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defesa nacional e segurança (política de)

No passado, a defesa e a segurança dos povos era, na prática, quase exclusivamente assegurada pelo aparelho militar do Estado. Porém, com a evolução das sociedades e à medida que a vida coletiva se foi tornando mais complexa, os conceitos de segurança e de defesa foram-se densificando, reconhecendo-se que, a par da componente militar, a componente civil também tinha um papel importante na estruturação e no funcionamento dos mecanismos de segurança e de defesa. Deste modo, as matérias respeitantes à defesa são, no princípio do séc. XXI, um domínio específico do conhecimento e da ação política que concita a atenção, de forma permanente e dominante, não só dos militares, mas também dos decisores políticos e dos cultores da ciência política, tendo expressão nos mais importantes documentos políticos dos Estados organizados. Importa assinalar, ainda, que os poderes relativos à segurança e à defesa pertencem ao núcleo essencial da soberania do Estado, que a definição e a orientação da política de defesa são da competência exclusiva dos órgãos de soberania e que, por isso, tais poderes e tais competências não são regionalizáveis. A Região Autónoma da Madeira não pode, pois, ter uma política de defesa própria. Porém, o arquipélago da Madeira, o seu território e o seu povo estão inseridos na política de defesa nacional, por fazerem parte integrante do Estado português e graças à sua importância geoestratégica; além do mais, os órgãos de governo próprio são chamados a colaborar na execução da política nacional de defesa e de segurança, nomeadamente na sua componente civil. É neste enquadramento teórico e institucional que deve ser vista a posição da Madeira no contexto da política de defesa nacional. Pensar a Madeira em termos de defesa nacional supõe, pois, ter a noção da importância geoestratégica do arquipélago da Madeira e conhecer a política de segurança e de defesa do Estado português, elencando e caracterizando nesta os pontos que têm implicações sobre o território e a população da Madeira e nas relações com os órgãos de governo próprio. Importância geoestratégica do arquipélago da Madeira  Na memória justificativa da proposta de lei do Governo, que viria a converter-se na primeira Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (LDNFA) (lei n.º 29/82, de 11 de dezembro) após o 25 de Abril de 1974, dizia-se que “não pode esquecer-se que o reforço da unidade nacional em tempo de crise passa necessariamente também pelas regiões autónomas, que a definição de uma política de defesa nacional comporta aspetos de interesse específico para essas regiões, que nelas se situam importantes infraestruturas de defesa, que em relação a elas vigoram relevantes convenções internacionais de carácter militar e que nelas se verificarão incidências geoestratégicas em caso de guerra”. Na reunião da Comissão Parlamentar de Defesa Nacional, ocorrida no dia 25 de outubro de 1982 para debater, na especialidade, a proposta de lei do Governo, defendeu-se a importância geoestratégica dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, assinalando-se o seguinte: – a própria definição do papel da nação portuguesa no mundo passa, no princípio do séc. XXI, pelos arquipélagos dos Açores e da Madeira: como foi, aliás, reconhecido pelos mais altos responsáveis políticos nacionais e regionais; – o chamado “triângulo estratégico continente-Madeira-Açores” surge como fator de identificação do nosso país, no contexto da defesa coletiva do ocidente, sobretudo em face do ingresso da Espanha na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN); – são as posições estratégicas propiciadas pelas regiões autónomas que conferem ao Estado português uma acrescida força negocial internacional. Fig. 1 – Sem as regiões autónomas, Portugal continental ficaria descaracterizado do ponto de vista geoestratégico, diluindo-se no vasto território da Península Ibérica. Como se verifica, já então era reconhecida a importância geoestratégica do arquipélago da Madeira. Tal importância foi aumentado, quer face ao posterior quadro de ameaças e à chamada “guerra assimétrica” – de guerrilha e terrorismo –, quer pela multiplicidade de funções que o Estado foi assumindo para garantir a soberania e a independência nacional, para controlar o espaço aéreo e marítimo, para defender e fiscalizar a extensa zona económica exclusiva, e para realizar as operações de busca e salvamento a que está, nacional e internacionalmente, obrigado – algo reconhecido pelos vários conceitos estratégicos de defesa nacional e pelos demais documentos estruturantes em matéria da política de segurança e de defesa.  A política de segurança e defesa do Estado português Os documentos políticos fundamentais são o Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN), as Grandes Opções do Plano (GOP) e o Programa do Governo. O CEDN contém as orientações gerais em matéria de segurança e de defesa e, em consequência, inspira as GOP e os programas de governo, sendo acertado, do ponto de vista metodológico, focar a atenção sobre o próprio CEDN que, aliás, em regra, se revela mais duradouro e estável do que os outros dois documentos. Daí que o enquadramento lógico da Madeira na política de defesa nacional deva fazer-se predominantemente a partir de uma análise cuidada do CEDN. Se bem que é verdade que as orientações da política só se tornam eficazes quando vertidas em lei, não é menos certo que é pela análise do CEDN, situado ao lado daquelas, que se compreende o alcance da lei e que se consegue enlaçá-la com os objetivos e os superiores interesses nacionais. Desde a entrada em vigor da primeira LDNFA, em finais de 1982, até 2016, a política de defesa nacional foi concebida e enquadrada tendo por pano de fundo o CEDN de 1985 (aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 10/85, de 20 de fevereiro), o CEDN de 1994 (aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 9/94, de 4 de fevereiro), o CEDN de 2003 (aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 6/2003, de 20 de dezembro), e pelo CEDN de 2013 (aprovado pela resolução do Conselho de Ministros n.º 19/2013, de 5 de abril). O CEDN apresentava-se juridicamente configurado na lei n.º 29/82, de 11 de dezembro, que aprovou a LDNFA. Segundo o n.º 2 do seu artigo 8.º, entende-se por conceito estratégico de defesa nacional a definição dos aspetos fundamentais da estratégia global do Estado adotada para a consecução dos objetivos da política de defesa nacional. Sinteticamente, pode-se dizer que o CEDN corresponde ao conjunto das linhas orientadoras da política de segurança e de defesa. O CEDN não é um documento isolado que possa ser objeto de uma análise autónoma. Pelo contrário, ocupa o topo de uma panóplia de instrumentos que visam operacionalizar a política de defesa nacional, sobretudo na sua vertente militar. Ao lado do CEDN, a LDNFA prevê a elaboração de documentos, de natureza reservada, tais como o conceito estratégico militar, as missões, o sistema de forças e o dispositivo. Durante a vigência da LDNFA de 1982 e, posteriormente, na vigência da lei orgânica n.º 1-B/2009, de 7 de julho (alterada e republicada pela lei orgânica n.º 5/2014, de 29 de agosto), o Governo aprovou os Conceitos Estratégicos de 1985, de 1994, de 2003 e de 2013. Estes conceitos estão datados e refletem a conjuntura nacional e internacional que, naquele tempo, inspiravam o clima de segurança e de defesa no país e no mundo. O primeiro daqueles conceitos foi elaborado em 1985, um tempo ainda dominado pelo ambiente da chamada Guerra Fria, caracterizado por um mundo bipolar, dividido entre as esferas de influência da União Soviética e dos Estados Unidos da América. Por sua vez, o Conceito de 94 traduziu as alterações decorrentes da queda do Muro de Berlim e a emergência de novos referenciais de poder, designadamente da União Europeia e do Japão. Na sua elaboração estão também presentes as transformações que, então, se processavam no âmbito da OTAN, as questões decorrentes das assimetrias de desenvolvimento norte-sul, os movimentos migratórios descontrolados, os radicalismos étnicos, religiosos e ideológicos, e o ressurgimento dos nacionalismos com as inerentes disputas territoriais. O Conceito de 94 ensaiou mesmo, pela primeira vez, um elenco das novas ameaças, com especial menção do terrorismo internacional, das ações de rutura dos aprovisionamentos de recursos, dos atentados ecológicos, do fenómeno do narcotráfico, da proliferação das armas nucleares e de outras armas de destruição massiva. O Conceito de 2003 representou um salto qualitativo, na forma e no conteúdo, relativamente aos conceitos anteriores, apesar de muito centrado nos aspetos estratégicos e militares da defesa, limitando-se a uma mera alusão final à sua componente civil. O Conceito Estratégico de Defesa Nacional de 2013 O CEDN que entrou em vigor em 2013 foi aprovado, conforme já referido, pela resolução do Conselho de Ministros n.º 19/2013, publicada no Diário da República, 1.ª série, de 5 de abril. Tratava-se de um conceito inovador, na sistematização e no conteúdo, marcado por uma forte ambição, mas não desconhecia as alterações que, naquela última década, ocorreram na situação estratégica e no ambiente internacional, nem a crise económico-financeira que atingiu a Europa, em particular a Zona Euro, e o facto de Portugal se encontrar sob assistência financeira internacional. No que toca à sua ambição, poderá dizer-se que este conceito se qualifica mais como um conceito estratégico nacional do que como um simples conceito estratégico de defesa nacional. Isso é claro logo na sua introdução, onde se afirma que “para a realização dos objetivos de segurança e defesa concorrem todas as instâncias do Estado e da sociedade” para concluir de seguida que “o conceito estratégico de defesa nacional define os aspetos fundamentais da estratégia global a adotar pelo Estado para a consecução dos objetivos da política de segurança e defesa nacional”. Além do mais, este Conceito, no seu último ponto, sob a esclarecedora epígrafe “Uma Estratégia Nacional do Estado”, afirma o seguinte: “O conceito estratégico de defesa nacional deve assumir-se como a estratégia nacional do Estado, destinado a dar cumprimento às suas tarefas fundamentais, para as quais concorrem as suas instâncias e organismos, bem como a própria sociedade. Este é um desafio para o qual todos estamos convocados”. Com estes pressupostos, compete ao CEDN definir “os aspetos fundamentais da estratégia global a adotar pelo Estado para a consecução dos objetivos da política de segurança e defesa nacional”. Do extenso texto deste Conceito é possível extrair uma outra constatação: é superado o complexo ideológico que, segundo alguns, exige uma separação estancada entre a defesa e a segurança, assumindo-se, expressis verbis, como um conceito de segurança e de defesa, na linha do que acontece na generalidade dos Estados-Membros da OTAN e da União Europeia e no seio da União e da própria Aliança Atlântica. A propósito dos fundamentos da estratégia de segurança e de defesa nacional, este Conceito considera particularmente relevante “uma melhor exploração dos recursos minerais e marítimos – a enorme zona marítima sob responsabilidade nacional é um dos recursos nacionais que mais importa valorizar”. Ao referir-se aos contextos de segurança regionais, retoma e amplia a enumeração feita no Conceito de 2003, destacando a Europa e a União Europeia, os EUA e as relações transatlânticas, o norte de África (em termos que podem considerar-se minimizadores da perigosa situação então existente na região do Sahel), o Médio Oriente, a África subsaariana, o Atlântico e a Ásia. Do elenco que o Conceito faz das ameaças e dos riscos no ambiente de segurança global, retira-se a ideia de que todos eles tinham ou poderiam ter uma repercussão no arquipélago da Madeira: o terrorismo transnacional; a pirataria; a criminalidade transnacional; a proliferação de armas de destruição massiva (NBQR – nucleares, biológicas, químicas e radiológicas); a multiplicação de Estados frágeis e de guerras civis, potenciando atrocidades em massa, terrorismo e vagas crescentes de refugiados; o ciberterrorismo e a cibercriminalidade, cujo alvo são as redes indispensáveis ao funcionamento da economia e da sociedade da informação globalizada; a disputa por recursos naturais escassos (e.g.: hidrocarbonetos, minerais e água); e os desastres naturais e as mudanças climáticas. Dos riscos de natureza ambiental, este Conceito destaca os atentados ao ecossistema, terrestre e marítimo, a utilização abusiva de recursos marinhos e os incêndios florestais. Ao analisar a posição de Portugal no Mundo, o Conceito salienta que “a geografia do espaço nacional, definida pelo ‘triângulo estratégico’ formado pelo território continental e pelos arquipélagos da Madeira e dos Açores, valoriza naturalmente a Europa e o Atlântico”, reconhecendo que a Europa é a principal área geográfica de interesse estratégico nacional – sendo Portugal a fronteira ocidental da Europa no Atlântico - e que a comunidade de segurança do Atlântico Norte é o espaço da unidade entre a Europa, os EUA e o Canadá, que são também áreas de implantação de importantes comunidades portuguesas. Depois da Europa, este Conceito elege o espaço euro-atlântico como a segunda área geográfica de interesse estratégico permanente, baseando-se para tal na defesa da unidade nacional e da integridade territorial de Portugal, na aliança bilateral com os EUA e na coesão da Aliança Atlântica. O Magrebe também é considerado neste contexto pelo efeito de proximidade territorial e pelas relações económicas e culturais. O Conceito defendia ainda que Portugal não poderia alhear-se das transformações que ocorriam no continente asiático e que deveria procurar aí as parcerias estratégicas que poderiam ser do nosso interesse. O Conceito de 2013 concluiu, pois, que “no princípio do séc. XXI, Portugal, membro da UE, da OTAN e da CPLP, está no centro geográfico da comunidade transatlântica e é um elo natural nas relações entre a Europa Ocidental e a América do Norte e com a América do Sul e a África Austral”, aludindo, a este respeito, às comunidades portuguesas e aos fluxos migratórios concentrados nos países europeus e ocidentais, bem como no Brasil, na África do Sul, em Angola e na Venezuela. No domínio da segurança cooperativa, este Conceito realçou a pertença do nosso país, como membro de pleno direito, às Nações Unidas, à OTAN e à União Europeia, que, com o Tratado de Lisboa, assumiu novas responsabilidades como ator de segurança, no âmbito da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD), destacando-se também o maior relevo dado à Agência Europeia de Defesa. O Conceito afirmou que estas três organizações, para além das suas preocupações humanitárias, “partilham uma determinação comum em melhorar a capacidade de prevenção e gestão de crises e assegurar uma maior capacidade de resposta rápida e de projeção de meios civis e militares”. A propósito da estratégia de alianças, este Conceito é claríssimo em reconhecer que a OTAN é a aliança crucial para a segurança e a defesa de Portugal, afirmando que “a defesa da integridade territorial e da coesão nacional são inseparáveis da participação na OTAN”. Também a internacionalização e a modernização das Forças Armadas portuguesas resultam da integração de Portugal na Aliança Atlântica. Em matéria de parcerias estratégicas, este Conceito sublinha a importância e defende o reforço do relacionamento com os EUA, com a UE (no quadro da PCSD e nos programas da Agência Europeia de Defesa), com a CPLP e com Timor-Leste. Entre os ativos nacionais, o Conceito inclui “o mar e a centralidade no espaço atlântico; o carácter arquipelágico do território; o clima e as comunidades de emigrantes” e, a propósito dos princípios da segurança e defesa nacional, diz taxativamente: “O Estado defende os interesses nacionais por todos os meios legítimos, dentro e fora do seu território, das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e do espaço aéreo sob sua responsabilidade; o Estado assegura a salvaguarda da vida e dos interesses dos portugueses num quadro autónomo ou multinacional; no exercício do direito de legítima defesa, Portugal reserva o recurso à guerra para os casos de agressão efetiva ou iminente”. O Conceito atribui a devida importância às informações estratégicas, reconhecendo que “o carácter imprevisível, multifacetado e transnacional das novas ameaças confirma a relevância das informações” e que, “neste contexto, os serviços de informações constituem-se como incontornáveis instrumentos de identificação e avaliação de ameaças e oportunidades em cenários voláteis e complexos”. Enfatiza, ainda, a sua relevância, afirmando que “as informações são um instrumento estratégico do Estado, essencial para o apoio à decisão política, sobretudo em matéria de segurança e defesa”. Sobre as obrigações que vinculam o Estado na prossecução dos seus objetivos permanentes – defender o território e a segurança dos cidadãos, neutralizar as ameaças e os riscos transnacionais – o Conceito estabelece que as políticas de segurança e de defesa nacional devem: assegurar uma capacidade dissuasora, reforçada pelo quadro de alianças; consolidar uma estrutura militar adequada; articular os meios civis e militares de forma eficiente; garantir a capacidade de vigilância e de controlo do território nacional e do espaço interterritorial, incluindo a fiscalização do espaço aéreo e marítimo; garantir a capacidade autónoma para executar as missões destinadas a salvaguardar as vidas e os interesses dos cidadãos portugueses (onde quer que eles se encontrem); assegurar as reservas estratégicas indispensáveis à segurança do país, nomeadamente nos planos de energia, de comunicações, de transportes, de abastecimentos, de alimentação e de saúde; garantir a capacidade para organizar a resistência em caso de agressão. A resposta às ameaças e aos riscos passou por maximizar as capacidades civis e militares existentes, mantendo em operação um efetivo sistema nacional de gestão e de crises, em que a cooperação entre as Forças Armadas, as forças e os serviços de segurança se desenvolviam de acordo com um Plano de Articulação Operacional. Em resposta à ameaça das redes terroristas, Portugal deveria desenvolver uma estratégia nacional e integrada que pudesse articular as medidas diplomáticas, judiciais, de controlo financeiro, de informação pública e de informações policiais e militares. Deveria, ainda, ser dada uma especial atenção à vigilância e ao controlo das acessibilidades marítima, aérea e terrestre ao território nacional com base num Programa Nacional de Proteção das Infraestruturas Críticas. Na luta contra o crime organizado transnacional, tornava-se necessário reforçar a cooperação internacional, bem como melhorar a capacidade de prevenção e de combate à criminalidade, dando particular atenção ao tráfico de droga nos espaços marítimo e aéreo sob a jurisdição nacional, às ações de imigração clandestina e ao tráfico de seres humanos. No combate à cibercriminalidade, era necessário garantir, antes de mais, a proteção das infraestruturas de informação críticas, criando-se para o efeito um Sistema de Proteção da Infraestrutura de Informação Nacional (SPIIN). Depois, era preciso montar a estrutura responsável pela cibersegurança, sensibilizar os operadores públicos e privados para a natureza crítica da segurança informática, e levantar a capacidade de ciberdefesa nacional. O Conceito de 2013 destaca também o impacto devastador das catástrofes, naturais ou provocadas, e das calamidades, preconizando para lhes fazer frente, o reforço do Sistema de Proteção Civil, o desenvolvimento de metodologias, os programas e os estudos técnicos e científicos sobre os diferentes perigos, ameaças e riscos, e também a criação de uma Unidade Militar de Ajuda de Emergência. O Conceito aborda, ainda, o risco de pandemias e de outros perigos para a segurança sanitária, considerando prioritário o reforço da capacidade de resposta nacional aos riscos sanitários no sentido de mais rápida e eficazmente se fazer face a doenças epidémicas ou a ataques com armas NBQR, e a existência de condições que garantam a segurança alimentar, nomeadamente a qualidade dos alimentos e da água, estimulando a definição de uma Estratégia Nacional Sanitária-Epidemiológica. Tudo isto sem esquecer a necessidade de “uma Estratégia Nacional do Ambiente, que permita prevenir e fazer face, de forma integrada, aos principais riscos ambientais em Portugal, como os sismos, os incêndios florestais, as cheias, a erosão no litoral e a erosão hídrica do solo, a desertificação e os acidentes industriais”. Ao referir-se à afirmação de Portugal como coprodutor de segurança internacional, o Conceito recordou que “as fronteiras de segurança nacional vão para além das fronteiras territoriais do Estado”. Assim, Portugal deveria participar em missões militares internacionais na defesa da paz e da segurança; em missões de ajuda de emergência; em missões de reforma do sector de segurança; estabelecer parcerias estratégicas de segurança com os países da CPLP, privilegiando o combate à criminalidade organizada e à cibercriminalidade, e a segurança das rotas navais; e igualmente apoiar o esforço que se desenvolvia na área da cooperação técnico-militar. Há no Conceito de 2013 um ponto que é particularmente importante para a RAM na sua relação com a política de defesa nacional. Estavam em causa as chamadas missões de interesse público constitucionalmente cometidas às Forças Armadas e que se traduziam no apoio ao desenvolvimento sustentado e à melhoria das condições de vida dos portugueses. Tais missões preenchiam um vasto leque de atividades, de entre as quais o Conceito destaca as seguintes: o apoio ao Serviço Nacional de Proteção Civil, para fazer face a situações de catástrofe ou de calamidade pública; o apoio à satisfação das necessidades básicas das populações; a fiscalização da Zona Económica Exclusiva; a busca e o salvamento; a proteção do ambiente; a defesa do património e a prevenção de incêndios; a pesquisa dos recursos naturais e a investigação nos domínios da geografia, da cartografia, da hidrografia, da oceanografia e do ambiente marinho. É na execução destas missões que deve ser valorizado, na sua máxima extensão, o princípio de duplo uso, no sentido em que grande parte dos equipamentos militares poderiam ser utilizados quer para fins militares, quer para fins civis – o que se traduz, afinal, numa aplicação do moderno conceito de Defesa Inteligente (Smart Defence). Tendo em conta os diferentes cenários de atuação das Forças Armadas portuguesas, o Conceito entende que estas devem dispor, “prioritariamente, de capacidade de projetar forças para participar em missões no quadro da segurança cooperativa ou num quadro autónomo - para proteção das comunidades portuguesas no estrangeiro (onde se incluem as comunidades madeirenses), em áreas de crise ou conflito –, de vigilância e controlo dos espaços de soberania e sob jurisdição nacional, e de resposta a emergências complexas, designadamente em situações de catástrofe ou calamidade”. E acrescenta: “É, por isso, indispensável que se privilegie uma estrutura de forças baseada em capacidades conjuntas e assentes num modelo de organização modular e flexível”. Na sua parte final, o CEDN de 2013, ao elencar os vetores e as linhas de ação estratégica e ao considerar a valorização dos recursos e das oportunidades nacionais, atribui uma particular ênfase ao investimento nos recursos marítimos. Começa por referir-se à posição geográfica específica de articulação intercontinental de Portugal, reconhecendo que nela se cruzam muitas das mais importantes rotas aéreas e marítimas mundiais. Aborda, depois, a delimitação da plataforma continental, que configura um território de referência do País, indissociável da sua dimensão marítima acrescida. Portugal dispunha, neste contexto, “de direitos soberanos na exploração e aproveitamento do elevado potencial dos seus recursos e assume responsabilidades e desafios num espaço que renova a sua centralidade geoestratégica”. Para desfrutar desta nova realidade, Portugal deveria apostar no conhecimento científico, incrementar a capacitação tecnológica, e defender a plataforma continental. Neste novo quadro, reforçou-se a posição do mar como um importante ativo estratégico, que, enquanto tal, não poderia deixar de estar inserido “numa perspetiva ampla de segurança e defesa nacional”. Segundo este Conceito, o primeiro objetivo de tal estratégia consiste em “manter uma capacidade adequada de vigilância e controlo do espaço marítimo sob responsabilidade nacional e do espaço marítimo interterritorial”. Seguem-se depois vários objetivos: de organização, de coordenação e de clarificação de competências e de racionalização dos meios das instituições envolvidas na vigilância e na assistência marítima; de prevenção e de reação a acidentes ambientais e a catástrofes naturais; de otimização da coordenação e da utilização dos meios de combate às atividades criminais efetuadas no mar; de adoção de políticas públicas de fomento da economia do mar; de aproveitamento e de utilização dos recursos marinhos da Zona Económica Exclusiva e da plataforma continental; de aposta na formação profissional e superior, na Investigação e Desenvolvimento na área das ciências do mar, e no desenvolvimento de uma consciência coletiva sobre a importância do mar como fator de poder nacional. Na sua parte final, o Conceito preocupou-se, ainda, com a renovação demográfica e com a gestão do envelhecimento; com a melhoria do sistema de justiça; com a valorização do conhecimento, da tecnologia e da inovação; e com o potencial dos recursos humanos e a valorização da língua e da cultura portuguesas, sendo aqui que o conceito se cruzou com as GOP e se assumiu como estratégia nacional do Estado. Na RAM, a operacionalização do CEDN, na componente militar, coube aos militares dos três ramos das Forças Armadas que servem a pátria; na componente civil, para além da preciosa ajuda dos militares, das forças de segurança e de outros serviços dependentes da Administração Central, a operacionalização do CEDN tornou-se também uma competência dos serviços regionais e das entidades privadas para tal vocacionadas.   Manuel Filipe Correia de Jesus (atualizado a 03.01.2017)

Direito e Política

ferraz, joão higino

Filho de João Higino Ferraz e neto de Severiano Alberto Ferraz, foi um destacado técnico e cientista do engenho Hinton entre 1888 a 1946, tendo sido o responsável por muitas das inovações introduzidas nos processos de produção de açúcar e de vinho. Palavras-chave: açúcar; vinho; engenhos; Hinton. Nascido no Funchal em 1863, é filho de João Higino Ferraz e neto de Severiano Alberto Ferraz (1792-1856), o primeiro a construir um engenho a vapor na ilha da Madeira, em 1856. Terá também sido o seu avô quem estabeleceu, entre 1848 e 1856, uma fábrica da família na Ponte Nova, onde João Higino começou a trabalhar e cuja direção assume em 1882. Era um jovem de 18 anos que se tornava responsável pela fábrica e que se manteve no cargo de direção até 1886, altura em que a família foi forçada a vender o edifício e os equipamentos em praça pública. Liquidada a fábrica, esteve dois anos sem emprego até que, em 1888, arrendou, em sociedade com o tio, João César de Carvalho, a fábrica de destilação da Ponte Deão, de Severiano Cristóvão de Sousa. No ano imediato, entrou para a fábrica do Torreão, da firma William Hinton & Sons, como técnico de fabrico de açúcar e álcool, assumindo a gerência industrial e técnica. Num manuscrito lavrado pela mão do próprio, João Higino Ferraz diz que, em 1900, assinou contrato com a fábrica do amigo Harry Hinton, a que ficou vinculado até à morte, em 1946. Todavia, e de acordo com o primeiro copiador de cartas, sabemos que estava ao serviço da firma desde 18 de outubro de 1898, como se pode confirmar pela carta enviada ao amigo e patrão Harry Hinton, solicitando a sua presença no engenho em construção para poder decidir sobre a forma de disposição das máquinas. No sentido de dar continuidade ao processo de modernização da fábrica do Torreão, esteve de visita aos complexos industriais franceses que laboravam a beterraba para o fabrico de açúcar. A visita foi proveitosa, refletindo-se nas modernizações do sistema do engenho de Hinton. Esta experiência terá sido importante para a saída que fez, em 1930, a Ponta Delgada (São Miguel), para dar alguns ensinamentos sobre o processo de fabrico de açúcar, nomeadamente a fermentação do melaço. Em julho de 1927, embarcou para o Lobito com Charles Henry Marsden (1872-1938), um engenheiro natural de Essex responsável pela modernização do engenho da casa Hinton, para montar uma estrutura mais moderna no engenho Cassequel, propriedade da casa Hinton. Aí permaneceu 103 dias, regressando ao Funchal a 13 de dezembro de 1928. O diário da saída, compilado numa agenda, documenta o processo de montagem da fábrica e as dificuldades de adaptação das peças ao conjunto da estrutura. Em 1945, lamentava-se: “sou pois técnico em fabricar açúcar e álcool, desde 1884 a 1945 = 61 anos. Não tenho direito a ter o título de técnico de fabricar açúcar e álcool oficialmente em Portugal? […] Desejava pois obter o título oficial de técnico de fabricar açúcar e álcool ou como técnico prático de fabricar açúcar e álcool” (FERRAZ, 2005b, 44). Mas acabou por morrer sem que fosse reconhecido o seu gigantesco trabalho como técnico, tendo sido a principal alma da permanente atualização tecnológica e química da fábrica do Hinton, que foi na época uma das mais avançadas tecnologicamente. A ideia está presente também no testemunho do próprio: “Nestes longos (60) anos assisti a variados sistemas de fabrico, desde quase do início de maneiras antigas no fabrico do açúcar de cana, destilação, etc., etc., acompanhando sempre os progressos nestas indústrias até hoje, principalmente desde 1900 a 1944, na fábrica do Torreão, onde pusemos em trabalho consecutivamente os sistemas os mais aperfeiçoados e mais modernos no fabrico de açúcar e álcool” (Id., 2005a, 39). Na correspondência com Harry Hinton, transparece uma perfeita sintonia entre os dois, que favoreceu o processo de permanente atualização tecnológica e química; partilhavam a mesma paixão pela indústria e desenvolvimento do engenho do Torreão. João Higino Ferraz não receia manifestar, diversas vezes, a amizade que o prende ao patrão. Em 1917, confessa: “Harry Hinton é um dos meus melhores amigos”. Passados 10 anos, confessa que a viagem a África sucedeu apenas “para ser agradável ao senhor Hinton a quem devo amizade e reconhecimento” (Id., Ibid., 40). João Higino Ferraz era o superintendente, mas acima de tudo um cientista que procurava aperfeiçoar os conhecimentos de química e tecnologia, através do confronto entre a literatura estrangeira e a sua capacidade inventiva. Manteve-se, assim, atualizado através da leitura de publicações, fundamentalmente francesas. Nos estudos, manifesta-se um cientista arguto que não detém a atenção apenas na cana sacarina, pois estuda e opina sobre o uso de outros produtos no fabrico de açúcar e álcool, como é o caso da batata e da aguardente.   Se confrontarmos a literatura científica mais significativa dessa altura, de finais do séc. XIX até à Segunda Guerra Mundial, verificamos que os conhecimentos e as técnicas mobilizados no engenho de Hinton são permanentemente atualizados e que se pautam por padrões de qualidade, integrando informações sobre os métodos mais avançados, como os estudos dos engenheiros químicos e industriais que marcaram o processo tecnológico do momento. Aliás, mantém contacto com inúmeras associações científicas europeias, como era o caso da Association des Chimistes de Sucrerie et de Distillerie. Na correspondência, surgem assiduamente nomes de cientistas europeus, como Barbet e Naudet. É de João Higino Ferraz o invento de um aparelho de difusão cujos direitos cedeu, em 19 de novembro de 1898, à firma William Hinton & Sons. Naquilo que resta da sua biblioteca, encontra-se um conjunto valioso de tratados de química e tecnologia relacionados com o açúcar. Sob a sua orientação, foram feitas várias experiências e adaptações dos sistemas tecnológicos importados. Em 1929, em carta ao amigo Avelino Cabral, que estava no Lobito, refere: “Como tenho tido tempo estou em estudos e experiências com o fermento Possehl’s no laboratório, e tenho obtido coisas bastante curiosas nas culturas feitas”. Ainda em carta ao mesmo refere a utilidade das inovações e experiências: “para que a parte comercial de uma indústria dê o resultado, é necessário ver também a parte industrial ou técnica” (Id., Ibid.). Apenas em 1922 temos informação de quanto auferia João Higino Ferraz pelos serviços prestados à fábrica Hinton. Para o novo contrato a celebrar reclamava 63 libras mensais, sendo o câmbio realizado mensalmente, ficando “com pulso livre para fazer e dirigir as minhas pequenas indústrias fora de açúcar, álcool e aguardente, não prejudicando por estes meus trabalhos a direcção técnica da fábrica de açúcar e álcool do Torreão” (Id., Ibid.). João Higino Ferraz fica para a história como um dos principais obreiros da modernização do engenho do Hinton ocorrida na primeira metade do séc. XX. Enquanto esteve à frente dos destinos da fábrica, de 1898 a 1946, foi imparável na sua adequação aos novos processos e inventos que iam sendo divulgados, não se coibindo mesmo de fazer algumas experiências com o equipamento e os produtos químicos. Opina sobre agronomia, bem como sobre mecânica e química, mantendo-se sempre atualizado sobre as inovações e experiências na Europa, nomeadamente em França. Da sua lista de contactos e conhecimentos fazem parte personalidades destacadas do mundo da química e da mecânica. Assim, para além dos contactos assíduos com Naudet, refere-nos com frequência os estudos de Maxime Buisson, M. E. Barbet, M. Saillard, F. Dobler, M. D. Sidersky, Luiz de Castilho, M. H. Bochet, M. Effort e M. Gaulet. À frente do engenho, a sintonia e empenho de Ferraz e Hinton fizeram com que a Ilha apresentasse, entre finais da centúria de oitocentos e inícios da seguinte, uma posição destacada no sector, atraindo as atenções a nível mundial. O Hinton acolhe especialistas de todo o mundo, na condição de visitantes ou como contratados para a execução dos trabalhos especializados. O Eng.º Charles Henry Marsden foi um deles, tendo aí trabalhado entre 1902 e 1937, altura em que saiu doente para Londres, onde faleceu no ano seguinte. A sua presença está documentada pelo menos em 1918, 1929 e 1931. Destaca-se também o Eng.º químico agrícola Maxime Buisson, que, em 1902, trabalhava no laboratório. Para o fabrico de açúcar, contratavam-se os afamados cuiseurs em França, de forma a seguir-se à risca as orientações de Naudet. O empenho de João Higino Ferraz não ficou por aqui, pois apostou também no processo de vinificação, âmbito no qual protagonizou algumas inovações que marcaram as primeiras décadas do séc. XX. A documentação disponível refere o seu empenho no processo de fabrico de vinho, aguardentes e outras bebidas, como a cidra, a cerveja e o vinho espumoso. A partir de 1905, J. H. Ferraz, a exemplo do que sucedeu com o fabrico do açúcar, manteve-se permanente atualizado sobre a tecnologia francesa de fabrico de todo o tipo de bebidas fermentadas e destiladas. São frequentes as referências a equipamentos franceses, bem como a um conjunto de títulos sobre o tema, de que era possuidor de alguns exemplares. Na déc. de 20, construiu uma vinharia onde foi possível montar o aparelho de evaporação Barbet e um moderno sistema de refrigeração. Ao nível da destilaria, devemos assinalar a sua presença em Almeirim, em 1916, para montar um aparelho francês. As experiências levaram-no a produzir cidra, cerveja e malte, e, com vinho branco, xarope de uva, vinho de mesa e espumoso – que chamava de “fantasia” para não se confundir com o francês –, vinagre, vinho cidre maltine, licores finos, anis escarchado e genebra, que vendia localmente e exportava para alguns mercados como a Alemanha. Por outro lado, tentou imitar os vinhos franceses, o sauterre e o champagne. Da sua lista de experiências, constam ainda as que fez para o fabrico de geleia de pêro, marmelada de bagaço de pero e fermento puro de uva para uso medicinal. Ferraz apostou, pois, no aperfeiçoamento do processo de vinificação, sendo a sua vinharia um exemplo disso. Neste contexto, fez diversas demonstrações sobre o uso dos processos Barbet e Sémichon, sendo defensor da necessidade da compra da uva ao agricultor, medida que contribuía para um maior aproveitamento das massas vínicas e para um maior cuidado no acompanhamento do processo de vinificação que defendia. Numa época em que o vinho jaquet, casta americana, dominava a produção, fez ensaios para o seu uso com o vinho Madeira e com o vinho de mesa para consumo local. Além disso, apresentou um vinho de mesa ligeiramente gasoso, pelo processo de M. Mercey, que, no seu entender, deveria competir com a cerveja. Sucede que, nas experiências de 1914, o vinho posto à venda não teve grande aceitação, porque as garrafas haviam perdido parte do gás carbono por causa da má qualidade da rolha. Mesmo assim, retoma essas experiências em 1927. J. H. Ferraz, a exemplo do que sucedeu com o conde de Canavial, bateu-se por mudanças radicais no processo de fabrico do vinho, apelando ao abandono das técnicas tradicionais a favor das vantagens das descobertas entretanto ocorridas na centúria de oitocentos no processo de vinificação, com os sistemas Barbet e Sémichon. Todas as experiências e ensaios eram sempre fundamentados com estudos científicos de carácter químico, nomeadamente franceses, e com a apresentação de equipamentos, maioritariamente com origem na tecnologia açucareira, que o mesmo adaptava, pelas suas próprias mãos, ao fabrico do vinho. A tudo juntava estudos minuciosos de viabilidade económica do novo produto, no sentido de convencer a Casa Hinton ou outros parceiros, mas o gosto madeirense não se mostrou favorável à novidade. Os conhecimentos adquiridos com o fabrico de açúcar no engenho do Hinton foram fundamentais para estes ensaios, mas o sucesso da iniciativa não foi coroado de êxito, pelo que acabará por abandonar esta atividade em 1942. O arquivo do engenho do Hinton é, por força das circunstâncias atrás descritas, fundamental para o conhecimento da história contemporânea da agricultura madeirense. Todavia, a forma conturbada como sucedeu o processo de desmantelamento da estrutura para a construção de um jardim público conduziu a que toda esta memória desaparecesse. Felizmente, tivemos a possibilidade de encontrar alguns testemunhos avulsos no arquivo particular de João Higino Ferraz. A documentação disponível, copiadores de cartas, livros de notas e apontamentos, constitui um acervo raro na história da técnica e da indústria. Não se conhecem casos idênticos de livros de apontamentos em que o técnico documenta, quase minuto a minuto, o que sucede na fábrica, desde os percalços do quotidiano às questões técnicas e laboratoriais. Para além disso, se tivermos em conta que a mesma documentação abrange um período nevrálgico da história de indústria açucareira, marcada por permanentes inovações no domínio da metalomecânica e da química, compreendemos claramente a importância deste tipo de espólio, que mais se valoriza pelo facto de ser, até aos começos do séc. XXI, o único divulgado e conhecido. O conjunto de nove livros referentes às cartas abarca um período crucial da vida do engenho do Hinton (1898-1937), marcado por profundas alterações na estrutura industrial, por força das inovações que iam acontecendo. A partir deste acervo de cartas, é possível conhecer tudo isso, mas também deduzir algo mais sobre o funcionamento desta estrutura. Ao mesmo tempo, ficamos a saber que João Higino Ferraz era, em Portugal, uma autoridade na matéria, prestando informações a todos os que pretendessem montar uma infraestrutura semelhante. Assim, em 1928, acompanhou a montagem do engenho Cassequel, no Lobito, onde a família Hinton tinha interesses, e esteve, em junho de 1930, em Ponta Delgada, nos Açores, a ensinar a fermentar melaço de açúcar de beterraba, na Fábrica de Santa Clara. Harry Hinton surge, em quase toda a documentação, como um interveniente ativo no processo, conhecedor das inovações tecnológicas e preocupado com o funcionamento diário do engenho, nomeadamente com a sua rentabilidade. J. H. Ferraz informava-o, de forma quase diária, de tudo o que se passava. A proximidade do Funchal aos grandes centros de decisão e inovação tecnológica da produção de açúcar a partir de beterraba, na França e Alemanha, associados aos contactos de H. Hinton e ao seu espírito empreendedor fizeram com que a Madeira estivesse na primeira linha da utilização da nova tecnologia. Em 1911, documentam-se diversas experiências com equipamento. Além disso, funcionava como espaço de adaptação da tecnologia de fabrico de açúcar a partir da beterraba para a cana sacarina. Daí as diversas deslocações de J. H. Ferraz a França (1904 e 1909) e os permanentes contactos com alguns estudiosos e fábricas. Tenha-se em conta que o mesmo era sócio da Association des Chimistes em França, sendo por isso leitor assíduo do seu Bulletin. Por outro lado, alguns inventores, como Naudet e engenheiros de diversas unidades na América (Brasil e Tucuman), Austrália e África do Sul, estavam em contacto com a realidade madeirense, fazendo, por vezes, deslocações para estudar o caso do engenho madeirense. A erudição de J. H. Ferraz era vasta, dominando toda a informação que surgia sobre aspetos relacionados com o processo industrial e químico do fabrico do açúcar. Para além da leitura do Bulletin de l’Association des Chimistes, temos referências à leitura do Journal de Fabricants de Sucre, e podemos documentar na sua biblioteca a existência de diversas obras da especialidade, muitas delas referenciadas nos livros de notas ou cartas. Aliás, nas cartas que manda a Harry Hinton quando este se encontra no estrangeiro, pede-lhe frequentemente publicações recentes. O corpo documental provém do arquivo privado de João Higino Ferraz e pode ser seccionado em três partes fundamentais: uma primeira constituída por nove copiadores de cartas; uma segunda formada por vários volumes de livros de notas; e, por fim, documentação avulsa. Esta organização do arquivo pessoal de J. Higino Ferraz é, de certa forma, artificial, dado que não foi feita pelo autor; trata-se de uma elaboração arquivística, que decorre da análise do conteúdo e da tipologia dos vários documentos que o compõem. A primeira parte, composta por nove livros onde Higino Ferraz conservou, em cópia, muita da correspondência por si remetida, e não só, cobre o período de 1898 até 1937, com um hiato temporal provavelmente entre finais de 1913 e inícios de 1917, e outro possivelmente de janeiro a outubro de 1919. Julgamos que estas lacunas estariam contempladas em dois volumes autónomos; contudo, se existiram, esses livros não ficaram para a posteridade. A designação “copiador de cartas” foi adotada devido ao facto de os dois primeiros livros, que cobrem o período de 1898 a 1913, terem esse título na capa – não aposto por João Higino Ferraz, mas como denominação da finalidade dos volumes. Entendeu-se por bem atribuir a mesma designação a todos os livros, seguida da referência aos lapsos de tempo que abarcam. Cumpre ainda acrescentar que nem toda a correspondência remetida por João Higino Ferraz está presente nestes livros e que nem toda a documentação neles inserida é composta por epístolas. Ver-se-á que de algumas cartas enviadas, sobretudo as datilografadas, guardou o autor cópia sob a forma avulsa, estando as mesmas – aquelas a que tivemos acesso – transcritas na secção da documentação avulsa. Fizemos preceder cada carta transcrita de uma informação sumária concernente à data, ao destinatário e ao local, quando possível, para permitir uma mais rápida perceção por parte do leitor. Ao longo da transcrição, demo-nos conta de que alguma informação exarada nos copiadores não era, com efeito, composta por epistolografia, mas sim por relatórios, cálculos, estimativas de produção, lucros e despesas, etc. Antepusemos a cada um dos informes deste teor a menção à sua data e ao se destinatário, se conhecido fosse, e uma breve caracterização. Uma segunda secção deste espólio documental transcrito é constituída por anotações e apontamentos vários – inscritos em livros autónomos –, versando sobre produtos, processos, aparelhos e técnicas industriais de produção, bem como sobre a transformação de açúcar, álcool e aguardente; quase todos estes volumes têm título atribuído por João Higino Ferraz, que é respeitado e aceite por nós. Ainda que algo artificial, a denominação dada a este conjunto, “livros de notas”, advém dos próprios títulos atribuídos pelo autor. A última secção é constituída por documentação avulsa, abarcando: documentos epistolares, saídos do punho de Higino Ferraz (particularmente cópias de cartas) ou tendo-o como destinatário (sendo seus autores, por exemplo, Harry Hinton, Marinho de Nóbrega ou Antoine Germain); documentos referentes a aparelhos, processos e técnicas de fabrico e transformação de açúcar, álcool e aguardente (à imagem da informação exarada nos livros de notas); anotações manuscritas que João Higino Ferraz lançou nos forros da capa ou folhas de guarda de alguns livros ou manuais por si usados, que versavam sobre a cultura e produção de cana sacarina e seus derivados; e, ainda, apontamentos autobiográficos. Dividimos esta documentação em duas subsecções: a primeira, composta por todos os documentos que têm por autor Higino Ferraz; a segunda, por todas as fontes que foram produzidas por outros indivíduos. O arquivo privado deste técnico açucareiro, que morre em 1946, permite-nos, pois, ter acesso a informações que ilustram vários aspetos da sua vida pessoal e familiar, nomeadamente as suas condições de vida, relações de amizade e conceções políticas, sociais e económicas. Ao mesmo tempo, esta documentação reveste-se de especial interesse para a história da Madeira da primeira metade do séc. XX, sobretudo no que respeita à história da indústria açucareira nas suas vertentes económica, social e técnica, mas também nos seus meandros e implicações políticas.   Alberto Vieira (aualizado a 06.01.2017)

Física, Química e Engenharia História Económica e Social Personalidades

coper, kurt

Professor de química alemão de origem judaica que trabalhou no Laboratório de Química da Universidade de Coimbra no período entre 1929 e 1938. Nessa altura mudou-se para o Funchal, onde trabalhou na indústria vinícola antes de emigrar para os EUA. Fez parte de um grupo de sábios judeus que muito poderia ter contribuído para o desenvolvimento do país, não fosse Portugal não os ter sabido fixar durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda que não se conheça bem a sua biografia, sabe-se que nasceu em Berlim em 1903 e que estudou na Universidade de Berlim onde se doutorou. Nos anos 20, trabalhou em colaboração com um eminente químico alemão da área dos coloides, o Professor Herbert Freundlich (1880-1941), no Kaiser Wilhelm Institute para Química-Física e Eletroquímica, em Berlin-Dahlem, no âmbito da química dos coloides. Em 1929, Coper candidatou-se ao lugar de professor no Laboratório Químico da Universidade de Coimbra. Nessa cidade, foi colega de um outro alemão que trabalhava ao lado, no Laboratório de Física, Walter Wessel. Em Coimbra, ensinou como professor, primeiro contratado e depois auxiliar, Noções Gerais de Química Física (1931-1933 e 1937-1938), Química (1933-1937) e Química Orgânica (1937-1938). Até 1938, Coper continuou em Coimbra a sua investigação em coloides, em particular sois e géis, tendo publicado três artigos científicos, um deles resultante da colaboração com Freundlich: “The Formation of Tactoids in Iron Oxide Sols”, Transactions of the Faraday Society (1937) (o endereço do primeiro era o Laboratório Químico de Coimbra e o do segundo The Sir William Ramsay Laboratories of Inorganic and Physical Chemistry, University College, em Londres, uma vez que Freundlich tinha abandonado a Alemanha em 1933 como muitos outros cientistas). Foi na Lusa Atenas que Coper encontrou a sueca Ruth Hildur Bugner, com quem casou em 1935. Um tanto ou quanto inesperadamente, talvez receando medidas discriminatórias contra judeus, Coper demitiu-se, a 10 de março de 1938, do seu lugar na Universidade de Coimbra para embarcar para a ilha da Madeira com a sua esposa. Aí permaneceu até ao final da Segunda Guerra Mundial, trabalhando numa empresa de vinhos de proprietários judaicos, a Leacock’s (posteriormente associada com a Blandy na Madeira Wine Company). Foi também na Madeira que nasceu o seu filho Gunnar. Aparentemente, não desenvolveu atividade científica na Ilha, o que aliás seria difícil naquela época. No fim da guerra, emigrou para Filadélfia, nos EUA, tendo morrido com 62 anos num hospital de Livingston, New Jersey, em 1966. Trabalhou como engenheiro químico para a empresa Hepco Inc., embora não se conheça bem a atividade que desenvolveu nos EUA. Gunnar Coper deixou, em 2011, num boletim de uma igreja presbiteriana norte-americana (Collenbrook United Church, em Filadélfia), um depoimento onde faz um resumo da história do seu pai: “Em 1 de setembro, deflagrou a Segunda Guerra Mundial. Nos próximos seis anos, ficámos retidos na ilha da Madeira; Meu pai, sem cidadania, minha mãe, fora da Suécia, e eu num limbo. Não era nem sueco, nem alemão, nem reconhecido como português. [...] Os meus pais estavam preparados para morrer, mas para me salvarem fizeram um acordo com uma família portuguesa segundo o qual ela me aceitava como membro. A guerra finalmente acabou e os meus pais decidiram que era hora de partir. Para onde? Para os Estados Unidos” (COPER, 2011, 4).   Carlos Fiolhais (atualizado a 31.12.2016)

Física, Química e Engenharia Personalidades

domínio marítimo

O domínio público marítimo distingue-se de outras formas de domínio hídrico com base no seu conteúdo e extensão (nos bens que integram o domínio marítimo). De acordo com a lei em vigor, o domínio público marítimo é sempre da titularidade do Estado, embora se deva atender às especificidades regionais quanto à sua delimitação nas regiões autónomas e se admita o reconhecimento de propriedade privada em alguns casos. Durante muito tempo, os órgãos de governo da Região Autónoma da Madeira defenderam que o domínio marítimo constituía domínio regional. Todavia, a jurisprudência do Tribunal Constitucional afastou reiteradamente esse entendimento. No texto, distingue-se ainda a titularidade e o exercício de poderes dominiais, sublinhando que a jurisprudência constitucional admite o exercício de poderes secundários dominiais pela Região Autónoma da Madeira (v.g., através da atribuição de licenças e concessões de utilização privativa) mas não de poderes primários dominiais (v.g., desafetação). Palavras-chave: domínio marítimo; jurisprudência; lei; Região Autónoma da Madeira. A Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976, após a revisão constitucional de 1989, incluiu no art. 84.º, n.º 1, uma enumeração, não exaustiva, dos bens do domínio público, individualizando alguns bens que integram necessariamente o domínio público, e que são, assim, bens de domínio público ex constitutione, como é o caso do domínio público hídrico, tal como concretizado na alínea a) deste preceito: “as águas territoriais com seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos”. O art. 84.º, n.º 2, se é certo que reconhece que as regiões autónomas, o Estado e as autarquias locais são titulares do domínio público, não procede a qualquer delimitação do seu âmbito, remetendo tal tarefa para ato legislativo dos órgãos de soberania. O domínio público hídrico é um conceito amplo que abrange quer as águas dominais  quer os terrenos que se encontram estreitamente relacionados com as águas públicas, “abrangendo os respetivos leitos e margens, zonas adjacentes, zonas de infiltração máxima e zonas protegidas” (art. 1.º, n.º 1, da lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, que regula a titularidade dos recursos hídricos). Dentro da categoria mais vasta do domínio público hídrico, o art. 2.º, n.º 1, do mesmo diploma distingue: (i) o domínio público marítimo; (ii) o domínio público fluvial; (iii) o domínio público lacustre; (iv) o domínio público das restantes águas. Nos termos previstos no art. 3.º, o domínio público marítimo integra no seu âmbito: as águas costeiras e territoriais; as águas interiores sujeitas à influência das marés, nos rios, lagos e lagoas; os fundos marinhos contíguos da plataforma continental, abrangendo toda a zona económica exclusiva e as margens das águas costeiras e das águas interiores sujeitas à influência das marés. Importa frisar que o art. 3.º da lei n.º 54/2005 adota uma interpretação muito ampla de domínio público marítimo, uma vez que a doutrina, louvando-se no direito internacional do mar, distingue: (i) os direitos do Estado sobre parcelas do território terrestre ou bens nele existentes, que apresentam maior similitude com o direito de propriedade, embora submetidos ao direito público (regime do domínio público e do domínio privado), e assentam numa ideia de exclusividade e exclusão de atividades exercidas por terceiros, nomeadamente a de terceiros Estados sobre o mesmo espaço, salvo a atribuição de uma concessão nesse sentido; (ii) os direitos dos Estados costeiros relativamente ao espaço marítimo sob jurisdição ou soberania nacional (as águas interiores, o mar territorial, a zona contígua, a zona económica exclusiva e a plataforma continental) que, tal como sucede com o espaço aéreo, constitui um espaço indeterminado, insuscetível, portanto, de ser objeto de direitos de propriedade, mas apenas de direitos dominiais, resultantes da jurisdição incluída no senhorio da entidade soberana sobre o território onde tem assento (domínio eminente), o que implica a necessidade da sua harmonização com os poderes de todos os outros Estados, nomeadamente com o princípio da liberdade do alto mar ou do direito de passagem inofensiva. Todavia, o Estado exerce soberania territorial sobre as águas interiores, i.e., as águas situadas no interior das linhas de base do mar territorial, nos termos do art. 2.º e art. 8.º da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982, que beneficiam, por conseguinte, de um estatuto jurídico equivalente àquele que o Estado exerce sobre o território terrestre (lei n.º 17/2014, de 10 de abril que aprova as bases da política de ordenamento e de gestão do espaço marítimo nacional, e lei n.º 34/2006, de 28 de julho, que disciplina a extensão das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e os poderes que o Estado português nelas exerce, bem como os poderes exercidos no alto mar). Os recursos hídricos foram, durante muitos anos, disciplinados por legislação dispersa e manifestamente desatualizada (v.g., dec. n.º 5787-41, de 18 de maio de 1919 e dec.-lei n.º 468/71, de 5 de novembro). Durante a vigência do estatuto provisório da Região Autónoma da Madeira (RAM), aprovado pelo dec.-lei n.º 318-D/76, de 30 de abril, o art. 60.º estipulava que integravam o património da Região os bens do extinto distrito autónomo, os que por ela vierem a ser adquiridos e os que vierem a ser definidos no estatuto definitivo. Todos os bens não incluídos nesta disposição mantinham-se, assim, na titularidade do Estado. O Estatuto Político-Administrativo da RAM, aprovado pela lei n.º 13/91, de 5 de junho, alterado pela lei n.º 130/99, de 21 de agosto, e lei n.º 12/2000, de 21 de junho, consagrou um princípio radicalmente oposto, sendo a regra a de que todos os bens de que o Estado é titular, quer do domínio público, quer do domínio privado, desde que situados na RAM, se integram no domínio público regional, com ressalva das situações excecionadas. Com efeito, o art. 144.º do Estatuto, sob a epígrafe “Domínio público”, estabelece o seguinte: “1. Os bens do domínio público situados no arquipélago, pertencentes ao Estado, bem como ao antigo distrito autónomo, integram o domínio público da Região. 2. Excetuam-se do domínio público regional os bens que interessem à defesa nacional e os afetos a serviços públicos não regionalizados, desde que não classificados como património cultural”. Consagrou-se assim o princípio da tendencial titularidade regional dos bens do domínio público e do domínio privado situado na RAM. Assim sendo, os bens que são classificados por lei como integrando o domínio do Estado serão, em princípio, bens do domínio público regional por força do princípio estabelecido no art. 145.º dos Estatutos (v.g., bens elencados no dec.-lei n.º 477/80, de 15 de outubro, que procede ao inventário dos bens do domínio público e privado do Estado). Todavia, a cláusula aberta de dominialidade pública regional consagrada no art. 144.º do Estatuto tem suscitado complexas e intrincadas dificuldades interpretativas, tendo presente que a doutrina e a jurisprudência constitucional têm preconizado a necessidade de uma interpretação desta disposição conforme com a Constituição, no sentido de admitir que existem bens essenciais ao exercício das funções soberanas para lá dos bens que interessem à defesa e dos bens afetos a serviços públicos não regionalizados e que não podem deixar, sob pena de inconstitucionalidade, de se encontrar integrados no domínio público do Estado. A questão colocou-se sobretudo no que concerne ao domínio público marítimo, tendo presente que o art. 3.º dos Estatuto Político-Administrativo da RAM prescreve, sob a epígrafe “Território”, que o “arquipélago da Madeira é composto pelas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Desertas, Selvagens e seus ilhéus” (n.º 1), abrangendo ainda a Região Autónoma da Madeira “o mar circundante e seus fundos, designadamente as águas territoriais e a zona económica exclusiva, nos termos da lei” (n.º 2). Na vigência do dec.-lei n.º 468/71, de 5 de novembro, o art. 5.º, n.º 1 deste diploma considerava como domínio público do Estado os leitos e margens das águas do mar, além de outras águas e leitos e margens, na esteira, aliás, do entendimento preconizado pela comissão do domínio público. Os órgãos de governo próprios da RAM – invocando a necessidade de uma interpretação atualista desta disposição, conforme ao reconhecimento da autonomia político-administrativa das regiões autónomas pela Constituição de 1976 e sua conjugação com o disposto no art. 144.º do Estatuto Político-Administrativo da RAM, lei dotada de valor reforçado – sustentaram que o domínio público hídrico, inclusive o domínio público marítimo, integrava o domínio público regional, salvo quando existisse um ato expresso de afetação de bens nele integrados à defesa nacional. No pólo oposto, o Tribunal Constitucional tem firmado jurisprudência constante e reiterada no sentido de que não é “constitucionalmente possível integrar o domínio público marítimo no domínio público da Região” (ac. 330/99, de 1 de julho), não sendo possível sequer a sua “transferência para os Governos Regionais”, desde logo “por força do princípio da unidade do Estado e da obrigação que lhe incumbe de assegurar a defesa nacional” e ainda por se tratar de bens que integram o “domínio público necessário do Estado” (ac. 131/2003) “por imperativo constitucional, atenta a sua incindível conexão com a identidade e a soberania nacionais” (ac. 402/2008). O domínio público marítimo é considerado, assim, um “domínio público material” ou “domínio público por natureza” ou “domínio público necessário” por se referir a bens que se encontram intrinsecamente relacionados com a integridade territorial, a identidade e a própria sobrevivência do Estado em sentido amplo e, como tal, devem, pela própria natureza das coisas, estar sujeitos a um regime de dominialidade pública, independentemente de qualquer previsão constitucional ou legal nesse sentido. Já o domínio público lacustre e fluvial tanto pode ser da titularidade do Estado, das regiões autónomas ou das autarquias locais (art. 6.º da lei n.º 54/2005, de 15 de novembro). As águas e os terrenos que não são incluídos no domínio público hídrico (“recursos hídricos”) são qualificados como “recursos patrimoniais” e integram a propriedade privada das entidades particulares ou o domínio privado das entidades públicas (art. 1.º, n.º 2 do mesmo diploma). Registe-se, a este propósito, que nos termos previstos no art. 15.º, que foi alterado pela lei n.º 34/2014, de 19 de junho, se admite o reconhecimento de propriedade privada ou posse sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, sendo a competência confiada aos tribunais comuns. Por outro lado, a largura da margem das águas do mar, definida como uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas, se, por regra, é fixada em 50 m (art. 11º, n.º 2), ou em largura superior quando tiver natureza de praia, estendendo-se até onde o terreno apresentar tal natureza (art. 11.º, n.º 4), é fixada, nas regiões autónomas, tendo presente a sua específica orografia, em largura inferior sempre que a margem atingir uma estrada regional ou municipal existente (art. 11.º, n.º 7). A lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, consagra que a titularidade do domínio público marítimo pertence sempre ao Estado (art. 4.º), na esteira da jurisprudência e doutrina constitucional. A lei não reconhece, por conseguinte, um domínio marítimo regional, estabelecendo a titularidade exclusiva do Estado. Trata-se de um entendimento que tem largo apoio nas experiências regionais de direito comparado. Em Espanha, o artigo 132.º, n.º 2, da Constituição de 1978 é claro e inequívoco ao determinar que “são bens de domínio público estatal os que a lei determinar e, em todo o caso, a zona marítimo-terrestre, as praias, o mar territorial e os recursos naturais da zona económica e da plataforma continental”. O art. 14.º do Estatuto da Sardenha, região dotada de autonomia político-administrativa face ao Estado italiano, estabelece que “a região no quadro do seu território sucede nos bens e direitos patrimoniais do Estado de natureza imobiliária e nos bens dominiais com exceção do domínio marítimo”. O art. 32.º do Estatuto da Sicília, região autónoma italiana e que foi a fonte inspiradora dos estatutos das nossas regiões autónomas, determinava que “os bens dominiais do Estado, compreendendo as águas públicas existentes na região, são atribuídas à região, com exceção dos que interessem à defesa nacional ou a serviços de carácter nacional”. A Corte Constituzionale acabou por decidir que, apesar de o domínio público marítimo não ser expressamente excecionado no teor literal do referido preceito do âmbito domínio da Sicília, deveria ser dele excluído dado que se trata de um bem que interessa manifestamente à defesa nacional, no que foi secundada pela doutrina e pelo Conselho de Estado italiano, que se pronunciou no sentido de todo o domínio marítimo interessar a serviços de carácter nacional e, como tal, deveria ser excluído do domínio regional. Aliás, o art. 22.º, n.º 3, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, aprovado pela lei n.º 39/80, de 5 de agosto, alterada pela lei n.º 9/87, de 26 de março, lei n.º 61/98 de 27 de agosto e lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro, é perentório no reconhecimento da natureza estadual do domínio público marítimo, excetuando do domínio público regional “os bens afetos ao domínio público militar, ao domínio público marítimo, ao domínio público aéreo e, salvo quando classificados como património cultural, os bens dominiais afetos a serviços públicos não regionalizados” . No que respeita à delimitação dos bens integrados no domínio público marítimo, de titularidade estatal, o entendimento da jurisprudência constitucional tem sido no sentido de abranger tanto as águas marítimas (quer costeiras, quer territoriais, quer as águas interiores sujeitas à influência das marés) quer as respetivas margens (faixas de terreno contíguas ou sobranceiras à linha que limita o leito das águas), pelo que podemos concluir que a disciplina da lei n.º 54/2005, também neste particular, se limita a concretizar aquela linha jurisprudencial (acs. do Tribunal Constitucional n.º 280/90, n.º 330/90, n.º 315/2014, e, em especial, ac. n.º 131/2003 e ac. n.º 654/2009). Com efeito, inclusive no âmbito do domínio público portuário que constitui pacificamente domínio público regional (dado o facto de o art. 4.º, alínea e) do dec.-lei n.º 477/80, de 15 de outubro qualificar os “portos artificiais e docas” como bens do domínio público do Estado e a tendencial titularidade regional dos bens do domínio público situados nas regiões autónomas), assiste-se a uma interpretação jurisprudencial restritiva do conceito de “porto artificial e doca”, circunscrevendo-se o domínio público portuário aos edifícios e infraestruturas de apoio à atividade portuária, com exclusão dos terrenos em que tais edifícios assentam, que integram exclusivamente o domínio público marítimo. Solução que não é evidente atendendo a que o domínio público portuário constitui um conceito autónomo do domínio hídrico e que constitui uma das modalidades do domínio público infraestrutural, que compreende a universalidade ou o conjunto de bens (a rede de infraestruturas) que são qualificadas como dominiais, por opção legislativa, por se destinarem a prosseguir uma finalidade unitária e constituírem o suporte físico artificial do desenvolvimento de determinadas atividades ligadas ao exercício de serviços públicos essenciais. No ac. n.º 654/2009, de 12 de fevereiro de 2010 (processo n.º 668/06), o Tribunal Constitucional rejeitou a tese de que os terrenos em torno dos cais e portos constituiriam bens da Região pelo facto de os portos e cais serem domínio público daquela e tais terrenos constituírem, em conjunto com eles, uma universalidade pública. Procedeu-se, nesta sede, a uma relevante distinção entre a titularidade e a gestão dos bens do domínio público, afirmando-se que a “unidade funcional de um determinado conjunto de bens pode justificar que a gestão da sua utilização caiba a uma só entidade, mas não implica necessariamente a unidade da titularidade dominial do complexo de bens que o integram”. A não regionabilidade da titularidade do domínio público marítimo integrante ou circundante da área territorial das regiões autónomas não arrasta consigo, como consequência forçosa, a insusceptibilidade de transferência de certos poderes contidos no domínio. No ac. n.º 402/2008 do Tribunal Constitucional, na linha do que já era defendido pela Comissão do Domínio Público Marítimo (parecer n.º 5945, de 18/01/2002) esclareceu-se que, desde que “mantida incólume a titularidade do Estado”, estão “constitucionalmente legitimadas formas dúcteis de exploração e rendibilização dos bens dominiais, em cuja definição tenham um papel relevante os poderes regionais”. Uma tal opção encontra apoio claro nos fundamentos e objetivos da autonomia traçados no artigo 225.º, em particular nos objetivos de “desenvolvimento económico-social” e no de “promoção e defesa dos interesses regionais” (n.º 2 do citado artigo). Como decorre inequivocamente da jurisprudência constitucional, mormente do ac. 654/2009, o “ente territorial não titular de determinados bens do domínio público, quando estes se encontrem no seu território […] pode exercer poderes dominiais secundários (concessão ou licença de exploração e uso privativo), mas já não poderes primários (desafetação)”. Já no acórdão n.º 315/2014, esclarece-se que o “reenvio que o artigo 84.º da CRP faz para lei, quanto à definição dos bens integrantes do domínio público, bem como do seu regime, condições de utilização e limites (alínea f) do n.º 1 e n.º 2), consente a separação entre titularidade e o exercício dos poderes característicos do estatuto da dominialidade, o que significa, por outras palavras, que a titularidade do domínio não engloba necessariamente todos os poderes de gestão do bem dominial”. Importa assim distinguir: (i) os poderes primários, i.e., “aqueles que apenas podem ser exercidos pelo titular dominial, sob pena de não se assegurar o fim público a que direta e permanentemente estão destinados”, sendo que, relativamente ao “domínio público marítimo são intransferíveis os poderes que respeitem à integridade e soberania do Estado ou os poderes que sejam incompatíveis com a integração dos bens em causa nesse domínio, designadamente os poderes de manutenção, delimitação e defesa do domínio”, mormente os poderes de desafetação do domínio público marítimo; (ii) os poderes secundários, i.e., aqueles que “podem ser exercidos por entidades diferentes do respetivo titular, sem se comprometer aquela finalidade”, nos quais se integram os poderes de “gestão do bem dominial, incluindo o seu aproveitamento ou utilização” relativamente aos quais não há impedimento a que sejam dissociados “do titular do domínio e confiados a outras pessoas coletivas públicas ou a particulares, designadamente concessionários”. Esta separação entre a titularidade e o exercício de poderes de administração sobre os bens do domínio público hídrico está, aliás, expressamente consagrada na lei 54/2005, de 15 de novembro, onde se dispõe que “a jurisdição do domínio público marítimo é assegurada, nas regiões autónomas, pelos respetivos serviços regionalizados na medida em que o mesmo lhes esteja afeto” (art. 28.º, n.º 2).   Ana Gouveia Martins (atualizado a 02.01.2017)

Direito e Política

teatro, história do

Em Portugal até ao séc. XV circunstâncias de ordem política e social fazem da poesia dramática uma forma acidental de arte e inibem a cultura e os costumes tradicionais destinados ao povo. No séc. XVI a Igreja permite que o povo participe na liturgia, cujas formas são essencialmente dramáticas. Estas mantêm-se assim unidas aos costumes e festas populares, dando seguimento a uma corrente oposta à da erudição humanista da Renascença que valorizava as comédias clássicas. Com o surgimento de povoadores na ilha, como o moçárabe, a poesia de reminiscências medievais, une-se ao figurado e à melopeia das composições árabes, caracterizando os primeiros esboços de arte referidas pelos autores. No séc. XVII, o teatro assume um papel de diversão e de reflexão crítica e nos séculos seguintes são fluentes os nomes de autores naturais da ilha ou que por ela tenham passado. No séc. XIX as publicações dedicadas ao teatro multiplicam-se, dado o impacto que têm na sociedade. Palavras-chave: teatro, drama, poesia dramática, liturgia cristã, povo, costumes, festas populares, Renascença (da Itália), comédias clássicas, povoadores, moçárabe, poesia de reminiscências medievais, composições árabes. O texto dramático integra-se no modo literário do drama. É constituído por um texto principal e por um texto secundário; enquanto o primeiro contém réplicas, atos linguísticos realizados pelas personagens, o segundo é formado por didascálicas ou indicações cénicas. No texto dramático monológico, apesar de não existirem réplicas, os elementos dialógicos podem estar presentes de forma implícita ou latente. Desprovido de narrador, a ação subordina-se às exigências do conflito, o tempo é relativamente condensado, o espaço é rarefeito, as personagens supérfluas são eliminadas e os episódios laterais são abolidos, dado destinar-se a ser representado e encenado por atores que, no palco, são peças fundamentais. O teatro tem origem na Grécia antiga, nas homenagens religiosas ao deus Dionísio. Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, Aristófanes e Antífanes figuram entre os principais autores dramáticos deste período. A comédia, a tragédia, a tragicomédia, o auto e a farsa são as espécies que representam o género e prosperam ao longo dos séculos. A comédia tem o quotidiano como temática, satirizando os defeitos humanos e a sociedade em geral. Aristóteles defendia que era a imitação de seres humanos inferiores, não quanto a toda a espécie de vícios, mas apenas quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. As personagens eram estereótipos das debilidades humanas, como o rabugento, o avaro, o apaixonado e o mesquinho; clichês que se disseminam pela história, principalmente na Europa. A estrutura consiste numa situação inicial complicada, que finaliza bem. Ainda do ponto de vista de Aristóteles, a tragédia, imitação de uma ação de carácter elevado, suscita o terror e a piedade, e tem como objetivo a purificação das emoções. Tem um carácter mais sério e solene, e personagens humanas pertencentes às classes nobres, como reis e príncipes, que sofrem às mãos dos deuses e do destino. A estrutura parte de uma ação inicial feliz, que tem um final trágico. A temática é baseada no sofrimento e no infortúnio do protagonista. A tragicomédia é uma obra dramática que matiza elementos trágicos e cómicos ou risíveis. Aristóteles é também um dos primeiros pensadores a utilizar o conceito, salientando que os dois géneros utilizam na sua composição a mesma métrica, os mesmos cantos e os mesmos ritmos. O auto é uma peça curta, geralmente de conteúdo religioso ou profano e, sobretudo, simbólico, uma vez que as suas personagens não são humanas, mas entidades abstratas, como a hipocrisia, a bondade, a luxúria, a virtude, entre outras. É representado por ocasião das grandes festas religiosas, nos pátios ou no interior das igrejas, e muitas vezes nas praças. A farsa, surgida por volta do séc. XIV, é normalmente uma pequena peça teatral, que tem como objetivo satirizar os costumes e despertar o riso por meio da representação de situações ridículas, grotescas ou engraçadas. Na verdade, para António de Sousa Bastos, atendendo à etimologia, drama é toda a obra teatral, trágica, dramática, cómica ou burlesca; o termo evoluiu semanticamente, passando a designar qualquer peça teatral, em prosa ou verso, que constitua um meio-termo entre a tragédia e a comédia. Embora sério na essência, o drama admite todo o género de personagens e exprime toda a sorte de sentimentos. As peças dramáticas possuem um carácter comovedor e uma forma mais familiar do que a tragédia, mas aproximam-se dela pela natureza e complicação dos acontecimentos, tirando da comédia os seus processos de intriga, a linguagem natural e a cópia dos costumes e situações vulgares da vida. De modo mais preciso, António Sousa Bastos diz-nos o seguinte: “A peça literária é aquela cuja forma, mais ou menos teatral, é todavia primorosa no conceito, nos caracteres e especialmente na linguagem” (BASTOS, 1994, 84). É precisamente este conceito de peça que envolve o de literatura dramática. Deste modo, a representação teatral é inseparável de uma literatura que lhe dá corpo e que é a matéria que a sustenta. Em Portugal, mormente na Madeira, a literatura dramática acompanha a história da nação. Uma vez que circunstâncias de ordem política e social fazem da poesia dramática uma forma acidental de arte e inibem a cultura e os costumes tradicionais destinados ao povo, pode afirmar-se que, até ao séc. XV, a fórmula de Shakespeare, “the form and pressure of the times” [a forma e a pressão dos tempos] não se aplica à realidade portuguesa. À medida que o elemento moçárabe que compõe a raça portuguesa perde relevância, o fisco, a enfiteuse manuelina, os dízimos, os exércitos permanentes, as ordens mendicantes, a desigualdade social e o fanatismo religioso dificultam a subsistência da classe social mais baixa e a sua arte espontânea e criadora. O elemento aristocrático ou leonês, que compõe a linha de fronteira entre Espanha e Portugal, vive na ociosidade da corte e promove passatempos nas festas reais, uma moda seguida na Europa, que os monarcas portugueses se prezam de imitar; condicionalismos que projetam as principais tradições da nação para as páginas das crónicas monásticas. O povo não as conhece, de modo que Portugal quase fica sem festas nacionais. Os ensaios dramáticos surgem a partir das tradições épicas da Idade Média de dois dialetos franceses, frequentemente chamados línguas do sim, a língua d’ oil e d’oc (“oc” significava “sim” no sul de França e “oil” tinha o mesmo significado no norte). A língua d’ oil vulgariza o nome de Bon Amis entre o povo. D. Sancho I concedeu o feudo de umas terras do Douro a um farsante ou bobo chamado Bonamis, a seu irmão, Acompaniado, e aos descendentes. Segundo Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo foi precisamente um serviço feudal grotesco que fez com que aparecesse em Portugal a palavra “arremedilho” que o estudioso interpreta como uma espécie de farsa mímica, “farsas em miniatura, dotadas de música e, sobretudo, de um ‘texto’ escrito segundo o esquema do contraste, pelo que a recitação deveria ser confiada a um par de atores pelo menos” (PICCHIO, 1964, 33); “embora, arrimidilum, longe de ser sinónimo de entremez ou farsa e de provar a vetusta existência de um ‘género’ típico da tradição dramática portuguesa, equivalia, pelo contrário, [...] a ‘imitação burlesca’ prometida ao soberano por jograis remedadores, isto é, por bobos cuja especialidade consistia em ridicularizar o próximo macaqueando-lhe o semblante” (Id., Ibid., 33-34). O conceito de bonifrates enraíza nesta época. Foi pela influência da língua d'oc na aristocracia portuguesa que nos primeiros séculos da monarquia se conheceram as “cortes de amor”, que têm vagas analogias com os espetáculos cénicos. No Cancioneiro da Ajuda, que exclui os géneros mais vulgares, nas cantigas de escárnio e de maldizer, existem versos que aludem àquelas “cortes”, ao debate entre damas e cavaleiros de uma casuística sentimental, de que são exemplo os seguintes: “E vej'a muitos aqui razoar / Que a mais grave coita de soflrer / Veela ome, e ren non lhe dizer, etc.” (BRAGA, 1870, 6). Por seu turno, o povo desconhece essa poesia subtil e canta as suas prosas e hinos farsis na liturgia cristã, até que a pressão do catolicismo lhe impõe silêncio. O espírito aristocrático procura banir o costume simples e natural do vulgo e proíbe uma poesia dramática arreigada a costumes populares. Deste modo, no séc. XVI, ao contrário do que se passa na centúria anterior, quando o teatro encontra condições sociais e mentais de desenvolvimento favoráveis, como os papas se tornam príncipes temporais, a Igreja mostra-se aristocrática e afasta o povo da participação na liturgia. Francisco I de França e o Parlamento são, por vezes, severos nas repressões para os que representam farsas e comédias políticas, aplicando-lhes a censura prévia. Cronologicamente, estas proibições coincidem com a condenação eclesiástica que se encontra geralmente transcrita nas Constituições episcopais portuguesas, que excluem da liturgia as representações populares. Em 1534, lê-se nas Constituições do Bispado de Évora: “Defendemos a todas as pessoas eclesiásticas e seculares de qualquer estado ou condição que sejam, que não comam nas igrejas, nem bebam, com mesas nem sem mesas, nem cantem, nem bailem em elas, nem em seus adros, nem os leigos façam seus ajuntamentos dentro delas sobre cousas profanas; nem se façam nas ditas igrejas ou adros delas jogos alguns, posto que sejam vigília de santos ou dalguma festa; nem representações que sejam da Paixão de Nosso Senhor J. C., ou da sua ressurreição, ou nascença, de dia nem de noite, sem nossa especial licença; por que de tais autos se seguem muitos inconvenientes, e muitas vezes trazem escândalo no coração daqueles que não estão mui firmes na nossa santa fé católica, vendo as desordens que nisto se fazem” (BRAGA, 1898, 72). Repetem esta proibição de representar autos da Paixão, da ressurreição e da natividade nas igrejas as Constituições episcopais de Lisboa, em 1536, de Braga, em 1537, de Angra, em 1559, de Lamego, em 1561, de Miranda, em 1536, e do Funchal, em 1538. Contudo, consentem a persistência do costume com especial licença do ordinário ou bispo. Esta proibição canónica remete para a existência de um teatro hierático em Portugal nos três últimos séculos da Idade Média, que chega ainda à Madeira, e mostra também que não são somente espetáculos religiosos que se usam. As formas litúrgicas do cristianismo são eminentemente dramáticas e o povo, que não abandona rapidamente os costumes, toma parte nas cerimónias do culto. Embora se reconhecessem nesses autos hieráticos a persistência de costumes, as manifestações populares são toleradas com uma certa benevolência. Tal como se lê num decreto da Universidade de Paris em 1444: “Os nossos predecessores, que eram grandes personagens, permitiram estas festas. […] Nós não fazemos todas estas cousas a sério, mas por jogo, para nos divertirmos segundo o antigo costume, para que a tolice (folie) que nos é natural se expanda uma vez por ano. Os toneis de vinho rebentariam, se lhes não dessem ar por vezes […]. É por isso que consagramos alguns dias ás representações e chocarrices” (BRAGA, 1898, 73). Com este espírito, os mistérios, os milagres e as moralidades passam de formas hieráticas a farsas políticas e sarcásticas comédias burguesas. Gil Vicente apropria-se desses elementos tradicionais e exerce sobre eles o seu génio dramático. Na verdade, essas formas de teatro podem desenvolver dramas sacros, poemas narrativos e sequências líricas; outros ficam na espontaneidade dos costumes populares, como os dramas da vida quotidiana. Deste modo, as formas dramáticas mantêm-se unidas aos costumes e às festas populares e a obra de Gil Vicente, colocada na transição do séc. XV para o XVI, surge dessa tradição. As vigílias do Natal são a primeira forma da sua escrita e muitos dos seus autos continuaram a ser representados em igrejas. Inspirado no espírito de tolerância racional, resiste aos obstáculos, cuja tendência é reprimir a sua obra e a fundação do teatro nacional. Desprovidos de raízes étnicas e com simpatia pela Idade Média, os seus autos não poderiam vencer a corrente da erudição humanista da Renascença que impõe ao gosto da corte, da Universidade e dos solares da fidalguia as comédias clássicas e as suas imitações italianas. Garcia de Resende afirmava aliás que o criador do género dramático não fora Gil Vicente, mas o espanhol Juan del Enzina. Na verdade, Gil Vicente mantém o interesse e a atenção do povo, a sua obra tenta resistir ao Tribunal do Santo Ofício, à presunção das tragicomédias dos Jesuítas, que pretendem sobrepor-se ao teatro popular, e também às comédias clássicas. Para Duarte Ivo Cruz, um teatro litúrgico religioso, um teatro popular e jogralesco e um teatro de origem cortesã, provenientes da época medieval, atingem a faixa ocidental da Península Ibérica naquela época. Estes três ramos dramatúrgicos não são estanques, embora o filão litúrgico, quase todo perdido, tenha sido o mais praticado. Na Madeira, Balthazar Dias, nascido em finais do séc. XV, é considerado o principal contemporâneo de Gil Vicente e um dos principais expoentes da literatura dramática portuguesa. No entanto, já no alvor da centúria, afluem à Ilha, a passos brandos, povoadores como o moçárabe, elemento importante do povo que traz consigo o carácter português e o que a arte popular e tradicional possui de original. É precisamente a fusão com as “correntes estranhas”, transportadas pelos povoadores, que dá à literatura uma originalidade própria. A poesia de reminiscências medievais, unida ao figurado e à melopeia das composições árabes, caracteriza os primeiros esboços de arte, a que vários autores fazem referência. Por seu lado, os capitães donatários dão continuidade à vida palaciana, já que a aristocracia permanece parte do tempo no continente, enquanto na Ilha se erguem os seus palacetes. Analisado o teor de várias composições de diversos poetas fidalgos madeirenses, pode verificar-se que se aproximam das do reino, como acontece com os poetas inseridos no Cancioneiro de Garcia de Resende. Autores como Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Meneses, o visconde do Porto da Cruz, o conde de Sabugosa, Francisco Trigoso de Aragão Morato, entre outros, fazem o historial dessa poesia de contornos dramáticos que tão bem caracteriza essa época. Atesta este estudioso que a forma mais usada nos divertimentos cénicos da corte de D. Afonso V e de D. João II é justamente a mímica, e que os momos, acompanhados de dança, nem sempre são mudos, já que alguns dizem palavras apropriadas ao carácter das pessoas que representam. No casamento da Infanta D. Leonor, precisamente irmã de D. Afonso V, com o Imperador Frederico III de Habsburgo, representam-se vários momos, a que um poeta do Cancioneiro Geral também chama autos, como pode ler-se no seguinte verso: “Eram vossos tempos Autos/Nas festas da Imperatriz/Mas agora calar chyz/Nem é tempo de crisautos” (fl. 47, v, col. 2.). Duarte de Brito é o autor dos versos e o visado é João Gomes da Ilha, dois madeirenses ilustrados constantes do Cancioneiro. Apesar da controvérsia sobre a naturalidade do autor, tal como a relata João de Freitas Branco, o compositor tem ligações à Ilha e a ilhéus e fornece dados de valor irrefutável sobre as criações literárias da época. Quanto a D. Afonso V, é por mais evidente que conhece a primeira Renascença da Itália: manda aí estudar os artistas portugueses e chega a visitar a corte francesa, na qual são muito usados os divertimentos dramáticos, tal como se pode ler no poema seguinte: “Por Framengos, Genoveses Froreniyns e Castelhanos/mal nos vindo/com seus novos entremezes dam-nos trinta mil avanos,/vam-se rindo” (BRAGA, 1970, 8). Também D. João II, à semelhança de seu pai, manda os artistas portugueses fazer aperfeiçoamento em Itália e mantém relações diretas com Angelo Poliziano, um dos primeiros que no séc. XV inicia em Itália a imitação do teatro clássico, e cuja obra-prima, Orféo, é escrita para uma festa palaciana. Nos divertimentos dos serões da corte de D. João II encontra-se uma representação cénica criada pelo conde de Vimioso, que Garcia de Resende conserva. O que se passa fora dos palácios, o popular, está pouco documentado e conduz a opiniões controversas, no que respeita à existência de uma literatura original, embora não seja completamente desconhecido. Relativamente a Baltazar Dias, não se sabe ao certo onde nasce, mas sabe-se que passa grande parte do tempo no continente, onde vem a falecer. Barbosa Machado, uma das principais e mais antigas fontes de conhecimento do autor, afirma “que foi um dos celebres poetas que floresceram no reinado de D. Sebastião, particularmente na composição de autos, com a circunstância de ser cego de nascimento” (MACHADO, I, 1741, 446). Nas mais diversas histórias de literatura e de dicionários de teatro, é citado como o “poeta popular” mais incontestável. Na verdade, os conhecimentos literários que revela mostram que aprendera as formas e os temas poéticos elementares da atmosfera espiritual da Ilha, o que lhe permitiu criar obra memorável. Tradições medievais, lendas de santos, gestos de paladinos, amores desventurados, mágoas de exílio e visões de peregrinos, são uma presença na alma dos insulares que marca o espírito deste poeta. A corrente humanista apenas o influencia ligeiramente, como se pode constatar num requerimento que dirige a D. João III para publicar os seus autos e trovas; no texto, declara que é natural da ilha da Madeira, que cantou vidas de santos, que animou na técnica gótica dos seus autos, que celebrou feitos de heróis portugueses, como D. João de Castro, e que riu dos disparates da época e da variedade das mulheres. Álvaro Rodrigues de Azevedo destaca-o como contemporâneo de D. Sebastião e autor de vários autos dramáticos, uns sacros e outros profanos, à semelhança de Gil Vicente. Parte das obras do autor, mencionadas por Inocêncio da Silva, tem grande divulgação em várias edições: Auto de St.º Aleixo, edições de 1613, 1616, 1638, 1749 e 1791, Auto de El-Rei Salomão, edição de 1613, Auto da Paixão de Cristo, edição de 1613, Auto da Feira da Ladra, edição de 1613, Auto de Santa Catharina, Virgem Mártir, edições de 1610, 1038, 1659, 1727, 1786, Auto da Malícia das Mulheres, edições de 1640 e 1793, Auto do Nascimento de Cristo, edição de 1665, Conselhos Para Bem Casar, edições de 1638, 1659, 1680, História da Imperatriz Porcina, Mulher do Imperador Lodonio de Roma, edição de 1660, Trovas de Arte Maior Sobre a Morte de D. João de Castro e Tragédia do Marquez de Mantua, edição 1665. No séc. XVII, Francisco de Vasconcelos Coutinho (1665-1723) enriquece a literatura dramática madeirense com a sua obra. É bacharel em leis, formado na Universidade de Coimbra entre 1686 e 1697. Em 1697, é nomeado ouvidor da Capitania do Funchal. São famosos os seus poemas à morte de D. Pedro II, sucedida em 1706, e um elogio dramático em honra do governador e capitão-general da ilha da Madeira, João de Saldanha da Gama, quando termina o seu governo em 1718. O elogio dramático, representado em 1718 pelas freiras de Santa Clara, possui um argumento simples. A peça, intitulada Residência do Governador e Capitão General da Ilha da Madeira, é uma obra de arte viva, cuja ação assume a função de pedagogia política, já que evidencia sentido de justiça e de razão, princípios que devem nortear a conduta humana perante um mundo cheio de controvérsias e de excessos. O objetivo é, precisamente, mostrar ao leitor e ao espectador essas imagens e abrir um espaço de reflexão sobre os princípios que devem orientar o comportamento dos homens. Decorrido num só ato e em seis cenas, o autor apresenta ao espetador uma espécie de julgamento em praça pública, em que as personagens principais não são mais do que (falsas) testemunhas de acusação e o réu é o Gov. João de Saldanha. Na estrutura interna, a ação é dividida em três partes: a exposição, que corresponde ao momento em que as personagens abstratas – a corte, a Ilha, a saudade, a religião, a justiça e a fama – vão sendo apresentadas, por ordem decrescente de importância; o conflito, que diz respeito aos argumentos de acusação que cada uma das personagens vai expondo contra o governador; e o desenlace, momento em que se chega a um veredicto final. A corte, símbolo do poder régio e da virtude soberana, é a primeira personagem a entrar em cena, a cantar e a incitar a que se apresentem as queixas relativas ao governador. O teatro assume um papel de diversão, de arma pedagógica e de espaço para a reflexão crítica, já que demonstra que o verdadeiro governador é aquele que é constante, humilde, justo, dono da verdade e da razão. Enquanto no séc. XVII apenas há registo do elogio dramático atrás referido, a partir da centúria seguinte abundam os nomes de autores naturais da Ilha ou que por ela passaram. Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo Menezes, Sousa Bastos, Inocêncio da Silva e, mais recentemente, Luiz Francisco Rebello, fazem o historial dos múltiplos escritores e das principais obras dramáticas. Joaquim de Menezes e Ataíde (1765-1828) é o primeiro autor destacado, que Inocêncio da Silva considera um distinto escritor, apesar de a maioria das suas composições poéticas e dramáticas ter sido publicada por Luiz José Baiardo, seu secretário durante vários anos. Nascido na mesma década, Manuel Caetano Pimenta de Aguiar (1765-1832) inscreve o nome na história da literatura dramática da Madeira com uma vasta produção dramática, sendo por muitos considerado o precursor de Almeida Garrett. O curso de artes e ciências feito em França dá-lhe a intuição de que em Portugal não há um verdadeiro teatro, razão que o leva a cultivar os trágicos franceses. Com esse espírito, escreve tragédias, apresenta uma obra original e desperta o gosto para este género literário. Começa a publicar em 1816 e, num curto período, imprime dez tragédias escritas em verso, intituladas Virginia, Os Dois Irmãos Inimigos, D. João I, Arria, Destruição de Jerusalém, D. Sebastião em Africa, Conquista do Peru, Eudoxia Liciana, Morte de Socrates e Carácter dos Lusitanos. Fernando Augusto da Silva e Carlos Menezes citam a representação de um drama seu em três atos, intitulado A Festa do Olimpo, no Teatro Grande, em 1822. No último quartel do século, Luiz José Baiardo (n. 1775) é sobejamente conhecido por publicar em seu nome, como já se referiu, a obra de Joaquim de Menezes e Ataíde, bispo do Funchal. Dada a sua paixão pelo teatro e a sua inibição de figurar como autor, o clérigo cede a sua obra a Luiz José Baiardo, seu fâmulo, consentindo que a divulgue como sua. A partir de 1821, já em Lisboa, Baiardo escreve peças originais e traduz outras. Da sua autoria são: O Moiro de Ormuz, comédia mágica representada pela primeira vez no Teatro do Salitre, em 1826, Valadomir Elevado ao Throno de Seus Maiores, O Combate de Touros, Gullistan, O Marquez de Pomhal ou o Terremoto de 1785, A Virtude Triumphante ou os Mágicos de Granada, Hariadan Barha Roxa, As Luvas Amarellas, Christierno Rei de Dinamarca, Templo da Innocencia, Figaro, O Delator, Alberto I, O Caminho Escuro, Gullistan, Miguel Valadomir, etc. Em 1838, redige um periódico semanal, Atalaia dos Teatros, do qual saem alguns números, mostrando mais uma vez a paixão pela representação e pelo género dramático. José Anselmo Correia Henriques (1777-1831), natural da Ribeira Brava, segue a carreira diplomática em vários países europeus e também no Brasil, no Rio de Janeiro, onde desempenha cargos da confiança do príncipe regente, quando a corte e o governo português ali estão estabelecidos. Embora se tenha dedicado mais à poesia, cultiva a tragédia e a comédia, e publica traduções, nomeadamente de uma comédia intitulada A Escola do Escandalo, composta por Ricardo Brinsley Sheridan. Da sua autoria são as tragédias A Revolução de Portugal e Mesquita. A sua obra encontra-se publicada em Paris, Londres, Hamburgo, Veneza e Christiania, o que indica que terá passado algum tempo nessa cidade, no exercício de funções consulares ou diplomáticas. Luiz da Costa Pereira (1819-1893) é considerado um homem do teatro pelos autores do Elucidário Madeirense, dada a sua vocação para autor, ator, ensaiador e diretor técnico. Efetivamente, exerce o cargo de comissário régio no teatro D. Maria, e é professor de declamação e da arte de representar no Real Conservatório de Lisboa. Camilo Castelo Branco elogia o seu trabalho de encenador. Traduz e adapta à cena portuguesa algumas peças de teatro estrangeiro e escreve o livro Rudimentos da Arte Dramática, de que só publica a primeira parte. Entre as peças que traduz conta-se Calumnia, de Scribe. Manuel Luís Viana de Freitas (1820-1861) destaca-se com um drama intitulado D. Luiz d'Athayde, e por ser sócio correspondente do Instituto Dramático de Coimbra, dada a sua paixão pelo teatro. Sérvulo de Paula Medina e Vasconcelos (1822-1854) é redator do periódico Beija-Flor e funcionário público nas ilhas de Cabo Verde. Em 1845, publica no Funchal um drama intitulado Amor e Pátria, que foi estreou no teatro Concórdia, em 1844. Em Cabo Verde, é redator do Boletim Official, onde publica o romance Um Filho Chorado. João de Andrade Corvo (1824-1890) distingue-se como jornalista, político e escritor. O desempenho de elevados cargos públicos proporciona-lhe um conhecimento dos problemas reais do país e sensibilidade em assuntos de carácter social, como a abolição da escravatura e a emigração, e condu-lo ao público através do texto dramático. Na altura em que o oidium tuckerii chega à Madeira, Andrade Corvo desloca-se à Ilha a fim de estudar essa enfermidade da vinha. A peça O Alliciador retrata esses tempos, a situação dos camponeses, decorrente dos “contratos de colónia”, e os dramas do aliciamento e da emigração clandestina, uma necessidade para muitos madeirenses. O drama é representado no teatro D. Maria II, em Lisboa. Outro dos autores que se destaca é Álvaro Rodrigues de Azevedo (1824-1898). Após a obtenção da licenciatura em Direito, na Universidade de Coimbra, desloca-se de Vila Franca de Xira para o Funchal em 1856. A par da carreira de professor, faz investigação da história da Madeira, envolve-se na vida política, escreve para a imprensa, dirige periódicos e publica uma vasta obra. Sensível aos problemas sociais dos madeirenses, bem como aos seus usos e costumes, escreve o drama A Família do Demerarista, sobre o madeirense que enriquece nos países de emigração à custa do seu trabalho e regressa à terra natal com vontade de ajudar a família e os da terra – contrariando os retratos feitos por João de Nóbrega Soares e Andrade Corvo, que o descrevem como um explorador dos seus compatriotas. João de Nóbrega Soares (1831-1890) é professor e jornalista. Como escritor, cultiva vários géneros literários, entre eles o dramático. São de sua autoria as peças Qual dos Dois?, Um Quarto com Duas Camas e A Virtude Premiada. Esta peça é um drama de atualidade que contém no final um conjunto de notas sobre vários pontos geográficos da Guiana Inglesa que são, precisamente, o espaço em que se movimentam as várias personagens ligadas à emigração de madeirenses no ano de 1861. Na verdade, João de Nóbrega Soares viaja por África e pela América do Norte e percorre o trilho dos portugueses naquelas terras, o que lhe permite fazer retratos aproximados dos dramas de muitos conterrâneos seus ao longo do séc. XIX. A peça é representada no teatro Esperança, na Madeira, colhe os maiores aplausos, e o autor confirma que a literatura dramática é o género que melhor retrata o crer e o viver do povo. Ao escrever a peça, o seu principal objetivo fora esclarecer e proteger os camponeses que na época emigravam engajados para terras longínquas, à procura de trabalho e de uma vida melhor. M. Knowler visita a Madeira em 1845 e profere no Funchal uma série de seis conferências sobre poesia dramática, nas quais revela elevado conhecimento do assunto. Encontram-se publicadas em Inglaterra e contêm referências à passagem do autor pela Ilha. Eugénio Maximiliano Azevedo (1850-1911) inicia-se na escrita dramática ainda jovem, sobretudo com comédias. Fazem parte desse tempo Por Força!, Paulo, Santos de Casa... e Duas Crianças, representadas no Teatro Ginásio, entre 1873 e 1874, e Vida Airada, representada no teatro D. Maria, em 1875. Na mesma época traduz A Familia Mougrol, de grande sucesso no Teatro Ginásio, e Um Fura-vidas, imitada da comédia italiana Un Uomo d’Affari. Nas décs. de 80 e de 90 escreve Os Annos da Menina, O Epílogo, Cinta e Bordão, representadas no Teatro Ginásio e no teatro D. Maria, e O Crime das Picôas, representada no teatro do Príncipe Real. A peça original de maior valor é o drama histórico Ignez de Castro, representada no teatro Príncipe Real de Lisboa, na rua dos Condes, no teatro Príncipe Real do Porto, na rua Nova de Sá da Bandeira e, por fim, no teatro Lucinda, do Rio de Janeiro. Para uma sociedade de amadores faialenses escreve a comédia de costumes açorianos Ralham as comadres…, representada em 1879 no teatro União, da Horta. A peça é representada na Madeira em 1901. Do seu rol de traduções e de imitações, fazem parte Os Jesuitas, Tosca, Causa Celebre, Purgatório de Casados, A Mendiga, O Amor, O Convento do Diabo, As Surpresas do Divorcio, Naná, O Az de Paus, Os Filhos do Capitão Grant e A Honra. O primeiro trabalho do autor a aparecer no teatro é a comédia Entre a Vitima e o Carrasco, traduzida do espanhol. Para além de escritor dramático, é, em final de vida, crítico teatral e comissário régio do teatro Normal. O seu nome é uma presença constante na história do teatro madeirense, pelo impulso e apoio dado à subida ao palco da peça Guiomar Teixeira, de João dos Reis Gomes. Também João de Freitas Branco (1854-1910) se distingue na literatura dramática, na crítica, na escrita de originais e na tradução de peças estrangeiras. Depois de ter viajado e permanecido alguns anos fora do país, em Inglaterra, França, e especialmente na Áustria, onde adquire conhecimentos de línguas estrangeiras, regressa a Portugal e divulga os trabalhos dos dramaturgos mais famosos do norte da Europa, Suécia, Dinamarca e Alemanha, traduzindo diretamente dos originais as suas principais obras. Entre elas, contam-se a Casa da Boneca e o Esteio da Sociedade, de Ibsen, Uma Fallencia, de Bjornson, Penedos do Inferno, de Blumenthal e O Fim de Sodoma, de Sudermann. Sousa Bastos, em A Carteira do Artista e no Diccionario do Theatro Portuguez, elenca a obra traduzida pelo madeirense e a que sobe aos palcos dos mais importantes teatros de Lisboa, o teatro D. Maria e o Teatro Ginásio. Luiz António Gonçalves de Freitas (1858-1904), chefe de repartição no Governo Civil de Lisboa, administrador de concelho e deputado, redige e colabora em importantes jornais, embora os trabalhos literários sejam a sua paixão. Aos 12 anos, em 1871, “publicava o seu primeiro livro original, Phantasias, ensaios litterarios e a sua tradução do Monge de Kremsmanster de Alphonse Karr” (BASTOS, 1898, 495). O seu primeiro trabalho do género dramático é a opereta escrita em verso A Pupila de Beltrão, para ser representada pelos alunos do 5.º ano do curso de Direito de 1879/1880. A peça é levada à cena pela primeira vez no Teatro Académico de Coimbra, em 1880. Em 1886, em homenagem a Leopoldo Carvalho, Noite de Núpcias é representada no Ginásio e posteriormente nos teatros da rua dos Condes e Avenida. Em 1897, sobe à cena no teatro da rua dos Condes a sua ópera cómica Pif! Puf! Publica também, entre dramas, comédias e operetas, À Beira do Abismo, Sob as Cinzas, traduzida de Charles Méronvel, O Club dos Perigosos, Rachel, Por Causa d´Um Cabelo, Pecados da Mocidade e Velha Farça. É sócio e diretor da empresa que explora o teatro Avenida, dado o seu gosto pelo drama e pela representação; traduz para esta empresa, em parceria com Sousa Bastos, uma opereta em três atos, Josephina Vendida por Suas Irmãs. João dos Reis Gomes (1869-1950), militar de carreira, professor do ensino secundário e técnico, jornalista e crítico de arte, na sua qualidade de autor, escreve obras de cariz histórico, filosófico e dramático. O Teatro e o Actor, em 1905, A Música e o Teatro, em 1919, e ainda Figuras de Teatro, em 1928, são obras que distinguem este escritor. Em 1912, escreve o drama Guiomar Teixeira, extraído da sua novela madeirense A Filha de Tristão das Damas. A peça é representada por amadores em 1913; pela Companhia Vitaliani-Duse em 1914; e em 1922, por ocasião das festas da comemoração do V centenário da descoberta da Madeira, novamente pelo primitivo grupo de amadores, embora com algumas substituições. A obra é um expoente da literatura dramática da Madeira, pelos motivos históricos retratados e porque a estreia oferece a novidade de fundir o cinema e a ação dramática. Efetivamente, é a primeira vez que em Portugal se utilizam efeitos especiais cinematográficos como o pano de fundo, e que estes se combinam com a representação dos atores. Maximiliano de Azevedo impulsiona a estreia da peça em Lisboa, dado ser um homem de teatro e ter conhecimentos que satisfaziam as ambições da representação do autor da peça. Francisco Bento de Gouveia (1874-1921) colabora numa revista que foi levada à cena no teatro Manuel de Arriaga. No final de século, em 1877, Olimpia Pio Fernandes escreve um drama intitulado Alda ou a Filha do Mar, que foi representado no Funchal. As principais cenas da peça são publicadas pela imprensa regional, com a qual colaborou. Francisco Jorge de Abreu (1878-1932) é jornalista de profissão. Além de muitos artigos disseminados por vários periódicos do Funchal, de Lisboa e do Porto, traduz várias peças teatrais. José Jorge Rodrigues dos Santos, ou apenas Jorge Santos (1879-1958), segue a carreira diplomática na Suécia e na Dinamarca. É autor de três peças dramáticas representadas no teatro nacional: em 1903, Crime de Amor, que põe em cena um caso de incesto, e A Festa da Actriz, uma derivação da estética naturalista; e, em 1908, Mar de Lágrimas, escrita em colaboração com João Gouveia. Escreve ainda Rosa Enamorada e uma peça de costumes madeirenses, Vinho Novo, entregue no teatro nacional em 1903, mas que não chegou a ser representada. João Gouveia (1880-1947) é um escritor apaixonado pela aeronáutica. Da sua autoria são duas peças levadas à cena no teatro nacional, nomeadamente Engano de Alma, em 1904, e Mar de Lágrimas, em 1908, com a colaboração do seu conterrâneo Jorge Santos. Em 1912, escreve Balões e Aeroplanos. Salienta-se, igualmente, Alberto Figueira Jardim (1882-1970), bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra, professor do liceu do Funchal, colaborador de alguns jornais na região e autor de uma vasta obra, que escreve uma fábula trágica, Galateia, publicada no Funchal em 1920, e a comédia Honra, Drama e a Laranja de Califa, peça em dois atos. Alfredo Freitas Branco (1890-1975), também conhecido por Visconde do Porto da Cruz, escreve Madrinha de Guerra em 1919, uma comédia cuja ação é centrada em Lisboa no ano de 1917. No mesmo ano, publica um auto designado Auto da Primavera, para o qual seu primo Luís Freitas Branco escreve uma música, e, em 1922, publica a peça A Canção de Solveig. A estes autores junta-se Álvaro Leal (1891-1931), autor de revistas e de operetas, umas escritas individualmente, outras em coautoria, como A Conferência, uma adaptação do francês, em 1924, Aqui para Nós, revista em um ato e três quadros, Jesus!, peça sacra, episódio bíblico em três etapas, de parceria com Pedro Bandeira, Isso Era d’ Antes, revista em um prólogo, dois atos e seis quadras, com outros autores, Sol de Portugal, revista em dois atos e doze quadros, com Lourenço Rodrigues, Prata da Casa, série de oito quadros de conjunto, a imitar uma revista novamente em colaboração com Pedro Bandeira. Escreve também o melodrama O Alfinete egípcio, em colaboração com Carlos Ferreira, representado apenas em tradução espanhola. É ainda autor das comédias Pegadas na Areia, da qual foi colaborador Lourenço Rodrigues, representada no teatro nacional em 1930, e Nero, escrita com Guedes Vaz. Algumas destas peças encontram-se no Arquivo Distrital do Porto. Augusto Elmano Vieira (1893-1962), bacharel em Direito pela Universidade de Lisboa em 1920, exerce o jornalismo, a advocacia e é membro da Câmara Municipal do Funchal. Como escritor dramático, colabora na revista de costumes madeirenses A Madeira por Dentro, representada no teatro Dr. Manuel de Arriaga, e na opereta regional A Menina dos Bordados, representada no pavilhão Paris. Em 1915 escreve o episódio dramático A Ultima Bênção, publicado no Funchal, em 1917. A peça é representada no teatro Circo, do Funchal, e no teatro nacional, em Lisboa, com muito sucesso, dado a gente da Ilha ser muito sensível ao tema retratado, a emigração madeirense; a ação é, pois, fundamental para esclarecer tanto os que partem para destinos transatlânticos, como os que ficam, aguardando que os seus regressem depressa. João França (1908-1996) que escreve várias peças de teatro, entre dramas, farsas e comédias, levadas à cena no Funchal por amadores, entre 1924 e 1930, nas quais representa alguns papéis. Algumas constituem grande êxito, como Mimi, O Regenerado e Amor Sem Deus. Escreve também uma opereta, Zé do Telhado, representada no teatro Avenida, em 1944, uma adaptação de O Bobo, de Alexandre Herculano, publicada em 1964 com o título O Drama do Bobo, uma comédia, Um Mundo Àparte, premiada em 1970 no concurso de originais para o teatro Maria Matos, proibida pela censura, e o monólogo Sol nas Minhas Mãos. Em 1978 publica o drama O Emigrante, peça em que retrata a emigração madeirense para a América no primeiro lustro do séc. XX. João de Brito Câmara (1909-1967) publica, em 1943, no Funchal, o Auto da Lenda, que é a descrição poética da lenda que conta os amores de Ana d’Arfat e Machim, que em tempos idos terão chegado à Madeira. Alberto Figueira Gomes (n. 1913) foi um estudioso da história insular madeirense e das fontes das principais tradições poéticas. A publicação da obra Poesia e Dramaturgia Populares no Século XVI – Baltasar Dias vai ao encontro desse gosto do autor. Em 1965, publica Encontros no Pireu, peça em um ato. Ernesto Leal (1913-2005) publica a obra teatral Afonso III, “história fabulosa e irónica de um rei sem história”. Finalmente, António Aragão (Funchal, 1921-2008) é autor de uma única peça dramática, Desastre Nu, distinguida em 1980, na qual propõe uma visão despojada e desencantada do mundo tecnocrático seu contemporâneo, dada a sua ligação ao experimentalismo dos anos 60 e 70. Em termos conclusivos, e segundo os autores do Elucidário Madeirense, a literatura dramática na Madeira foi, no início, uma articulação entre o génio dramático dos criadores e a fome, a pobreza e a necessidade. As famílias ilustres dedicavam-se à filantropia, forma de sobressaírem socialmente, algo que distingue e caracteriza o teatro na Madeira. Afirma Derrida que, quando os povos atingem um certo grau de civilização, os espetáculos são uma necessidade, “uma energia […] a única arte da vida” (MATEUS, 1977, 36). No séc. XIX, principalmente, os títulos dos jornais e outras publicações dedicadas ao teatro multiplicam-se, dado o impacto que têm na sociedade. Ao longo dos séculos, organiza-se um movimento mundano de apoio ao teatro, do meio citadino ao rural, suscitando paixões e levando-o a desempenhar um papel importante no cenário político, social e cultural de cada época.   Elina Baptista (atualizado a 10.01.2017)

Artes e Design Cultura e Tradições Populares Sociedade e Comunicação Social

cultura popular urbana

A cultura popular – associada ao povo, às camadas dominadas – resulta de um conhecimento usual, do senso comum, de uma convivialidade mais ou menos voluntária e de práticas sociais coletivas que configuram uma construção identitária. É uma cultura conservadora, porque depende da tradição, mas simultaneamente inovadora, porque incorpora elementos culturais novos, o que permite a sua preservação ao longo dos anos. A inspiração da cultura popular decorre dos acontecimentos locais rotineiros, o que a torna uma arte regional. Na déc. de 30 do séc. XX, a polarização antagónica que considerava “urbano” e “rural” como áreas contrapostas, espaços com características próprias e isoladas, foi substituída por uma diferente modalização espacial. Foi, então, proposta uma perspetiva de “continuum rural-urbano”. Não há espaços rurais e espaços urbanos, há ruralidades e urbanidades. No campo e na cidade existem urbanidades e ruralidades (heranças, origens, hábitos, relações, conjuntos de ações) que se combinam e geram as territorialidades particulares de cada localidade, município ou recorte regional (BIAZZO, 2008, 135 e 145). Para Edgar Morin, “a cultura na nossa sociedade é um sistema simbiótico – antagonista de múltiplas culturas, nenhuma delas homogénea” (SANTOS, 1988, 690). Assim, não podemos fazer uma distinção rígida entre cultura urbana e cultura rural. Passamos de comunidades rurais dispersas com cultura tradicional para uma sociedade predominantemente urbana, onde se encontra uma oferta simbólica, heterogénea e renovada por uma constante interação do local com as redes nacionais e transnacionais de comunicação. As mudanças de pensamento e de gostos da vida urbana passaram a coincidir com os do meio rural. Nesta medida, a sociedade urbana e a rural não se opõem totalmente. Na Madeira, é facilmente visível uma íntima relação entre algumas manifestações de cultura popular urbana e o meio natural – em particular plantas, flores e frutos –, bem como entre tal cultura e os fenómenos culturais populares mais remotos, especialmente o bordado e os tapetes de flores em contextos populares de cariz religioso. Podemos apontar como exemplos a Festa da Flor e as decorações natalícias. Em 1920, a Festa da Flor aliava a caridade e o desporto. São exemplos disso as festas náuticas preparadas pela comissão organizadora com o objetivo de angariar donativos para a fundação da já projetada Escola de Artes e Ofícios. A Festa da Flor de 1955 foi organizada, pela primeira vez, pelo Ateneu Comercial do Funchal. Esta Festa foi precedida por outras, que lhe terão dado origem, com a mesma temática e organizadas pela mesma instituição: a Festa da Primavera (1942 e 1952) e a Festa da Rosa (1954). Desde os finais do séc. XIX que o Carnaval era apreciado por toda a sociedade, quer nas expressões mais populares de rua, quer nos exemplos mais recatados. No dia de Entrudo, popularmente conhecido por Dia dos Mascarados, o disfarce, usado maioritariamente por crianças, revelava alguma simplicidade: os fatos baseavam-se no folclore regional ou nas profissões. Havia alguns disfarces coletivos e temáticos, como as caixas de bonecas e a caixa do mágico. As primeiras manifestações carnavalescas terão sido de rua, ocupando a R. da Carreira um lugar de destaque. Aí se desenrolavam renhidas batalhas de serpentinas e confetti, mas também de tomates, ovos ou farinha. No final do dia de Carnaval, a R. da Carreira ficava completamente suja e os mais pobres recolhiam o milho deixado entre tanta bagunça. Outro local de batalha situava-se a norte da Pr. da Constituição, onde ficava a Casa da Linha, frequentada pelos funcionários britânicos e pelas suas famílias, que assistiam, a partir daí, ao Carnaval. À noite, a praça da Constituição e o jardim municipal transbordavam de pessoas que procuravam divertir-se nas batalhas de confetti e perfumes. No final da déc. de 40 do séc. XX esta tradição desapareceu. Havia, também, o cortejo de mascarados em calhambeques sem capota com depósitos de água e mangueiras. O povo assistia nos passeios, varandas e janelas. As bandas de música saíam à rua, na tarde do dia de Entrudo, com divertidas e maliciosas indumentárias em tom de crítica social: “Em 1907 […] uma das filarmónicas locais percorreu as ruas do Funchal, envergando ‘camisas de noite’, em alusão a um facto passado nessa altura […] [naquele] meio” (CALDEIRA, 2007, 76). Em meados do séc. XX, o Carnaval passou a ser vivido dentro de grandes salões. Ficaram famosas as festas organizadas pelo Ateneu Comercial da Madeira (rua dos Netos), pelo Solar D. Mécia (junto ao jardim municipal), pela Associação dos Estudantes Pobres (atrás do jardim municipal), pelas sedes das bandas filarmónicas – como a dos Guerrilhas (R. da Queimada) ou dos Artistas (R. 31 de Janeiro) – e pelo Colégio Lisbonense (R. das Mercês). A proximidade dos locais permitia que os mais foliões frequentassem as várias festas ao longo da mesma noite. Embora o acesso a estes bailes fosse relativamente restrito, não era tão seletivo como o que acontecia nos hotéis. Chegando a ser frequentado pela elite funchalense, o Ateneu Comercial promovia um dos bailes mais apreciados na época, apenas suplantado, mais tarde, pelas festas dos hotéis. Nos anos 60 e 70, estes bailes eram animados por grupos musicais como os Demónios Negros (conjunto de João Paulo) e Ritmo 5 (de Luís Félix). Esta instituição organizava, também, festejos carnavalescos infantis. Na Associação dos Estudantes Pobres, as festas eram bem mais modestas. Na déc. de 70, as instalações hoteleiras aderem aos festejos de Carnaval, passando a ser os locais preferidos de certos grupos carnavalescos. Estes faziam o “roteiro dos hotéis”: começavam pelo Savoy, na sexta-feira; seguiam para o Vila Ramos e o Girassol, no sábado; o Sheraton, no domingo; o Atlantis, na segunda-feira; e o Casino Park, na terça-feira. No fim de semana seguinte, o Enterro do Osso era celebrado no Inter-Atlas (no Garajau) e/ou no Dom Pedro (em Machico). As suas máscaras baseavam-se nas tradições madeirenses e havia grande rivalidade e concorrência entre os grupos. Aos melhores disfarces, sujeitos a concurso, eram atribuídos prémios. No final dos anos 70 e início dos 80, a Direção Regional do Turismo começou a organizar o corso carnavalesco com o objetivo de trazer, novamente, o Carnaval às ruas do Funchal. Os grupos das décadas anteriores são substituídos pelas trupes, que desfilam sob um tema previamente definido e não com uma temática individual como no passado. Em 2013, participaram no Cortejo dez trupes e escolas de samba madeirenses: João Egídio, Caneca Furada, Geringonça, Fura Samba, Os Cariocas, Fábrica de Sonhos, Trupe de José Orlando Fernandes Vieira, Sorrisos de Fantasia, Associação Desportiva, Cultural e Recreativa Bairro da Argentina e Turma do Funil. O Cortejo Alegórico, organizado pela Secretaria do Turismo, desenrola-se na principal avenida da cidade e é o ponto alto do cartaz turístico. O Cortejo Trapalhão, surgido aproximadamente na mesma altura, é a institucionalização da expressão mais popular e genuína da tradição carnavalesca. Individualmente ou em grupos, os participantes vão brincando com personalidades e/ou temáticas atuais. O cinema e o teatro, na sua génese, serão, talvez, das mais populares manifestações artísticas. Dos locais de representação teatral, no Funchal, podemos destacar: o Teatro Grande (construído em 1780 e demolido em 1833), o Teatro do Bom Gosto (contemporâneo do primeiro), o Teatro Concórdia (1843), o Teatro Esperança (1858) e o Circo Funchalense, localizado a sul do convento de S. Francisco e que dará origem ao Teatro Municipal. Porém, se os espaços eram bons, o mesmo não acontecia com a representação, atividade desempenhada por amadores, tal como descreve Lyall, o autor de Rambles in Madeira: “À noite, o teatro. O edifício em si é bastante bom. A interpretação deplorável, excedendo as piores expectativas. Penso que a companhia, como a de Peter Quince, é constituída na sua maioria por homens de ofícios da cidade […]. O que mais me divertiu foi o facto dos assistentes terem tomado partido quanto às personagens e emoções da peça” (SILVA, 1994, 135). As representações ocorridas na ilha eram de mais baixa qualidade quando comparadas com as de Lisboa. Só no início do séc. XX começaram a chegar à Madeira as boas companhias e os grandes atores, que atuavam no Teatro D. Maria Pia. À semelhança do que acontecerá nas sessões cinematográficas, o público revelava, frequentemente, um mau comportamento. Havia “disputas no teatro por motivos políticos ou pelas preferências por atrizes, cantoras líricas ou bailarinas”, o que provocava “as pateadas e as desordens entre militares” (SILVA, 1994, 137). Outro aspecto criticado pelos periódicos da época eram os problemas morais levantados pelas peças apresentadas. A população pedia mais rigor às autoridades na verificação dos textos: “Tem de haver censura a algumas peças! […] um filho rasga o Thema na cara do ‘pay’, chora de raiva e promete queimar os livros, não sendo sequer castigado por esta insubordinação!” (SILVA, 1994, 168). Em Lisboa, as feiras, onde era exibido cinema em barracas, tinham grande procura por parte das camadas populares. São exemplos a feira do Campo Grande, a feira da Avenida e a feira de Alcântara. As barracas de feira, que concorriam com as salas da cidade, foram, no início do séc. XX, definitivamente substituídas por estas. A forte afluência registada nestas salas é demonstrativa da adesão da população ao cinema. Outro aspecto denunciador do carácter popular do cinema foi o surgimento, nos finais da déc. de 20 do séc. XX, dos cinemas de bairro. Estes cinemas, situados em zonas densamente povoadas e pouco modernizadas, fundiam-se com a vivência do bairro, ou dos bairros, que serviam, permitindo a imaginação e a fantasia num tempo em que o país se fechara. No texto “O Filme dos Cinemas de Bairro”, publicado na revista Imagem e escrito por Guedes de Amorim, em 1931, era retratada a população que assistia aos filmes projetados nestas salas: “Fatos de ganga, bonés, mulheres de xaile, engraxadores, cortesãs, carroceiros, gente que sobe dificilmente a ladeira da vida, chorando e cantando, vêm aqui passar um pedaço de noite, vêm aqui comprar umas migalhas de alegria. […] Lá mais para a frente, nos lugares baratos, nos lugares que custam só um escudo, vai uma alegria desenfreada! Ouvem-se gritos, assobios, aplausos, e, de quando em quando, exclamações arrojadas dominam o bulício” (ACCIAIUOLI, 2013, 119). Na capital, os cinemas promoviam sessões contínuas de 12 h, do meio-dia à meia-noite. As famílias levavam grandes cestos e pacotes com o farnel, falavam alto, davam opiniões e provavam as iguarias trazidas. Na província, também era uma aventura ir ao cinema: as salas pareciam barracas, eram frias e húmidas e tinham um cheiro incómodo. Exibido pela primeira vez no Funchal ainda no séc. XIX, o cinema depressa começou a fazer parte do quotidiano dos habitantes da cidade, ricos e pobres. O interesse dos funchalenses pelo cinema era evidente, o que se demonstra pelas várias salas inauguradas nas primeiras décadas do séc. XX. A primeira sala de espetáculos foi o Pavilhão Grande, na Praça da Rainha, ainda do séc. XIX. Seguiram-se o Teatro Águia D’ Ouro (1907, Pr. da Rainha), o Pavilhão Paris (1909, R. João Tavira), o Salão Ideal (1910, R. da Princesa), o Salão Central (1910, R. da Queimada de Baixo), o Salão Variedades (1910, R. de S. Francisco), o Teatro-Circo (1911, Pr. Marquês de Pombal) e o Salão Ideal (1923, R. de Santa Maria). Além destas salas, havia projeção de filmes em espaços menos convencionais, dos quais se destacavam a praia de São Tiago, o Jardim Municipal (Cine-Jardim), o jardim do Hotel Monte Palace, o Parque das Cruzes, na Quinta das Cruzes (Cine-Cruzes), o Patronato de S. Pedro (beco Paulo Dias, nas Angústias), o Casino Victória (R. Alexandre Herculano), o Colégio Lisbonense, o Salão Teatro dos Álamos, a Banda Distrital do Funchal, entre outros. A abundância de locais provocou a concorrência entre eles. Assistiu-se ao aumento da publicidade, redução dos preços dos bilhetes, oferta de melhores filmes e equipamento, exibição de espetáculos de variedades (bailados, cançonetas, duetos e múltiplos números de palco), distribuição de brindes, como bengalas, pentes, relógios e bombons. A Vida de Christo, exibido pela primeira vez em 1907, foi o filme mais popular e com maior audiência da época. A enorme afluência levou mesmo ao esgotar das bilheteiras, provocando grande descontentamento por parte do público. O sucesso do filme fomentou excursões de espectadores provenientes de toda a ilha, tendo estado em exibição durante vários meses. Ainda nesta década, em setembro de 1910, a população menos citadina pôde ter contacto com o cinema. José Maurício Gomes e José Procópio de Gouveia divulgaram o cinematógrafo ambulante com uma projeção realizada fora da urbe, em S. Gonçalo. Os diversos locais, ao longo de todos estes anos, estavam vocacionados para diferentes tipos de filmes: enquanto alguns espaços exibiam cinema de cariz popular e de aventura, outros, como o Teatro Municipal, pendiam para as fitas de maior qualidade, e outros ainda, como o Hotel Monte Palace, promoviam sessões de cinema exclusivamente dedicadas à elite funchalense. Embora o Cine-Jardim, no jardim municipal, tivesse espetáculos dedicados aos diferentes grupos sociais – as récitas da moda e as récitas populares –, comemoravam-se neste espaço efemérides com a projeção de películas do agrado do público em geral. Em outubro de 1923, o filme comemorativo do V Centenário da Descoberta da Madeira, produzido pela Madeira Film e há muito tempo desejado pelo público funchalense, foi exibido no jardim municipal. No dia 17, os funchalenses foram ver-se no ecrã, porque o Correio da Madeira, que iniciou a notícia com a pergunta “V. Exa. já viu a sua figura n’ um ecrã de cinematógrafo?”, explicou que o filme “contém sem dúvida a fotografia de todos os moradores do Funchal, pelo menos de todos que saíram à rua por ocasião dos festejos comemorativos do V Centenário da Descoberta da Madeira” (Correio da Madeira, 17 out. 1923, 2). Certamente o Cine-Jardim superlotou; os habitantes da cidade, aliciados com a divulgação do jornal, acorreram à bilheteira. Demonstrando algumas preocupações sociais, a empresa que explorava o Pavilhão Paris decidiu que aos sábados haveria sessões a metade do preço, de modo a proporcionar às classes operárias umas horas de distração. A função benemérita era uma das vertentes do cinematógrafo, valorizada na época por vários empresários. Com alguma frequência, o produto da exibição revertia a favor de uma família desfavorecida, de vítimas de uma catástrofe, de uma associação profissional ou cultural, entre outras. O comportamento do público nem sempre era o desejável, como já referido. A desorganização na compra dos bilhetes e na entrada para as salas levou a que os responsáveis pelos espaços apelassem à compra antecipada das entradas e a que os jornais comunicassem a importância da supervisão do guarda de serviço na área. Em situações mais extremas e quando o espetáculo não agradava, ouviam-se insultos, chegando mesmo alguns objetos a serem arremessados. Tais episódios eram descritos e censurados pelo jornalismo da época. Em 1907, a Câmara Municipal do Funchal, a fim de impedir a má educação dos espectadores, decretou a “proibição de clamores e gritos”, colocando um polícia em todas as sessões (MARQUES, 1997, 11-13). A partir da déc. de 50, a exibição cinematográfica foi monopolizada por dois espaços: o Cine Parque (de João Firmino Caldeira) e o Cine Jardim (de João Jardim). A concorrência entre estas duas salas era feroz e visível através da publicidade e promoções constantes. Nos anos 60, assistiu-se a uma modernização das salas e ao aparecimento do cineclubismo, com o Cine Fórum. A inauguração do Cinema João Jardim (1966) – com a distribuição da sala, os tipos de cadeira e o preço dos bilhetes – fomentou uma distinção social semelhante à do início do século. Transformou-se, contudo, na sala de maior sucesso do Funchal até ao aparecimento do Cinema Santa Maria e do Cine Casino, funcionando até 1982. A déc. de 80, assistiu ao encerramento de várias salas de cinema, como o Cinema João Jardim e o Cine Parque. Na década seguinte, deu-se a remodelação de algumas salas, como o Cinema Santa Maria, e a abertura de outras, como o Cine Deck, o Cine Max e o Cinema D. João, que tiveram uma curta duração, situação provocada pela quebra de público devido à concorrência do vídeo. No início do séc. XXI, verificou-se a abertura de cinemas multi-salas, associados a grandes distribuidoras. Nestas salas, os filmes exibidos são, geralmente, de cariz comercial e facilmente percetíveis pelos grupos menos letrados. O cinema alternativo, mais analítico – festivais e mostras de cinema –, está particularmente associado ao Teatro Baltazar Dias. Ao longo do séc. XX, com exceção do Estado Novo, o desporto teve um cariz popular, desempenhando um importante papel na cultura popular urbana. As atividades físicas eram, inicialmente, praticadas nas escolas, logo típicas das elites. Esta situação foi alterada com o romper dos limites da escola, chegando às camadas populares. Segundo Pierre Bourdieu, o desporto, oriundo dos jogos populares, regressa ao povo sob a forma de espetáculo produzido para este grupo social que se encontra sedento de distração. O bilhar foi, provavelmente, o mais antigo desporto praticado na Madeira, nos clubes madeirenses e estrangeiros. Nos locais de diversão, o jogo popularizou-se e mais tarde torna-se uma prática de competição. Curiosamente, o madeirense Alfredo Ferraz (n. Madalena do Mar, 08/11/1901) foi um dos maiores bilharistas portugueses, representando Portugal, em 1932, no III Campeonato do Mundo de Bilhar Livre, realizado em Espinho. Sagrou-se campeão do mundo em 1939, no campeonato que teve lugar em Lausanne, Suíça. Contando com uma associação, a Associação Madeirense de Bilhar, esta modalidade está ainda muito presente na sociedade madeirense. Durante a Primeira República, surgiram condições para a formação de associações desportivas, sociais e culturais relacionadas, principalmente, com o desenvolvimento da prática do futebol. Há notícia do aparecimento e inauguração de várias dezenas de clubes que desapareceram da mesma forma súbita com que surgiram: “E é neste fervilhar de tudo, que nascem e crescem o Club Sport Marítimo, o Clube Desportivo Nacional e o Clube Futebol União” (NASCIMENTO, 2011, 45). Emergiram, ainda, 14 núcleos desportivos, sem carácter associativo, servindo para a ocupação dos tempos livres e prática do futebol. Estes clubes procuravam incentivar a prática de vários desportos e atividades além do futebol, como o ciclismo (praticado desde os finais do séc. XIX e com provas entre o Funchal e Câmara de Lobos), a natação, a esgrima, o boxe, a luta romana, a ginástica, o ténis, a vela, a corrida, as provas automobilísticas e as corridas de cavalos, que se realizavam na estrada entre o Funchal e Câmara de Lobos, como descreve John Driver, cônsul da Grécia na Madeira, já em 1838. Refere, ainda, o ambiente festivo que caracterizava estas provas (SILVA, 1994, 191). Apesar dos esforços para implementar e desenvolver as atividades náuticas – nomeadamente a natação e o polo aquático – e a ginástica, o futebol passou, após a Implantação da República, a ocupar um lugar central na sociedade funchalense. A fundação de alguns clubes – Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, Grémio dos Empregados do Comércio, Operário Funchalense, entre outros – é demonstrativa do carácter popular do futebol. A partir da déc. de 20 do séc. XX, o futebol tem já um modus operandi e características que hoje identificamos como fenómenos de massas. Este desporto passa, assim, a fazer parte do quotidiano funchalense. Os periódicos da época relatavam os jogos realizados ao domingo no adro da igreja de Santa Maria Maior, impedindo o normal movimento das pessoas que se dirigiam ao templo, o que resultava em queixas apresentadas à polícia. O Diário da Madeira de 21 de novembro de 1912 dava conta que “era raro o dia em que não houvesse futebol no Antigo Campo do Campo da Barca”. Apesar de haver alguma iniciativa individual, eram os clubes os principais impulsionadores das atividades desportivas, havendo, entre a sua maioria, um denominador comum: a Rua de Santa Maria. Foi nesta zona, coração da cidade por excelência, que surgiu o primeiro espaço oficial destinado a jogos de futebol, provas de atletismo e hipismo, bem como muitas sedes dos clubes funchalenses. Temos, assim, uma clara associação entre o desporto e a zona mais popular e característica da cidade. O futebol, nomeadamente o Club Sport Marítimo, foi referido na obra Lágrimas Correndo Mundo de Horácio Bento de Gouveia. Em 1926, este clube sagrou-se campeão nacional. Neste episódio percebe-se, com facilidade, o carácter popular da modalidade: “Ao sair a porta, um vivório enchia a Rua de Santa Maria. Grupos de populares, à frente dos quais se erguia um estandarte, gritavam, esbracejando num delírio resvés da demência: Viva o Marítimo! Viva o campeão de Portugal. […] E seguiu a ranchada para a sede do Clube, no Campo de D. Carlos. […] Celebrava-se o aniversário do Marítimo, campeão de Portugal” (GOUVEIA, 1959, 153-154). Mas havia, também, clubes mais elitistas. O escritor João França, no seu romance Uma Família Madeirense, descreve a relação existente entre clubes e grupos sociais: “o Alfredo Meireles devia deixar o Madeira e filiar-se no Marítimo, isso para estar de acordo consigo mesmo, pelo menos quanto às cores das bandeiras e nível social. […] As cores do Madeira, o clube da elite funchalense, eram o azul e branco, a exemplo da bandeira da Monarquia, e as do Marítimo, clube popular, o rubro e o verde, tal o estandarte da República portuguesa” (FRANÇA, 2005, 34-35). Embora o principal objetivo dos clubes fosse fomentar o desenvolvimento físico dos seus sócios através de atividades desportivas, também promoviam excursões de recreio, convívios e atividades culturais. Os clubes comemoravam, assim, datas importantes, efemérides, e homenageavam individualidades de relevo para a causa desportiva. São exemplos disto as comemorações do V Centenário da Descoberta da Madeira, a extinção da cólera na ilha e os aniversários da Implantação da República. As excursões instituídas pelos clubes tinham como objetivo promover o convívio entre os adeptos, os jogadores e a imprensa, assim como fomentar a troca de experiências com outras equipas. Os adeptos dos clubes e a imprensa eram convidados para estas viagens, normalmente marítimas, que saíam do Funchal para o exterior, e não no sentido inverso. Era hábito haver o acompanhamento por parte de uma banda filarmónica. Os clubes tinham preocupações sociais, servindo as excursões para angariar fundos para doar a algumas instituições de caridade e causas públicas, sendo a construção do sanatório para tratamento da tuberculose um bom exemplo. Além das excursões, as associações desportivas dinamizavam bailes de Carnaval e de Páscoa, saraus literários, musicais e dançantes. Estes encontros, que se realizavam na sede do clube ou num teatro da cidade, serviam, também, para a entrega de prémios àqueles que tinham participado nas atividades desportivas. Com a instauração do Estado Novo, o desporto foi usado com o intuito de regeneração da raça, ficando o carácter lúdico e de sociabilidade para outros planos mais secundários. A intervenção estatal no campo do desporto foi notória com a criação de várias instituições: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (1935), Mocidade Portuguesa (1936), Instituto Nacional de Educação Física (1940) e Direção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (1942). Estas instituições, aliadas “à construção de campos de jogos, de ginásios e de estádios e aos subsídios anuais de milhares de contos para o desporto vão fazer da caminhada da atividade desportiva em Portugal, um trajeto constantemente acompanhado, vigiado e controlado, sem grande margem de manobra e autonomia” (NASCIMENTO, 2011, 96). A ideia que o Estado Novo tinha do futebol, e do desporto em geral, era que deveria ser amador, ao serviço da nação, da educação física, para o cultivo do corpo. O desporto de espetáculo, de massas, era amplamente condenável pelo regime. Embora o Estado Novo nunca quisesse potenciar o futebol, assistiu-se a uma propagação desta modalidade. O futebol tornou-se um desporto de massas, urbano, popular, económico e democrático. Este era “um dos pilares da sociedade portuguesa da época por ação do povo que, através da prática e acompanhamento semanal da modalidade, usufruía de um intenso entretenimento e euforia, contrariando a ideia de que seria um agente de corrupção moral” (Id., Ibid., 113). As enchentes tornaram-se uma realidade, possibilitando a riqueza de bilheteira, fonte de receita fundamental para os clubes. Segundo o DN da Madeira (29 jul. 1945, 1), o orçamento de 1946 do Ministério das Obras Públicas na Ilha previa o arranjo do campo de jogos do Liceu Jaime Moniz, a primeira fase de arranjos do campo dos Barreiros e do Parque de Santa Catarina e a terraplanagem de campos de jogos locais. Entre 1940 e 1957, houve na Ilha várias obras de melhoramento e inaugurações de campos de futebol (Funchal, Câmara de Lobos, Machico, S. Jorge, Santana e Santa Cruz). No entanto, “o que marca este período na Madeira em termos de infraestruturas é, indubitavelmente, a inauguração do Estádio dos Barreiros”, em 1957 (NASCIMENTO, 2011, 103). À semelhança das décadas anteriores, nos anos 60 os clubes foram dinamizadores de grandes eventos culturais, como as Feiras Populares do Marítimo e as Quermesses do Nacional. Com estas festas, a população, sequiosa de distrações, podia, durante o verão, ter contacto com individualidades da televisão, da rádio e do teatro, que de outra forma não seria possível. Marcaram presença nas Feiras e Quermesses artistas nacionais como Simone de Oliveira, Madalena Iglesias, Conjunto Académico João Paulo, António Calvário, Paula Ribas, Elsa Vilar, Raúl Solnado, Badaró, Maria de Lourdes Resende, Duo Ouro Negro, Max, Anita Guerreiro, Mimi Gaspar, Mena Matos (imitador), Humberto Madeira e Helena Tavares; e nomes internacionais: Alberto Cortez, Vicky Lagos, Marisol e António Prieto. Estes eventos, que ocorriam em pontos agradáveis da cidade, tinham, além dos momentos musicais, teatro, bazares, exposições, casas de chá, barracas de “comes e bebes” e várias distrações. Enquanto as Quermesses se destinavam à elite funchalense, acontecendo em locais mais sofisticados e com artistas mais afamados, as Feiras do Marítimo congregavam as camadas populares da urbe. Porém, embora o sucesso fosse grande, estes eventos terminaram em 1964, dada a exiguidade territorial, a pouca população e a elevada qualidade exigida pelos seus promotores. Com o 25 de Abril, o desporto deixa o seu cariz elitista, como pretendia o Estado Novo, e passa a ser massificado, revelando-se a raiz popular do mesmo. A política desportiva da RAM fez surgir e consolidou os clubes desportivos regionais: “Em 1976 eram vinte e sete, em 1980 eram quarenta e cinco e em 1988 passariam para cinquenta e cinco, os clubes legalmente constituídos e inscritos em competições nacionais e regionais” (Id., Ibid., 120). Com a crescente adesão da população às práticas desportivas, novas modalidades vão alcançar êxito fora da ilha – como o voleibol, a natação e o hóquei –, levando ao surgimento de 20 novos núcleos desportivos e várias associações, nomeadamente o Clube dos Amigos do Basquete, o Clube Futebol Andorinha e a Associação Hípica da Madeira. O primeiro dia de maio – dia de S. Tiago Menor, padroeiro da cidade do Funchal, das antigas comemorações das Festas dos Maios e, mais tarde, Dia do Trabalhador – era um dos momentos mais esperados do ano pela população do Funchal. Provavelmente, a maior parte das pessoas ignorava o significado deste dia, como descreve João França: “Talvez nem soubessem daquele 1.º de Maio de 1538, em que Santiago Menor operou o milagre do fim da peste no Funchal, isso após vinte anos de medo, sofrimento e luto” (FRANÇA, 1990, 23). Este dia levava centenas de pessoas à Quinta do Palheiro Ferreiro, onde a família Blandy permitia, às classes trabalhadoras urbanas, a entrada. Daqui “todos traziam os colares de flores, as ‘maias’ – e os folguedos, os jogos, as brincadeiras, os encontros, as brejeirices preenchiam os relvados da propriedade. Ia-se a pé, como também à Festa do Livramento, no Caniço. […] Os grupos de forasteiros animavam-se com o rajão e com o harmónio e a gaita de boca… Havia bailinhos, comiam-se espetadas e bolos do caco” (PINTO-CORREIA, s.d., 16). Uma grande parte da população que não se deslocava à Quinta do Palheiro Ferreiro dava passeios pelo campo, às vezes só até ao limite da cidade, onde, em família, faziam o seu piquenique. Ao fim do dia, as famílias regressavam a casa felizes e com ramos de flores, tradição que se manteve. Entendendo-se a cultura como um conjunto de informações não hereditárias, acumuladas, conservadas e transmitidas pelas diversas coletividades humanas, as festas serão um ato cultural. Transmitidas pela tradição, as festas são, na sua peculiaridade, próprias de uma comunidade, de um espaço e de um tempo. As festas tradicionais desde sempre estiveram associadas ao elemento religioso. Sendo os limites entre religião e cultura ambíguos, Durkheim aponta a estreita relação entre religião e festas, importantes manifestações da vida quotidiana para o povo. Estas teriam surgido da necessidade de separar o tempo em dias sagrados e profanos. As festas de cariz religioso, algumas com duração de diversos dias, permitem interromper a rotina, várias vezes ao longo do ano, para a sua organização e participação popular. As festas de carácter popular, incluindo as religiosas, espelham sempre o espírito tradicional e a psicologia de uma região. As festas mais típicas, populares e antigas da Madeira são as religiosas. Estas “refletem o esplendor e entusiasmo das províncias portuguesas do Norte; a tristeza e saudosismo das províncias do Sul; ressentem-se da influência dos povos que, desde o descobrimento, as povoaram e viveram em contacto connosco” (PEREIRA, 1989, II, 486-487). Na Ilha, são vários os exemplos de festas religiosas e procissões. Como descreve um autor anónimo, em 1819, “as maiores alegrias proporcionadas aos naturais são os festivais religiosos e as procissões; a sua ânsia por estes espetáculos é tanta que vêm de todas as partes das ilhas [sic] para as observar, ficando as ruas extremamente povoadas e as janelas cheias de senhoras envergando as melhores vestes, para observar o cortejo” (SILVA, 1994, 95). Isabella de França, em meados do séc. XIX, após assistir à chegada de uma romaria do Santo da Serra, chocou-se com a falta de gosto do triste cortejo, no qual as pessoas simples pareciam divertir-se. Com opinião contrária, Michael Graham, autor de The Climate and Resources of Madeira (1870), assinala o notável “trabalho do povo, em mútua colaboração e o seu bom gosto na decoração das ruas e a extraordinária beleza dos altares, devido à cuidada ornamentação floral” (Id., Ibid., 95), tradição que permaneceu até à atualidade. Desde longa data se festejaram os santos populares no Funchal. Era na véspera, principalmente à noite, que as festas atingiam o auge. Os adros das igrejas, com as suas fachadas decoradas com iluminações (balões venezianos e lanternas coloridas), eram palco dos divertimentos populares. O fogo de artifício que se seguia à cerimónia religiosa da noite ocupou, desde o séc. XIX, um lugar de destaque nestes festejos e tornou-se indispensável ao programa da festa. Na véspera da festa, o fogo, que ficava, às vezes, exposto ao público no largo da feira, era levado, num cortejo acompanhado por bandas filarmónicas, para o local da exibição. A queima de fogo preso, intervalado por música, foi descrita por João dos Reis Gomes: “rodas num redemoinhar vertiginoso, baterias lançando balas luminosas, árvores de fronde colorida e chamejante, bonecos em jatos de fogo simulam incontinências fisiológicas, tudo quanto o gosto inculto dos pirotécnicos locais pôde encontrar de mais divertido e atraente, convergindo num último esforço para a girândola final, farta de cor e luz, a pôr gritos de espanto na boca ingénua dos romeiros das freguesias afastadas” (PEREIRA, 1989, II, 490). Nas romarias, a primeira obrigação do romeiro é a visita ao templo para cumprir a promessa feita, beijar a imagem do Santo e deixar esmola para a festa. No dia da festa, após as cerimónias da missa cantada, há um cortejo religioso, onde a imagem do Patrono e as confrarias da Paróquia têm um lugar de destaque. Crianças vestidas de anjos ou com trajes tradicionais da Região espalham pétalas de flores ao longo do percurso. O povo assiste com uma postura recatada e religiosa. Longinquamente, estes cortejos religiosos revestiam-se de um carácter profano, o que foi reprimido pela Igreja, que considerava um abuso e um excesso. A festa de S. João era a mais popular na Madeira. No bairro de Santa Maria elaboravam-se tronos em honra de Santo António e S. João e praticavam-se cerimónias religiosas em homenagem aos santos. Grupos de populares divertiam-se, até de madrugada, tocando e cantando. As casas eram decoradas com balões venezianos e “tradicionais bentas de Louro, murta e alecrim” (CALDEIRA, 2007, 94), adquiridas na rua do mercado e largo da praça. Juntamente com as festividades do S. João, a romaria do Monte era a mais concorrida das festas tradicionais funchalenses. Sendo Nossa Senhora do Monte Padroeira da Madeira, desde 1804, por ação do Papa Pio VII, o seu culto, que se vinha intensificando desde meados do séc. XVIII, provocou as maiores romagens ao templo de maior afluência de crentes e a mais concorrida romaria da Ilha, procurada por milhares de fiéis. Os romeiros, que chegavam à cidade dois dias antes da festa, animavam as ruas da Alfândega, Tanoeiros, Praia e largo dos Varadouros, onde comiam o seu farnel, deslocando-se, em seguida, para o Monte, cantando e dançando ao som de machetes e violas. No dia da festa, ao amanhecer, os romeiros começavam a descer para a urbe, onde apanhariam os vapores costeiros que os levariam às suas localidades. Segundo Abel Caldeira, nos anos 60 do séc. XX, a romaria do Monte estava desvirtuada com a falta de romeiros, verificando-se apenas a frequência de curiosos que se deixavam aniquilar pela especulação exercida com a venda de bugigangas, frutas e comes e bebes. O dia de S. Pedro era celebrado com demorados passeios pela baía do burgo, em pequenos botes. Neste dia, a praia, o cais e imediações enchiam-se de pessoas que vinham dos arredores da cidade. Na zona marítima do Funchal, decorada com bandeiras, as famílias passavam a tarde e parte da noite num convívio animado por grupos de tocadores e cantores. A procissão com a imagem do Apóstolo saía da igreja de S. Pedro e passava à beira-mar. A noite de S. Martinho era outra das festividades populares do Funchal. A ceia tradicional, realizada na maioria das casas, era composta por castanhas cozidas, nozes, pimpinelas, bacalhau cru ou assado e vinho seco: “Os proprietários do vinho novo aproveitavam-se dessa noite para passar o vinho e convidar os parentes e amigos para assistirem a essa operação” (Id., Ibid., 95). Havia cortejos, iluminados com “tochas” feitas de bananeiras e velas, que percorriam diversos sítios. A época natalícia, festa por excelência da população madeirense, é comemorada no arquipélago entre o dia do nascimento de Jesus até ao dia de Reis, desde longa data. Segundo Horácio Bento de Gouveia, “a Festa é a principal coluna da memória para assinalar o tempo” (VERÍSSIMO, 2007, 79). A Festa, forma pela qual se designa o Natal, é precedida por um novenário conhecido por Missas do Parto, celebradas antemanhã com loas ao Menino. Ocorrendo entre 16 e 24 de dezembro, as Missas do Parto são as primeiras manifestações de júbilo e entusiasmo pela proximidade da quadra festiva. É uma devoção mariana e comemora os nove meses de gravidez da Virgem Maria ou Nossa Senhora do Ó, designada, na Madeira, por Senhora ou Virgem do Parto. Por essa razão, as Missas começam nove dias antes do Natal e culminam com a Missa do Galo. Estas Missas, onde sagrado e profano se misturam, após conhecerem um certo declínio, voltaram a ser muito participadas e apreciadas. Durante a noite da véspera de Natal, a população da ilha formigava no Funchal para comprar fruta, flores, verduras, figurantes de barro e enfeites para os presépios. Nesta noite, uma multidão de vendedores ambulantes improvisava uma feira nas várias artérias da cidade. O movimento de carros e peões entre o Funchal e as povoações rurais era constante. A ida ao mercado também proporcionava momentos de diversão, com cantigas e despiques dentro do mercado e nas suas ruas limítrofes durante a noite. As tascas da zona eram, e continuaram a ser, muito frequentadas pelas iguarias de Natal. Nesta época, os preparativos domésticos azafamavam toda a população. Como descreve Cabral do Nascimento, em 1950, “Nas casas, a limpeza a que se procede não exclui a própria caiação das paredes, nos diversos arranjos que se seguem está implícita a substituição das cortinas das janelas e até a modernização dos estofos da mobília. Depois, passando das salas e dos quartos para a despensa e cozinha, vêm em primeiro lugar a amassadura dos bolos de mel e a preparação dos licores, em especial de tangerina e amêndoa” (NASCIMENTO, 1950, 26). As mesas, mesmo as das famílias mais carenciadas, eram guarnecidas com iguarias típicas da época e raras durante o resto do ano; e as casas eram decoradas com presépios e lapinhas. As igrejas enchiam-se de pessoas para a Missa do Galo, à meia-noite. Aqui, observava-se uma representação tradicional, misto de religioso e profano, o “pensar o Menino”, seguida da “entrada de pastores” que o vão adorar. O auto de “pensar o Menino”, proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto, simulava o nascimento do Salvador com bastante realismo. Esta cerimónia foi simplificada e era feita por uma criança vestida de anjo, que entoava uma melodia privativa desse ato. Embora proibida, a “Pensação do Menino” sobreviveu em algumas localidades, como a freguesia da Boaventura, na costa norte da Ilha. Nesta cerimónia, os crentes beijavam a imagem do Deus-Menino, assistiam ao vestir do Menino e ao canto do Anjo, bem como à entrada dos pastores. Estas práticas, comuns ao meio rural e ao meio urbano, tinham já desaparecido do Funchal em meados do séc. XX. O vestir do Menino consistia em trajar a imagem do Deus-Menino na noite de Natal, num estrado colocado dentro da igreja. Este serviço, juntamente com o canto do Anjo, para o qual uma voz infantil era ensaiada durante o ano, era ministrado por raparigas. A entrada dos pastores, auto vulgar na península Ibérica desde o séc. XIII, consistia em oferecer ao Deus-Menino, na mesma noite, os vários produtos da terra, animais vivos, ovos, géneros alimentícios e dinheiro. Um dos presentes mais característicos desta noite costumava ser o comum pão de açúcar em forma de cone troncado. As oferendas eram feitas por raparigas e rapazes, vestidos com trajes antigos, que as conduziam ao altar, anunciando com cantares a quem se destinavam: “As cerimónias de Pensar o Menino e presenteá-Lo com dádivas e promessas, agradecimentos e invocações, prolongam-se pela noite dentro até 2 e 3 horas da madrugada. Sai depois o povo da igreja e reúne-se no Largo do Município onde os ranchos folclóricos de pastores se exibem em bailados e cantares até romper a manhã […]. Na primeira oitava, de tarde, começam as romagens às Lapinhas de todos os sítios” (PEREIRA, 1989, II, 512). Ideia bem diferente tem Cabral do Nascimento sobre esta noite: “Fechou-se tudo, após a missa do galo. O silêncio pesa. O céu é cor de cinza. O ar está imóvel. […] Só, de quando em quando, um estampido seco, uma bomba de clorato que rebentou no chão ou um morteiro que se ergueu na atmosfera pasmada” (NASCIMENTO, 1950, 27). O termo “lapinha” – também usado em certas regiões do Brasil, com o mesmo significado – deverá ser o diminutivo de “lapa” e significará furna ou gruta, criando uma analogia com o local do nascimento de Jesus. O presépio, criação de S. Francisco de Assis, foi introduzido em Portugal pelas freiras do Salvador, em finais do séc. XIV, e trazido para a Madeira pelos primeiros povoadores. A típica composição do presépio reflete a história da natureza, da vida social e da psicologia de cada época. A orografia acidentada da ilha era “representada com a ingenuidade da arte popular”. Assim, “Dos presépios mais antigos existentes na Madeira alguns honram brilhantemente a arte do barro do séc. XVIII. […] Conservam-se em casas particulares, encerrados dentro de nichos onde foram primitivamente armados, sendo alguns desdobráveis em trípticos” (PEREIRA, 1989, II, 506-509). Embora fossem de carácter privado, algumas lapinhas eram admiradas e visitadas por parte da população funchalense, nomeadamente: a lapinha do Afasta… Afasta, a lapinha do Asilo, a lapinha do Bertoldo, a lapinha do Joaquinzinho, o presépio de São Filipe, a lapinha do mestre Antonico, o presépio do Rodolfo, a lapinha do Caseiro. Francisco Ferreira, o Caseiro, antigo colono das freiras de Santa Clara e familiar de Herberto Helder, foi um dos presepistas mais destacados. O que tornava estas lapinhas e presépios tão apreciados era a sua antiguidade, o número de figuras e o precioso trabalho que estas revelavam. De entre as figuras expostas, apareciam algumas articuladas, bem como o busto do proprietário, algumas vezes autor das peças. Algumas destas lapinhas eram emprestadas às igrejas para as cerimónias natalícias. Com a ironia que lhe é muito própria, e criticando a forma como se vivia o Natal em meados do séc. XX na Madeira, Cabral do Nascimento caracteriza os presépios de forma distinta: “No interior das casas, como nas capelas das igrejas, o presépio está armado e é mais ou menos igual ao dos anos anteriores: reforçam-no apenas alguns novos pastores de barro policromo ou uma ou outra inovação do progresso: automóveis que se dirijem para Belém, ao lado de camelos, locomotivas que projetam, pelas chaminés, fumo compacto de algodão branco [...]. O Menino Jesus tem um ar do século xviii, veste comprida túnica de seda orlada de rendas e, erguendo a mãozita gordalhufa, toca com o dedo num cacho de bananas de loiça, que está na rocha, e que, a despenhar-se, poderia esmagar a um tempo todos os três Reis Magos” (NASCIMENTO, 1950, 27). Após o dia de Reis, as lapinhas são desmontadas, mantendo-se algumas até 15 de janeiro, dia de Santo Amaro, momento em que são dadas como findas as tão apreciadas festividades do Natal na Madeira.   Ana Paula Almeida (atualizado a 01.03.2017)

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