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azevedo, jaime boaventura de

Jaime Boaventura de Azevedo (1887-1944) nasceu no Funchal mas muito novo viajou para Lisboa, onde fixou residência. Licenciou-se em 1916 em Agronomia, foi responsável pela reconstrução do Horto de Química Agrícola, e integrou o Instituto Superior de Agronomia, onde foi docente das disciplinas de Química Geral e Análise e de Química Agrícola, esta última, a partir de 1929. Ao longo da sua carreira, desenvolveu investigação na área da análise química agrária, que era indispensável para o cálculo da adubação. Não desenvolveu de forma direta a divulgação dos adubos em Portugal mas contribuiu para o estudo científico destas substâncias. A sua investigação surgiu no momento do início do fabrico de superfosfatos em Portugal e do começo da comercialização de diversos adubos minerais elementares, que estavam a ser importados. Boaventura de Azevedo criou o Curso de Aperfeiçoamento de Química destinado a engenheiros agrónomos que exerciam a sua atividade no campo químico da investigação agronómica, cujo principal objetivo seria o de intensificar os conhecimentos de análise química. Os seus estudos permaneceram no mundo académico através das suas publicações: em 1933 publicou Apontamentos da Cadeira de Química Agrícola, o primeiro conjunto de textos de apoio aos seus alunos, onde contempla vários tópicos, desde a matéria orgânica do solo à fertilização e adubos químicos; em 1939, foi divulgada a obra Nitreiras sem Moscas. Outros ensaios estavam a ser preparados; contudo, o falecimento de Boaventura em 1944, aos 56 anos, impossibilitou a sua publicação. Jaime Boaventura de Azevedo teve ao longo da sua vida de docente e engenheiro agrónomo o objetivo de educar as novas gerações para o desenvolvimento agrário, principalmente na região portuguesa. Obras de Jaime Boaventura de Azevedo: Apontamentos da Cadeira de Química Agrícola (1936); Nitreiras sem Moscas (1939).   Joana Pinto Salvador Costa (atualizado a 23.01.2017)

Biologia Terrestre Física, Química e Engenharia

aquário municipal do funchal

  O Aquário Municipal do Funchal encontra-se localizado no rés do chão do Palácio de São Pedro, uma das mais significativas obras da arquitetura civil portuguesa, de meados do séc. XVIII, mandado construir pela família Carvalhal e adquirido pela Câmara Municipal do Funchal a 19 de setembro de 1929, quando se deu início às obras de reformulação do Palácio com o propósito de aí se instalar um museu. Inicialmente designado Museu Regional da Madeira, este foi oficialmente inaugurado a 5 de outubro de 1933, e mais tarde deu origem ao Museu de História Natural do Funchal. A primeira vez que se falou na criação de um aquário público no arquipélago da Madeira foi em 1937, através de uma deliberação do município do Funchal, ficando esta sem efeito até 1951. Foi devido em grande parte a Charles L. Rolland, industrial norte-americano de bordados na Madeira e grande admirador da fauna ictiológica da ilha, que em 1951 a sua construção teve lugar. Este filantropo ofereceu à Câmara Municipal do Funchal 30.000 escudos (cerca de 150€) e o material necessário para que as obras tivessem o seu início. Sob a orientação, técnica e científica, de Günther Maul, conservador do Museu, inaugurou-se a primeira fase do Aquário, em dezembro de 1953, com três grandes tanques, sendo parte do material necessário para a construção do Aquário obtida graças à generosidade de vários entusiastas, de entre os quais se destacou o importador E. Brendle. Na segunda fase, concluída em 1957, o Aquário passou a ter 15 tanques de exposição de diversos tamanhos, nos quais passaram a estar representados alguns dos mais importantes elementos da fauna marinha costeira da Madeira, tais como meros, moreias, sargos, castanhetas, cabozes, caranguejos, lagostas, camarões, polvos, búzios, estrelas, ouriços do mar, etc. A captura de organismos para serem colocados nos tanques de exposição deveu-se à generosidade e dedicação de um grupo de pescadores amadores, Américo Durão, A. Correia da Silva, David Teixeira e João de Freitas, entre outros. A renovação regular dos exemplares vivos em exposição nos tanques é assegurada essencialmente através de dois métodos de captura, dependendo do tipo de organismo: alguns invertebrados marinhos são colhidos, à mão, nas poças de maré (zona do intertidal) ou no subtidal, através de mergulho com escafandro autónomo ou de mergulho em apneia; quanto à maioria das espécies piscícolas, bem como de outros invertebrados, a captura é feita recorrendo a diferentes tipos de artes de pesca, sendo muitas vezes necessária a utilização de uma embarcação para o lançamento e a recolha dos respetivos aparelhos de pesca. Durante muitos anos o Aquário dispôs de uma pequena embarcação de apoio, a Ianthina, para a captura de espécimes; através desta eram utilizados essencialmente dois métodos tradicionais de pesca: pesca à linha e covos. Posteriormente, deixou de ser utilizada qualquer embarcação de apoio, o que condicionou muito não só a própria renovação dos exemplares do Aquário, como a diversidade de espécies. O sistema de circulação de água do mar existente funciona em circuito fechado, tendo um volume total de cerca de 200.000 l, que estão distribuídos pelos tanques de reserva (cerca de 150.000 l) e pelos tanques de exibição (cerca de 50.000 l). A qualidade da água do mar é mantida não só através de sistemas de filtração de natureza biológica e mecânica, como também de um sistema de arejamento, pelo qual é introduzido ar em cada um dos tanques de exposição. A água do circuito é renovada uma vez por ano, sendo colhida diretamente no mar e transportada em autotanque para o Aquário. Toda a iluminação nos tanques é de natureza artificial; são utilizadas as lâmpadas mais adequadas para que as cores dos organismos expostos se aproximem o mais possível das que podem ser observadas quando estes se encontram no seu meio natural. A alimentação dos organismos é baseada essencialmente em cavalas, chicharros e espada preto, adquirido na praça e administrado três vezes por semana. Aquando da existência da embarcação Ianthina, para além das espécies anteriormente referidas, era adicionado à dieta dos espécimes do Aquário um crustáceo, conhecido vulgarmente como camarão comestível (Plesionika narval), que era capturado através da utilização de covos apropriados, sendo depois armazenado em arcas congeladoras e administrado de acordo com as necessidades e as características alimentares das espécies existentes. A manutenção diária do Aquário Municipal do Funchal é realizada por uma equipa técnica constituída por três funcionários com formação adequada às exigências de uma estrutura desta natureza: um técnico superior (biólogo) e dois assistentes técnicos. O Aquário Municipal do Funchal é uma das principais atrações da visita ao Museu de História Natural do Funchal, recebendo em média cerca de 11.000 visitantes por ano, 3500 dos quais são alunos provenientes dos vários níveis de escolaridade do ensino básico e secundário da Região Autónoma da Madeira.   Ricardo Araújo (atualizado a  23.01.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

cultura popular urbana

A cultura popular – associada ao povo, às camadas dominadas – resulta de um conhecimento usual, do senso comum, de uma convivialidade mais ou menos voluntária e de práticas sociais coletivas que configuram uma construção identitária. É uma cultura conservadora, porque depende da tradição, mas simultaneamente inovadora, porque incorpora elementos culturais novos, o que permite a sua preservação ao longo dos anos. A inspiração da cultura popular decorre dos acontecimentos locais rotineiros, o que a torna uma arte regional. Na déc. de 30 do séc. XX, a polarização antagónica que considerava “urbano” e “rural” como áreas contrapostas, espaços com características próprias e isoladas, foi substituída por uma diferente modalização espacial. Foi, então, proposta uma perspetiva de “continuum rural-urbano”. Não há espaços rurais e espaços urbanos, há ruralidades e urbanidades. No campo e na cidade existem urbanidades e ruralidades (heranças, origens, hábitos, relações, conjuntos de ações) que se combinam e geram as territorialidades particulares de cada localidade, município ou recorte regional (BIAZZO, 2008, 135 e 145). Para Edgar Morin, “a cultura na nossa sociedade é um sistema simbiótico – antagonista de múltiplas culturas, nenhuma delas homogénea” (SANTOS, 1988, 690). Assim, não podemos fazer uma distinção rígida entre cultura urbana e cultura rural. Passamos de comunidades rurais dispersas com cultura tradicional para uma sociedade predominantemente urbana, onde se encontra uma oferta simbólica, heterogénea e renovada por uma constante interação do local com as redes nacionais e transnacionais de comunicação. As mudanças de pensamento e de gostos da vida urbana passaram a coincidir com os do meio rural. Nesta medida, a sociedade urbana e a rural não se opõem totalmente. Na Madeira, é facilmente visível uma íntima relação entre algumas manifestações de cultura popular urbana e o meio natural – em particular plantas, flores e frutos –, bem como entre tal cultura e os fenómenos culturais populares mais remotos, especialmente o bordado e os tapetes de flores em contextos populares de cariz religioso. Podemos apontar como exemplos a Festa da Flor e as decorações natalícias. Em 1920, a Festa da Flor aliava a caridade e o desporto. São exemplos disso as festas náuticas preparadas pela comissão organizadora com o objetivo de angariar donativos para a fundação da já projetada Escola de Artes e Ofícios. A Festa da Flor de 1955 foi organizada, pela primeira vez, pelo Ateneu Comercial do Funchal. Esta Festa foi precedida por outras, que lhe terão dado origem, com a mesma temática e organizadas pela mesma instituição: a Festa da Primavera (1942 e 1952) e a Festa da Rosa (1954). Desde os finais do séc. XIX que o Carnaval era apreciado por toda a sociedade, quer nas expressões mais populares de rua, quer nos exemplos mais recatados. No dia de Entrudo, popularmente conhecido por Dia dos Mascarados, o disfarce, usado maioritariamente por crianças, revelava alguma simplicidade: os fatos baseavam-se no folclore regional ou nas profissões. Havia alguns disfarces coletivos e temáticos, como as caixas de bonecas e a caixa do mágico. As primeiras manifestações carnavalescas terão sido de rua, ocupando a R. da Carreira um lugar de destaque. Aí se desenrolavam renhidas batalhas de serpentinas e confetti, mas também de tomates, ovos ou farinha. No final do dia de Carnaval, a R. da Carreira ficava completamente suja e os mais pobres recolhiam o milho deixado entre tanta bagunça. Outro local de batalha situava-se a norte da Pr. da Constituição, onde ficava a Casa da Linha, frequentada pelos funcionários britânicos e pelas suas famílias, que assistiam, a partir daí, ao Carnaval. À noite, a praça da Constituição e o jardim municipal transbordavam de pessoas que procuravam divertir-se nas batalhas de confetti e perfumes. No final da déc. de 40 do séc. XX esta tradição desapareceu. Havia, também, o cortejo de mascarados em calhambeques sem capota com depósitos de água e mangueiras. O povo assistia nos passeios, varandas e janelas. As bandas de música saíam à rua, na tarde do dia de Entrudo, com divertidas e maliciosas indumentárias em tom de crítica social: “Em 1907 […] uma das filarmónicas locais percorreu as ruas do Funchal, envergando ‘camisas de noite’, em alusão a um facto passado nessa altura […] [naquele] meio” (CALDEIRA, 2007, 76). Em meados do séc. XX, o Carnaval passou a ser vivido dentro de grandes salões. Ficaram famosas as festas organizadas pelo Ateneu Comercial da Madeira (rua dos Netos), pelo Solar D. Mécia (junto ao jardim municipal), pela Associação dos Estudantes Pobres (atrás do jardim municipal), pelas sedes das bandas filarmónicas – como a dos Guerrilhas (R. da Queimada) ou dos Artistas (R. 31 de Janeiro) – e pelo Colégio Lisbonense (R. das Mercês). A proximidade dos locais permitia que os mais foliões frequentassem as várias festas ao longo da mesma noite. Embora o acesso a estes bailes fosse relativamente restrito, não era tão seletivo como o que acontecia nos hotéis. Chegando a ser frequentado pela elite funchalense, o Ateneu Comercial promovia um dos bailes mais apreciados na época, apenas suplantado, mais tarde, pelas festas dos hotéis. Nos anos 60 e 70, estes bailes eram animados por grupos musicais como os Demónios Negros (conjunto de João Paulo) e Ritmo 5 (de Luís Félix). Esta instituição organizava, também, festejos carnavalescos infantis. Na Associação dos Estudantes Pobres, as festas eram bem mais modestas. Na déc. de 70, as instalações hoteleiras aderem aos festejos de Carnaval, passando a ser os locais preferidos de certos grupos carnavalescos. Estes faziam o “roteiro dos hotéis”: começavam pelo Savoy, na sexta-feira; seguiam para o Vila Ramos e o Girassol, no sábado; o Sheraton, no domingo; o Atlantis, na segunda-feira; e o Casino Park, na terça-feira. No fim de semana seguinte, o Enterro do Osso era celebrado no Inter-Atlas (no Garajau) e/ou no Dom Pedro (em Machico). As suas máscaras baseavam-se nas tradições madeirenses e havia grande rivalidade e concorrência entre os grupos. Aos melhores disfarces, sujeitos a concurso, eram atribuídos prémios. No final dos anos 70 e início dos 80, a Direção Regional do Turismo começou a organizar o corso carnavalesco com o objetivo de trazer, novamente, o Carnaval às ruas do Funchal. Os grupos das décadas anteriores são substituídos pelas trupes, que desfilam sob um tema previamente definido e não com uma temática individual como no passado. Em 2013, participaram no Cortejo dez trupes e escolas de samba madeirenses: João Egídio, Caneca Furada, Geringonça, Fura Samba, Os Cariocas, Fábrica de Sonhos, Trupe de José Orlando Fernandes Vieira, Sorrisos de Fantasia, Associação Desportiva, Cultural e Recreativa Bairro da Argentina e Turma do Funil. O Cortejo Alegórico, organizado pela Secretaria do Turismo, desenrola-se na principal avenida da cidade e é o ponto alto do cartaz turístico. O Cortejo Trapalhão, surgido aproximadamente na mesma altura, é a institucionalização da expressão mais popular e genuína da tradição carnavalesca. Individualmente ou em grupos, os participantes vão brincando com personalidades e/ou temáticas atuais. O cinema e o teatro, na sua génese, serão, talvez, das mais populares manifestações artísticas. Dos locais de representação teatral, no Funchal, podemos destacar: o Teatro Grande (construído em 1780 e demolido em 1833), o Teatro do Bom Gosto (contemporâneo do primeiro), o Teatro Concórdia (1843), o Teatro Esperança (1858) e o Circo Funchalense, localizado a sul do convento de S. Francisco e que dará origem ao Teatro Municipal. Porém, se os espaços eram bons, o mesmo não acontecia com a representação, atividade desempenhada por amadores, tal como descreve Lyall, o autor de Rambles in Madeira: “À noite, o teatro. O edifício em si é bastante bom. A interpretação deplorável, excedendo as piores expectativas. Penso que a companhia, como a de Peter Quince, é constituída na sua maioria por homens de ofícios da cidade […]. O que mais me divertiu foi o facto dos assistentes terem tomado partido quanto às personagens e emoções da peça” (SILVA, 1994, 135). As representações ocorridas na ilha eram de mais baixa qualidade quando comparadas com as de Lisboa. Só no início do séc. XX começaram a chegar à Madeira as boas companhias e os grandes atores, que atuavam no Teatro D. Maria Pia. À semelhança do que acontecerá nas sessões cinematográficas, o público revelava, frequentemente, um mau comportamento. Havia “disputas no teatro por motivos políticos ou pelas preferências por atrizes, cantoras líricas ou bailarinas”, o que provocava “as pateadas e as desordens entre militares” (SILVA, 1994, 137). Outro aspecto criticado pelos periódicos da época eram os problemas morais levantados pelas peças apresentadas. A população pedia mais rigor às autoridades na verificação dos textos: “Tem de haver censura a algumas peças! […] um filho rasga o Thema na cara do ‘pay’, chora de raiva e promete queimar os livros, não sendo sequer castigado por esta insubordinação!” (SILVA, 1994, 168). Em Lisboa, as feiras, onde era exibido cinema em barracas, tinham grande procura por parte das camadas populares. São exemplos a feira do Campo Grande, a feira da Avenida e a feira de Alcântara. As barracas de feira, que concorriam com as salas da cidade, foram, no início do séc. XX, definitivamente substituídas por estas. A forte afluência registada nestas salas é demonstrativa da adesão da população ao cinema. Outro aspecto denunciador do carácter popular do cinema foi o surgimento, nos finais da déc. de 20 do séc. XX, dos cinemas de bairro. Estes cinemas, situados em zonas densamente povoadas e pouco modernizadas, fundiam-se com a vivência do bairro, ou dos bairros, que serviam, permitindo a imaginação e a fantasia num tempo em que o país se fechara. No texto “O Filme dos Cinemas de Bairro”, publicado na revista Imagem e escrito por Guedes de Amorim, em 1931, era retratada a população que assistia aos filmes projetados nestas salas: “Fatos de ganga, bonés, mulheres de xaile, engraxadores, cortesãs, carroceiros, gente que sobe dificilmente a ladeira da vida, chorando e cantando, vêm aqui passar um pedaço de noite, vêm aqui comprar umas migalhas de alegria. […] Lá mais para a frente, nos lugares baratos, nos lugares que custam só um escudo, vai uma alegria desenfreada! Ouvem-se gritos, assobios, aplausos, e, de quando em quando, exclamações arrojadas dominam o bulício” (ACCIAIUOLI, 2013, 119). Na capital, os cinemas promoviam sessões contínuas de 12 h, do meio-dia à meia-noite. As famílias levavam grandes cestos e pacotes com o farnel, falavam alto, davam opiniões e provavam as iguarias trazidas. Na província, também era uma aventura ir ao cinema: as salas pareciam barracas, eram frias e húmidas e tinham um cheiro incómodo. Exibido pela primeira vez no Funchal ainda no séc. XIX, o cinema depressa começou a fazer parte do quotidiano dos habitantes da cidade, ricos e pobres. O interesse dos funchalenses pelo cinema era evidente, o que se demonstra pelas várias salas inauguradas nas primeiras décadas do séc. XX. A primeira sala de espetáculos foi o Pavilhão Grande, na Praça da Rainha, ainda do séc. XIX. Seguiram-se o Teatro Águia D’ Ouro (1907, Pr. da Rainha), o Pavilhão Paris (1909, R. João Tavira), o Salão Ideal (1910, R. da Princesa), o Salão Central (1910, R. da Queimada de Baixo), o Salão Variedades (1910, R. de S. Francisco), o Teatro-Circo (1911, Pr. Marquês de Pombal) e o Salão Ideal (1923, R. de Santa Maria). Além destas salas, havia projeção de filmes em espaços menos convencionais, dos quais se destacavam a praia de São Tiago, o Jardim Municipal (Cine-Jardim), o jardim do Hotel Monte Palace, o Parque das Cruzes, na Quinta das Cruzes (Cine-Cruzes), o Patronato de S. Pedro (beco Paulo Dias, nas Angústias), o Casino Victória (R. Alexandre Herculano), o Colégio Lisbonense, o Salão Teatro dos Álamos, a Banda Distrital do Funchal, entre outros. A abundância de locais provocou a concorrência entre eles. Assistiu-se ao aumento da publicidade, redução dos preços dos bilhetes, oferta de melhores filmes e equipamento, exibição de espetáculos de variedades (bailados, cançonetas, duetos e múltiplos números de palco), distribuição de brindes, como bengalas, pentes, relógios e bombons. A Vida de Christo, exibido pela primeira vez em 1907, foi o filme mais popular e com maior audiência da época. A enorme afluência levou mesmo ao esgotar das bilheteiras, provocando grande descontentamento por parte do público. O sucesso do filme fomentou excursões de espectadores provenientes de toda a ilha, tendo estado em exibição durante vários meses. Ainda nesta década, em setembro de 1910, a população menos citadina pôde ter contacto com o cinema. José Maurício Gomes e José Procópio de Gouveia divulgaram o cinematógrafo ambulante com uma projeção realizada fora da urbe, em S. Gonçalo. Os diversos locais, ao longo de todos estes anos, estavam vocacionados para diferentes tipos de filmes: enquanto alguns espaços exibiam cinema de cariz popular e de aventura, outros, como o Teatro Municipal, pendiam para as fitas de maior qualidade, e outros ainda, como o Hotel Monte Palace, promoviam sessões de cinema exclusivamente dedicadas à elite funchalense. Embora o Cine-Jardim, no jardim municipal, tivesse espetáculos dedicados aos diferentes grupos sociais – as récitas da moda e as récitas populares –, comemoravam-se neste espaço efemérides com a projeção de películas do agrado do público em geral. Em outubro de 1923, o filme comemorativo do V Centenário da Descoberta da Madeira, produzido pela Madeira Film e há muito tempo desejado pelo público funchalense, foi exibido no jardim municipal. No dia 17, os funchalenses foram ver-se no ecrã, porque o Correio da Madeira, que iniciou a notícia com a pergunta “V. Exa. já viu a sua figura n’ um ecrã de cinematógrafo?”, explicou que o filme “contém sem dúvida a fotografia de todos os moradores do Funchal, pelo menos de todos que saíram à rua por ocasião dos festejos comemorativos do V Centenário da Descoberta da Madeira” (Correio da Madeira, 17 out. 1923, 2). Certamente o Cine-Jardim superlotou; os habitantes da cidade, aliciados com a divulgação do jornal, acorreram à bilheteira. Demonstrando algumas preocupações sociais, a empresa que explorava o Pavilhão Paris decidiu que aos sábados haveria sessões a metade do preço, de modo a proporcionar às classes operárias umas horas de distração. A função benemérita era uma das vertentes do cinematógrafo, valorizada na época por vários empresários. Com alguma frequência, o produto da exibição revertia a favor de uma família desfavorecida, de vítimas de uma catástrofe, de uma associação profissional ou cultural, entre outras. O comportamento do público nem sempre era o desejável, como já referido. A desorganização na compra dos bilhetes e na entrada para as salas levou a que os responsáveis pelos espaços apelassem à compra antecipada das entradas e a que os jornais comunicassem a importância da supervisão do guarda de serviço na área. Em situações mais extremas e quando o espetáculo não agradava, ouviam-se insultos, chegando mesmo alguns objetos a serem arremessados. Tais episódios eram descritos e censurados pelo jornalismo da época. Em 1907, a Câmara Municipal do Funchal, a fim de impedir a má educação dos espectadores, decretou a “proibição de clamores e gritos”, colocando um polícia em todas as sessões (MARQUES, 1997, 11-13). A partir da déc. de 50, a exibição cinematográfica foi monopolizada por dois espaços: o Cine Parque (de João Firmino Caldeira) e o Cine Jardim (de João Jardim). A concorrência entre estas duas salas era feroz e visível através da publicidade e promoções constantes. Nos anos 60, assistiu-se a uma modernização das salas e ao aparecimento do cineclubismo, com o Cine Fórum. A inauguração do Cinema João Jardim (1966) – com a distribuição da sala, os tipos de cadeira e o preço dos bilhetes – fomentou uma distinção social semelhante à do início do século. Transformou-se, contudo, na sala de maior sucesso do Funchal até ao aparecimento do Cinema Santa Maria e do Cine Casino, funcionando até 1982. A déc. de 80, assistiu ao encerramento de várias salas de cinema, como o Cinema João Jardim e o Cine Parque. Na década seguinte, deu-se a remodelação de algumas salas, como o Cinema Santa Maria, e a abertura de outras, como o Cine Deck, o Cine Max e o Cinema D. João, que tiveram uma curta duração, situação provocada pela quebra de público devido à concorrência do vídeo. No início do séc. XXI, verificou-se a abertura de cinemas multi-salas, associados a grandes distribuidoras. Nestas salas, os filmes exibidos são, geralmente, de cariz comercial e facilmente percetíveis pelos grupos menos letrados. O cinema alternativo, mais analítico – festivais e mostras de cinema –, está particularmente associado ao Teatro Baltazar Dias. Ao longo do séc. XX, com exceção do Estado Novo, o desporto teve um cariz popular, desempenhando um importante papel na cultura popular urbana. As atividades físicas eram, inicialmente, praticadas nas escolas, logo típicas das elites. Esta situação foi alterada com o romper dos limites da escola, chegando às camadas populares. Segundo Pierre Bourdieu, o desporto, oriundo dos jogos populares, regressa ao povo sob a forma de espetáculo produzido para este grupo social que se encontra sedento de distração. O bilhar foi, provavelmente, o mais antigo desporto praticado na Madeira, nos clubes madeirenses e estrangeiros. Nos locais de diversão, o jogo popularizou-se e mais tarde torna-se uma prática de competição. Curiosamente, o madeirense Alfredo Ferraz (n. Madalena do Mar, 08/11/1901) foi um dos maiores bilharistas portugueses, representando Portugal, em 1932, no III Campeonato do Mundo de Bilhar Livre, realizado em Espinho. Sagrou-se campeão do mundo em 1939, no campeonato que teve lugar em Lausanne, Suíça. Contando com uma associação, a Associação Madeirense de Bilhar, esta modalidade está ainda muito presente na sociedade madeirense. Durante a Primeira República, surgiram condições para a formação de associações desportivas, sociais e culturais relacionadas, principalmente, com o desenvolvimento da prática do futebol. Há notícia do aparecimento e inauguração de várias dezenas de clubes que desapareceram da mesma forma súbita com que surgiram: “E é neste fervilhar de tudo, que nascem e crescem o Club Sport Marítimo, o Clube Desportivo Nacional e o Clube Futebol União” (NASCIMENTO, 2011, 45). Emergiram, ainda, 14 núcleos desportivos, sem carácter associativo, servindo para a ocupação dos tempos livres e prática do futebol. Estes clubes procuravam incentivar a prática de vários desportos e atividades além do futebol, como o ciclismo (praticado desde os finais do séc. XIX e com provas entre o Funchal e Câmara de Lobos), a natação, a esgrima, o boxe, a luta romana, a ginástica, o ténis, a vela, a corrida, as provas automobilísticas e as corridas de cavalos, que se realizavam na estrada entre o Funchal e Câmara de Lobos, como descreve John Driver, cônsul da Grécia na Madeira, já em 1838. Refere, ainda, o ambiente festivo que caracterizava estas provas (SILVA, 1994, 191). Apesar dos esforços para implementar e desenvolver as atividades náuticas – nomeadamente a natação e o polo aquático – e a ginástica, o futebol passou, após a Implantação da República, a ocupar um lugar central na sociedade funchalense. A fundação de alguns clubes – Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, Grémio dos Empregados do Comércio, Operário Funchalense, entre outros – é demonstrativa do carácter popular do futebol. A partir da déc. de 20 do séc. XX, o futebol tem já um modus operandi e características que hoje identificamos como fenómenos de massas. Este desporto passa, assim, a fazer parte do quotidiano funchalense. Os periódicos da época relatavam os jogos realizados ao domingo no adro da igreja de Santa Maria Maior, impedindo o normal movimento das pessoas que se dirigiam ao templo, o que resultava em queixas apresentadas à polícia. O Diário da Madeira de 21 de novembro de 1912 dava conta que “era raro o dia em que não houvesse futebol no Antigo Campo do Campo da Barca”. Apesar de haver alguma iniciativa individual, eram os clubes os principais impulsionadores das atividades desportivas, havendo, entre a sua maioria, um denominador comum: a Rua de Santa Maria. Foi nesta zona, coração da cidade por excelência, que surgiu o primeiro espaço oficial destinado a jogos de futebol, provas de atletismo e hipismo, bem como muitas sedes dos clubes funchalenses. Temos, assim, uma clara associação entre o desporto e a zona mais popular e característica da cidade. O futebol, nomeadamente o Club Sport Marítimo, foi referido na obra Lágrimas Correndo Mundo de Horácio Bento de Gouveia. Em 1926, este clube sagrou-se campeão nacional. Neste episódio percebe-se, com facilidade, o carácter popular da modalidade: “Ao sair a porta, um vivório enchia a Rua de Santa Maria. Grupos de populares, à frente dos quais se erguia um estandarte, gritavam, esbracejando num delírio resvés da demência: Viva o Marítimo! Viva o campeão de Portugal. […] E seguiu a ranchada para a sede do Clube, no Campo de D. Carlos. […] Celebrava-se o aniversário do Marítimo, campeão de Portugal” (GOUVEIA, 1959, 153-154). Mas havia, também, clubes mais elitistas. O escritor João França, no seu romance Uma Família Madeirense, descreve a relação existente entre clubes e grupos sociais: “o Alfredo Meireles devia deixar o Madeira e filiar-se no Marítimo, isso para estar de acordo consigo mesmo, pelo menos quanto às cores das bandeiras e nível social. […] As cores do Madeira, o clube da elite funchalense, eram o azul e branco, a exemplo da bandeira da Monarquia, e as do Marítimo, clube popular, o rubro e o verde, tal o estandarte da República portuguesa” (FRANÇA, 2005, 34-35). Embora o principal objetivo dos clubes fosse fomentar o desenvolvimento físico dos seus sócios através de atividades desportivas, também promoviam excursões de recreio, convívios e atividades culturais. Os clubes comemoravam, assim, datas importantes, efemérides, e homenageavam individualidades de relevo para a causa desportiva. São exemplos disto as comemorações do V Centenário da Descoberta da Madeira, a extinção da cólera na ilha e os aniversários da Implantação da República. As excursões instituídas pelos clubes tinham como objetivo promover o convívio entre os adeptos, os jogadores e a imprensa, assim como fomentar a troca de experiências com outras equipas. Os adeptos dos clubes e a imprensa eram convidados para estas viagens, normalmente marítimas, que saíam do Funchal para o exterior, e não no sentido inverso. Era hábito haver o acompanhamento por parte de uma banda filarmónica. Os clubes tinham preocupações sociais, servindo as excursões para angariar fundos para doar a algumas instituições de caridade e causas públicas, sendo a construção do sanatório para tratamento da tuberculose um bom exemplo. Além das excursões, as associações desportivas dinamizavam bailes de Carnaval e de Páscoa, saraus literários, musicais e dançantes. Estes encontros, que se realizavam na sede do clube ou num teatro da cidade, serviam, também, para a entrega de prémios àqueles que tinham participado nas atividades desportivas. Com a instauração do Estado Novo, o desporto foi usado com o intuito de regeneração da raça, ficando o carácter lúdico e de sociabilidade para outros planos mais secundários. A intervenção estatal no campo do desporto foi notória com a criação de várias instituições: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (1935), Mocidade Portuguesa (1936), Instituto Nacional de Educação Física (1940) e Direção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (1942). Estas instituições, aliadas “à construção de campos de jogos, de ginásios e de estádios e aos subsídios anuais de milhares de contos para o desporto vão fazer da caminhada da atividade desportiva em Portugal, um trajeto constantemente acompanhado, vigiado e controlado, sem grande margem de manobra e autonomia” (NASCIMENTO, 2011, 96). A ideia que o Estado Novo tinha do futebol, e do desporto em geral, era que deveria ser amador, ao serviço da nação, da educação física, para o cultivo do corpo. O desporto de espetáculo, de massas, era amplamente condenável pelo regime. Embora o Estado Novo nunca quisesse potenciar o futebol, assistiu-se a uma propagação desta modalidade. O futebol tornou-se um desporto de massas, urbano, popular, económico e democrático. Este era “um dos pilares da sociedade portuguesa da época por ação do povo que, através da prática e acompanhamento semanal da modalidade, usufruía de um intenso entretenimento e euforia, contrariando a ideia de que seria um agente de corrupção moral” (Id., Ibid., 113). As enchentes tornaram-se uma realidade, possibilitando a riqueza de bilheteira, fonte de receita fundamental para os clubes. Segundo o DN da Madeira (29 jul. 1945, 1), o orçamento de 1946 do Ministério das Obras Públicas na Ilha previa o arranjo do campo de jogos do Liceu Jaime Moniz, a primeira fase de arranjos do campo dos Barreiros e do Parque de Santa Catarina e a terraplanagem de campos de jogos locais. Entre 1940 e 1957, houve na Ilha várias obras de melhoramento e inaugurações de campos de futebol (Funchal, Câmara de Lobos, Machico, S. Jorge, Santana e Santa Cruz). No entanto, “o que marca este período na Madeira em termos de infraestruturas é, indubitavelmente, a inauguração do Estádio dos Barreiros”, em 1957 (NASCIMENTO, 2011, 103). À semelhança das décadas anteriores, nos anos 60 os clubes foram dinamizadores de grandes eventos culturais, como as Feiras Populares do Marítimo e as Quermesses do Nacional. Com estas festas, a população, sequiosa de distrações, podia, durante o verão, ter contacto com individualidades da televisão, da rádio e do teatro, que de outra forma não seria possível. Marcaram presença nas Feiras e Quermesses artistas nacionais como Simone de Oliveira, Madalena Iglesias, Conjunto Académico João Paulo, António Calvário, Paula Ribas, Elsa Vilar, Raúl Solnado, Badaró, Maria de Lourdes Resende, Duo Ouro Negro, Max, Anita Guerreiro, Mimi Gaspar, Mena Matos (imitador), Humberto Madeira e Helena Tavares; e nomes internacionais: Alberto Cortez, Vicky Lagos, Marisol e António Prieto. Estes eventos, que ocorriam em pontos agradáveis da cidade, tinham, além dos momentos musicais, teatro, bazares, exposições, casas de chá, barracas de “comes e bebes” e várias distrações. Enquanto as Quermesses se destinavam à elite funchalense, acontecendo em locais mais sofisticados e com artistas mais afamados, as Feiras do Marítimo congregavam as camadas populares da urbe. Porém, embora o sucesso fosse grande, estes eventos terminaram em 1964, dada a exiguidade territorial, a pouca população e a elevada qualidade exigida pelos seus promotores. Com o 25 de Abril, o desporto deixa o seu cariz elitista, como pretendia o Estado Novo, e passa a ser massificado, revelando-se a raiz popular do mesmo. A política desportiva da RAM fez surgir e consolidou os clubes desportivos regionais: “Em 1976 eram vinte e sete, em 1980 eram quarenta e cinco e em 1988 passariam para cinquenta e cinco, os clubes legalmente constituídos e inscritos em competições nacionais e regionais” (Id., Ibid., 120). Com a crescente adesão da população às práticas desportivas, novas modalidades vão alcançar êxito fora da ilha – como o voleibol, a natação e o hóquei –, levando ao surgimento de 20 novos núcleos desportivos e várias associações, nomeadamente o Clube dos Amigos do Basquete, o Clube Futebol Andorinha e a Associação Hípica da Madeira. O primeiro dia de maio – dia de S. Tiago Menor, padroeiro da cidade do Funchal, das antigas comemorações das Festas dos Maios e, mais tarde, Dia do Trabalhador – era um dos momentos mais esperados do ano pela população do Funchal. Provavelmente, a maior parte das pessoas ignorava o significado deste dia, como descreve João França: “Talvez nem soubessem daquele 1.º de Maio de 1538, em que Santiago Menor operou o milagre do fim da peste no Funchal, isso após vinte anos de medo, sofrimento e luto” (FRANÇA, 1990, 23). Este dia levava centenas de pessoas à Quinta do Palheiro Ferreiro, onde a família Blandy permitia, às classes trabalhadoras urbanas, a entrada. Daqui “todos traziam os colares de flores, as ‘maias’ – e os folguedos, os jogos, as brincadeiras, os encontros, as brejeirices preenchiam os relvados da propriedade. Ia-se a pé, como também à Festa do Livramento, no Caniço. […] Os grupos de forasteiros animavam-se com o rajão e com o harmónio e a gaita de boca… Havia bailinhos, comiam-se espetadas e bolos do caco” (PINTO-CORREIA, s.d., 16). Uma grande parte da população que não se deslocava à Quinta do Palheiro Ferreiro dava passeios pelo campo, às vezes só até ao limite da cidade, onde, em família, faziam o seu piquenique. Ao fim do dia, as famílias regressavam a casa felizes e com ramos de flores, tradição que se manteve. Entendendo-se a cultura como um conjunto de informações não hereditárias, acumuladas, conservadas e transmitidas pelas diversas coletividades humanas, as festas serão um ato cultural. Transmitidas pela tradição, as festas são, na sua peculiaridade, próprias de uma comunidade, de um espaço e de um tempo. As festas tradicionais desde sempre estiveram associadas ao elemento religioso. Sendo os limites entre religião e cultura ambíguos, Durkheim aponta a estreita relação entre religião e festas, importantes manifestações da vida quotidiana para o povo. Estas teriam surgido da necessidade de separar o tempo em dias sagrados e profanos. As festas de cariz religioso, algumas com duração de diversos dias, permitem interromper a rotina, várias vezes ao longo do ano, para a sua organização e participação popular. As festas de carácter popular, incluindo as religiosas, espelham sempre o espírito tradicional e a psicologia de uma região. As festas mais típicas, populares e antigas da Madeira são as religiosas. Estas “refletem o esplendor e entusiasmo das províncias portuguesas do Norte; a tristeza e saudosismo das províncias do Sul; ressentem-se da influência dos povos que, desde o descobrimento, as povoaram e viveram em contacto connosco” (PEREIRA, 1989, II, 486-487). Na Ilha, são vários os exemplos de festas religiosas e procissões. Como descreve um autor anónimo, em 1819, “as maiores alegrias proporcionadas aos naturais são os festivais religiosos e as procissões; a sua ânsia por estes espetáculos é tanta que vêm de todas as partes das ilhas [sic] para as observar, ficando as ruas extremamente povoadas e as janelas cheias de senhoras envergando as melhores vestes, para observar o cortejo” (SILVA, 1994, 95). Isabella de França, em meados do séc. XIX, após assistir à chegada de uma romaria do Santo da Serra, chocou-se com a falta de gosto do triste cortejo, no qual as pessoas simples pareciam divertir-se. Com opinião contrária, Michael Graham, autor de The Climate and Resources of Madeira (1870), assinala o notável “trabalho do povo, em mútua colaboração e o seu bom gosto na decoração das ruas e a extraordinária beleza dos altares, devido à cuidada ornamentação floral” (Id., Ibid., 95), tradição que permaneceu até à atualidade. Desde longa data se festejaram os santos populares no Funchal. Era na véspera, principalmente à noite, que as festas atingiam o auge. Os adros das igrejas, com as suas fachadas decoradas com iluminações (balões venezianos e lanternas coloridas), eram palco dos divertimentos populares. O fogo de artifício que se seguia à cerimónia religiosa da noite ocupou, desde o séc. XIX, um lugar de destaque nestes festejos e tornou-se indispensável ao programa da festa. Na véspera da festa, o fogo, que ficava, às vezes, exposto ao público no largo da feira, era levado, num cortejo acompanhado por bandas filarmónicas, para o local da exibição. A queima de fogo preso, intervalado por música, foi descrita por João dos Reis Gomes: “rodas num redemoinhar vertiginoso, baterias lançando balas luminosas, árvores de fronde colorida e chamejante, bonecos em jatos de fogo simulam incontinências fisiológicas, tudo quanto o gosto inculto dos pirotécnicos locais pôde encontrar de mais divertido e atraente, convergindo num último esforço para a girândola final, farta de cor e luz, a pôr gritos de espanto na boca ingénua dos romeiros das freguesias afastadas” (PEREIRA, 1989, II, 490). Nas romarias, a primeira obrigação do romeiro é a visita ao templo para cumprir a promessa feita, beijar a imagem do Santo e deixar esmola para a festa. No dia da festa, após as cerimónias da missa cantada, há um cortejo religioso, onde a imagem do Patrono e as confrarias da Paróquia têm um lugar de destaque. Crianças vestidas de anjos ou com trajes tradicionais da Região espalham pétalas de flores ao longo do percurso. O povo assiste com uma postura recatada e religiosa. Longinquamente, estes cortejos religiosos revestiam-se de um carácter profano, o que foi reprimido pela Igreja, que considerava um abuso e um excesso. A festa de S. João era a mais popular na Madeira. No bairro de Santa Maria elaboravam-se tronos em honra de Santo António e S. João e praticavam-se cerimónias religiosas em homenagem aos santos. Grupos de populares divertiam-se, até de madrugada, tocando e cantando. As casas eram decoradas com balões venezianos e “tradicionais bentas de Louro, murta e alecrim” (CALDEIRA, 2007, 94), adquiridas na rua do mercado e largo da praça. Juntamente com as festividades do S. João, a romaria do Monte era a mais concorrida das festas tradicionais funchalenses. Sendo Nossa Senhora do Monte Padroeira da Madeira, desde 1804, por ação do Papa Pio VII, o seu culto, que se vinha intensificando desde meados do séc. XVIII, provocou as maiores romagens ao templo de maior afluência de crentes e a mais concorrida romaria da Ilha, procurada por milhares de fiéis. Os romeiros, que chegavam à cidade dois dias antes da festa, animavam as ruas da Alfândega, Tanoeiros, Praia e largo dos Varadouros, onde comiam o seu farnel, deslocando-se, em seguida, para o Monte, cantando e dançando ao som de machetes e violas. No dia da festa, ao amanhecer, os romeiros começavam a descer para a urbe, onde apanhariam os vapores costeiros que os levariam às suas localidades. Segundo Abel Caldeira, nos anos 60 do séc. XX, a romaria do Monte estava desvirtuada com a falta de romeiros, verificando-se apenas a frequência de curiosos que se deixavam aniquilar pela especulação exercida com a venda de bugigangas, frutas e comes e bebes. O dia de S. Pedro era celebrado com demorados passeios pela baía do burgo, em pequenos botes. Neste dia, a praia, o cais e imediações enchiam-se de pessoas que vinham dos arredores da cidade. Na zona marítima do Funchal, decorada com bandeiras, as famílias passavam a tarde e parte da noite num convívio animado por grupos de tocadores e cantores. A procissão com a imagem do Apóstolo saía da igreja de S. Pedro e passava à beira-mar. A noite de S. Martinho era outra das festividades populares do Funchal. A ceia tradicional, realizada na maioria das casas, era composta por castanhas cozidas, nozes, pimpinelas, bacalhau cru ou assado e vinho seco: “Os proprietários do vinho novo aproveitavam-se dessa noite para passar o vinho e convidar os parentes e amigos para assistirem a essa operação” (Id., Ibid., 95). Havia cortejos, iluminados com “tochas” feitas de bananeiras e velas, que percorriam diversos sítios. A época natalícia, festa por excelência da população madeirense, é comemorada no arquipélago entre o dia do nascimento de Jesus até ao dia de Reis, desde longa data. Segundo Horácio Bento de Gouveia, “a Festa é a principal coluna da memória para assinalar o tempo” (VERÍSSIMO, 2007, 79). A Festa, forma pela qual se designa o Natal, é precedida por um novenário conhecido por Missas do Parto, celebradas antemanhã com loas ao Menino. Ocorrendo entre 16 e 24 de dezembro, as Missas do Parto são as primeiras manifestações de júbilo e entusiasmo pela proximidade da quadra festiva. É uma devoção mariana e comemora os nove meses de gravidez da Virgem Maria ou Nossa Senhora do Ó, designada, na Madeira, por Senhora ou Virgem do Parto. Por essa razão, as Missas começam nove dias antes do Natal e culminam com a Missa do Galo. Estas Missas, onde sagrado e profano se misturam, após conhecerem um certo declínio, voltaram a ser muito participadas e apreciadas. Durante a noite da véspera de Natal, a população da ilha formigava no Funchal para comprar fruta, flores, verduras, figurantes de barro e enfeites para os presépios. Nesta noite, uma multidão de vendedores ambulantes improvisava uma feira nas várias artérias da cidade. O movimento de carros e peões entre o Funchal e as povoações rurais era constante. A ida ao mercado também proporcionava momentos de diversão, com cantigas e despiques dentro do mercado e nas suas ruas limítrofes durante a noite. As tascas da zona eram, e continuaram a ser, muito frequentadas pelas iguarias de Natal. Nesta época, os preparativos domésticos azafamavam toda a população. Como descreve Cabral do Nascimento, em 1950, “Nas casas, a limpeza a que se procede não exclui a própria caiação das paredes, nos diversos arranjos que se seguem está implícita a substituição das cortinas das janelas e até a modernização dos estofos da mobília. Depois, passando das salas e dos quartos para a despensa e cozinha, vêm em primeiro lugar a amassadura dos bolos de mel e a preparação dos licores, em especial de tangerina e amêndoa” (NASCIMENTO, 1950, 26). As mesas, mesmo as das famílias mais carenciadas, eram guarnecidas com iguarias típicas da época e raras durante o resto do ano; e as casas eram decoradas com presépios e lapinhas. As igrejas enchiam-se de pessoas para a Missa do Galo, à meia-noite. Aqui, observava-se uma representação tradicional, misto de religioso e profano, o “pensar o Menino”, seguida da “entrada de pastores” que o vão adorar. O auto de “pensar o Menino”, proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto, simulava o nascimento do Salvador com bastante realismo. Esta cerimónia foi simplificada e era feita por uma criança vestida de anjo, que entoava uma melodia privativa desse ato. Embora proibida, a “Pensação do Menino” sobreviveu em algumas localidades, como a freguesia da Boaventura, na costa norte da Ilha. Nesta cerimónia, os crentes beijavam a imagem do Deus-Menino, assistiam ao vestir do Menino e ao canto do Anjo, bem como à entrada dos pastores. Estas práticas, comuns ao meio rural e ao meio urbano, tinham já desaparecido do Funchal em meados do séc. XX. O vestir do Menino consistia em trajar a imagem do Deus-Menino na noite de Natal, num estrado colocado dentro da igreja. Este serviço, juntamente com o canto do Anjo, para o qual uma voz infantil era ensaiada durante o ano, era ministrado por raparigas. A entrada dos pastores, auto vulgar na península Ibérica desde o séc. XIII, consistia em oferecer ao Deus-Menino, na mesma noite, os vários produtos da terra, animais vivos, ovos, géneros alimentícios e dinheiro. Um dos presentes mais característicos desta noite costumava ser o comum pão de açúcar em forma de cone troncado. As oferendas eram feitas por raparigas e rapazes, vestidos com trajes antigos, que as conduziam ao altar, anunciando com cantares a quem se destinavam: “As cerimónias de Pensar o Menino e presenteá-Lo com dádivas e promessas, agradecimentos e invocações, prolongam-se pela noite dentro até 2 e 3 horas da madrugada. Sai depois o povo da igreja e reúne-se no Largo do Município onde os ranchos folclóricos de pastores se exibem em bailados e cantares até romper a manhã […]. Na primeira oitava, de tarde, começam as romagens às Lapinhas de todos os sítios” (PEREIRA, 1989, II, 512). Ideia bem diferente tem Cabral do Nascimento sobre esta noite: “Fechou-se tudo, após a missa do galo. O silêncio pesa. O céu é cor de cinza. O ar está imóvel. […] Só, de quando em quando, um estampido seco, uma bomba de clorato que rebentou no chão ou um morteiro que se ergueu na atmosfera pasmada” (NASCIMENTO, 1950, 27). O termo “lapinha” – também usado em certas regiões do Brasil, com o mesmo significado – deverá ser o diminutivo de “lapa” e significará furna ou gruta, criando uma analogia com o local do nascimento de Jesus. O presépio, criação de S. Francisco de Assis, foi introduzido em Portugal pelas freiras do Salvador, em finais do séc. XIV, e trazido para a Madeira pelos primeiros povoadores. A típica composição do presépio reflete a história da natureza, da vida social e da psicologia de cada época. A orografia acidentada da ilha era “representada com a ingenuidade da arte popular”. Assim, “Dos presépios mais antigos existentes na Madeira alguns honram brilhantemente a arte do barro do séc. XVIII. […] Conservam-se em casas particulares, encerrados dentro de nichos onde foram primitivamente armados, sendo alguns desdobráveis em trípticos” (PEREIRA, 1989, II, 506-509). Embora fossem de carácter privado, algumas lapinhas eram admiradas e visitadas por parte da população funchalense, nomeadamente: a lapinha do Afasta… Afasta, a lapinha do Asilo, a lapinha do Bertoldo, a lapinha do Joaquinzinho, o presépio de São Filipe, a lapinha do mestre Antonico, o presépio do Rodolfo, a lapinha do Caseiro. Francisco Ferreira, o Caseiro, antigo colono das freiras de Santa Clara e familiar de Herberto Helder, foi um dos presepistas mais destacados. O que tornava estas lapinhas e presépios tão apreciados era a sua antiguidade, o número de figuras e o precioso trabalho que estas revelavam. De entre as figuras expostas, apareciam algumas articuladas, bem como o busto do proprietário, algumas vezes autor das peças. Algumas destas lapinhas eram emprestadas às igrejas para as cerimónias natalícias. Com a ironia que lhe é muito própria, e criticando a forma como se vivia o Natal em meados do séc. XX na Madeira, Cabral do Nascimento caracteriza os presépios de forma distinta: “No interior das casas, como nas capelas das igrejas, o presépio está armado e é mais ou menos igual ao dos anos anteriores: reforçam-no apenas alguns novos pastores de barro policromo ou uma ou outra inovação do progresso: automóveis que se dirijem para Belém, ao lado de camelos, locomotivas que projetam, pelas chaminés, fumo compacto de algodão branco [...]. O Menino Jesus tem um ar do século xviii, veste comprida túnica de seda orlada de rendas e, erguendo a mãozita gordalhufa, toca com o dedo num cacho de bananas de loiça, que está na rocha, e que, a despenhar-se, poderia esmagar a um tempo todos os três Reis Magos” (NASCIMENTO, 1950, 27). Após o dia de Reis, as lapinhas são desmontadas, mantendo-se algumas até 15 de janeiro, dia de Santo Amaro, momento em que são dadas como findas as tão apreciadas festividades do Natal na Madeira.   Ana Paula Almeida (atualizado a 01.03.2017)

Antropologia e Cultura Material Cultura e Tradições Populares Madeira Cultural

buch, christian leopold von

Christian Leopold von Buch, filho de Adolf Friedrich von Buch II, barão de Gehmersdorf, e de Charlotte von Arnien-Suckow, nasceu em Stolpe an der Order, Brandenburg, Prússia (1774), e faleceu em Berlim (1853). Foi um proeminente geólogo e paleontólogo e dedicou-se ao estudo do vulcanismo, dos fósseis e da definição do sistema jurássico. Fez a escola secundária em Freiberg, Saxónia, e frequentou as universidades de Halle e Göttingen. Foi considerado por Humbolt o melhor geólogo do seu tempo e, em 1842, recebeu a medalha Wollaston, o mais importante prémio concedido pela Sociedade de Geologia de Londres. No campo da mineralogia, conta-se a sua obra Versuch einer Mineralogischen Beschreibung von Landeck (Breslau, 1797), traduzida para francês (1805) e inglês (1810), seguida dos estudos sobre a Silésia, Entwurf einer Geognostischen Beschreibung von Schlesien (1802). A observação da erupção vulcânica do Vesúvio, em 1805, feita com Humboldt e Gay Lussac, permitiu-lhe corrigir interpretações erróneas sobre o vulcanismo. O resultado das suas viagens geológicas originou a obra Geognostische Beobachtungen auf Reisen durch Deutschland und Italien (Berlin, 1802-09). Na Escandinávia, pôde obter os dados que lhe permitiram publicar Reise durch Norwegen und Lappland (Berlin, 1810). Em 1815, na companhia do botânico norueguês Christian Smith, visitou as ilhas Canárias, cuja origem vulcânica constituiu o ponto de partida para o estudo da sua atividade sísmica, atestada na obra Physicalische Beschreibung der Canarischen (Berlin, 1825), na qual manifesta a convicção de que estas e outras ilhas atlânticas estiveram na base de um continente pré-existente. Nesta viagem, de Londres às Canárias, teve oportunidade de visitar a Madeira em abril de 1811, na companhia de outro norueguês, Chetien Smith, e descreve o deslumbramento sentido perante a vegetação desconhecida que contemplava: “après une heureuse traversée, nous mîmes pied à terre le 21 avril à Funchal dans l’île de Madère. Nous restâmes douze jours sur cette île fortunée, occupés à faire de petites courses sur les montagnes et à étudier, en tant que pût le permettre la pluie qui tomba continuellement pendant notre séjour, la végétation nouvelle, et pour nous inconnue, qui se développait sous nos yeux [após uma travessia sem incidentes, pusemos pé em terra a 21 de abril, no Funchal, ilha da Madeira. Permanecemos 12 dias nesta ilha afortunada, fazendo pequenas excursões pelas montanhas e estudando, tanto quanto nos permitiu a chuva, que não parou de cair durante toda a nossa estadia, a vegetação nova, para nós desconhecida, que se apresentava diante dos nossos olhos]” (BUCH, 1836, 1). Nesta obra, insere a lista de plantas da Madeira, organizada pelo botânico britânico Robert Brown, resultante da sua visita à Ilha em 1802. Segundo o Elucidário Madeirense, “é de Robert Brown, e não de Leopold von Buch, o trabalho intitulado Vermzeichniss der auf Madeira Wiedwachsenden Pflanzen, que quase todos atribuem a este último autor, por razão de ter sido incluído na obra que publicou, em 1825, sob o título de Physicalische Beschreibung de Canarishen Inseln” (SILVA e MENESES, 1978, I, 341).   Obras de Christian Leopold von Buch: Versuch einer Mineralogischen Beschreibung von Landeck, 1797; Entwurf einer Geognostischen Beschreibung von Schlesien, 1802; Geognostische Beobachtungen auf Reisen durch Deutschland und Italien, 1802-09; Reise durch Norwegen und Lappland, 1810; Psysicalische Beschreibung der Canarischen, 1825; Physicalische Beschreibung de Canarishen Inseln, 1825; Îles Canaries (1836); Narrative of an Expedition to Explore the River Zaire, usually, Called the Congo, in South Africa in 1816, under the direction of Captain J. K. Tuckey (coautoria) (1818).     António Manuel de Andrade Moniz (atualizado a 13.10.2016)  

Biologia Terrestre Madeira Global Geologia

azevedo, álvaro rodrigues de

Álvaro Rodrigues de Azevedo foi um advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador, que viveu na Madeira durante cerca de 26 anos e que contribuiu para a valorização do panorama literário e cultural da Ilha. É autor de uma bibliografia diversificada e, do seu legado, destaca-se a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), de Gaspar Frutuoso, que inclui 30 extensas notas da sua autoria, que complementam e esclarecem alguns pontos acerca da história da Madeira. Palavras-chave: Madeira; literatura; jornalismo; história; historiografia; cultura. Álvaro Rodrigues de Azevedo foi advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador. Nasceu em Vila Franca de Xira, a 20 de março de 1825, e faleceu em Lisboa, a 6 de janeiro de 1898, dois meses antes de completar 73 anos. Apesar de ter nascido no continente, viveu na Madeira durante muitos anos e considerava a Ilha a sua pátria adotiva. Chamava-se José Rodrigues de Azevedo, mas terá mudado de nome quando ingressou na universidade. Era filho de António Plácido de Azevedo, natural de Benavente, e de Maria Amélia Ribeiro de Azevedo. Casou-se com Maria Justina, de quem teve geração. Concluiu o curso de Direito, em 1849, na Universidade de Coimbra, e foi para Lisboa, onde residiu durante cerca de seis anos. Seguiu posteriormente para a ilha da Madeira, onde exerceu funções de professor, ocupando uma vaga através de concurso público. Anteriormente, tinha tentado um lugar na magistratura judicial, mas não teve sucesso. Alguns anos mais tarde, na introdução do livro Esboço Crítico-Litterário (1866), explicava a razão pela qual não tinha conseguido aquele emprego e se considerava injustiçado. No Liceu do Funchal, teve a seu cargo a cadeira de Oratória, Poética e Literatura, que regeu durante 26 anos. Também no mesmo Liceu, foi professor de Português e Recitação e fez parte, como sócio e secretário, da Associação de Conferências, inaugurada a 9 de maio de 1856, com a finalidade de promover o desenvolvimento dos princípios da educação popular e de elaborar uma discussão com vista à escolha dos melhores métodos de ensino. A Associação de Conferências era composta por professores do ensino público e particular da capital do distrito da Madeira. Em 1856, por ocasião da epidemia de cólera (cólera-mórbus), que se propagou na Ilha, causando uma elevada taxa mortalidade, prestou relevantes serviços no desempenho do cargo de administrador do concelho do Funchal. A 24 de julho de 1856, escrevia no periódico A Discussão, revelando as medidas tomadas pela Câmara Municipal que, no sentido de tentar combater a epidemia, concedeu 150$000 reis mensais para que o administrador do concelho estabelecesse uma sopa económica, a ser distribuída, uma vez por dia, aos mais necessitados. Referia ainda que medidas idênticas tinham extinguido a cólera em algumas regiões continentais. Mencionando nomes de personalidades e respetivos donativos para a causa, reforçava a ideia da importância da alimentação no combate daquele flagelo e considerava que os mais afetados pela doença eram geralmente pobres, pois a principal causa do seu desenvolvimento era a fome e a miséria. Foi procurador à Junta Geral e membro do conselho de distrito e da comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, tendo recusado, em 1870, o cargo de secretário-geral do distrito e a comenda da Conceição. Foi ainda membro do Partido Reformista, participando ativamente na política madeirense e revelando aspirações liberais, sobretudo num período agitado da vida local, iniciado em 1868. Como jornalista, Álvaro Rodrigues de Azevedo colaborou na imprensa periódica madeirense, sendo redator nos jornais A Discussão, A Madeira, A Madeira Liberal, O Oriente do Funchal e Revista Judicial, e tendo redigido também alguns artigos no Diário de Notícias da Madeira. Publicou ainda o Almanak para a Ilha da Madeira para os anos de 1867 e de 1868. Os artigos publicados na imprensa foram de natureza variada, desde folhetins e artigos de crítica literária até assuntos de interesse social, relacionados com a vida no arquipélago e com o quotidiano dos madeirenses. Em janeiro de 1856, no periódico A Discussão, inicia a publicação de um artigo de crítica literária, sob o título “Bosquejo Histórico da Literatura Clássica Grega, Latina e Portuguesa, por A. Cardoso B. de Figueiredo”. Este texto saiu, naquele jornal, nos n.os 50, 51, 53 e 55, entre janeiro e março de 1856. Em 1866, edita um estudo em volume, intitulado Esboço Crítico-Litterário (do Bosquejo Histórico da Literatura Clássica, Grega, Latina e Portuguesa do Sr. A. Cardoso Borges de Figueiredo), no qual menciona o seu primeiro artigo crítico à obra daquele autor. No Diário de Notícias da Madeira, em 1877, nos n.os 181 a 183, publicou, como folhetim, um estudo histórico intitulado “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira”, identificando e descrevendo a casa de Cristóvão Colombo no Funchal. Álvaro Rodrigues de Azevedo é autor de uma vasta obra, de temas diversos. Ainda na juventude, escreveu um drama sob o título Miguel de Vasconcelos, que não chegou a ser editado. No entanto, este texto originou uma polémica na imprensa, em 1852, nos n.os 2924, 2927 e 2942 da Revolução de Setembro, com o bibliógrafo e publicista, Inocêncio Francisco da Silva, autor do Diccionario Bibliográphico Portuguez (1858). Na nota bibliográfica elaborada a Álvaro Rodrigues de Azevedo no referido Dicionário, Inocêncio Francisco da Silva afirma que terá confundido uma crítica desfavorável a outro texto com o mesmo título de Miguel de Vasconcelos, mas de outro autor, que terá lido nas Memórias do Conservatório Real de Lisboa, tomo II, 1843, p. 114. Tendo conhecimento do texto escrito por Azevedo, que este lhe havia dado a ler, anos antes, julgou tratar-se do mesmo texto, pois tinham o título idêntico, mas apenas um foi publicado nas Memórias do Conservatório, tendo outro ficado em arquivo. Este equívoco terá desencadeando a referida controvérsia, suscitando uma troca de correspondência entre ambos, através da imprensa periódica. Nas suas produções literárias encontram-se, entre outros, A Familia do Demerarista. Drama em um Acto (1859), uma crítica de costumes madeirenses, e Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869), no qual pretende desenvolver competências de produção linguística. Como escritor e historiador, produziu importantes trabalhos sobre o arquipélago da Madeira. O seu legado mais importante para a historiografia madeirense foi a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), redigido por Gaspar Frutuoso, em 1590, na ilha de S. Miguel, Açores. Álvaro Rodrigues de Azevedo redigiu 30 notas que acrescentou ao manuscrito, na parte que diz respeito à Madeira, com o intuito de esclarecer alguns pontos da história do arquipélago. O trabalho de investigação, de pesquisas e de consultas em livros, manuscritos ou outras fontes, que empreendeu para a elaboração das anotações presentes na edição de As Saudades da Terra (1873) contribuiu para o desenvolvimento do seu gosto pelo estudo da história da Madeira. Segundo Alberto Vieira, Álvaro Rodrigues de Azevedo “poderá ser considerado o pioneiro da historiografia hodierna na ilha. O seu trabalho publicado em anotação a As Saudades da Terra, em 1873, é modelar e surge como uma peça-chave para todos os que se debruçam sobre a história da ilha” (VIEIRA, 2007, 13). Álvaro Rodrigues de Azevedo confessou que teve muitas dificuldades na elaboração destas notas, que foi um processo moroso, fruto de muito trabalho de investigação, de dia, e de escrita, à noite, acumulado com a sua profissão. A obra, encetada em meados de 1870, demorou cerca de três anos a completar. Os trabalhos de investigação foram feitos nos arquivos da Ilha, nas Câmaras do Funchal, de Santa Cruz e de Machico, na Câmara Eclesiástica, na Câmara Militar e no cabido da Sé. Também foram relevantes os textos que reuniu de cronistas como Zurara, João de Barros e Damião de Góis, e os manuscritos do P.e Netto. Teófilo Braga, seu amigo, com quem se correspondia, teve uma grande influência no seu pensamento e na sua escrita, sendo através deste que tomou contacto com a teoria da história positivista, em voga na época. Contou ainda com a colaboração de João Joaquim de Freitas, bibliotecário da Câmara do Funchal, que o ajudou nos trabalhos de revisão textual. Apesar de todas as dificuldades que teve de ultrapassar, e da obra inédita que deu à estampa, em 1873, não obteve o devido valor e reconhecimento por parte dos seus coevos. Só muitos anos mais tarde é que o seu trabalho foi valorizado pelos eruditos madeirenses. Na verdade, esta obra pioneira na historiografia insular abriu caminho para que outros madeirenses começassem a interessar-se pelo estudo da sua história, do seu passado e das suas raízes. As suas anotações constituíram uma fonte importante para outros estudiosos, sobretudo para os intelectuais da primeira metade do séc. XX e para os homens da chamada Geração do Cenáculo, que recorreram com frequência às investigações do seu antecessor. Antes do trabalho feito nas anotações de Álvaro Rodrigues de Azevedo, os estudos relativos à história do arquipélago eram muito vagos, circunscrevendo-se a breves notas e estudos. A sua obra teve, assim, um grande impacto em estudiosos como, entre outros, Alberto Artur Sarmento, Fernando Augusto da Silva, Eduardo Pereira, Visconde do Porto da Cruz, sendo mesmo uma base de referência para a elaboração de obras como o Elucidário Madeirense (1921). De facto, são muitas as referências aos apontamentos e ao nome de Álvaro Rodrigues de Azevedo nos três volumes que compõem o Elucidário, tendo os seus autores confessado que “são as Saudades da Terra, e sobretudo as suas valiosas e abundantes notas, o mais rico, copioso e seguro repositório de elementos que possuímos para a história do nosso arquipélago” (SILVA e MENESES, vol. II, 1998, 126). Neste sentido, também outros autores terão consultado e referenciado as notas a Saudades da Terra, entre os quais o Visconde do Porto da Cruz, na elaboração dos três volumes de Notas e Comentários para a História Literária da Madeira (1949-1953). Ainda relativamente à história da Madeira, Álvaro Rodrigues de Azevedo foi o autor de uma série de artigos, nomeadamente, “Machico”, “Machim”, “Madeira” e “Maçonaria na Madeira”, publicados em 1882 no Dicionário Universal Português Ilustrado, dirigido por Fernandes Costa. Em 1880, trouxe à luz da publicidade o Romanceiro do Arquipélago da Madeira, um volume de 514 páginas, resultado das suas recolhas da tradição oral em diversas freguesias da Madeira e do Porto Santo, para o qual terão contribuído as influências de Teófilo Braga. As composições foram classificadas por géneros, a saber, “Histórias”, “Contos” e “Jogos”, os quais, por sua vez, foram divididos em espécies. Nas “Histórias”, Álvaro Rodrigues de Azevedo incluiu as seguintes espécies: “Romances ao divino”; “Romances profanos”; “Xácaras” e “Casos”. No género “Contos”, incluiu as seguintes espécies: “Contos de fadas”; “Contos alegóricos”; “Contos de meninos”; “Lengas-lengas” e “Perlengas infantis”. Finalmente, no género “Jogos”, contemplou os “Jogos pueris” e os “Jogos de adultos”. Terá coligido, igualmente, elementos para a elaboração do cancioneiro, que, porém, não chegou a publicar. No ano seguinte à publicação do Romanceiro, em janeiro de 1881, já jubilado, mas desiludido com a ingratidão dos madeirenses pelo seu trabalho dedicado à cultura e ao progresso da Ilha, acabou por retirar-se para Lisboa, onde fixou residência até ao fim da sua vida. Deixou uma coleção de apontamentos avulsos sobre a história, o romanceiro e o cancioneiro da Madeira, que foi coligindo ao longo do tempo que ali passou, os quais foram adquiridos pela Biblioteca Nacional de Lisboa, após a sua morte. No distrito de Lisboa, concelho de Oeiras e freguesia de Paço de Arcos, existe uma rua com o seu nome, a “Rua Álvaro Rodrigues de Azevedo”. Na Madeira, além da reedição das suas notas, em 2007, não houve, até 2016, qualquer homenagem a este homem que se empenhou pelo progresso da Ilha. Obras de Álvaro Rodrigues de Azevedo: O Comunismo. Discurso proferido na Aula de Practica Forense da Univ. de Coimbra, em Que Se Expõe e Combate esta Doutrina (1848); O Livro d’Um Democrata (1848); A Familia do Demerarista. Drama em Um Acto (1859); Esboço Crítico-Litterário (1866); Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869); As Saudades da Terra. Pelo Doutor Gaspar Fructuoso. História das Ilhas do Porto-Sancto, Madeira, Desertas e Selvagens. Manuscripto do Século XVI Annotado por Alvaro Rodrigues de Azevedo (1873); Corografia do Arquipélago da Madeira (1873); “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira” (1877); Romanceiro do Archipelago da Madeira (1880); Benavente: Estudo Histórico-Descritivo, Obra Póstuma, Continuada e Editada por Ruy d'Azevedo (1926).   Sílvia Gomes (atualizado a 14.12.2016)

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área(s) marinha(s) protegida(s)

As áreas marinhas protegidas (AMP) correspondem, numa aproximação jurídica de carácter genérico, à aplicação de um regime jurídico específico e reforçado de proteção ambiental a um espaço marítimo delimitado. Quando o âmbito de aplicação espacial é o oceano circundante ao território terrestre da RAM (nos termos do art. 3.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira – EPARAM: o “arquipélago da Madeira é composto pelas ilhas da Madeira, do Porto Santo, Desertas, Selvagens e seus ilhéus”), uma adequada compreensão do seu regime jurídico implica que se tenha simultaneamente em consideração uma multiplicidade de fontes de direito, dado que o enquadramento jurídico-internacional aplicável aos oceanos condiciona a regulamentação proveniente de fontes internas. Assim sendo, no que respeita às AMP existentes na RAM, a sua regulamentação é o resultado da conjugação das fontes aplicáveis de direito regional, de direito interno português, de direito da União Europeia e de direito internacional, com destaque para o direito internacional aplicável aos espaços marítimos. Com efeito, as AMP, ao determinarem quais são os usos permitidos e proibidos num espaço marítimo delimitado e ao pretenderem simultaneamente conformar os comportamentos de todos os potenciais utilizadores do mar, sejam estes nacionais ou estrangeiros, devem respeitar o direito internacional relevante, na medida em que este é o fundamento último de legitimação da atuação do Estado costeiro e das suas divisões ao nível da organização política e administrativa. A qualificação de uma determinada zona de oceano como AMP é recente na prática dos Estados, coincidindo com a progressiva relevância dada às questões ambientais a partir da déc. de 70 do século passado. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), comummente designada como a Constituição dos Oceanos, não fornece um conceito jurídico-internacional para este instituto jurídico, nem contém identicamente um regime jurídico-internacional dedicado especificamente às AMP, não obstante a sua parte XII ser dedicada à “[p]roteção e preservação do meio marinho” e o art. 192.º proclamar expressamente que os “Estados têm obrigação de proteger e preservar o meio marinho”. O n.º 5 do art. 194.º, com a epígrafe “medidas para prevenir, reduzir e controlar a poluição do meio marinho”, estabelece que os Estados devem tomar as medidas “necessárias para proteger e preservar os ecossistemas raros e frágeis, bem como o habitat de espécies e outras formas de vida marinha em vias de extinção, ameaçadas ou em perigo”, o que tem sido utilizado como o fundamento jurídico para a evolução que se deu neste domínio no final do séc. XX e no princípio do séc. XXI. Importa salientar que, ao nível do direito internacional geral, as AMP não constituem um espaço marítimo específico, em paralelo aos restantes espaços marítimos reconhecidos pelo direito internacional do mar (tal como o mar territorial, a zona contígua, as águas arquipelágicas, a zona económica exclusiva, a plataforma continental, o alto mar e a Área [veja-se a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, art. 1.º d, n.º 1, 1)]), mas antes a sujeição de áreas do mar com uma qualificação jurídica-internacional específica a um regime jurídico particular distinto daquele que é normalmente aplicável ao espaço marítimo em questão, nomeadamente ao nível do reforço da proteção ambiental. Nestes termos, a criação de uma AMP pela RAM num espaço sujeito à soberania ou à jurisdição do Estado português, como na zona económica exclusiva, deve ter simultaneamente em consideração os direitos e os deveres do Estado costeiro e os direitos e os deveres que são reconhecidos aos terceiros Estados, nomeadamente pela parte V da CNUDM e pelo direito internacional costumeiro. Embora o direito internacional geral não forneça um conceito de AMP, podem ser encontradas definições em outros documentos de direito internacional, nomeadamente naqueles que têm vindo a ser produzidos no âmbito da Convenção sobre a Diversidade Biológica (1992), no âmbito da Convenção para a Proteção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste, também denominada Convenção OSPAR (1992), e nos trabalhos que foram sendo desenvolvidos sobre a matéria no seio da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). Sendo os “parques naturais” uma matéria de interesse específico da RAM, nos termos da alínea jj) do art. 40.º do EPARAM, a regulamentação aplicável às AMP é, na sua base, de natureza regional. Em 2016, existiam cinco AMP na RAM, sendo duas de carácter exclusivamente marinho e três com áreas mistas, marinhas e terrestres. As AMP cujo âmbito de proteção é exclusivamente marinho são a Reserva Natural Parcial do Garajau e a Reserva Natural do Sitio da Rocha do Navio. As AMP cujo âmbito de proteção é simultaneamente marinho e terrestre são a Reserva Natural das Ilhas Selvagens, a Reserva Natural das Ilhas Desertas e a Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo. A Reserva Natural Parcial do Garajau, que foi a primeira área exclusivamente marinha a ser criada em Portugal, é regulada pelo dec. leg. regional n.º 23/86/M, de 4 de outubro, com modificações introduzidas pelo dec. leg. regional n.º 38/2006/M, de 4 de agosto. Em conformidade com o n.º 1 do seu art. 2.º, a “área da Reserva Natural Parcial do Garajau tem como limites: a) A oeste, o plano perpendicular à linha de costa na Ponta do Lazareto até à intersecção do plano definido pela linha batimétrica dos 50 m; b) A leste, o plano perpendicular à linha de costa na Ponta de Oliveira até à intersecção do plano definido pela linha batimétrica dos 50 m; c) A norte, a linha definida pela máxima preia-mar de marés vivas; e d) A sul, o plano definido pela vertical da linha batimétrica dos 50 m e, em caso de dúvida, uma linha a uma distância nunca inferior a 600 m do limite norte”. O corpo do n.º 4 do art. 1.º do Regulamento do Plano Especial do Ordenamento e Gestão da Reserva Natural Parcial do Garajau, aprovado pela resolução n.º 882/2010, de 5 de agosto, esclarece que a “área de intervenção (…) é o leito do mar, com uma dimensão total de 376 hectares, e uma linha de costa de aproximadamente sete quilómetros”. O n.º 1 do art. 3.º antes citado estipula que na área do Reserva Natural Parcial do Garajau é proibido: “a) Exercer quaisquer atividades de pesca, comercial ou desportiva, incluindo a caça submarina; b) Colher exemplares animais e vegetais, exceto para fins científicos, quando devidamente justificados e autorizados; c) Extrair areias e outros materiais de origem geológica; d) Vazar quaisquer tipos de sólidos ou líquidos, quer sejam provenientes de terra ou de embarcações; e) Instalar condutas de efluentes provenientes de instalações industriais e domésticas; e f) Navegar dentro dos limites da reserva, com exceção da abicagem de pequenas embarcações às praias, aplicando-se, neste caso, a legislação em vigor”. Concretizando a alínea a) do n.º 3 do art. 3.º, o dec. reg. regional n.º 1/97/M, de 14 de janeiro, regula o exercício do mergulho amador na área da Reserva Natural Parcial do Garajau, entendido como a atividade prosseguida por “um amador, quando se desloca, submerso ou à superfície, equipado com um aparelho respiratório de mergulho”. A Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio foi criada pelo dec. leg. regional n.º 11/97/M, de 30 de julho, e abrange uma área de 1822 ha, sendo 1820 ha de área marítima e 2 ha correspondentes ao Ilhéu da Viúva (de acordo com a informação disponibilizada pelo Programa de Medidas de Gestão e Conservação do Sítio da Rede Natura 2000 do Ilhéu da Viúva). Em conformidade com o seu art. 2.º, a Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio está “definida e delimitada […] no sítio da Rocha do Navio, entre a ponta do Clérigo a leste e a ponta de São Jorge a oeste e entre a linha definida pela preia-mar máxima e a batimétrica dos 100 m, incluindo os seus ilhéus e respetivas áreas marítimas” (sendo a batimétrica uma linha que une pontos da mesma profundidade no mar). O art. 4.º estabelece que na área da Reserva Natural do Sítio da Rocha do Navio é expressamente proibido: “a) O uso de redes de emalhar ou outras, exceto as empregues na captura de isco vivo e o peneiro, empregue na captura da castanheta; b) A colheita, captura, detenção e ou abate de quaisquer espécies de aves ou plantas; c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos; d) A extração de quaisquer inertes, quer de origem marinha, quer terrestre; e) A apanha de lapa e caramujo de mergulho; e f) A caça submarina”. Através da resolução n.º 751/2009, de 2 de julho, o Conselho do Governo regional determinou a classificação do Ilhéu da Viúva como Zona Especial de Conservação (ZEC), ao abrigo da legislação da União Europeia sobre a conservação das aves selvagens e a preservação dos habitats naturais e da fauna e da flora selvagens. A Reserva Natural das Ilhas Selvagens foi inicialmente estabelecida pelo dec. n.º 458/71, de 29 de outubro, como reserva, ao abrigo da lei n.º 9/70, de 19 de junho, e representou o primeiro exemplo de AMP em Portugal. Nos termos do seu art. 1.º, passou a “constituir uma reserva toda a área das Ilhas Selvagens e também a orla marítima que as rodeia até à batimétrica dos 200 m”. Posteriormente, foi classificada como reserva natural pelo dec. regional n.º 14/78/M, de 10 de março. Ao abrigo do n.º 2 do seu art. 1.º, a “reserva natural é definida pelo território das ilhas e pelos fundos marinhos até à batimétrica dos 1000 m.” O limite exterior da reserva natural foi reduzido à linha dos 200 m de profundidade, pelo dec. regional n.º 11/81/M, de 15 de maio, tendo uma área total de 9455 ha, em conformidade com a resolução n.º 1408/2000, de 19 de setembro. Relativamente aos usos do espaço marítimo, o art. 4.º estabelecia que na área da Reserva Natural das Ilhas Selvagens eram proibidos: “g) A colheita de material geológico ou arqueológico ou a sua exploração sem autorização do Governo Regional; h) A caça submarina; i) A pesca de arrasto e outras artes que colidam com o fundo até à batimétrica fixada pela reserva, ressalvando-se as artes de anzol e rede”. Em conformidade com o art. n.º 11, com a epígrafe “atividades condicionadas” do Regulamento do Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Selvagens, aprovado pela resolução n.º 1292/2009, de 25 de setembro, ficaram “sujeitas a autorização da Entidade Gestora, os seguintes atos e atividades: b) A recolha de amostras biológicas, geológicas ou arqueológicas quer de origem marinha quer terrestre; k) A pesca recreativa; e l) A caça submarina”. Pelo edital n.º 15/2011, de 29 de novembro, da Capitania do Porto do Funchal, está “interdita toda a atividade de pesca na faixa litoral das Ilhas Selvagens até à batimétrica dos 200 (duzentos) metros, por período indeterminado”, em razão da “suspeita da eventual presença de uma microalga produtora de uma biotoxina suscetível de provocar alterações ao nível da saúde humana”. As Ilhas Selvagens são uma área classificada de Zona Especial de Conservação e de Zona de Proteção Especial (o dec. reg. regional n.º 3/2014/M, de 3 de março, estabeleceu a Zona de Proteção Especial das Ilhas Selvagens, com uma extensão de 124.530 ha), estando inscritas na categoria 1.a de gestão de áreas protegidas da União Internacional da Conservação da Natureza como “área de reserva natural integral gerida prioritariamente para fins de pesquisa científica, assegurando que os habitats, ecossistemas e as espécies nativas se mantenham livres de perturbação, tanto quanto possível”. A Reserva Natural das Ilhas Desertas foi criada pelo dec. leg. regional n.º 14/90/M, de 23 de maio, como Área de Proteção Especial das Ilhas Desertas, sendo posteriormente o seu estatuto jurídico alterado pelo dec. leg. regional n.º 9/95/M, de 20 de maio. Nos termos do art. 2.º, a Reserva Natural das Ilhas Desertas é “delimitada pela linha batimétrica dos 100 m em volta das Ilhas Desertas, incluindo todas as suas ilhas e ilhéus e a respetiva área marítima”, tendo uma área total de 9455 ha (em conformidade com a informação disponível no Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Selvagens). Relativamente aos usos do espaço marítimo, o art. 4.º, após as alterações introduzidas pelo segundo dos diplomas antes citados, estabelece que nos locais a sul “do marco geodésico da doca e da Ponta da Fajã Grande, nela se incluindo o ilhéu Chão” são proibidos: “a) A pesca comercial e a pesca sem fins comerciais, designadamente a desportiva; b) A prática de caça submarina; e c) A colheita de exemplares vegetais e animais, exceto para fins científicos, desde que devidamente autorizada; e d) O acesso de pessoas e embarcações, salvo as que hajam sido autorizadas e credenciadas pelo Parque Natural da Madeira”. Em conformidade com o art. 5.º, na sua versão alterada, aplicável a toda à área protegida, é ainda proibido: “a) O uso de artes de redes de emalhar, cercar e arrastar, com exceção das que são empregues na captura de isco vivo; (…), c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos; d) A extração de quaisquer inertes, quer de origem marinha, quer terrestre; e e) A prática de caça submarina”. Em conformidade com o art. 11.º, com a epígrafe “atividades condicionadas”, do Regulamento do Plano de Ordenamento e Gestão das Ilhas Desertas, aprovado pela resolução n.º 1292/2009, de 25 de setembro, ficaram “sujeitas a autorização da Entidade Gestora, os seguintes atos e atividades: b) A recolha de amostras biológicas, geológicas ou arqueológicas quer de origem marinha quer terrestre; k) A pesca recreativa; e l) A caça submarina”. As Ilhas Desertas são uma área classificada de Zona Especial de Conservação e de Zona de Proteção Especial (o dec. reg. regional n.º 3/2014/M, de 3 de março, estabeleceu a Zona de Proteção Especial das Ilhas Desertas, com uma extensão de 76.462 ha). A Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo foi criada pelo dec. leg. regional n.º 32/2008/M, de 11 de agosto. Nos termos do n.º 1 do art. 2.º, é “constituída pela parte terrestre de todos os seus ilhéus e pelas zonas marinhas circundantes do Ilhéu da Cal ou de Baixo e do Ilhéu de Cima, incluindo a zona onde se encontra afundado o navio O Madeirense”, sendo ainda acrescentado no número seguinte, relativamente às áreas marítimas, que integra, em conformidade com a alínea b) a “área marinha limitada a oeste pela batimétrica dos 50 m e pelo azimute verdadeiro 315º a partir da extremidade oeste da Ponta do Focinho do Urso, a sul pela batimétrica dos 50 m, a norte pela linha da preia-mar máxima de marés-vivas equinociais da costa da ilha do Porto Santo e a este pela batimétrica dos 50 m e pelo azimute verdadeiro 135º a partir do enfiamento do Pico de Ana Ferreira” e, nos termos da alínea c), pela “área marinha limitada a oeste pelo azimute verdadeiro 160º a partir da extremidade oeste do Porto de Abrigo, a sul e este pela batimétrica dos 50 m e a norte pela linha da preia-mar máxima de marés-vivas equinociais da costa da ilha do Porto Santo e pelo azimute verdadeiro 90º a partir da Ponta das Ferreiras”. Em toda a área da Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo, em conformidade com o n.º 1 do art. 5.º, é interdito: “a) O exercício da pesca para fins comerciais, exceto a captura de isco vivo destinado à pesca de tunídeos (…); b) A apanha de lapa e caramujo de mergulho; c) O despejo de quaisquer detritos sólidos ou líquidos, quer sejam provenientes de terra ou de embarcações; d) A instalação de condutas de efluentes provenientes de instalações industriais e domésticas; e) A extração de areias ou de outros recursos geológicos; f) As atividades náuticas, com exceção das necessárias ao exercício das atividades autorizadas […]; g) A colheita, captura, abate ou detenção de exemplares de quaisquer espécies vegetais ou animais sujeitas ou não a medidas de proteção legal ou efetuar outras atividades intrusivas ou perturbadoras do seu desenvolvimento”. Em contraponto, no art. 6.º, relativo a “atos ou atividades sujeitos a autorização”, está previsto que, desde que devidamente autorizados pela entidade gestora, são permitidos: “a) A pesca marítima sem fins comerciais ou lúdica, com exceção do Ilhéu de Cima, onde é proibida toda e qualquer atividade de pesca (…); b) A apanha de lapa e caramujo no calhau; c) O mergulho de escafandro; d) Caça submarina, com exceção da área do ilhéu de Cima, onde é proibida toda e qualquer atividade de pesca; (…); e f) As atividades marítimo-turísticas (…) que não sejam suscetíveis de pôr em risco a proteção ambiental da Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Santo”. O n.º 3 do artigo citado ainda prevê que é “permitida a travessia de embarcações pelos boqueirões do Ilhéu de Cima e do Ilhéu de Baixo ou da Cal, incluindo a passagem, com esse fim, das respetivas áreas da Rede de Áreas Marinhas Protegidas de Porto Santo”. O n.º 3 do art. 7.º determina que “poderá ser dada prioridade às comunidades locais dependentes da pequena pesca” quando sejam “estabelecidas condições específicas para o exercício da pesca lúdica e para a captura de isco vivo destinado à pesca de tunídeos”. Os Ilhéus do Porto Santo são uma área classificada de Zona Especial de Conservação. No que concerne especificamente ao espaço marítimo, importa realçar que uma adequada compreensão do regime jurídico aplicável às AMP implica que tenham em consideração três questões de natureza jurídico-internacional, na medida em que os poderes que os Estados costeiros podem exercer nos mares e nos oceanos não são equivalentes aos poderes de soberania que os Estados exercem no âmbito do seu território terrestre, em razão de estes serem por natureza exclusivos e excludentes. Em primeiro lugar, deve ser posto em destaque que os mares e os oceanos, apesar da sua unidade física, estão divididos em espaços marítimos com estatutos jurídico-internacionais diferenciados. Em termos gerais, importa distinguir entre espaços marítimos sujeitos à soberania ou à jurisdição dos Estados costeiros (com destaque para o mar territorial, a zona económica exclusiva e a plataforma continental) e os espaços marítimos internacionais (alto mar) ou com um regime jurídico de internacionalização (Área). Os poderes dos Estados variam em função dos espaços marítimos em questão, pelo que a apreciação de qualquer comportamento levado a cabo por um Estado ou pelos seus nacionais, seja pelo Estado costeiro, seja por terceiros Estados, importa uma prévia localização geográfica no espaço em que ocorrem. Daqui resulta que as referências às batimétricas nas zonas marítimas abrangidas pelas AMP na RAM, como forma de delimitação das áreas especialmente protegidas do ponto de vista ambiental, não tenham de estar necessariamente compatibilizadas com os poderes que os Estados costeiros podem exercer nos espaços marítimos sob a sua soberania ou jurisdição, tendo em consideração os diferentes poderes que são reconhecidos aos Estados nas águas interiores, no mar territorial, na zona económica exclusiva e na plataforma continental. Em segundo lugar, importa salientar que a atuação dos Estados nos mares e nos oceanos se encontra genericamente enquadrada pelo princípio da liberdade dos mares, em conformidade com o qual todos os Estados, sejam ou não costeiros, podem prosseguir atividades nos diferentes espaços marítimos, sujeitos às limitações que decorrem do direito internacional. As utilizações específicas que podem ser prosseguidas pelos diferentes Estados e pelos seus nacionais estão dependentes do espaço marítimo em questão, mas a ideia básica que subjaz à atuação nos mares e nos oceanos é a de conciliação entre os diversos usos possíveis. Assim, a título de exemplo, embora os Estados costeiros exerçam poderes muito alargados no mar territorial, com a extensão máxima de 12 milhas marítimas (ou milhas náuticas, equivalentes a cerca de 22,22 km), os navios com a bandeira de terceiros Estados podem circular pelas suas águas ao abrigo do direito de passagem inofensiva, sem a necessidade de obterem a anuência ou a autorização desses Estados (arts. 17 a 19 da CNUDM). Finalmente, em terceiro lugar, deve ser tido em consideração que, salvo em situações muito circunscritas, como a colocação de instalações para a exploração de petróleo ou de gás natural ou a construção de ilhas artificiais, os usos dos mares e dos oceanos são temporários e prosseguidos por navios. Daqui decorre a necessidade de se autonomizar os usos que estão reservados para os Estados costeiros, nos casos em que estes tenham lugar num espaço sujeito à soberania ou à jurisdição dos Estados costeiros, como nos casos do mar territorial, das zonas económicas exclusivas ou das plataformas continentais, e daqueles outros usos, como a navegação, que constituem uma prerrogativa de todo e de qualquer Estado, seja ou não um Estado costeiro, podendo ser prosseguidos em qualquer lugar, com a exceção das águas interiores do Estado costeiro. A necessidade de ser respeitada a liberdade de navegação dos navios com o pavilhão ou bandeira de um terceiro Estado é particularmente relevante em algumas das AMP existentes na RAM, em razão da sua dimensão, com particular destaque para a Reserva Natural das Ilhas Selvagens.   Fernando Loureiro Bastos (atualizado a 14.12.2016)

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