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João Cabral do Nascimento nasceu no Funchal (R. do Carmo), em março de 1897, no seio de uma família madeirense, cuja genealogia integra diversas filiações nacionais, como o próprio notou na sua Genealogia da Família Medina…, em cuja gens, de resto, Nascimento se inscrevia. Para além dos Medina e Vasconcelos, família com raiz judaica e com relevância política e cultural nas ilhas atlânticas, há também a referir os Caiados, família portuguesa instalada na Madeira desde o séc. XV (e nome que o autor recuperará para um dos seus pseudónimos – João de Cayado) e, entre outras, os Crawford, família escocesa residente na Ilha desde o séc. XVIII. Acresce ainda a este cosmopolitismo familiar a ligação de Cabral do Nascimento a um empresário francês residente na Madeira e casado com Matilde de Menezes Cabral, tia do autor Adolpho Constant Burnay, que foi padrinho de batismo de Cabral do Nascimento. Na verdade, trata-se de um escritor e agente cultural, cuja obra integra várias centenas de textos publicados em livro e na imprensa periódica, assim como um vasto conjunto de traduções, a criação e a coordenação de alguns dispositivos culturais (entre os quais se destaca o Arquivo Distrital do Funchal, diversos jornais e revistas) e ainda a colaboração em grupos e iniciativas que, na Madeira e na então metrópole, marcaram a vida cultural e política do séc. XX. Entre estes últimos, salientam-se o círculo integralista de António Sardinha, as tertúlias dos Artistas Independentes e diversos grupos de criadores e intelectuais ligados a periódicos como Orpheu, A Monarquia, Restauração, Cadernos de Poesia, Távola Redonda, Colóquio-Letras, etc. Não surpreende, portanto, que um dos traços mais marcantes na sua obra seja, justamente, um certo cosmopolitismo, que não deixa de conviver, sempre de forma (auto)crítica e tensional, com uma aguda atenção dada às realidades culturais, sociais e políticas de Portugal e da Madeira. Isto é, uma forma muito própria de nacionalismo e regionalismo que se distingue claramente do exclusivismo e do ufanismo que outros nacionalismos e regionalismos assumiram em Portugal e na Madeira no séc. XX. Parecendo paradoxal, este posicionamento ambivalente e tensional era já defendido por João Cabral (do Nascimento) em 1924, no artigo “Queiroz póstumo”, por si publicado no Diário de Notícias do Funchal, a 26 de abril. Aqui, satirizando a “patriotice” dos que defendiam o confinamento da cultura portuguesa (e madeirense) aos limites das suas fronteiras geopolíticas e culturais, Nascimento defendia, com Eça de Queiroz, que “um povo só vive porque pensa” e “um espírito superior, afeito às coisas elevadas e espirituais, esse aprende a ser nacional se acaso atravessa o estrangeiro ou aí instala a sua residência” (CABRAL, DN, 26 abr. 1924, 1). É certo que, no primeiro quartel do séc. XX, Nascimento assumiu publicamente a sua adesão ao nacionalismo monárquico, quer junto do integralismo lusitano de António Sardinha, ao longo do ano de 1917, quer, depois, junto dos dissidentes nacionalistas integrais de Coimbra, entre os quais viria a ser uma figura-chave nos anos de 1921-22, ao serviço do semanário Restauração. É igualmente verdadeiro que muitos daqueles com quem privou foram figuras próximas de Salazar e do Estado Novo (Francisco Franco, António Ferro, João de Castro Osório, Luís Vieira de Castro, Amândio César, entre outros), sendo ainda notória, na versão de 1933 do seu Além-Mar, alguma aproximação de Nascimento a valores legitimados pelo regime recentemente instituído, algo que, de resto, aconteceu com muitos monárquicos, nesse mesmo período. Entre esses valores, destaque-se: a estética adotada no grafismo geométrico da capa do opúsculo; a opção pelo registo épico nacionalista; ou, na sua fábula, a subliminar manifestação de uma esperança num líder capaz de mobilizar a grei na busca de um caminho para a ordem. Esta nova versão revista de Além-Mar, poemeto épico publicado pela primeira vez em 1917, apresenta variações significativas na sua fábula, distanciando-se, por isso, do registo desencantado e antiépico da 1.ª edição, publicada nos anos da Grande Guerra. Tudo isto não invalida, porém, que se considere Cabral do Nascimento ora como um nacionalista cosmopolita, avesso a conceções monológicas e puras de nação, ora como um cosmopolita nacionalista, cuja obra evidencia um permanente trânsito e diálogo entre o que (lhe) era familiar e (lhe) era estranho, entre distintas culturas e línguas, entre diversos textos, tempos, posicionamentos ideológicos e estéticos, numa itinerância particularmente atenta a questões de identidade e de memória. O passado, a memória e a dor causada pela memória do que nesse mesmo passado foi experienciado ou foi desenhado como utopia serão, aliás, tópicos fundamentais na sua poesia, evidenciando-se de igual forma no trabalho que desenvolveu como arquivista, investigador sobre a história da Madeira, genealogista ou até antologiador de textos de períodos históricos anteriores. Na verdade, a autonomia crítica que sempre marcará a sua atuação como agente cultural e político leva-o a distanciar-se rapidamente do integralismo lusitano e do neorromantismo lusitanista, ao publicar no Diário da Madeira, logo a 25 de dezembro de 1917, uma carta em que se desvincula do grupo de Sardinha e das suas “doutrinas artísticas” (“Integralismo lusitano”, Diário da Madeira, 25 dez. 1917, 1). O mesmo acontecerá relativamente ao projeto político do Estado Novo, ao demarcar-se deste, e em particular do obscurantismo do seu lema, “orgulhosamente sós”, logo a partir da déc. de 1940. Já a residir em Lisboa e paralelamente à atividade docente que, iniciada em 1922 na Escola Industrial e Comercial do Funchal e no Instituto Comercial do Funchal, será retomada nas escolas Veiga Beirão e Ferreira Borges (Lisboa, entre 1937 e 1958, ano da sua aposentação), Cabral do Nascimento reorienta a sua atividade cultural para a tradução de autores estrangeiros, os quais, assim, são integrados no sistema cultural português. Algumas dessas traduções viriam mesmo a ser objeto de censura pelo lápis azul. A evidenciar também esse distanciamento de Nascimento relativamente ao projeto de nação do Estado Novo, note-se que, nesse mesmo período, o autor insular não se inibe de publicar poemas como “Na vilazinha pobre”, onde, com o sarcasmo corrosivo que muitas vezes se encontra nos seus textos em prosa, denuncia os efeitos nefastos que entrevia nessa forma exclusivista de pensar as sociedades, as culturas e os sujeitos, ridicularizando a imagem de um “Portugal-vilazinha-pobre” que Salazar se orgulhava de estar a implementar no país. Enquanto autor literário (poeta, cronista e ficcionista), rejeitará sempre o registo panfletário, evitando, de igual forma, processos de referencialidade denotativa, heranças, certamente, do convívio inicial com a estética e a poética simbolistas. Mas nem por isso a obra de Cabral de Nascimento (literária e não só) pode ser lida como um conjunto de fenómenos culturais totalmente desvinculados da polis e da política. Move-o, sobretudo, a busca de um saber em crescendo, a que, porém, não são alheios os valores éticos e deontológicos do rigor autocrítico ou da exigência epistemológica, criativa e cívica que sempre manifestou. Lembre-se, a título de exemplo: o perfecionismo e a depuração linguística da sua poesia; a continuada revisão dos livros que foi publicando, incluindo-se também aqui as suas traduções; e até o seu afastamento da Madeira e dos cargos que aqui ocupava, quando, nos anos 30, na qualidade de cidadão insular, mas também enquanto diretor do Arquivo Distrital do Funchal e sócio eleito quer da Associação de Arqueólogos Portugueses, quer do Instituto Português de Arqueologia Histórica e Etnografia, se opõe à política de turismo em implementação na Ilha e às lutas locais pelo poder, no quadro das quais, em seu entender, não estavam a ser asseguradas a preservação e a dignificação do património histórico e cultural do arquipélago. A este respeito, não se ignore também que, em outubro de 1924, Nascimento assumira, por algum tempo, o cargo de delegado do Governo no Funchal, quando o presidente do Ministério era o madeirense Alfredo Rodrigues Gaspar. Nessa ocasião, participou no debate público sobre o modelo de política de turismo para a Madeira, defendendo, entre outras propostas, a criação de um museu regional, com a salvaguarda de que este não fosse destinado ao turista, como então se defendia na Ilha. Num artigo de opinião publicado a 28 de novembro de 1925, no Diário de Notícias do Funchal, a que deu o título “Acêrca do Museu”, João Cabral (do Nascimento) contra-argumentará esse posicionamento dominante, defendendo que o museu, com uma “biblioteca anexa” e dando visibilidade às “manifestações artísticas regionais (ou cujos documentos se consigam obter)”, deveria funcionar como dispositivo cultural, pedagógico e científico, destinado à “mocidade das escolas”, àqueles “que se entregam a monografias regionais” e, de um modo geral, ao “povo” que, assim, “adquiri[ria] certos conhecimentos […] que tanto lhe escasseiam” (CABRAL, DN, 28 nov. 1925, 1). Ainda a este respeito, recorde-se que no início de 1937, ano em que, desencantado com as dinâmicas políticas, sociais e culturais em curso na Ilha, acabará por abandonar o Funchal, passando a residir em Lisboa, Nascimento integrava o recém-formado Conselho de Turismo da Madeira, órgão local onde procurou, sem sucesso, arguir o seu posicionamento sobre a política de turismo para a Madeira, contra as perspetivas mercantilistas aí dominantes. Cabral do Nascimento constrói, assim, uma obra (literária e não só), cujos posicionamentos surgem em grande parte sustentados por uma experimentação do que era próprio do “outro”, mas que, de alguma forma, ao ser conhecido/experimentado, passava também (mesmo que em conflito ou oposição), a integrar o que era próprio de si e da sua obra: a língua, o texto, a cultura, a conceção estético-artística, os valores ideológico-políticos desse(s) “outro(s)”. Assim, e apesar de toda a autonomia que, após as décs. de 1920-1930, o levaria a evitar filiações em grupos ou até em associações políticas, culturais e profissionais (incluindo-se aqui a Sociedade Portuguesa de Autores e a Associação Portuguesa de Escritores, cujos convites para adesão declinou, respetivamente em 1965 e em 1973), Cabral do Nascimento assume-se como um autor não-insulado e em recorrente visitação de uma pluralidade de sistemas que quer conhecer por dentro e que ultrapassam em muito as fronteiras dos sistemas culturais madeirense e português. Experimentando-os até onde lhe permitia a sua alteridade, procurava depois rever ou confirmar o seu próprio lugar identitário, estético, epistemológico e político. Em simultâneo, afirmava-se como um sujeito que, apesar dessa contínua aprendizagem, assumia com determinação, mas sem protagonismos exibicionistas, o dever de e o legítimo direito a inscrever a sua voz (pessoal, literária e ideológica) e o seu corpo (físico, cultural e político) no mundo. Disso nos dá conta, e.g., no poema “Memória”, publicado significativamente nos números 32 e 33 de Panorama. Revista Portuguesa de Arte e Turismo (1947), onde encontramos uma voz poética periférica e ignorada pelos outros, ou melhor, pelo outro-eu, dado que esse outro é, na verdade, Lisboa. Mas é um sujeito que, mesmo perante essa marginalização, quer deixar as suas “passadas” e a sua “fala” “nova” inscritas nesse mundo que as não vê/lê/ouve ou que as insiste em rasurar da memória. A obra de Cabral do Nascimento dá conta de um complexo processo discursivo que fica marcado pelas dinâmicas da hipertextualidade e do contraponto, este último aqui entendido no sentido proposto por Edward Said). Apesar de perfeitamente aceites nos sistemas culturais e literários dos inícios do séc. XXI, na déc. de 1910, estas dinâmicas discursivas seriam inusitadas na Madeira e até a nível nacional, como demonstra a história da receção de autores coevos como Fernando Pessoa ou Almada Negreiros, efetivos interlocutores de Cabral do Nascimento, no debate sobre o modernismo e as vanguardas que, nesses mesmos anos, se desenvolvia em Portugal. Ler a obra poliédrica do autor madeirense exige, pois, um paralelo exercício de itinerância discursiva: ora pelos discursos desses outros autores evocados e transferidos criticamente para a obra de Nascimento, ora pelos múltiplos trabalhos do próprio autor madeirense. Estes últimos, justamente por se apresentarem como resultantes de um continuado exercício de revisão e reescrita, surgem como ensaios provisórios ou fragmentos de uma obra compósita e em devir, cuja construção do(s) sentido(s) ganha (um pouco à semelhança do drama em gente de Pessoa) com o cruzamento dessas múltiplas textualidades autónomas, mas afinal implicadas umas nas outras, e que, nessa exata medida, apelam a uma constante (re)leitura crítica e em rede. Trata-se, na verdade, de uma dinâmica de composição e de leitura que Nascimento experimentou, desde o início da sua vida literária, com a adoção do género folhetim, embora essa sua prática, por ser desconhecida até muito depois, não tenha sido analisada com a devida relevância por críticos e académicos atentos à obra e à poética do intelectual madeirense. Referimo-nos em particular a Novela Romântica e Burlesca de Cinco Artistas Vagabundos, folhetim publicado no Diário da Madeira, na segunda metade de 1916, em coautoria com Ernesto Gonçalves, Luís Vieira de Castro, Alfredo de Freitas Branco e Álvaro Manso de Sousa; e, já em 1921-1922, aos folhetins publicados no jornal Restauração e atribuídos a três figuras autorais criadas por Nascimento: João da Nova, Simão Escórcio e Houston Cherry. Convocando as palavras de Edward Said, quando atribui a alguns intelectuais o perfil da figura do exilado, um “perturbador do status quo”, ocupado em “derrubar os estereótipos e as categorias redutoras que tanto limitam o pensamento humano e a comunicação” (SAID, 2000, 13-14), podemos afirmar que também a obra de Nascimento, e pesem embora as suas simpatias conservadoras no domínio da política, nos revela um intelectual exílico, que quase sempre foi um tradutor: um mediador empenhado em viajar entre espaços, tempos, culturas e línguas, ora trazendo esses muitos outros até ao hic et nunc do texto e do leitor, ora, inversamente, levando estes até esses outros. O objetivo da globalidade heterogénea da sua obra foi, sobretudo, servir de ponte ou criar textos e dispositivos culturais capazes de suplantar os abismos temporais, espaciais, linguísticos, ideológicos e culturais que separam sujeitos e as suas comunidades. Não apenas com a missão de contribuir para o que considerava ser o bem comum, mas também como dinâmica fundamental de questionação autorreflexiva e de permanente refazer da sua própria identidade, quer como sujeito político, quer como autor literário e agente cultural. Poliédrica, também nas opções genológicas praticadas (poesia lírica; narrativa em verso e prosa; folhetim; ensaio; crónica; artigo jornalístico e artigo historiográfico; crítica literária; descrição genealógica, etc.), essa heterogeneidade e transitoriedade exílicas, não raras vezes geradoras de tensões e até de aparentes paradoxos, reencontram-se na sua assinatura autoral, ou melhor, nas suas assinaturas autorais, dado que foram vários os nomes com que assinou os seus trabalhos. O seu mais antigo texto conhecido até aos começos do séc. XXI surge assinado com o seu nome civil e remonta a 1913, tendo saído em Gente Nova, uma edição comemorativa do primeiro aniversário da Caixa Escolar do Lyceu do Funchal, escola frequentada por Nascimento a partir de 1911, onde participou em várias iniciativas culturais e onde realizaria os estudos secundários, antes de ingressar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em outubro de 1915. Com apenas 15 anos, o jovem autor publicava, em 1913, a narrativa breve “Um engano”, onde o estranho e o fantástico fazem notar o diálogo que Nascimento sempre manterá com Edgar Allan Poe e com a cultura anglo-saxónica. A este respeito, saliente-se que a última edição (ne varietur) do seu Cancioneiro, datada de 1976, encerra, justamente, com uma “recriação em português” do poema “O corvo” de Poe, sublinhando, assim, o traço dialógico da sua poética, mas também a valorização da atividade tradutória e das culturas anglófonas na globalidade da sua obra A partir de 1913, o nome de Cabral do Nascimento passa a constar com crescente regularidade e destaque nos jornais funchalenses: Alma Nova; Heraldo da Madeira; e sobretudo Diário da Madeira, onde, até à déc. de 1920, será um assíduo colaborador, mesmo nos anos em que se encontrava a estudar em Lisboa e, depois de 1919, em Coimbra, em cuja universidade finalizará a licenciatura em Direito em 1922. Publicará também com regularidade no jornal A Monarquia, em Lisboa, no ano de 1917. E já na década seguinte, destacam-se as suas colaborações recorrentes no semanário Restauração de Coimbra (1921-1922) e no Diário de Notícias do Funchal (1923-1934). Porém, se a maioria desses textos dispersos e os vários livros que publicou ao longo da vida surgem assinados com o seu nome civil, embora, por vezes, com ligeiras variações (João Cabral, Joam Cabral do Nascimento, João Cabral do Nascimento, Cabral do Nascimento, J. C., J. C. N), foram também diversas as situações em que recorreu a pseudónimos, tais como: João de Caiado ou João de Cayado, nom de plume com que subscreveu, na déc. de 1910, vários artigos no Diário da Madeira; e Mário Gonçalves, pseudónimo com que assinou algumas traduções incómodas para o Estado Novo ou que não caberiam dentro da lista das suas afinidades eletivas. Esta variação na onomástica autoral da sua obra não se esgota aqui, chegando mesmo, nas décs. de 1910 e 1920, à criação dos semi-heterónimos Ismael de Bô, João da Nova, Simão Escórcio e Houston Cherry, porquanto, nestes últimos casos, os textos subscritos por essas assinaturas apresentam de diferenciador relativamente aos textos assinados com o nome civil do escritor. Se o ideologema e os valores legíveis nessas textualidades se mantêm idênticos em uns e em outros, na escrita assinada pelos três semi-heterónimos ganham particular destaque registos e processos de construção discursiva que quase estão ausentes da poesia assinada com o nome civil do autor, embora aflorando pontualmente em algumas das suas crónicas. Entre estes traços distintos, destacamos o recurso à ironia, ao sarcasmo e à paródia, por vezes geradores de um discurso que toca o non-sens, distanciando-se, assim, da limpidez e contensão discursivas que se registam na sua poesia. E sublinhamos de igual forma, nos folhetins desses semi-heterónimos, o registo lúdico e provocatório, assim como uma técnica composicional que não raras vezes se aproxima de um certo experimentalismo, nomeadamente pela adoção do corte e colagem ou da citação recontextualizada. Retrato de João Cabral do Nascimento por Abel Manta Por outro lado, embora a sua obra tenha passado a ocupar um lugar discreto nos vários sistemas culturais lusófonos (incluindo-se aqui o nacional português, mas também o madeirense), Cabral do Nascimento foi um escritor e um agente cultural e político com mérito reconhecido ao longo de toda a sua vida, quer por figuras relevantes no panorama cultural e académico nacional e internacional, quer por algumas das principais instituições ligadas à cultura portuguesa do séc. XX. A consulta da correspondência e notas pessoais conservadas no seu espólio, à guarda da Biblioteca Nacional de Portugal (espólio N28), surpreende não apenas pelo número e prestígio dos seus interlocutores, mas acima de tudo pela heterogeneidade política, artística e geracional dessas figuras, incluindo-se aqui, entre muitos outros, nomes como: Abel Manta, Afonso Lopes Vieira, António Ferro, António Sardinha, António Sérgio, Carlos Queiroz, David Mourão-Ferreira, Fernando Lopes-Graça, Fernando Pessoa, Haroldo Campos, Jacinto do Prado Coelho, João Brito Câmara, João Ameal, João Gaspar Simões, Joaquim Montezuma de Carvalho, Jean Michel Massa, Jorge de Sena, Júlio Dantas, Leroy James Benoit, Luís Amaro, Luiz Peter Clode, Maria Archer, Philéas Lebesgue, Ruy Cinatti, Tomás Kim, Vitorino Nemésio. Confirmou-se, assim, o prognóstico que, logo em 1914, era publicado no Diário da Madeira, após a divulgação dos seus primeiros textos no Funchal e a sua intervenção nas Conferências Académicas Quinzenais do Lyceu: o tímido e discreto João Cabral do Nascimento (traço de personalidade que manterá ao longo da sua vida) era então apreciado como um jovem dotado de um “precoce e prometedor desenvolvimento intelectual” (“Lyceu do Funchal. Conferências académicas”, Diário da Madeira, 18 dez. 1914, 1). A matrícula na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa leva-o, no ano seguinte, até à capital, onde participou ativamente em vários círculos artísticos e culturais, muitas vezes acompanhado por dois amigos também do Funchal: Alfredo de Freitas Branco, escritor, monárquico e futuro visconde do Porto da Cruz, que, nos anos da Segunda Guerra Mundial, viria a ser um germanófilo e apoiante do regime nazi; e Luiz Vieira de Castro, também escritor, monárquico e filho do banqueiro madeirense Henrique Vieira de Castro, que em diversos momentos desses anos assumiria o papel de mecenas dos jovens criadores e intelectuais insulares. Em 1916, Nascimento publicava em Lisboa o seu primeiro livro, intitulado As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas, o qual surpreenderá os escaparates e os críticos literários de então, sobretudo pela qualidade poética e por se tratar do primeiro livro de um jovem e desconhecido poeta madeirense. Os textos deste breve opúsculo de poemas, onde se torna evidente o diálogo com o simbolismo finissecular, eram significativamente dedicados a alguns dos seus companheiros de letras, insulares e continentais (Ernesto Gonçalves, Américo Durão, Alfredo Guisado, Elmano Vieira, Álvaro Manso de Sousa ou Luís Vieira de Castro), mas também a figuras autorais ficcionais, algumas das quais criadas pelo próprio Nascimento ou por amigos de carne e osso a quem também dedicava o livro: Ana Clara e Ismael de Bó, criados por Nascimento; Manoel de Lins, por Ernesto Gonçalves; e Pedro de Meneses, por Alfredo Guisado. As Três Princesas… viria a receber, nesse mesmo ano, uma crítica muito positiva publicada por Fernando Pessoa na revista Exílio, onde o criador do drama em gente sublinha uma suposta aproximação de Nascimento às vanguardas modernistas e em particular ao sensacionismo. O autor madeirense rejeitará sempre essa afiliação sensacionista, declarando-o abertamente num artigo que, em 1925, assinala a efeméride da publicação da revista Orpheu, publicado no Diário de Notícias do Funchal, a 5 de abril, e intitulado “Dez anos depois”. Embora declarando a sua fidelidade aos “clássicos”, à “gramática” e à “decência”, Nascimento salienta, a relevância cultural e artística do projeto Orpheu, assim como a influência que essas primeiras experiências vanguardistas, “prudentemente expungi[das de] certas inconveniências da sua estética”, tiveram “não só na literatura, mas na música e nas artes plásticas, e em tudo o mais […] [d]a geração nova”, acrescentando ainda, em jeito de confissão, o seu encontro de passagem com o sensacionismo: “O movimento sensacionista colhera-me de surpresa, no acordar da lira – ó romântica imagem! – e enredára-me nas suas teias espessas” (CABRAL, DN, 5 abr. 1925, 1). Se dúvidas restassem acerca desta confissão estética e poética de Cabral do Nascimento relativamente à sua aproximação às vanguardas estéticas então em debate na capital, elas eclipsam-se quando notamos a dedicatória de alguns dos poemas de As Três Princesas… a Alfredo Guisado e Pedro de Meneses; quando percebemos toda a estrutura fragmentária e dialogante da globalidade da sua obra; quando verificamos que esse diálogo também inclui figuras autorais dotadas de alguma autonomia e que foram criadas pelo próprio Nascimento; e, sobretudo, quando lemos o projeto narrativo Novela Romântica…, publicado em folhetim, na segunda metade de 1916, no Diário da Madeira. Polifónica e irreverente, desde logo pela autoria coletiva atribuída a cinco artistas vagabundos e por adotar um registo narrativo por vezes non-sens e provocatoriamente sarcástico, essa narrativa fragmentária e autobiográfica dá conta das aventuras ficcionais de seis diletantes cosmopolitas em deriva pelo mundo: os cinco artistas vagabundos e Colecta de Nylves, uma mulher moderna transgressiva, que assume o papel de intelectual-líder do grupo. Mais do que uma simples narrativa ou um ato criativo meramente lúdico, esta novela constitui um irónico exercício autorreflexivo ora sobre a modernidade cosmopolita coeva, assombrada por inúmeras crises, de entre as quais a Primeira Guerra Mundial seria a mais evidente; ora sobre o papel das artes (os protagonistas da narrativa surgem associados às várias artes – a música, a dança, as artes plásticas, a poesia e a ficção), das vanguardas e dos neorromantismos no mundo seu contemporâneo. Oscilando entre, por um lado, o cosmopolitismo e a irreverência vanguardista que, na fábula, os artistas vagabundos efetivamente personificam e, por outro lado, a distância crítica que os narradores-autores constroem com o seu discurso (auto)irónico e sarcástico, acerca da vida e dos valores modernos, Novela Romântica… constitui-se, uma vez mais, como experimentação paródica de múltiplas tendências estéticas e poéticas, mas sobretudo como exercício de reflexão crítica promovida no Funchal, sobre o debate artístico e cultural que, nesse mesmo período, se desenrolava em Lisboa e Coimbra, assim como em outras cidades do país que, à semelhança do Funchal, muitas vezes são rasuradas da cartografia e da história do primeiro modernismo Português. A participação de Cabral do Nascimento neste debate estender-se-á de forma evidente até meados da déc. de 1920. Entre 18 e 27 de agosto de 1918, anuncia em vários textos publicados no Diário da Madeira o projeto já em curso de criação de uma Antologia de Poetas da Ilha da Madeira, projeto que, no entanto, nunca viria a ser editado. Nascimento propunha-se reunir um conjunto alargado de autores e textos do passado e do presente, por forma a inaugurar uma reflexão séria sobre a existência ou a necessidade de criação de uma literatura madeirense, conceito que aqui deve ser entendido enquanto sistema literário insular autónomo do nacional, algo muito próximo do que, nas décs. de 1920 e 1930, também acontecerá nos Açores e em Cabo Verde. Nesse mesmo jornal, saíram vários fragmentos de um estudo introdutório a constar nessa antologia, sendo que num desses fragmentos, transformado em artigo-ensaio sobre a “novíssima geração” de autores madeirenses, Nascimento aborda a questão da relação dos novíssimos insulares com as vanguardas. Não surpreende, portanto, que ainda em 1918 este intelectual integre a tertúlia dos Artistas Independentes (1918-1933), promovida no café funchalense Golden Gate, e em que também participaram Alfredo Miguéis, Emanuel Ribeiro, Ernesto Gonçalves, Francisco Franco, João Abel Manta e Henrique Franco. Em 1919, já a estudar na Universidade de Coimbra, para onde transferiu a sua matrícula depois da Primeira Guerra Mundial, funda, com Luiz Vieira de Castro, Alfredo Brochado e Américo Cortez Pinto, a eclética e efémera revista Ícaro, dirigida por Ernesto Gonçalves. Se o título aponta para o regresso a um certo classicismo, ao culto da beleza e da harmonia das formas, conforme é também sublinhado no editorial de abertura do n.º 1 da revista, a escolha da figura de Ícaro como patrono da publicação revela algo que, sendo profundamente moderno, é claramente verbalizado nesse mesmo texto de apresentação: o “frémito aventureiro – aspirando à Beleza, ao Sonho e à Vida”; a “ânsia imperfeita e humana” de absoluto e de “revelar, de anunciar novas formas de Sonho e de Beleza” (“Ícaro”, Ícaro, n.º 1, jul. 2019, 1). Em 1921, preside, em Lisboa, ao Comício dos Novos, representando a academia de Coimbra. Esta iniciativa, promovida por vários artistas ligados a Orpheu, a Exílio e a Portugal Futurista (e.g., António Ferro e Almada Negreiros), assim como às belas artes, teve lugar no cinema Chiado Terrace e procurou não só analisar criticamente os sistemas culturais e artísticos nacionais, como também discutir a necessidade de modernização da Sociedade Nacional de Belas Artes. A sua atividade cultural e política implicada em publicações periódicas intensifica-se nesse ano e no seguinte. Em 1921 colabora no único número da revista Nova Phenix Renascida, dirigida por Vieira de Castro, que, na linha de Ícaro e com uma orientação declaradamente europeísta, mas sem a pretensão de querer ser um “órgão de nenhuma côterie, nem tampouco […] [condicionado por] qualquer programa determinado”, assume o propósito de contribuir, com a sua “critica impiedosa”, para a dinamização e modernização do sistema literário nacional que, em palavras de Manoel de Menezes no texto de abertura da revista e intitulado “Portugal Literário”, necessitava regressar aos autores de avant-guerre, por se encontrar urgentemente necessitado de renascimento, fosse pelo vício do compadrio bajulador e falta de exigência da crítica, de autores, de pseudocríticos e das editoras; fosse pelo abandono da literatura por parte de autores conceituados e com valor, entretanto ocupados com a vida política; fosse ainda pela superficialidade e exibicionismo excessivo que encontravam na nova geração do Chiado (MENEZES, 1921, 1). Em fevereiro de 1922, ano em que termina o curso de Direito e regressa ao Funchal, toma ainda a função de subdiretor do semanário Restauração que ajudara a fundar em 1921, vindo a assumir, em maio de 1922, o cargo de secretário do Nacionalismo Integral, grupo monárquico defensor de um entendimento entre as diversas fações monárquicas, apoiado pelo madeirense Aires de Ornelas, e cujo órgão de divulgação foi esse mesmo jornal. O falhanço das negociações entre monárquicos estará implicado no regresso de Nascimento à Ilha e no seu progressivo afastamento da atividade político-partidária. No Funchal, exerce advocacia por um curto período, seguindo, logo depois, outros rumos profissionais que pouco terão a ver com a sua área de formação académica. Exerce a docência na Escola Industrial e Comercial do Funchal e no Instituto Comercial do Funchal, mas logo reorienta a sua atividade profissional para a investigação e divulgação histórica. Na segunda metade da déc. de 1920, dá os primeiros passos para a constituição do que virá a ser o Arquivo Distrital do Funchal (posteriormente, Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira (ABM)), instituição que apenas viria a ser constituída de jure em 1931, ano em que assume oficialmente o cargo de diretor, o qual seria por ele ocupado até 1954, embora de forma pouco convencional e por impasses administrativos. Leitor atento do que no mundo acontecia, colabora regularmente no Diário de Notícias, ao longo dos anos 20, onde vai comentando criticamente questões prementes na sociedade madeirense, em Portugal e a nível internacional: o bolcheviquismo; o fascismo; os totalitarismos; o antissemitismo crescente na Europa; a crise de Marrocos; as comemorações da suposta descoberta da Madeira por Zarco; o regionalismo insular; o descuido com que se tratava o património material e imaterial da Ilha; algumas decisões político-administrativas tomadas na Madeira; a morte ou o esquecimento de figuras relevantes da cultura portuguesa e madeirense, como Camilo Pessanha, Eça de Queiroz, Medina e Vasconcellos, António Sardinha, e muitos outros. Em junho de 1927 participa na excursão académica às ilhas Canárias, na qualidade de diretor pedagógico, em parceria com Manuel de Matos. Esta viagem ficaria registada em filme por Manuel Luiz Vieira, embora se desconheça o paradeiro da película. Na sequência dos movimentos autonomistas experienciados nas décs. de 1910 e 1920, nas ilhas da Macaronésia, esta viagem tinha como objetivo aproximar as culturas insulares atlânticas e aprofundar o conhecimento mútuo. Previa-se igualmente uma viagem aos Açores. Em 1928, João Cabral do Nascimento casa-se com Maria Franco e em 1929 nasce o seu único filho, João Crawford de Meneses Cabral, de quem virá a ter dois netos: o ator e encenador Filipe Crawford, especialista conceituado na área do teatro de máscara; e a artista plástica Maria Teresa Crawford Cabral. Ambos reconhecem o papel que Maria Franco e Cabral do Nascimento tiveram na sua formação estética e cultural. Maria Franco, também ela pintora e tradutora (cuja obra merece ser revisitada), era sobrinha de Francisco e Henrique Franco. O casamento entre ela e Cabral do Nascimento estreitava, assim, os laços de camaradagem cultural e amizade que, desde as décadas anteriores, existiam entre o escritor e os dois artistas plásticos. A este respeito, é de notar que em 1926 se publicara a 1.ª edição de Descaminho, onde a poesia de Nascimento se cruza com as xilogravuras de Francisco Franco, num processo dialogante inovador e que ultrapassa em muito o da tradicional ilustração visual de textos escrito. Em 1930, regressa temporariamente a Lisboa, desta vez com Maria Franco, e com um subsídio da Junta de Educação Nacional, encarregado da tarefa de realizar investigação em bibliotecas e arquivos sobre a história da Madeira. Na sequência desta sua atividade, publica vários estudos e recolhas documentais sobra a história da Madeira, assume oficialmente o cargo de diretor do Arquivo Distrital do Funchal (ADF), inicia a publicação do boletim desta instituição, intitulado Arquivo Histórico da Madeira (financiado pela Câmara Municipal do Funchal, mas cuja publicação seria muitas vezes suportada por Nascimento), dinamiza a incorporação, no ADF, de múltipla documentação relevante para o conhecimento da história do arquipélago que, até à data, se encontrava à guarda de diversas instituições ou até de particulares. Este processo gerará alguma conflituosidade institucional e social, nomeadamente com alguns responsáveis por instituições da Igreja Católica, que não aceitaram essa transferência documental. É particularmente acesa a polémica que, em 1934, Nascimento trava com o Cón. Homem de Gouveia, nas páginas de vários periódicos locais. O motivo da discussão não era explicitamente o da transferência de documentação da Igreja para um arquivo laico, mas compreende-se que esse assunto estaria no fundo da polémica. Já a residir definitivamente em Lisboa, é convidado a lecionar um curso de férias na Faculdade de Letras de Lisboa. Em 1941, acompanha de perto a criação do projeto Cadernos de Poesia, cujo lema, “A poesia é só uma”, foi uma sugestão de Cabral do Nascimento, de acordo com testemunhos de Jorge de Sena, um dos mentores do projeto, e seu amigo pessoal. Em 1942, inicia a sua atividade tradutória, não por acaso com a publicação quer da História da Literatura Inglesa de Benjamin Ifor Evans, editada pelo Instituto Britânico, quer do romance O Estranho Caso do Dr. Jekyll e do Mr Hyde de Robert L. Stevenson. De extrema relevância para o sistema cultural português da segunda metade do séc. XX, seja pelo número de textos traduzidos, seja pela variedade e qualidade dos autores que, por essa via, entraram em Portugal, a obra tradutória de Nascimento ocupou-se, em grande parte, da transferência para português de textos anglófonos. Em 1943, recebe o Prémio Antero de Quental, atribuído pelo Secretariado de Propaganda Nacional ao seu mais recente livre de poesia, Cancioneiro, editado nesse mesmo ano. Isso não invalida, porém, que em 1955, ano em que publica o seu último livro de poemas inéditos (Fábulas), a sua tradução de Le Lettere da Capri de Mário Soldati, assinada por Mário Gonçalves e a italiana Inácia Dias Fiorillo, tenha sido censurada pelo “lápis azul”. Assumindo, em português, o provocatório título Carne Viva, a tradução do romance de Soldati seria considerada pelos censores uma obra potencialmente pornográfica. Na déc. de 1960, visita por duas vezes Angola, província onde residiam o filho e os netos: Luanda, em 1961; Sá da Bandeira (mais tarde, Lubango), em 1962. Em carta a João Gaspar Simões, datada de 13 de outubro de 1962, assume o desejo de permanecer em Angola, não fosse a insegurança decorrente da Guerra Colonial, conflito que eclodira no ano anterior. São vários os poemas que, na secção final da última edição de Cancioneiro (1976), fazem referência a Angola ou até, de forma subliminar, à ruína ou ilusão do sonho imperial português. Em 1975, assiste à morte de Maria Franco, esposa e companheira de um longo percurso vida. Debilitado com essa perda e com alguns problemas de saúde agravados com o avançar da idade, morre a 2 de março de 1978, em Lisboa, no Campo Grande, a poucos dias de completar os 81 anos. O seu corpo foi sepultado no Cemitério do Alto de São João, na capital portuguesa, mas parte da sua obra permaneceu ativa, ainda que de forma discreta, seja nas muitas traduções por si realizadas e que continuaram a ser reeditadas; seja no ABM, cuja génese se fica a dever a Cabral do Nascimento e ao seu companheiro de juventude, Álvaro Manso de Sousa. A cidade do Funchal concedeu o nome de João Cabral do Nascimento a uma pequena rua situada no periférico bairro das Virtudes. Uma rua discreta, cortada por outras pequenas ruas e que termina num beco sem saída. A placa identificadora dessa rua apresenta-o como advogado e poeta. Contudo, a sua obra foi, como por aqui se torna evidente, bem mais vasta e complexa do que aí se indica. Obras de João Cabral do Nascimento: As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas (1916); Além-Mar. Poemeto Épico que Fez Joam Cabral do Nascimento para Narrar a História Tormentosa das Caravelas que Aportaram à Ilha da Senhor Infante na Madrugada do século XV (1917); Hora de Noa ou o Livro dos Trinta e Três Sonetos (1917); Alguns Sonetos (1924); “Queiroz póstumo” (1924); “Dez anos depois” (1925); “Acêrca do Museu” (1925); Descaminho (1926); Apontamentos de História Insular (1927); Arrabalde (1928); Documentos para a História das Capitanias da Madeira (1930); Genealogia da Família Medina da Ilha da Madeira, com Algumas Notas Inéditas acerca do Poeta Francisco de Paula Medina e Vasconcelos (1930); Litoral (1932); Poesias Escolhidas (1936); 33 Poesias (1941); Cancioneiro (1943); Confidência (1945); Líricas Portuguesas (1945); Lugares Selectos de Autores Portugueses que Escreveram sobre o Arquipélago da Madeira (1949); Poemas Narrativos Portugueses (1949); Digressão (1953); Fábulas (1955); A Madeira (1958); Colectânea de Versos Portugueses do Século XII ao Século XX (1964).   Ana Salgueiro (atualizado a 03.03.2018)

Literatura

mcandrew, robert

Mercador e proprietário de barco nascido em Wandsworth, Londres, em 1802. Era filho do mercador e transportador de fruta William McAndrew. Com a morte do pai em 1819, assumiu, com o irmão, o negócio da família. A partir de 1830, MacAndrew manifesta o seu interesse pela história natural, entrando em 1834 para a Literary and Philosophical Society of Liverpool. Os negócios e viagens que realizou, em Portugal e Espanha, permitiram que reunisse coleções de conchas e que procedesse ao seu estudo. Estabeleceu contactos com Edward Forbes e com outros estudiosos da especialidade, como John Goodsir (1814-1867), James Smith (1782-1867) e John Gwyn Jeffreys (1809-1885). Pertenceu a diversas associações científicas, como a Linnean Society, da qual foi nomeado membro em 1847, e a prestigiada Royal Society, que integrou em 1853. Além disso foi, entre 1856 e 1857, presidente da Literary and Philosophical Society of Liverpool. Em 1872, recebeu, juntamente com Arturo Issel (1842-1922), o Prix Savigny da Académie des Sciences pelo estudo “Report on the Mollusca Testaceous Obtained during a Dredging-Excursion in the Gulf of Suez in the Months of February and March 1869”. Entre 1845 e 1870, publicou diversos estudos sobre os moluscos das costas atlânticas e mediterrânicas. De entre estes, assinala-se a publicação em 1853, na cidade de Liverpool, do estudo “On the Geographical Distribution of Testaceous Mollusca in the North-East Atlantic and Neighbouring Seas”, no qual refere 156 espécies de moluscos marinhos que encontrou nos mares da Madeira. Em 1873, MacAndrew doou a sua coleção de moluscos, que continha dezenas de milhares de espécies, e a sua biblioteca à Universidade de Cambridge. Faleceu no mesmo ano em Middlesex, Londres.   Obras de Robert MacAndrew: “On the Geographical Distribution of Testaceous Mollusca in the North-East Atlantic and Neighbouring Seas” (1853); “Report on the Mollusca Testaceous Obtained during a Dredging-Excursion in the Gulf of Suez in the Months of February and March 1869” (1870).   Alberto Vieira (atualizado a 01.02.2018)

Biologia Marinha Personalidades

henriques, germano francisco de barros

Este apelido de família procede de D. João Henriques, que foi aposentador e caçador-mor de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel I. Há outros Henriques, que descendem de Henrique Alemão e Henriques de Noronha, que procedem de D. João e de D. Diogo Henriques, e de D. João e D. Garcia de Noronha, todos filhos de D. Garcia Henriques, de Sevilha. Poeta muito apreciado, escritor, professor e escrivão, nasceu na freguesia do Estreito de Câmara de Lobos em 1805, sendo filho de Francisco Policarpo de Barros Henriques, empregado de repartição pública e professor do ensino público em Câmara de Lobos, e de Luísa de Barros Henriques. Faleceu em 1856, vítima de colera morbus, que foi considerada a primeira doença global. Era apreciado como poliglota, pois falava corretamente francês, inglês, espanhol e latim. Dotado para a composição de poemas, dando primazia à produção de sonetos, escreveu Lições de Arte Poética e colaborou em diversos jornais e revistas, entre os quais A Discussão e Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro. Usou o pseudónimo de Germano Francisco Dee. O poeta Joaquim Pestana, no Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, menciona Barros Henriques de forma bastante elogiosa, referindo a rara facilidade com que compunha versos, a sua predileção pelo soneto e a influência da escola de Filinto, em alusão a Filinto Elísio, poeta e tradutor português do Neoclassicismo. Constituem digno exemplo da sua produção poética os sonetos que Luís Marino transcreve na sua Musa Insular: “Ao Suicídio” e “Soneto”, este último com uma dedicatória em alusão «Ao faustíssimo dia 16 de setembro de 1855, / aniversário natalício e de coroação de Sua / Majestade fidelíssima, o senhor D. Pedro V». Obras de Germano Francisco de Barros Henriques: Lições de Arte Poética.   António José Borges (atualizado a 23.02.2018)

Literatura

henriques, josé anselmo correia

Nasceu na ilha da Madeira, em 1775, e faleceu em Paris, a 1831. Era filho de António João Correia Bettencourt Henriques, pai do 1.º conde de Seixal, José Maurício Correia Henriques, e irmão de Fernando José Correia Brandão Bettencourt Henriques, 1.º visconde de Torre Bela e ministro de Portugal na Prússia e na Suécia. Não consta que tivesse habilitações literárias superiores – o que faz supor que terá, com efeito, obtido formação elevada em algum curso de que não ficou registo, talvez no Colégio dos Nobres, onde então se ensinavam as línguas mortas grega e latina, as línguas vivas francesa, inglesa e italiana, e história, matemática, física, desenho, arquitetura, equitação, esgrima, entre outras disciplinas que lhe terão proporcionado uma vasta cultura intelectual e literária –, o que não o impediu de seguir uma carreira diplomática em vários consulados, servindo, em representação de Portugal, nas cortes europeias, entre as quais Londres, Paris, Veneza e Cristiania, uma comunidade independente e autogerida, localizada na cidade de Copenhaga, Dinamarca. Escreveu vários livros, tornando-se um pensador de alto nível. Além de Bremen e outras cidades, residiu vários anos em Hamburgo. Partidário das ideias do séc. XVIII, leitor e admirador de Voltaire, deveu certamente à sua ausência de Portugal o facto de não ser perseguido. Na verdade, foi em Hamburgo que publicou, em 1806, o poema heroico-cómico A Padeira de Aljubarrota, imitado de La Pucelle d´Orléans, de Voltaire. Esteve no Rio de Janeiro quando a corte e o governo português ali permaneceram, desempenhando alguns cargos de confiança junto do príncipe regente. Escreveu também, em 1809, uma tragédia sobre a revolução de Portugal contra os Franceses, com o seguinte título: A Revolução de Portugal, Tragédia Dedicada à Inseparável Memória dos Portugueses pelos Seus Legítimos Senhores e Reis da Casa de Bragança, que publicou em Londres. Trata-se de uma obra repassada de alusões aos acontecimentos da época. Na capital britânica, colaborava no Correio Brasiliense e redigia o Espêlho, jornal que terminou em 1813. Ali fundou ainda, no ano de 1821, o periódico O Zorragar das Cortes-Novas. Em 17 de dezembro de 1815, escreveu um “Poema aos Anos de muito Alta e Augusta Majestade, a Senhora D. Maria I, Rainha de Portugal”, que viria a sair no vol. I das suas Obras Poéticas, sendo o resto do volume preenchido com a tradução da “Carta de Heloísa”, de Pope, uma “Ode a el-Rei D. João VI” e outros textos. Este primeiro volume publicou-se em Hamburgo em 1819. Nesta cidade, redigiu também, durante algum tempo e no mesmo ano, Le Plenipotentiaire de la Raison. Publicou em Paris, Hamburgo, Londres, Veneza e na Suécia. Consta que no Brasil, entre 1817 e 1818, terá sido o chefe da espionagem do ministro Tomás de Vila-Nova Portugal, sendo por ele solicitado no sentido de identificar e denunciar os pedreiros-livres, tendo cumprido com sucesso a sua missão. Foi nessa altura que D. João VI descobriu, para seu enorme desgosto, que muitos dos que trabalhavam de perto com ele eram pedreiros-livres, assim como o haviam sido todos os ministros que nomeara no Rio de Janeiro, até junho de 1817. Além das publicações já referidas, importa mencionar mais algumas composições, como “Arte da Guerra; Poema em Seis Cantos, de Frederico II, Rei da Prússia, Traduzido em Português” (Hamburgo, 1819); “Perodana, ou o Conciliábulo ou Periódico; Poema Heróico-cómico” (Veneza, 1819); A Escola do Escândalo, Comédia de Sheridan, Traduzida do Inglês (Lisboa, 1795), representada em várias épocas no teatro da R. dos Condes. Há ainda registo de vários manuscritos que terá deixado: “A Mariolada; Poema Herói-cómico à Musa do Reverendo José Agostinho de Macedo, a Formosa Estanqueira do Chiado, pelo Autor o Gigante Voraz”, composto em 1813, com três cantos precedidos de uma introdução; e, em verso, Mesquita, Tragédia Portuguesa. A literatura madeirense seguiu as fases da literatura continental, embora poucos escritores daquele arquipélago deixassem nome aureolado na história literária do país. É certo, porém, que logo no século dos Descobrimentos apareceram alguns poetas de notável mérito, que figuram no Cancioneiro de Garcia de Resende, chegando Teófilo Braga, na sua obra Poetas Palacianos, a considerá-los um grupo à parte, característico e distinto, a que deu o nome de Ciclo Poético da Ilha da Madeira. A par de autores como Marceliano Ribeiro de Mendonça e Manuel Caetano Pimenta de Aguiar, José Anselmo Correia Henriques figura como um dos melhores escritores da Madeira durante a primeira metade do séc. XIX. Obras de José Anselmo Correia Henriques: A Escola do Escândalo, Comédia de Sheridan, Traduzida do Inglês (1795); A Revolução de Portugal, Tragédia Dedicada à Inseparável Memória dos Portugueses pelos Seus Legítimos Senhores e Reis da Casa de Bragança (1809); Obras Poéticas (1819); Le Plenipotentiaire de la Raison (1819); O Charlatanismo, ou o Congresso Abolido; Poema Herói-cómico em Verso Solto; Manuscrito Achado num Canto do Palácio das Necessidades, depois de as Côrtes Serem Abolidas em 5 de Junho de 1823 (1824); Apologia da Conduta de José Anselmo Correia, contra as Asserções Mentirosas do Correio Brasiliense.   António José Borges (atualizado a 23.02.2018)

Literatura

henriques, manuel antónio de azevedo

Manuel António de Azevedo Henriques foi um escritor madeirense nascido no séc. XVIII, natural do Funchal, mais concretamente da freguesia de São Pedro, que residiu na R. dos Murças ou das Mercês (o registo manuscrito da certidão de casamento não desfaz a dúvida). É filho de Silvestre de Azevedo e de Maria da Fé, que se casaram em São Pedro a 24 de junho de 1733. Seu avô paterno é António de Azevedo Henriques, que se casou na igreja de S. Bartolomeu, com Maria da Silva, estando este casamento registado na paróquia da Sé, como tendo ocorrido no mês de maio de 1709. Manuel António de Azevedo Henriques casou-se na paróquia de São Pedro com Juliana Rosa Joaquina, no dia 27 de novembro de 1784. O seu registo de casamento não contém o apelido Henriques, mas a probabilidade de se tratar do autor madeirense é muito grande. No âmbito literário, Manuel António de Azevedo Henriques destacou-se por ter escrito a obra Reino de Deus, ou Reino de Portugal, Panegírico Funchalense, Oferecido aos muito Altos, etc. Reis Fidelíssimos D. Maria I e D. Pedro III. O opúsculo, publicado em Lisboa em 1778, é constituído por 47 páginas e dividido em 4 partes. Na primeira parte, o autor debruça-se sobre as razões da aclamação da Rainha D. Maria I; na segunda, aborda a fundação de Portugal; na terceira parte, descreve a ascendência do casal real, continuando este mesmo assunto na quarta parte. Esta obra do autor madeirense foi uma prenda ao casal real, que tinha subido ao trono no ano anterior à sua publicação (1777). Nesse mesmo ano, segundo o Catálogo da Colecção de Miscelâneas, da Universidade de Coimbra, Manuel António de Azevedo Henriques terá assinado a protestação do epitalâmio de José de Assiz de Mascarenhas, conde de Óbidos e conde de Palma, meirinho-mor do reino, e de Helena Maria Josefa Xavier de Lima, condessa de Óbidos. Azevedo Henriques terá oferecido este opúsculo de 15 páginas, publicado em Lisboa, ao conde de Óbidos. Há ainda uma terceira obra, atribuída a Manuel António de Azevedo Henriques por Brito Aranha, o autor que continuou e completou os estudos de Inocêncio Francisco da Silva no Dicionário Bibliográfico Português. Segundo o estudioso, o escritor madeirense terá ainda redigido um extenso poema de 45 páginas intitulado Nova Historia do Pastor Desenganado ou Fileno Arrependido. O texto encontra-se dividido em 3 partes consoante a sua estrutura estrófica: a primeira, de 15 páginas, organiza-se em oitavas rimadas; a segunda, com 14 páginas, em sextinas; a terceira, com as restantes 16 páginas, contém estrofes de 7 versos. Há, no entanto, divergências quanto ao subtítulo da obra, a versão de 1811, supostamente a original, indica que a obra foi “moralizada em várias sentenças e autoridades, etc. Para utilidade e espelho dos mancebos e exemplos das donzelas”, enquanto a versão de 1874, presumivelmente uma reedição póstuma, apenas refere que a obra foi “moralizada com várias sentenças das divinas e humanas letras”. Pouco mais se conhece do perfil biográfico e literário de Azevedo Henriques, cuja obra terá sido difundida por via oral e tradicional, em folhetos de cordel, mas pode depreender-se que terá vivido algum tempo em Lisboa, onde desenvolveu parte da sua atividade literária e onde se terá movimentado nos ambientes da corte e da nobreza da época. Obras de Manuel António Azevedo Henriques: Reino de Deus, ou Reino de Portugal, Panegírico Funchalense, Oferecido aos muito Altos, etc. Reis Fidelíssimos D. Maria I e D. Pedro III (1778); Nova Historia do Pastor Desenganado ou Fileno Arrependido (1811).   João Carlos Costa (atualizado a 23.02.2018)

Literatura Personalidades

pescas

O mar é uma constante no imaginário lusíada. Foi com o mar que se cumpriu Portugal e, durante muito tempo, no dizer do poeta, o mar foi português. Isto foi dito porque os portugueses se lançaram, no séc. XV, à sua conquista, batendo as barreiras do medo que atormentavam desde a antiguidade os potenciais navegantes do Atlântico. A economia das ilhas não se resumiu aos produtos trazidos pelos colonos europeus, pois elas também dispunham de recursos marinhos e terrestres. Quanto ao primeiro aspeto, é necessário ter em conta que os insulares, pela forma de assentamento ribeirinha, se assumiram como exímios marinheiros e pescadores, tendo, por isso mesmo, extraído do mar um grande número de recursos com valor alimentar. A atividade piscatória nos principais portos e ancoradouros cativou a sua atenção pela abundância de peixe e mariscos, mas raras vezes satisfez as necessidades das populações. O Atlântico, próximo das ilhas e da costa africana, era considerado, desde a antiguidade, como um espaço privilegiado de pesca, descoberto pelos cartagineses, no séc. VI a. c.. Desta forma, aquilo que os portugueses buscavam não era só novas terras, mas acima de tudo riquezas no mar e em terra. Tenha-se em atenção, por exemplo, que os primeiros frutos do reconhecimento da costa africana estão no mar – o óleo e a pele de lobo-marinho provenientes das expedições posteriores à de 1436 ao Rio do Ouro, tal como o documenta Gomes Eanes de Zurara. Note-se ainda que alguns autores fazem eco da riqueza em peixe dos mares da Madeira, como prova a expedição que João Gonçalves Zarco fez para o reconhecimento da costa sul da ilha. Depois disso, múltiplos visitantes testemunharam essa riqueza. Cadamosto, em meados do séc. XV, refere que a ilha é rica “em garoupas, dourados e outros bons peixes” (ARAGÃO, 1981, 36). Em 1698, o governador D. António Jorge de Melo refere que “o peixe é muito bom e não caro, que remedeia muito a terra” (NASCIMENTO, 1930, 15). Em 1853, Isabella de França acrescenta a esta ideia de riqueza piscícola a descrição de alguns peixes, como a abrótea, o atum, o chicharro, o congro, o cherne, a garoupa, o pargo, a raia, o salmonete e a tainha. Diversos autores referem a abundância de peixe nas costas das ilhas. Deste modo é cada vez maior o conhecimento do peixe disponível à volta da Ilha, muito evidente na lista de A. Biddle, de 1910, e nos diversos estudos científicos que entretanto se fizeram. A área marítima definida pela costa ocidental africana, entre o Cabo Aguer e a entrada do Golfo da Guiné, era muito rica em peixe, sendo frequentada pelos vizinhos da Madeira e das Canárias, bem como pelos pescadores algarvios e andaluzes. Todavia, o balanço das capturas dos madeirenses e dos açorianos não foi suficiente para colmatar a carência dos mercados, uma vez que havia necessidade de importar peixe salgado ou fumado da Europa do norte. A descoberta do Atlântico é um ato simultâneo com a da Ilha. Os portugueses demandam a sul, à procura das terras, míticas e verdadeiras, já debuxadas nos mapas. João Gonçalves Zarco decide fazer o reconhecimento da costa madeirense: este momento merece ser referenciado, não só por ser o primeiro encontro com a costa, mas também pelas revelações que lhe permitem o batismo dos diversos acidentes da costa. Na primeira busca, conseguiu boas oportunidades de abordagem e de fixação, enquanto, na segunda, a fauna marinha move a sua atenção. Um bando de garajaus deu nome a uma ponta: a Ponta do Garajau. Os lobos-marinhos que, no dizer do cronista, “era enquanto, e não foi pequeno refresco para a gente, porque mataram muitos deles, e tiveram na matança muito prazer e festa” (FRUTUOSO, 1873, 40), deram nome à Câmara de Lobos. No ano imediato, tratou-se do assentamento e reconheceu-se a terra que ficara no desconhecimento: a Ponta do Pargo, assim chamada pelo facto de aí terem pescado um pargo enorme: “e o maior que até aquele tempo tinham visto, pela razão do qual peixe ficou nome aquela Ponta a do Pargo” (Id., Ibid., 69). O facto de a toponímia da costa revelar algumas associações à fauna marinha é revelador do interesse que os navegadores depositavam nesta riqueza e do empenho com que a observavam: Porto das Salemas (Porto Santo), Baixa da Badajeira (Madeira), Porto do Pesqueiro (Madeira). Os mares da Madeira eram ricos em variedades e quantidades de peixe, como confirmam inúmeros visitantes estrangeiros. Em 1853, Isabella de França refere o chicharro, o peixe-espada, o gaiado, o atum, a abrótea, o pargo, o cherne, a garoupa, a tainha, o salmonete, a pescada, e o congro. A sua apreciação destes peixes faz-se pela sua aparência, e não pela degustação, pois deverá tê-los visto na praça ou nos portos das localidades por onde embarcou. A respeito do atum, tece o seguinte testemunho: “O atum é feio e escuro, de cerca de seis pés de comprido, carne avermelhada e grossa. É um espectáculo dos mais ridículos ver o campónio regressar a casa com a cabeça do atum na extremidade do bordão. A pesca do atum não corre sem perigo, pois já se tem visto puxar um homem pela borda fora” (FRANÇA, 1970, 117). Já em 1817, o governador Lúcio Travassos Valdez informa do envio, pelo mercador João Baptista Gambaro, estabelecido em Câmara de Lobos, de dois barris de atum, conservado de diversas formas (cozido, salgado e seco), que poderia ser uma alternativa ao bacalhau estrangeiro no abastecimento às embarcações. Desta forma, durante muito tempo, a disponibilidade do peixe estava limitada aos sistemas de conservação disponíveis. O peixe fresco era um privilégio quase só das zonas ribeirinhas e com portos de pesca. Aos demais, ficava o peixe salgado ou seco. Foi assim até que se começou a desenvolver a indústria de conservas, fundamentalmente de atum, em princípios do séc. XX, no Porto da Cruz (1909), no Paul do Mar (1912), em Pedra Sina (1939), no Penedo do Sono, em Porto Santo (1944), no Machico (1949). Atente-se que, na Madeira, o incremento da congelação só aconteceu a partir de 1972, sendo a primeira unidade criada em 1966, pela empresa Somagel. Por outro lado, a revelação e a descoberta do mar ganharam interesse devido à possibilidade de fruição das riquezas piscícolas. Mas a atenção do europeu ao mar não se orienta apenas neste sentido. O mar é a sua via de comunicação e para se servir dela é preciso conhecê-la, perceber os sistemas de correntes e ventos, compreender os acidentes da costa, os baixios, etc. É neste contexto que os portugueses iniciam uma ação pioneira que irá permitir o melhor conhecimento do mar e das suas possibilidades e recursos. As pescarias e as viagens de navegação e de descoberta ao longo da costa africana confundem-se. Os madeirenses pescavam nas costas da Berberia, um dos melhores bancos de peixe do Atlântico, como se conclui duma reclamação dos pescadores, em 1596, sobre o tributo que pagavam a João Gonçalves de Ataíde pelo peixe que de lá traziam. A pesca foi, a par da atividade agrícola, uma ocupação das gentes insulares ribeirinhas. Aliás, num espaço como a Madeira, onde a orografia condicionou a circulação terrestre, o mar é a via fundamental que liga os vários núcleos de povoamento que, por esse motivo, no início, se anicham no litoral. O mar foi o meio de comunicação mais usual e importante da comunidade insular, verificando-se a valorização da construção naval; ela surge, não apenas com a finalidade de assegurar o fornecimento de embarcações de cabotagem, mas também para dar apoio à navegação atlântica, no reparo das embarcações fustigadas pelos acidentes ou pelas tempestades oceânicas. Os estaleiros de construção e reparação naval proliferavam nas principais ilhas do meio insular, sendo esta atividade transformadora regulamentada e apoiada pelas autoridades locais e centrais, que, por exemplo, asseguravam as licenças necessárias para o corte das madeiras e definiam as dimensões e a capacidade das embarcações a construir. Os estaleiros de reparação e construção naval da Madeira situar-se-iam no Funchal, principal porto da Ilha, e em Machico, sede da capitania do norte, onde as madeiras eram abundantes. A construção de embarcações para a pesca está testemunhada desde o início da ocupação da Ilha. João de Barros refere mesmo que João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz fizeram duas embarcações no Porto Santo, certamente com troncos de dragoeiro, tal como refere Frutuoso. Ao contrário do que acontece no início do séc. XXI, a pesca não era uma atividade exclusiva de alguns núcleos do sul; na verdade, alargava-se a toda a Ilha, apesar de se ter evidenciado mais na vertente sul. Para o ano de 1889, existe referência a 2158 pessoas ocupadas na atividade da pesca, para um total de 493 embarcações, 338 das quais estavam empenhadas na faina do atum e 121 na do gaiado. A presença dos grandes cetáceos está também testemunhada na Madeira desde muito cedo. Em 1595, foi capturada a primeira baleia na zona; sabe-se que outra rendeu 64.000 réis em 1692, enquanto uma terceira, já em 1899, ficou por menos de metade, isto é, 30.000 réis. Em 1741, Nicolau Soares pretendia estabelecer uma fábrica de transformação de baleia na Madeira, mas a resistência das indústrias da Baía, temerosas da concorrência, impediu-o de levar por diante tal objetivo. A indústria em questão só terá lugar após a Primeira Grande Guerra, conhecendo-se três fábricas: Garajau, Ribeira Janela e Caniçal. A conserva de peixes torna-se numa realidade, nos primeiros anos do séc. XX, altura em que surgem a fábrica da Ponta da Cruz, de João A. Júdice Fialho (1909), a fábrica do Paul do Mar, de António Rodrigues Brás (1912), transferida em 1928 para a Praia Formosa, a fábrica de Pedra Sina, em S. Gonçalo, de Maximiano Antunes (1939), a fábrica de Machico (1949), de D. Catarina Andrade Fernandes Azevedo, Francisco António Tenório e Luís Nunes Vieira, e a fábrica do Porto Santo (1944). A partir daqui, o pescado da Ilha passará a ter dois destinos – o consumo público e a indústria de conservas –, o que veio permitir um aumento das capturas. Até então, o único destino era o consumo público, sob a forma de fresco ou salgado. Tenha-se em conta o interesse nas salinas em Câmara de Lobos e na Praia Formosa, de que existem testemunhos desde o séc. XVIII, mas que nunca adquiriram grande dimensão e interesse. É evidente a preocupação das autoridades no sentido da preservação deste recurso marinho. Assim, em 1547, a vereação acusa alguns pescadores de cana de usarem foles e redes, mantado a “criação de peixe” e o “peixe miúdo”, proibindo tal ação com a pena de 500 reais. Esta determinação passou a postura, sendo a pena de 1000 reis, que subia para 2000 réis, no caso de o visado ser pescador. A medida voltou a ser recordada em 1623. Ao longo dos tempos, continuamos a assistir a esta manifestação de interesse pela preservação deste recurso, que se alarga, em épocas posteriores, ao combate ao sistema de pesca através de bomba. Os aparelhos usados na armação da pesca na primeira década do séc. XX são referidos por A. Loureiro. Também se defendeu a indústria por meio de regulamentos que delimitavam a forma da pescada quanto às redes a usar e que, no séc. XIX, restringiam o uso abusivo de bombas, testemunhadas no norte da Ilha e na Ponta de Sol, situação que levou a uma portaria de 1877, recomendando ao governador medidas contra essa prática. O pescado chegava mais ao Funchal, onde tinha escoamento imediato e um preço mais favorável. Deste modo, sucedia que as diversas localidades da vertente sul, embora dispondo de núcleos piscatórios, se debatiam quase sempre com a sua falta, pelo facto de os pescadores preferirem a sua venda na cidade. As autoridades municipais foram portanto forçadas a tomar medidas. Em Machico, os pescadores da vila estavam obrigados a venderem aí 1/4 do pescado, passando, em 1640, para 1/3; no ano de 1638, esta limitação de saída era total, sobretudo na época da Quaresma, em que o consumo de pescado aumentava. Por outro lado, em 1751, não obstante recomendar-se que a venda do pescado fosse feita primeiro à população local, podendo as sobras ser depois levadas ao Funchal, refere-se o privilégio dado a algumas embarcações para o fornecimento, fora desta regra, ao convento de S. Francisco, ao juiz dos Resíduos e às capelas do Funchal. Já na Ponta do Sol, a Câmara proibiu, em 1704, a sua venda para fora do concelho e, em 1727, obrigava os pescadores a irem todos os dias ao mar, sob pena de 2000 réis. Idêntica obrigação existia em Machico para o ano de 1679, onde os pescadores preferiam o serviço de barqueiros ao da pesca. Atente-se que, em 1674, na Ponta de Sol, o arrais de um barco foi preso por não trazer peixe do mar. Mesmo assim, o Funchal não estava devidamente abastecido de pescado, necessitando de importar arenque salgado de Inglaterra. A prova disso está no facto de o foral de 1516 isentar os ingleses do pagamento do dízimo. Em 1768, o governador e Cap.-Gen. Sá Pereira, em carta ao conde de Oeiras, futuro marquês de Pombal, testemunha sobre uma representação dos moradores da Madeira, “sobre o promover-se a pescaria tão útil, e tão necessária aqui para que este povo possa livrar-se da miséria, a que está reduzido por falta de alimento, obrigado a sustentar-se de carnes, e peixes salgados, e corruptos, que aqui introduzem os Ingleses com grave prejuízo dos seus habitantes” (SANTOS, 2010, 368). Em 1771, o mesmo governador, no capítulo 26 do regimento dado ao Porto Santo, penaliza os moços indigentes, obrigando-os a dedicarem-se à agricultura ou às pescas. Já em 1783, o corregedor organiza um regulamento para as pescas nas ilhas da Madeira e Porto Santo – o Estabelecimento das Pescarias das ilhas da Madeira e Porto Santo –, que não teve efeito. Finalmente, em 1792 foi autorizado o estabelecimento de uma Fabrica de Pescaria, e Salinas, a ser instalada na Praia Formosa. E em novembro de 1822 foi formada uma Sociedade Piscatória na Madeira, com intuito de promover as pescarias, vindo, para o efeito, pescadores de Sesimbra para ensinar aos madeirenses as artes da pesca. Tais carências levavam a Ilha a importar peixe seco e salgado de Lisboa, do Algarve, das Canárias, de Santa Cruz da Berberia, de Cabo Verde, da Irlanda, da Escócia, da Noruega, da Suécia, da Dinamarca, do norte de França, da América do Norte e da Terra Nova. Os ingleses eram quem mais abastecia a Ilha deste peixe importado, muitas vezes com qualidade duvidosa, pois foram insistentes as reclamações sobre a venda de peixe podre. De acordo com informações da imprensa do Funchal, a partir do último quartel do séc. XIX, são frequentes as referências ao abastecimento do Funchal com peixe, lapas, caramujos e carne das cagarras das ilhas Selvagens. Os proprietários das ilhas organizavam campanhas temporárias com trabalhadores para a caça e a pesca, retornando ao Funchal com elevadas quantidades de produto salgado ou seco para venda na cidade. A faina da caça às cagarras e aos coelhos e da pesca ocorria entre os meses de agosto e outubro. No retorno, os trabalhadores enchiam a embarcação que os trazia de volta com caixas de lapas, caramujos, engodos, barris de salga de coelhos, cagarras, e peixe, sacos de penas de cagarra e óleo de cagarra. O peixe era fundamentalmente o atum, a cavala e o gaiado, que descarregavam no Funchal ou em Câmara de Lobos. Em 1907, sabemos da safra de 13.000 gaiados que foram vendidos no Funchal a 240 réis ao kg. Já em 1912, a safra foi de 16.000 gaiados, havendo problemas entre os pescadores e a firma proprietária quanto à distribuição dos quinhões. Os mares das Selvagens eram, assim, ricos em pescado, alcançando o imposto do mesmo, no primeiro quartel do séc. XX, valores elevados, apenas suplantados pelo Funchal e pela Câmara de Lobos. A faina nestas paragens era sempre complicada, acontecendo, por diversas vezes, naufrágios e situações de falta de mantimentos, indo, muitas vezes, as embarcações arribar à ilha vizinha de Tenerife. Desta forma, em novembro de 1916, os pescadores regressados ao Funchal mandaram celebrar uma missa de ação de graças na igreja de S. Gonçalo, por não terem sido vítimas de qualquer desastre. A pesca e a venda do peixe fresco, resultante desta faina, ou seco e salgado, por importação do estrangeiro ou de produção própria na Ilha, estavam sujeitas a apertadas medidas de controlo que consideravam a salvaguarda da saúde e a sanidade públicas e também a especulação dos vendedores. Aqui é clara uma evidência: em terra banhada pelo mar, onde o peixe abunda, o peixe da safra local era limitado e parece que a faina era pouco atrativa para os homens do mar, que preferiam dedicar-se à função de barqueiros nas ligações costeiras. Desta forma, são insistentes as reclamações das vereações municipais, quanto à sua falta como à coação dos pescadores para irem ao mar. Em 1847, foram estabelecidas isenções de direitos à entrada de peixe salgado, para suprir problemas de fome. Sabemos que, no ano imediato, a sua importação foi de 6464 arrobas, na sua maioria da Terceira, de Portimão e de Lisboa. A venda do pescado era feita na praça, de acordo com condições estabelecidas pelas posturas. Estava proibida a revenda do peixe fresco ou salgado sem licença dos oficiais da câmara. O peixe que sobrava de um dia para outro era salpresado e, depois de mostrado aos almotaceis, poderia ser vendido. Todo o peixe deveria ser aí vendido a preços tabelados e a todos os que o procuravam, de modo a evitar o uso abusivo dos mais ricos que, através dos seus escravos, procuravam tirar o peixe à força às vendedeiras. A carência de peixe é uma constante na Ilha, acusando a vereação, em 1547, de os madeirenses não quererem ir pescar, pois “onde devem de ir pescar quatro vezes na semana muitas vezes não vão senão uma e isto porque a tal preço dão o peixe que assim se remedeiam com um dia de trabalho na semana como se todos os dias trabalhassem [...]” (COSTA, 1998, 404). Desta forma, os homens-bons da Ponta Sol, em 1782, assistiam, no Calhau, à distribuição do peixe. As praças para a venda do peixe existiram em todos os municípios, sendo uma forma de regular e fiscalizar a venda do pescado. Na sua falta, o peixe vendia-se em locais determinados pela câmara, como sucedia em 1856, na Madalena do Mar. Temos notícias das praças da Ponta de Sol, em 1840, a qual foi reformada em 1931, do Porto Moniz, em 1894, de S. Vicente, em 1896, e do Porto Santo, em 1889. A do Funchal existe desde o séc. XV, tendo sido ampliada em 1730. Sabemos ainda que, desde 1546, existia no Funchal uma rua do peixe, que pode estar associada a este espaço público de venda. A partir de 1840, temos o mercado do peixe de S. Pedro, reformado em 1880 e 1889, e em 1940 integrado no mercado dos lavradores. A lota aparece no arquipélago da Madeira em 1953, no Funchal, seguindo-se outras em Câmara de Lobos, Machico, Santa Cruz, Paul do Mar, Porto do Moniz, Porto Santo, Caniçal, Ribeira Brava e Calheta. A lota passa a substituir o calhau como espaço de primeira venda da safra, por leilão ou contrato. Os funcionários municipais, almotaceis e guardas-mores da saúde tinham especial cuidado na fiscalização do pescado fresco ou seco que se vendia na Ilha. O pescado salgado ou seco importado, nomeadamente pelos mercadores ingleses, não era apresentado para venda nas melhores condições, obrigando, inúmeras vezes, os funcionários da saúde a intervir, gerando alguns conflitos com esta comunidade. Em 1634, os comerciantes ingleses Roberto Veloni e Diogo Dom são acusados por colocarem à venda, em lojas suas onde empregavam vendedeiras, peixe (bacalhau e sardinha) em más condições. Em 1813, repete-se esta situação, com a casa inglesa Murdoch Yuille Wardop & Comp a reclamar uma indemnização pelo pescado lançado ao mar pelo guarda da saúde. Nesta mesma data, o bispo, em visita à Camacha, refere o uso na alimentação de arenques e cavalas salgados que, trazidos pelos ingleses, se apresentavam muitas vezes em má qualidade e deitavam um mau cheiro. A Madeira importava pescado seco e salgado de diversos portos nacionais e estrangeiros. Torna-se difícil entender a razão desta importação de peixe seco ou salgado, tanto mais que os mares da Ilha eram ricos em peixe. Para além de poder ser uma imposição desta comunidade inglesa, com domínio quase total do mercado da Ilha, poderão ser outras as razões para esta valorização do pescado importado, ainda que de má qualidade pelas condições de acondicionamento. Em 1827, Alfred Lyall afirmava que “há grande abundância de peixe, de grande variedade e de muitas espécies, normalmente muito bom, mas talvez inferior em sabor e firmeza na sua carne, quando comparado com o dos nossos mares” (SILVA, 2008. 111). A necessidade de assegurar a subsistência dos colonos obrigou ao aproveitamento dos recursos disponíveis no meio com valor alimentar, como foi o caso da pesca, uma atividade das populações ribeirinhas. O peixe foi também um dos recursos mais valorizados no início da ocupação da Ilha. A prova disso está no imposto lançado, o dízimo do pescado, que onerava todos os barcos de pesca. No Campanário, na Ribeira Brava e na Tabua, este era cobrado pelos Jesuítas que, desde a segunda metade do séc. XVI, tiveram assento na Ilha. O mareante e o barqueiro, tal como o pescador, assentaram morada na zona ribeirinha pelo apego ao mar, junto do burburinho do calhau, onde poderiam ouvir o marulhar das ondas. A zona do calhau, depois Corpo Santo, acolhia o maior número de marinheiros, barqueiros e pescadores, cuja influência foi dominante nesta área citadina. Em Machico, Santa Cruz, Ribeira Brava, Calheta e na ilha do Porto Santo havia igualmente uma comunidade de homens do mar com morada fixa junto ao calhau ou aos ancoradouros. O grupo de madeirenses com ligação ao mar era elevado, mas parece existir uma predileção pela atividade ligada ao transporte costeiro, em detrimento da pesca. Os municípios instavam os homens do mar para irem à pesca, mas estes preferiam outros serviços mais remunerados. Em 1889, temos, em toda a Ilha, 2158 indivíduos associados a 493 barcos (127 de 4 remos, 200 de 2 remos e 121 canoas). Destes, como já referido em cima, 338 estavam dedicados à faina do atum e 121 ao gaiado, assumindo estas duas espécies uma importância dominante nas pescarias. A pesca ocupava, em 1914, mais de 1500 pescadores com 537 embarcações; já em 1931 existiam 1500 pescadores, que usavam 24 embarcações a motor e 508 à vela ou a remos. A partir de 1853, os governadores civis atuaram no sentido da valorização dos portos de pesca do arquipélago com diversos melhoramentos. O desenvolvimento de algumas indústrias no séc. XX levou à sua valorização. Em 1908, Vicente de Almeida D’Eça refere os seguintes portos piscatórios: Funchal, Caniço, Porto Novo, Aldonça, Santa Cruz, Seixo, Machico, Caniçal, Porto da Cruz, Faial, São Jorge, Ponta Delgada, São Vicente, Seixal, Porto do Moniz, Ponta do Pargo, Paul do Mar, Jardim do Mar, Calheta, Fajã do Mar, Madalena do Mar, Anjos, Lugar de Baixo, Tabua, Ribeira Brava, Campanário, Câmara de Lobo e Porto Santo. Em 1909, Adolfo Loureiro assinala os seguintes portos piscatórios: Funchal, Caniço, Porto Novo, Santa Cruz, Seixo, Machico, Caniçal, Porto da Cruz, Faial, S. Jorge, Ponta Delgada, S. Vicente, Porto Moniz, Ponta do Pargo, Paul do Mar, Jardim do Mar, Calheta, Fajã do Mar, Madalena do Mar, Anjos, Lugar de Baixo, Tabua, Ribeira Brava, Campanário, Câmara Lobos e Porto Santo. Esta situação é também testemunhada por Orlando Ribeiro, em 1947, quando esteve na Ilha em estudos, afirmando em 1949 que “nas encostas da Madeira a cada abrigo correspondia um porto de pesca” (RIBEIRO, 1985, 104). Os mares da Madeira, embora não tão ricos como os do continente, apresentavam uma variedade significativa, pois podia-se pescar desde moluscos (lapas e caramujos), a crustáceos (caranguejo) e peixe (alfonsinho, bodião, boga, castanheta, chicharro, cavala, chicharro, mero, moreia, pargo, peixe espada preto, sardinha, salmonete, solha, tunídeos). São ainda assinalados diversos pesqueiros, isto é, espaços marinhos próximo à costa, onde este pescado aparece com abundância: Pedras, Cabeço Baixinho, Cabeço do Moinho, Largo do Mesinho, Pé da Poita, Pedra Lage, Pedra do Marracho, Pedra do capitão, e Canto do Porto.   Direitos e tributos O pescado estava sujeito a diversos tributos sendo, no início, considerado como uma renda dos capitães, que auferiam, pela sua exploração, o foro e o dízimo. A 26 de setembro de 1433, o infante D. Henrique recebeu das mãos de D. Duarte a posse vitalícia das ilhas da Madeira, de Porto Santo e das Desertas. Ainda nesta data, a Coroa, a pedido do infante D. Henrique, concedeu todo o cuidado espiritual das ilhas à ordem de Cristo, reservando para si o foro e o dízimo do pescado. Este dízimo foi abolido a 5 de abril de 1808, por ordem de Beresford, aquando da ocupação inglesa da ilha da Madeira. No Porto Santo, a referida abolição ocorreu em 1832. O dízimo do pescado, que onerava todos os barcos de pesca, no Campanário, na Ribeira Brava e na Tabua, era cobrado pelos Jesuítas. Temos dados sobre a arrecadação deste rendimento para os anos de 1759 a 1761. Já da receita da diocese sabemos que, em 1517, era de 200$000 réis, subindo, em 1581, para 363$600 e, em 1583, para 454$500. Este tributo foi abolido, na Ilha, por alvará de 20 de outubro de 1803, situação que só teve efeito durante quatro meses. Entretanto, os pescadores estabeleciam, entre si, alguns compromissos com o valor da faina. Assim, no Caniçal, existiu o quartão, que era o mesmo que um quarto, a parte que cada pescador do Caniçal tirava do seu quinhão da pesca para o pároco da freguesia, como forma de custear as despesas de serviço religioso, em seu benefício, durante o ano. Eram reservados ainda outros quartos – para as festas da Senhora da Piedade, de S. Sebastião, do Espírito Santo e do Santíssimo Sacramento. A par destes, existiram outros tributos de cariz social, como o socorro que apoiava os companheiros doentes, e o quinhão morto para acudir a qualquer desastre, do qual, no fim do ano, entre 25 de dezembro e 1 de janeiro, era distribuído o sobrante entre todos, sendo conhecido como a ajuda do pão-da-festa ou passadia. Em 1937, surgiu a Associação de Socorros Mútuos dos Pescadores da Madeira, que em 1953 deu lugar à Casa dos Pescadores, com instalações em Machico e Câmara de Lobos (1939), no Paul do Mar (1944), no Funchal (1950) e no Caniçal (1954). Em 1817, na tabela dos direitos ad valorem cobrados no Funchal, temos a indicação da sua cobrança sobre o peixe fresco, com sal ou de conserva, relativamente às seguintes espécies: atum, chicharro, carapau, lampreia, salmão e sardinha. Em 1954, o imposto ad valorem, de 3 % sobre o pescado, rendia à câmara do Funchal 115.000$000 escudos. O imposto de pescado era uma receita do Estado e da Câmara Municipal. No reinado de D. Maria, foi determinado, por alvará com força de lei, de 20 de junho de 1787, que fossem levantados os impostos sobre o pescado, porque haviam contribuído para a situação de decadência a que tinham chegado as pescarias do Reino e das ilhas adjacentes. O imposto sobre os barcos de pesca e pescarias (1830/1843), foi criado por decreto de 9 de novembro de 1830, sendo substituído, em 10 de julho de 1843, por outro imposto, de 6 % sobre os lucro da venda do pescado fresco, nomeadamente sobre as partes ou quinhões, excetuando apenas as comedorias, as caldeiradas, as restomengas e as carnadas; a sua coleta foi atribuída à Junta do Crédito Público. Pela lei de 10 de julho de 1843, só eram obrigados ao imposto do pescado os pescadores que exercessem a sua indústria em água salgada e somente naquela parte dos rios até onde chegassem as marés vivas do ano. Pelo decreto de 3 de dezembro de 1891, foram criados, na dependência do Ministério dos Negócios da Fazenda, diversos postos fiscais, com a missão especial de cobrar o imposto de pescado. Este imposto, cobrado pela Guarda Fiscal, era também conhecido como dízimo, e só foi abolido por decreto-Lei n.º 237/70, de 25 de maio. Sobre a cobrança do imposto de pescado encontramos as seguintes informações: em 1921, era de 59.257$96 escudos, sofrendo uma quebra significativa, no ano imediato, para 4346$48; em 1933, era de apenas 1259$52.   Peixe à mesa Por fim, importa verificar qual a importância que os recursos marinhos assumem no quotidiano e na alimentação dos madeirenses. A dieta dos madeirenses baseava-se no aproveitamento dos recursos disponíveis com valor alimentar, isto é, a caça e pesca e os derivados da atividade pecuária, como a carne, o queijo e o leite. A pesca terá sido importante na atividade das populações ribeirinhas, que usufruíam de uma grande variedade de mariscos e peixe. Através dos livros de receita e despesa, podemos acompanhar o dia a dia da mesa conventual, onde é regular a presença de carne e peixe, frescos ou salgados. No convento da Encarnação, a mesa dos sécs. XVII e XVIII era farta. O pão corria todos os dias à mesa, acompanhado de carne ou peixe. O peixe comia-se às quartas, sextas, sábados e dias prescritos pela Igreja. Poderia ser bacalhau, atum sardinha, arenques, pargos e chicharros. Mas nem sempre foi assim, uma vez que, por diversas vezes, foi manifestada a dificuldade no abastecimento de peixe aos conventos, o que fez com que estivessem isentos da obrigação da abstinência. A abstinência da carne era geral na altura da Quaresma, o que elevava o consumo de pescado. As pastorais determinavam regras sobre o consumo de carne e peixe pelos fiéis. Assim, a carne não podia ser misturada com o peixe e todos aqueles que estavam sujeitos ao jejum só podiam servir-se da carne ao jantar, sendo exceção os domingos, onde o consumo estava facultado. Daqui resulta a tradição popular do consumo da carne aos domingos. A mesa do mundo rural e da gente pobre é pouco conhecida. O pouco que se sabe resulta do testemunho de alguns estrangeiros. Esta servia-se quase só do que a terra dava, isto é, frutas, passas de uvas, figos passados e inhame. Consumia-se algum peixe fresco ou seco, pescado na costa, mas a carne e o pão parecem ser uma raridade. Esta frugalidade está presente em todos os testemunhos de autores estrangeiros. Assim, na segunda metade do séc. XVIII, George Forster destaca que “os camponeses são excecionalmente sóbrios e frugais; a alimentação consiste em pão, cebolas, vários tubérculos e pouca carne” (FORSTER, 1986, 72), mais o milho americano, o inhame e a batata-doce, que era o principal ingrediente na alimentação do camponês. A isto juntava-se o consumo de peixe fumado ou em salmoura, importado pelos ingleses, que servia de conduto ao inhame, à batata e ao pão. O peixe consumido era o bacalhau dos Estados Unidos e o peixe seco, salgado ou em salmoura do Norte da Europa, destacando-se o arenque de fumo ou de salmoura, muito apreciado pelo povo como conduto para o pão e as batatas. Esta situação ainda perdurava na década de 50 do séc. XX, altura em que as capturas de pescado de cerca de duas toneladas eram ainda incipientes para satisfazer o consumo e as indústrias de conservas. No Funchal, existia uma praça onde este era vendido aos interessados de acordo com uma lista de prioridades. Primeiro, deveriam servir o capitão, depois os conventos e os oficiais da governança e, finalmente, o povo. Em 1732, o bispo tinha um barco que provia às suas necessidades de pescado. Na Ponta de Sol, em 1782, um homem bom do concelho assistia a esta distribuição do pescado. A generalização das praças e dos mercados do peixe nos demais concelhos só aconteceu muito mais tarde: no Porto Santo, em 1889, no Porto Moniz, em 1894, e em S. Vicente, em 1896.   Ciências do mar O mar não foi valorizado apenas como recurso económico. Já a partir do séc. XVII se regista o seu valor científico com os diversos estudos realizados. A passagem pelo Funchal de alguns cientistas ingleses propiciou uma primeira descoberta de muitas das raridades da fauna marinha nos mares madeirenses. Tenha-se em conta as expedições de Hans Sloane (1687) e James Cook (1768 e 1772). No decurso do séc. XIX, redobrou o interesse pela Ilha por parte de súbditos ingleses residentes ou de passagem pelo Funchal. Destes, podemos destacar os estudos de Richard Lowe (1833-1846), interrompidos com a sua morte num naufrágio em 1874. James Yate Johnson seguiu-lhe o encalço e publicou alguns estudos até à sua morte em 1900. O empenho dos madeirenses no estudo da fauna marinha poderá ser assinalado com os estudos de João José Barbosa du Bocage. O primeiro apelo neste sentido foi feito por José Silvestre Ribeiro quando, em 1850, criou o Gabinete de História Natural, que desapareceu com a sua saída, em 1852. A aposta no estudo e na divulgação dos recursos marinhos só aconteceu mais tarde, com a criação do Aquário do Museu Municipal, que foi aberto ao público em 1951. A publicação do Boletim do Museu Municipal, desde 1945, e os estudos de Adão Nunes, de Adolfo César de Noronha e de Günther Maul vieram a revelar quão rico é o património marinho madeirense.   Alberto Vieira (atualizado a 24.02.2018)

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