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telegrafia sem fios (tsf)

De início, a comunicação a longa distância fazia-se por intermédio de meios pouco adequados, mas capazes de cumprir a sua missão. Eram os sinais sonoros ou visuais que, a partir de um código preestabelecido, tornavam o ato possível. O sistema de telegrafia com fios surgiu em Portugal, a partir de 1855, mas só em agosto de 1873 se procedeu à sua instalação na Madeira, por meio de uma linha que ligava a Ponta de São Lourenço ao Funchal e à Ponta do Sol, e, no ano imediato, com a Ponta do Pargo e Machico. Este serviço estava a cargo da Estação Telegráfica e Faróis do Reino e terá entrado em funcionamento a 24 de agosto de 1874. O serviço é montado no momento em que a Madeira passa a estar ligada ao continente por um cabo submarino. A descoberta da telegrafia sem fios, patenteada a 2 de junho de 1896, veio alterar para sempre o panorama das comunicações em Portugal e, em particular, na Madeira. Palavras-chave: comunicação; Madeira; Marconi; telegrafia; telegrafia sem fios. De início, a comunicação a longa distância fazia-se por intermédio de meios pouco adequados, mas capazes de cumprir a sua missão. Eram os sinais sonoros ou visuais que, a partir de um código preestabelecido, tornavam o ato possível. O sistema de transmissão por combinações de luzes, que teve a primeira aplicação prática no exército de Alexandre, o Grande. Todavia, os grandes aperfeiçoamentos do sistema tiveram lugar muito mais tarde, sendo obra de Lippershem, Galileu e Kipler. Esse sistema manteve-se até finais do séc. XVIII, altura em que os irmãos Chappe, em França, criaram o primeiro sistema semafórico, cujo princípio estará na origem do telégrafo (1844). Ambos foram também aplicados em Portugal e na Madeira, servindo de meio de comunicação das embarcações entre si, com os portos e entre os vários núcleos de povoamento. Uma das principais utilidades do sistema na Madeira, foi o aviso da presença de corsários, prontos a assaltar barcos e povoações. Desde o início da ocupação da Ilha que os seus habitantes estiveram expostos ao livre arbítrio de piratas e corsários, que frequentavam com assiduidade o mar madeirense e se apresentavam como uma permanente ameaça para as populações costeiras. Ficaram célebres os assaltos dos franceses ao Funchal, em 1566, e dos argelinos ao Porto Santo, em 1616. Perante esta permanente ameaça, foi necessário estabelecer medidas de vigilância e proteção na costa. No primeiro caso, destacam-se as vigias colocadas em locais estratégicos, ao longo da vertente sul da Madeira, onde permaneciam turnos de guarda da ordenança local. A presença de um navio estranho, indiciador de um pirata ou corsário, era, de imediato, avisada aos comandantes das ordenanças que reuniam as hostes, através de um sinal sonoro: o repicar dos sinos da igreja ou o toque do tambor. Todavia, as populações costeiras também precisavam de ser avisadas, de modo a poderem preparar a defesa – daí a utilização destes sinais, que eram mais rápidos do que um mensageiro a cavalo. Estabeleceu-se, em toda a Ilha, um sistema de comunicação por sinais luminosos (os fachos), que circulavam ao longo da orla costeira por intermédio das elevações que propiciavam este contacto. A rede terminava no Pico da Cruz, em São Martinho, que foi conhecido como o Pico Telégrafo. Daí resultou a designação de Pico do Facho às elevações onde se faziam os sinais luminosos; com este nome, surgem-nos dois picos, um no Porto Santo e outro na Madeira (em Machico). A forma de organização desta comunicação por sinais óticos é-nos apresentada, em 1805, pelo governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, num regimento que estabeleceu para tal fim. Desta forma, existia uma linha visual de comunicação que ligava o Pico do Facho, no Porto Santo, com o de Machico, o Pico da Água (Caniço), o Pico da Cruz (São Martinho) e Cabo Girão (Câmara De Lobos). Como é óbvio, o sistema não permitia uma perfeita e total comunicação entre os dois interlocutores, atuando apenas como um meio de aviso, rápido e eficaz. Por outro lado, inúmeros obstáculos se colocavam à sua concretização, numa ilha marcada pelo acidentado do terreno. Estas dificuldades só podiam ser ultrapassadas com o aparecimento de um novo meio de comunicação – no caso, o telégrafo elétrico, surgido em 1837. Foi neste ano que William Cooke e Charles Whatstone registaram a patente. Aqui há a considerar a telegrafia com fios e sem fios, sendo de destacar, na primeira, a que se realizava por via terrestre ou marítima (cabo submarino). O sistema de telegrafia com fios surgiu em Portugal a partir de 1855, mas só em agosto de 1873 se procedeu à sua instalação na Madeira, por meio de uma linha que ligava a Ponta de São Lourenço ao Funchal e à Ponta do Sol, e, no ano imediato, à Ponta do Pargo e a Machico. Este serviço estava a cargo da Estação Telegráfica e dos Faróis do Reino e terá entrado em funcionamento a 24 de agosto de 1874. O serviço é montado no momento em que a Madeira passa a estar ligada ao continente por um cabo submarino. Recorde-se que, a 7 de abril de 1859, os deputados madeirenses, Jacinto Augusto de Sant’Ana e Vasconcelos, Moniz de Bettencourt, Luís de Freitas Branco, Luís da Câmara Leme, requereram, ao Governo, informações sobre os custos e a instalação de cabo elétrico, bem como sobre despesas de instalação e funcionamento de uma estação, certamente a pensar na sua instalação no Funchal. Para trás, ficaram a telegrafia semafórica, surgida em 1803, e a ótica de 1810. Mesmo assim, na Ilha, continuaram a conviver com esta nova forma de comunicação, permanecendo ativas as estações semafóricas da Ponta do Pargo e da Ponta de São Lourenço. Atente-se a que a semafórica continuou por muito tempo a marcar presença na baía do Funchal, servindo a comunicação entre os navios e o Calhau. Para isso, usava-se o Pilar de Banger. O facto de, a 10 de março de 1876, Alexandre Bell ter patenteado o seu novo invento, o telefone, fez com que o sistema de telegrafia se tornasse obsoleto. Todavia, ele tardou em chegar à Madeira: em 1881, foi concedido o alvará de exploração à companhia Edison Gower Bell Company, para a rede de Lisboa, mas só em 1911 é que os madeirenses puderam usufruir dele. A primeira ligação telefónica teve lugar a 6 de outubro entre o governador e o Diário de Notícias, que tinha o número 32. Entretanto, no ano seguinte, a Câmara solicitava o seu alargamento a toda a Ilha, o que só foi conseguido nos 40 anos que se seguiram. Para as ligações com o exterior, continuou a manter-se o sistema telegráfico, e o usufruto do mesmo, por meio do TSF ou cabo submarino, teve lugar muito mais cedo, mercê do facto de a Ilha se situar num eixo importante das comunicações com o continente africano. A conjuntura da primeira metade do século foi favorável ao rápido desenvolvimento da TSF. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e os conflitos militares isolados, como o dos bóeres na África do Sul, criaram a necessidade de um rápido e eficaz sistema de comunicações, só possível com a telegrafia sem fios. A utilização do rádio, a partir de 1905,  nas comunicações militares, e a acuidade destes conflitos, nos primeiros decénios do séc. XX, traçaram o caminho para a plena afirmação das comunicações via rádio. Foi Marconi quem, durante a guerra, divulgou, no seu país, o serviço de telegrafia e telefonia. O invento patenteado por Marconi ia dando os primeiros resultados. Dos iniciais 4 km de comunicação, passou-se para os 400 km e para a total cobertura do mundo. As experiências realizadas entre julho e dezembro de 1902, a bordo do vapor Carlos Alberto, levaram ao desenvolvimento do sistema de transmissão em morse e à receção telefónica de ondas, que lhe propiciaram, em 1902, a transmissão da primeira mensagem radiotelegráfica entre o Canadá e a Inglaterra e, no ano imediato, com os EUA. A 16 de setembro de 1906, foi inaugurado o primeiro serviço radiotelegráfico regular entre a Europa e os EUA. Os benefícios deste novo sistema de comunicações tornam-se evidentes na guerra e no salvamento de embarcações naufragadas, como sucedeu, em 1909, com os vapores Florida e Republica e, em 1912, com o grande paquete Titanic. Em 1916, Marconi apresentava o primeiro aparelho de telefonia por ondas curtas e contribuía assim, decisivamente, para o progresso das comunicações a longa distância, e para a afirmação de uma nova realidade que marcou a sociedade mundial a partir da déc. de 20. Foram os anos da rádio: primeiro, nos EUA, desde 1914, depois na Europa, com a BBC (1922). Após isso, o inventor desenvolveu as investigações sobre o sistema de ondas curtas, servindo-se, para o efeito, do vapor Electra. Deste modo, em maio de 1924, transmitia, pela primeira vez, a voz humana, por meio da radiofonia entre a Inglaterra e os EUA. A descoberta da TSF, patenteada a 2 de junho de 1896, colocou-o entre as personalidades ilustres e mais badaladas da primeira metade do séc. XX, e levou-o ao panteão do prémio Nobel, ao receber o da Física, em 1909. O iate Electra, o seu mundo ambulante, considerado pelos italianos “nave del miracolo”, tornou-se no centro das experiências, enquanto Roma e Londres funcionavam como o meio de concretização técnica dos inventos, nomeadamente por meio da companhia que criara em julho de 1897. Entre as primeiras experiências, em 1896, e a generalização do uso da TSF nas comunicações marítimas, terrestres e aéreas, desde 1913-14, medeia um curto período, pelo que estes anos e os seguintes foram de intensa atividade para o cientista. Entre 1922 e 1924, percorreu o Atlântico, desde Cabo Verde aos Açores e à Madeira, no sentido de encontrar uma solução adequada à dirigibilidade das ondas de pequena extensão: de 17 a 18 de julho de 1922 esteve na Horta (Faial-Açores) e, de 26 de agosto (madrugada) a 2 de setembro de 1924, passou pela Madeira. Esta curta estância na Madeira enquadrava-se no plano de experiências traçado para o mesmo ano e que o levou a Lisboa, ao Funchal, ao Porto Santo, a Cabo Verde e a Gibraltar. Foram três meses de demoradas pesquisas que contribuíram para a solução das principais dificuldades resultantes da comunicação radioeléctrica. Deste modo, aquando do regresso a Londres, a 3 de novembro, deu início à construção da primeira estação equipada com o novo invento. Até à inauguração do serviço radiotelegráfico da Marconi, em 15 de dezembro de 1926, todo o serviço de comunicação entre a ilha da Madeira e o exterior fazia-se por cabo submarino ou por uma incipiente estação de TSF, montada em junho de 1922, na estação Rádio Telegráfica do Funchal, situada na R. de João Gago. Durante a Primeira Guerra Mundial, o Governo inglês havia montado uma estação na Qt. Santana, que foi encerrada a 2 de abril de 1919. Um despacho do Ministério das Finanças, de 12 de dezembro de 1921, determinava a instalação de um posto radiotelegráfico na Madeira, o que nunca aconteceu. Entretanto, já em 1925, o semfilismo teve novo impulso na ilha da Madeira, por iniciativa de Alberto Carlos d´Oliveira, funcionário da estação telegráfica do Funchal, que havia sido transferido para aqui, em 1920. Este, que havia exercido idênticas funções em São Vicente, no arquipélago de Cabo Verde, tinha iniciado, em 1912, as transmissões, e estabelecido inúmeros contactos com embarcações. A abertura da estação, em 1925, abriu as portas para novos adeptos, de forma que, passados 4 anos, eram já 12 os radioamadores em funcionamento na Ilha. Assim, à saída de Alberto Oliveira para a Estação Telegráfica de Lisboa, em 1931, havia, na Ilha, um grupo significativo de radioamadores. Com a Segunda Guerra Mundial, todavia, em 1939, todos os radioamadores foram obrigados a silenciar a sua presença. Através dos debates parlamentares, sabemos da preocupação dos deputados madeirenses relativamente ao facto de as duas ilhas do arquipélago estarem devidamente servidas de telegrafia sem fios. A par disso, pretende-se que este novo meio não fique ignorado, apelando-se, a 5 de março de 1904, pela voz dos deputados Alexandre José Sarsfield e Frederico dos Santos Martins, à criação de uma escola prática de telegrafia no Funchal. Apenas a ilha do Porto Santo continuava isolada do mundo. Desta forma, são insistentes as reclamações de alguns dos deputados madeirenses no sentido de levar a cabo a instalação de um cabo submarino ou de uma estação de TSF. Sabemos de um projeto de cabo submarino que deveria ligar aquela ilha à Ponta de São Lourenço, mas que não passou de projeto, pois, entre 1922 e 1925, César Procópio de Freitas insiste na necessidade de atender a este problema, nem que seja com um simples posto de telegrafia sem fios, sugerindo, também, que se transferisse a estação existente no Funchal quando a Marinha instalasse a sua nova estação. Entretanto, em março de 1926, o Funchal estava servido de duas estações telegráficas, uma na estação dos correios, e outra, nova, na Marinha no Castelo do Pico; o Porto Santo, contudo, continuava à espera. A telegrafia sem fios era considerada importante para a Madeira. A 5 de novembro de 1919, para voltarmos um pouco atrás nas datas, o deputado Pedro Pita era perentório: “A navegação afasta-se da Madeira, preferindo os portos das Canárias – essas ilhas rivais – porque aí tem telegrafia sem fios, e, portanto, uma maior facilidade para os pedidos de fornecimentos. De modo que em vez de virem à Madeira procurar mantimentos e refrescos, que só podem ser-lhes preparados depois de cá estarem, porque também só depois disto é que os podem pedir, preferem as Canárias, para onde comunicam a distância por intermédio da telegrafia sem fios, e onde, mal chegam, podem fornecer-se e retomar a sua marcha” (VIEIRA, 2014, 1747). Os mesmos argumentos são repetidos a 4 de julho de 1922 pelo deputado Vasco Marques, que reclamava da perda de competitividade do porto madeirense em relação aos das Canárias, por falta deste meio: “O porto do Funchal deixou, sim, de ser visitado como era antes da guerra, por dois principais motivos: Primeiro, porque só agora, e não obstante as reclamações dos parlamentares e de toda a Madeira, é que montaram uma estação de telegrafia sem fios, cujos aparelhos de transmissão, por sinal, são insuficientes; tal melhoramento só agora começou; por isso a navegação preferia as Canárias, porque lá, devido aos sem fios, encontraria tudo ao fundear, ao passo que na Madeira, só depois da chegada ao porto é que podiam dizer aquilo de que necessitavam, o que forçava a navegação a perder um tempo precioso; em segundo lugar, porque o decreto chamado de proteção à marinha mercante lançou impostos gravosos sobre os vapores estrangeiros, pelo que muitos destes deixaram de tocar na Madeira” (Id., Ibid., 2174). A 6 de fevereiro de 1925, Procópio de Freitas insiste na ideia de que o porto do Funchal era o único sem posto telegráfico e que, com isso, perdia em relação aos demais: “Hoje todos os portos bastante frequentados têm postos de telegrafia sem fios com a altura suficiente para poder receber as comunicações dos navios que desejam, ao demandarem esses portos, que neles haja todas as facilidades para embarque e desembarque de passageiros, e abastecimentos” (Id., Ibid., 2342). Atente-se que esta ausência de uma estação de TSF em condições, no Funchal e no Porto Santo, é entendida pelos deputados madeirenses – como era o caso de Procópio de Freitas, Juvenal Araújo e Pedro Góis Pita – como uma expressão do abandono a que o arquipélago continuava votado, funcionando como um entrave ao progresso e à afirmação da Ilha na navegação oceânica, face às Canárias. Por outro lado, era assinalada como uma injustiça, quando nos Açores todas as ilhas já estavam ligadas. O cabo submarino, como meio privilegiado de comunicação com o exterior, não durou muito, devido à concorrência da telegrafia sem fio e do desenvolvimento do correio aéreo, que o tornaram obsoleto e de elevados custos; deu por isso lugar a uma complexa rede de TSF. Foi o primeiro passo para uma rápida ligação entre todo o mundo, sistematizada por completo, no séc. XX, com os satélites. O desenvolvimento das tecnologias de comunicação conduziu ao paulatino apagamento da Wireless Telegraph Company, que acabou por ser silenciada em 1982, com o aparecimento de uma via alternativa para o cabo submarino, com a inauguração da estação de satélites. Desde esta data, com as remodelações posteriormente realizadas, passou a funcionar apenas uma estação do serviço móvel marítimo e uma casa de repouso para os funcionários da empresa. Na déc. de 50, redobram as responsabilidades da Companhia Portuguesa Rádio Marconi (CPRM), ao ser-lhe atribuída a exploração do rádio móvel marítimo. O Garajau permanece como central, dispondo apenas das antenas de receção, enquanto o Caniçal é reativado como posto de emissão e, no Funchal, ficavam centralizados desde 4 de julho de 1951 todos os serviços de escuta rádio naval. A mudança técnica das instalações do Caniço só ficou concluída em 25 de março de 1968, com a inauguração da nova estação do Caniçal. Os radioamadores foram os primeiros a apostar, com total confiança, neste suporte de comunicação, sendo o seu elo de continuidade. A Madeira tem uma tradição significativa de semfilismo, estando ligada a esta atividade desde os primórdios do seu aparecimento em Portugal.   Alberto Vieira (atualizado a 23.01.2017)

Física, Química e Engenharia Sociedade e Comunicação Social

valor acrescentado bruto

O Valor Acrescentado Bruto (VAB) é um indicador que quantifica o valor total do output produzido numa dada economia, para um certo período de tempo. Apenas o excedente é considerado como VAB, pois ao valor total da produção é deduzido o valor do consumo intermédio. O somatório do VAB de todas as atividades de uma dada economia com o valor dos impostos sobre os produtos, subtraindo o valor dos subsídios para os mesmos produtos, deverá igualar o PIB da região em apreço. Para uma dada economia, estima-se que o valor total do VAB deverá ser um contributo de cerca de 90 % do PIB. Em 1995, e tendo em consideração a informação patente nas contas regionais de 1995-2012, base 2006, do Instituto Nacional de Estatística, a Região Autónoma da Madeira (RAM) apresentava um VAB a preços correntes de 1635,5 milhões de euros, sendo o valor provisional apresentado pela instituição estatística, para 2012 de 4155,6 milhões de euros. Desde 1995, o VAB regional apresentou, na sua generalidade, taxas de crescimento, quando comparado o valor do VAB anual com o do ano imediatamente anterior; essas variações chegaram a ultrapassar os 20 pontos percentuais em 2000 e 2002, com taxas de crescimento de 21,1 % e 21,0 %, respetivamente. Em 2002, o VAB da RAM já ultrapassava o dobro do VAB que a Região apresentava em 1995, nomeadamente com 3516,7 milhões de euros, em contraponto com os 1635,5 milhões do ano de partida do estudo em apreço. Apesar de se terem constatado taxas de crescimento tendencialmente positivas no período compreendido entre 1995 e 2012, em cinco dos anos que constam neste intervalo verificaram-se variações negativas, nomeadamente nos anos 2001, 2003, 2009, 2011 e 2012; em 2009, 2011 e 2012, o decréscimo do VAB foi mais pronunciado, com variações de -1,1 %, -1,6 % e -7,4 %, respetivamente. As diminuições apresentadas em 2011 e 2012 não podem ser interpretadas como variações negativas impulsionadas unicamente pela realidade regional da RAM e pelos constrangimentos vivenciados por este território em matéria económica, visto que todas as regiões em estudo – Norte, Centro, Lisboa, Alentejo, Algarve, Açores, e o território português no seu todo – apresentaram taxas de variação negativas. Não obstante, para 2012, a Madeira apresentava a diminuição mais significativa em termos percentuais. Relativamente ao peso que o VAB regional tem no VAB nacional, a RAM representava, em 1995, 2,1 %. Em 2012, o valor proporcional do VAB da RAM no VAB português aumentou para 2,9 %, depois de, em 2006, ter sido de 3,1 %. É de notar que a RAM, à semelhança dos Açores, de Lisboa e do Algarve, viu aumentar o seu contributo no total do VAB do país. Uma análise do VAB regional permite-nos concluir que, neste período, a economia da Região assentou no sector terciário, cuja importância relativa no VAB da RAM é notória. Assim, no ano de 1995, o VAB do sector terciário representava 76,4 % do VAB regional, enquanto o do sector secundário tinha um peso percentual de 20,2 % e o do sector primário era de 3,3 %, assumindo os valores de 1250 milhões de euros, 331,2 milhões de euros e 54,3 milhões de euros, respetivamente. Tendo em consideração a variação anual do VAB, a preços correntes, da Região, entre 1995 e 2012, é possível comprovar que, para o sector primário (agricultura, produção animal, caça, floresta e pesca), as variações foram negativas em 1996, 1999, 2005, 2007, 2008, 2009 e 2012, com diminuições nominais de 1,4 %, 2,1 %, 2,8 %, 0,5 %, 3,2 %, 4,5 % e 1,6 %, respetivamente. Quanto às variações positivas anuais verificadas no sector primário, são de ressaltar as que se verificaram nos anos: 2002, com um aumento na ordem dos 11,2 %; 2004, com uma variação de 10,9 %; e 2006, onde se verificou uma taxa de crescimento de 11,3 %. É curioso que o sector primário tenha sido o único que, em 2011, não acompanhou a diminuição do VAB regional, com uma variação positiva de 1,0 %. Esta realidade contrasta com a que se verificou nos sectores secundário e terciário, cujas variações negativas se fixaram nos 4,9 % e 1,1 %. O sector secundário (indústrias extrativas; indústrias transformadoras; produção e distribuição de eletricidade, gás, vapor e ar frio; captação, tratamento e distribuição de água; saneamento, gestão de resíduos e despoluição; e construção) apresentou, desde o ano de 1995, variações anuais significativas que chegaram a fixar-se nos 24,7 %, em 1998. Desde 1995 até 2007, a evolução anual foi tendencialmente positiva, à exceção de 2005, onde se constatou uma diminuição de 0,6 % em relação ao ano anterior. Todavia, e apesar da propensão para o crescimento do sector, desde 2008, inclusive, até 2012, a variação anual foi negativa, com diminuições a alcançarem os 6 % em 2008, e os 8 % em 2012. No que respeita ao sector terciário, onde se encontram as atividades relacionadas com a prestação de serviços, apesar de se terem constatado variações anuais positivas bastante elevadas, como em 2000, com uma variação de 25,6 %, e em 2002, com 25,5 %, o sector também foi afetado com diminuições no valor do VAB, principalmente nos últimos dois anos, com variações de -1,1 % no ano de 2011, e -7,4 % no ano de 2012. Verificando, mais pormenorizadamente, a distribuição do VAB regional, a preços correntes, pelas diversas atividades, através da leitura da repartição do VAB pelos ramos de atividade A10, é possível concluir que as variações ocorridas entre 1995 e 2012 são significativas. A hegemonia do sector terciário é conseguida através das prestações das seguintes atividades: comércio por grosso e a retalho; reparação de veículos automóveis e motociclos; transportes e armazenagem; e atividades de alojamento e restauração. O VAB deste ramo de atividade contribuía com 31,4 % para o VAB da RAM no ano de 1995, sendo que, em 2012, o valor desta proporção sofreu um aumento para os 32,1 %, o que significa que este ramo, cujo VAB para o último ano mencionado se cifrava nos 1334,2 milhões de euros, tinha um peso de cerca de 1/3 no VAB da Região. Este facto é justificado pela importância que as atividades direta e indiretamente relacionadas com a atividade turística, considerada como fundamental para a economia do arquipélago, tiveram neste aglomerado que constitui o ramo em consideração. Em 2001, estimava-se que a contribuição do sector do turismo para o VAB, a preços de mercado, na RAM, era de 10,5 %, importância bastante mais elevada que a verificada pelo mesmo sector no âmbito nacional, que se fixava nos 4,9 %. Para 2005, as estimativas apontavam para um peso da atividade turística no VAB regional, a preços de mercado, de 9,5 %, que, apesar de inferior ao registado em 2001, ultrapassava o valor percentual para o país, 4,6 %. Comparando os 10 ramos considerados no levantamento de dados levado a cabo nas contas regionais, é possível verificar que 4 destes viram diminuir o peso do seu VAB no VAB regional: o ramo da agricultura, produção animal, caça, floresta e pesca, que representava 3,3 % em 1995, e apenas 1,9% em 2012; o ramo onde se incluem atividades como indústrias extrativas; indústrias transformadoras; produção e distribuição de eletricidade, gás, vapor e ar frio; captação, tratamento e distribuição de água; saneamento, gestão de resíduos e despoluição — cuja importância relativa se fixava nos 8,2 % em 1995, e em 7,2 % em 2012; o ramo da construção, cuja diminuição é bastante considerável, pois em 2012 o VAB do mesmo representava 6,1 % do VAB regional, quando em 1995 tinha uma importância relativa na ordem dos 12 %; e o ramo onde se incluem as atividades relacionadas com a informação e comunicação cujo peso era de 2,5 % em 1995 e de 2 %, em 2012. A perda de importância do ramo da construção é de tal forma considerável que este é o único, entre os 10 ramos de atividades analisados, que não só viu reduzida para cerca de metade o seu peso no VAB da RAM entre 1995 e 2012, como também apresentou taxas de variações anuais negativas desde 2008, inclusive, chegando a registar uma variação negativa de 18,8 % entre 2011 (312,1 milhões de euros) e 2012 (253,4 milhões de euros). Entre os ramos de atividade que viram a sua influência no VAB regional aumentar entre 1995 e 2012, cabe destacar o ramo que inclui: atividades de consultoria, científicas, técnicas e similares, e atividades administrativas e dos serviços de apoio, que, em 1995, tinha um VAB que representava 6,7 % do VAB da RAM, perfazendo 109,7 milhões de euros, passando, em 2012, a ter um peso de 12,4 %, com 517,3 milhões de euros. Relativamente à proporção do VAB das empresas maioritariamente estrangeiras no VAB regional, verificou-se um aumento entre 2005, com 2,94 %, e um valor de 50,58 milhões de euros, e 2012, onde se registou um peso de 3,84 % e um valor absoluto de cerca de 52 milhões de euros. Contudo, apesar de a evolução ter sido positiva, a Região continua a ficar aquém da proporção verificadas na região dos Açores, onde a importância das empresas maioritariamente estrangeiras no VAB, em 2012, ascendeu aos 4,76 %. Para o país no seu todo, no mesmo ano, a proporção era de 18,7 %. A diminuição em termos nominais que se verificou no VAB regional, e consequentemente no PIB da RAM, em 2012 é justificada, segundo nota divulgada pela Direção Regional de Estatística da Madeira, “pela saída de diversas empresas de dimensão relevante que anteriormente operavam a partir do Centro Internacional de Negócios da Madeira, levando a que o VAB das atividades aí desenvolvidas tivesse sofrido uma assinalável redução. Há ainda a referir os efeitos das medidas implementadas no âmbito do Programa de Ajustamento Económico-financeiro, iniciado em janeiro de 2012 e com impacto direto na economia regional”.   Sérgio Rodrigues (atualizado a 04.01.2017)

Economia e Finanças

parcerias público-privadas

Partindo da definição proposta por E. R. Yescombe em Public Private Partnerships: Principles of Policy and Finance (2007), pode-se começar por definir as parcerias público-privadas (PPP) como: 1) um contrato de longo prazo (o contrato de PPP), celebrado entre um parceiro do sector público e um parceiro do sector privado; 2) que tem em vista o desenho, construção, financiamento e funcionamento de uma infraestrutura pública, a cargo do parceiro privado; 3) mediante pagamentos feitos ao privado, ao longo da vida do contrato de PPP, seja pelo Estado com recurso a dotações orçamentais, seja diretamente pelos utentes ou utilizadores através da cobrança de tarifas ou taxas; 4) assegurando-se que a infraestrutura ou permanece na propriedade do Estado ou reverte para este, no final da vigência do contrato de PPP, ainda que o mesmo possa ser objeto de renovação. Estes quatro aspetos merecem, contudo, algumas precisões (atender-se-á, nomeadamente, à concretização das PPP em Portugal). Quanto ao aspeto mencionado em 1), de que as PPP configuram um contrato de longo prazo, a afirmação não é inteiramente linear. A dúvida não se prende com a segunda parte: é de facto característica das PPP serem de longo prazo. Na verdade, a dúvida é a de saber se as PPP traduzem verdadeiramente um tipo de contrato ou antes um modelo de contratação (falar-se-á então de contratação em PPP), e se, sendo contrato, será um contrato único ou antes uma pluralidade de contratos (no limite, uma união de contratos). Isto porque as PPP são geralmente caracterizadas pela sua complexidade, envolvendo não apenas o contrato principal (o acordo de PPP propriamente dito), mas também outros, com destaque para os contratos de financiamento, contratos de seguros, contratos de empreitadas e de fornecimentos, contratações técnicas diversas, etc. Mas regressemos à primeira questão, mais interessante: a de saber se as PPP são um contrato ou antes um modelo de contratação. Admitimos como válidas as duas hipóteses, embora propendamos para a segunda opção. Ainda assim, admitindo que as PPP possam ser olhados como contrato, importa fazer notar que a identificação do tipo contratual em causa dependerá, antes de mais nada, do modelo de PPP perante o qual se esteja. Assim, à luz do modelo anglo-saxónico (o modelo da Private Finance Iniciative –PFI), que apresenta, na nossa opinião, uma natureza eminentemente institucionalizada, o contrato de PPP traduz-se na criação de um Special Purpose Vehicle (SPV), o qual pode inclusive passar pela formação de uma joint venture entre os principais parceiros (público e privado). Pertencerá a esse SPV assegurar a construção e a gestão da infraestrutura durante o período de vida útil do ativo e todas as relações contratuais iniciais e ulteriores que hajam de ser estabelecidas passam pela intervenção deste novo protagonista. Ora, como se vê, no modelo da PFI, a PPP estriba-se num contrato de direito societário (ou próximo deste), e a matriz é eminentemente privatística. Já no modelo concessivo – o modelo continental –, o contrato (principal) de PPP consiste numa concessão (de obras ou de serviços públicos), i.e., é verdadeiramente um contrato administrativo, ainda que lhe possam ser apontadas algumas especificidades relativamente às concessões “tradicionais”, quer do ponto de vista conceitual ou do alcance legal do conceito (respetivamente, por se tratar sempre de uma concessão de longo prazo e por delimitar a lei a aplicação do regime das PPP apenas a parcerias de montantes superiores a um valor predefinido), quer no plano do regime jurídico aplicável (seja em sede inicial, de decisão de contratar e de contratação, seja em fase posterior, a nível da execução – aspetos que veremos mais adiante). Nesta medida, no modelo concessivo, a matriz é mais fortemente juspublicística. Posto isto, olhando agora para o modelo português, que é um modelo concessivo, propendemos a defender que as PPP se traduzem não num (único) contrato, ou sequer numa união de contratos, antes verdadeiramente num modelo de contratação (ainda que encerrem um contrato principal, de concessão, a par de outros, contratos acessórios). Esta qualificação resulta dos seguintes elementos (para maior desenvolvimento dos pontos seguintes, leia-se o estudo de 2009 de Nazaré C. Cabral; veja-se ainda, em sentido não distante, o texto de Maria Eduarda Azevedo): i) Fundamento das PPP: as PPP desenvolvem-se sobretudo a partir de finais do séc. XX para superarem as restrições orçamentais com que diversos países desenvolvidos se veem confrontados, nomeadamente para continuarem a realizar grandes investimentos públicos. As PPP foram um expediente satisfatório que esses mesmos países forjaram para ganhar “espaço orçamental” numa altura em que se acentuavam os seus problemas orçamentais, designadamente em virtude do elevado crescimento da despesa pública e dos níveis de endividamento. Nesta medida, as PPP aproveitam-se de modelações contratuais convencionais (g. contratos de concessão) para as adaptarem a finalidades contemporâneas do ponto de vista económico e financeiro: capacidade de realização de grandes investimentos em contexto orçamental restritivo; ii) Os alcances da noção de PPP: mais do que contrato, mais do que união de contratos, as PPP traduzem um arranjo complexo que envolve relações contratuais (relevância estrita ou jurídica), mas que envolve também, desde logo, uma determinada visão ou conceção acerca da forma como o Estado deve agir na economia, pela intermediação da ideia de contratualização externa (contracting out) e, se se quiser, em sentido amplo, de privatização da própria administração pública (relevância ampla ou económica). Enquanto visão acerca da atuação do Estado na economia, as PPP configuram muito mais do que um contrato: elas são um verdadeiro modelo de contratação. Justamente, neste sentido, é usual encontrar a contraposição entre modelo de contratação em PPP e modelo de contratação pública tradicional, conforme foi clarificado por António Pombeiro. Neste último, o Estado envolve-se diretamente na conceção, desenho, aprovisionamento, produção, distribuição, aquisição, posse, propriedade, manutenção, atualização dos ativos destinados à satisfação de necessidades públicas. Diversamente, no modelo de contratação em PPP, a Administração Pública apenas delimita, caracteriza e quantifica as necessidades públicas essenciais, contratando esse provimento em parceria com o sector privado, de modo a maximizar o Value for Money (VfM) e a minimizar o risco do seu envolvimento, sem deixar no entanto de exercer controlo efetivo sobre o provimento em causa. O parceiro privado é corresponsabilizado pelo sucesso do empreendimento por toda a vida do contrato, respondendo pela economia, eficiência e eficácia, e ainda pelo impacto económico de todo o empreendimento na satisfação das necessidades públicas. Repare-se que a própria legislação aplicável (o de-lei n.º 111/2012, de 23 de maio, e também, para o efeito, o n.º 2 do art. 19.º da Lei de Enquadramento Orçamental (LEO), lei n.º 91/2001, de 20 de agosto) acolhe o chamado “princípio do comparador do sector público” (CSP), que mais não significa, na verdade, do que a necessidade de, aquando da decisão de contratar em PPP, se proceder a uma análise comparada entre os resultados económicos e financeiros a obter com a PPP e os resultados que se obteriam caso se optasse pela contratação pública em moldes tradicionais; iii) A dimensão whole-life das PPP: um dos elementos que permite também diferenciar as PPP relativamente às soluções de contratação pública convencionais reside na sua perspetiva whole-life. O princípio do VfM (antes mencionado), que basicamente significa “fazer mais com o mesmo dinheiro”, permite fixar a atenção numa característica nem sempre evidenciada nos processos de contratação pública: o facto de tais processos não se esgotarem no momento pré-adjudicatório e adjudicatório, antes se tratando de processos whole-life, de aquisição a terceiros de bens, serviços ou obras públicas que, por isso, se iniciam com a identificação da necessidade coletiva e terminam com a conclusão do contrato ou com o fim da disponibilidade da infraestrutura em causa. O VfM pode ser assim definido, de acordo com Darrin Grimsey e Mervyn Lewis (2004), como a combinação ótima do custo e da qualidade whole-life, com vista à satisfação das necessidades dos utilizadores. Estes mesmos autores acrescentam que uma das grandes vantagens das PPP reside no facto de se alicerçarem numa abordagem “whole-of-life cycle ‘bundled’” (GRIMSEY e LEWIS, 2004, 135). Esta integração leva a que a infraestrutura seja desenhada não apenas tendo em vista a satisfação de serviços core, mas também de todos os serviços associados. Por sua vez, trata-se não apenas de responder, no imediato ou no curto prazo, a uma dada necessidade, mas também de garantir a provisão ao longo do ciclo da vida da infraestrutura (disponibilidade e qualidade da infraestrutura no médio e longo prazos). As PPP são pois um incentivo contratual que leva o parceiro privado a olhar para além da fase de conceção e construção, para se fixar também nas fases de funcionamento e manutenção. Ainda que existam argumentos favoráveis à provisão unbundled, a verdade é que, para estes autores, “a atribuição da coordenação do projeto a uma só entidade do sector privado (ou consórcio) garante melhores incentivos e aumenta o esforço de ‘accountability’” (Id., Ibid., 136); iv) As PPP e a distribuição dos riscos: este é, sem dúvida, um dos elementos matriciais das PPP enquanto modelo novo, distinto, de contratação relativamente às soluções convencionais. Mas repare-se, antes de mais nada, que os princípios de distribuição dos riscos são já de há muito conhecidos no direito, tal como lembra António Menezes Cordeiro: “O sentido geral do sistema do risco, bastante harmonioso, é o seguinte: se o Direito atribui a um sujeito, através do esquema do direito subjetivo, uma vantagem, é justo que corra, contra ele, a possibilidade de dano superveniente causal. Ubi commoda, ibi incommoda. [...] Observa-se ainda que, em situações relativas – maxime, contratos bilaterais – o risco distribui-se por ambos os intervenientes” (CORDEIRO, 1987, 43). No caso das PPP, o critério operativo, aceite em termos internacionais (FMI, OCDE, etc.) e pela generalidade das legislações aplicáveis, e que permite identificar que riscos é que devem transferidos do parceiro público para o privado e os que devem permanecer da responsabilidade do primeiro é um critério pragmático. Ele expressa-se, de acordo com Yescombe (2007), no seguinte: o risco deve ser suportado pela parte que o consiga suportar melhor a um custo mais baixo. A esta regra não é alheia, como bem se compreende, a natureza duradoura do contrato em PPP. Além deste critério pragmático de distribuição de riscos (impropriamente também denominada de partilha de riscos), uma outra particularidade nos contratos em PPP reside no facto de deles constar, ab initio, e., logo na definição do clausulado contratual, a chamada “matriz de riscos”. Nesta, as partes, em regra de acordo com o critério supra, alocam os diferentes riscos de uma PPP aos dois parceiros principais envolvidos e eventualmente, em casos particulares, a terceiros (e.g., seguradoras). De entre os riscos geralmente cometidos ao parceiro público, destacam-se os riscos políticos (v.g. revisões constitucionais, alterações legislativas que tenham relevância direta ou indireta sobre a execução do contrato de PPP, em suma, o chamado fait du prince) e os riscos económicos (v.g. taxa de inflação). A alteração das taxas de juro em regra tende a ser assumida por ambos os contraentes (uma vez que ela é por vezes exógena relativamente à ação governativa) e, sendo um risco de grande significado, pode mesmo ser estabilizada pelas partes, mediante definição prévia, no mercado de derivados, da taxa de juro aplicável ao longo da execução do contrato: o caso mais comum são os swaps de taxas de juro. Já os riscos de conceção e de construção, bem como os riscos de funcionamento ou e performance (incluindo o risco de mercado ou de procura), são, em regra, assumidos pelo parceiro privado; v) A posição particular do terceiro financiador: este é um aspeto que se evidencia nas modernas PPP, quando as comparamos com os modelos de contratação convencionais. Repare-se, desde logo, que as PPP são marcadas por arranjos financeiros complexos, que em certos casos envolvem o recurso ao project finance. Como é referido por R. Yescombe, o project finance, enquanto técnica de financiamento, está particularmente vocacionado para a implementação de infraestruturas e/ou exploração de monopólios naturais (e.g., recursos naturais e energia). O maior impulso ao desenvolvimento das soluções de project finance aconteceu a partir da déc. de 70 do séc. XX, com o desenvolvimento de algumas técnicas financeiras, a saber: generalização dos empréstimos de longo prazo a sociedades clientes (quando até aí os bancos comerciais apenas emprestavam no curto prazo); utilização de créditos de exportação para financiar projetos de maior envergadura; recurso à shipping finance, pela qual os bancos financiam a construção de navios grandes, garantindo-se através dos fretes a realizar no longo prazo (i.e., o financiamento da construção é feito contra um cash-flow contratual, em que o financiado é uma companhia special-purpose proprietária do navio, em moldes muito similares às estruturas de project finance); o desenvolvimento das finanças do imobiliário, de novo envolvendo empréstimos garantidos através dos rendimentos de longo prazo projetados; a locação financeira tax-based que habituou os bancos a complexos cash-flows. Como é referido, por outro lado, por Graham Vinter, o project finance é uma forma de financiamento de infraestruturas ou projetos industriais de longo prazo, baseado numa estrutura financeira complexa assente em dívida e outras formas de financiamento (v.g. ações próprias), na qual a dívida é saldada através do cashflow gerado com a operacionalização do projeto, mais do que através de capitais próprios das empresas promotoras desse projeto. O financiamento é, por sua vez, fundamentalmente garantido por todos os ativos afetos ao projeto, incluindo os rendimentos previstos no contrato. Poder-se-á, na verdade, considerar que o objetivo último de recurso a esta forma de “engenharia financeira” é justamente o de assegurar que o projeto em causa seja autossuficiente do ponto de vista financeiro. Neste amplo complexo de financiamento, ganha, assim, importância acrescida o papel do terceiro financiador que, sendo terceiro relativamente ao contrato de base (o contrato de concessão), acaba por assumir o papel principal. Isto resulta em boa medida do facto, antes assinalado, de as PPP constituírem um processo alternativo de captação de financiamento para realização de grandes projetos de investimento. Por isso, a posição do terceiro financiador acaba por merecer, desde logo na lei, especiais cautelas e tutelas, principalmente na fase de execução da PPP e perante vicissitudes contratuais tão diversas, como sejam a modificação unilateral dos contratos, a renegociação ou a reposição do equilíbrio financeiro; iv) A diversificação das fontes de pagamento ao parceiro privado: diferentemente das concessões tradicionais, em que os pagamentos se fazem sobretudo diretamente pelos utilizadores, nas concessões PPP esses pagamentos podem também ser reclamados ao Estado mediante dotações orçamentais. Nesta medida, e sem prejuízo do que foi referido em ii) (apontando para um menor envolvimento do Estado nas PPP, em comparação com a contratação pública tradicional), a verdade é que, no caso particular das contratações sob a forma de concessão, veremos que, paradoxalmente, nas concessões PPP acabam por existir alguns elementos que apontam para uma menor privatização (lato sensu) destas, quando comparadas com as concessões tradicionais. E um desses aspetos tem que ver precisamente com a questão dos pagamentos, os quais, nas PPP, podem ser feitos diretamente pelo Estado ao parceiro privado; v) A reversibilidade dos ativos para o Estado: as PPP oscilam entre modelos que não implicam necessariamente a reversibilidade dos ativos para o Estado no final do contrato, como é o caso do modelo Buy-Build-Operate (BBO) – no qual o sector privado compra ao Estado uma infraestrutura previamente existente, assegurando depois a sua manutenção, renovação, modernização e expansão, e garantindo a sua exploração, sem haver qualquer obrigação de devolução posterior ao Estado –, e modelos em que essa reversibilidade ocorre, o caso do Build-Operate-Transfer (BOT) – no qual o sector privado desenha e constrói a infraestrutura, opera com ela, e depois procede à sua transferência para o Estado logo que concluído o prazo de duração do contrato ou em data específica, ainda que posteriormente possa arrendar o mesmo ativo –, passando por modelos em que a propriedade permanece no Estado, como sucede com o design-finance-build-operate (DFBO) – em que o sector privado desenha, constrói, possui, desenvolve, opera e gere a infraestrutura, mas com a propriedade nas mãos do Estado. Repare-se que desta forma, com a explicação mencionada em iv) e v), acabamos por tratar também, desde já, dos elementos característicos da noção de PPP apontados ainda por R. Yescombe, respetivamente nos pontos 3) e 4) de que demos nota logo no início do texto presente. Resta-nos assim a análise da característica restante, mencionada no ponto 2) da mesma definição: recorde-se o facto de as PPP terem em vista o desenho, construção, financiamento e funcionamento de uma infraestrutura pública, a cargo do parceiro privado. Este aspeto tem, em nossa opinião, mais importância do que à primeira vista parecer ter. Na verdade, o facto de as PPP estarem referenciadas a uma infraestrutura – e deverá ser, quanto a nós, uma infraestrutura económica ou social hard (e não apenas soft) – permite afastar da noção de PPP simples formas de cooperação entre o sector público e privado (veja-se no caso português, e.g., os acordos de cooperação celebrados entre o Estado e as instituições particulares de solidariedade social na área da ação social), que, sendo de carácter duradouro, não se referem de forma inequívoca à construção, gestão e exploração de uma certa e determinada infraestrutura hard. As PPP em Portugal  As PPP têm uma história impressionante em Portugal, não apenas por causa da sua expressão e, até certo momento, por causa da sua vitalidade, mas também pelos resultados perniciosos. Na verdade, precedendo ainda a aprovação do primeiro regime jurídico sobre contratação em PPP, o dec.-lei n.º 86/2003, de 26 de abril (alterado, especialmente pelo dec.-lei n.º 141/2006, de 27 de julho), e bem assim do Código dos Contratos Públicos (aprovado pelo dec.-lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, e suas alterações), diversas PPP foram celebradas no nosso país, sobretudo nos sectores rodoviário (autoestradas com portagens, mas também sem custos para o utilizador – SCUTs) e ferroviário (e.g., Fertagus e metropolitano ligeiro do sul do Tejo). O modelo de PPP não se limitou contudo a estes sectores: já antes, em 2002, se conhecera a primeira regulamentação das parcerias no sector da saúde, com a aprovação do dec.-lei n.º 185/2002, de 20 de agosto, e já antes se dera a celebração do primeiro contrato de gestão com um grupo privado, no caso relativo à gestão do Hospital Amadora-Sintra. Aliás, este aspeto é curioso: o contrato de gestão, adaptado às parcerias na saúde, não é muito diferente de uma concessão de serviço público (ainda que possa implicar a construção da infraestrutura hospitalar); a sua especificidade estará no objeto – concessiona-se o serviço de saúde (i.e., a prestação de cuidados médicos em estabelecimentos clínicos). Desde cedo, o modelo seguido em Portugal demonstrou falhas de conceção e de execução que foram aliás evidenciadas pelo Tribunal de Contas nas sucessivas auditorias que realizou a propósito de cada uma delas: i) falhas de planeamento e de consulta; ii) custos exorbitantes associados à contratação externa de consultores (jurídicos, financeiros, técnicos, etc.); iii) insuficiente estimação de custos, insuficiente avaliação da comportabilidade orçamental do projeto, insuficiente avaliação de impactos económicos e sociais de longo prazo; iv) falhas na distribuição dos riscos geralmente em desfavor do Estado (v.g. imputação afinal do risco de procura ao Estado); v) cláusulas leoninas em desfavor do Estado; vi) adjudicações a baixo custo potenciando renegociações geralmente lesivas do interesse público; vii) em resultado da má negociação inicial, recurso posterior à modificação unilateral do contrato, implicando o recurso ao mecanismo da reposição do equilíbrio financeiro, também ele desfavorável para o Estado; viii) atrasos diversos na execução dos projetos determinado revisão ulterior dos custos finais respetivos. Acima de tudo, verificou-se que as PPP acabaram por ser um expediente fácil, não suficientemente blindado e balizado do ponto de vista jurídico e financeiro, para obviar a falta de “espaço orçamental”, criando dívida futura, em muitos casos oculta sob a forma de responsabilidades contingentes. A crise financeira iniciada em 2008 exacerbou a dimensão desta herança. Após a celebração do Memorando com a Troika (maio de 2011), Portugal adotou um conjunto de medidas relativamente a esta matéria. Foi elaborado um primeiro relatório (2012), intitulado “Parcerias Público-Privadas e Concessões”, do qual resultou a seguinte avaliação financeira referente às PPP existentes: i) os seus encargos líquidos globais (nos vários sectores) ascendiam, em 2011, a 1.823.000.000 euros; ii) o período mais crítico dos encargos líquidos das PPP ocorreria entre 2015-2018, com o valor a ascender a 2.000.000.000 euros; iii) a partir desta data e até 2045 (fim dos contratos ou do período de vida útil dos ativos), os encargos decresceriam até atingirem então o valor de zero euros. Na sequência desta primeira avaliação, foram adotadas as seguintes medidas: 1) proibição de lançamento, desde 2011 em adiante, de novas PPP (embora algumas estivessem já em fase de estudo, mormente no sector da saúde, e não viessem a ser abandonadas); 2) aprovação, em 2012, de um novo quadro legal das PPP (dec.-lei n.º 111/2012, de 23 de maio); 3) avaliação e renegociação de diversas PPP antes celebradas no continente: as concessões ex-SCUTS (Norte Litoral, Grande Porto, Interior Norte, Costa de Prata, Beira Litoral/Beira Alta, Beira Interior e Algarve); as concessões do Norte e da Grande Lisboa; e as subconcessões da EP (Transmontana, do Baixo Tejo, do Baixo Alentejo, do Litoral Oeste, do Pinhal Interior e do Algarve Litoral). O dec.-lei n.º 111/2012 surge pois numa altura de contenção, dada a situação presente e futura das finanças públicas portuguesas. A malha das exigências aplicáveis às fases pré-contratual e contratual apertaram-se, embora na essência não tenha havido uma grande mutação relativamente ao regime anterior (constante do dec.-lei n.º 86/2003). Ainda assim, há no novo decreto-lei uma novidade importante: a criação da Unidade Técnica de Acompanhamento de Projetos que passa a centralizar as funções de preparação, desenvolvimento, execução e acompanhamento global  dos processos de PPP, ao mesmo tempo que presta apoio técnico especializado ao Governo em matéria de natureza económico-financeira. Esta Unidade Técnica vem ainda, para este efeito, substituir a Parpública, pois a esta cabe, nos termos da legislação anterior, a generalidade das funções ora cometidas à nova Unidade. Na implementação de uma PPP, vamos distinguir entre fase de preparação e fase pré-contratual. Na fase de preparação, intervém a equipa de projeto, constituída sempre que algum dos possíveis parceiros públicos (desde logo, o Estado) entenda lançar mão de uma parceria, cabendo-lhe, além de verificar os pressupostos para o lançamento de uma parceria (cf. n.º 3 do art. 12.º, em articulação com o art. 6.º, ambos do dec.-lei n.º 111/2012), também proceder à elaboração e justificação do modelo de parceria a adotar, bem como realizar o estudo estratégico e económico-financeiro que a sustentará. Tendo por base este trabalho prévio, os membros do Governo competentes (ministro das Finanças e ministros sectoriais) aprovam a decisão de lançar a parceria. Dessa decisão, constará também, de entre outros elementos (cf. art. 13.º, n.º 4), a escolha do tipo de procedimento, a aprovação do caderno de encargos e a escolha dos membros do júri. O lançamento da parceria corresponde assim à fase pré-adjudicatória e aqui deve atender-se não apenas ao regime do dec.-lei n.º 111/2012 (especialmente os arts. 16.ºss.), mas também ao Código dos Contratos Públicos (CCP) (regras procedimentais, sobretudo arts. 130.ºss.). A fase pré-adjudicatória é encerrada com a adjudicação e celebração ulterior do contrato de parceria, sem prejuízo de se prever no n.º 3 do art. 18.º a chamada cláusula gateway, uma cláusula usual neste tipo de contratação, justificada pela necessidade de salvaguarda do interesse público e dos interesses financeiros do Estado, que garante que a qualquer momento se possa pôr “termo ao procedimento em curso relativo à constituição da parceria, sem direito a qualquer indemnização, sempre que, de acordo com a apreciação dos objetivos a prosseguir, os resultados das análises e avaliações realizadas até então ou os resultados das negociações levadas a cabo com os concorrentes não correspondam, em termos satisfatórios, aos fins de interesse público subjacentes à constituição da parceria, incluindo a respetiva comportabilidade de encargos globais estimados”. Estando implementada a parceria, esta começa a ser executada. Não se ignora que, por causa da sua natureza duradoura, uma PPP fique sujeita a inúmeras vicissitudes, algumas previstas, outras imprevisíveis, que poderão conduzir a diferentes tipos de alterações. As PPP comportam ainda, durante a sua execução, dois elementos que não raro se antagonizam: de um lado, a prevalência que nelas deve ser dada à prossecução do interesse público; do outro, a necessidade de garantir a tutela da confiança e dos interesses económicos dos parceiros privados. As alterações podem ter dois tipos de fontes jurídicas. Podem ser ditadas pela renegociação ou por modificações unilaterais  por parte do Estado (sobre estas fontes de modificação objetiva, vejam-se os arts. 311.ºss. do CCP). Sempre que as alterações, afetando o equilíbrio económico e financeiro do contrato, sejam devidas ao chamado fait du prince ou a atos unilaterais do parceiro público (v.g. atos administrativos), reconduzíveis ao exercício de potestas variandi, há lugar à reposição do equilíbrio económico financeiro do contrato (cf. n.º 1 do art. 314.º do CCP). Esta pode implicar uma revisão de preços, a alteração dos prazos do contrato com natureza reparadora, redefinição de outras condições contratuais, etc. Importa notar que, para aferir do equilíbrio financeiro, deverá ter-se em conta o respetivo Caso Base (anexo ao contrato) que representa a equação financeira da PPP, o qual deverá integrar todas as receitas previstas pelo parceiro privado decorrentes do desenvolvimento da parceria, i.e., as receitas acessórias e receitas cessantes. O dec.-lei n.º 111/2012 limitou as possibilidades de modificação unilateral, desde logo do ponto de vista financeiro: assim, carece de despacho prévio de concordância dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e do projeto em causa qualquer decisão do parceiro público, no âmbito da execução do respetivo contrato e das condições aí fixadas, suscetível de gerar: a) um acréscimo dos encargos previstos para o sector público, exceto se o respetivo valor não exceder, em termos anuais, 1.000.000 euros brutos ou, em termos acumulados, 10.000.000 euros brutos, em valores atualizados; b) uma redução de encargos para o parceiro privado (cf. n.º 2 do art. 20.º). Nos demais casos de alteração – mormente nos casos de renegociação –, poderão ser definidas outras formas de compensação ou de redefinição da equação financeira, mas tecnicamente, em sentido estrito, não se tratará de reposição do equilíbrio financeiro. Próximo do mecanismo de reposição do equilíbrio financeiro, de certa forma o seu reverso, é o instituto da partilha de benefícios, previsto no art. 21.º do dec.-lei n.º 111/2012 e no art. 341.º do CCP. Há lugar à partilha de benefícios sempre que numa PPP se verifiquem duas condições cumulativas: i) ocorra um acréscimo anormal e imprevisível dos benefícios financeiros para o parceiro privado; ii) o referido acréscimo não resulte da eficiente gestão e das oportunidades criadas pelo mesmo parceiro privado. Tal pode ficar a dever-se, nomeadamente, à melhoria das condições de financiamento da PPP em virtude da renegociação ou substituição dos contratos de financiamento. Pode dizer-se, em suma, que a partilha de benefícios, tal como a reposição do equilíbrio financeiro, constituem respostas jurídicas para os efeitos da alteração das circunstâncias (de fonte vária) sobre o equilíbrio contratual e recursos jurídicos que visam garantir a preservação da justiça negocial e, em última análise, evitar o enriquecimento ilícito. As PPP nas regiões autónomas Uma última referência nos resta para as parcerias público-privadas celebradas nas regiões autónomas (RA). À semelhança do que sucedeu no continente, também aqui o interesse pelas PPP cresceu a partir do começo do séc. XXI e também aqui o modelo concessivo – sobretudo no sector rodoviário – foi o dominante. Vejamos, em particular, o caso madeirense. A experiência iniciou-se ainda em finais do séc. XX, com a criação da VIALITORAL – Concessões Rodoviárias da Madeira, S.A. encarregue da concessão do troço rodoviário da VR1 (ER 101) entre a Ribeira Brava e Machico, e depois com a criação, em 2004, da VIAEXPRESSO, S.A., uma concessionária de serviço público responsável pela gestão, exploração e conservação das vias expresso regionais, em regime SCUT, por um período de 25 anos. Mais tarde, em 2008, viria a ser criada uma outra empresa, a VIAMADEIRA, S.A., cujo objetivo seria também o de assumir a concessão de vias rodoviárias construídas ou a construir naquele território. Até à sua dissolução em 2011 (coincidente grosso modo com a celebração do memorando da Troika), diversos contratos foram adjudicados à mesma empresa. Assim, segundo informação fornecida pelo Tribunal de Contas no seu Relatório de Auditoria n.º 14/2012-FS/SRMTC, de novembro de 2012, a concessão à VIAMADEIRA, S.A. abrangeu a exploração, conservação e manutenção dos troços de estradas regionais abaixo descritos, em regime de exclusivo, sem cobrança direta aos utilizadores (SCUT): VE1 – Ribeira de São Jorge-Arco de São Jorge; VE1 – Arco de São Jorge-Boaventura; VE1 – Boaventura-São Vicente; VE8 – Vasco Gil-Fundoa, à cota 500; VR2 – Câmara de Lobos-Estreito de Câmara de Lobos; VE3 – Fajã da Ovelha-Ponta do Pargo; VE3 – Variante da Madalena do Mar. De acordo com a indicação constante na p. 36 do mesmo Relatório, “em termos globais, até 30 de novembro de 2011, o envolvimento financeiro da RAM rondava os 309 milhões de euros, dos quais 253,5 milhões de euros respeitantes às empreitadas de construção dos troços e 40 milhões de euros respeitantes a juros de mora”. De resto, os efeitos das concessões sobre o erário regional continuam a fazer-se sentir, mesmo em relação àquelas duas empresas iniciais. Em agosto de 2015, o Governo regional anunciou a decisão de assumir encargos orçamentais no valor de 158.700.000 euros relativos à regularização de dívida com as empresas concessionárias de rede viária VIAEXPRESSO e VIALITORAL. Esta medida é ainda o resultado de um processo de renegociação das PPP, imposto pelo Plano de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF) do arquipélago e celebrado na sequência do Memorando da Troika.   Nazaré da Costa Cabral (atualizado a 01.01.2017)  

Direito e Política Economia e Finanças

caldeira, joão da silveira

Uma importante informação abre a entrada relativa a João da Silveira Caldeira no Elucidário Madeirense: “escassos dados possuímos para a biografia deste madeirense” (SILVA e MENESES, 1984, I, 366). Ainda assim, o Elucidário apresenta-o como um médico e investigador na área da química, nascido na Madeira no terceiro quartel do séc. XVIII, que terá sido lente na Escola Militar do Rio de Janeiro e provedor da Casa da Moeda nessa cidade, informação que, no entanto, não nos parece correta. Confrontando estas indicações com outras, nomeadamente com uma relação de “Irmãos e Irmãs sepultados no Cemitério [de Catumbi, São Francisco de Paula, Rio de Janeiro] a partir de 1850, em carneiros arrendados e/ou em perpetuidade” (BARATA, Colégio Brasileiro de Genealogia, s.p.), parece-nos haver uma confusão entre dois homónimos – pai e filho –, na medida em que as referências apresentadas pelos dois documentos são similares, exceto no local e na data de nascimento: no registo n.º 54 desta relação, há referência a um João da Silveira Caldeira, filho de um outro João da Silveira Caldeira e de Bárbara Joaquina, sepultado no cemitério de S. João Batista, no bairro de Botafogo, dado como nascido a 28 de junho de 1800, no Rio de Janeiro, e falecido na mesma cidade, a 4 de julho de 1857, vítima de suicídio. Neste sentido, o pai terá nascido na Madeira e saído para o Brasil, onde terá nascido o filho, João da Silveira Caldeira, que veio a ser uma figura importante da cultura. João da Silveira Caldeira, filho portanto, era, então, médico formado pela Universidade de Edimburgo, na Escócia, detentor do grau de doutor, com tese escrita em latim. Destacou-se na química, área na qual desenvolveu algumas investigações e trabalhos. Aperfeiçoou os seus estudos em Paris, tendo privado e aprendido com os químicos Louis Nicolas Vauquelin   (1763-1829) e André Laugier (1770-1832), e com o mineralogista René Just Haüy (1743-1822). Publicou, em 1926, a tradução anotada do Manual do Ensaiador de Vauquelin. Sobre a personalidade, refere Joaquim Augusto Simões de Carvalho, na Memoria Historica da Faculdade de Philosophia: “químico muito apreciado […]. É autor da memória sobre o ondeado metálico, publicada nos Annaes das Sciencias e Artes, e de outros trabalhos realizados no laboratório químico de Paris” (SILVA e MENESES, 1984, I, 188). Em Paris, foi preparador do Jardim das Plantas, cargo que manteve até regressar ao Brasil, onde, juntamente com o bispo de Anemuria e Manuel de Arruda Câmara, procedeu à revisão e publicação da obra Flora Brasiliensis, de  José Mariano da Conceição Veloso. Em 1823, fez parte da junta de diretores de uma escola do método de ensino mútuo para instruir as corporações militares. Nesse ano, foi nomeado diretor do Museu Imperial e Nacional e, no ano seguinte, criou o laboratório químico do Museu, o primeiro laboratório para análises fundado no país, do qual foi, também, o primeiro diretor. O Imperador, percebendo a importância deste laboratório, autorizou a compra, em Paris, de instrumentos solicitados por João da Silveira, que, deste modo, pôde contribuir para o desenvolvimento da investigação médica e da mineração do Brasil, realizando, então, as primeiras análises de combustíveis nacionais e de amostras de pau-brasil. Foi durante a sua gestão que o Museu passou a ser um estabelecimento consultivo, tendo, por essa época, o Governo imperial incentivado a participação de vários naturalistas estrangeiros, Natterer, von Sellow e Langsdorff, tendo este último oferecido ao Museu a sua própria coleção de mamíferos e aves da Europa. Durante a sua direção, o Museu recebeu ainda acervos vários, nomeadamente múmias, estatuetas funerárias, vasos, mãos e pés mumificados de origem egípcia, bem como vários objetos etnográficos oriundos do Pará e das ilhas do Pacífico. Na correspondência enviada para publicação, há referência a diversas pesquisas realizadas, nomeadamente em torno da obtenção do ácido cítrico puro e de zircónia pura, descoberta cujos créditos dividiu com o químico francês M. du Bois-Reymond. A Nova Nomenclatura Química Portuguesa, um dos primeiros compêndios de assuntos químicos no Brasil, datado de 1825, é assinada por João da Silveira Caldeira. Obras de João da Silveira Caldeira: Nova Nomenclatura Química Portuguesa (1825).     Graça Alves (atualizado a 14.12.2016)

Física, Química e Engenharia

ferraz, joão higino

Filho de João Higino Ferraz e neto de Severiano Alberto Ferraz, foi um destacado técnico e cientista do engenho Hinton entre 1888 a 1946, tendo sido o responsável por muitas das inovações introduzidas nos processos de produção de açúcar e de vinho. Palavras-chave: açúcar; vinho; engenhos; Hinton. Nascido no Funchal em 1863, é filho de João Higino Ferraz e neto de Severiano Alberto Ferraz (1792-1856), o primeiro a construir um engenho a vapor na ilha da Madeira, em 1856. Terá também sido o seu avô quem estabeleceu, entre 1848 e 1856, uma fábrica da família na Ponte Nova, onde João Higino começou a trabalhar e cuja direção assume em 1882. Era um jovem de 18 anos que se tornava responsável pela fábrica e que se manteve no cargo de direção até 1886, altura em que a família foi forçada a vender o edifício e os equipamentos em praça pública. Liquidada a fábrica, esteve dois anos sem emprego até que, em 1888, arrendou, em sociedade com o tio, João César de Carvalho, a fábrica de destilação da Ponte Deão, de Severiano Cristóvão de Sousa. No ano imediato, entrou para a fábrica do Torreão, da firma William Hinton & Sons, como técnico de fabrico de açúcar e álcool, assumindo a gerência industrial e técnica. Num manuscrito lavrado pela mão do próprio, João Higino Ferraz diz que, em 1900, assinou contrato com a fábrica do amigo Harry Hinton, a que ficou vinculado até à morte, em 1946. Todavia, e de acordo com o primeiro copiador de cartas, sabemos que estava ao serviço da firma desde 18 de outubro de 1898, como se pode confirmar pela carta enviada ao amigo e patrão Harry Hinton, solicitando a sua presença no engenho em construção para poder decidir sobre a forma de disposição das máquinas. No sentido de dar continuidade ao processo de modernização da fábrica do Torreão, esteve de visita aos complexos industriais franceses que laboravam a beterraba para o fabrico de açúcar. A visita foi proveitosa, refletindo-se nas modernizações do sistema do engenho de Hinton. Esta experiência terá sido importante para a saída que fez, em 1930, a Ponta Delgada (São Miguel), para dar alguns ensinamentos sobre o processo de fabrico de açúcar, nomeadamente a fermentação do melaço. Em julho de 1927, embarcou para o Lobito com Charles Henry Marsden (1872-1938), um engenheiro natural de Essex responsável pela modernização do engenho da casa Hinton, para montar uma estrutura mais moderna no engenho Cassequel, propriedade da casa Hinton. Aí permaneceu 103 dias, regressando ao Funchal a 13 de dezembro de 1928. O diário da saída, compilado numa agenda, documenta o processo de montagem da fábrica e as dificuldades de adaptação das peças ao conjunto da estrutura. Em 1945, lamentava-se: “sou pois técnico em fabricar açúcar e álcool, desde 1884 a 1945 = 61 anos. Não tenho direito a ter o título de técnico de fabricar açúcar e álcool oficialmente em Portugal? […] Desejava pois obter o título oficial de técnico de fabricar açúcar e álcool ou como técnico prático de fabricar açúcar e álcool” (FERRAZ, 2005b, 44). Mas acabou por morrer sem que fosse reconhecido o seu gigantesco trabalho como técnico, tendo sido a principal alma da permanente atualização tecnológica e química da fábrica do Hinton, que foi na época uma das mais avançadas tecnologicamente. A ideia está presente também no testemunho do próprio: “Nestes longos (60) anos assisti a variados sistemas de fabrico, desde quase do início de maneiras antigas no fabrico do açúcar de cana, destilação, etc., etc., acompanhando sempre os progressos nestas indústrias até hoje, principalmente desde 1900 a 1944, na fábrica do Torreão, onde pusemos em trabalho consecutivamente os sistemas os mais aperfeiçoados e mais modernos no fabrico de açúcar e álcool” (Id., 2005a, 39). Na correspondência com Harry Hinton, transparece uma perfeita sintonia entre os dois, que favoreceu o processo de permanente atualização tecnológica e química; partilhavam a mesma paixão pela indústria e desenvolvimento do engenho do Torreão. João Higino Ferraz não receia manifestar, diversas vezes, a amizade que o prende ao patrão. Em 1917, confessa: “Harry Hinton é um dos meus melhores amigos”. Passados 10 anos, confessa que a viagem a África sucedeu apenas “para ser agradável ao senhor Hinton a quem devo amizade e reconhecimento” (Id., Ibid., 40). João Higino Ferraz era o superintendente, mas acima de tudo um cientista que procurava aperfeiçoar os conhecimentos de química e tecnologia, através do confronto entre a literatura estrangeira e a sua capacidade inventiva. Manteve-se, assim, atualizado através da leitura de publicações, fundamentalmente francesas. Nos estudos, manifesta-se um cientista arguto que não detém a atenção apenas na cana sacarina, pois estuda e opina sobre o uso de outros produtos no fabrico de açúcar e álcool, como é o caso da batata e da aguardente.   Se confrontarmos a literatura científica mais significativa dessa altura, de finais do séc. XIX até à Segunda Guerra Mundial, verificamos que os conhecimentos e as técnicas mobilizados no engenho de Hinton são permanentemente atualizados e que se pautam por padrões de qualidade, integrando informações sobre os métodos mais avançados, como os estudos dos engenheiros químicos e industriais que marcaram o processo tecnológico do momento. Aliás, mantém contacto com inúmeras associações científicas europeias, como era o caso da Association des Chimistes de Sucrerie et de Distillerie. Na correspondência, surgem assiduamente nomes de cientistas europeus, como Barbet e Naudet. É de João Higino Ferraz o invento de um aparelho de difusão cujos direitos cedeu, em 19 de novembro de 1898, à firma William Hinton & Sons. Naquilo que resta da sua biblioteca, encontra-se um conjunto valioso de tratados de química e tecnologia relacionados com o açúcar. Sob a sua orientação, foram feitas várias experiências e adaptações dos sistemas tecnológicos importados. Em 1929, em carta ao amigo Avelino Cabral, que estava no Lobito, refere: “Como tenho tido tempo estou em estudos e experiências com o fermento Possehl’s no laboratório, e tenho obtido coisas bastante curiosas nas culturas feitas”. Ainda em carta ao mesmo refere a utilidade das inovações e experiências: “para que a parte comercial de uma indústria dê o resultado, é necessário ver também a parte industrial ou técnica” (Id., Ibid.). Apenas em 1922 temos informação de quanto auferia João Higino Ferraz pelos serviços prestados à fábrica Hinton. Para o novo contrato a celebrar reclamava 63 libras mensais, sendo o câmbio realizado mensalmente, ficando “com pulso livre para fazer e dirigir as minhas pequenas indústrias fora de açúcar, álcool e aguardente, não prejudicando por estes meus trabalhos a direcção técnica da fábrica de açúcar e álcool do Torreão” (Id., Ibid.). João Higino Ferraz fica para a história como um dos principais obreiros da modernização do engenho do Hinton ocorrida na primeira metade do séc. XX. Enquanto esteve à frente dos destinos da fábrica, de 1898 a 1946, foi imparável na sua adequação aos novos processos e inventos que iam sendo divulgados, não se coibindo mesmo de fazer algumas experiências com o equipamento e os produtos químicos. Opina sobre agronomia, bem como sobre mecânica e química, mantendo-se sempre atualizado sobre as inovações e experiências na Europa, nomeadamente em França. Da sua lista de contactos e conhecimentos fazem parte personalidades destacadas do mundo da química e da mecânica. Assim, para além dos contactos assíduos com Naudet, refere-nos com frequência os estudos de Maxime Buisson, M. E. Barbet, M. Saillard, F. Dobler, M. D. Sidersky, Luiz de Castilho, M. H. Bochet, M. Effort e M. Gaulet. À frente do engenho, a sintonia e empenho de Ferraz e Hinton fizeram com que a Ilha apresentasse, entre finais da centúria de oitocentos e inícios da seguinte, uma posição destacada no sector, atraindo as atenções a nível mundial. O Hinton acolhe especialistas de todo o mundo, na condição de visitantes ou como contratados para a execução dos trabalhos especializados. O Eng.º Charles Henry Marsden foi um deles, tendo aí trabalhado entre 1902 e 1937, altura em que saiu doente para Londres, onde faleceu no ano seguinte. A sua presença está documentada pelo menos em 1918, 1929 e 1931. Destaca-se também o Eng.º químico agrícola Maxime Buisson, que, em 1902, trabalhava no laboratório. Para o fabrico de açúcar, contratavam-se os afamados cuiseurs em França, de forma a seguir-se à risca as orientações de Naudet. O empenho de João Higino Ferraz não ficou por aqui, pois apostou também no processo de vinificação, âmbito no qual protagonizou algumas inovações que marcaram as primeiras décadas do séc. XX. A documentação disponível refere o seu empenho no processo de fabrico de vinho, aguardentes e outras bebidas, como a cidra, a cerveja e o vinho espumoso. A partir de 1905, J. H. Ferraz, a exemplo do que sucedeu com o fabrico do açúcar, manteve-se permanente atualizado sobre a tecnologia francesa de fabrico de todo o tipo de bebidas fermentadas e destiladas. São frequentes as referências a equipamentos franceses, bem como a um conjunto de títulos sobre o tema, de que era possuidor de alguns exemplares. Na déc. de 20, construiu uma vinharia onde foi possível montar o aparelho de evaporação Barbet e um moderno sistema de refrigeração. Ao nível da destilaria, devemos assinalar a sua presença em Almeirim, em 1916, para montar um aparelho francês. As experiências levaram-no a produzir cidra, cerveja e malte, e, com vinho branco, xarope de uva, vinho de mesa e espumoso – que chamava de “fantasia” para não se confundir com o francês –, vinagre, vinho cidre maltine, licores finos, anis escarchado e genebra, que vendia localmente e exportava para alguns mercados como a Alemanha. Por outro lado, tentou imitar os vinhos franceses, o sauterre e o champagne. Da sua lista de experiências, constam ainda as que fez para o fabrico de geleia de pêro, marmelada de bagaço de pero e fermento puro de uva para uso medicinal. Ferraz apostou, pois, no aperfeiçoamento do processo de vinificação, sendo a sua vinharia um exemplo disso. Neste contexto, fez diversas demonstrações sobre o uso dos processos Barbet e Sémichon, sendo defensor da necessidade da compra da uva ao agricultor, medida que contribuía para um maior aproveitamento das massas vínicas e para um maior cuidado no acompanhamento do processo de vinificação que defendia. Numa época em que o vinho jaquet, casta americana, dominava a produção, fez ensaios para o seu uso com o vinho Madeira e com o vinho de mesa para consumo local. Além disso, apresentou um vinho de mesa ligeiramente gasoso, pelo processo de M. Mercey, que, no seu entender, deveria competir com a cerveja. Sucede que, nas experiências de 1914, o vinho posto à venda não teve grande aceitação, porque as garrafas haviam perdido parte do gás carbono por causa da má qualidade da rolha. Mesmo assim, retoma essas experiências em 1927. J. H. Ferraz, a exemplo do que sucedeu com o conde de Canavial, bateu-se por mudanças radicais no processo de fabrico do vinho, apelando ao abandono das técnicas tradicionais a favor das vantagens das descobertas entretanto ocorridas na centúria de oitocentos no processo de vinificação, com os sistemas Barbet e Sémichon. Todas as experiências e ensaios eram sempre fundamentados com estudos científicos de carácter químico, nomeadamente franceses, e com a apresentação de equipamentos, maioritariamente com origem na tecnologia açucareira, que o mesmo adaptava, pelas suas próprias mãos, ao fabrico do vinho. A tudo juntava estudos minuciosos de viabilidade económica do novo produto, no sentido de convencer a Casa Hinton ou outros parceiros, mas o gosto madeirense não se mostrou favorável à novidade. Os conhecimentos adquiridos com o fabrico de açúcar no engenho do Hinton foram fundamentais para estes ensaios, mas o sucesso da iniciativa não foi coroado de êxito, pelo que acabará por abandonar esta atividade em 1942. O arquivo do engenho do Hinton é, por força das circunstâncias atrás descritas, fundamental para o conhecimento da história contemporânea da agricultura madeirense. Todavia, a forma conturbada como sucedeu o processo de desmantelamento da estrutura para a construção de um jardim público conduziu a que toda esta memória desaparecesse. Felizmente, tivemos a possibilidade de encontrar alguns testemunhos avulsos no arquivo particular de João Higino Ferraz. A documentação disponível, copiadores de cartas, livros de notas e apontamentos, constitui um acervo raro na história da técnica e da indústria. Não se conhecem casos idênticos de livros de apontamentos em que o técnico documenta, quase minuto a minuto, o que sucede na fábrica, desde os percalços do quotidiano às questões técnicas e laboratoriais. Para além disso, se tivermos em conta que a mesma documentação abrange um período nevrálgico da história de indústria açucareira, marcada por permanentes inovações no domínio da metalomecânica e da química, compreendemos claramente a importância deste tipo de espólio, que mais se valoriza pelo facto de ser, até aos começos do séc. XXI, o único divulgado e conhecido. O conjunto de nove livros referentes às cartas abarca um período crucial da vida do engenho do Hinton (1898-1937), marcado por profundas alterações na estrutura industrial, por força das inovações que iam acontecendo. A partir deste acervo de cartas, é possível conhecer tudo isso, mas também deduzir algo mais sobre o funcionamento desta estrutura. Ao mesmo tempo, ficamos a saber que João Higino Ferraz era, em Portugal, uma autoridade na matéria, prestando informações a todos os que pretendessem montar uma infraestrutura semelhante. Assim, em 1928, acompanhou a montagem do engenho Cassequel, no Lobito, onde a família Hinton tinha interesses, e esteve, em junho de 1930, em Ponta Delgada, nos Açores, a ensinar a fermentar melaço de açúcar de beterraba, na Fábrica de Santa Clara. Harry Hinton surge, em quase toda a documentação, como um interveniente ativo no processo, conhecedor das inovações tecnológicas e preocupado com o funcionamento diário do engenho, nomeadamente com a sua rentabilidade. J. H. Ferraz informava-o, de forma quase diária, de tudo o que se passava. A proximidade do Funchal aos grandes centros de decisão e inovação tecnológica da produção de açúcar a partir de beterraba, na França e Alemanha, associados aos contactos de H. Hinton e ao seu espírito empreendedor fizeram com que a Madeira estivesse na primeira linha da utilização da nova tecnologia. Em 1911, documentam-se diversas experiências com equipamento. Além disso, funcionava como espaço de adaptação da tecnologia de fabrico de açúcar a partir da beterraba para a cana sacarina. Daí as diversas deslocações de J. H. Ferraz a França (1904 e 1909) e os permanentes contactos com alguns estudiosos e fábricas. Tenha-se em conta que o mesmo era sócio da Association des Chimistes em França, sendo por isso leitor assíduo do seu Bulletin. Por outro lado, alguns inventores, como Naudet e engenheiros de diversas unidades na América (Brasil e Tucuman), Austrália e África do Sul, estavam em contacto com a realidade madeirense, fazendo, por vezes, deslocações para estudar o caso do engenho madeirense. A erudição de J. H. Ferraz era vasta, dominando toda a informação que surgia sobre aspetos relacionados com o processo industrial e químico do fabrico do açúcar. Para além da leitura do Bulletin de l’Association des Chimistes, temos referências à leitura do Journal de Fabricants de Sucre, e podemos documentar na sua biblioteca a existência de diversas obras da especialidade, muitas delas referenciadas nos livros de notas ou cartas. Aliás, nas cartas que manda a Harry Hinton quando este se encontra no estrangeiro, pede-lhe frequentemente publicações recentes. O corpo documental provém do arquivo privado de João Higino Ferraz e pode ser seccionado em três partes fundamentais: uma primeira constituída por nove copiadores de cartas; uma segunda formada por vários volumes de livros de notas; e, por fim, documentação avulsa. Esta organização do arquivo pessoal de J. Higino Ferraz é, de certa forma, artificial, dado que não foi feita pelo autor; trata-se de uma elaboração arquivística, que decorre da análise do conteúdo e da tipologia dos vários documentos que o compõem. A primeira parte, composta por nove livros onde Higino Ferraz conservou, em cópia, muita da correspondência por si remetida, e não só, cobre o período de 1898 até 1937, com um hiato temporal provavelmente entre finais de 1913 e inícios de 1917, e outro possivelmente de janeiro a outubro de 1919. Julgamos que estas lacunas estariam contempladas em dois volumes autónomos; contudo, se existiram, esses livros não ficaram para a posteridade. A designação “copiador de cartas” foi adotada devido ao facto de os dois primeiros livros, que cobrem o período de 1898 a 1913, terem esse título na capa – não aposto por João Higino Ferraz, mas como denominação da finalidade dos volumes. Entendeu-se por bem atribuir a mesma designação a todos os livros, seguida da referência aos lapsos de tempo que abarcam. Cumpre ainda acrescentar que nem toda a correspondência remetida por João Higino Ferraz está presente nestes livros e que nem toda a documentação neles inserida é composta por epístolas. Ver-se-á que de algumas cartas enviadas, sobretudo as datilografadas, guardou o autor cópia sob a forma avulsa, estando as mesmas – aquelas a que tivemos acesso – transcritas na secção da documentação avulsa. Fizemos preceder cada carta transcrita de uma informação sumária concernente à data, ao destinatário e ao local, quando possível, para permitir uma mais rápida perceção por parte do leitor. Ao longo da transcrição, demo-nos conta de que alguma informação exarada nos copiadores não era, com efeito, composta por epistolografia, mas sim por relatórios, cálculos, estimativas de produção, lucros e despesas, etc. Antepusemos a cada um dos informes deste teor a menção à sua data e ao se destinatário, se conhecido fosse, e uma breve caracterização. Uma segunda secção deste espólio documental transcrito é constituída por anotações e apontamentos vários – inscritos em livros autónomos –, versando sobre produtos, processos, aparelhos e técnicas industriais de produção, bem como sobre a transformação de açúcar, álcool e aguardente; quase todos estes volumes têm título atribuído por João Higino Ferraz, que é respeitado e aceite por nós. Ainda que algo artificial, a denominação dada a este conjunto, “livros de notas”, advém dos próprios títulos atribuídos pelo autor. A última secção é constituída por documentação avulsa, abarcando: documentos epistolares, saídos do punho de Higino Ferraz (particularmente cópias de cartas) ou tendo-o como destinatário (sendo seus autores, por exemplo, Harry Hinton, Marinho de Nóbrega ou Antoine Germain); documentos referentes a aparelhos, processos e técnicas de fabrico e transformação de açúcar, álcool e aguardente (à imagem da informação exarada nos livros de notas); anotações manuscritas que João Higino Ferraz lançou nos forros da capa ou folhas de guarda de alguns livros ou manuais por si usados, que versavam sobre a cultura e produção de cana sacarina e seus derivados; e, ainda, apontamentos autobiográficos. Dividimos esta documentação em duas subsecções: a primeira, composta por todos os documentos que têm por autor Higino Ferraz; a segunda, por todas as fontes que foram produzidas por outros indivíduos. O arquivo privado deste técnico açucareiro, que morre em 1946, permite-nos, pois, ter acesso a informações que ilustram vários aspetos da sua vida pessoal e familiar, nomeadamente as suas condições de vida, relações de amizade e conceções políticas, sociais e económicas. Ao mesmo tempo, esta documentação reveste-se de especial interesse para a história da Madeira da primeira metade do séc. XX, sobretudo no que respeita à história da indústria açucareira nas suas vertentes económica, social e técnica, mas também nos seus meandros e implicações políticas.   Alberto Vieira (aualizado a 06.01.2017)

Física, Química e Engenharia História Económica e Social Personalidades

empresas locais

A evolução que se verificou no quadro jurídico das empresas públicas portuguesas, desde o período de nacionalizações que se seguiu à Revolução de 1974 até ao processo (re)privatizador que teve lugar a partir da déc. de 90 do séc. XX, traduz claramente a evolução política e económica que ocorreu neste período. O regime jurídico inicial constava do dec.-lei n.º 260/76, de 8 de abril, e era, como facilmente se compreende, um regime herdeiro do momento revolucionário que apontava para caminhos de estatização da economia, desde logo pela presença do Estado na maior parte dos sectores económicos, e designadamente dos sectores-chave. Na sequência das nacionalizações levadas a cabo nos anos subsequentes à Revolução de 25 de abril de 1974, a necessidade foi então a de criar um regime que desse respaldo ao novo figurino jurídico entretanto forjado, o de empresas públicas de raiz estatutária, claramente apartadas do modelo societário aplicável às empresas privadas. O modelo era assim de carácter fortemente jus-publicístico, atestando a presença forte e intensa do Estado na definição das orientações estratégicas, mas também na própria gestão dessas empresas, e a pretendida subordinação do poder económico ao poder político. Tratava-se de empresas públicas políticas. Relativamente ao sector público local, pelo contrário, o mundo empresarial desconheceu um regime próprio durante os primeiros anos do sistema democrático que se seguiu ao 25 de Abril, e ele só viria a ser objeto de atenção particular com a aprovação da lei n.º 58/98, de 18 de agosto, que estabeleceu o primeiro regime jurídico aplicável a empresas públicas municipais. Como bem se vê, os tempos eram já outros. O movimento de reprivatização da economia estava em marcha e apontavam-se alternativas com vista ao reforço da lógica privatística na gestão pública em geral. A influência que se fazia sentir era já então a do modelo liberal, anglo-saxónico, da new public management. Por isso, de certa forma, o dec.-lei n.º 58/98 acabaria por ser premonitório, lançando as bases para a reforma do regime do sector empresarial do Estado que, no ano seguinte, viria a ser concretizada com a aprovação do dec.-lei n.º 558/99, de 17 de dezembro, alterado e republicado pelo dec.-lei n.º 300/2007, de 23 de agosto. Este último diploma foi muito inovador e teve, desde logo, como principal intuito dar a devida cobertura legal a empresas públicas, que, sendo ainda públicas, haviam sido transformadas em sociedades anónimas e aguardavam privatização do capital, e que, como tal, não conheciam previsão no quadro jurídico anterior (o de 1976). Assim, de acordo com este mesmo diploma, as empresas públicas passaram a poder ser de dois tipos: (i) sociedades comerciais nas quais o Estado ou outras entidades públicas exerçam ou possam exercer uma influência dominante, em virtude de detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto ou do direito a designar ou a destituir a maioria dos membros dos órgãos de administração ou de fiscalização; (ii) entidades públicas empresariais (EPE), correspondentes às “velhas” empresas públicas saídas da Revolução. Para além destas, o Sector Público Empresarial (SPE) integraria também as empresas participadas, consideradas estas entidades em que o Estado ou qualquer entidade pública estadual de carácter administrativo ou empresarial detivesse uma participação permanente no capital, ou seja, uma participação desprovida de objetivos exclusivamente financeiros, presumindo-se haver essa natureza permanente quando o capital público representasse uma percentagem superior a 10 % da totalidade do capital social. O dec.-lei n.º 558/99 anunciava assim várias mudanças. Em primeiro lugar, a transformação sugerida de género – do género estatutário para o género societário –, como pré-condição necessária de alienação do capital social junto de privados. Em segundo lugar, a afirmação do regime societário como regime-regra aplicável às empresas públicas, sem prejuízo da manutenção de elementos jus-publicísticos nesse mesmo regime. Por fim, por causa do que antecede, a erosão tendencial e progressiva do universo público empresarial. O regime aplicável às empresas públicas, ainda que feito predominantemente de regras de natureza privatística (v.g., direito aplicável às sociedades comerciais), contemplava, como afirmámos antes, um conjunto importante de regras de procedentes do direito público (e, em especial do direito administrativo), apartadas claramente do direito comercial. Destas, destacavam-se as regras relativas às orientações estratégicas definidas pelo Conselho de Ministros (e suscetíveis de contratualização) e, bem assim, as que impunham deveres de informação ao ministro das Finanças e definiam os poderes deste, de acompanhamento e fiscalização daquelas empresas. A lei n.º 58/98 tinha, como dissemos, potenciado e pré-anunciado estas mesmas alterações. No entanto, o seu escopo e utilidade foram, como não poderiam deixar de ser, mais limitados. Tratava-se, acima de tudo, de definir o quadro jurídico de atuação das empresas municipais, cuja previsão genérica já constava, de resto, das primeiras leis das autarquias locais, a lei n.º 79/77, de 25 de outubro, e o dec.-lei n.º 100/84, de 29 de março. Os aspetos principais do novo regime de 1998 foram, tal como referido por João Pacheco Amorim, os seguintes: (i) a criação das empresas municipais por deliberação da assembleia municipal, sob proposta da Câmara e constituição por escritura pública; (ii) a circunscrição do objeto social à prossecução de fins de interesse público e sempre dentro das atribuições das autarquias em causa; (iii) a sujeição da respetiva atividade ao direito privado; (iv) a delimitação do exercício de poderes de autoridade e sempre por delegação; (v) a sujeição das empresas públicas e de capitais públicos a fortes poderes de tutela e de superintendência dos executivos autárquicos, com destaque para o poder de aprovação dos preços e tarifas; (vi) sujeição aos poderes de controlo financeiro sucessivo do Tribunal de Contas; (vii) a fixação de limites para a contração, pelos municípios, de empréstimos de médio e de longo prazos (AMORIM, 2000, 49-51). Mas, verdadeiramente, o acolhimento da distinção, traçada entretanto no regime jurídico do SPE (o já referido dec.-lei n.º 558/99), entre empresas públicas de natureza estatutária e empresas de natureza societária só viria a fazer-se plenamente, no caso das empresas municipais, anos mais tarde, com a aprovação da lei n.º 53-F/2006, de 29 de dezembro. Esta divisão, atendendo ao critério do género ou natureza, e a outra, em função do critério do alcance territorial, entre empresas municipais, intermunicipais e metropolitanas, foram de resto duas das maiores novidades desta lei em face da anterior. O aspeto central, relativamente ao acolhimento expresso de empresas de natureza societária, foi a concretização do conceito de influência dominante, condição para a qualificação de uma empresa municipal como pública (também aqui o regime local foi tributário da influência do regime do SPE). Considerou-se existir influência dominante nas seguintes circunstâncias: detenção da maioria do capital ou dos direitos de voto ou; direito de designar ou destituir a maioria dos membros do órgão de administração ou de fiscalização. Este mesmo critério permitiria, por outro lado, traçar a distinção entre empresas públicas (total ou parcialmente) e empresas (meramente) participadas. Quanto ao objeto social, além de se manter a exigência de inserção do mesmo no âmbito das atribuições das autarquias ou das associações de municípios respetivas, concretizou-se melhor a delimitação desse objeto e da própria modalidade de empresa municipal, em razão dos fins prosseguidos. Seria pelo menos um de três: a exploração de atividades de interesse geral; a promoção do desenvolvimento local e regional; a gestão de concessões (art. 5.º, n.º 1 da lei n.º 53-F/2006). A concretização destas três modalidades de empresas municipais fazia-se, depois, respetivamente, nos capítulos ii, iii e iv do mesmo diploma. Assim, (i) as empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse geral, aquelas cujas atividades consistiriam em assegurar a universalidade e a continuidade dos serviços prestados, a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos, a coesão económica e social, local ou regional, e a proteção dos utentes, sem prejuízo da eficiência económica e do respeito pelos princípios da não discriminação e da transparência (art. 18.º); (ii) as empresas encarregadas da promoção do desenvolvimento local e regional, aquelas cujas atividades passariam por assegurar a promoção do crescimento económico local e regional, a eliminação das assimetrias e o reforço da coesão económica e social, local ou regional, sem prejuízo da eficiência económica e do respeito pelos princípios da não discriminação e da transparência (art. 21.º, n.º 1); finalmente, como categoria residual, (iii) as empresas encarregadas da gestão de concessões, aquelas que, não se integrando nas categorias anteriores, tivessem por objeto a gestão de concessões atribuídas por entidades públicas (art. 24.º). A Lei das Finanças Locais (LFL) (lei n.º 2/2007, de 16 de janeiro), entretanto aprovada, clarificaria o conteúdo desse objeto possível, ao elencar as áreas que poderiam justificar a criação de empresas públicas municipais nas três categorias supra – e sem prejuízo de gestão direta pelas unidades administrativas –, a saber: abastecimento público de água, saneamento de águas residuais, gestão de resíduos sólidos, transportes coletivos de pessoas e mercadorias e distribuição de energia elétrica em baixa tensão (art. 16.º, n.º 3). Clarificou-se que, nestes casos de provisão de bens pela via empresarial, haveria lugar à cobrança de preços, e não de taxas, solução que se compreende, pois a qualificação, do ponto de vista contabilístico, de uma unidade de produção ou provisão, como empresa ou entidade administrativa, depende de saber se a atividade em causa é ou não de produção mercantil, sujeita pois a cobrança de preços economicamente significativos. Uma das tendências que se vem notando na legislação mais recente – e a lei n.º 56-F/2006 foi pioneira nesse aspeto – prende-se com a opção (assinalada por Pedro Gonçalves) de canalizar na função acionista do sócio maioritário ou único, que é o município, a supremacia municipal na gestão da empresa. Deste modo, os elementos jus-publicísticos tradicionalmente associados à ideia de supremacia do ente público parecem diluir-se naqueles que são tipicamente os direitos (e também as obrigações) dos sócios maioritários nas sociedades comerciais, por serem maioritários e não por serem públicos. Assim sucede, e.g. (como refere ainda o mesmo autor), com os aspetos que se referem às orientações estratégicas da empresa, as quais devem aparecer refletidas nas orientações anuais aprovadas em assembleia geral. Não obstante a supremacia desta “lógica” societária, algumas das expressões de supremacia resultam contudo de intervenções espúrias em relação à função acionista: é o que se passa genericamente com o exercício dos poderes de fiscalização a cargo do município. O dec.-lei n.º 53-F/2006 ficou ainda marcado pelo facto de – como se refere no artigo “O Sector Empresarial após a Crise…”, de 2013 – atribuir uma larga margem de autonomia às autarquias locais e às suas associações na criação e gestão de empresas públicas, ainda que salvaguardando-se o impacto destas nos limites de endividamento dos municípios. Isto para além da sujeição ao controlo financeiro da Inspeção-Geral de Finanças e à fiscalização pelo Tribunal de Contas e, bem assim, do dever de notificação ao Governo de certas decisões (art. 8.º, n.º 2). À semelhança do que sucedera em 1998, também agora a aprovação do regime do sector empresarial local (lei n.º 50/2012, de 31 de agosto) parece ter antecipado e pré-anunciado o sentido das alterações que, no ano seguinte, iriam produzir-se em relação ao SPE (com a aprovação do dec.-lei n.º 133/2013, de 3 de outubro). O reforço da lógica privatística acentuou-se inexoravelmente, pela intromissão cada vez mais evidente do direito das sociedades comerciais em diversos aspetos do regime, tais como: procedimento associado à criação da empresa municipal (implicando, v.g., a realização de estudos comprovativos da sua viabilidade económico-financeira), exercício da função acionista, relações entre sócios, regras de governo societário, regras de transparência nas relações entre sócios e empresas, sujeição a regras de concorrência, etc. Repare-se, por outro lado, que uma empresa local – atendendo ao critério do respetivo alcance territorial – abrange tanto as empresas municipais, como as empresas (ditas) intermunicipais e as empresas metropolitanas. Relevante para este efeito é a natureza da entidade pública participante em questão (lei n.º 50/2012, arts. 2.º e 5.º), ou seja, respetivamente, consoante se trate de municípios, de associações de municípios ou de áreas metropolitanas. As empresas intermunicipais ou metropolitanas são, na verdade, uma extensão das associações de municípios ou das áreas metropolitanas que lhes estão na base e o seu fundamento económico é similar: trata-se de internalizar spillovers associados à provisão de certos bens coletivos ou de assegurar a obtenção de economias de escala em sectores habitualmente caracterizados por investimentos (na verdade, custos fixos) muito elevados e que só são verdadeiramente rentáveis e racionais se implicarem o upgrading na escala de decisão (ou seja, a assunção de responsabilidade por níveis superiores de decisão). É o que se passa, e.g., com o saneamento e o tratamento de resíduos e também, em certos casos, com os transportes coletivos de passageiros. Outras soluções – atendendo à natureza das entidades participantes – podem, por sua vez, ser encontradas: sociedades (meramente) participadas pelos municípios, ou seja, com capitais mistos, ainda que maioritariamente privados (lei n.º 50/2012, arts. 51.ºss.); empresas públicas, sob a forma societária, com participações do Estado e dos municípios (ou associações de municípios ou áreas metropolitanas) ou com participações das regiões autónomas e dos seus municípios (adiante referir-se-á um exemplo desta última hipótese). Este tipo de empresas públicas, com capitais do Estado, regiões autónomas e municípios, coloca diversas questões, quer quanto à sua qualificação (serão empresas estatais, reginais ou locais?), quer quanto à delimitação do respetivo perímetro, para efeitos de consolidação de contas com as entidades públicas (Estado, regiões autónomas, municípios) que nelas participam. Ao que tudo indica, a resposta a estas questões ficará sobretudo dependente da proporção de participação e/ou de direito de voto por parte de cada uma das entidades participantes, havendo que averiguar quem detém, no fundo, a influência dominante. Apurada esta, segue-se a regra do n.º 1 do art. 7.º da lei n.º 50/2012, quanto ao enquadramento sectorial: “As sociedades comerciais controladas conjuntamente por diversas pessoas coletivas de direito público integram-se no sector empresarial da entidade que, no conjunto das participações de natureza pública, seja titular da maior participação ou que exerça qualquer outro tipo de influência dominante”. Além disso – importa não esquecer –, a revisão, quer da lei aplicável às empresas municipais, quer da que se aplica ao SPE, surge no contexto particular de uma crise económica e financeira e da aplicação do chamado Memorando da Troika (celebrado em 2011 entre o Governo da República Portuguesa e o Fundo Monetário Internacional, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, no qual o primeiro se comprometeu à adoção de medidas de consolidação orçamental e de reforma estrutural, como contrapartida pelo financiamento concedido pelos segundos, no âmbito de programa de assistência financeira). Os quadros normativos criados reforçam o condicionamento da capacidade financeira das empresas públicas, maxime da sua capacidade de endividamento, na medida em que isso concorre para o cumprimento dos princípios de estabilidade orçamental e de sustentabilidade de longo prazo das finanças locais, impostos não apenas pelo Memorando, mas também, desde logo, pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) e, internamente, pela Lei de Enquadramento Orçamental (LEO) (lei nº 91/2001, de 20 de agosto). Em cumprimento das regras do PEC e das regras de contabilidade nacional (também elas de raiz europeia – Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais – SEC 2010) e para efeitos da avaliação regular da situação orçamental a cargo das instâncias comunitárias, releva a situação global e consolidada de todo o sector público. É essa visão consolidada do sector público que importa, concretamente, para o efeito de verificação do cumprimento das obrigações em matéria de défice orçamental (3 % do PIB, tendencialmente caminhando para uma situação de equilíbrio) e em matéria de dívida pública (60 % do PIB). Acresce, por outro lado que, dentro de cada sector (Estado, regiões autónomas, autarquias locais), se impõe, por força das mesmas regras contabilísticas, conhecer a situação financeira global de cada um deles, o que implica nomeadamente a consolidação de contas entre as várias entidades públicas que os constituem. É essa exigência que procede também do Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais (RFALEI) estabelecido pela lei n.º 73/2013, de 3 de setembro. Do seu art. 75.º resulta, com efeito, a noção de “grupo autárquico”, determinando-se que este grupo “é composto por um município, uma entidade intermunicipal ou uma entidade associativa municipal e pelas entidades controladas, de forma direta ou indireta, considerando-se que o controlo corresponde ao poder de gerir as políticas financeiras e operacionais de uma outra entidade a fim de beneficiar das suas atividades” (n.º 3). Os números seguintes concretizam, por sua vez, a noção de “controlo”, relevante para efeitos de consolidação de contas, a qual, repare-se, não é confundível com a noção de influência dominante e que serve, como vimos antes, para qualificar uma empresa como municipal, intermunicipal ou metropolitana (aparece, agora, em termos similares ao que resultava da lei anterior, contemplado no n.º 1 do art. 19.º da lei n.º 50/2012). Nestes termos, as empresas locais concorrem para o perímetro de consolidação dos municípios que as detêm, e a sua dívida é considerada dívida municipal. Diversamente, as empresas meramente participadas não consolidam para efeitos do referido art. 75.º, ainda que a sua dívida seja computada como dívida do município na proporção da participação deste no respetivo capital social. A tendência, em matéria de tratamento estatístico e orçamental, vai, aliás, mais longe, no sentido de se aumentar o próprio perímetro orçamental dos orçamentos públicos (que não é a mesma coisa que “perímetro”, para efeitos de consolidação de contas supra), não apenas limitando as hipóteses de desorçamentação, mas trazendo ainda, para dentro desse perímetro, realidades que apenas por razões formais ou jurídicas estavam fora deste, não o devendo estar do ponto de vista substantivo ou económico. Com efeito, as regras da contabilidade nacional, resultantes do SEC 2010, quando comparadas com as regras do SEC 1995, foram mais além nesta matéria. Na verdade, como é explicado no documento intitulado “O Sistema Europeu de Contas – SEC 2010: Impacto nas Contas Nacionais Portuguesas”, do Instituto Nacional de Estatística, “o SEC 2010 [em relação à versão precedente] reforça significativamente os critérios qualitativos de análise das unidades institucionais públicas, com destaque para os aspetos relacionados com o controlo e com a natureza das receitas obtidas. Além disso, o critério quantitativo (‘rácio de mercantilidade’) foi também alterado, passando agora a incluir no denominador correspondente aos custos operacionais, os encargos líquidos com o pagamento de juros” (INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA, 4). Assim sendo, por força do SEC 2010, “a reclassificação de empresas do sector empresarial do Estado dentro do perímetro de consolidação das Administrações Públicas (na ótica de contabilidade nacional) poderá ocorrer caso se verifique um de três critérios relacionados com o nível de inserção em mercados concorrenciais e com o grau de dependência do acionista público: (i) Nível de receitas mercantis inferior a 50 % dos encargos com o desenvolvimento da sua atividade, critério que determina a necessidade de contratualização da prestação de serviço público relativamente às empresas públicas que beneficiam de indemnizações compensatórias, o que abrange essencialmente as empresas dos sectores da cultura, transportes e infraestruturas; (ii) Classificação como empresa instrumental de investimento público em função da sua área de atuação principal; (iii) Empresas dependentes do acionista público em função do elevado endividamento bancário e das dificuldades de acesso aos mercados financeiros” (Orçamento de Estado…, 2013, 79). Diversas empresas públicas – a começar pelas empresas na área dos transportes (o caso da Companhia Carris de Ferro de Lisboa e da Metropolitano de Lisboa), passando pelos hospitais EPE, e a acabar nas entidades reguladoras de mercado – têm vindo a ser progressivamente objeto de reclassificação, ao abrigo destas regras. As consequências da reclassificação – que, como dissemos, implica trazer as empresas locais para dentro do perímetro orçamental – são definidas na LEO, que manda aplicar as regras por si definidas, para efeitos de orçamentação de receita e despesa, execução orçamental, reporte e controlo, às “entidades que, independentemente da sua natureza e forma, tenham sido incluídas em cada subsector no âmbito do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais, nas últimas contas sectoriais publicadas pela autoridade estatística nacional, referentes ao ano anterior ao da apresentação do Orçamento” (art. 2.º, n.º 5). Na verdade, esta inclusão implica alargar o perímetro orçamental e aumentar a própria dimensão das administrações públicas. É assim, pelo menos, em relação ao sector Estado. No que às empresas municipais respeita, não se prevê nada, expressamente, sobre a reclassificação de entidades. Apenas se lhes faz referência explícita no art. 78.º da lei n.º 73/2013, a propósito dos deveres de informação a que tais entidades, como de resto quaisquer autarquias locais, estão sujeitas em relação à Direção-Geral das Autarquias Locais. Já na lei n.º 50/2012 (art. 64.º) se prevê, por seu turno, a possibilidade de integração das empresas locais em serviços municipalizados e a hipótese de fusão destas empresas entre si. Apesar de, no que às empresas locais diz respeito, a hipótese de reclassificação não estar regulada de modo expresso na legislação autárquica, esta reclassificação deve ter lugar (como sugere, aliás, o mencionado art. 78.º). A relação que existe, do ponto de vista orçamental e contabilístico, entre sectores (administrativos) locais e os respetivos sectores empresariais deve aqui obedecer às mesmas regras que se preveem para o sector Estado, salvaguardadas as devidas adaptações. Logo, verificadas as condições supra, devemos aceitar essa reclassificação. Ora, este aspeto potencia o aparecimento de um fenómeno curioso e, porventura, de sinal contrário. Da mesma forma que, por imposição das regras da contabilidade nacional, se vem operando esse alargamento do perímetro orçamental (o sector administrativo cresce à custa do emagrecimento do sector empresarial), verificamos – justamente na lei n.º 50/2012 – a tendência aparentemente oposta, de maior abrangência do conceito de “atividade empresarial local”. O art. 2.º desta lei, aliás inovador, determina que a prossecução de atividade empresarial local se faz não apenas por empresas locais propriamente ditas, mas também por serviços municipalizados, cujo regime é depois concretizado (arts. 8.º-18.º). Até aqui, os serviços municipalizados figuravam no sector administrativo local (administração local indireta) e tinham, do ponto de vista financeiro, a natureza de fundos e serviços autónomos. Agora, embora pareçam continuar integrados neste sector, caminham aparentemente para o sector empresarial. Mesmo empresas públicas não reclassificadas consolidam, como dissemos antes, as suas contas com as entidades públicas participantes e o seu endividamento concorre para os limites fixados para estas últimas. É o que acontece nas empresas municipais, por força do disposto no art. 41.º. Simultaneamente, proíbe-se o chamado bail out dos municípios relativamente aos empréstimos contraídos pelas mesmas empresas (n.º 2), endurecendo-se assim a restrição orçamental que sobre estas impende e obrigando-as a acrescida responsabilização financeira. De um modo geral, a lei é muito exigente no plano na gestão orçamental das empresas municipais, impondo resultados equilibrados, na falta dos quais deverá a entidade participante proceder à necessária transferência que garanta esse mesmo equilíbrio (art. 40.º). Esta lógica de integrar as duas entidades, participante e participada, na obtenção, nesta última, de resultados equilibrados, é uma importante manifestação da noção de “grupo autárquico”, de que falámos antes, mais exigente, como agora se vê, do que a noção de grupo empresarial. Um aspeto interessante prende-se com o regime de extinção e dissolução das empresas municipais. Aqui, a lei n.º 50/2012 foi muito inovadora e, também neste ponto, a deriva para o direito privado é evidente. Pese embora as empresas públicas (logo, também as empresas públicas municipais) ainda estejam de fora de regimes falimentares – veja-se o disposto no n.º 2 do art. 2.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (dec.-lei n.º 53/2004, de 18 de março, e suas alterações) –, a verdade é que o modelo de dissolução que resulta da lei n.º 50/2012 não anda muito longe do regime privatístico. Na verdade, nos termos do artigo 62º, as empresas locais são obrigatoriamente objeto de deliberação de dissolução, no prazo de seis meses, sempre que se verifique uma das seguintes situações: as vendas e prestações de serviços realizadas durante os últimos três anos não cobrem, pelo menos, 50 % dos gastos totais dos respetivos exercícios; quando se verificar que, nos últimos três anos, o peso contributivo dos subsídios à exploração é superior a 50 % das suas receitas; quando se verificar que, nos últimos três anos, o valor do resultado operacional, subtraído ao mesmo o valor correspondente às amortizações e às depreciações, é negativo; quando se verificar que, nos últimos três anos, o resultado líquido é negativo. Esta previsão deu os seus frutos. Em 2015, foi noticiada a primeira falência, como tal decretada pelo tribunal competente, de uma empresa municipal: a PFR Invest – Sociedade de Gestão Urbana, da Câmara Municipal de Paços de Ferreira. A aplicação desta lógica falimentar, com tudo o que isso implica (a prevalência dada à proteção dos credores) contraria a tradição: nas entidades públicas (tenham ou não natureza empresarial), as situações de rutura financeira são geralmente de natureza reorganizativa (implicando a renegociação da dívida), com vista à manutenção do serviço público prestado. Continua a ser assim no RFALEI, quando está em causa a “bancarrota” de um município. O mecanismo de recuperação financeira, aí previsto (art. 61.º), tem esse escopo reorganizativo. Em relação às empresas municipais, porém, o legislador apartou-se desse modelo publicístico, pelo que as empresas públicas municipais transitam inexoravelmente para o direito privado. Uma última nota para as empresas locais criadas nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira. Repare-se que também estas têm o seu próprio sector empresarial, cujos regimes jurídicos são, no fundo, uma extensão e adaptação do regime do SPE a esses espaços regionais. Os regimes dos sectores empresariais regionais constam, respetivamente, do dec. leg. regional n.º 7/2008/A, de 24 de março, e suas alterações, e do dec. leg. regional n.º 13/2010/M, de 5 de agosto, e suas alterações. Mas, para além disso, podem ser criadas, nos respetivos municípios, empresas locais e, até, empresas intermunicipais (ou seja, empresas resultantes de associações de municípios). Note-se, porém, que o efeito prático destas últimas é menor do que no continente, especialmente quando o alcance do upgrading daí resultante for consistente com o espaço da própria região – nesse caso, as empresas intermunicipais podem tornar-se dispensáveis, inúteis, já que as suas funções podem ser assumidas por verdadeiras empresas regionais. Só não será assim se existir uma qualquer outra motivação – e.g., de ordem política ou partidária – que justifique a agremiação de municípios em detrimento da opção regional. Solução mais curial (ainda que ousada e inovadora) parece ser, por outro lado, a criação de empresas regionais que envolvam o concurso, a participação no capital, de alguns ou de todos os municípios da região. Isso pode acontecer quando se trate, v.g., de promover o desenvolvimento económico ou social de uma certa zona ou de um determinado sector de atividade, quando o interesse for simultaneamente regional e local. Empresas municipais, na Região Autónoma dos Açores – e para referir o concelho de Ponta Delgada –, são, com carácter societário, as empresas Cidade em Ação, a ANIMA, a Ponta Delgada Social, a Coliseu Micaelense e a Azores Parque e, com carácter estatutário, a empresa Ação PDL. No caso da ilha de São Miguel, convém destacar a empresa intermunicipal ANISM, que abrange os municípios de Lagoa, Ponta Delgada, Povoação, Ribeira Branca e Vila Franca do Campo e cujo objeto é o sistema de tratamento e gestão de resíduos sólidos. Relativamente à Região Autónoma da Madeira (RAM), refiram-se, com carácter de entidade pública municipal, as empresas Frente MarFunchal e SocioHabitaFunchal. A título de entidade intermunicipal, foi criada, em 1999, a Empresa Intermunicipal da Região Autónoma da Madeira, ainda ao abrigo da lei n.º 58/98, mas cujo objeto estatutário foi considerado ilegal, pelo Tribunal de Contas, no Relatório de Auditoria n.º 1/2005- FS/SRMTC. Curiosa foi também a criação da Ponta do Oeste – Sociedade de Promoção e Desenvolvimento da Zona Oeste da Madeira, S.A., através do dec. leg. regional n.º 18/2000/M, de 2 de agosto, uma empresa com capitais públicos e subscritos quer pela RAM, quer pelos respetivos municípios, Ribeira Brava, Ponta do Sol e Calheta. Esta empresa poderia, no entanto, ser qualificada como empresa pública regional, de natureza societária, pois, ainda que contando com uma participação significativa dos três municípios (75.000 € cada), a maioria do capital foi subscrito pela RAM (275.000 €).   Nazaré da Costa Cabral (atualizado a 02.01.2017)

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