não-padrão de PN6 (isomórficas de PN3) correspondem maioritariamente a verbos com VT /a/ e /e/, representadas por -A e -E, respetivamente, cuja distribuição pelos paradigmas verbais consta da fig. 21, em contexto de palavra seguinte iniciada por vogal (21 das 29 ocorrências), registando-se ainda um exemplo com o verbo ir (quando vai aqueles pa agarrar o coisa – C1m):   Variante em vogal oral Presente do Indicativo Pretérito Imperfeito do Indicativo Pretérito Imperfeito do Conjuntivo vogal -A 2/21 11/21 - vogal -E 5/21 - 2/21   Fig. 21 – Tabela com a realização de variantes não-padrão em vogal oral (isomórficas de PN3) e paradigmas verbais (BAZENGA, 2015b). Nestes paradigmas, a distinção entre PN3 e PN6 na morfologia verbal-padrão resulta apenas da ancoragem ou não do autossegmento nasal /N/. Por outro lado, o contexto [+vogal] corresponde, na sua maioria (15 das 21 ocorrências de variantes -A e -E, realizadas foneticamente pelas vogais átonas [-ɐ] e [-ɨ]), às realizações fonéticas [a] e [ɐ]. Este encontro intervocálico na fronteira de palavra (sândi externo) resulta na elisão das finais verbais átonas e na ressilabificação das duas sílabas em contacto, como exemplificado a seguir: 22) a. “as mercearias na altura fechava às onze. (B1m)”; [fɨʃavɐ + aʃ] [fɨʃavaʃ] b. “os outros tinha as costas quentes. (C2m)”; [tiɲɐ + ɐʃ] [tiɲɐʃ] c. “das consequências que daí pode advir. (C2h)”. [podɨ + ɐdvir] [podɐdvir] Observa-se ainda que muitas das ocorrências com vogal oral -E correspondem ao item verbal inacusativo existir. Atendendo unicamente ao contexto de sujeitos pospostos, regista-se um total de 20 ocorrências de existir em 34, ou seja, 58, 8% (11 dados com ditongo-padrão de PN6 e nove dados não-padrão com vogal oral -E), no presente do indicativo (19 dados), registando-se apenas uma ocorrência no imperfeito do indicativo (“voltou a se provar que existia ainda substâncias” – B2h) (BAZENGA, 2015). Para além do verbo existir, observa-se a ocorrência de alguns itens verbais, tais como ter (dois dados) e vir no imperfeito do indicativo, cujos radicais contêm a consoante nasal palatal (-nh-) e que em princípio deveriam induzir a realização do segmento nasal do PN6-padrão, como afirma Jorge Morais Barbosa, a propósito da nasalização de vogais em contacto com consoantes nasais: “il semble que celle-ci [a nasalização] soim de règle lorsque la consonne nasale précède la voyelle, et que par contre dane le type voyelle + consonne la voyelle se maintienne souvent pratiquement orale” [parece que este fenómeno [a nasalização] segue a regra quando a consoante nasal precede a vogal e que, pelo contrário, no tipo vogal +consoante, a vogal mantém-se muitas vezes praticamente oral] (BARBOSA, 1965, 82). Um outro verbo parece ser bastante vulnerável. Trata-se do verbo ser, com seis dados no total, todos seguidos de uma palavra iniciada por consoante não nasal. 23) a. “enquanto elas fosse pequenas. (B1m)”; b. “as brincadeira era poucas. (C1m)”; c. “os professores chamados oficiais que era do_dos públicos. (C3m)”; d. “mas os dias foi [foram] passando. (A1m)”. Para além destes dados, é de registar o dado com o verbo ser, em (23d.), por ser semelhante a um dos tipos referidos (eles vai; eles cantou) por Sílvia Rodrigues Vieira e Aline Bazenga, como não sendo observado em variedades do PE, contrariamente ao que ocorre em algumas variedades do PB e em variedades africanas do português. Outros dados no pretérito perfeito do indicativo, sem o ditongo nasal final [ɐ̃w̃] de PN6, também são atestados, mas em contexto de sujeito posposto (“quando vai aqueles pa agarrar o coisa” (C1m); “caiu casas ali” (C1h); “aconteceu situações de tar [estar] em casa” (A1m)) (VIEIRA e BAZENGA, 2013, 23). Atitudes linguísticas de falantes madeirenses face à diversidade sintática da variedade insular do português: o continuum dialetal percetivo No âmbito da realização da dissertação de mestrado de Catarina Andrade, intitulada Crenças, Perceções e Atitudes Linguísticas de Falantes Madeirenses (2014), foi possível proceder à avaliação percetiva de construções sintáticas não-padrão em uso em variedades do português falado na Madeira, por parte de falantes madeirenses. Esta avaliação realizou-se através da aplicação de um questionário a uma amostra de 126 informantes, 18 por cada um dos sete pontos de inquérito na ilha da Madeira (Funchal, Santa Cruz, Machico, Câmara de Lobos, Santana e São Vicente e Calheta). Neste trabalho, a autora propõe um continuum dialetal através do qual apresenta as variantes sintáticas não-padrão alinhadas desde o polo à esquerda, onde se encontram as mais estigmatizadas, até às que gozam de maior prestígio, à direita, a partir de dados percetivos de informantes madeirenses (fig. 23).   Código Variante não-padrão Descrição Q.C.1.A “Comprei na feira.” Ausência de OD Q.C.6.A. “Porque estava chovendo.” Preferência para a forma do verbo estar + gerúndio Q.C.4.B. “Sim, eu sei, eu vi ele ontem.” Realização de OD com o pronome ele Q.C.5.A. “Tem muito trânsito nas ruas.” Preferência para o ter existencial Q.C.2.A. “Porque só no verão é que vai-se à praia.” Preferência para o uso do clítico se em posição incorreta Q.C.4.C. “Sim, eu sei, eu o vi ontem.” Realização de OD com o clítico o em posição incorreta Q.C.2.B. “Porque só no verão é que a gente vai-se à praia.” Realização da forma a gente com o se impessoal Q.C.3.A. “Não deve-se usar o telemóvel.” Realização do clítico se em posição incorreta Q.C.4.A. “Sim, eu sei, eu vi-lhe ontem.” Realização de OD com o clítico lhe Q.C.1.B. “Comprei-lhe na feira.” Realização de OD com o clítico lhe Fig. 22 – Quadro com as variantes sintáticas não-padrão consideradas para a construção de um continuum percetivo de falantes madeirenses (ANDRADE, 2014). A fig. 22 reúne o conjunto de variantes não-padrão consideradas para análise, cada uma associada a um determinado domínio gramatical do português. A forma de OD nulo parece ser privilegiada pelos madeirenses, especialmente na oralidade. Na sua dissertação, Catarina Andrade verificou, na sua abordagem geral no que se refere ao OD nulo, que, “dos 126 inquiridos, 59 % tem preferência para a omissão de OD e apenas 8 % para a sua realização com o clítico lhe” (ANDRADE, 2014, 151). A fig. 23 contém os resultados da avaliação realizada, com as variantes mais aceites à esquerda e as menos aceites e mais estigmatizadas à direita:   Fig. 23 – Gráfico com o continuum percetivo de variantes sintáticas não-padrão (ANDRADE, 2014).     Em traços gerais, as opções Q.C.1.A. (ausência de realização de OD), com 59 %, Q.C.6.A. (estar + gerúndio), com 58 %, e Q.C.4.B. (pronome ele OD), com 48 %, foram as variantes avaliadas de forma positiva pelos falantes madeirenses, em termos de aceitabilidade. Por seu turno, as opções/variantes Q.C.4.A. (12 %) e Q.C.1.B. (8 %), ambas relacionadas com a realização de OD através do clítico lhe, parecem ser fortemente estigmatizadas pelos inquiridos. Apesar de os falantes madeirenses terem acesso à norma-padrão através da escola, as variedades faladas na Ilha distanciam-se, em vários pontos do sistema linguístico, da variedade normativa, e os madeirenses têm consciência destas diferenças.   Considerações finais Tal como em outras variedades geográficas do português, a variação sintática está presente nas variedades faladas na Madeira, contribuindo para a caracterização sociolinguística e cultural da comunidade insular no seu todo. É notória também a presença de algumas variantes conservadoras, já não atestadas no PE continental, mas presentes também em variedades extraeuropeias do português (brasileira mas também africanas). As variantes inovadoras resultam, em muitos casos, de fenómenos de simplificação de subsistemas de marcação morfológica de categorias verbais e nominais, sendo os falantes menos escolarizados os que mais produzem este tipo de variantes. A presença destas características linguísticas no espaço insular deve-se provavelmente a uma história de contacto linguístico, social e cultural individualizante, quando comparada com outros territórios onde se fala o português. Parece clara também, tal como ocorre no PB, amplamente estudado por linguistas variacionistas, a influência de fatores sociais na variação sintática observada. Deste ponto de vista, as variantes, produzidas por falantes iletrados ou pouco escolarizados, mais velhos e do sexo feminino na comunidade de fala urbana do Funchal, podem ser consideradas como indicadores de localidade e de classe, ou seja, combinam o traço típico de “madeirensidade”, por se tratar de variantes não atestadas em variedades do PE continental até agora estudadas, e de “popularidade”, ou de grupo social, cuja variedade falada é marcada por usos de formas linguísticas não prestigiadas, excluídas da variedade-padrão do PE e objeto de estigma social. Embora as formas não marcadas manifestem uma tendência para sobreviverem à custa das formas marcadas por uma maior saliência percetual, esta tendência pode estar em risco, sob a influência de estereótipos sociais e regionais. Assim, as variantes flexionais não-padrão mais marcadas, de tipo -EM, por exemplo, tendem a ser produtivas, em detrimento de nivelamento linguístico, desejado pela elite madeirense desde o início do séc. XX. Funcionam como “indício” (no sentido que é dado pela semiótica de Peirce) de um sentimento de pertença a um território social. Numa comunidade de fala com as características marcadas pela insularidade, a mudança linguística poderia, assim, ser mais lenta, observando-se uma tendência para preservar as formas fortes e identitárias. A Dialetologia Percetual e os três estudos atitudinais e percetivos sobre a diversidade dialetal do PE (CABELEIRA, 2006, HADDAR, 2008 e FERREIRA, 2009), baseados em amostras com falantes que vivem em regiões de Portugal, fornecem outros argumentos para a individualização dos dialetos insulares, de um modo geral, e dos da Madeira, em particular. Nestes trabalhos, e no que se refere ao atributo “inteligibilidade”, as variedades do português falado nas ilhas portuguesas são avaliadas como menos inteligíveis, quando comparados com outras variedades do PE continental. Para tal contribuem não só alguns traços fonéticos e prosódicos, o léxico, mas também fenómenos morfossintáticos que efetivamente fazem parte da realidade linguística insular. O estudo similar, mas realizado junto de uma amostra de 126 informantes madeirenses, de Aline Bazenga, Catarina Andrade e António Almeida (2014) revela uma tendência para avaliar positivamente, em termos de prestígio, a variedade do português falado na Madeira, imediatamente a seguir à variedade-padrão (de Lisboa). A variedade dos Açores, contrariando a descrição linguística que a considera próxima da madeirense, é avaliada, pelos informantes madeirenses, como a menos compreensível e a mais distante da sua própria maneira de falar. Parece desenhar-se, assim, nos madeirenses uma representação de dupla filiação linguística: portuguesa, em primeiro lugar, seguida da “madeirensidade” (RODRIGUES, 2010), simbolizada por uma variedade falada distinta, também ela considerada de prestígio, um centro (regional/insular) dentro do centro do todo nacional – Lisboa, a capital –, a variedade de prestígio legitimado. A atitude positiva manifestada pelos madeirenses em relação à sua variedade falada poderia ser entendida a partir do conceito de “prestígio encoberto” (couvert), introduzido por Labov e também desenvolvido por Trudgill (1972), que procura explicar o uso de formas linguísticas não-padrão por parte de alguns grupos de uma comunidade de fala (os homens mais do que as mulheres, em particular). Estes usos constituem um padrão de prestígio implícito dentro da comunidade, com um valor simbólico de solidariedade para o grupo, em contraste com os valores de autoridade (clareza, elegância, pureza, competência) que caracterizam o prestígio legítim     Aline Bazenga Catarina Andrade (atualizado a 03.02.2017)  

Linguística Literatura

tavares, edmundo

O estudo da arquitetura do século XX na Madeira passa por uma análise à obra de Edmundo Tavares, dada a relevância do contributo deste professor e arquiteto na introdução e desenvolvimento da arquitetura moderna no Funchal. O seu percurso no arquipélago revela hesitações estilísticas que refletem os avanços e recuos da arquitetura moderna em Portugal pois, tendo assinado alguns exemplares dentro do gosto português suave, aplicou uma linguagem mais historicista no edifício da agência do Banco de Portugal, implantado na Avenida Zarco, para logo arriscar uma linguagem mais modernista no Mercado dos Lavradores, talvez a sua obra mais marcante, e no Liceu Jaime Moniz. Nascido na freguesia e concelho de Oeiras, a 8 de novembro de 1892, estudou arquitetura civil na Escola de Belas Artes de Lisboa. Ali, foi discípulo do mestre José Luís Monteiro (1848-1942) entre 1903 e 1913. A partir de 1914, passou a arquiteto da câmara de Lisboa, sendo nomeado, em 1932, professor efetivo da Escola Industrial e Comercial de António Augusto Aguiar, no Funchal. A sua nomeação para um estabelecimento de ensino técnico-profissional no Funchal, onde fixou residência até 1939, relaciona-se com a criação nesse ano, por parte do ministro das obras públicas, Duarte Pacheco, de delegações nas diversas regiões do país para cuidarem da introdução do novo figurino oficial do já Estado Novo. Por outro lado, eram necessários docentes qualificados na área dos cursos artísticos e técnicos lecionados naquele estabelecimento de ensino insular, que melhor preparassem os futuros desenhadores e mestres-de-obra com uma maior atenção aos novos modos de olhar a arquitetura. A obra de Edmundo Tavares desenvolveu-se numa linha de renovação da linguagem arquitetónica. No âmbito da arquitetura doméstica de cunho regionalista, Edmundo Tavares, seguidor de Raul Lino (1879-1974), desenvolveu vários estudos de habitação com feição tradicional modernizada, designação que o mestre aplicava aos seus projetos. Do conjunto de moradias que projetou pode aferir-se que riscou para uma classe mais abastada da sociedade madeirense, cujas habitações se implantaram nas freguesias da periferia da cidade, confirmando a expansão do perímetro urbano funchalense ocorrida nos anos 30 do século XX. A sua primeira obra no Funchal, enquanto residente, remonta a 1932. Trata-se de uma habitação unifamiliar entretanto demolida e então projetada para José de Freitas, que se iria localizar entre a Travessa do Lazareto e a Estrada ao Sítio dos Louros, em zona de cota mais elevada. Este exemplar de linha eclética, ligado à casa à antiga portuguesa, associa-se esteticamente à formação académica do arquiteto. No mesmo gosto estético o arquiteto desenhou, em 1934, a Vila Santos, uma moradia localizada no Caminho de Santo António, área de expansão de novos casarios para a elite madeirense. No âmbito das habitações mais centrais e para outra classe social, destaca-se a Vivenda Fátima, na Avenida Infante, uma das novas artérias de expansão da cidade para Oeste, desenhada, em 1915, no Plano de Miguel Ventura Terra. Para esta habitação, tipo palacete burguês, cujo estudo data de 1934, o arquiteto privilegiou a utilização de elementos do vocabulário arquitetónico madeirense. Os terraços com varandas de balaustrada, os pitorescos alpendres floridos, as múltiplas floreiras e ainda o corpo torreado que se destaca do conjunto, lembrando as torres de ver o mar, são elementos que emprestam a este projeto um cunho regionalista e tradicional preconizado por Raul Lino na sua casa portuguesa. A partir de 1935, ano de entrada do dinâmico autarca Fernão Ornelas (1908-1978) na presidência da câmara do Funchal, Edmundo Tavares tem uma participação mais intensa na arquitetura da cidade, podendo afirmar-se que assumiu o papel de arquiteto da edilidade funchalense. A partir desta data é evidente também uma mudança de orientação estética na sua obra, tomando as suas moradias um gosto entre a art deco e o cariz popular regionalista da sua época. Dentro deste gosto estão as habitações para o Beco do Viveiro, ambas de 1936, e a moradia no Pico de São João, entretanto demolida, como também a moradia desenhada em 1937 para a Levada de Santa Luzia, cujo primeiro proprietário, Herculano Ramos, era então diretor dos serviços municipalizados da câmara do Funchal. No âmbito dos equipamentos escolares destaca-se, essencialmente, o projeto para o Liceu Jaime Moniz. Sendo o primeiro estudo, idealizado em 1934, de cariz bem mais modernista e numa linha art deco depurada, perdeu progressivamente para a versão depois edificada, mais ao gosto do português suave e já brutalista, quase de inspiração italiana, linguagem estilística defendida pelo Estado Novo e que marcou o lançamento dos concursos públicos para este tipo de equipamentos. Na mesma linha estilística, Tavares projetou o Preventório de Santa Isabel implantado numa zona alta da cidade. Trata-se de um exemplar com volumetria deco depurada, composto por um único volume de grandes dimensões e de fachadas simétricas. Numa linha mais revivalista, e no âmbito dos equipamentos, encontramos o Banco de Portugal, projetado também por Edmundo Tavares, inaugurado em 1940 e inscrito na nova avenida surgida do prolongamento da Avenida Zarco. Um corpo torreado destaca-se do conjunto, com um portal onde desfilam alguns elementos escultóricos ao gosto neobarroco, elaborados em mármore branco do continente, nomeadamente as cariátides, com cornucópias laterais e as armas nacionais. Lateralmente dois nichos esculpidos, onde se encaixam floreiras em cantaria cinzenta esculpidas por Agostinho Rodrigues. A sua composição, mais barroquizante, terá certamente beneficiado das recolhas do reportório formal associado aos solares madeirenses, que incluiu no livro Casas Madeirenses. Na mesma linha revivalista e de gosto neobarroco o arquiteto projetou, em 1936, a Capela de Nossa Senhora da Conceição, na Estalagem Quinta do Monte, exemplar que reflete a persistência de revivalismos arquitetónicos na Madeira. Trata-se de um exemplar de arquitetura religiosa particular, traçado a pedido de João José de Freitas Belmonte com o objetivo de perpetuar a memória da sua única filha, falecida com apenas 31 anos. Um excecional conjunto de painéis de azulejos monocromos a azul sobre esmalte branco, desenhados pelo pintor Américo Tavares de Oliveira e Silva e pintados pelo sobrinho e afilhado do arquiteto Ventura Terra, Gilberto Renda (1884-1971), percorrem o interior e exterior do edifício. Esta capela possui também um rico conjunto de vitrais da conceituada fábrica de Ricardo Leone (c. 1890-1971). Em 1938, por encomenda da câmara municipal do Funchal de Fernão Ornelas, Edmundo Tavares projeta uma das suas maiores obras para a Ilha, o Mercado dos Lavradores. Edifício de forte influência art deco, ocupa todo um quarteirão, com uma praça retangular no espaço interior e amplos espaços de circulação. Depois dos estudos a que se procedeu para a escolha do local do novo mercado, foi necessário proceder a diversas expropriações que decorreram de forma amigável. Foi o desenhador da repartição técnica da Câmara, João Ferraz Júnior, que se empenhou de forma perfeita nesta missão, conseguindo alcançar o entendimento com todos os intervenientes, facto que lhe valeu um voto de louvor em reunião camarária pelo zelo e competência demonstrados. O Mercado dos Lavradores seria considerado a obra de maior valor orçamental da sua época, tendo sido entregue ao empreiteiro Manuel Alberto Gomes que, em carta fechada, apresentou a proposta mais baixa entre 12 candidatos, que foi adjudicada por 2605 contos. Esta obra seria inaugurada em 24 de novembro de 1940, juntamente com o Matadouro Municipal, também da autoria de Edmundo Tavares, construído na margem direita da Ribeira de João Gomes e inserido num vasto conjunto de obras associadas ao auspicioso programa das Comemorações, em 1940, do Duplo Centenário da Independência (1140) e da Restauração (1640). As obras de Edmundo Tavares no Funchal surgiram no âmbito de um programa de modernização e de renovação dos edifícios públicos da cidade liderado pelo autarca Fernão de Ornelas. Nele estiveram também incluídos, entre outros, vários edifícios destinados a escolas primárias de onde se destaca a escola primária de São João, projetada em 1936 para uma zona nova da cidade, que se edificou junto à Capela de São João, sob o Pico de São João e a Escola Salazar, na rua dos Ilhéus, também de 1936, onde posteriormente funcionariam os Julgados de Paz do Funchal. Há também os edifícios dos Bairros Económicos e o Sanatório Dr. João de Almada, este último edificado na antiga quinta de Santa Ana no Monte. Foi também a oportunidade para alargamento da rede de água potável, com a construção de fontenários nas freguesias suburbanas, cujo modelo seguiu o projeto-tipo do atelier de Carlos João Chambers Ramos (1897-1969), enviado à edilidade funchalense e posteriormente redesenhados por Edmundo Tavares, e de que subsistiriam algumas dezenas de exemplares. Este conjunto de obras destaca-se de entre as muitas iniciativas levadas a cabo por toda a Ilha como forma de mostrar que o Estado Novo respondia às reivindicações da população, tendo sido disponibilizados todos os recursos materiais e humanos disponíveis para a sua efetivação. No conjunto de obras não realizadas, merece destaque o estudo para um Casino, de 1939, cuja área de intervenção incluía as três quintas do Estado; Quinta Vigia, Quinta Bianchi e Quinta Pavão, tendo-se privilegiando a centralidade desta última para a implementação do Casino. O edifício apresenta um traçado modernista, pela utilização de grandes aberturas, pela depuração geométrica de alguns elementos arquitetónicos e pelas coberturas planas; no entanto, exibe ainda elementos tradicionalistas, visíveis nas coberturas em telha, na estruturação da planta e na introdução de colunatas. Não deixa de ser curioso que, tendo este projeto sido solicitado num período de guerra e encontrando-se o Casino de então fechado, a Delegação de Turismo tenha incluído nas novas condições de concessão a possibilidade de o concessionário explorar dois casinos, implantando-se o segundo junto ao cais da entrada da cidade, fazendo lembrar a proposta de localização do casino de Ventura Terra. Do grupo de projetos de Edmundo Tavares não levados à prática evidencia-se ainda o estudo, ao gosto art-deco, para a Igreja Central no Funchal. Trata-se de um estudo não datado para a Igreja Presbiteriana, situada junto ao Jardim Municipal. No âmbito cultural, o arquiteto Edmundo Tavares publicou vários livros de carácter técnico-construtivo e outros sobre temas da arquitetura portuguesa, dos quais se destaca a sua participação em Casas Madeirenses, de Reis Gomes (1896-1950), de 1937 (reedição de 1968), com ilustrações de modelos de habitações. Trata-se de uma publicação que coloca em debate a problemática da existência de uma arquitetura madeirense, através da apresentação de elementos típicos regionais recolhidos a partir da observação de edifícios existentes na cidade do Funchal. O arquiteto deixou também as suas impressões sobre a Ilha no artigo, “Quadros, Presépios e Lapinhas”, de 1948. A obra de Edmundo Tavares no Funchal pautou-se pela pluralidade de opções estilísticas que caracterizou a sua geração, onde a flexibilidade de linguagem esteve sempre presente, deixando no Funchal uma obra que se destaca pela introdução da modernidade arquitetónica portuguesa na especificidade da cultura insular. O arquiteto será transferido para Coimbra em 1939, tendo sido posteriormente nomeado diretor da Escola Industrial e Comercial Tomaz Bordalo Pinheiro, mas manteve nos anos seguintes contato com a Madeira. Obras de Edmundo Tavares: “Quadros, Presépios e Lapinhas” (1948).     Teresa Vasconcelos (atualizado a 30.01.2017)

Arquitetura Património História Económica e Social Madeira Cultural

sousa, eurico fernando fernandes correia de

(1933-2015) Arquiteto, professor, poeta, Eurico de Sousa revelou interesse por todos os assuntos relacionados com a literatura e a arte, o cinema, a biologia (ecologia) e a etnologia. Desde cedo, a escrita e o desenho tornaram-se o veículo expressivo da sua preferência, tendo realizado diversos trabalhos nestas áreas, alguns deles apresentados em jornais, revistas literárias e na rádio. Depois da preparação básica e secundária, iniciou-se em Coimbra no curso de Medicina, ideia que rapidamente pôs de parte, por não se adaptar física e psicologicamente às condições que lhe eram exigidas. A propensão natural para seguir as artes levou-o a hesitar na escolha entre o curso de Pintura e o de Arquitetura. Decidiu-se finalmente pela arquitetura e partiu para o Porto, onde se matriculou na Escola de Belas-Artes, terminando o curso em Lisboa (ESBAL). Aqui frequentou o Café Gelo, centro de encontro de intelectuais da época, cuja convivência marcou de modo particular o seu percurso literário. Viajou pela Europa, Brasil e América Latina. Publicou dois livros de poesia e integrou algumas coletâneas. Nos últimos anos de vida, a fragilidade da sua saúde acentuou-se, o que o impediu de concretizar mais alguns projetos de publicação do seu espólio poético. Palavras-chave: Poesia; História da Arte; Biologia; Desenho; Arquitetura.   Fig. 1 – Eurico Fernando Fernandes Correia de Sousa (arquivo particular). Eurico de Sousa nasceu no Funchal a 17 de maio de 1933, na R. da Levada dos Barreiros, n.º 32, casa paterna. Filho de Fernando de Sousa e de Alice Fernandes Correia de Sousa, ainda criança foi residir com os pais numa casa herdada pela mãe no Sítio do Papagaio Verde (S. Martinho), onde frequentou por curto espaço de tempo a escola mais próxima, situada no Areeiro. Mais tarde, o pai matricula-o no Colégio Nuno Álvares e aqui completa a instrução primária, com a Prof.ª Isabel Marina da Encarnação, que o considerava e distinguia pelo seu excelente aproveitamento. Permaneceu neste Colégio durante o tempo de terminar o Curso Geral (antigo 5.º ano), donde transitou para o Liceu de Jaime Moniz. Começou então a afirmar-se pelas suas nítidas tendências nas áreas do desenho e da pintura e era, por isso, solicitado para trabalhos extracurriculares, realizando cenários para récitas e colaborando assiduamente na revista escolar Presente, de que foi nomeado diretor. Nesta data, escreve um poema de carácter neorrealista onde avulta o interesse pelos problemas sociais dos habitantes da vila piscatória de Câmara de Lobos. De tal modo o absorviam essas tarefas, que se alheava do estudo obrigatório, pelo que achou por bem partir para Coimbra, em 1952, onde terminou duas cadeiras do 7.º ano (11.º atual). Dentre as disciplinas do currículo liceal, a Biologia atraía-o particularmente e proporcionava-lhe uma boa opção para a escolha dum curso. Apoiado pela decisão dum colega que se matriculara em Medicina, Eurico de Sousa tentou a experiência. Mas a sua fraca capacidade de resistência perante a degradação humana, nos processos de autópsia, e o ambiente frio e húmido desta região do país não lhe permitiram prosseguir na carreira. Ruma então ao Porto, em 1954, e é admitido na Escola Superior de Belas Artes. Os estudos iniciais eram comuns às várias disciplinas artísticas, e Eurico de Sousa hesitou entre Arquitetura e Pintura. Prevaleceu a Arquitetura e foi este um período promissor em que se revelou, com boas classificações. Trabalhos seus foram apresentados na Exposição Magna da Escola, o que, para um aluno principiante, constituiu um desejado estímulo. Segue-se uma interrupção em que cumpriu o serviço militar. Nesta época, 1956, de regresso à Madeira para um período de férias, conhece Herberto Helder e António Aragão. Escreve muito e colabora na revista literária Búzio, criada por António Aragão, e, a conselho de Edmundo Bettencourt, publica em Lisboa, nos cadernos Folhas de Poesia, dirigidos por António Salvado, cujo primeiro número veio a público em 1957. Esta publicação contava com um núcleo prestigiado de colaboradores, entre os quais, além do seu diretor e de Edmundo Bettencourt, também António Maria Lisboa, Fernando Echevarría, Carlos de Oliveira, Jorge de Sena, João Rui de Sousa, José Carlos González, Helder Macedo, David Mourão-Ferreira, Herberto Helder e René Bertholo e Lourdes Castro na parte ilustrativa. Mais nomes se juntavam a esta plêiade, sendo que, segundo afirmam alguns investigadores, o estudo das Folhas de Poesia continua por fazer. Eurico de Sousa inicia nesta época (fins dos anos 50) uma interessante correspondência com Herberto Helder, que, a ser divulgada, constituirá um documento importante para a história da Madeira. Ao voltar ao Porto, vai frequentes vezes a Lisboa encontrar-se com este poeta, a quem dedica grande consideração e amizade, reconhecido também pelo acolhimento aos seus poemas – no extrato duma carta de Herberto Helder, lê-se “[…] saudando com entusiasmada surpresa a qualidade dos teus poemas”. É nesta fase que frequenta o café Gelo e conhece Mário Cesariny, Luiz Pacheco e outros surrealistas. Anuncia depois a desistência do curso e fixa-se na capital. No convívio com as ideias vanguardistas e certo cariz anárquico praticado pelos frequentadores do Café Gelo, que influenciaram a sua escrita e o estilo de vida, Eurico de Sousa foi desbaratando a mesada, alojado em quartos sórdidos e sobrevivendo mal, até que seu pai, ao emigrar para Caracas, resolveu criar-lhe a oportunidade de continuar ali os estudos. Eurico de Sousa começara a manifestar predisposição para estados depressivos, chegando a recusar oportunidades de colaboração em atividades que o valorizavam profissionalmente. Fig. 2 – Eurico Fernando Fernandes Correia de Sousa, Leblon, Rio de Janeiro (arquivo particular). Na Venezuela, devido à constante agitação, por vezes violenta, que se vivia nos meios académicos e à falta de intercâmbio cultural entre aquele país e Portugal, tornou-se impossível ali permanecer. Em 1960, outra tentativa de recuperação do curso, agora no Brasil, na cidade de São Paulo, onde tinha familiares. Ao procurar a faculdade que lhe permitisse concretizar esse objetivo, julgou tê-la encontrado no Rio de Janeiro, para onde parte. Novo desaire: a Faculdade de Arquitetura fora retirada para a ilha do Governador, e tão longo percurso era impraticável. Por aqui se manteve durante cinco anos. A última opção foi voltar ao Porto, onde realizou as cadeiras que lhe faltavam. Porém, era mais fácil economicamente fixar-se em Lisboa, onde, mais uma vez, hospedado em habitações insalubres, adoece, com um problema renal, que lhe exige uma cirurgia de urgência. Depois de ter ultrapassado toda esta atribulação, termina o curso de Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Foi professor numa escola secundária em Santarém e em Tomar entre 1972 e 1974 e desejou voltar à Ilha. Entre julho de 1974 e outubro de 1981, trabalha no Gabinete de Urbanização da Câmara Municipal do Funchal, função que acumula com a de professor na Escola Industrial e Comercial desta cidade e no Instituto de Artes Plásticas da Madeira. Neste ano, tenta o estágio profissional para professor. É depois destacado para a biblioteca da Escola Secundária Ângelo Augusto da Silva e ali faz trabalhos de investigação literária de apoio ao currículo da disciplina de Português. Simultaneamente, apresenta na Radiodifusão local (atual Antena 1) um programa sobre temáticas literárias, interessando-se especialmente pela obra de Herberto Helder e Saint-John Perse e pelas propostas modernistas da Bauhaus. Publica, em 1980, o livro de poesia A Festa Sendo em Agosto (Ed. Eco do Funchal), com desenhos da pintora Alice Sousa, sua irmã, e prefácio de António Aragão, um volume espesso que contém quase toda a sua obra e que obteve boas referências de Eduardo Prado Coelho, Assis Pacheco, António Aragão e Herberto Helder. Em 1995, a Direção Regional dos Assuntos Culturais patrocina o seu segundo livro, intitulado Disgrafia Florestal, com desenhos da sua autoria. Integrou as coletâneas de poesia Ilha 4 (organizada por José António Gonçalves e editada em 1994 pela Câmara Municipal do Funchal), Ilha 5 (com organização de Marco Gonçalves e edição da Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008), O Natal na Voz dos Poetas Madeirenses (com organização de José António Gonçalves, editada em 1989 pela Secretaria Regional do Turismo, Cultura e Emigração), Poet’Arte 90: Poesia Madeirense (publicada pela Associação de Escritores da Madeira em 1990) e Poeti Contemporanei dell’Isola di Madera (organizada e traduzida por Giampaolo Tonini no Centro Internazionale della Grafica di Venezia em 2001). A poesia de Eurico de Sousa posiciona-se num cenário delirante, onde a manipulação das imagens se exerce completamente solta, integralmente livre, e as palavras, as suspensões, omissões, neologismos e sinais gráficos superam a norma significante, para se tornarem elementos estéticos especialmente apelativos. O pensamento expressa-se, assim, através duma sobrerrealidade que reinventa a tessitura da escrita de modo fulgurante, provocatório, criando uma propositada desordem, um ritmo caótico, automático, sufocante, que o poeta utiliza no sentido de denunciar o enigma e a ambiguidade do mundo e da própria natureza humana. Neste automatismo se vislumbram contornos de solidão, claustrofobia, uma velada mágoa que se expressa em versos como este, extraído do livro A Festa Sendo em Agosto: “(Tenho andado como quem não exista)./Só cortando o coração à noite/me apercebi desse absurdo” (SOUSA, 1980, 123). Obras de Eurico Fernando Fernandes Correia de Sousa: A Festa Sendo em Agosto (1980); Disgrafia Florestal (1995).     Irene Lucília Andrade (atualizado a 28.02.2020)

Antropologia e Cultura Material Artes e Design Arquitetura Literatura

gárgulas

Designam-se por gárgulas as goteiras ou desaguadouros, que, na divisão e limites das águas dos telhados, se destinavam a escoar as águas pluviais para certa distância da parede. Eram elementos essenciais nas construções arquitetónicas dos sécs. XVI e XVII, quando as águas corriam em caleiras e no interior das empenas. Com a vulgarização da construção de cornijas e de beirais de telhas de várias ordens, o seu interesse diminuiu. Na Idade Média, eram esculpidas com figuras monstruosas, humanas ou animalescas, que celebrizaram algumas catedrais europeias. Subsistem quatro exemplares desse tipo de gárgulas, de grandes dimensões, na antiga alfândega do Funchal; a maioria das restantes, neste e em outros edifícios madeirenses, apresenta a forma de canhão. Palavras-chave: arquitetura; escultura; hidráulica. Na arquitetura, designam-se por gárgulas as goteiras ou desaguadouros que, na divisão e limites das águas dos telhados, se destinavam a escoar as águas pluviais para certa distância da parede. Eram elementos essenciais nas construções dos sécs. XVI e XVII, quando as águas corriam em caleiras e no interior das empenas (Arquitetura). Com a vulgarização da construção de cornijas e de beirais de telhas de várias ordens, o seu interesse diminuiu e, ainda mais, a partir dos meados do séc. XIX, com a construção dos algerozes no interior das paredes. Ao longo deste último século, foi costume adaptar, inclusivamente a algumas gárgulas, ainda ligadas a escoamento das águas pluviais, algerozes em folha-de-flandres pintados, muitos dos quais se mantiveram, que se destinavam essencialmente a proteger os transeuntes. Na Idade Média eram esculpidas com figuras monstruosas, humanas ou animalescas, comuns em algumas catedrais e outros edifícios, acreditando-se que a sua colocação lembrava que o demónio nunca dormia, exigindo a vigilância contínua das pessoas, mesmo nos lugares sagrados. Dado serem colocadas em locais pouco visíveis, assumiam aspetos inusitados e mesmo pornográficos, tal como ocorria, igualmente, nos cadeirais, no interior das grandes catedrais europeias, entre os finais da Idade Média e o Renascimento. Na Madeira, contudo, não esses exemplares subsistiram . As gárgulas que subsistiram na Madeira, essencialmente, apresentam a forma de um canhão, mais ou menos elaborado, como acontece na Sé do Funchal (Sé do Funchal), no baluarte joanino da fortaleza de S. Lourenço (Palácio e fortaleza de São Lourenço), na igreja e colégio do Funchal, entre outros. Na fachada norte da antiga alfândega do Funchal subsistem, no entanto, quatro fantásticas e grandes gárgulas profusamente esculpidas, com dois homens que levam ao ombro um canhão, um bobo e um galo (Alfândega Nova). Tendo a equipa de mestres pedreiros que trabalhou na alfândega estado antes ativa na Sé do Funchal, é muito provável que aí tenham existido realizações idênticas, entretanto apeadas, nas várias campanhas de obras posteriores, pois parece só ali ter ficado uma gárgula do período de obras inicial, do começo do séc. XVI, na fachada da R. do Aljube, na divisão das águas da torre e da nave lateral e em forma de canhão com tubo helicoidal. Subsistem em vários edifícios civis e religiosos gárgulas em forma de canhão, tal como em algumas das capelas mais antigas dispersas pela ilha da Madeira e do Porto Santo, embora não com a pujança decorativa das gárgulas antropomórficas e zoomórficas da alfândega manuelina do Funchal. Na igreja matriz da Piedade do Porto Santo ficou uma rara gárgula com forma de cabeça humana e, especialmente pela parte antiga da cidade do Funchal, ficaram inúmeras outras com forma de canhão, de secção redonda, quadrada, sextavada, etc., algumas das quais, inclusivamente, fora do local e prédio a que teriam pertencido.   Rui Carita (atualizado a 01.02.2017)

Arquitetura Património

tetos de alfarge

Os tetos de alfarge ou de laçaria existentes na RAM constituem uma incontornável persistência do que terá sido uma rara e inovadora expressão artística de âmbito arquitetónico com forte componente estrutural experimentada em Portugal. O seu tempo áureo estará de forma muito particular ligado ao curto reinado de D. Manuel I (1496-1521), e a sua permanência enquanto processo construtivo terá superado as questões de estilo, ditado pelo gosto particular deste rei, resistindo inclusivamente ao seu desvanecimento e readaptando-se sem perder a sua identidade tecnológica. Importará, contudo, reter de forma breve os antecedentes que consubstanciaram este ciclo artístico. Desde logo o surgimento, difusão e persistência da cultura islâmica em Portugal continental. No último quartel do séc. XX, esta foi divulgada e contextualizada através do contributo científico da arqueologia, da antropologia e da história, entre outras disciplinas. A sua ligação aos califados da Andaluzia inscreve-a numa faixa territorial do Sul da Península em estreita ligação com o Norte de África e o Médio Oriente, em termos de ancestrais ligações culturais e religiosas, pelo que se perceciona uma vasta unidade sociocultural cujas naturais diferenças são articuladas por fatores de comunicação. Seria com estes territórios que as Ilhas Atlânticas, em particular a Ilha da Madeira, viriam a estabelecer, a partir do séc. XV, uma estreita relação comercial, política e cultural, na senda das ancestrais navegações que ousaram vencer as colunas de Hércules e prospetar as costas Norte e Sul do vasto Atlântico. O início do séc. XV inicia-se praticamente com a conquista cristã de algumas praças do Norte de África por parte dos portugueses, configurando-se uma nova realidade geoestratégica. Neste contexto, as descobertas da Ilha da Madeira e, de seguida, do arquipélago dos Açores favoreceram a construção de uma ideia de expansão, surgindo novos centros geográficos readaptados a entrepostos estratégicos. Os estreitos contactos com a cultura islâmica são, a partir de então, uma realidade incontornável, tanto em tempo de paz como de guerra, e mesmo quando em pleno reinado de D. João III (1522-1578) se percebe a impossibilidade de permanência em tantas praças africanas as trocas culturais já se terão consolidado de forma estruturada. O investigador Rui Carita, que dedicou especial atenção aos tetos mudéjares da Madeira, refere três potenciais razões para o facto de existir um tão forte e coeso núcleo destes tetos na ilha. A primeira relaciona-se com os contactos que teriam tido lugar no espaço continental até à fundação da nacionalidade, com presença de árabes e moçárabes, ou seja, cristãos submetidos à lei islâmica. A segunda liga-se à conquista de pontos estratégicos no Norte de África nos inícios do séc. XV, cuja cultura elegante e refinada observada nos palácios e casas nobres teria encantado alguns portugueses. A terceira relaciona-se com a subida ao trono de D. Manuel I, duque de Beja, que praticamente impôs o desenvolvimento e intensificação deste tipo de gosto de tradição islâmica a todo o país. Existem registos da admiração dos portugueses aquando da sua entrada nas residências de Ceuta, descrevendo Gomes Eanes de Azurara, cronista-mor, a perplexidade dos portugueses perante as “grandes casas ladrilhadas com tijolos vidrados de desvairadas cores, e os tetos forrados de olival, com formosas açoteias cercadas de mármores muito alvos e polidos”. Acrescenta o cronista: “nós outros mesquinhos, que não temos outro repouso senão pobres casas que, em comparação destas, querem parecer choças de porcos.” (CARITA e CARDOSO, 1983, 23). O Arqt. Hélder Carita, na sua análise espaciotemporal de enquadramento da arquitetura portuguesa a propósito da Casa dos Bicos, sublinha a importância que os tetos de alfarge, conjuntamente com os azulejos, terão tido na distinção desta arquitetura quinhentista. Acompanhamos esta análise e interrogamo-nos se nesse período histórico de renovação e reabilitação da “arte” islâmica, agora numa prerrogativa mudéjar, não existiriam ainda vestígios significativos do palácio árabe, bem como de casas contíguas das famílias dominantes que terão sido apropriadas pela nova aristocracia católica sem procederem necessariamente ao seu desmonte. Coloca-se, assim, a questão de como terão sido esses interiores e, sobretudo, como terão enobrecido em função do enriquecimento dos seus proprietários. O processo acumulativo e/ou de ocultação é tradicionalmente uma constante, ao invés da demolição e integral substituição, pelo que consideramos a possibilidade de muitos dos tetos de alfarge terem permanecido até ao terramoto. Até 2015, não se conheciam testemunhos escritos sobre a existência desses tetos anteriores ou posteriores ao terramoto de 1755 e a outras calamidades. Apenas se conhecia a crónica de Fernão Silva, que terá contado com o testemunho do cruzado Osberno, na conquista de Lisboa: “Lanço estas regras ao papel já sob o teto mourisco de uma casa que pertenceu porventura a algum príncipe Sarraceno, ou onde um dia se albergou, recoberta de lhamas doiradas, a filha de qualquer capitão da Kssaba, ninho alto de pedras luminosas, esta hoje alcáçova cristã, onde, desde há horas, canta o imaginário Truão de Guimarães.” (ARAÚJO, 1993, 45). As identidades culturais ter-se-ão desenvolvido e apurado na continuidade de ciclos económicos estáveis, incorporando subtis inovações e mesmo eventuais ruturas que não apagaram necessariamente as anteriores, que persistiram em lentas transformações/adaptações. Os tetos de Alfarge, apesar da rutura cultural que aparentemente terão introduzido nos finais do séc. XV, terão reencontrado em Portugal um novo ciclo após a morte de D. Manuel I, precisamente o de simplificação resultante de um eficaz processo tecnológico a que estão associados. Tal facto será resultado de um certo contraciclo cultural imposto por D. João III, no qual a exuberância dá lugar a uma grande contenção formal, retirando do espaço arquitetónico o esplendor luminoso da arte manuelina e, por inerência, as referências luxuriantes de pendor islâmico/oriental. A historiografia, de um modo geral, não terá aprofundado a forma como a cultura andaluza terá sido influente e integrada na arquitetura portuguesa, talvez por nunca a ter considerado suficientemente relevante para a sua formação, filiando-a apenas na superficialidade decorativa e não na configuração arquitetónica, em particular na identidade espácio-funcional, de que destacamos a arquitetura civil, tanto no continente como nas regiões autónomas da Madeira e Açores. Para melhor nos enquadrarmos neste específico tema, importará desde logo registar o que determina o termo “alfarge”. A sua definição difere significativamente entre Portugal e Espanha. No país vizinho, é praticamente consensual para os investigadores que a palavra se reporta a um teto plano de onde se destacam as vigas transversais planas, por vezes com incisões ou arestas sutadas, sob as quais pousa o tabuado. Entre essas vigas é comum observar-se uma decoração designada de laço. Al-farx, em árabe, significará “cobrir com ornato”. Em Portugal, terá sido Joaquim de Vasconcelos, no Guia de Portugal (1983), quem identificou e caracterizou esses tetos hispano-mouriscos, designando o alfarge numa perspetiva mais abrangente ao associá-lo a outras formas artísticas ditas de alfarge. Contudo, o mais corrente na época era referir-se esses tetos como hispano-mouriscos, de laço ou carpintaria de laçaria em aproximação à designação espanhola. Segundo Joaquim de Vasconcelos o “lavor do alfarge ou almoçarabe domina em Portugal em toda a arte decorativa no interior das habitações, desde a conquista árabe até ao primeiro terço do século XVIII” (VASCONCELOS, 1983, 38). Raul Proença, referindo-se a este autor, propôs: “que se nacionalize o termo técnico sob a expressão laço (em árabe, diz ele, ajaraca), laçaria, lavor alicutado. A etimologia que se dava à palavra alfarge (...) era al-farash, que alguns traduziam por assoalhado” (PROENÇA, 1983, 38-39). Pedro Dias, na sua obra Arquitetura Mudéjar Portuguesa: Tentativa de Sistematização, incorpora de forma inovadora o mudejarismo na historiografia nacional. A contextualização das diferentes expressões artísticas no ambiente arquitetónico são agora parte integrante do processo e não simples revestimento ou adorno. No caso dos tetos, este autor, tal como Rui Carita, procura salientar a sua relevância na fábrica da arquitetura, revelando inclusivamente o importante carpinteiro da obra-mestra dos Paços de Sintra: “O carpinteiro João Cordeiro era ‘...mestre das ditas obras dos paços nos ditos Serviços e em fazer rosas para a Capela e Estrelas e Rezimbros para a dita Capela.’". Prossegue o autor com uma nota da maior relevância por ter data: "um documento mais antigo, datado de 1450, referente a um crime cometido em Évora por um jovem, alude a que este era bom carpinteiro ‘... de obra de laço e coisas subtis de carpintaria...’, o que a nosso ver, é uma alusão aos tetos mudéjares” (DIAS, 1994, 55). Esta datação revelará sobretudo uma prática conhecida e em uso no período do reinado de D. Manuel I, época em que esta arte atingiu o seu maior esplendor. Dos diversos núcleos que este autor reporta, apoiando-se no trabalho da historiadora Luísa Clode e especialmente na incisiva investigação de Rui Carita, destacamos o Mudéjar Madeirense. Rui Carita procurou identificar os tetos madeirenses numa perspetiva integradora da história da arte no contexto alargado, ou seja, para além do fenómeno regional. Neste sentido, considera que "teremos de filiar o conjunto de tetos mudéjares da Madeira no conjunto geral de trabalhos provenientes da área e dos artifícios de Sevilha, como foi entre nós o caso das importações de azulejos para a Sé, Santa Clara, Santa Cruz”. Dada a qualidade impar dos tetos da Sé, “efetivamente bastante acima de todos os outros exemplares, ainda se poderá avançar com a hipótese de se ter deslocado ao Funchal uma equipa específica para esse trabalho, em princípio, a mando de D. Manuel I e que localmente terá formado e divulgado este tipo de gosto" (CARITA, 1989, 180). Esta possibilidade não só nos parece verosímil como terá pelo menos potenciado o interesse por parte do corpo eclesiástico e da elite local em aceder a tão elaborada e nobre arte. De outro modo, como explicar a profusão destes tetos em igrejas, capelas e casas nobres madeirenses? Também o arquipélago dos Açores acolhe um importante núcleo de tetos de alfarge, muito embora os sucessivos terramotos e tremores de terra tenham destruído a sua grande parte. Importa contudo salientar que consideramos a possibilidade de nos Açores se ter edificado, no período filipino, um segundo ciclo de tetos de Alfarge, reconstruções e construção de novos por via da instalação de famílias castelhanas associadas ao tráfego comercial com a América Latina, situação que terá tido menor importância na Madeira. Do mesmo modo que se dá conta da existência de tetos de alfarge no Continente, anteriores ao período Manuelino, também nos parece plausível ter sucedido o mesmo na Madeira, com a particularidade de se ter estabelecido um roteiro marítimo estratégico com as Praças Africanas. São diversos os testemunhos que dão conta de se terem transportado dessas Praças diversos elementos estruturais e artísticos para Portugal, mas também para a Madeira, e, se os homens da elite portuguesa se deixaram deslumbrar pelo requinte e conforto dos cómodos da aristocracia muçulmana, de que se destacariam os tetos pela sua exuberância e influência nas espacialidades, com alguma probabilidade os mestres e artesãos que trabalharam nesses lugares terão percecionado e, quiçá, aprendido essas técnicas e efeitos artísticos, independentemente da sua condição sociorreligiosa. Cidades como o Funchal e Angra do Heroísmo, entre outras, terão recorrido a técnicos de elevada qualidade e experiência, a título individual ou integrados em contratos integrais de empreitadas de obras reais, da Igreja ou mesmo privadas, da aristocracia local, originando porventura uma continuada prática iniciada no séc. XV. Tais técnicos provavelmente terão origem na Andaluzia, nas Praças Africanas ou nas Ilhas Canárias, e terão sido os primeiros mestres de carpinteiros portugueses da carpintaria de laçaria. O forte núcleo de tetos de alfarge existentes na Madeira, bem como a sua qualidade, sugere que esta arte terá sido muito apreciada durante um largo período de tempo, mesmo depois de, no Continente, já se ter iniciado outro ciclo estético de tetos, o terá permitido a fixação de um número considerável de artífices e respetivos aprendizes. A Sé e a Alfandega distinguem-se precisamente pela magnificência dos tetos de alfarge, com especial relevância para a primeira, de que se destaca o excelente programa pictórico que cobre pranchas de forro, bem como traves, frisos e tirantes. Também no teto do coro alto do Convento de Santa Clara podemos observar uma elaborada pintura, reforçando a tese de que a Madeira terá tido um ciclo de grande erudição na construção de tetos de alfarge. Admitimos que as principais igrejas matrizes construídas ou renovadas neste período terão integrado estes tetos, que seguramente terão procurado distinguir-se entre si, ainda que mantendo a base canónica, principalmente por via da pintura e dos motivos geométricos da carpintaria, alguns notáveis. São exemplos as matrizes da Ponta do Sol, da Calheta e do Loreto. Ter-se-ão perdido o de Santa Cruz e o de Machico, como provavelmente os de outras igrejas desta época. Esta realidade será em tudo semelhante à identidade das capelas públicas e privadas, bem como das que terão sido instituídas por famílias da aristocracia nas comunidades de sua influência, integradas nos solares ou isoladas nas propriedades dos morgados. O seu isolamento e as partilhas conflituosas terão dificultado a sua manutenção, sobretudo a do património integrado e dos tetos de alfarge. As Capelas que mantiveram o teto de alfarge resumem-se à dos Reis Magos, na Calheta, à Capela da Glória, no Campanário, e à de São Paulo, na rua da Carreira, no Funchal. Esta última terá sido mandada construir pelo 1.º capitão donatário em 1426, em madeira, sendo apenas alterada para pedra e cal algumas décadas depois. Este teto de alfarge denota um certo “arcaísmo”, ou seja, a sua expressão revela um inusitado “experimentalismo”, quiçá por via de uma deficiente interpretação das formas, medidas e proporções canónicas. Admitimos estar na presença de um teto executado por uma “interpretação de memória” de alguém com uma prática e um saber insuficientes face ao que esta arte exige, provavelmente um aprendiz. Presumimos que terão existido outras capelas com tetos de alfarge, alguns tardios, que terão introduzido a sua “simplificação”, tal como, em idêntico período e processo, terá ocorrido com a arquitetura tradicional solarenga, de que a capela constituía uma parte indissociável. As denominadas casas de Quinta da tradição madeirense (que antecederam o período da renovação introduzido pelos ingleses no séc. XVIII) constituíram, durante séculos, a expressão da erudição da arquitetura solarenga na região. Salões, câmaras e capelas incorporavam, provavelmente, tetos de linhagem na arte do alfarge. Os pequenos mirantes, nalguns casos, refletiam também a memória do alfarge, como é o caso particular do teto do mirante e da casa de Dona Guiomar, posterior Quinta da Vigia, que foi remontado em 1770, embora já figurasse na planta de Mateus Fernandes de 1567/70. Cidades e Vilas exibiam Capelas como a de São Luís de França, na rua do Bispo no Funchal, e a Capela da Glória, no Campanário (Ribeira Brava), com localizações distintas: uma urbana, de identidade erudita, e outra rural, isolada. Em ambas, podemos observar a “memória” do alfarge na armação simplificada, despojadas de ornamentos geométricos ou de pinturas. Contudo, podemos observar, no caso de São Luís, as incisões do graminho nas traves, bem como a meia-cana no tabuado e sobretudo a passagem do ângulo dos planos inclinados com o “espaço de espera”, de transição, para o plano central. A Capela da Glória será o paradigma de tetos simplificados nesta tipologia, tal como o Solar Welsh (1685) em relação à arquitetura tradicional solarenga. Este pequeno teto apresenta uma armação simplificada, mantendo contudo a proporção dada pelo ângulo dos planos inclinados e, naturalmente, pela transição para o plano central, direito. Curiosamente, e apesar da sua reduzida dimensão, integra cantoneiras com apoios em tudo semelhantes aos que observamos na Ilha do Pico, nos Açores, especialmente o da Casa do Ouvidor, na estrada da Ribeira Seca, em São Roque. Esta “simplificação” dos tetos de alfarge em espaços religiosos surge também em algumas sacristias e/ou espaços de apoio e transição, como será o caso da sacristia do Convento de Santa Clara no Funchal, entre outras de ambos os arquipélagos. Nos Açores, registámos, em diferentes Ilhas, tetos de alfarge implantados em distintos programas tipológicos e em diferentes estados de originalidade e conservação. Contudo, os sucessivos terramotos, de que se destacam o de 1614 e o de 1 de janeiro de 1980, para nomear os mais aparentemente devastadores, terão contribuído para o seu quase total desaparecimento. Este último terá inclusivamente destruído um conjunto de tetos de alfarge que ainda persistiam, apesar de muito alterados, localizados nos grandes edifícios religiosos, como os da Sé de Angra e também dos principais edifícios governamentais, de que é exemplo o Palácio dos Capitães Generais, igualmente em Angra. Mas também conventos e outros edifícios de menor porte, de que destacamos solares, capelas e igrejas paroquiais, tiveram o mesmo infortúnio. Porém, permanecem ainda “memórias” em vários edifícios do núcleo histórico de Angra, destacando-se também um significativo número de tetos de alfarge de média e grande qualidade integrados em alguns dos principais solares da aristocracia terceirense. Destacamos, na Ilha Terceira e na cidade de Angra, as casas das famílias Reis Leite, Pamplona do Couto, Anes do Canto e Cortes Reais, bem como a casa urbana de D. Violante do Canto, posterior Sport Clube, que, com o sismo de 1980, viu o seu último piso derrocar, perdendo-se o teto que teria sido de alfarge, embora o Museu de Angra tivesse recolhido dois escudos de armas de famílias provavelmente com ligações espanholas. Para além destas casas nobres, assinalamos os tetos das casas onde se veio a situar a delegação de turismo. Fora de Angra, registamos o notável teto no solar conhecido como Quinta do Carvão no Caminho de Baixo, datado de 1634, os tetos de pequena dimensão da Quinta da Estrela ou os de quintas dispersas, como a de Santo António e do Espanhol, cuja tipologia de casa quadrada se distingue por ser única. Na Ilha Graciosa, em Santa Cruz, registamos a casa da família Brum do Canto, que, durante as obras de reabilitação, ao se derrubarem os tetos de estuque dos princípios do séc. XX, deixou expostos seis tetos de alfarge praticamente intactos que corresponderão ao modelo generalizado de tetos de alfarge simplificados que se terão vulgarizado nas casas solarengas dos Açores e da Madeira. No piso térreo, no átrio de entrada, o teto é de alfarge de “estrado”, apresentando os barrotes estruturais um conjunto de linhas incisivas e formando uma composição geométrica. Os guarda-pós laterais, ligeiramente inclinados, as meias-canas, que cobrem as juntas do forro, e um friso esculpido no perímetro da parede reforçam o desenho de alfarge. Dos três arquipélagos, serão as Canárias o núcleo mais dominante em termos de tetos de alfarge, quer pela quantidade, quer sobretudo pela diversidade de tipos e execução excecional. A sua forte ligação à Andaluzia através do porto de Sevilha terá sido determinante para o seu surgimento e implementação, pois terá sido de lá que partiu o maior número de arquitetos, mestres e artistas, havendo ainda, porém, a assinalar uma forte ligação à cultura portuguesa e, em particular, à muito apreciada classe profissional dos carpinteiros, nos primórdios do povoamento. Desde praticamente a ocupação das ilhas Canárias que aí se fixaram portugueses, provavelmente os seus primeiros “ocupantes”, para além da misteriosa população local conhecida por Guanches. Já sob domínio castelhano por força do Tratado de Tordesilhas, estes terão continuado a afluir, sendo as profissões de canteiros e carpinteiros as predominantes. Deste facto nos dá conta Maria del Carmen Fraga González em La Arquitetura Mudéjar en Canárias, onde identifica pelo nome e assinala a proveniência e a data da estadia destes profissionais através do respetivo registo notarial. Destacamos, entre um número considerável: “Alvaro Fernández. – Portugués, ‘estante’ en la isla de Tenerife, en 1508 cede, el 17 de octubre de 1508, a su compañero, también lusitano, Diego Alvarez la parte que le corresponde de trabajo y cobro en las casas de Guillén Castellano, en La Laguna [Álvaro Fernández. – Português, ‘fixado’ na ilha de Tenerife, em 1508 cede, a 17 de outubro de 1508, a seu companheiro, também lusitano, Diego Alvarez a parte que lhe corresponde de trabalho e ganho nas casas de Guillén Castellano, em La Laguna]” (FRAGA GONZÁLEZ, 1980, 46). Curiosamente, alguns traços da cultura arquitetónica portuguesa ter-se-ão enraizado neste arquipélago, como deste terão partido para os Açores e a Madeira, fenómeno perfeitamente natural num circuito regional de “torna-viagem” e, consequentemente, “torna-cultura” entre arquipélagos que iam adquirindo especificidades. Maria del Carmen González ilustra estas influências no livro citado, reforçando que existe um tipo de casas nas Canárias que caracteriza como “viviendas urbanas de influência portuguesa”, que “abundaban en Santa Cruz de la Palma en la segunda mitad del siglo XVI [habitações urbanas de influência portuguesa que abundavam em Santa Cruz de la Palma na segunda metade do séc. XVI]” (Id., Ibid., 71). Esta autora refere ainda outras influências dos portugueses, dando o exemplo da construção da porta da antiga sacristia da Paroquial del Realejo Bajo (Tenerife) executada pelos portugueses Duarte Báez e seu filho Simón Gómez, e continua reportando-se a Pérez Embib, que, no seu livro El Mudejarismo en la Arquitetura Portuguesa de la Época Manuelina, assegura: “conjuntos onubense y canário seria la influencia del morisco lusitano, que halla cumplida representación, en este sentido, en la Torre del Castillo de Alvito, la Quinta ‘Sempre Noiva’ en Arraiolos, etc. [conjuntos onubense e canário seria influência do mourisco lusitano, que encontra representação definitiva, neste sentido, na Torre do Castelo de Alvito, na Quinta ‘Sempre Noiva’ de Arraiolos, etc.]” (Id., Ibid., 75). Fica-nos como reflexão que artistas, artífices e arquitetos transitavam entre países, bem como entre novas realidades geográficas que se iniciaram nos arquipélagos atlânticos, para continuarem por outras e longínquas paragens, com especial relevo para o mundo ibero-americano, onde se destacam o Brasil, Cuba, o México, a Colômbia, o Peru, a Bolívia e o Equador. Esta realidade vem sobretudo reforçar a tese de que a arte mudéjar é um fenómeno hispânico. Para Enrique Nuere Matauco, dever-se-ão investigar estas ligações: “El estudo de nuestra carpentería debería extenderse a todo lo realizado en América, fundamentalmente por carpinteros salidos de España. También será muy interesante estudar la carpintaría portuguesa, con sus similitudes y discrepancias [O estudo da nossa carpintaria deveria alargar-se a tudo o que foi feito na América, essencialmente por carpinteiros idos de Espanha. Também será muito interessante estudar a carpintaria portuguesa, com as suas semelhanças e discrepâncias]” (NUERE MATAUCO, 2000, 18). O caminho que Portugal traçou no Brasil, em África ou no Oriente não terá, pois, despertado o mesmo interesse que nos territórios hispânicos no que respeita aos tetos de alfarge, mantendo-se, no entanto, em algumas vilas e cidades, parte desta gramática mudéjar associada às carpintarias que atrás reportámos. Como já referimos, a maioria dos tetos de alfarge que identificámos em território português integra-se numa armação simples, abatida à “maneira portuguesa”, provocando um abatimento do ângulo de inclinação e baixando a zona central denominada, em Espanha, almizate (“plano sob as tesouras”). Supomos que esta realidade esteja associada a uma certa simplificação do alfarge em Portugal. Em Espanha, o ângulo de elevação da cobertura parece-nos maior, empinando um pouco mais a respetiva cobertura, em virtude do ângulo estabelecido pelos pares, como se pode verificar no exemplo da Igreja do Convento de São Francisco, em Ayamonte. Estes tetos seguem a tratadística da carpintaria de alfarge espanhola. Em Portugal, o alfarge corrente, associado à casa, parece ter sido assimilado pela proporção dos telhados abatidos portugueses, não se distinguindo de forma evidente dos de origem hispânica. No entanto, importa registar que alguns tetos, nomeadamente de alguns palácios e igrejas portugueses, aparentemente terão seguido regras distintas, aproximando-se de outros de possíveis origens filiadas nas coberturas quase verticais góticas, como as coberturas múltiplas das grandes mesquitas peninsulares ou, ainda, como as coberturas dos palácios compactos, com pátio-claustro, da Andaluzia. Serão casos específicos com essa linhagem os Paços Reais de Coimbra e Sintra e das grandes naves da Sé do Funchal e das Matrizes de Caminha, Ponta do Sol e Calheta, entre outros. De um modo geral, no caso dos solares e pequenos templos, os tetos de alfarge em Portugal, incluindo os da Ilha da Madeira e dos Açores, estarão relacionados com a métrica dos telhados abatidos. Naturalmente que a complexidade de um teto de alfarge, ou de um teto de um telhado de tesouro(a), nada terá de semelhante a uma armação comum. Contudo, se nos abstrairmos da complexidade do alfarge, sobretudo das figuras geométricas decorativas localizadas no núcleo central horizontal (almizate), constatamos que se suprimiram as peças de transição nos quatro ângulos e de descarga para o frechal, razão principal para confirmarmos a simplificação do sistema. Consideramos que estas armações se inscrevem na genealogia da arquitetura tradicional mudéjar portuguesa e que terão na sua filiação múltiplos “contágios” resultantes da continuidade de diversas práticas construtivas de armações comuns. Por vezes, o que verificamos é a separação da armação do telhado, enquanto suporte de telha da armação do teto de alfarge, embora nalguns casos, e inclusivamente no plano geométrico, sejam quase coincidentes, como podemos observar no Palácio de Valeflores, em Santa Iria da Azóia, onde as varas são toscas e o varedo sem forro suporta a telha-vã, enquanto a armação de alfarge apresenta o rigor do cânone tanto nas secções e acabamentos como nas assemblagens dos motivos geométricos. Podemos observar uma situação semelhante na ilha da Madeira, em construções torreadas como a armação do Solar dos Reis Magos, ou Casa do Agrela, no Caniço, ou a armação quadrangular do teto da pequena Capela do Claustro do Convento de Santa Clara, no Funchal. Numa seleção de exemplos mais eruditos, em termos de tetos de alfarge, anotamos também os mais simples, nos quais a armação do teto e do telhado é coincidente, como o da Capela dos Reis Magos, no Estreito da Calheta, o do Salão Nobre da Misericórdia de Santa Cruz ou ainda o da Capela da Glória no Campanário; e, no caso das casas, assinalamos o teto simplificado do Solar Welsh, na Madeira, e a Casa Brum do Canto, na Graciosa, nos Açores. Retomando os tetos de alfarge em Portugal, diríamos que estes terão evoluído para uma simplificação dos processos construtivos relacionados com a complexidade dos motivos geométricos, o que se denomina por laçaria, em associação com as armações de suporte do telhado. As nossas observações levam-nos a supor que as armações dos tetos de alfarge se terão assim simplificado, sem perder, contudo, as regras de proporção, ou seja, a base do “cânone” imposto pelo processo construtivo e tecnológico e pela “memória” do geometrismo dado pela laçaria, enquanto métrica construtiva, resumindo-se agora ao “troço de espera” entre o plano inclinado (pano) e o plano horizontal (almizate). Os tetos comuns da arquitetura tradicional madeirense que observámos, principalmente no âmbito da arquitetura tradicional, mas também erudita, são compostos por uma sucessão de vigas de secção quadrangular denominados correntemente “varas” (no alfarge, serão os nodilhos), dispostas a partir do frechal até à linha e sobre as quais se aplica o forro, completam-se com os tirantes altos, ou tesouras (no alfarge, serão os pares), e os triângulos, ou tirantes de canto (no alfarge, serão os quadrais). Simples incisões de linhas retas nos bordos das varas dos tirantes/tesouras e nos tirantes de canto serão ainda a memória da laçaria (linhas obtidas através do graminho). O guarda-pó entre varas é constituído por tábuas inclinadas e integradas por rasgos verticais nas faces laterais das varas. Junto ao frechal, ligeiramente elevado para formar uma linha de composição, instala-se o friso de madeira trabalhado em cordão ou simples, definindo este o fim da parede e o início do teto. Por vezes, e em alternativa, recorre-se a uma ripa de meia-cana pregada às juntas do forro entre as varas de construções mais correntes, quer urbanas quer rurais. Todos estes elementos são as “memórias” que permaneceram do alfarge “canónico”, numa nova simplificada identidade filiada nos padrões ancestrais. Alguns destes procedimentos de simplificação já teriam, em parte, sido subtilmente integrados em tetos completos que terão iniciado a transição para a simplificação através de uma “matriz portuguesa”. Entre diversos exemplos, destacamos o teto de alfarge do coro alto da Igreja do Convento de Santa Clara do Funchal. A carpintaria desenvolvida a partir dos tetos de alfarge, nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, onde se terá efetuado um último estágio de simplificação, ter-se-á “propagado” nas arquiteturas das cidades portuguesas do espaço ultramarino. A sua influência terá perdurado durante séculos, não só na sua expressão erudita, mas sobretudo no domínio completo de uma arte que também produzia mobiliário, portas, janelas, varandas, proteções de vãos conventuais em reixa e muxarabis. Uma continuada linhagem de famílias de carpinteiros terá assegurado o saber coevo que se escalonava em aprendiz, oficial e mestre, categorias que chegaram ainda ao séc. XX. Esta terá sido uma das profissões mais valorizadas ao longo dos séculos. A ilha da Madeira, detentora de uma densa floresta rica em madeiras de todo o tipo, cedo terá beneficiado de licenças régias, atribuídas pelos capitães donatários para a construção de serras de água, realidade também comum aos Açores. Nascia assim uma outra linhagem de artesãos, os serradores, que forneciam a madeira em prancha ou em viga, segundo medidas-padrão controladas pelo grémio dos carpinteiros e confirmadas administrativamente por posturas municipais com os respetivos «livros dos regimentos oficiais mecânicos». As medidas eram então em palmos, pés, varas, tosas, provavelmente em tudo idênticas às praticadas no arquipélago das Canárias, que acolheu diversos carpinteiros provenientes da ilha da Madeira, estabelecendo uma relação inter-arquipélagos. Observamos a constância das secções e dos comprimentos das madeiras que compõem as armações, denotando uma assinalável regularidade própria de um fornecimento padronizado de madeiramentos, que, talvez por conveniência de transporte e otimização de paus, no corte na floresta e na serração, se mantinham dentro de medidas padrão para todos os componentes de uma armação mas também por ser mais fácil comercializar e tributar um produto padronizado. Uma das particularidades das armações de alfarge é precisamente a regularidade e rigor das peças que formam um intrincado e eficaz sistema estrutural. A qualidade tecnológica constitui, para além da expressão artística, a sua identidade, a sua distinção, sobretudo por possibilitar superar grandes vãos, mantendo secções esbeltas dos madeiramentos. Desafortunadamente, as casas madeirenses que incorporaram tetos de alfarge terão sido as que menos resistiram ao passar dos séculos. Chegaram-nos fotografias do Solar de Dona Mécia e da casa nobre dos Herédia, e pouco mais, mas seguramente muitos outros terão acolhido salas e câmaras de solares e mesmo de pequenas casas solarengas, muitas delas denotando armações simplificadas de alfarge. António Aragão revelou a nobreza das casas das famílias nobres, nacionais e estrangeiras, que se estabeleceram na Rua dos Mercadores e que terão incorporado nos seus confortáveis aposentos a expressão cultural das famílias originárias de Génova, da Flandres, da Andaluzia e das vizinhas Canárias, entre outras. A casa conhecida como de Colombo, construída ainda no séc. XV, poderá ter sido um dos exemplos. Pela qualidade dos seus vãos de cantaria, denota ter sido uma casa de grande riqueza. As suas câmaras terão provavelmente tido um ou mais salões com armação de alfarge integrados, tal como outros motivos decorativos associados ao mudejarismo, como os tradicionais azulejos hispano-árabes e os pavimentos de tijoleira. Para além das casas urbanas, registamos também algumas casas nobres rurais, como os Solares do Esmeraldo, na Ponta do Sol, ou a Quinta do Morgado, no Arco da Calheta, bem como algumas casas solarengas da nobreza de S. Jorge, na costa Norte, que terão tido provavelmente alguns tetos que se filiavam nas técnicas construtivas dos tetos de alfarge, ainda que com uma grande probabilidade de serem simplificados. Nesse tempo histórico, quase todas estas casas teriam tido, direta ou indiretamente, uma intensa ligação ao comércio marítimo, estabelecendo-se, nesse sentido, relações culturais e político-económicas entre os arquipélagos atlânticos e a Andaluzia, bem como outros territórios. Formou-se, assim, uma comunidade recetora e difusora que, de Portugal e Espanha e respetivos arquipélagos atlânticos, alargou a sua geografia de influência para os territórios ibero-americanos. Através da sua observação in situ, e numa análise comparativa, compreenderemos melhor o fenómeno da sua dispersão e permanência nesses territórios, bem como o seu continuado trânsito em torna-viagem e respetivas transferências. Ao contrário das Ilhas Canárias e de uma parte significativa do mundo hispânico na América, em que esses tetos não só permaneceram como se manteve a arte e a técnica da sua construção durante séculos, na ilha da Madeira tal não ocorreu. A renovação do gosto e a perda da tradição desta carpintaria específica fizeram com que se tivesse perdido grande parte destes tetos. Nalguns casos, o fogo terá sido a sua principal causa de desaparecimento. Desse facto nos dá conta António Aragão, ao relatar o grande fogo ocorrido em 26 de julho de 1593, que terá consumido, em 4 h, 154 casas: “moradas de casas, as melhores e mais principais de toda a cidade” (ARAGÃO, 1979, 175). Infelizmente, assim sucedeu, em pleno séc. XX (1957), com o Solar de Dona Mécia, datado no lintel da porta exterior de 1606, mas aparecendo já na planta de 1567/70, pelo que deve ter sido levantado, dadas as armas que ostenta, por João de Ornelas de Magalhães, que, em 14 de maio de 1555, foi nomeado alcaide da fortaleza do Funchal. Um outro solar, este de grandes dimensões, terá igualmente perdido os seus tetos, com grande probabilidade, no séc. XX. Reportamo-nos ao Solar da Quinta da Lombada na Ponta do Sol, residência do fidalgo flamengo João Esmeraldo, que o ampliou e enobreceu em 1493, após aquisição a Rui Gonçalves da Câmara, filho do 1.º capitão donatário Gonçalves Zarco, e que, seguramente, teria tido tetos de alfarge. João Esmeraldo construiu quase em simultâneo, mais precisamente em 1495, uma casa no Funchal, a que já nos reportámos como sendo a Casa de Colombo, que foi demolida. O seu construtor foi identificado pelo historiador António Aragão (ARAGÃO, 1979, 114) como tendo sido Garcia Gomes, pedreiro. A sua qualidade arquitetónica e a condição social do seu proprietário levam-nos à possibilidade de aquela ter tido teto(s) de alfarge, tal como os teriam a do mercador castelhano João de Valdavesso e a de Francisco de Salamanca, ambas no Funchal, que eram, segundo António Aragão, “ricas casas e aposentos” (Id., Ibid., 114). Outras causas estarão relacionadas com a perda destas casas, em particular a grande mobilidade da sociedade madeirense e, sobretudo, os grandes aluviões, sendo de especial gravidade o que ocorreu em 1803. Estas calamidades cíclicas ocorreram em praticamente todas as cidades ribeirinhas, desde logo no Funchal, mas também em Santa Cruz, Machico, Ponta do Sol, Calheta ou mesmo São Jorge, e noutras localidades de menor dimensão na costa Norte. Estas levaram seguramente para o mar partes significativas destas urbanidades e com elas edifícios religiosos e da nobreza que ocupavam os melhores terrenos planos. Como exemplo, entre tantos, referimos o claustro e respetivas dependências do Convento de São Bernardinho em Câmara de Lobos. Registamos ainda o forte tremor de terra de 1748, que danificou muitas igrejas e terá destruído muitas construções. Parece-nos possível que esta arte se tenha prolongado durante todo o séc. XVI em ambos os arquipélagos (Madeira e Açores) e, apesar das calamidades e do abandono da sua reparação e conservação, um novo incremento terá ocorrido durante o séc. XVII devido, provavelmente, à ocupação filipina, particularmente nos Açores. Contudo, consideramos que as sucessivas simplificações se terão iniciado ainda em finais do séc. XVI, mantendo-se assim os indispensáveis conhecimentos para o seu (hipotético) recrudescimento no referido período filipino, com recurso a mestres locais, e reintroduzindo-se a arte com o reforço de artífices recrutados nas colónias espanholas e/ou nas Canárias, onde tal arte se terá mantido coerente até praticamente aos finais do séc. XIX. Registamos ainda a inesperada (re)construção de um conjunto de tetos de alfarge no Solar dos Herédia, erigido nos finais do século XVIII na Vila da Ribeira Brava, na Madeira, posteriores Paços do Concelho. Esta família, há muito radicada na região, provavelmente reconstruiu este solar recuperando os tetos de uma anterior casa. Fica, no entanto, a dúvida sobre se estes tetos serão integralmente originais do séc. XVI, altura em que esta família de origem castelhana se radicou na Madeira, e, naturalmente, se os seus autores teriam sido igualmente oriundos de Castela, tal como seria interessante saber se teriam sido os mesmos a integrarem uma potencial campanha de obras de melhoramentos da casa de Dona Mécia, no Funchal. A coerência das armações simples à vista que observámos na arquitetura tradicional rural e urbana (aldeias e vilas) em todo o território português, com particular incidência nas Ilhas Atlânticas, parece-nos resultar de uma prática ancestral, aplicada sobretudo nas casas de “transição” social, ou de tipologia de sobrado, ainda que por vezes de piso térreo, mas de “volume expressivo”. Parte significativa da identidade tipológica das casas a que nos reportamos será consequência da tradição do alfarge e da identidade mudéjar associada, introduzida no séc. XVI em Portugal, ainda que esta, na realidade, já se tivesse enraizado discretamente nos séculos anteriores.   Victor Mestre (atualizado a 05.01.2017)

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