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concorrência

A livre concorrência é tutelada enquanto bem público, pelo seu impacto na promoção da eficiência económica e do incremento do bem-estar dos consumidores. Assim, enquanto pilar estruturante da atividade económica no mercado nacional, a defesa da concorrência constitui, nos termos do comando constitucional da alínea f) do art. 81.º da Constituição da República, uma incumbência prioritária do Estado no domínio económico e social. Os sucessivos diplomas legislativos sobre a defesa da concorrência em Portugal, desde o primeiro regime de efetividade normativa, o dec.-lei n.º 422/83, de 3 de dezembro, até à lei n.º 19/2012, de 8 de maio, estabeleceram um regime uniforme, nos planos substantivo e adjetivo, para as práticas restritivas e as operações de concentração de empresas que ocorram em território nacional (n.º 2 do art. 3.º da lei n.º 19/2012). Esta opção normativa é consentânea com a unidade do mercado nacional. Deve ainda ter-se em conta que a livre concorrência é igualmente reconhecida no quadro da construção da União Europeia (UE) como fundamental para o funcionamento do mercado interno (protocolo relativo ao mercado interno e à concorrência e art. 119.º, n.º 1 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia [TFUE]). Este princípio é densificado pelas regras de concorrência do TFUE (arts. 101.º a 109.º). A UE dispõe de competência exclusiva para o estabelecimento das regras de concorrência necessárias ao funcionamento do mercado interno (alínea b) do n.º 1 do art. 3.º do TFUE). Assim, as atividades económicas desenvolvidas na RAM encontram-se sujeitas às regras nacionais e europeias de defesa da concorrência. Do ponto de vista institucional, compete à Autoridade da Concorrência (AdC), criada pelo dec.-lei n.º 10/2003, de 18 de janeiro, assegurar em todo o território nacional o cumprimento das regras nacionais de concorrência, bem como aí exercer as competências que lhe são conferidas pelo direito da UE (art. 5.º dos estatutos da AdC, aprovados pelo dec.-lei n.º 125/2014, de 18 de agosto). Antes da criação da AdC, aquelas competências eram exercidas pela Direção-Geral do Comércio e Concorrência e pelo Conselho da Concorrência, criado pelo dec.-lei n.º 422/83. Sendo claro o carácter nacional das regras de defesa da concorrência, bem como o alargamento do âmbito das competências da AdC a todo o território nacional, não deixa de ser surpreendente que tenha vigorado, entre 1996 e 2012, um decreto regulamentar regional da Madeira que atribuía essa competência à Inspeção Regional das Atividades Económicas (IRAE) da Madeira (dec. reg. regional n.º 2/96/M, de 24 de fevereiro). A alínea c) do art. 2.º daquele decreto cometia à IRAE da Madeira a “investigação e instrução dos processos por contraordenação cuja competência lhe esteja legalmente atribuída, incluindo os que dizem respeito a práticas restritivas da concorrência”. Ora, não prevendo nenhum dos sucessivos regimes de concorrência uma norma atributiva de competência a entidades de nível regional, não se vislumbra qual o possível alcance prático daquela disposição. O dec. reg. regional n.º 19/2012/M, de 22 de agosto, enquanto diploma orgânico da IRAE da Madeira, veio suprimir esta previsão. Além da AdC, também a Comissão Europeia (CE) dispõe de competência para garantir a aplicação das regras de concorrência do TFUE no território dos Estados-membros, incluindo, portanto, a RAM. Práticas restritivas da concorrência A lei n.º 19/2012 qualifica como práticas restritivas da concorrência os acordos, práticas concertadas e decisões de associações de empresas (art. 9.º), os abusos de posição dominante (art. 11.º) e os abusos de dependência económica (art. 12.º). Estas práticas constituem ilícitos contraordenacionais, punidos com coima até 10 % do volume de negócios das empresas infratoras, admitindo-se, todavia, a possibilidade de justificação das práticas visadas pelo art. 9.º, caso se demonstre estarem preenchidos os requisitos do balanço económico, previsto pelo art. 10.º da mesma lei. Trata-se, neste último caso, de admitir a justificação de eventuais restrições da concorrência com fundamento na sua indispensabilidade para a obtenção de ganhos de eficiência que sejam partilhados equitativamente com os utilizadores, e sem que as empresas em causa possam assim eliminar a concorrência numa parte substancial do mercado dos bens ou serviços em causa. Em matéria de acordos e práticas concertadas, encontramos um exemplo particularmente relevante da importância de uma atuação eficaz pela AdC para o bem-estar dos consumidores residentes na RAM. Referimo-nos ao caso das escolas de condução do Funchal (PRC/2008/06). O caso surgiu na sequência de uma denúncia anónima que indicava estar em curso, no início de 2008, um aumento generalizado dos preços praticados por várias escolas de condução do Funchal quanto ao ensino de condução de veículos ligeiros (categoria B). A investigação da AdC, que implicou a realização de inspeções a diversas escolas de condução no Funchal, concluiu que as empresas envolvidas se concertaram no sentido de levar a cabo um aumento de preços em duas fases, atingindo em março de 2008 um valor que era quase o dobro do praticado no final de 2007. Tendo em conta o diminuto volume de negócios das empresas, o valor total de coimas foi bastante reduzido, sendo inferior a 10 mil €. Para efeito do cálculo da coima, a AdC ponderou também o facto de as empresas em causa operarem num mercado caracterizado pela insularidade. Esta intervenção da AdC demonstra que é fundamental assegurar a tutela da concorrência em todo o território nacional, de modo que nenhum grupo de consumidores fique desprotegido, incluindo os residentes em mercados insulares, como é o caso da RAM. Embora não tenham surgido casos de decisões condenatórias por abuso de posição dominante, a proibição destas práticas pelo art. 11.º da lei n.º 19/2012 e pelo art. 102.º do TFUE levanta uma questão interessante quanto à sua aplicação na RAM. Um dos pressupostos destas proibições é a existência de uma posição dominante numa parte substancial do mercado nacional, no caso da lei n.º 19/2012, ou numa parte substancial do mercado interno, no caso do art. 102.º do TFUE. Quanto a esta última disposição, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) implica uma apreciação casuística tendo em conta fatores como a estrutura e volume de produção e de consumo do produto ou serviço em causa, bem como dos hábitos e possibilidades económicas dos vendedores e dos compradores (ac. TJUE, de 16 de fevereiro de 1975). A aplicação destes critérios já levou à qualificação de parte de um dos maiores Estados da União como uma parte substancial do mercado interno. Assim, a parte meridional da Alemanha, com 22 milhões de habitantes e na qual estava localizado um dos principais produtores de açúcar da UE, constituía uma parte substancial do mercado interno (Ibid., n.º 448). Mais recentemente, um dos Länder alemães, a Renânia-Palatinado, foi também considerada como uma parte substancial do mercado interno para efeitos do art. 102.º do Tratado, “tendo em conta a superfície do território deste Land, que é de cerca de 20.000 km2, e o número muito elevado dos seus habitantes, que é de cerca de quatro milhões, superior à população de alguns Estados-Membros” (ac. TJUE, de 25 de outubro de 2001). Relativamente ao art. 11.º da lei n.º 19/2012, julgamos ser inteiramente aplicável a posição que defendemos quanto à anterior lei da concorrência: uma região autónoma nunca deixará de constituir uma parte substancial do mercado nacional, se não por razões económicas então por razões jurídico-políticas ligadas à necessidade de tutelar a concorrência enquanto bem público e de defender o bem-estar dos consumidores residentes nas regiões autónomas. Controlo de concentrações Não sendo muito frequentes as operações de cariz regional que têm sido analisadas em sede de concentrações, o caso da compra de parte dos estabelecimentos de retalho alimentar do Grupo Sá pela Modelo Continente Hipermercados, em 2013, constitui um dos mais interessantes casos, desde logo pela aceitação da failing firm defense (argumento da falência iminente). Em 2013, devido a dificuldades financeiras, o Grupo Sá alienou um conjunto de nove estabelecimentos comerciais situados na ilha da Madeira ao Grupo Sonae – Modelo Continente. A aquisição configurava uma operação de concentração sujeita a notificação à AdC nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 50.º da lei n.º 19/2012. A 2 de maio de 2013, o Conselho da AdC adotou uma decisão de não oposição, considerando que a operação notificada não era suscetível de criar entraves significativos à concorrência efetiva no mercado retalhista de base alimentar nos formatos hipermercado, supermercado e lojas discount nas áreas geográficas afetadas, definidas como (i) áreas 1 e 2, ou seja, englobando os concelhos do Funchal (1A), de Câmara de Lobos (1B) e da Ribeira Brava (área 2), e freguesias da Camacha e Caniço (1C); (ii) área 3, correspondente aos concelhos de Santa Cruz (exceto freguesias da Camacha e Caniço) e Machico; e (iii) área 4, correspondente ao concelho de Santana. Com a operação em causa, a adquirente Modelo Continente Hipermercados passaria a deter quotas de mercado na ordem dos 50-60 % em área e entre 40-50 % em valor (dados de 2012, que refletiam as dificuldades do Grupo Sá, que detinha quotas bastante superiores nos exercícios de 2010 e 2011). Em termos globais, a operação reduzia o número de grandes operadores retalhistas de três para dois (Modelo Continente Hipermercados e Pingo Doce), com um rácio de concentração daqueles dois operadores superior a 80 %. Apesar de a operação suscitar “sérias preocupações jus-concorrenciais”, a AdC teve em conta o chamado argumento da falência iminente (“Decisão de Não Oposição...”, Autoridade da Concorrência, 2 maio 2013). Este foi, de resto, o primeiro caso em que essa defesa foi aceite no regime português de defesa da concorrência. Para a AdC, o argumento da falência iminente implica o cumprimento de duas condições gerais: em primeiro lugar, a empresa a adquirir deve estar em reais dificuldades financeiras; em segundo lugar, é necessário que estejam excluídos cenários menos gravosos para a concorrência como alternativa à aquisição em causa. Quanto à primeira condição, o facto de o Grupo Sá se encontrar sujeito a um processo especial de revitalização empresarial (PER) não parece ter sido suficiente para presumir a falência iminente, tendo a AdC procedido à análise de informação relativa às vendas para aferir as dificuldades financeiras alegadas. Quanto ao cenário alternativo, o mesmo poderia passar pela aquisição da empresa insolvente por outro concorrente, a reestruturação dos ativos e sua alienação total ou parcial, ou ainda a saída do mercado de todos os ativos da empresa. A AdC valorou com especial relevo o facto de o Grupo Sá ter procurado negociar com os outros grandes grupos de distribuição a operar em Portugal, não tendo essas negociações tido um desfecho positivo. O cenário que maiores dificuldades tende a colocar na prática é o de a saída dos ativos da empresa do mercado em causa gerar benefícios ao nível da concorrência. Sendo matéria de difícil ponderação, por lidar com probabilidades e múltiplos cenários possíveis de evolução do mercado, a AdC entendeu que, apesar de não se poder afastar definitivamente a possibilidade de os estabelecimentos em causa virem a ser adquiridos por terceiros em processo de insolvência, tal cenário tinha uma menor probabilidade de ocorrer, em especial atendendo à crise económica vivida à época na ilha da Madeira e ao facto de sete dos nove estabelecimentos terem já sido encerrados devido às dificuldades do Grupo Sá, tendo os consumidores adaptado o seu comportamento dirigindo-se aos dois grandes grupos remanescentes. Foi também considerado o potencial impacto negativo da proibição da operação na viabilização das 14 lojas do Grupo Sá não incluídas na mesma. Auxílios de Estado A disciplina dos auxílios de Estado constitui uma particularidade do sistema estabelecido pelo Tratado de Roma, que instituiu a então Comunidade Económica Europeia, correspondendo à posterior disciplina dos arts. 107.º a 109.º do TFUE. Quanto à aplicação destas regras, a CE dispõe de competência exclusiva, sujeita, claro está, à fiscalização realizada pelas instâncias judiciais da UE. Na senda do movimento de descentralização da aplicação das normas relativas a práticas restritivas da concorrência adotadas por empresas, corporizado no regulamento n.º 1/2003, alguns sistemas nacionais de defesa da concorrência passaram a integrar, sobretudo no início deste século, normas relativas ao controlo dos auxílios de Estado de âmbito puramente nacional. Foi o caso da lei n.º 18/2003, com o seu art. 13.º, a que veio a corresponder o art. 65.º da lei n.º 19/2012. Esta última disposição determina que os auxílios a empresas concedidos pelo Estado ou qualquer outro ente público não devem restringir, distorcer ou afetar de forma sensível a concorrência no todo ou em parte substancial do mercado nacional (n.º 1 do art. 65.º). A AdC pode, após analisar um auxílio aprovado ou em fase de projeto, dirigir à entidade pública em causa as recomendações que considere necessárias para que sejam eliminados os efeitos negativos sobre a concorrência (n.º 2 do art. 65.º). Como decorre da sua designação, as recomendações não vinculam as entidades em causa, limitando-se a lei a prever o acompanhamento pela AdC da execução das suas recomendações, as quais são divulgadas na respetiva página eletrónica. O único caso em que foi emitida uma recomendação no exercício desta competência diz precisamente respeito à RAM. Em causa estavam os auxílios concedidos pelo Governo regional à Empresa Jornal da Madeira, Lda. (EJM), os quais chegaram ao conhecimento da AdC através dos relatórios de auditoria do Tribunal de Contas àquela empresa, detida em 99,98 % pelo Governo regional da Madeira. A EJM atua em concorrência com outras empresas no âmbito da imprensa regional na RAM. Os apoios tiveram a forma de financiamentos a título de suprimentos no total de 33.000.000 de euros, permitindo à EJM cobrir parte substancial dos seus custos. Para além de recomendar a notificação à CE dos auxílios superiores a 200.000 euros, que não são abrangidos pelo regime de minimis estabelecido no regulamento (CE) n.º 1998/2006, a AdC entendeu que o Governo regional da Madeira devia observar um conjunto de princípios de modo a garantir que não fossem criadas distorções na concorrência. Para tal, seria necessário definir, em primeiro lugar, quais os objetivos a atingir, identificando as falhas de mercado que justificam o eventual auxílio; em segundo lugar, tais auxílios devem ser proporcionais à falha de mercado em causa; por fim, quaisquer financiamentos que ultrapassem o montante que um investidor privado, em circunstâncias normais de mercado, poderia razoavelmente disponibilizar a uma empresa participada devem ser atribuídos com base em regras objetivas e não discriminatórias. Como este breve elenco de casos procura demonstrar, a concorrência tem sido protegida enquanto bem público por diversas intervenções da AdC que asseguram a proteção dos interesses dos consumidores. Neste aspeto, o caso da concertação entre as escolas de condução do Funchal assume especial relevo, na medida em que foi posto termo a uma prática que aumentou muito substancialmente os preços pagos pelos consumidores.   Miguel Moura e Silva (atualizado a 30.12.2016)

Economia e Finanças

contas

Em termos de contabilidade, devemos considerar a Conta do Ano Económico, a Conta de Gerência e a Conta Geral de Administração Financeira do Estado (CGAFE), que engloba as duas. Ao nível das diversas operações orçamentais, podemos, ainda, definir as contas ordinária, extraordinária, dos serviços autónomos e uma exceção, a chamada “conta excecional”, resultante da guerra, que existiu nos períodos de 1914-15 e de 1927-28, tendo sido criada pela Lei n.º 372, de 31 de agosto de 1915. A CGAFE é o resultado da execução do orçamento. De acordo com a constituição de 1822, estas deveriam ser apresentadas para aprovação em Cortes, juntamente com o orçamento do ano seguinte. Na Carta Constitucional de 1926 e na Constituição de 1838, alude-se ao mesmo, sendo referido como o balanço geral da receita e despesa do tesouro público. Por lei de 18 de setembro de 1844, foi determinado que a Conta deveria ser submetida a parecer do Tribunal do Conselho Fiscal de Contas. A partir do ato adicional à Carta de 1852, ficou definida a separação entre a Conta e o orçamento. Durante a República, não tivemos qualquer alteração, o que só veio a ocorrer com a Constituição de 1933, que determinou que a sua submissão ao Parlamento deveria ser acompanhada de relatório e decisão sobre a mesma exarados pelo Tribunal de Contas (TCo). A CGAFE foi substituída, a 21 de novembro de 1936, pela Conta Geral do Estado. De acordo com a lei de 20 de março de 1907, existiam dois tipos de conta: a Conta do Ano Económico e a Conta de Gerência do mesmo. Enquanto a primeira ficava aberta por um período de cinco anos, a segunda deveria ser encerrada a cada ano e ser o registo de todas as operações financeiras realizadas. Esta segunda conta deveria igualmente ser publicada no prazo de quatro meses após o final do ano, enquadrada na CGAFE, que englobava as duas. Como já referido, a partir de 1936, esta Conta passou a designar-se Conta Geral do Estado (CGE). Com o Dec. n.º 3519, de 8 de maio de 1919, somos confrontados com a falta de cumprimento desta determinação que estabeleceu normas, no sentido de simplificar o processo, reduzindo para dois anos o período em que as contas dos anos económicos estariam abertas e o alargamento do prazo de publicação da conta para sete meses. Mesmo assim, não foi solução, e, em novo decreto, com força de lei, n.º 18381, de 24 de maio de 1930, estabeleceram-se novas regras, no sentido de obviar esta situação. Assim, o ano económico ficaria aberto apenas por 45 dias e acabava-se com as duas contas, passando a figurar apenas a Conta de Gerência. Em 1935, alargou-se o prazo da sua publicação para 12 meses e, no ano seguinte, insistiu-se na prioridade que deveria ser dada à publicação da CGE. A publicação regular das contas iniciou-se com as do ano económico de 1833-34, mas a agitação política levou, por vezes, ao não cumprimento desta ordem, como sucedeu nos anos económicos de 1845-46 a 1859-1950. Antes disso, deveremos assinalar a apresentação de três contas à Câmara dos Deputados juntamente com o orçamento respeitante aos anos económicos de 1926, 1832 e 1832-33. A partir de 1850, juntaram-se à Conta do Tesouro as contas dos Exercícios, as dos Ministérios e a da Junta de Crédito Público. Como já referido, a CGE surgiu, a 21 de novembro de 1936, para substituir a CGAFE, sendo o resultado da execução financeira do orçamento. A conta é preparada pela Direção-Geral de Contabilidade, que deveria apresentar, até 15 de março de cada ano, os mapas de execução e publicar a conta até 31 de dezembro do ano seguinte. Esta, depois de parecer do TCo, é apresentada à Assembleia para votação. A Constituição de 1976 refere, a exemplo da de 1933, que a submissão ao Parlamento deveria ser acompanhada de relatório e decisão sobre a mesma, exarados pelo TCo, e acrescenta o prazo de 31 de dezembro para a sua apresentação à Assembleia. A partir de 1977, a lei determinou a publicação mensal de contas provisórias, o que, em 1991, passou a ter uma periodicidade trimestral. A Conta da Região é a conta das regiões autónomas, tendo surgido para o ano fiscal de 1976. De acordo com a Lei n.º 98/97, de 27 de agosto, o Governo Regional é obrigado a submeter, à Secção Regional do TCo, esta Conta, que, depois de julgada, é submetida à aprovação da Assembleia Legislativa Regional, conforme lei n.º 28/92, de 1 de setembro. A Conta da Região assinala a execução orçamental da Região Autónoma da Madeira (RAM) e apresenta, detalhadamente, os valores constatados em agrupamentos como as Receitas e as Despesas do Arquipélago. Dados da Direção Regional de Orçamento e Contabilidade permitem identificar a evolução favorável das receitas, tanto as correntes como as de capital. Em 1977, o total de receitas correntes era de 8932 milhões de euros, sendo que o total de receitas de capital cifrava-se em 232 mil euros, fazendo com que a receita total se quantificasse em 9374 milhões de euros. Em 1981, o total de receitas de capital aumentou para 44.348 milhões de euros, um crescimento de cerca de 191 vezes quando comparado com o valor verificado em 1977. Ainda no mesmo ano, foi igualmente notória a evolução das receitas correntes, já que no seu total somaram o valor de 26.325 milhões de euros. Em 1985, a receita total atingiu o valor de 139.023 milhões de euros, e, no ano seguinte, o valor quase duplicou, passando para 252.542 milhões de euros, muito por conta de as receitas de capital terem passado de 32.955 milhões de euros, em 1985, para 130.162 milhões de euros, em 1986, quase igualando o valor da receita total do ano anterior. Todavia, cabe destacar que as receitas correntes aumentaram, neste período, em 14.211 milhões de euros. Para a déc. de 90, os montantes verificados foram reflexo de um aumento das receitas da RAM, tendo especial destaque o ano de 1990, em que a receita total assumiu o valor de 733.975 milhões de euros. Este valor justifica-se pelo montante assumido pelas receitas de capital, que no seu total foi de 500.346 milhões de euros, valor que atingiu tais proporções devido a um passivo financeiro assumido pela RAM de 439.473 milhões de euros. Em 1991, embora inferior à do ano anterior, que não constitui um bom elemento de comparação por conta da excecionalidade verificada, a receita total foi superior à de 1989, devido ao aumento das receitas correntes, impulsionado pelo incremento das receitas fiscais. A partir de 1995, a receita total da RAM superou os 700 milhões de euros, assumindo, nesse ano, o valor de 703.678 milhões de euros, sendo que o valor das receitas correntes foi de 337.777 milhões de euros e o das receitas de capital de 214.729 milhões de euros. Em 1996, a receita total foi de 822.373 milhões de euros, sendo que no ano seguinte o valor diminuiu para 765.446 milhões de euros, voltando a aumentar, em 1998, para 782.498 milhões de euros. No início do novo século, as receitas da RAM atingiram valores nunca antes verificados. Em 2001, a receita total da RAM foi de 1105.302 milhões de euros, aumentando no ano seguinte para 1129.110 milhões de euros e tomando o valor de 1167.048 milhões de euros em 2003. As receitas correntes em 2001 foram de 545.424 milhões de euros, tendo-se verificado um aumento das mesmas em 2002 e 2003 para 671.637 e 672.472 milhões de euros, respetivamente. As receitas de capital, pelo contrário, reduziram de 2001 para 2002, na medida em que no primeiro ano as mesmas somavam o valor de 364.151 milhões de euros e no segundo diminuíram para 271.664 milhões de euros. 2008 marca a primeira década do século no que concerne à receita total, que se cifrou em 1317.770 milhões de euros, ano em que as receitas correntes foram de 931.883 milhões de euros e as receitas de capital de 385.887 milhões de euros. Os anos seguintes foram marcados por diminuições constantes. A partir de 2009, inicia-se uma tendência que é caracterizada pelo decréscimo das receitas totais, sendo que, para esse ano, o valor das mesmas foi de 1074.878 milhões de euros. Em 2010, com uma receita total de 1201.411 milhões, é claro o aumento em relação ao ano anterior, situação que não se verificou em 2011, com uma diminuição para 1076.962 milhões de euros. Em 2012, a receita total cifrou-se em 1597.936 milhões de euros, um aumento significativo relativamente ao do ano anterior, ocasionado pelo valor assumido pela rubrica das receitas advindas de passivos financeiros, de 635.070 milhões de euros. Em 2013, os dados provisórios apontavam para um valor das receitas totais de 2492.607 milhões de euros. Para o mesmo ano, as receitas correntes eram de 1091.643 milhões de euros e as receitas de capital de 1400.964 milhões de euros. No que diz respeito à estrutura da receita, cabe destacar o peso que as receitas fiscais foram assumindo ao longo do tempo. Para 1977, as receitas fiscais eram de 6721 milhões de euros, representando 75,2 % das receitas correntes e 71, 7% das receitas totais. O ano seguinte deu início a um período que se prolongou até 1981, caracterizado pela diminuição da proporção das receitas fiscais nas receitas totais. Note-se que, em 1981, as receitas fiscais representaram 21,6 % do total das receitas e 67,7 % das receitas correntes, sendo que as mesmas mantiveram uma percentagem relativamente baixa no que concerne à receita total em 1982 e 1983, com 28,7 % e 31,0 %, respetivamente. 1989 é um ano de destaque para as receitas fiscais, já que as mesmas ascenderam aos 155.862 milhões de euros, o que se traduziu em 92,3 % das receitas correntes e 55,4 % das receitas totais. A déc. de 90 apresentou receitas orçamentais com um peso superior a 40 % das receitas totais, com exceção de 1990, ano em que a receita fiscal representou apenas 23,8 % das receitas totais. De destacar o ano de 1992, em que as receitas fiscais foram de 293.702 milhões de euros, cerca de 61,0 % da receita total desse ano. No novo século, a proporção das receitas fiscais nas receitas totais aumentou significativamente. Esta situação é identificada com maior realce no período compreendido entre 2008 e 2013. Em 2008, as receitas fiscais foram de 786.249 milhões de euros, e, embora nos anos seguintes o valor absoluto das mesmas tenha sido inferior, tomando os valores de 643.499, 682.954, 666.690 e 651.970 milhões de euros em 2009, 2010, 2011 e 2012, respetivamente, o impacto nas receitas totais foi superior em algumas ocasiões. Isto porque, se em 2008 as receitas fiscais representavam 59,7 % das receitas totais, em 2009 a proporção aumentava para 59,9 %. Em 2010, a proporção diminuía para 56,8 %, voltando a aumentar no ano seguinte, representando 61,9 %. As previsões para 2013 deixavam antever um aumento do valor absoluto das receitas fiscais, já que a estimativa apontava para um valor a rondar os 847.255 milhões de euros, substancialmente superior ao verificado no ano anterior. Todavia, e apesar do aumento do valor da mesma, a sua influência na receita total decresceu para 33,99 %. Cabe destacar que, desde 1977 até 2012, para cada um dos anos em apreço a receita fiscal apresentou-se sempre superior à receita fiscal do ano imediatamente anterior, com exceção de 1994, 2003, 2007, 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013. Nesse espaço temporal, o valor mais elevado da receita fiscal, considerando os dados definitivos, foi constatado em 2008, ano em que foi verificada, de igual forma, a maior receita total, que ascendeu aos 1317.770 milhões de euros. No que concerne à componente de capital, as receitas associadas à mesma ganharam uma importância relativa bastante significativa, já que, enquanto em 1977 representavam aproximadamente 2,5 % da receita total e assumiam o valor de 232.000 mil euros, em 2012, o valor absoluto ascendia aos 703.562 milhões de euros, com um peso de 44,0 %. Não obstante, é de ressaltar que a conjuntura com a qual a RAM se viu confrontada a partir de 2008, com a crise financeira, e especialmente desde 2012, ano em que foi assinado o PAEF-RAM – Programa de Ajustamento Económico e Financeiro da RAM, deturpou, em certa medida, os pesos das receitas de capital nas receitas totais verificados em anos anteriores. Se foi notável o aumento das receitas da RAM, a evolução das despesas foi semelhante. Em 1977, a despesa total da RAM rondava os 7490 milhões de euros, passando no ano seguinte a ser de 16.827 milhões de euros, ultrapassando o dobro do ano anterior. O total da despesa aumentou anualmente até ao fim da déc. de 80, com exceção de 1984, ano em que tomou o valor de 106.213 milhões de euros, e de 1987, ano no qual a despesa total foi de 224.099 milhões de euros. Na déc. de 90, sobressai o valor verificado em 1990, em que a despesa ascendeu aos 728.808 milhões de euros. Contudo, e apesar de em 1991 se ter verificado uma diminuição do total da despesa para 392.018 milhões de euros, o período entre 1991 e 1996 apresentou um crescimento anual da mesma, tomando o valor de 816.206 milhões de euros no último ano considerado. No início do séc. XXI, a despesa total assumiu um valor nunca antes verificado, de 1100.651 milhões de euros. Não obstante o facto de em 2001 se ter atingido tal patamar, nos três anos seguintes foram constatados aumentos de tal variável, chegando, em 2004, a ser de 1306.510 milhões de euros. Os anos seguintes são caracterizados por uma diminuição da despesa total, quando comparada com a constatada em 2004, salvo em 2008, em que foi atingido um novo máximo de 1317.102 milhões de euros. 2012 marca um novo máximo da variável de 1533.094 milhões de euros, sendo que os dados provisórios de 2013 permitem vislumbrar um aumento significativo, que situa a despesa total em 2368.748 milhões de euros. A estrutura da despesa total modificou-se parcialmente ao longo dos anos em apreço, embora continue a ser maior o peso das despesas correntes, comparativamente com o das despesas de capital. Em 1983, as despesas correntes representavam, aproximadamente, 52,55 % da despesa total, sendo de cerca de 62,12 % em 2012, enquanto o peso das despesas de capital variou de 33,33 % para 37,79 % no mesmo período. Analisando as componentes que conformam cada um dos agregados da despesa, é possível constatar o peso significativo das despesas afetas ao pessoal. As mesmas cresceram cerca de 24,43 vezes entre 1983 e 2012, chegando a tomar o valor de 375.070 milhões de euros, o seu valor mais elevado, em 2009. Relativamente às despesas de capital, a rubrica que se apresenta com maior relevância é aquela que diz respeito às aquisições de bens de capital, embora em 2012 se tenha verificado uma situação na qual a despesa referente aos ativos financeiros, e que em si engloba as operações financeiras com a aquisição de títulos de crédito e com a concessão de empréstimos e subsídios reembolsáveis, foi superior à referente às aquisições de bens de capital. Não obstante, não é possível subestimar a evolução desta última rubrica, já que em 1983 a mesma tomava o valor de 2.422 milhões de euros, enquanto em 2012 o mesmo era de 217.947 milhões de euros, o que representa um aumento de cerca de 89,99 vezes. Em 1983, representava 2,18 % da despesa total, e em 2012, 14,22 %. Para efeitos da análise efetuada anteriormente, foram consideradas as despesas e as receitas orçamentais executadas afetas ao subsector do Governo Regional da Madeira, por permitir uma análise temporal mais ampla. O saldo efetivo, que reflete a diferença entre as receitas e as despesas efetivas, permite verificar a relação entre ambas as variáveis. Entre 1977 e 2012, o saldo foi negativo, com exceção dos anos: 1977, com 1896 milhões de euros; 1989, com 167 mil euros; 1992, com 1694 milhões de euros; e 2005, 2006 e 2007, com um saldo de 1302, 1070 e 1105 milhões de euros, respetivamente. Os valores deficitários mais importantes, pela expressividade que assumiram, foram os constatados nos anos: 2012, com as despesas a superarem em 491.703 milhões de euros as receitas; 2008, quando o saldo efetivo foi de -255.113 milhões de euros; e 1990, em que o diferencial entre as receitas efetivas e as despesas efetivas foi de -220.349 milhões de euros. O saldo efetivo calculado não inclui a utilização do produto da emissão de empréstimos, nem os encargos com a amortização da dívida pública.   Alberto Vieira  Sérgio Rodrigues (atualizado a 30.12.2016)

Economia e Finanças História Económica e Social

clube funchalense

Fernando Augusto da Silva e Carlos Azevedo de Menezes, apontam o Clube Funchalense, criado a 3 de dezembro de 1838, como um dos primeiros clubes do Funchal, tendo os seus estatutos sido aprovados em assembleia geral, ocorrida a 18 de dezembro de 1876, e novamente aprovados pelo governador civil, Francisco d’Alburquerque Mesquista e Castro, a 16 de fevereiro de 1877. Odília Pereira refere todavia que o Clube Funchalense teve dois estatutos ao longo da sua existência: os que foram aprovados em 1853 e os datados de 1876, sob a direção de Gregório Francisco Perestrello da Câmara, J. de Salles Caldeira, Francisco de Castro e Almeida, e Filipe Acciaiolli Ferraz de Noronha. A referida autora, adianta que os estatutos aprovados a 30 de março de 1853 tornam claro que o objetivo desta instituição era “promover, por todos os meios que se possa dispôr, a modesta convivência dos sócios, e de suas famílias: para mútua recreação, e progresso instrutivo” (PEREIRA, 1996, 33). De acordo com os autores do Elucidário Madeirense, a primeira sede do Clube foi uma residência situada na R. do Carmo, tendo sido depois transferida para a R. dos Ferreiros, espaço que ocupou até à sua extinção. Importa notar que este Clube era elistista: o alto comércio tinha admissão imediata e as figuras ilustres que visitavam a Madeira eram convidadas para os bailes e as soireés. Faziam parte do Clube pessoas do continente português e até mesmo estrangeiros. O Clube Funchalense admitia quatro tipos de sócios, a saber: o sócio proprietário, cuja quota rondava os 30$000 réis, acrescidos do pagamento mensal de 1$000 réis; o sócio subscritor residente no Funchal, que pagava a mensalidade de 1$500 réis; o sócio supranumerário que não residia no Funchal e pagava de mensalidade a quantia de 1$200 réis; e, por último, o sócio temporário, que estava sujeito a uma mensalidade de 2$400 réis. Estes pagamentos tinham de ser feitos até ao dia 10 de cada mês. A cada tipo de sócio estavam atribuídos direitos e deveres diferentes, já que os primeiros gozavam de privilégios mais alargados, nomeadamente o de propor candidatos, o de convocar a assembleia geral, o de analisar os livros de contas e o de apresentar uma senhora em cada baile. No entanto, havia um critério comum a todos, tal como consta do art. 7.º dos estatutos aprovados em 1876: só era admitida “pessoa decente, de boa educação e bons costumes, contanto que seja de maior idade ou emancipada” (Id., Ibid., 37). Na realidade, a adesão ao Clube superou a expetativa, como se pode constatar na nota publicada no periódico Chronica, a 18 de maio de 1839: “Este Estabelecimento merece cada vez mais a aprovação dos seus Proprietários e assinantes, e esperamos que continuará a receber o seu apoio para que progrida e melhore se ainda é suscetível de algum melhoramento”. O Clube Funchalense destacou-se nas áreas recreativas, com particular destaque para os jogos, os concertos e, sobretudo, os bailes, que acabaram por lhe dar protagonismo. Era no Carnaval e na Páscoa que se realizavam com maior frequência, embora se tenham encontrado referências a bailes de primavera e de Natal, e ainda a bailes mensais. A publicidade para estes eventos era feita através dos jormais locais. Em 1839, há notícia de um baile realizado a 6 de abril, seguido de um outro, no dia 15 de abril, e ainda de um baile de primavera, realizado a 16 de maio; o que confirma a regulariadade deste tipo de convívio. Um folheto publicado na revista Islenha, em 1857, dá conta da eleição de uma rainha do baile. Importa notar, tal como relembra Susana Caldeira, que o Clube tinha uma missão abrangente no seio da sociedade, já que parte das receitas dos espetáculos era canalizada para instituições, ficando assim demonstrado o carácter benemérito da associação e dos seus membros. No dia 5 de junho de 1839, e.g., foi realizado um baile de subscrição em favor do Asilo de Primeira Infância, tendo-se elogiado na impressa local esta louvavél iniciativa. De acordo com a autora anteriormente referida, os anos 40 mantiveram o glamour das festividades, mas trouxeram novidades, já que Ricardo Porfírio da Fonseca abdicou do cargo, tendo-se convocado os sócios para uma assembleia geral, que ocorreu a 3 de dezembro. Em consequência, a 23 de dezembro, são aprovados novos estatutos , assim como a mesa da assembleia geral e da direção para o ano de 1840. A presidência foi assumida por José da Fonseca e Gouveia, barão de Lordelo e administrador geral do distrito, a vice-presidência por Webster Gordon, e o secretário eleito foi Almeida e Azevedo. A estes juntaram-se Ricardo T. Eduardo Kollway, Oliveira, Júlio Fernandes, T. Burnett, V. de Brito, J. Castello Branco, Burder Taylor Sant’ Anna, Bean, António de Almeida, e Diogo Tellei. Durante os anos seguintes, a impressa local testemunha a ação do Clube Funchalense, dando notícia dos bailes que se vão realizando e dando conta do valor arrecadado pelas subscrições com vista à beneficiência. Todavia, em 1856,  o Clamor Público explica que o Clube enfrentava dificuldades, adiantando, no entanto, que uma nova direção tinha tomado posse e tinha promovido a renovação das salas do edifício. Na verdade, o morgado Diogo d’Ornelas de França Frazão toma as rédeas da instituição e sabe-se que o baile de Páscoa foi muito concorrido e animado. No que diz respeito ao edifício propriamente dito, foi possível apurar que o seu estado de degradação se foi acentuando com o passar dos anos, pelo que, em junho de 1867, foram levados a cabo trabalhos de manutenção e melhoramentos sob a direção de Pedro Júlio Vieira, ao qual a imprensa local tece os maiores elogios. Tendo por base os estatutos, sabe-se que existiam várias salas de reuniões, uma sala de leitura, salas de jogo, nomeadamente para bilhar, xadrez e outros. A sede funcionava todos os dias entre as 10 h e as 24 h, exceto nos dias de baile, em que encerrava mais tarde. Gradualmente, a frequência dos bailes foi diminuindo e durante o final de Oitocentos, as referências a estes convívios tornam-se cada vez mais escassas. Porém, e aquando da visita de Sua Majestade, a Imperatriz da Austria, e de Sua Alteza Real, o infante D. Luiz, a 17 de abril de 1861, o Clube promoveu um baile em sua honra. Surge ainda, em 1874, uma notícia acerca de um baile a favor do Asilo de Mendicidade e Orfãos, cuja receita atingiu 320$000 réis, situação que se repetiu a 17 de janeiro de 1877, tendo a imprensa local elogiado a “deslumbrante decoração da entrada e das salas onde domimavam as luzes e as flores” (Id., Ibid., 34).  O esforço de João de Freitas da Silva, tesoureiro do Clube, que teve a seu cargo a decoração das salas, por recuperar de tempos mais recuados o bom gosto em que os bailes primavam e a sociedade refinada que os frequentava, foi visível. Em meados do séc. XIX, alguns periódicos locais encheram-se de uma animada troca de críticas; acusavam-se alguns cavalheiros de jogar no Clube a dinheiro. Em 1899, há notícia de que se jogava à roleta todas as noites, enumerando-se os sócios que frequentavam o Clube assiduamente, entre eles: Joaquim Simões Cantante, juiz de Direito, Joaquim Augusto Machado, delegado do procurador régio, conde do Ribeiro Real, e José Maria Malheiro, administrador do concelho. Por volta de 1899, houve uma tentativa de dissolver o Clube Funchalense, tendo sido agendada uma reunião para o dia 18 de fevereiro com o objetivo de debater a questão. Apurou-se que a assembleia geral foi adiada para o dia 15 de junho. A intenção inicial de pôr termo ao Clube, manifestada por um grupo de 14 sócios, foi abandonada. No entanto, uma notícia saída a público no Diário de Notícias da Madeira a 5 de abril de 1901 dá conta de que o Grémio dos Bordados pretendia ocupar o espaço que tinha servido de sede ao Clube Funchalense, fazendo supor que o mesmo deixara de existir.   Cláudia Faria (atualizado a 30.12.2016)

Sociedade e Comunicação Social

união, clube de futebol

A associação de recreio União Foot-Ball Club nasce em 1913 com o objetivo de promover os exercícios desportivos, náuticos e terrestres. Todavia, a vertente náutica deste clube, fortemente contemplada nos estatutos a que tivemos acesso, quer por fixar o registo das embarcações e material adquirido, quer pelas provas e concursos desportivos a desenvolver, não se viria a materializar. O União Foot-Ball Club, cuja nomenclatura deixava clara a intenção maior da sua origem, surge, à semelhança de inúmeros clubes da época, na R. de Santa Maria, no Funchal, fruto de uma contenda entre membros que integravam a equipa do Grupo União Marítimo, uma equipa de infantis constituída por jovens residentes junto ao campo D. Carlos, rapidamente batizado, com a República, campo Almirante Reis, em homenagem ao mártir Carlos Cândido Reis (1852-1910). Era uma equipa associada ao Marítimo até ter existido uma discussão em torno da compra, sem autorização, de duas balizas que haviam custado 2$70 e que eram pertencentes ao entretanto extinto Clube Operário Madeirense. Dessa discussão resultou a separação da equipa, tendo César da Silva levado para sua casa a primeira sede do União Foot-Ball Club, a 1 de novembro de 1913, coadjuvado por Ângelo Olim Marote, Luís Vieira Guerra, João Fernandes Rosa,  Alexandre de Vasconcelos,  José Anastácio do Nascimento  e  João Ferreira. O logótipo do União é aquele de que mais versões se conhecem. Muito semelhantes entre si, mantém-se o azul e o amarelo, listado, cores que mais tarde seriam escolhidas para representar a Região. O símbolo em forma de escudo com listas azuis e amarelas é rasgado por uma faixa branca com as iniciais do clube “U.F.C.”, mais tarde “C.F.U.”, tendo no cimo o capacete de Hermes, deus da fertilidade na mitologia grega. Nos primeiros anos do futebol na Madeira, sentiu-se a necessidade de contribuir para que a modalidade seguisse por um caminho de prestígio e de seriedade. Nesse âmbito, do União e do Insulano – grupo desportivo, inaugurado oficialmente a 4 de junho de 1916, que terá um papel muito importante no futebol da Madeira, uma vez que será, entre outros, o responsável pela redação dos primeiros estatutos da Associação de Futebol do Funchal, anos mais tarde denominada de Associação de Futebol da Madeira – partia a iniciativa de reunir as direções dos vários clubes, na sede do segundo, à R. da Queimada de Baixo, também no Funchal. O objetivo central seria a fundação de uma liga desportiva, o único meio de se acabar com as rivalidades que tanto prejudicavam o desporto madeirense. A proposta em discussão seria constituir na cidade uma liga entre clubes, destinando-se, inicialmente, a acordar entre todos os grupos, clubes ou associações desportivas um projeto de estatutos de uma associação, ao exemplo do que acontecia em Lisboa. Assim, em 1916, nascia a Associação de Futebol do Funchal (AFF), tendo sido organizado nesse mesmo ano o primeiro campeonato de futebol da Madeira. Nem oito dias depois da publicação, nos periódicos da época, do que é ser um bom futebolista, o jogo entre o União e o Marítimo, com vitória do primeiro sobre o segundo, acabava envolto em polémica. O jogo é anulado pela AFF com o intuito de ser repetido, mas o União não aceita a decisão, recorrendo junto deste órgão, que, pela pressão de não conseguir resolver o conflito, acabará por ficar inativo dois anos após a sua criação, e por dois anos, não havendo, por isso, competições oficiais em 1919 e 1920. A Associação ressuscita e, na época  1920/1921, a competição regressa, com a disputa do 3.º Campeonato da Madeira, acabando com a vitória do  União.  A partir da época 1921/1922, começa a realizar-se o  Campeonato de Portugal, mas o representante madeirense apenas entrará na competição na época seguinte. O União alcança esse feito na época 1927/1928, defrontando e quase vencendo o Sport Lisboa e Benfica. O União vivia muito para as atividades de lazer, para as excursões com jogos à volta da Ilha, mas também para causas solidárias. Na rubrica “Vida Sportiva” do Diário da Madeira de 4 de julho de 1915, anunciava-se que o União iria, em excursão, a Santa Cruz, acrescentando que “registamos sempre com prazer excursões desta natureza em que a nossa mocidade abandonando a vida ociosa da cidade vai retemperar o seu físico em exercícios proveitosos”(DM, 4 jul. 1915, 1). Outras notícias de 1917 davam conta de que o Club Sports Madeira e o União faziam reverter as entradas do jogo disputado entre ambos em benefício da viúva de António Fernandes, antigo jogador do Marítimo, provando, uma vez mais, que a solidariedade e a preocupação social não distinguem cores nem se alimentam de clubismos, realidade corroborada pelo sucedido no jogo noticiado pelo Diário da Madeira, na antevéspera do Natal de 1917, revelando que num jogo entre o Marítimo e uma equipa mista a verba angariada seria entregue a um fundador do União que à data se encontrava doente e em precárias circunstâncias. Na déc. de 40, o clube entra em crises sucessivas. A modalidade-rainha, o futebol, já não conseguia fazer ignorar os problemas internos. Em julho de 1945, o Diário de Notícias anunciava que o delegado da Direção-Geral dos Desportos havia dissolvido a direção do União, à exceção do presidente, após os desacatos entre jogadores e a direção, na final da Taça da Madeira. Depois de resolvido o conflito, o União vai entrar numa era de grande atividade desportiva, em muito devido ao mestre Medina, jogador que fez furor na déc. de 50 e que, através do hino, o União imortalizou. De facto, as décs. de 50 e 60 representaram as décadas de maior sucesso do clube. A nível regional, o União venceu, por sete vezes consecutivas, o Campeonato da Madeira, entre a época desportiva 1955/1956 e 1962/1963. Tomando presença na luta nacional contra o analfabetismo, o União dispõe, em 1954, de cursos de instrução primária na sua sede para os seus atletas, desde os infantis até à equipa de honra. O clube promove ainda, e sempre que possível, palestras e ações de formação, nomeadamente conferências técnicas e sociais destinadas aos árbitros. Com a autonomia política administrativa da Madeira, assiste-se à passagem de um desporto elitista para um desporto massificado. A ascensão do clube aos nacionais de futebol ocorreu na temporada 1979/1980, com o clube a entrar na III Divisão Nacional. Após duas épocas, sobe à II Divisão Nacional. Mas será na época de 1988/1989 que se viverá o momento mais alto da história do União, então liderado por Jaime Ramos e treinado por Rui Mâncio. Após vencer a Zona Sul da II Divisão Nacional, disputa a sua primeira época nos mais importantes palcos nacionais na época 1989/1990, juntando-se ao Marítimo e ao Nacional. Ficará no escalão máximo do campeonato nacional de futebol durante duas épocas até descer à  II Divisão de Honra, em  1991/1992. No entanto, volta a subir na época seguinte, igualando a melhor classificação obtida, em  1993/1994, na época em que regressa ao Campeonato Nacional da I Divisão, abandonando-a logo na época seguinte. Na época de 1998/1999, com o advento da Sociedade Anónima Desportiva (SAD), o clube cai na  II Divisão Zona Sul, conseguindo em 2001/2002 vencer a Zona Sul e regressar à II Liga. No entanto, os sucessivos sobe-e-desce teimam em repetir-se, ficando em último lugar, indo competir novamente na Zona Sul da II Divisão B. A estrutura da  competição onde o União está inserido muda no final de  2004/2005, passando a ter acesso às competições profissionais apenas dois clubes de um conjunto de quatro séries com 16 equipas. O União é colocado na Série B, conseguindo na primeira época o segundo lugar, tendo ganho a Série na época  2006/2007, contudo falha a qualificação ao perder com o Freamunde. O União consegue subir de divisão, garantindo lugar na Liga de Honra, após dois anos consecutivos a perder no play-off. Em 2011/2012, integrou a II Liga, lugar que ocupa até à época 2014/2015. Ao longo de 100 anos de existência, e apesar de se ter dedicado ao futebol, o União brilhou em outras modalidades importantes, como o andebol, o voleibol, o hóquei em patins, a esgrima, o basquetebol e o râguebi, modalidade introduzida na Madeira pelo clube, movimentando, na temporada de 2005/2006, cerca de 310 atletas federados e conquistando vários prémios, entre os quais a medalha de bons serviços desportivos, a medalha de prata do Instituto de Socorros a Náufragos e a medalha de ouro da Cidade do Funchal. Garantiu, ainda, 1 presença no Campeonato de Portugal (1927/1928), 6 presenças na I Liga (1989/1990, 1990/1991, 1991/1992, 1993/1994, 1994/1995 e 2015/2016), 5 presenças na Liga de Honra (1992/1993, 1995/1996, 1996/1997, 1997/1998 e 1998/1999), 6 presenças no Campeonato Nacional da II Liga (2002/2003, 2003/2004, 2011/2012, 2012/2013, 2013/2014 e 2014/2015), 2 presenças na III Divisão Nacional, 37 presenças na taça de Portugal, 62 presenças e 17 títulos no Campeonato da Madeira, 59 presenças e 15 títulos na taça da Madeira, 8 títulos na taça Cidade do Funchal e 3 títulos na taça de Honra e no torneio Autonomia.     Andreia Micaela Nascimento (atualizado a 04.01.2017)

Sociedade e Comunicação Social

brasões de armas

A descrição e o estudo dos brasões de armas ou escudos encontra-se a cargo da heráldica, ciência muito complexa e com uma linguagem que escapa à maioria das pessoas não iniciadas nesse tipo de estudos. As origens da heráldica remontam aos tempos da Idade Média, em que era imperativo distinguir os participantes nas batalhas e nos torneios, pelo que havia a necessidade de utilizar bandeiras ou estandartes (Bandeiras) reconhecíveis a uma certa distância e, depois, de recorrer a outros elementos facilmente reconhecíveis a menor distância. A diferenciação era definida pelo soberano através da atribuição de determinadas cores e de outros elementos identificativos a serem pintados nos escudos dos seus principais servidores. A complexidade progressiva da corte portuguesa, entre os finais do séc. XV e os inícios do XVI, levou à nomeação de um rei de armas, que tinha por função organizar o arquivo dos brasões atribuídos e equacionar os novos, a atribuir, propondo quem os deveria possuir, juntamente com as cores e as peças que deveriam figurar nos respetivos escudos. Os primeiros brasões consistiam essencialmente numa cor, depois definida como sendo um esmalte ou um metal, este último quando se tratava de ouro ou de prata. Quase ao mesmo tempo, foi colocado sobre esse fundo, que em heráldica se designa campo, um animal ou uma parte do mesmo ou até outra figuração, nomeada peça e identificativa da personalidade em questão ou da família. Este elemento, ou um outro, era ainda geralmente colocado sobre o elmo, constituindo o chamado timbre. Acresce que, para os torneios medievais e outros exercícios militares, as cores utilizadas nos esmaltes e nos metais eram ainda aplicadas nas vestes, definindo-se também assim, heraldicamente, o paquife, herdeiro dos antigos mantos vestidos pelos cavaleiros, e o virol, formado por um entrelaçado, em princípio, feito com os mesmos tecidos, com uma das cores do esmalte do escudo e com uma outra de um dos metais, e colocado sobre o elmo, lembrando o torçal que defendia o cavaleiro dos golpes de espada. Portanto, os elementos definidores dos brasões de armas iniciais foram: o escudo, o paquife e o virol, e o timbre. Progressivamente, anexaram-se inúmeros outros, como os tenentes ou suportes do escudo, os coronéis de nobreza, por vezes, impropriamente designados por coroas (só se devem assim nomear quando reais), os listéis com motes, divisas, lemas e gritos de guerra, terrados, etc. A passagem de toda esta linguagem e figuração para a Madeira não foi direta. Com efeito, o aparente isolamento da sociedade insular propiciou, senão algumas inovações, pelo menos alguns abusos. Num contexto geral, o primeiro degrau de nobreza era constituído pelos escudeiros, como o nome indica, aqueles que levavam os escudos dos cavaleiros, sendo recrutados entre os pajens e tendo, na Idade Média, entre 7 a 14 anos. Conforme o seu desempenho e, inclusivamente, a sua posterior prestação em combate, ao atingir a idade adulta, entre os 18 e os 20 anos, podiam ser armados cavaleiros, ascendendo assim ao degrau de nobilitação seguinte. Sendo alguns escudeiros de origem fidalga, porventura, teriam já direito a possuir um brasão de armas próprias. Aqueles que eram armados cavaleiros, em princípio e num futuro mais ou menos próximo, seriam dotados com brasão de armas. Caso o cavaleiro tivesse o pai ainda vivo, e porque o brasão de armas era pessoal, este seria acrescido de uma brica ou diferença, geralmente colocada no cantão direito do chefe, ou seja, no canto superior direito do portador, dado a leitura de um brasão ser feita na perspetiva do utilizar e não do observador. A organização do povoamento da Madeira, até aos meados do séc. XV, inviabilizou um pouco esta organização, que era a que vigorava no continente do reino. João Gonçalves Zarco (c. 1395-c. 1471), p. ex., embora tenha sido armado cavaleiro, em princípio em Ceuta, antes de ser enviado na missão de que resultou o descobrimento da Madeira, só veio a ser agraciado com brasão de armas a 4 de julho de 1460. Tanto quanto se sabe, nem ele nem o filho João Gonçalves da Câmara (1414-1501) parecem ter utilizado o respetivo brasão de armas, pois estes não constam nas lápides sepulcrais de ambos, na capela-mor da igreja de S.ta Clara do Funchal. Em 1452, o primeiro capitão do Funchal terá solicitado, a D. Afonso V, quatro pequenos fidalgos para casarem com as suas filhas, uma vez que a Madeira era “terra nova”, não havendo “com quem pudessem casar, segundo o merecimento de suas pessoas”; segundo escreveu Gaspar Frutuoso, repetindo quase literalmente o que o cónego Jerónimo Dias Leite lhe mandara da Madeira, resultou destes casamentos “a mais ilustre e nobre geração da Ilha” (FRUTUOSO, 1968, 217). Túmulo de Martim Mendes de Vasconcelos. 1493. Ao que sabemos, nenhum dos genros de Zarco possuía brasão de armas e, embora fossem fidalgos, não eram primogénitos. Mas, num curto espaço de tempo, os mesmos ou os seus descendentes assumiram escudos com as armas plenas dos seus antepassados. Assim aconteceu com Martim Mendes de Vasconcelos (c. 1432-c. 1493), que casou com Helena Gonçalves da Câmara, “matrona de tanta virtude que se justifica falar-lhe muitas vezes o crucifixo milagroso de S. Francisco do Funchal”, como escreveu Henriques de Noronha (NORONHA, 1948, 518), numa alusão ao milagre ocorrido a 26 de dezembro de 1482, que depois foi mandado certificar e publicar pelo bispo D. frei Lourenço de Távora (1566-1618), por alvará episcopal de 24 de outubro de 1615 (Convento de São Francisco e Sé do Funchal). Com efeito, Martim Mendes de Vasconcelos era um terceiro filho e o seu pai e homónimo não era, quase certamente, o representante dos “Vasconcelos de Portugal”, como veio a referir depois, de modo abusivo, o mesmo Henriques de Noronha (Id., Ibid.). Porém, as armas que mandou lavrar no seu túmulo, ainda hoje existente na igreja de S.ta Clara do Funchal (Convento de Santa Clara), são as da principal linha dessa família. O mesmo terá acontecido com os restantes genros de Zarco, embora não tenha chegado até nós nenhum exemplar dos seus brasões de armas iniciais: Diogo Afonso de Aguiar, que casou com Isabel Gonçalves da Câmara e que se terá fixado em São Martinho do Funchal, sendo sepultado no convento de S. Francisco; Diogo Cabral (c. 1432-1496), que desposou Beatriz Gonçalves da Câmara e era o irmão mais novo do senhor de Belmonte e, em princípio, tio do futuro almirante Pedro Álvares Cabral, fixando-se o casal em Vale de Amores, na Calheta, e sendo aí sepultado; Garcia Homem de Sousa, que seria filho de João Homem de Sousa e que “se entendia ser” neto de Pedro Homem, um dos “doze de Inglaterra” (Id., Ibid., 329), que contraiu matrimónio com Catarina Gonçalves da Câmara e veio a levantar a chamada torre do capitão, a Santo Amaro do Funchal (Arquitetura senhorial). Não consta qualquer carta de brasão de armas destes parentes de Zarco. Também não possuímos informações concretas sobre as armas dos capitães de Machico, sendo o primeiro capitão, inicialmente, quase apenas designado por Tristão ou Tristão da Ilha e tendo o seu filho e segundo capitão usado o apelido da mãe, sendo assim Tristão Vaz Teixeira. O capitão do Porto Santo, Bartolomeu Perestrelo, possuiria já brasão, pois existiam armas de família, mas não temos muitas referências da sua utilização nessa época, muito menos naquela ilha, onde só se deslocava pontualmente. Bartolomeu Perestrelo foi o primeiro a ter carta de doação da sua capitania, passada a 1 de novembro de 1446, o que parece indiciar uma condição social mais elevada, tal como indicam os dois casamentos que contraiu no continente, sempre com famílias de elevada qualidade social. A sua descendência veio a entroncar-se na dos capitães de Machico e, depois, também na dos capitães do Funchal. Dentro dos arranjos matrimoniais da emergente nobreza madeirense, o segundo capitão do Funchal, João Gonçalves da Câmara, começou por casar com uma cunhada, Isabel Homem, filha de João Homem de Sousa e irmã de Garcia Homem de Sousa. Não houve geração desta união e, falecida D. Isabel, o segundo capitão voltou a casar, então em Ceuta, com D. Maria de Noronha, filha de D. João Henriques e D. Beatriz de Mirabel; D. Beatriz foi depois dada como fidalga aragonesa e o seu marido como filho segundo de D. Diogo Henriques, bastardo do infante D. Afonso de Noronha, conde de Gijón e filho de D. Henrique II de Castela. Os descendentes daquele casamento vieram a optar quase todos pelo apelido Noronha, salvo o primogénito, que, por determinação real e para poder aceder à capitania do Funchal, teve de voltar a usar o apelido anterior, Câmara de Lobos, ficando assim Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530). A partir dos meados do séc. XV, os principais filhos-família da Madeira passaram a combater no Norte de África, no quadro do serviço régio, recompondo-se assim, de certa forma, o quadro medieval de nobilitação. Ao mesmo tempo, estabeleceu-se uma rede de casamentos de primos cruzados entre as principais famílias terratenentes da Ilha, até para a manutenção do património fundiário. E muitas dessas famílias passaram a enviar os seus filhos para serem educados na corte de Lisboa, primeiro como pajens, em seguida como escudeiros; estes indivíduos, geralmente, viriam a ser referidos como tendo sido educados no paço. Nos finais de Quatrocentos, no entanto, emergiu também na Madeira uma nova sociedade de escudeiros, mas agora nobilitados pelo serviço régio da Fazenda e da Justiça, e que, logicamente, não tinham acesso a brasão de armas. As dificuldades iniciais do registo dos brasões de armas ficaram logo patentes nas insígnias dos Câmara de Lobos atribuídas a João Gonçalves Zarco e seus descendentes. Nelas deveriam figurar dois lobos-marinhos afrontando uma torre, porém, ao serem executadas, na corte de Lisboa, por alguém que nunca terá visto tal animal, no lugar dele foram representados dois lobos continentais, espécie que nunca existiu na Madeira, mas que passou a ser a utilizada por todos os descendentes de Zarco, nomeadamente o bispo de Lamego D. Manuel de Noronha (c. 1491-1569) e depois, e de forma plena, os vários ramos da família, especialmente o açoriano, dos condes da Ribeira Grande (embora, neste caso, com o campo do escudo de negro). As armas que parecem ter sido seguidamente atribuídas a um residente da Madeira foram as de António Leme; desta feita, por D. Afonso V, a 2 de novembro de 1475 e por intercedência do príncipe D. João, devido à sua participação na tomada de Arzila e de Tânger, para onde foi enviado pelo pai, Martim Leme de Bruges, da Flandres. A carta de armas refere, inclusivamente, que, embora “da parte de seu pai pudesse trazer armas com diferença”, D. Afonso V lhe atribuía armas “sem diferença alguma” e como “chefe delas” (ANTT, Leitura Nova, Místicos, liv. 3, fl. 15). Trata-se de uma distinção excecional, somente compreensível à luz de um conjunto de serviços muito importantes prestados à coroa pelo seu destinatário, incluindo, certamente, os das navegações executadas a cargo do futuro D. João II. António Leme, nos finais da déc. de 70, encontrava-se radicado na vila do Funchal, fornecendo informações a Cristóvão Colombo sobre a existência de terras para ocidente. Em março de 1485, apareceu na Câmara como um dos homens-bons do concelho e, em agosto, foi citado como cavaleiro e morador na mesma vila, passando a assumir os negócios da família, dado o falecimento do irmão, Martim Leme, que tinha negócios na Madeira, pelo menos, desde agosto de 1481 e usava também armas plenas em Portugal. A partir de outubro, passou a surgir como vereador ao lado do também navegador Álvaro de Ornelas, sendo de abril de 1489 a última referência que temos da sua atividade nesse cargo e da sua presença no Funchal. De 20 de fevereiro de 1485 são as armas de João Fernandes do Arco, filho do segundo casamento de Fernão Dias de Andrada e que adquirira as propriedades de seu irmão, Diogo Fernandes de Andrada, que regressara a Castela, no Arco da Calheta. As armas em questão, com um sagitário em campo de ouro, encontram-se registadas tanto no Livro do Armeiro-Mor de João de Cró, de 1509, como no Livro da Nobreza e da Perfeição das Armas de António Godinho, elaborado depois, entre 1521 e 1541, com o pormenor de estar o sagitário virado para a direita neste e para a esquerda no outro. Parece que nenhum ramo dos seus descendentes voltou a utilizar estas armas, não as reivindicando, até porque passaram a usar o apelido Abreu. Com efeito, João Fernandes do Arco (c. 1450-1527) casou com Beatriz de Abreu e deste matrimónio houve 13 descendentes, todos conhecidos pelo apelido Abreu. Os filhos distinguiram-se no Norte de África, inclusivamente acompanhando o pai, passando depois à Índia, onde António de Abreu ganhou uma notável reputação. A maioria da descendência masculina passou assim à Índia e, depois, ao Brasil, tendo poucos fixado residência na Madeira. As filhas entraram para as principais famílias madeirenses, mas não só, pois Beatriz de Abreu, homónima de sua mãe, casou com Bartolomeu de Paiva, vindo a ser ama-de-leite do futuro D. João III e uma das principais figuras da corte de D. Manuel I, pelo que o marido passou a ser conhecido como o Amo. Uma outra filha de João Fernandes do Arco, D. Joana de Abreu, p. ex., veio a casar, por volta de 1510, com D. João Henriques, segundo filho de D. Fernando Henriques, senhor das Alcáçovas, e de D. Filipa de Noronha, filha do terceiro capitão do Funchal, tomando assento na Ponta do Sol. Desta família notabilizou-se o padre jesuíta D. Leão Henriques (c. 1515-1589), que fora criado em Lisboa, em casa de seu tio D. Fernando Henriques, e veio a ser o primeiro reitor do colégio do Espírito Santo, universidade de Évora, confessor do cardeal D. Henrique, ao longo de 24 anos e, depois, seu testamenteiro (Henriques, Leão). Uma pedra de armas desta família, dos meados do séc. XVII, encontra-se hoje na casa do Pé do Pico, em Câmara de Lobos, propriedade da família Henriques de Gouveia. Entre os finais do séc. XV e os inícios do XVI, devem ter sido atribuídas, ou pelo menos confirmadas, várias cartas de armas, mas cuja documentação não perdurou. Tiveram carta de brasão, muito provavelmente, Álvaro de Ornelas, o Velho, pois o filho, Álvaro de Ornelas Saavedra, requereu e recebeu nova carta de armas, como as que usavam seu pai e avô, em 1513; ainda consultámos o documento original na Quinta das Almas, encontrando-se atualmente com os descentes, em Paris. O referido Livro do Armeiro-Mor de João de Cró já regista este brasão; e a magnífica laje sepulcral de Álvaro de Ornelas Saavedra, em calcário-brecha da serra da Arrábida, com as suas armas esculpidas em baixo-relevo, já existiria na sé do Funchal, onde ainda hoje se encontra, por volta de 1515 e 1526, como se infere dos codicilos do seu testamento, de mão comum com a sua segunda mulher, D. Branca Fernandes de Abreu (Lápides sepulcrais e Sé do Funchal). Mais tarde, também recebeu carta de armas o flamengo João Esmeraldo, com data de 1520 e depois registada no Livro da Perfeiçam das Armas de António Godinho, elaborado entre 1521 e 1541. Este códice regista uma série de brasões de armas que não vêm no livro de João de Cró, que aliás simplifica a emblemática, não registando os timbres, e apresenta também o dos Câmara de Lobos, na mesma página do de João Esmeraldo, o dos Perestrelo e o de João Fernandes do Arco, entre outros. João Esmeraldo tinha casado com Joana Gonçalves da Câmara, filha de Martim Mendes de Vasconcelos e de Helena Gonçalves da Câmara e, enviuvando, casou com Águeda de Abreu, filha de João Fernandes do Arco, vindo a falecer em 1536. No entanto, a sua laje tumular não tem brasão de armas, mas sim o seu retrato e da sua segunda mulher, que terá mandado fazer a peça na Flandres. Entre as cartas de brasão mais antigas que não chegaram até nós estará a de Gonçalo de Freitas, filho do tesoureiro do infante D. João, mestre da Ordem de Santiago, que se mudou para a Madeira com o filho, João de Freitas, na sequência do assassinato do duque de Viseu, em Setúbal, por D. João II, a 28 de agosto de 1484 e a cuja casa então pertenciam. Fixaram-se na área de Santa Cruz, na capitania de Machico e, muito provavelmente, a eles se deve a determinação da instalação da alfândega ducal naquele local, decidida anteriormente, em 1477, pela infanta D. Beatriz, filha do falecido infante D. João. Em julho de 1486, João de Freitas representou, com mestre Batista, os proprietários de Santa Cruz numa reunião ocorrida no Funchal; a partir de março de 1496, surge na documentação como homem-bom de Machico, em abril, como vereador e, em maio, como juiz. Desconhecemos a sua carta de armas, como afirmámos, mas conhecemos o pedido que fez para ser enterrado com a sua mulher, Guiomar de Lordelo, na capela da matriz do Salvador de Santa Cruz, de cuja construção fora encarregado, em 1500. Esse pedido foi deferido a 19 de setembro de 1533, atendendo ao dinheiro que gastara na igreja “e à qualidade da sua pessoa” (NORONHA, Ibid., 283-284). A laje tumular veio da Flandres e o brasão de armas que exibe deve ser o mais interessante que hoje existe dessa época, caracterizando-o uma grande qualidade formal, com cinco estrelas de seis pontas e utilizando como timbre uma estrela idêntica entre duas asas, marcando a diferença para os Freitas do continente, que utilizavam como timbre duas garras de leão segurando uma flecha. Com a importância económica da cultura açucareira, inúmeros comerciantes italianos, flamengos e de outras origens tiveram igualmente carta de brasão, nos inícios do séc. XVI, embora a maioria das armas atribuídas não figurem nos livros de João de Cró e de António Godinho, dado serem, em princípio, versões de armas que apresentaram como pertencentes às suas famílias de origem. Provavelmente, esse será o caso dos Bettencourt, Berenguer, Catanho, Drumond ou Escórcio, Florença, Lomelino, Salvago, Spínola, Teive, Valdavesso e outros. Existem algumas arcas tumulares destas famílias de origem estrangeira, p. ex., na matriz de Santa Cruz, igreja de S. Salvador, mas, infelizmente, os brasões iniciais foram apagados. O principal panteão insular destas famílias terá sido o convento de S. Francisco do Funchal, mas as constantes obras a que foi sendo sujeito e a sua própria demolição, nos finais do séc. XIX, levaram a que se tivesse perdido quase todo esse património. Ao longo do séc. XVII, as principais famílias madeirenses ganharam um novo ascendente social, principalmente advindo da sua participação na expansão ultramarina ibérica e do seu desempenho na América Latina. Neste quadro, construindo algumas das famílias em causa as suas capelas, assumiram, pura e simplesmente, as armas que entenderam. O exemplo mais evidente será o dos túmulos parietais da igreja do Carmo do Funchal, onde António de Carvalhal Esmeraldo, casado com Maria Brandoa, usou as armas plenas dos Câmara, e os seus cunhados, no túmulo em frente, as dos Brandões do continente, embora a família fosse proveniente de lavradores da Ribeira Brava (Igreja e recolhimento do Carmo). Existe um certo vazio de documentação sobre a atribuição de cartas de armas ao longo desse século e mesmo do XVIII. Mas a atividade conheceu novo incentivo nos finais da última centúria e propagou-se exponencialmente ao longo de Oitocentos, justificando-se, sobretudo, enquanto retribuição de serviços políticos, com a correspondente componente económica, deixando de ser apenas um retrato da antiga fidalguia. Divulgaram-se então armas de costados com as representações das armas dos avós, quando não dos bisavós, trisavós, ou outros, inclusivamente, pelo nome e nem sempre pertencendo a essas linhagens (Genealogias). Em pouco tempo, o cartório de nobreza da corte de Lisboa abandonaria a relação com os anteriores elementos heráldicos de identificação, passando a emitir as chamadas armas novas, quase nada relacionadas com o pensamento subjacente às do passado. De facto, esta nova cultura desenvolveu-se um pouco por toda a Europa, em especial, na Alemanha. A questão das mercês novas foi objeto de vários trabalhos, mostrando, inclusivamente, a incongruência de algumas das soluções apontadas. Se algumas armas novas dificilmente encontrariam enquadramento na heráldica tradicional, outras há em relação às quais não se compreende a opção tomada. Na primeira situação, encontra-se, e.g., o caso de João Rodrigues Leitão (1843-1925) que, tendo tido larga atividade comercial em Cabinda e conseguindo estabelecer muito boas relações na área, foi um dos responsáveis pelo reconhecimento da presença portuguesa naquele território pelos membros da Conferência de Berlim, em 1883. Sendo agraciado com o título de visconde de Cacongo, em 1900 (Visconde de Cacongo), houve que encontrar elementos algo abstratos para as armas que lhe eram atribuídas: campo de prata com três faixas vermelhas carregadas com flores-de-lis, tendo como tenentes ou suportes um leão e um grifo. Por sua vez, uma das soluções pouco felizes, e logo no título escolhido, foi a encontrada para o visconde e depois conde do Canavial (Visconde e conde do Canavial), João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos (1829-1902), a quem se atribuiu um escudo partido, tendo, num lado, uma figura de mulher vestida de azul, sentada num rochedo sobre o mar, com um ramo de videira e um pão-de-açúcar em cada mão, em alusão à ilha da Madeira, e no outro, uma mão de prata com uma pena de oiro, numa alegoria às suas imensas publicações, não se tendo optado pelos elementos das inúmeras famílias de que descendia, o que é um paradoxo. A partir dos meados do séc. XVIII e depois no XIX, foram ainda utilizados inúmeros brasões de armas pelos elementos da feitoria britânica radicada no Funchal, especialmente em ex-líbris e em sepulturas do cemitério britânico, mostrando todas uma certa economia de meios e contenção, e que não eram comuns na Europa coeva. O brasão mais antigo será o de James Murdoch (1744-1806), seguindo-se o de Thomas Holloway (1751-1816), o de William Mills (1994-1834) e outros tantos. Entre os abundantes ex-líbris podemos citar os do Robert Page (1775-1829), com as armas circundadas pelas insígnias da Ordem Militar da Torre e Espada, de que era somente titular honorário, por despacho do Rio de Janeiro, de 15 de novembro de 1817, ou referir os de James Charles Duff, de cerca de 1860, cuja família chegou a deter o palacete da R. do Esmeraldo, através da firma Gordon and Duff e em cujo logradouro chegou a funcionar o primeiro cemitério britânico. Relativamente à heráldica eclesiástica, o seu uso não se deve ter estendido de imediato à Madeira. Os Franciscanos, que forneceram os primeiros quadros eclesiásticos durante as décadas iniciais do povoamento, não eram propensos a esse tipo de ostentação e os primeiros vigários paroquiais, nomeados pela Ordem de Cristo e que não provinham especialmente da nobreza senhorial portuguesa, também não. Os primeiros bispos da diocese do Funchal não se deslocaram pessoalmente ao território, pelo que, até aos meados do séc. XVI, não terá havido heráldica eclesiástica na Madeira. O primeiro prelado a viajar até à Ilha, D. João Lobo (?-1542), bispo titular de Tânger e com armas atribuídas por D. Manuel I, não parece ter tido especiais cuidados nesse campo, não tendo ficado qualquer referência sobre o tema na sua passagem pela Madeira, em meados de 1508. A base da heráldica eclesiástica comunga das normas que regem o desenho geral dos brasões, embora nela se use, prioritariamente, a forma oval para o escudo; assim, diferencia-se, em especial, nos ornamentos exteriores, seguindo os cânones e disposições da Igreja. Com efeito, não utiliza o conjunto elmo, paquife e virol, identificativo do exercício da função militar, mas sim o galero, chapéu eclesiástico por excelência, descendente dos chapéus de abas largas dos peregrinos, sendo a hierarquia definida pela ordem de borlas do mesmo. Pontualmente, podem usar coronéis de nobreza, como aconteceu com o 11.º bispo do Funchal, D. frei António Teles da Silva (c. 1610-1682), que se fez sepultar com coronel de conde, título que nunca teve. Mais tarde, sob o galero, apareceu uma cruz episcopal e, por vezes, um báculo; depois, ao longo do séc. XX, surgiu uma mitra a substituir o galero, podendo figurar sob ela uma cruz episcopal e um báculo cruzados. Os elementos do alto clero sempre assumiram armas próprias, em especial, após a divulgação das normas do Concílio de Trento, ganhando elas um sentido quase pessoal e afastando-se das regras específicas da heráldica familiar, nomeadamente, com o uso de brica e de diferenças. Se tal aspecto ainda aparece em 1509, quando João de Cró representa as armas do bispo D. João Lobo, marcando as armas dos Lobo com um castelo de ouro como diferença, por certo em alusão à praça-forte de Tânger, o mesmo não sucede depois na maioria das armas eclesiásticas, que assumem a diferença somente nos ornatos. Assim fez o bispo de Lamego D. Manuel de Noronha (c. 1491-1569), empregando as armas plenas dos Câmara, usadas pelo pai, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530) e pelo irmão mais velho, João Gonçalves da Câmara (III) (1489-1536). O seu isolamento em Lamego e o facto de ter estado em Roma levaram a que se intitulasse camareiro secreto do Papa Leão X (1475-1521), fazendo-se enterrar sob laje sepulcral com quatro ordens de borlas, insígnias de arcebispo que nunca foi. Determinadas liberdades ocorreram, depois, com outros prelados do Funchal. P. ex., D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) assumiu as armas dos apelidos dos quatro avós, da ilha de Santa Maria, Açores: Velho, Figueiredo, Cabral e Lemos. Como pormenor, nas várias representações das suas armas, mandou carregar as dos Figueiredo com uma merleta, que na Madeira era usada pelos Leme, de origem flamenga. Esta diferença, em princípio, identificativa do prelado Leme, manteve-se, no entanto, no quartel dos Figueiredo, quando mandou, num outro quartel, lavrar as armas dos Lemos, como aparecem na sua lápide tumular. Não se encontram levantados os brasões de armas dos bispos do Funchal, salvo a partir dos meados do séc. XIX; os iniciais terão que ser apurados a partir dos selos de armas dos primeiros prelados. Não constam, inclusivamente, da maior parte dos retratos mandados pintar para a sala do cabido da sé do Funchal, a partir de 1790, em princípio. Assim acontece com o de D. Jerónimo Barreto (1543-1589), que utilizou as armas dos Barreto na impressão das Constituições Synodaes de 1579, mas que não figura com elas no retrato que lhe mandaram pintar, muito depois. No entanto, tal não se verifica no retrato do seu sucessor, D. Luís Figueiredo de Lemos, que, tendo também mandado imprimir as suas insígnias nas Extravagantes, m 1601, surge com elas representado. Os retratos dos bispos do Funchal parecem ter tido inicio com o de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1703-1784), que o terá mandado pintar em Lisboa, por volta de 1757; na sequência deste, e usando-o vagamente como modelo, depois, foram sendo pintados os dos prelados anteriores. Parece que o cabido não era muito sensível aos aspectos heráldicos, embora ele próprio utilizasse selo com armas, pois só um número muito reduzido de retratos apresenta brasão de armas. Nos retratos dos bispos mais antigos, tal só acontece no de D. Luís Figueiredo de Lemos, talvez porque as respetivas armas se encontram na fachada da sua capela de S. Luís, no paço episcopal e na sua lápide sepulcral. No entanto, não figuram armas no retrato de D. frei António Teles da Silva (c. 1620-1682), que as havia mandado gravar na sua lápide tumular, na capela-mor da sé do Funchal, inclusivamente, encimadas por coronel de 11 pérolas, atributo dos condes. Esse espírito algo laico da sociedade madeirense parece ter sido corrente em muita da sociedade madeirense nos finais do séc. XVIII, pois, tendo sido pintados também os retratos de alguns antigos governadores e capitães-generais para o palácio de S. Lourenço, também ali existem poucos brasões de armas, o que é algo surpreendente, quando verificamos que todos os governadores, até ao liberalismo, eram obrigatoriamente oriundos da nobreza de corte, pelo que eram todos portadores de armas pessoais. Com efeito, recorreram a elas para autenticar a correspondência oficial, tendo passado a fazê-lo, depois, para a correspondência governamental da Madeira, com o selo das armas reais. A heráldica estendeu-se também às ordens religiosas, embora os exemplares existentes na Madeira sejam, em princípio, bastantes tardios. Quase todos os edifícios foram da responsabilidade da Fazenda Régia, pelo que, tanto o paço episcopal, datável de 1610 (Paço episcopal), como o colégio dos Jesuítas do Funchal, cujo elemento heráldico mais antigo, a antiga porta da cerca da R. dos Ferreiros, está datado de 1619, ostentam as armas reais. Chegaram até nós algumas armas de fé dos Franciscanos, entre elas, a pedra de armas do antigo convento do Funchal, datável de cerca de 1750 e hoje no jardim municipal, associada às armas reais, indicativo de que a campanha de obras em causa fora paga pela Fazenda Régia; ou, p. ex., as armas existentes no convento de S. Bernardino de Câmara de Lobos, provavelmente da campanha de 1763 (Convento de São Bernardino). A pedra de armas similar que está no portal da entrada do convento de S.ta Clara, datável, talvez, de data próxima a 1770, poder ter vindo do demolido convento masculino do Funchal, pois dali também vieram outros elementos, designadamente, painéis de azulejos. É ainda possível que tenha existido, como é vulgar no continente, loiça conventual decorada com armas religiosas, em S. Francisco do Funchal e em S.ta Clara, mas, até ao momento e nas escavações arqueológicas realizadas nessas áreas, embora haja milhares de fragmentos de faiança exumada, nada parece ter sido detetado. Nas coleções do paço episcopal, no entanto, existe uma bilha ou pote de faiança com as armas de fé dos Franciscanos que a tradição aponta como sendo proveniente do convento do Funchal. Das restantes ordens religiosas somente conhecemos as armas de fé dos Carmelitas, na fachada da igreja do recolhimento do Carmo, que devem ser dos finais do séc. XVIII, período em que toda a fachada da igreja foi remodelada. Os Jesuítas nunca usaram armas de fé, propriamente ditas, somente uma espécie de emblemática, que, aliás, copiaram do franciscano S. Bernardino de Siena: o trigrama cristológico IHS, que significa Jesum Habemus Socium (“temos Jesus como companheiro”), colocado sobre um sol, como aparece na fachada da igreja de S. João Evangelista do Funchal, logo abaixo das armas reais. Este símbolo ou monograma aparece, por vezes, acompanhado da legenda Ad Maiorem Dei Gloriam (“para a maior glória de Deus”), surgindo invertida, no teto da mesma igreja, em princípio, para ser lida do alto pelo Pai e não pelos filhos que demandam o interior do templo. Existem mais duas pedras com este símbolo ou emblema, uma delas encontra-se numa situação muito interessante: na porta do paço episcopal do Funchal, no acesso à antiga cerca, depois Lg. do Município. O facto de este bloco do paço ter sido mandado edificar pelo bispo jacobeu D. João do Nascimento (c. 1690-1753), que professara no convento franciscano de Varatojo e dirigira pessoalmente parte das obras do novo corpo edificado, levanta a hipótese de ter sido o próprio prelado a mandar colocar ali aquele emblema, precisamente quase perante a fachada da igreja dos Jesuítas, recuperando assim, para os Franciscanos, a sua antiga simbologia. A outra pedra hoje existente está no pequeno jardim do pátio da Assembleia Legislativa e foi encontrada na intervenção de reabilitação ali efetuada, em 1990, podendo ter vindo de obras realizadas no edifício do colégio dos Jesuítas pela antiga Fazenda Régia. As ilhas da Madeira e do Porto Santo possuem uma quantidade apreciável de brasões de armas reais portuguesas, uma vez que a grande maioria do património edificado, militar, civil e religioso foi construído sob a responsabilidade da Fazenda Régia. Tal é o caso da sé do Funchal e, depois, do baluarte de S. Lourenço e demais fortificações militares (Arquitetura militar e República). Mas, também, da maior parte das igrejas matrizes, cujos edifícios eram incumbência régia (Arquitetura religiosa), acontecendo o mesmo com o respetivo recheio, encontrando-se brasões de armas reais em grande parte dos retábulos das suas capelas-mores. O mesmo se verifica em outros edifícios: referimos antes o do paço episcopal, mas poderíamos apontar ainda os das misericórdias insulares. Este aspecto transitou, igualmente, para os edifícios das câmaras municipais, parte dos quais levantados também com verbas da Fazenda Régia, levando a que as armas reais rematassem grande número deles, inclusivamente, o da Câmara do Funchal, onde figurariam, juntamente com as armas da cidade, na fachada ou no interior. Do antigo edifício do Lg. da Sé que pertencera à casa comercial de D. Guiomar, onde a Câmara do Funchal se instalou, nos últimos anos do séc. XVIII, subsiste um importante brasão de armas nacional, assente em esfera armilar, datável, assim, de data próxima a 1819 ou 1820, quando se criou o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O imóvel foi demolido em 1916, dentro da reforma programada pelo arquiteto Ventura Terra (Urbanismo) e o brasão recolheu, então, ao palácio de S. Pedro (Palácios), onde se previa organizar um museu regional. O Funchal deve ter tido armas próprias ainda no séc. XV, mas só conhecemos exemplares da centúria seguinte. O mais antigo, em princípio, é o que está gravado na campainha de prata da Câmara, que serviria para chamar um empregado, p. ex., ou para mandar entrar os peticionários, e que se encontra datado de 1584. Apresenta cinco pães de açúcar dispostos em cruz e ladeados por duas canas-de-açúcar. Mais tarde, o poeta e intérprete dos navios estrangeiros Manuel Tomás (1585-1665), na sua Insulana, de 1635, refere cinco formas de açúcar, “cor de fogo”, colocadas num campo de prata e rodeadas por duas canas-de-açúcar (TOMÁS, 1635, 128), o que repete Henrique Henriques de Noronha, em 1722 (NORONHA, 1996, 43). As armas do Funchal voltam a surgir numa salva de prata dos inícios do séc. XVII, neste caso, encimadas por uma cruz de Cristo, e num areeiro de tinteiro do mesmo período. No séc. XVIII, começam a aparecer informações de se usar também um ramo de videira nas armas da cidade do Funchal, existindo uma pedra de armas, hoje no núcleo museológico da Prç. Colombo, com a data de 1758, onde já não figuram as formas de açúcar, mas pães, estando o escudo ladeado por uma cana e um ramo de videira e as armas encimadas por coronel de nobreza. Sendo os pães-de-açúcar representados em prata, não poderiam, heraldicamente, assentar igualmente em prata, devendo datar dessa época a definição do campo do escudo em verde, pelo que, tanto a cana-de-açúcar como o ramo de videira passaram para o enquadramento do escudo. A partir de então, começou a vigorar, assim, campo verde, com cinco pães de açúcar de prata ladeados por uma cana-de-açúcar e um ramo de videira, embora com pequenas variantes, pois podem aparecer duas canas-de-açúcar e as armas podem apresentar-se com coronel de nobreza e com coroa real. Na segunda metade do séc. XIX, entre 1860 e 1862, foi editada, por Inácio de Vilhena Barbosa, a vasta obra As Cidades e Villas da Monarchia Portugueza que teem Brasão d’Armas, onde as armas do Funchal aparecem ladeadas por uma cana-de-açúcar e um ramo de videira. Nesta publicação, figuram, igualmente, as armas da vila do Porto Santo, ostentando um dragoeiro, mas não as das restantes vilas madeirenses. Este conjunto de brasões teve reedição, em 1881, com um outro emolduramento, mas só conhecemos os dos referidos locais do arquipélago. A configuração das armas do Funchal manteve-se até à proposta do heraldista Afonso de Ornelas Cisneiros (1880-1944), que assinava por vezes “Affonso Dornellas”. Nos inícios da déc. de 30 do séc. XX, ele bateu-se pela reforma da heráldica municipal, conseguindo fazer aprovar, em 1935, armas novas para a Câmara Municipal do Funchal, bem ao gosto dito tradicionalista do Estado Novo. As armas mantiveram o campo verde, mas os pães de açúcar passaram a ouro e foram avivados com um espiralado a púrpura, cor do domínio eclesiástico, em memória do protagonismo da Diocese do Funchal nos Descobrimentos; foram ainda acrescentados quatro cachos de uvas de sua cor, carregados com as quinas de Portugal, tornando o conjunto, à primeira vista, perfeitamente irreconhecível. Não possuímos qualquer referência sobre as primeiras armas municipais de Machico, Santa Cruz, Calheta, Ponta do Sol e Porto Santo, sendo certo que todas as tiveram, pelo menos, na época manuelina. Tem havido alguma confusão com as armas de Machico, que são dadas, nos meados do séc. XX, como tendo tido a esfera armilar manuelina, o que seria inviável, na medida em que um brasão de armas é uma forma de identificar uma entidade pessoal ou coletiva e um rei não poderia ter os elementos das suas armas individuais a identificar uma câmara municipal. O mesmo se passa com a Câmara de Santa Cruz, que, por vezes, alega serem suas as armas reais que encimam a porta do edifício municipal, o que também não é possível. Os paços do concelho do Porto Santo são igualmente encimados pelas armas reais, mas elas indicam apenas que o edifício foi feito pelo mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), em 1774, e que as obras correram pela Fazenda Régia, um aspecto que referenciámos antes. A grande reforma da heráldica municipal iniciou-se com a circular de 14 abril de 1930 da Direção-geral da Administração Pública, que, tentando regularizar a situação, obrigava as comissões administrativas das câmaras municipais a legalizar os brasões segundo o parecer compulsório da secção de heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses. A situação do estabelecimento de selo, armas e bandeira de cada localidade veio a integrar, inclusivamente, através do dec. 31.095, de 31 de dezembro de 1940, o Código Administrativo, através dos artigos 14 e 48. Data desses anos a instituição do coroamento dos escudos municipais com coronéis de torres aparentes, hierarquizadas entre as cidades e as vilas com cinco e quatro torres, o que foi alargado às juntas de freguesia, em 1991, com três. Entretanto, também na RAM se procedeu a reforma idêntica, parte da qual assumida pelas autarquias, como aconteceu na vila de São Vicente, onde se aprovou uma raridade iconográfica, com o orago a empunhar uma grelha em vez de uma embarcação. Outras entidades terão tido instrumentos bélicos, como é o caso da Alfândega do Funchal e, provavelmente, de Santa Cruz, conhecendo-se dois selos de chumbo daquela, datáveis de 1520 a 1550, exumados nas escavações arqueológicas na Prç. Colombo, em 1989, com a esfera armilar envolta pela legenda “Alfândega do Funchal”, com o pormenor de estar rematada por um pequeno escudete com as quinas de Portugal e, do outro lado, ter as armas reais com coroa aberta. Pontualmente, os elementos heráldicos foram utilizados por instituições de ensino, como a Escola Afonso Domingues, em 1889, que veio a dar origem à Escola Industrial e Comercial do Funchal, e, em 1989, a UMa. Data dos meados e dos finais do séc. XIX o aparecimento, na Madeira, de um esboço de heráldica corporativa, assumida, entre outras, pelas sociedades agrícolas e, depois, pelos grémios, sindicatos e diversas associações. Com o advento do Estado Novo, o assunto veio a ser encarado noutros moldes, solicitando-se propostas a essas instituições, mas, na maior parte das vezes, impondo-se as soluções finais. Tal ocorreu nas associações mais caras ao governo, designadamente, nas casas do povo e dos pescadores, conhecendo-se o brasão da Casa do Povo de Santo António, no Funchal e o brasão da Camacha, em Santa Cruz, ambos apresentados em Lisboa na Exposição de Heráldica do Trabalho, por altura dos festejos do XX aniversário da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT). No ano seguinte, Franz Paul de Almeida Langhans editou o Manual de Heráldica Corporativa, onde figura ainda o da Casa dos Pescadores do Funchal. No catálogo da exposição dos 20 anos da FNAT, o organizador da mesma, Mário de Albuquerque, ao apresentar o brasão da casa do Povo da Camacha, comenta ter sido deixado em branco o brasão da Câmara Municipal de Santa Cruz por o concelho “não as ter ordenadas e aprovadas” (ALBUQUERQUE, 1955, 114). As unidades militares não terão usado brasões de armas próprios até ao séc. XX, devendo ter-se limitado a utilizar bandeiras com as armas reais e com uma legenda da unidade em questão. O mesmo não se terá passado com as unidades de ocupação britânicas, nos inícios do século anterior, de que se exumaram, nas escavações de emergência de 1992, efetuadas no pátio dos estudantes do antigo quartel do colégio dos Jesuítas, alguns botões de farda, indicativos de terem distintivos próprios, pelo menos, os correspondentes aos uniformes de artilharia. Ao longo desse século, as unidades portuguesas destacadas para a Madeira parecem ter utilizado somente uma emblemática com o número da força em causa, algarismos que foram ficando registados na calçada da antiga parada do mesmo quartel do colégio, hoje integrada na reitoria da UMa. Data das décs. de 80 e 90 a reforma geral heráldica do Exército, passando as unidades militares da Madeira a possuir brasão de armas próprio. Estas armas foram sendo adaptadas ao longo das várias reformas das forças em causa (Guarnição militar). A reforma estendeu-se, entretanto, às restantes forças militares da Marinha e da Força Aérea, depois, ao Comando-Chefe das Forças Armadas da RAM, tal como à Companhia Independente da Guarda Fiscal (Guarda Fiscal) e ao Comando da Polícia de Segurança Pública (Polícia de Segurança Pública). O assumir de armas próprias pela RAM foi feito de forma consistente, em 1991, quando a Região completou as armas do seu brasão. O arquipélago tinha constituído os seus símbolos próprios numa relação direta com as suas origens, assentando a bandeira e o escudo com campo de azul, uma pala de ouro e a mesma carregada com a cruz Ordem de Cristo. As insígnias foram discutidas, na generalidade, a 26 de julho, sendo aprovadas dois dias depois; a respetiva regulamentação foi publicada a 12 de setembro. Estas armas foram completadas, depois, por proposta de dois historiadores locais, decidindo-se a utilização do elmo de “boca-de-sapo”, geralmente atribuído a D. João I e existente no Museu Militar de Lisboa, dado ter sido este Rei quem determinou o povoamento do arquipélago; no entanto, em rigor, esse elmo será, muito mais provavelmente, aquele que veio do mosteiro da Batalha, em 1901, e que se encontrava no túmulo de D. João II. Assim, o elmo de ouro apresenta-se de frente e forrado a vermelho. Como timbre, optou-se por uma esfera armilar, pela sua ligação aos Descobrimentos e a D. Manuel I, existindo este elemento em inúmeros edifícios públicos do Funchal. Como suportes, dois lobos-marinhos, vivos e de sua cor, simbolizando a homenagem da Região aos únicos grandes mamíferos encontrados quando da chegada dos primeiros povoadores. Como divisa, inicialmente, foi proposto o seguinte fragmento de Os Lusíadas alusivo à Madeira: “Das que nós povoámos a primeira” (CARITA e SAINZ-TRUEVA, 1990, 103-107). Porém, nos inícios do ano seguinte, em reunião de Governo, veio a decidir-se pelo verso “Das ilhas as mais belas e livres” (Decreto Legislativo Regional n.º 11/91/M, de 24 de abril).   Rui Carita (atualizado a 12.10.2016)

Património História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

azevedo, álvaro rodrigues de

Álvaro Rodrigues de Azevedo foi um advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador, que viveu na Madeira durante cerca de 26 anos e que contribuiu para a valorização do panorama literário e cultural da Ilha. É autor de uma bibliografia diversificada e, do seu legado, destaca-se a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), de Gaspar Frutuoso, que inclui 30 extensas notas da sua autoria, que complementam e esclarecem alguns pontos acerca da história da Madeira. Palavras-chave: Madeira; literatura; jornalismo; história; historiografia; cultura. Álvaro Rodrigues de Azevedo foi advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador. Nasceu em Vila Franca de Xira, a 20 de março de 1825, e faleceu em Lisboa, a 6 de janeiro de 1898, dois meses antes de completar 73 anos. Apesar de ter nascido no continente, viveu na Madeira durante muitos anos e considerava a Ilha a sua pátria adotiva. Chamava-se José Rodrigues de Azevedo, mas terá mudado de nome quando ingressou na universidade. Era filho de António Plácido de Azevedo, natural de Benavente, e de Maria Amélia Ribeiro de Azevedo. Casou-se com Maria Justina, de quem teve geração. Concluiu o curso de Direito, em 1849, na Universidade de Coimbra, e foi para Lisboa, onde residiu durante cerca de seis anos. Seguiu posteriormente para a ilha da Madeira, onde exerceu funções de professor, ocupando uma vaga através de concurso público. Anteriormente, tinha tentado um lugar na magistratura judicial, mas não teve sucesso. Alguns anos mais tarde, na introdução do livro Esboço Crítico-Litterário (1866), explicava a razão pela qual não tinha conseguido aquele emprego e se considerava injustiçado. No Liceu do Funchal, teve a seu cargo a cadeira de Oratória, Poética e Literatura, que regeu durante 26 anos. Também no mesmo Liceu, foi professor de Português e Recitação e fez parte, como sócio e secretário, da Associação de Conferências, inaugurada a 9 de maio de 1856, com a finalidade de promover o desenvolvimento dos princípios da educação popular e de elaborar uma discussão com vista à escolha dos melhores métodos de ensino. A Associação de Conferências era composta por professores do ensino público e particular da capital do distrito da Madeira. Em 1856, por ocasião da epidemia de cólera (cólera-mórbus), que se propagou na Ilha, causando uma elevada taxa mortalidade, prestou relevantes serviços no desempenho do cargo de administrador do concelho do Funchal. A 24 de julho de 1856, escrevia no periódico A Discussão, revelando as medidas tomadas pela Câmara Municipal que, no sentido de tentar combater a epidemia, concedeu 150$000 reis mensais para que o administrador do concelho estabelecesse uma sopa económica, a ser distribuída, uma vez por dia, aos mais necessitados. Referia ainda que medidas idênticas tinham extinguido a cólera em algumas regiões continentais. Mencionando nomes de personalidades e respetivos donativos para a causa, reforçava a ideia da importância da alimentação no combate daquele flagelo e considerava que os mais afetados pela doença eram geralmente pobres, pois a principal causa do seu desenvolvimento era a fome e a miséria. Foi procurador à Junta Geral e membro do conselho de distrito e da comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, tendo recusado, em 1870, o cargo de secretário-geral do distrito e a comenda da Conceição. Foi ainda membro do Partido Reformista, participando ativamente na política madeirense e revelando aspirações liberais, sobretudo num período agitado da vida local, iniciado em 1868. Como jornalista, Álvaro Rodrigues de Azevedo colaborou na imprensa periódica madeirense, sendo redator nos jornais A Discussão, A Madeira, A Madeira Liberal, O Oriente do Funchal e Revista Judicial, e tendo redigido também alguns artigos no Diário de Notícias da Madeira. Publicou ainda o Almanak para a Ilha da Madeira para os anos de 1867 e de 1868. Os artigos publicados na imprensa foram de natureza variada, desde folhetins e artigos de crítica literária até assuntos de interesse social, relacionados com a vida no arquipélago e com o quotidiano dos madeirenses. Em janeiro de 1856, no periódico A Discussão, inicia a publicação de um artigo de crítica literária, sob o título “Bosquejo Histórico da Literatura Clássica Grega, Latina e Portuguesa, por A. Cardoso B. de Figueiredo”. Este texto saiu, naquele jornal, nos n.os 50, 51, 53 e 55, entre janeiro e março de 1856. Em 1866, edita um estudo em volume, intitulado Esboço Crítico-Litterário (do Bosquejo Histórico da Literatura Clássica, Grega, Latina e Portuguesa do Sr. A. Cardoso Borges de Figueiredo), no qual menciona o seu primeiro artigo crítico à obra daquele autor. No Diário de Notícias da Madeira, em 1877, nos n.os 181 a 183, publicou, como folhetim, um estudo histórico intitulado “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira”, identificando e descrevendo a casa de Cristóvão Colombo no Funchal. Álvaro Rodrigues de Azevedo é autor de uma vasta obra, de temas diversos. Ainda na juventude, escreveu um drama sob o título Miguel de Vasconcelos, que não chegou a ser editado. No entanto, este texto originou uma polémica na imprensa, em 1852, nos n.os 2924, 2927 e 2942 da Revolução de Setembro, com o bibliógrafo e publicista, Inocêncio Francisco da Silva, autor do Diccionario Bibliográphico Portuguez (1858). Na nota bibliográfica elaborada a Álvaro Rodrigues de Azevedo no referido Dicionário, Inocêncio Francisco da Silva afirma que terá confundido uma crítica desfavorável a outro texto com o mesmo título de Miguel de Vasconcelos, mas de outro autor, que terá lido nas Memórias do Conservatório Real de Lisboa, tomo II, 1843, p. 114. Tendo conhecimento do texto escrito por Azevedo, que este lhe havia dado a ler, anos antes, julgou tratar-se do mesmo texto, pois tinham o título idêntico, mas apenas um foi publicado nas Memórias do Conservatório, tendo outro ficado em arquivo. Este equívoco terá desencadeando a referida controvérsia, suscitando uma troca de correspondência entre ambos, através da imprensa periódica. Nas suas produções literárias encontram-se, entre outros, A Familia do Demerarista. Drama em um Acto (1859), uma crítica de costumes madeirenses, e Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869), no qual pretende desenvolver competências de produção linguística. Como escritor e historiador, produziu importantes trabalhos sobre o arquipélago da Madeira. O seu legado mais importante para a historiografia madeirense foi a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), redigido por Gaspar Frutuoso, em 1590, na ilha de S. Miguel, Açores. Álvaro Rodrigues de Azevedo redigiu 30 notas que acrescentou ao manuscrito, na parte que diz respeito à Madeira, com o intuito de esclarecer alguns pontos da história do arquipélago. O trabalho de investigação, de pesquisas e de consultas em livros, manuscritos ou outras fontes, que empreendeu para a elaboração das anotações presentes na edição de As Saudades da Terra (1873) contribuiu para o desenvolvimento do seu gosto pelo estudo da história da Madeira. Segundo Alberto Vieira, Álvaro Rodrigues de Azevedo “poderá ser considerado o pioneiro da historiografia hodierna na ilha. O seu trabalho publicado em anotação a As Saudades da Terra, em 1873, é modelar e surge como uma peça-chave para todos os que se debruçam sobre a história da ilha” (VIEIRA, 2007, 13). Álvaro Rodrigues de Azevedo confessou que teve muitas dificuldades na elaboração destas notas, que foi um processo moroso, fruto de muito trabalho de investigação, de dia, e de escrita, à noite, acumulado com a sua profissão. A obra, encetada em meados de 1870, demorou cerca de três anos a completar. Os trabalhos de investigação foram feitos nos arquivos da Ilha, nas Câmaras do Funchal, de Santa Cruz e de Machico, na Câmara Eclesiástica, na Câmara Militar e no cabido da Sé. Também foram relevantes os textos que reuniu de cronistas como Zurara, João de Barros e Damião de Góis, e os manuscritos do P.e Netto. Teófilo Braga, seu amigo, com quem se correspondia, teve uma grande influência no seu pensamento e na sua escrita, sendo através deste que tomou contacto com a teoria da história positivista, em voga na época. Contou ainda com a colaboração de João Joaquim de Freitas, bibliotecário da Câmara do Funchal, que o ajudou nos trabalhos de revisão textual. Apesar de todas as dificuldades que teve de ultrapassar, e da obra inédita que deu à estampa, em 1873, não obteve o devido valor e reconhecimento por parte dos seus coevos. Só muitos anos mais tarde é que o seu trabalho foi valorizado pelos eruditos madeirenses. Na verdade, esta obra pioneira na historiografia insular abriu caminho para que outros madeirenses começassem a interessar-se pelo estudo da sua história, do seu passado e das suas raízes. As suas anotações constituíram uma fonte importante para outros estudiosos, sobretudo para os intelectuais da primeira metade do séc. XX e para os homens da chamada Geração do Cenáculo, que recorreram com frequência às investigações do seu antecessor. Antes do trabalho feito nas anotações de Álvaro Rodrigues de Azevedo, os estudos relativos à história do arquipélago eram muito vagos, circunscrevendo-se a breves notas e estudos. A sua obra teve, assim, um grande impacto em estudiosos como, entre outros, Alberto Artur Sarmento, Fernando Augusto da Silva, Eduardo Pereira, Visconde do Porto da Cruz, sendo mesmo uma base de referência para a elaboração de obras como o Elucidário Madeirense (1921). De facto, são muitas as referências aos apontamentos e ao nome de Álvaro Rodrigues de Azevedo nos três volumes que compõem o Elucidário, tendo os seus autores confessado que “são as Saudades da Terra, e sobretudo as suas valiosas e abundantes notas, o mais rico, copioso e seguro repositório de elementos que possuímos para a história do nosso arquipélago” (SILVA e MENESES, vol. II, 1998, 126). Neste sentido, também outros autores terão consultado e referenciado as notas a Saudades da Terra, entre os quais o Visconde do Porto da Cruz, na elaboração dos três volumes de Notas e Comentários para a História Literária da Madeira (1949-1953). Ainda relativamente à história da Madeira, Álvaro Rodrigues de Azevedo foi o autor de uma série de artigos, nomeadamente, “Machico”, “Machim”, “Madeira” e “Maçonaria na Madeira”, publicados em 1882 no Dicionário Universal Português Ilustrado, dirigido por Fernandes Costa. Em 1880, trouxe à luz da publicidade o Romanceiro do Arquipélago da Madeira, um volume de 514 páginas, resultado das suas recolhas da tradição oral em diversas freguesias da Madeira e do Porto Santo, para o qual terão contribuído as influências de Teófilo Braga. As composições foram classificadas por géneros, a saber, “Histórias”, “Contos” e “Jogos”, os quais, por sua vez, foram divididos em espécies. Nas “Histórias”, Álvaro Rodrigues de Azevedo incluiu as seguintes espécies: “Romances ao divino”; “Romances profanos”; “Xácaras” e “Casos”. No género “Contos”, incluiu as seguintes espécies: “Contos de fadas”; “Contos alegóricos”; “Contos de meninos”; “Lengas-lengas” e “Perlengas infantis”. Finalmente, no género “Jogos”, contemplou os “Jogos pueris” e os “Jogos de adultos”. Terá coligido, igualmente, elementos para a elaboração do cancioneiro, que, porém, não chegou a publicar. No ano seguinte à publicação do Romanceiro, em janeiro de 1881, já jubilado, mas desiludido com a ingratidão dos madeirenses pelo seu trabalho dedicado à cultura e ao progresso da Ilha, acabou por retirar-se para Lisboa, onde fixou residência até ao fim da sua vida. Deixou uma coleção de apontamentos avulsos sobre a história, o romanceiro e o cancioneiro da Madeira, que foi coligindo ao longo do tempo que ali passou, os quais foram adquiridos pela Biblioteca Nacional de Lisboa, após a sua morte. No distrito de Lisboa, concelho de Oeiras e freguesia de Paço de Arcos, existe uma rua com o seu nome, a “Rua Álvaro Rodrigues de Azevedo”. Na Madeira, além da reedição das suas notas, em 2007, não houve, até 2016, qualquer homenagem a este homem que se empenhou pelo progresso da Ilha. Obras de Álvaro Rodrigues de Azevedo: O Comunismo. Discurso proferido na Aula de Practica Forense da Univ. de Coimbra, em Que Se Expõe e Combate esta Doutrina (1848); O Livro d’Um Democrata (1848); A Familia do Demerarista. Drama em Um Acto (1859); Esboço Crítico-Litterário (1866); Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869); As Saudades da Terra. Pelo Doutor Gaspar Fructuoso. História das Ilhas do Porto-Sancto, Madeira, Desertas e Selvagens. Manuscripto do Século XVI Annotado por Alvaro Rodrigues de Azevedo (1873); Corografia do Arquipélago da Madeira (1873); “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira” (1877); Romanceiro do Archipelago da Madeira (1880); Benavente: Estudo Histórico-Descritivo, Obra Póstuma, Continuada e Editada por Ruy d'Azevedo (1926).   Sílvia Gomes (atualizado a 14.12.2016)

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