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clero (católico)

A chegada de elementos do clero à Madeira é tão antiga quanto a dos (re)descobridores, que aportaram na Ilha em 1419. Assim, quando João Gonçalves Zarco empreende a viagem que o há de conduzir ao arquipélago, faz-se, naturalmente, acompanhar de frades franciscanos, que se encarregariam não só de prestar apoio aos navegantes, como de consagrar as terras descobertas e também de garantir o pastoreio espiritual dos primeiros povoadores. O acompanhamento de Franciscanos poder-se-á explicar não só pela proximidade destes em relação aos centros do poder – eram os confessores da família real, por exemplo – mas também pela sua experiência missionária e pela sua preparação intelectual. Quando os escudeiros do infante desembarcaram em Machico, a 2 de julho de 1419, traziam consigo dois frades da Ordem de S. Francisco, embora noutras versões do sucedido se refira a presença de outros dois Franciscanos encontrados no Porto Santo, onde se teriam abrigado após um naufrágio. A questão do número de frades que estariam com Zarco e Tristão no momento do desembarque não é consensual entre os vários autores que estudaram esta questão. Segundo Henrique Henriques de Noronha, nas suas Memorias Seculares e Ecclesiasticas para a Composição da Historia da Diocesi do Funchal, Zarco e Tristão teriam encontrado os dois religiosos no Porto Santo, onde os teriam recolhido e trazido para a Madeira, para celebrar a primeira missa. Esta versão não parece muito credível, pois supõe que a expedição teria partido de Lisboa sem nenhum membro do clero e só o acaso seria responsável pela presença dos frades na altura da chegada à Madeira. Jerónimo Dias Leite, por seu lado, nas suas Notas do Descobrimento da Ilha da Madeira, afirma que com o capitão vinham “frades […] da Ordem de S. Francisco”, e remete a recolha dos dois frades encontrados no Porto Santo para o momento da segunda viagem de Zarco à Madeira, afirmando que, no Porto Santo, os navegantes “vieram dar num porto da banda leste, onde acharam uns frades da Ordem de S. Francisco, que escaparam de um naufrágio”(LEITE, 1947, 11). Esta versão é, igualmente, corroborada por Frei Manuel da Esperança, na sua História Seráfica. Celebrada a primeira missa, segundo rezam as crónicas, num altar “sobre a mesa de Machim”, e benzida a terra “como quem desfazia encantamento ou (dela) tomava posse em nome de Deus” (FRUTUOSO, 2008, 35), Zarco e os companheiros prosseguiram o reconhecimento da Ilha, à qual voltam, mais tarde, acompanhados pelas famílias, a fim de dar início ao povoamento. A partir de 1425, data provável do início do povoamento, o acompanhamento espiritual dos habitantes esteve confiado a um reduzido número de frades, que celebravam os ofícios divinos numa pequena capela de S.ta Catarina, mandada construir por D. Constança Rodrigues, mulher de Zarco, e numa outra igreja, fundada pelo próprio capitão, um pouco mais para nascente – a de Nossa Senhora do Calhau. Em 1430, a presença franciscana na Ilha é reforçada com a chegada de Fr. Rogério, que levou consigo um conjunto de frades provenientes de “Espanha […] Castelhanos, galegos e biscainhos” (ESPERANÇA, 1666, II, 670), os quais se espalharam pela Ilha, vivendo uns retirados do mundo, em oração e penitência, enquanto outros optavam pela fixação junto dos poucos núcleos populacionais então existentes. A estes últimos se ficou a dever a fundação dos primeiros “gasalhados” franciscanos no Funchal: um, primitivo, “em casas de madeira defronte dos ilhéus” (ou seja, em Santa Catarina), e outro em São João Baptista “pela ribeira acima de Santa Catarina donde esses frades se agasalharam numas casas que apegado com a igreja fizeram” (LEITE, 1947, 14). Pouco tempo, depois, porém, em fins de 1433 ou inícios de 1434, chegou à Madeira Fr. João Gonçalves, da Ordem de Cristo, à qual, a 26 de setembro de 1433, fora confiada a posse do espiritual no arquipélago. A acompanhá-lo ia um capelão, com a incumbência de visitar e ministrar sacramentos aos núcleos populacionais mais afastados. Este novo rumo imprimido aos destinos religiosos na Ilha, que agora cometia à Ordem de Cristo privilégios que os Franciscanos tinham por seus, apoiados numa bula que os autorizava a administrar sacramentos enquanto para a Ilha não fosse clero secular, acabou por ditar a incompatibilidade entre os representantes das duas ordens e forçar à retirada provisória dos Franciscanos para Xabregas, em 1459. Ainda antes de se atingir essa rutura, porém, os Franciscanos alargaram a sua ação a novas zonas, como Câmara de Lobos, cujo crescimento populacional terá promovido a fixação de alguns frades naquela parte da Ilha, criando-se, deste modo, o embrião do que viria a ser o Convento de S. Bernardino. Estima-se que, por volta de 1440, vivessem em São João da Ribeira cerca de 12 religiosos, levando uma vida de pobreza e austeridade extremas. Esta comunidade não obteve, logo de início, licença apostólica, a qual só 10 anos depois, em 1450, lhe viria a ser atribuída, pela bula Iniunctum Nobis de Nicolau V. Depois de uma ausência de cinco anos, no reino, os Franciscanos acabaram por regressar à Madeira, sobretudo como resultado da morte do infante, em 1460, a passagem do mestrado da Ordem de Cristo para as mãos de seu sobrinho D. Fernando e de desentendimentos internos em Xabregas. Assim, em 1464, desembarcam na Ilha Fr. Rodrigo de Arruda e Fr. Jorge de Sousa, com a missão de restaurar os ermitérios, respetivamente, de São João da Ribeira e São Bernardino. Considerando o mau estado das instalações, o isolamento do sítio, de tal forma intenso que terá provocado o enforcamento de um frade “por induzimento do demónio, que sempre urde semelhantes teias” (FRUTUOSO, 2008, 66), e o crescimento que a vila do Funchal já apresentava, Fr. Rodrigo decidiu deslocar as instalações dos Franciscanos mais para o centro da povoação. A oportunidade surgiu com a possibilidade de uma permuta dos terrenos de São João por outros que, devido à influência de D. Beatriz, mãe de D. Manuel, foram cedidos por João Porto, administrador dos bens de Clara de Esteves, aos quais estava vinculada uma capela de S.ta Ana. Em 1473, graças aos bons ofícios de Luís Álvares da Costa, dado como fundador do novo Convento de S. Francisco, Fr. Rodrigo de Arruda pôde materializar o seu desejo, ainda que se não possa precisar a data em que as novas instalações passaram a ser habitadas. É, contudo, relativamente seguro afirmar que, em 1481, os frades já lá viviam e a igreja estava aberta ao culto, pois foi nela que se deu o milagre do desprendimento do braço direito de Cristo, que, ao soltar-se da cruz, ficou pendente ao longo do corpo, conforme testemunho de Helena Gonçalves, filha de Zarco, tendo a imagem onde ocorreu no milagre sido posteriormente exposta na Sé do Funchal. Por seu lado, Fr. Jorge de Sousa dirigiu-se a Câmara de Lobos, onde se dedicou à reconstrução e à ampliação do primitivo ermitério que, anos antes, fora parcialmente destruído por uma enchente da ribeira. Tornou-se seu guardião e contribuiu para o engrandecimento daquela casa, que se virá a celebrizar por nela ter vivido Fr. Pedro da Guarda, também conhecido como o “santo servo de Deus”, irmão leigo cujas virtudes e cuja fama de santidade o transformaram numa das mais veneradas figuras da Ilha. Alguns dos frades regressados tomaram, contudo, um rumo diferente e foram instalar-se em Machico, numa “palhoça repartida ao modo de celas” (NORONHA, 1996, 232) a qual, talvez pela precariedade da construção, foi destruída por uma aluvião no inverno de 1467. Para além das fundações referidas, no Funchal e em Câmara de Lobos, os Franciscanos vão continuar a expandir-se ao longo dos séculos seguintes com a criação de novas casas, nomeadamente em Santa Cruz, onde, graças a bens legados por Urbano Lomelino, se construirá o Convento de Nossa Senhora da Piedade, inaugurado em 1527. Na zona oeste, nascerão, na Ribeira Brava, o oratório da Porciúncula, fundado em 1581 e que nunca chegará a ter estatuto de convento, e na Calheta, em 1670, junto à ermida de S. Sebastião, um convento da mesma invocação, financiado por esmolas do povo. Como já se referiu, pouco tempo depois do início do povoamento do arquipélago, o espiritual das ilhas foi concedido à Ordem de Cristo, por doação que fez o Rei D. Duarte a seu irmão, o infante D. Henrique, oitavo mestre da dita Ordem. Foi, portanto, ao infante que se dirigiu João Gonçalves Zarco “logo que fundou a vila do Funchal e viu que não tinha ainda sacerdotes com jurisdição paroquial”, pedindo que os mandasse. O infante acedeu ao pedido e deu instruções a D. Fr. Pedro Vaz, Prior de Tomar, no sentido de colmatar aquela falta. O prior enviou “um sacerdote com título de vigário e outros com título de beneficiados; e da mesma sorte proveio com outros semelhantes a vila de Machico” (CORDEIRO, 1866, 129). Estes teriam, pois, sido os primeiros eclesiásticos indigitados para a Madeira, a seguir ao apontado por Pita Ferreira, e ao qual ninguém mais se refere. Dos nomes destes dois freires de Cristo apenas se sabe o que foi para Machico e que, segundo Jerónimo Dias Leite, se chamaria João Garcia (Vaz) (LEITE, 1947, 18); em relação ao do Funchal, aparecem referências, mas sempre como sendo o “vigário velho”, sem mais elementos que possibilitem a sua identificação (PEREIRA, 2001, 16). Por morte do infante D. Henrique, em 1460, o mestrado da Ordem de Cristo passara para seu sobrinho e herdeiro, o infante D. Fernando, a quem emissários de João Gonçalves Zarco apresentaram queixa da falta de clérigos em número suficiente para fazer face às necessidades dos já muitos habitantes da Ilha. A esta petição respondeu o infante, em agosto de 1461, dizendo que sabia que o seu antecessor não havia colocado mais que um capelão “em essa parte Da ylha […] porque entam agemte era pouca. E agora he em mays multiplicaçam asy que hũ soo capellam nom pode abramger atodollos logares õde convem serem Ditas myssas e Dados hos sacramemtos asy como Em Camara De lobos E en a Ribeyra brava e pomta Do soll E Do arco, nesto vos Respomdo que vos requeraees ao vigairo Da ylha que vos proveja Dos Ditos capellãees que vos necessarios forem”, acrescentando que da resposta do vigário lhe dessem notícia, a fim de sobre o assunto poder decidir (MELO, 1972, 11-12). Apesar de esta resposta se referir apenas à capitania do Funchal, é de crer que algo de semelhante tivesse ocorrido com a de Machico, o que demonstra a crescente complexidade da administração eclesiástica da Ilha, provocada pelo constante aumento populacional, o qual, por sua vez, radicava no ciclo de riqueza insular proveniente do açúcar. A capitania do Porto Santo não é referida na documentação coeva, mas é de supor que andasse a par com o sucedido nas outras duas, ou seja, que tivesse sido dotada de vigário. Segundo os Anais do Porto Santo, o primeiro sacerdote conhecido daquela ilha seria Nuno Vaz, que paroquiou na ilha a partir de 1572 (Anais…, 1989, 20). No entanto, a documentação do tombo da Câmara do Funchal menciona um Vasco Afonso, “vigayro de Santa Maria da Compçeçam da ylha do Porto Samto e beneficiado na ygreja mayor da villa do Fumchall e ouvydor por nos [D. Diogo] em a jurdiçam de Machiquuo e Porto Sancto e bem asy juiz dos resydos”, datada de 1 de fevereiro de 1500 (MELO, 1973, XVII, 397-399). Em 1472, e na sequência da criação do bispado de Tânger, dá-se o bem conhecido episódio da pretensão de D. Nuno Álvares, prelado da nova Diocese, à apropriação do arquipélago da Madeira para sobre o mesmo exercer igualmente a sua jurisdição, intenção prontamente rejeitada por D. Prior de Tomar. Àquela atitude de repúdio se juntou D. Beatriz, tutora do duque D. Diogo, menor e mestre da Ordem de Cristo. Embora sem outras consequências, o referido episódio serviu para chamar a atenção para o estado de relativo abandono espiritual em que se encontrava o arquipélago, pelo que, pouco depois, a mesma D. Beatriz se apressava a enviar carta, com data de 30 de outubro de 1476, na qual apresentava como vigário, Fr. Nuno Gonçalves, capelão de D. Diogo, antigo criado de seu marido, o duque D. Fernando, pessoa da sua confiança pessoal. Apesar das recomendações que trazia, Fr. Nuno Gonçalves não se deu bem com a população da Ilha, que em breve instava junto de D. Beatriz para que mandasse recolher o vigário ao reino, o que veio a acontecer quatro anos depois, em 1485, por intervenção de D. João II. Atendendo a uns “apontamentos” apresentados a D. Manuel, duque de Beja e mestre da Ordem de Cristo, a 22 de março de 1485, por procuradores do Funchal, que indicavam que “frey Nuno Gonçalvez vygairo que hora foy na dita ilha veeo caa chamado e lhe foy depois enviado outro de que atee agora sam contentes” (PEREIRA, 2001, 17), pode pôr-se a questão de, imediatamente a seguir a Fr. Nuno Gonçalves, ter havido novo vigário. A existência dessa personagem volta a ser referida em outra carta de D. Manuel, de 17 de julho de 1488, quando, a propósito da instituição de um mosteiro de freiras, se declara que o mesmo pode ser edificado ou em Santa Maria de Cima, ou em “Santa Maria do Calhau ou em Sam Sebastião, omde mjelhor parecer ao vigayro e ao capitam ou a vós” (PEREIRA, ibid., 18). Na realidade, a presença de um vigário interino entre Nuno Gonçalves e Nuno Cão, chamado Vasco Afonso, provavelmente o vigário do Porto Santo atrás referido, está atestada nas vereações da Câmara do Funchal, onde é mencionado a 25 de julho de 1488. Insofismável é a nomeação de Fr. Nuno Cão, mestre em Teologia, e membro na Ordem de Cristo, indicado por carta de D. Manuel com data de 30 de março de 1490, documento que igualmente estabelece os rendimentos do nomeado. Este Fr. Nuno Cão veio exercer funções de vigário na igreja de S.ta Maria, também conhecida por Nossa Senhora do Calhau, mas a sua longa permanência na Madeira (até 1431) e as transformações porque passou a administração religiosa do território, elevado à condição de bispado em 1514, acabaram por transformá-lo em primeiro deão da Catedral. Com efeito, com a constituição do cabido, Fr. Nuno Cão viu-se promovido, ficando os 3 beneficiados mais antigos com as posições de arcediago, chantre e tesoureiro, sendo os restantes 12 investidos na dignidade de cónegos. Enquanto vigário, Fr. Nuno Cão acompanhou a primeira visita que um bispo fez pessoalmente à Ilha. Tratou-se de D. João Lobo que, em 1508, se deslocou à madeira para crismar, ministrar ordens e benzer a a futura Sé da Diocese. Em 1516, já como deão, Fr. Nuno Cão surge a assessorar outro bispo, D. Duarte de Dume, que foi à Madeira enviado pelo bispo e vigário da Ordem de Cristo, D. Diogo Pinheiro, com a missão de, mais uma vez, crismar e ordenar, além de consagrar a Sé e benzer a igreja de S. Roque. Esta referência à igreja de S. Roque remete para a problemática da criação das primeiras paróquias, que atestam a progressiva complexificação das estruturas eclesiásticas no arquipélago. As paróquias A paróquia configura-se como a unidade mais básica da divisão eclesiástica de um território. Esta demarcação administrativa caracteriza-se por incluir um determinado conglomerado de fiéis – residentes no espaço delimitado –, encontrando-se subordinada ao governo de um pároco e de uma mitra e possuindo uma sede dedicada a um orago singular onde se celebram os ofícios divinos e se administram os sacramentos. Denota-se, claramente, o carácter geográfico desta definição, que delimita parcelas distintas de um espaço e lhes atribui uma administração específica; porém, a paróquia extrapolava a territorialidade e possuía importantes competências religiosas, socioeconómicas e culturais (Paróquias). A Diocese do Funchal foi evoluindo e foi-se complexificando. A sua divisão em espaços jurisdicionais mais reduzidos, através do incremento do número de paróquias, é disso um sintoma. Todas estas circunscrições tiveram origem em ermidas ou capelas. Instituídas pelos primeiros povoadores ou pelos mais possidentes, as capelas que constituíram um polo aglomerador de população com condições económicas favoráveis e algum prestígio, foram elevadas à categoria paroquial. Antes de haver paróquias, os Franciscanos celebravam missa nas capelas existentes, como se disse. A carta do infante D. Fernando, de 3 de agosto de 1461, é deveras clara em relação ao serviço eclesiástico, ao referir que “hũ soo capellam nom pode abramger atodollos logares õde convem serem Ditas myssas e Dados hos sacramemtos” (MELO, 1972, 12). Quer isto dizer que era um capelão, e não um vigário, um pároco ou um reitor – tudo designações utilizadas normalmente para o presbítero responsável por uma paróquia – que oficiava os serviços em diversos sítios da Ilha, nomeadamente em Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol e no Arco da Calheta. Deduz-se, então, que este serviria nas principais capelas dos ditos sítios e que uma análoga situação deveria ocorrer na capitania de Machico e na do Porto Santo. Logo, o clero seria itinerante, sem obrigatoriedade de residência, pelo que não acompanharia os crentes diariamente. Esta ausência de um eclesiástico exclusivo para cada um dos sítios referidos parece indicar que estes locais ainda não constituíam paróquias, mesmo que a residência só fosse obrigatória após o Concílio de Trento (1545-1563). Apenas a partir de 1466 se tem a certeza da criação de três paróquias na Madeira, correspondentes às vilas que são sedes de capitania. Estas paróquias iniciais foram criadas ex nihilo, ou seja, originaram-se de ermidas já erigidas, mas num espaço sem divisões eclesiásticas pré-existentes. Por seu turno, as seguintes serão fundadas por desmembramento, desintegrando-se de uma paróquia já existente, como acontece com a maioria das paróquias reinóis e europeias. Cada uma destas fases – ermidas, paróquias ex nihilo e paróquias por desmembramento – correspondem à gestão por entidades distintas, sendo quase certo que as primeiras foram administradas pelos seus fundadores, ainda que sob a tutela da Ordem de Cristo. Em 1474, foi pedido a D. Beatriz, regente da Ordem de Cristo por seu filho D. Diogo, que expulsasse uns “galegos” que ocuparam umas terras em Santa Maria do Anjos, perto da Ponta do Sol. Nesse espaço ocorreram “eujdentes mjlagres” que geraram uma devoção popular; e os moradores das redondezas pretendiam que se erigisse uma ermida em honra de Nossa Senhora. A duquesa acedeu ao pedido e procedeu à expropriação da terra, tendo ordenado que esta fosse desimpedida para se construir a ermida e “fazer latada E pumar E Seu cercoyto comujnhauell” para abastecer o ermitão. A restante terra poderia permanecer nas mãos dos donos, desde que se não trouxesse para elas cabras, ovelhas e porcos, que destruíssem as culturas (MELO, 1972, 75). Apesar de este sítio nunca ter chegado à categoria paroquial, é um exemplo de um dos motivos para se erigir ermidas. Todavia, é de crer que as capelas iniciais foram fundadas devido à falta de lugares de culto num novo espaço povoado e não graças a legados pios ou situações milagrosas, como aconteceu neste caso. No que concerne à constituição de paróquias ex nihilo, Fernando Jasmins Pereira defende que as três primeiras teriam sido fundadas entre 1433 e 1460. Ainda que nenhum documento o prove, poder-se-ia sustentar que o estado das estruturas camarárias, económicas e demográficas implicaria a existência de uma paróquia ou uma proto-paróquia que assegurasse o serviço religioso, embora só se consiga obter a certeza em 1466. Numa resposta a diversos apontamentos, o infante D. Fernando refere por duas vezes o título de vigário. Em primeiro lugar para descartar a obrigatoriedade de o “vigayro”, provavelmente o do Funchal, dizer missas além das de domingo e dias de festas, por não ser sua obrigação nem ser o costume do reino. Posteriormente, referindo-se à “vigaria Do machico”, estipula que o vigário possa colocar outro que o substitua no canto, desde que seja “home honesto E De booa vida” (MELO, 1972, 39-40). A utilização destes vocábulos confirma a existência de uma paróquia em Machico e, por semelhança, no Funchal e no Porto Santo. Por último, as paróquias constituídas por desmembramento são essencialmente da responsabilidade da Coroa e a da Igreja, pela mão do bispo. As últimas constituídas no séc. XV foram ainda criações da Ordem de Cristo; porém, na sua maioria, as paróquias foram fundadas pelo grão-mestre da Ordem, como monarca ou por decisão do prelado, ainda que este consultasse o Rei. Um bom exemplo deste caso é a paróquia de S. Pedro e as sucedâneas de S. Roque e S. Martinho. Criada em 1566, a paróquia de S. Pedro pretendia acolher os fiéis da enorme paróquia da Sé, que não conseguia acudir a todos os paroquianos. Assim, após a aprovação régia, de 20 de julho de 1566, o bispo D. Jorge de Lemos fundou a paróquia de S. Pedro, desmembrando-a da da Sé e afirmando querer “que nela se ministrem os santos sacramentos como em cada uma das outras igrejas curadas do dito bispado e que haja na dita igreja cura d'almas que ministre os ditos sacramentos aos fregueses dela” (ANTT, CSF, mç. 2, doc. 14). Porém, esta divisão também gerou uma paróquia de grande dimensão, cujo crescimento e dispersão populacional impediam um correto acompanhamento espiritual. Logo em 1579, D. Jerónimo Barreto, extinguiu, pois, a paróquia de S. Pedro, dividindo-a em duas, sediadas nas ermidas de S. Roque e de S. Martinho. Anos mais tarde, em 1588, D. Luís de Figueiredo e Lemos, em visitação à paróquia da Sé, declarou que esta era muito grande e populosa, necessitando de a dividir novamente. Constitui-se, então, novamente a paróquia de S. Pedro, perfazendo o total de oito paróquias na cidade do Funchal, no séc. XVI: S.ta Maria Maior/do Calhau, S.to António, Sé, S. Pedro, Nossa Senhora das Neves/S. Gonçalo, Nossa Senhora do Monte, S. Martinho e S. Roque. Os estudiosos são unânimes no que concerne ao número de paróquias criadas no séc. XV: seriam 10 e coincidiriam com os aglomerados populacionais e as fazendas povoadas primordiais, escolhidas pelos povoadores para fixar residência. O que tem feito divergir os historiadores são as datas de elevação a paróquias. Como se demonstrou, só há a certeza da existência de três paróquias, cada uma na sede de capitania, no ano de 1466. As restantes sete – Calheta, Câmara de Lobos, Caniço, Ponta de Sol, Ribeira Brava, Santa Cruz e São Vicente – só terão sido criadas posteriormente a 1485. A 22 de março desse ano, D. Manuel responde a alguns apontamentos que lhe tinham sido feitos, esclarecendo, num deles, os vencimentos dos vigários da ilha da Madeira: 50.000 reais anuais para o vigário do Funchal, 20.000 para o vigário de Machico e 8000 reais para cada um dos nove beneficiados existentes nas duas paróquias. O documento não refere outra paróquia na Ilha. Assim, é de presumir que as restantes terão sido constituídas entre 1485 e o início do séc. XVI. Já a centúria de quinhentos foi uma das mais profícuas no que respeita à fundação de paróquias. O aumento populacional e a mobilidade dessa população obrigaram à criação de 26 novas demarcações, todas desmembradas de outras paróquias maiores: Água de Pena, Arco da Calheta, Canhas, Caniçal, Estreito da Calheta, Estreito de Câmara de Lobos, Faial, Fajã da Ovelha, Gaula, Madalena do Mar, Nossa Senhora do Monte, Nossa Senhora das Neves/S. Gonçalo, Ponta Delgada, Ponta do Pargo, Porto da Cruz, Porto Moniz, S. Jorge, S. Martinho, S. Pedro. S. Roque, S.ta Maria Maior, Santana, S.to António, Seixal e Tabúa. Enquanto no séc. XVI as fundações decorreram ao longo do tempo, na centúria seguinte só em 1680 é que se constituíram novas paróquias. Nesse ano, denotando o “descómodo” dos paroquianos em se deslocarem às igrejas paroquiais, D. Fr. António Teles da Silva constituiu cinco novas freguesias: Arco de S. Jorge, Camacha, Prazeres, S.ta Luzia e Serra de Água (ANTT, CSF, mç. 2, doc. 27). Já o Paul do Mar deverá ter sido fundado nos finais desse século ou no dealbar do seguinte, ainda que se desconheça a data exata. Será, no entanto, necessário esperar mais de um século para que se eleve uma nova paróquia, no caso a do Curral das Freiras, que ganhou independência em 1790. De igual modo, outras ermidas viram a sua categoria elevada no séc. XIX, ainda que tenham sido curatos, mais ou menos independentes na centúria de setecentos. Assim, ganharam autonomia o curato de Boaventura, em 1836, e os curatos do Jardim do Mar, S. Roque do Faial e S.to António da Serra, em 1848; a Quinta Grande foi curato desde 1820 e elevada a paróquia em 1848 e a Ribeira da Janela foi constituída como curato em 1733 e ter-se-á autonomizado no século seguinte, ainda que se desconheça quando. Novamente, muito tempo depois das constituições anteriores, em 1954, a ermida do Imaculado Coração de Maria ascendeu a paróquia. Por decreto de 24 novembro de 1960, o bispo D. Fr. David de Sousa procurou solucionar a falta de efetivos clericais, tentando, segundo diz Eduardo Pereira, “suprir a reduzida existência de clero e providenciar o preenchimento das igrejas novas” (PEREIRA, 1989, II, 430), pelo que, a 1 de janeiro de 1961, 51 novas paróquias foram constituídas. Sete anos mais tarde, elevou-se a ermida da Abegoaria, com o que se passou a um total de 102 paróquias, divididas nos 5 arciprestados existentes: Calheta, Câmara de Lobos, Funchal, S.ta Cruz e S. Jorge. Em 2015, o número destas circunscrições era menor: um total de 96, distribuídas pelos 7 arciprestados existentes: Calheta (13 paróquias), Câmara de Lobos (8), Funchal (26), Machico e S.ta Cruz (18), Ribeira Brava e Ponta do Sol (12), Santana (7) e de S. Vicente e Porto Moniz (12). É necessário distinguir algumas destas paróquias de acordo com a sua hierarquia e os elementos clericais presentes no passado; todas as circunscrições citadas são paróquias, embora, como se disse, tenham começado por ser capelas, com o seu capelão pessoal. Este clérigo não era efetivo nestes sítios, podendo, no passado, mudar anualmente. Nas paróquias, o pároco tem uma função importante, pois ele é o pastor e governa a paróquia. Em algumas, criaram-se curatos, entregues a curas, responsáveis por coadjuvar o pároco, celebrando os ofícios na sede paroquial ou em ermidas específicas distantes da sede. As paróquias de maior importância, essencialmente devido ao número de paroquianos que nelas assistia à missa, foram constituídas em colegiadas. Estas colegiadas eram compostas pelo pároco e por um conjunto, em número variável, de ajudantes, designados, quer pelo título de beneficiados ou raçoeiros, quer pelo ofício exercido, como é o caso de tesoureiro ou organista. Assim, foram colegiadas as paróquia da Calheta, de Câmara de Lobos, de Machico, da Ponta do Sol, do Porto Santo, da Ribeira Brava, de S. Pedro, de S.ta Cruz e de S.ta Maria Maior. Como se disse, à cabeça desta circunscrição religiosa encontrava-se um pároco, que estava encarregado da cura de almas – cura animarum – e da administração da paróquia. Para os crentes, o pároco era também um dos símbolos da religião que professavam. A presença deste no quotidiano das populações fazia-se pela celebração dos ofícios divinos, pela administração dos sacramentos e pelo conhecimento e registo das faltas e pecados dos paroquianos. Para além destas, ao ministro religioso estavam confiadas outras funções importantes: era o difusor da cultura, o transmissor de conhecimento e o modelador de comportamentos, pelo que a sua permanência na vida pública e política fez dele uma personalidade influente e respeitada no seio da comunidade. Nos começos do séc. XXI, registou-se na Madeira a presença de congregações religiosas masculinas não só no âmbito dos respetivos Institutos, mas também à frente de paróquias, nomeadamente da de Fátima, entregue aos Salesianos, das da Ribeira Brava, S. João e S. Paulo, e Serra de Água atribuídas aos Dehonianos e, por fim, a da Sagrada Família, entregue aos Franciscanos Menores. A paróquia dos Romeiros, no Monte, ainda que oficialmente não esteja nas mãos dos Dehonianos, tem os serviços religiosos assegurados por aquela congregação. Formação A formação do clero, embora encarada de modo mais formal após a determinação tridentina de instituição dos seminários, existia e importava muito antes disso. Em tempos medievais, as escolas que se responsabilizavam pela aprendizagem dos eclesiásticos eram as das sés catedrais, ou as monacais, nas quais os estudantes se familiarizavam com o trivium – gramática, retórica e dialética –, seguido do quadrivium – aritmética, geometria, astronomia e música –, matérias que, no seu conjunto, constituíam as chamadas artes liberais. Para além destes conhecimentos, exigia-se ainda aos candidatos à carreira sacerdotal que dominassem outras competências, nomeadamente as relativas à liturgia, à parenética e catequética, que os tornariam aptos à divulgação dos mandamentos da lei de Deus, das sete obras de misericórdia, dos sete pecados capitais, das virtudes teologais, dos livros litúrgicos a seguir, dos dias de jejum e das festas da Igreja. Indicações que remetem para este currículo encontram-se, por exemplo, nas determinações de um sínodo realizado em Braga, em 1281, onde se estatuía que todo o clérigo devia saber falar latim, e proibia que fosse incapaz nas áreas do canto e da música. Em 1380, com a fundação da Faculdade de Teologia na Universidade de Coimbra, dá-se mais um passo importante na senda da formação clerical, ainda que ao dispor de muito poucos, atentos os custos da permanência na cidade universitária. Em relação ao clero residente na Madeira nos tempos do povoamento e seguintes, na ausência de quaisquer informações concretas sobre o seu processo formativo, concluiu-se que era realizado nas Ordens a que pertenciam os primeiros eclesiásticos: de Cristo e de S. Francisco, às quais ficava cometida a função de passar aos futuros sacerdotes as habilitações necessárias, ainda que de forma bastante experiencial. A corroborar o papel dos Franciscanos na divulgação do conhecimento, diz a História Seráfica que no convento de S. Francisco do Funchal havia sempre “perto de cinquenta frades muito letrados” (COSTA, 1958, X, 153), o que os tornaria formadores credenciados. Em fins do séc. XV, mais concretamente cerca de 1490, quando foi provido Fr. Nuno Cão como vigário de S.ta Maria do Calhau, refere-se a ação de João Gonçalves, filho de Zarco e 2.º capitão do donatário, que estaria muito empenhado em fazer “prosperar a sua ilha com religiosos e clérigos letrados”, razão pela qual apelara para o Rei no sentido de prover a vigararia vaga com “clérigo letrado”, o que se materializaria com a nomeação do já referido Nuno Cão (LEITE, 1947, 26). É aqui bastante evidente a preocupação com as “letras” do clero, e com a importância que se lhes atribuía para o progresso da terra. Em princípios do séc. XVI, começam a surgir outras indicações respeitantes a procedimentos de cariz formativo, nomeadamente com recurso a pregadores, um dos quais é referido por D. Manuel I que, em carta com data de 26 de julho de 1512, informava da chegada à Madeira de Fr. Afonso, mestre em Teologia “de que podereis receber doutrina de suas letras e ciência” (MELO, 1974, 355). A 15 de janeiro de 1513, noutra missiva expedida pelo Rei e destinada a Fr. Nuno Cão, recomendava-se ao vigário que examinasse os candidatos ao estado clerical, tendo em conta se sabiam “algum latim” e se eram de vida honesta e bons costumes, pois só assim se poderia garantir a cedência de benefícios aos mais idóneos (MELO, 1999, 15-16). Com a passagem do Funchal à categoria de bispado, constituiu-se o cabido da Catedral, o qual incluía, a princípio, apenas quatro dignidades – deão, tesoureiro, chantre e arcediago –, mas, ainda em 1514, esse corpo dignitário foi acrescentado com o cargo de mestre-escola, cuja função era ministrar a educação religiosa aos clérigos. De um pouco mais tarde, com data de 5 de janeiro de 1516, encontra-se um novo documento proveniente das vereações de Santa Cruz, o qual informa que Fr. João, Franciscano e pregador, estava na disposição de ir pregar à dita vila, pelo que a vereação da Câmara, interessada, assumia as despesas com a deslocação e o incitava a que fosse, com os “seus livros” (COSTA, 2001, 24). De proveniência régia e, mais uma vez, destinada a Fr. Nuno Cão surge, a 20 de outubro de 1520, uma nova carta, em que o Rei recomenda que “aqueles cónegos e raçoeiros que forem aptos e bem assim os moços de coro que nela servem os façais aprender canto de orgão, para aos domingos e festas oficiarem as missas com canto de orgão” (ARM, APEF, doc. 104, fls. 155v.-156). Como se pode ver, apesar da inexistência de estruturas especificamente destinadas à formação clerical, esta era uma preocupação presente no espírito dos responsáveis, e ia sendo prodigalizada conforme as possibilidades. Com a ida para a Ilha do primeiro bispo residente, D. Fr. Jorge de Lemos (1556-1569), foram dados passos de relevo no tocante à educação do clero. O primeiro foi de imediato visível na determinação episcopal de conseguir renda para um mestre de capela que o bispo levara consigo do reino, a quem encarregou de proceder à reforma do coro da Catedral, e da formação dos moços de coro e outros clérigos que deviam abrilhantar as cerimónias com cânticos. O segundo operou-se quando o bispo, em uma deslocação que fez à corte, logrou obter de D. Sebastião a carta régia, datada de 20 de setembro de 1566, que autorizava a criação do Seminário da Diocese. A instituição dos seminários fora determinada já perto do fim do Concílio de Trento (1545-1563), pelo decreto Cum adolescentes aetas, datado de 15 de julho de 1563, o qual defendia a fundação daquelas instituições com o fim expresso de promover a formação de um clero mais competente e apetrechado para combater a difusão dos ideais protestantes, e construir uma comunidade de católicos mais esclarecida e consistente (Seminário). Fruto da receção excecionalmente favorável dos decretos tridentinos em Portugal, um pouco por todo o reino se foram sucedendo iniciativas para a fundação de seminários, e a Madeira seguiu a tendência nacional, embora à intenção de D. Jorge de Lemos se não tenha seguido de imediato a concretização do propósito. De facto, só em tempo de D. Jerónimo Barreto foi possível passar das intenções aos factos, o que veio a acontecer com a real instalação do Seminário, sobre cuja data exata não há certezas, sendo, porém, legítimo colocá-la à volta de 1575. Segundo Noronha, o “colégio” foi instalado em casas de aluguer, tendo-lhe sido fixado o número de “dez colegiais” mas sem “estatuto nem regimento” (NORONHA, 1996, 304). Continuando com Noronha, fica-se a saber que o Seminário só teve instalações próprias com o bispo seguinte, D. Luís de Figueiredo Lemos, mas foi preciso esperar por D. José de Sousa de Castelo Branco para surgir o primeiro regimento, com data de 3 de janeiro de 1702, que determinava os mesmos 10 estudantes e um número de porcionistas designado pelo bispo. Quanto ao perfil dos jovens alunos, pretendia-se que tivessem de 12 até 18 anos, fossem de sangue puro e se desse precedência aos mais nobres, ao contrário do que estipulava o concílio, que mandava preferir os mais pobres (O Sacrossanto…, II, 199). O plano de estudos que lhes estava destinado estendia-se por sete anos, sendo que, nos quatro iniciais, se ocupariam da aprendizagem de latim e solfa (i.e., solfejo), enquanto nos últimos três estudariam moral ou filosofia. A partir de 1570, a Madeira beneficiou da presença de Jesuítas que, logo a 6 de maio desse ano – ainda antes, portanto, de o seminário se encontrar em funcionamento –, iniciaram as suas aulas de latim e gramática. Nessa altura, ministrava-se também a “exposição de casos de consciência”, a cargo do P.e Pedro Quaresma, (SOUSA, 2003, 8), matéria que tinha por objetivo um maior esclarecimento do clero. Pouco depois, em inícios do séc. XVII, nas aulas do pátio do colégio da Companhia de Jesus, já havia lições de teologia e moral para os clérigos, e de latim e retórica para os leigos (FRUTUOSO, 2008, 294). Muito antes de todas estas estruturas estarem disponíveis em território madeirense, havia jovens, sobretudo filhos de famílias ricas, que conseguiam ir fazer os seus estudos no exterior, quer em Coimbra, quer no estrangeiro, embora nem todos se destinassem à vida religiosa. Entre os que se ausentaram, encontram-se os que demandaram Paris de 1520 a 1550, recenseados por Nuno Porto num total de 20, a maior parte dos quais não voltou sequer a Portugal. Dos que regressaram, porém, embora se tenham quedado pelo continente, há que destacar os nomes de Luís e Martim Gonçalves da Câmara, Jesuítas e, respetivamente, precetor e escrivão da puridade de D. Sebastião, que, apesar de não terem feito repercutir a sua formação diretamente sobre a Ilha, se tornaram figuras de incontornável importância no panorama nacional. Outro filho da terra que estudou em Paris e se revestiu de grande destaque foi o P.e Leão Henriques, que alcançou a posição de provincial da Companhia de Jesus (PORTO, 1953, 16-19). Em “Madeirenses na Universidade de Salamanca…”, Rui Carita recolheu os nomes dos estudantes madeirenses que estiveram matriculados em Salamanca entre 1580 e 1640, em número de 21, tendo-se perdido o rasto de muitos deles. De alguns, porém, sabe-se que antes de saírem para Salamanca receberam ordens no Funchal e, num caso, registou-se uma importante carreira eclesiástica no regresso. Alguns exemplos: António Lopes da Fonseca, que entre 1592 e 1600 foi aluno da universidade espanhola, recebeu ordens menores em 1588, após o que terá partido para Salamanca, onde se tornou bacharel em Cânones; Inocêncio de Barros, que recebeu as duas primeiras ordens menores no Funchal em 1594, rumou posteriormente para Espanha, onde se graduou, também em Cânones, em 1610, o que significa que, apesar de terem iniciado estudos na Ilha, preferiram e puderam sair dela para seguir outro destino. Há finalmente o caso de António Veloso de Lira, que recebeu os dois primeiros graus de ordens menores entre 1634 e 1636, aparecendo matriculado na faculdade de Artes de Salamanca em 1639, dando nesse ano início à frequência do curso de Teologia, que veio a completar em 1640. Regressa a Portugal nesse ano, por ser apoiante de D. João IV, e publica em Lisboa, em 1643, Espelho de Lusitanos, demonstrando a sua dedicação ao monarca. Voltou para o Funchal em data incerta, onde teve percurso de mérito, tornando-se cónego da Sé do Funchal em 1670 e cónego magistral em 1690. Para Coimbra também iam muitos madeirenses estudar, conforme se pode concluir da recolha operada por Fr. António do Presépio Moniz, sendo que desses se encontram 31, entre bacharéis e licenciados, a trabalhar na Madeira até 1640. Apesar do inegável progresso registado na habilitação dos clérigos madeirenses desde o início do povoamento, ainda se vão detetando lacunas na formação, e, a 13 de outubro de 1601, encontra-se registo, no livro de provimentos da Tabua, de uma estratégia para minorar as insuficiências formativas dos párocos espalhados por freguesias rurais. Assim, o bispo, D. Luís Figueiredo de Lemos (1585-1608), que pessoalmente fazia a visita, começava por informar que, em resposta a um relatório que mandara para Roma com os dados sobre o estado da Diocese, recebera da Sagrada Congregação dos ilustríssimos senhores cardeais uma instrução que se apressava a cumprir. Dizia a instrução que ordenasse aos párocos das freguesias “dos montes em que isto é mais necessário” que se juntassem para “praticarem as dúvidas e os casos de consciência que houverem na administração dos sacramentos”. Indicava, logo depois, como se devia proceder a essas reuniões: os párocos do Caniço, da Gaula, da Água de Pena e do Caniçal, bem como os curas de Machico e de Santa Cruz, deveriam juntar-se duas vezes por ano, uma em Machico e outra em Santa Cruz, para debaterem em conjunto os problemas surgidos. Caso os vigários de Santa Cruz ou de Machico não conseguissem esclarecer as questões, elas deveriam, então, ser remetidas ao próprio bispo (ACEF, Tabua, cx. 2, fl. 34-34v.). Mais adiante, esclarecia o critério geográfico para se juntarem as freguesias restantes. O cuidado que subjaz a estas determinações pressupõe que o prelado, em visita ad sacra limina, teria informado o Papa do fraco nível de conhecimentos do seu clero, o que motivara a referida resposta da Sagrada Congregação. Do périplo visitacional de 1601/1602 empreendido pelo mesmo bispo ficaram idênticas determinações noutras freguesias, como aconteceu no Seixal, por exemplo. Apesar de todos os esforços empreendidos para melhorar a formação clerical, esta não deixa nunca de ser uma preocupação para os bispos que, em relação ao assunto, vão deixando, em pastorais, advertências que há que seguir. Assim, D. José de Sousa de Castelo Branco, em carta publicada a 20 de dezembro de 1699, alertava para a necessidade que havia de confessores, sobretudo nas zonas rurais, porque alguns beneficiados e muito clero extravagante “se não aplicam ao estudo da Moral […] por cuja razão lhe mandamos que sob pena de obediência se apliquem ao estudo para que sejam capazes de servirem em tudo a Igreja” (ACEF, cx. 45, doc. 8). Mais adiante, acrescentava que, em sede de visita, os havia de examinar a todos, e os que achasse insuficientes os havia de “penitenciar”, procurando “melhorar” outros conforme “merecerem suas capacidades”, sendo que para os beneficiados e os ecónomos haveria exames “mais rigorosos, pois são obrigados a ajudar os párocos na administração dos sacramentos e que juntamente hão de ser examinados de cantochão e cerimónias da Igreja” (Ibid.). Um edital do mesmo bispo, publicado em 1710, voltava ao assunto, afirmando que, por ter a ciência mostrado que os indivíduos que “se ordenam sacerdotes, depois de se ordenarem perdem totalmente a aplicação que devem ter nos estudos”, se estipulava que os candidatos a ordens menores tinham de estar matriculados no colégio da Companhia, enquanto os de ordens sacras eram obrigados a apresentar uma certidão de frequência das aulas com aplicação e aproveitamento em pelo menos dois anos letivos, sem o que não poderiam prestar provas para ingresso na carreira (ACEF, cx. 32, doc. 39). D. Fr. Manuel Coutinho (1725-1741) também se queixava da profunda ignorância do seu clero, afirmando que era “coisa lastimosa ver como muitos sacerdotes diziam a missa”, pelo que determinou exames gerais no bispado a todos os sacerdotes com menos de 60 anos, e “neste exame de cerimónias houve que reformar em todos, e alguns ficaram suspensos para sempre por não saberem ler a missa” (TRINDADE, 2012, 139). Em tempo de D. Fr. João do Nascimento (1741-1753), por uma pastoral de 5 de janeiro de 1742, o prelado exortava a todos os clérigos para que estudassem Teologia Moral, enquanto aos minoristas e aos estudantes estipulava a assistência à lição de Moral da Companhia de Jesus, advertindo que não seriam aceites em benefícios ou curatos sem apresentar uma certidão de frequência daquelas aulas pelo período de três anos (ACEF, cx. 45, doc. 17). Adiantava, depois, que a afetação aos lugares dependia de serem “bons latinos e Moralistas, mas também é necessário que tenham suficiente notícia da arte de solfa e cantochão e das cerimónias da Igreja” (Ibid.). D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1756-1784) também teve em consideração as necessidades formativas do clero madeirense, pelo que pediu insistentemente ao superior geral dos Lazaristas o envio de dois missionários, em princípio destinados a ocupar lugares de direção no Seminário do Funchal. Apesar de nunca terem chegado a cumprir esse desígnio, os padres João Alásio, piemontês, e José dos Reis demoraram-se na Ilha 10 anos, entre 1757 e 1767, período que dedicaram “à formação espiritual, intelectual e pastoral do clero madeirense, organizando conferências e retiros espirituais (ABREU, 2015, I, 755). Abordada de uma outra perspetiva, a formação do clero insular também ficou registada em testemunhos de estrangeiros que passaram pela Madeira e que sobre ela deixaram as suas impressões. Assim, Antoine Biet, que esteve na Ilha a caminho da Guiana francesa em 1652, achava o clero “pouco dado à devoção e muito ignorante em relação a assuntos religiosos” (FARIA, 2015, I, 528), enquanto, em 1689, John Ovington, um médico protestante, dizia a propósito dos Jesuítas, formadores de boa parte do clero insular, que tinham grande incapacidade cultural, pois “apenas um em cada três com quem conversei compreendia o latim” (ARAGÃO, 1981, 204) – ainda que aqui se deva ter em consideração que Ovington também era clérigo e forte crítico do catolicismo. Por haver consciência das limitações com que se debatia a questão da preparação clerical no séc. XIX, e mais uma vez com o intuito de tornar mais eficaz a formação eclesiástica, D. Patrício Xavier de Moura vai reformar o Seminário do Funchal, na sequência do que já havia sido decidido a nível nacional quando, após o encerramento daquelas escolas em 1834, uma lei de Costa Cabral, de 28 de abril de 1845, determinara a sua reabertura. À referida recuperação foi afetada uma parte dos rendimentos da Bula da Cruzada, para que se pudesse “educar e instruir alguns estudantes pobres que têm vocação para o estado eclesiástico e que, por falta de meios, não podem seguir a sua vocação”, medida com a qual o bispo logrou aumentar o número de alunos de 12 para 18, e melhorar os vencimentos dos mestres das “matérias teológicas e Morais” (ACEF, cx. 45, doc. 37). Em complemento destas inovações, publicou igualmente, por edital de 1 de outubro de 1865, um novo plano curricular que dividia o programa de estudos em três anos, no primeiro dos quais se aprenderia História Eclesiástica e Sagrada, Filosofia do Direito e Teologia Dogmática Geral; no segundo ano, estudar-se-ia Teologia Dogmática Especial, Direito Canónico e Teologia Moral; e no terceiro ano estavam novamente as matérias de Teologia Moral, bem como Teologia Pastoral e Eloquência Sagrada, e finalmente Hermenêutica, ministradas em aulas que decorreriam entre as 11.00 e as 14.00 h (ACEF, cx. 32, doc. 10) (Seminário). Cerca de 20 anos mais tarde, sendo bispo D. Manuel Agostinho Barreto (1877-1911), o problema do Seminário voltará a estar na ordem do dia, empreendendo o prelado uma nova reestruturação que muito ficou a dever à intervenção do P.e Ernst Schmitz, coadjuvado por uma equipa de outros Lazaristas, que instituiu um ciclo de estudos preparatórios, até então inexistente. Em paralelo, introduziu no currículo estudos na área da Zoologia e da Física, matérias que nunca tinham figurado na preparação dos eclesiásticos. D. Manuel Agostinho Barreto também dotou o seminário de um edifício construído de raiz, o Seminário da Encarnação em Santa Luzia, promoveu a realização de retiros anuais para sacerdotes e aumentou, de novo, o número de alunos. Como fruto de todas estas alterações, pôde o Seminário tornar-se a escola responsável pelo “alto nível” de competência que foi apanágio do clero madeirense na primeira metade do séc. XX (COELHO, 2015, II, 580) Sensivelmente a meados do século, a 17 de outubro de 1947, os religiosos dehonianos, da Congregação dos Sacerdotes do Coração de Jesus, inauguravam no Funchal outra estrutura também devotada à formação religiosa e sacerdotal, o Colégio Missionário do Sagrado Coração de Jesus. A sua abertura foi aprovada pelo bispo, D. António Manuel Pereira Ribeiro, e incentivada pelo cardeal madeirense D. Teodósio Clemente de Gouveia, arcebispo de Lourenço Marques, e destinava-se à formação de futuros missionários para as colónias portuguesas. (Dehonianos). Nos anos 60 do séc. XX, sentindo-se a necessidade de uma formação mais personalizada, D. David de Sousa, prelado diocesano (1957-1965), decidiu adquirir o Hotel Bela Vista, onde instalou o Seminário maior, reservando o Seminário da Encarnação para Seminário menor. (Episcopado católico, D. David de Sousa, Teologia, Pastoral). A D. David de Sousa sucedeu D. João António da Silva Saraiva (1965-1972), até então reitor do Pontifício Colégio Português em Roma, que procurou implementar as reformas do Concílio Vaticano II (1962-1965) nas diversas áreas da vida eclesial, nomeadamente nos seminários (D. João António da Silva Saraiva). Seguiu de perto a formação dos seminaristas e do clero, tendo para este último organizado conferências e outros encontros de atualização, convidando vários preletores. Também ele, à semelhança de D. David, mandou membros do clero especializarem-se nas universidades pontifícias de Roma e em universidades civis. De realçar que, quer os seminários diocesanos acima referidos, quer o Colégio Missionário, tinham o seu corpo próprio de formadores e professores, com aulas internas. Com a abertura da Faculdade de Teologia em Lisboa, em novembro de 1968, integrada na recém-ereta Universidade Católica Portuguesa, D. João António da Silva Saraiva tomou a decisão de encerrar os estudos filosófico-teológicos no Seminário Maior e de enviar os jovens seminaristas, acompanhados pelo P.e Doutor Sidónio Gomes Peixe, que lecionaria Teologia Moral, para a capital do país, a fim de cursarem os seus estudos superiores na dita Faculdade. Ficaram a residir no Seminário Nossa Senhora de Fátima, em Alfragide, pertencente aos padres dehonianos, cujos seminaristas maiores frequentavam a mesma instituição. Posteriormente, devido a vários problemas, entre os quais o abandono de alguns seminaristas e a sede vacante do Funchal (1972-1974), os seminaristas foram estudar nos Seminários Maiores do Porto e Braga e, mais tarde, nos Seminários do Patriarcado de Lisboa (Almada, Caparide, Olivais), sempre cursando os estudos na Faculdade de Teologia. Na segunda metade desse século, D. Francisco Santana (1974-1982) voltou a operar alterações na estrutura de formação eclesiástica madeirense, quando optou por, face ao processo revolucionário despoletado com o 25 de Abril, fechar o Seminário menor, passando esta escola a funcionar nas instalações do maior. Os estudos secundários dos seminaristas passaram a decorrer numa segunda fase na Associação Promotora do Ensino Livre, escola católica entretanto aberta. D. Teodoro de Faria (1982-2007) deu um grande impulso à formação dos seminaristas e do clero, tendo ordenado um número abundante de sacerdotes. A formação filosófico-teológica dos seminaristas realizava-se no Funchal (doisanos com aulas internas) e, em seguida, em Lisboa. Mandou também jovens padres especializarem-se em vários ramos das ciências sagradas, em Roma e em França, com benefício para a pastoral diocesana. A estrutura da formação eclesiástica não foi alterada com D. António Carrilho, que tomou posse do cargo em 2007. As carreiras eclesiásticas Na análise da sociedade, a tendência de agrupar o clero, enquanto grupo homogéneo, é constante. O estado eclesiástico apresenta, porém, uma heterogeneidade evidente quando estudado ao pormenor, consoante critérios de hierarquização como “a observância religiosa, o grau de sagração, as atividades desenvolvidas com a consequente distinta remuneração e a proveniência social” do clérigo; sublinhe-se ainda a “existência de hierarquias de função, de estatuto e de acção” (PAIVA, 2012, 174). O estudo das carreiras eclesiásticas terá de presumir estas distinções. Os clérigos faziam as suas carreiras consoante as escolhas próprias, as disponibilidades dos cargos e os entraves externos. Eram a possibilidade de usufruir de privilégios inerentes à clerezia, os interesses materiais decorrentes dos rendimentos que auferiam, a fuga ao exercício militar ou ao desprestigiante trabalho manual, e a vocação pessoal para servir a Deus e a Igreja que levavam muitas centenas de pessoas a procurar ingressar no estado eclesiástico. Os cadernos de ordens, como o elaborado no Funchal entre 1538 e 1558, demonstram essa afluência. A título de exemplo, nessas duas décadas registaram-se 1040 novos clérigos, pertencentes a 940 famílias. A transição entre o mundo laico e o eclesiástico era celebrada através da prima tonsura. Era, porém, obrigatório que os candidatos que pretendessem recebê-la respeitassem determinados requisitos, decorrentes dos decretos tridentinos e das constituições do bispado. É na primeira constituição do título IX, relativa ao sacramento da Ordem que, nas Constituições Sinodais de 1585, se estabelecem as condições que os futuros tonsurados devem preencher. Os candidatos teriam de ser maiores de sete anos, crismados e conhecedores da doutrina cristã, e deviam possuir uma instrução básica, sabendo ler, escrever e ajudar à missa. Por último, o texto aponta aos candidatos uma obrigação que tange uma das motivações da entrada no estado eclesiástico expostas anteriormente: “que não haja deles provável presunção que se ordenarão por fugir do foro e juízo secular, mas somente para servirem a Deus” (BARRETO, 1585, 44). Em 15 de abril de 1592, o bispo D. Luís de Figueiredo e Lemos estipulou que os aspirantes à tonsura não poderiam ter mais de 15 anos. Os decretos tridentinos acrescentam a necessidade de serem filhos legítimos, de não possuírem deformações físicas impeditivas do exercício do ministério sacerdotal ou que induzissem à zombaria pública, bem como de uma habilitação de genere, para averiguar a “limpeza do sangue” e a alvura da alma. Após a receção da prima tonsura seguiam-se as quatro ordens menores – ostiário, leitor, exorcista e acólito –, que não implicavam uma progressão na vida eclesiástica, pois nem todos os ordinandos pretendiam ascender às ordens seguintes, as sacras. Tal não os impediria de auferirem rendimentos ou estarem sob o direito canónico, em vez do secular, ou mesmo de executarem funções nos cabidos das colegiadas. A idade mínima para ascender a estas ordens situava-se nos 14 anos, obrigando a ter conhecimentos de latim, certificados pelo mestre-escola ou pelo cura da paróquia, além de um comprovativo da prática de bons costumes cristãos, comprovados por uma inquirição de vita et moribus – de vida e costumes – e por mais um processo de genere. Além disto, deveam confessar-se e comungar regularmente e “em tudo” deviam ter “honestidade e modéstia” (BARRETO, 1585, 44). O grau seguinte passava pela obtenção das ordens maiores, divididas em três níveis: subdiaconado, diaconado e presbiterado. A cada uma destas ordens correspondiam funções distintas: o subdiácono podia ajudar à missa e cantar a epístola; o diácono assistia o sacerdote, podendo batizar, pregar e ler o evangelho; enquanto ao presbítero competia a cura de almas, a “condução do rebanho” e a administração de alguns sacramentos. De modo semelhante ao das ordens anteriores, impunham-se determinados requerimentos aos que pretendessem sagrar-se, os quais acabavam por se transformar em autênticos “filtros”, obrigando a que imensos clérigos se perpetuassem na condição de minoristas (MORGADO GARCÍA, 2000, 49). Exigia-se a idade mínima de 22, 23 e 25 anos, respetivamente, para cada uma das três ordens, além do aprofundamento dos conhecimentos de gramática, de latim, de cantochão e dos relacionados com a doutrina, devendo os candidatos ser examinados para se saber se “entendem competentemente o latim, e o leem, acentuam, e pronunciam bem, e se sabem bem cantar por arte e reger bem o breviário que terão de seu” (BARRETO, 1585, 47). Requeriam-se novas inquirições e exigia-se o voto de castidade, que lhes impunha uma vida celibatária. Além disto, os futuros presbíteros teriam de exercer a função de diáconos pelo período mínimo de um ano e concretizar novos exames de conhecimentos e novas inquirições. A maioria dos minoristas não ascendia às ordens sacras pela impossibilidade de cumprir um requisito: a existência de um vencimento, tença, património, pensão ou foro a título perpétuo e pessoal. Para que os clérigos se autossustentassem, enquanto não encontrassem um ofício, e não tivessem de recorrer ao trabalho manual ou à mendicidade, as constituições obrigavam a que o candidato a ordens sacras possuísse uma pensão anual não inferior a 10.000 reais, valor que foi aumentado, a 1 de setembro de 1597, para 40 cruzados anuais, o equivalente a 16.000 réis. A impossibilidade de atingir este património excluía muitos clérigos dos cargos mais elevados, para os quais se necessitava das ordens maiores. Assim, se os minoristas eram em grande número, os ordenados in sacris escasseavam. As carreiras caracterizam-se igualmente pelo percurso, consoante as funções ou cargos que os clérigos ocupam e não só pelas ordens que obtêm. É necessário atentar que este percurso é distinto para cada clérigo, estando sujeito aos cargos disponíveis nas paróquias, nas catedrais ou mesmo nas capelas privadas. É igualmente fundamental distinguir entre os cargos inseridos no sistema beneficial e aqueles que não o são; as principais diferenças recaem na perpetuidade de cargos como os de vigário, cónego ou beneficiado, ao contrário dos de curas, capelães e outros, que continuamente têm de renovar as suas licenças para exercerem o cargo, ao que acresce a escolha para o desempenho de determinado ofício. Quase nenhum destes percursos será idêntico a outro, ainda que possa haver algum grau de semelhança. A Relação dos clérigos e respectivos cargos eclesiásticos nas diversas freguesias, com a indicação das datas de nascimento, das ordenações sacras e do emprego dos referidos clérigos, um documento datado criticamente do ano de 1848 e existente em microfilme no Arquivo Regional da Madeira (ARM, APEF, 133, mf. 742), permite observar diversos aspetos das carreiras. Trata-se de um registo de 119 clérigos, contendo o nome de cada um, a sua data de nascimento, a data da obtenção do presbiterado, e as datas dos exames e das licenças de confissão e pregação, além de um registo sumário dos cargos ou funções exercidos e as respetivas datas de início. Só em 97 casos se podem tirar conclusões, pois 17 registos estão incompletos, contendo somente o nome, e 5 não permitem que se tire informações. Destes eclesiásticos, 43,3 % começaram como adidos nas diferentes paróquias, enquanto 16,5 % principiaram como curas e 15,5 % como ecónomos, correspondendo a 42, 16 e 15 indivíduos respetivamente. Trata-se de cargos situados na hierarquia mais baixa das carreiras, com a duração de um ano, podendo ser substituídos no seguinte. Igualmente se encontram referidos aqueles que iniciaram o seu percurso como sacristães (5 clérigos), capelães (4), meninos do coro (4), coadjutores (3) e vice-vigários (3). Mais raras são as referências ao início da carreira como escrivão, organista ou beneficiado, casos em que se encontra uma única referência. Restam ainda duas pessoas cujo registo começa com as funções de meio-cónego e cónego, que se pensa estarem incompletos, não apresentando os percursos anteriores dos indivíduos até atingirem os estatutos referidos. Por outro lado, 29,9 % (29 indivíduos) dos clérigos culminavam a sua carreira como vigários, 24,8 % (24) como curas e 11,3 % (11) como vice-vigários. Não é de estranhar tratar-se de lugares em paróquias e colegiadas, pois a quantidade de clérigos de que estas necessitavam era superior à das catedrais, pelo que aquelas disponibilizavam um número superior de benefícios a prover. Porém, é importante notar que 13,4 % dos clérigos referenciados acabaram em conezias e 3,1 % em dignidades capitulares. Refira-se ainda os que finalizaram a sua carreira como capelães (5 clérigos), beneficiados (3), ecónomos (2), encarregados da igreja ou da paróquia (2), meio-cónego (1), altareiro (1), organista (1) e sacristão-mor (1), e também um indivíduo que não ascendeu além do cargo de adido na paróquia de S. Pedro e na Sé. Como se disse, as ordens sacras não tinham um carácter obrigatório, podendo os clérigos ordenar-se se pretendessem e cumprissem todos os requisitos necessários. Assim, reconhece-se a existência de diversos clérigos que executavam funções clericais mesmo sem ter a ordem do presbiterado. Dos 97 eclesiásticos que se tem vindo a referir, 55 tiveram funções antes de receber a dita ordem, enquanto 32 só principiaram a sua carreira depois de obterem a ordenação, e sobre 10 os registos não permitem com claridade esclarecer a pergunta. Desses 55, 43 clérigos, ou seja, 78,18 %, foram adidos antes de serem presbíteros; outros foram ecónomos, capelães, sacristães, meninos do coro, organistas ou escrivães, havendo dois elementos que executaram as funções de meio-cónego e de cónego de prebenda inteira. Porém, não se pense que estes somente executavam um serviço. O chantre António Joaquim de Ferreira Pestana, antes de ser presbítero, executou as funções de adido na paróquia de S. Pedro, foi ecónomo na Ribeira Brava e beneficiado colado em Santa Maria Maior; e Augusto José de Faria foi adido e ecónomo em Santa Maria Maior, ecónomo na Ponta do Sol e capelão, por duas vezes, na Sé. Apesar de não serem exemplares, visto que não se seguia um arquétipo, estando subordinados à existência de cargos vagos, há diversos eclesiásticos que seguem percursos interessantes aos quais se poderia dar destaque. O P.e António Homem de Gouveia é um exemplo de um clérigo que se mantém numa igreja paroquial, ascendendo dentro da mesma. Após ter sido adido em S. Pedro, ainda antes de se ordenar presbítero e de ter portanto a possibilidade de confessar, exerce o cargo de cura na igreja da Fajã da Ovelha, passando depois para vice-vigário do Paul do Mar. A seguir, entre 1836 e 1842, foi cura, coadjutor, vice-vigário e vigário colado na paróquia da Fajã da Ovelha. Outros clérigos nunca deixaram de exercer o mesmo cargo em diversos sítios, como aconteceu com António de Pádua Pereira, que desde 1838 foi cura do Monte, da Ponta do Pargo, do Jardim do Mar, e novamente, desde 1844, da Ponta do Pargo. O registo mais completo é o de António Marcelino de Freitas, que exercia o ofício de adido desde 1800; em 1811, recebeu a última ordem sacra, e depois foi ecónomo na Ponta do Sol e na Ribeira Brava, cura em São Vicente, em Santa Maria Maior e no Porto Moniz, confessor extraordinário no Convento da Encarnação, beneficiado colado na Ribeira Brava, vice-vigário no Estreito da Calheta e vigário em Ponta Delgada. Além destes cargos, é referido que se candidatou aos concursos para outros no Estreito da Calheta, nos Canhas, na Fajã da Ovelha, em Santa Cruz. Porém, deteta-se a ambição deste eclesiástico que, mesmo depois de ser vigário em Ponta Delgada, foi vice-vigário de Câmara de Lobos e da Tabúa, procurando certamente outros lugares que fossem mais rentáveis que Ponta Delgada. Observe-se, igualmente, a ascensão de Gregório Nazianzeno Medina e Vasconcelos, que começou como menino do coro em 1801, passando por adido, ecónomo, capelão coadjutor do cura da Sé, capelão e cura ecónomo da Sé, atingindo em 1839 o estatuto de cónego; ou o arcediago José Luiz de Nóbrega, que começou como cura de Santa Luzia, em 1814, foi beneficiado colado em São Pedro e assumiu depois cargos na administração diocesana como vigário geral e promotor, ascendendo a meio-cónego em 1840, a cónego cinco anos depois e a arcediago em 1846. É importante salientar que este documento não é completo, pois apenas refere os elementos com a ordem de presbiterado, esquecendo todos os restantes, assim como não faz referência aos clérigos que se encontravam fora do sistema beneficial, de que são exemplo os capelães das ermidas particulares. A origem social do clero A entrada no estado eclesiástico era relativamente acessível, bastando que os candidatos à prima-tonsura cumprissem os requisitos estipulados. Por este motivo, poder-se-ão detetar as mais diversas categorias socioprofissionais nos pais e familiares dos tonsurados e dos candidatos a ordens menores. A entrada no clero consubstanciava uma estratégia familiar ou pessoal, correspondendo a um mecanismo de promoção social, essencialmente para os escalões mais baixos da sociedade. Para a fidalguia, a presença de um elemento da família no clero trazia duas vantagens: a renda perpétua de que este iria usufruir, principalmente encontrando-se posicionado nas hierarquias mais elevadas e nos cargos mais rentáveis, e a confirmação do estatuto de membro privilegiado da sociedade. Servia ainda para garantir um futuro digno às bastardias. Por outro lado, o ingresso na clerezia gerava “limpeza de sangue”, garantindo a “pureza” pessoal e familiar dos candidatos, em particular dos cristãos-novos presentes no espaço português (razão pela qual as famílias suspeitas de terem antepassados judeus empenhavam-se na entrada de um dos seus membros no clero, e conseguiam alcançar esse desígnio porque, quando se tratava de presbíteros destinados às paróquias – ao contrário dos destinados ao Tribunal do Santo Ofício –, os critérios eram menos rígidos, o que permitia a essas famílias “lavar” socialmente o sangue familiar). A maioria dos candidatos a clérigos tinha, todavia, a sua origem no terceiro estado. É de notar, porém, que, se muitos obtinham ordens menores, somente os que, dentro deste estrato social, pudessem dispor de algum património ou de fundos conseguiam dotar os filhos dos valores obrigatórios para ascenderem às ordens sacras. Por este motivo, Arturo Morgado García considera que a entrada no clero permite uma mobilidade social limitada, pois, apesar de permitir a existência de muitos minoristas, só alguns – aqueles que possuem rendimentos, conhecimentos, estatuto social e uma boa rede clientelar – ascendem na hierarquia religiosa. Pouco se sabe sobre a origem social do clero madeirense nos séculos passados. As fontes mais fiáveis consistem na lista de ordinandos de ordens menores ou sacras registados anualmente, que contêm informação relativa aos pais do candidato. Desde os finais do séc. XVI até a 1640, os livros de ordens registam perto de 1000 novos clérigos, representando somente uma ínfima porção dos eclesiásticos existentes nestes anos. Em 394 dos clérigos ordenados entre 1620 e 1640, sabe-se que 38 tinham ascendência fidalga, ainda que não pertencessem à mais alta hierarquia insular. Por outro lado, 59 ordinandos foram filhos e netos de artesãos, principalmente sapateiros (23) e tanoeiros (8). Interessante é o facto de alguns destes possuírem ofícios ainda antes de se ordenaram. E.g., Diogo de Araújo foi sapateiro em Santa Cruz, casando-se em 1605 com Isabel Favila; após a morte desta, em data incerta, ordenou-se padre, deixando o ofício anterior, recebendo os graus das ordens menores em 1622 e as de presbiterado em 1627. Noutras situações, os pais possuíam profissões liberais, como é o caso de notários, tabeliães e escrivães (12) ou de licenciados e advogados (3); e.g., Álvaro Vaz da Corte, falecido em 1611, foi licenciado, tendo três filhos que chegaram a clérigos. Outros tinham familiares com profissões ligadas à área da saúde, tendo os ofícios de cirurgião (4) e boticário (1). Também se detetam muitos clérigos cujos familiares pertenciam à governança local, enquanto os de outros seriam mercadores ou lavradores, ou praticavam ofícios ligados ao mar, como pescadores ou mareantes. Encontraram-se igualmente 7 clérigos que seriam filhos bastardos, incluindo 3 que seriam filhos de padres, 4 com ascendência mulata e 25 com antecedentes de cristãos-novos. Assim, facilmente se deteta a heterogenia presente na origem social do clero madeirense, e se conclui que, mais do que uma saída para os filhos segundos da nobreza, o ingresso no estado eclesiástico representava uma apetecível via de ascensão social para os descendentes do terceiro estado, desconsiderando, neste contexto, a questão da vocação, que apareceria em todos os escalões, mas que estava longe de ser o fator determinante. No começo do séc. XXI, a Diocese do Funchal contava com 87 sacerdotes do clero secular e vários do clero regular, estando estes últimos distribuídos por diversas congregações: Salesianos, Hospitalários de S. João de Deus, Franciscanos, Carmelitas descalços e Dehonianos. Uma vez que, nesta altura, se ingressava nesta carreira por razões vocacionais, a origem social dos presbíteros será transversal à sociedade. Do clero natural da Madeira, saíram alguns bispos, nomeados pelo Papa para pastores de Dioceses, de entre os quais se podem destacar D. Manuel de Noronha (m. 26/09/1569), neto de Zarco e bispo de Lamego, D. António de Aguiar, bispo de Ceuta na primeira metade do séc. XVII, D. Teodósio Clemente de Gouveia (13/05/1889-06/02/1962), bispo de Lourenço Marques, D. Manuel Ferreira Cabral (10/02/1918-12/12/1981), bispo auxiliar de Braga e depois bispo da Beira, Moçambique, D. Maurílio Jorge Quintal de Gouveia (n. 05/08/1932), arcebispo de Évora, D. Teodoro de Faria (n. 24/08/1930), bispo do Funchal, e D. José Alfredo Caires de Nóbrega (n. 12/04/1951), natural do Caniço, Dehoniano, Bispo de Mananjary, Madagascar. O comportamento do clero Atendendo ao enorme reforço do papel do clero para que apontam as determinações tridentinas, não surpreende o elevado valor que o mesmo texto confere ao comportamento exemplar dos eclesiásticos. Assim, enquanto responsáveis pela condução do rebanho do Senhor ao esplendor da vida eterna, não se poderia exigir aos pastores nada menos que a irrepreensibilidade da sua vida, em todos os momentos e ocasiões. Como forma de controlar essa mesma irrepreensibilidade, as habilitações de genere desde logo insistem em informações de vita e moribus, sem cuja abonação não poderão os candidatos à receção de ordens prosseguir na carreira, e, mesmo em sede de visitação, os editais são fortemente direcionados para o apuramento de dados relativos à atuação do vigário e dos curas e beneficiados, se os houver. Assim, dos 32 itens que integram o edital publicado em 1791, 14 versam a pessoa do pároco ou os coadjutores, procurando apurar se se entregam a negócios, se andam decentemente vestidos, se solicitam alguém em confissão, se dizem missa como devem e se vivem maritalmente com mulheres, e.g.. Na sequência dos interrogatórios, o povo da freguesia testemunha a respeito do seus clérigos, e pelo seu depoimento se fica a conhecer a existência de padres que se embriagam, que se recusam a confessar paroquianos que não lhes façam algum trabalho, que não ensinam doutrina, que vivem amancebados, que usam de violência física e verbal para com as suas ovelhas, ou que se comprometem com negócios. Outras visitas especificamente direcionadas para o cabido da Catedral detetam, entre os cónegos, comportamentos que estão longe do pretendido. Assim, em 1734, e no seguimento de problemas com um dos cónegos, D. Fr. Manuel Coutinho mandou devassar do cabido, a fim de apurar se havia inimizades entre os capitulares. Apurou-se que sim, mas entretanto também se concluiu haver vários cónegos freiráticos, ou seja, que mantinham relações inadequadas, nomeadamente de correspondência, com freiras de Santa Clara. Outra devassa ao cabido, mas esta com data de 1817, encontra os capitulares alvoroçados, e acusadores, recaindo sobre uns apontamentos de embriaguez – que levava um deles a andar a cavalo pelas ruas da cidade a gritar estrepitosamente –, e sobre outros notas de mancebia e paternidade ilícita, desentendimentos e cortes de relações entre alguns, tudo “com grande escândalo” do povo (ARM, APEF, doc. 136, fls. 33v.-81). Mesmo sem ser em contexto visitacional, é possível surpreender clérigos mal comportados, como aconteceu na Sé, em 1622, com dois cónegos que se agrediram mutuamente ao ponto de haver sangue. O bispo da altura, D. Jerónimo Fernando, cognominado Apóstolo Bravo, houve-se, porém, com contenção neste contexto, castigando-os com penas pouco relevantes. Se, porém, é relativamente comum encontrar razões de queixa dos clérigos, também não é menos verdade que aparecem com frequência comentários abonatórios a elogiar a prestação dos eclesiásticos. Em provimentos de visitações, por exemplo, acontece surgirem declarações em que muito se louva o empenho do vigário no asseio da igreja, no ensino da doutrina ou na boa ordem em que se encontram os livros de contas, conforme se constata nos provimentos de S. Jorge, de 1737, ou de S. Martinho, em 1738, por exemplo. Nas visitas ao cabido, por seu lado, também se acham registos encomiásticos do comportamento do clero, como o que resultou da devassa de 1835, realizada pelo governador do bispado, António Alfredo de Santa Catarina Braga, em cuja conclusão se pode ler que “com grande júbilo de nosso coração concluímos a visita da Santa Igreja Catedral, sem haver recebido a menor queixa dos reverendos Curas” (ARM, APEF, doc. 136, fl. 83). O séc. XIX será fértil noutras possibilidades de abordar o modo de estar dos clérigos que, a partir de 1820, se vão repartir, como de resto toda a sociedade, em liberais e absolutistas. Assim, será preciso filtrar a origem das declarações que ora consideram o clero progressista, e até condição sine qua non para vingarem as ideias constitucionais, ora o acusam do mais absurdo reacionarismo, como acontece com dois cónegos que o Patriota Funchalense apoda de “nada bem vistos aos olhos da opinião pública, por serem acusados de anticonstitucionais” (SOUSA, 1991, 181). A partir da revolução liberal, não mais cessará o clero de se envolver na evolução social e política da sociedade, o que causará apreciações muito divergentes da sua atuação, sendo então precisa uma atenção redobrada no que toca à abordagem do comportamento eclesiástico, pois as considerações tecidas poderão estar eivadas de preconceito. A Igreja sempre procurou acompanhar a formação dos candidatos ao sacerdócio nos seminários bem como a dos ministros já ordenados com a chamada formação permanente. Os Códigos de Direito Canónico (1917 e 1983), o Concílio Vaticano II e os documentos pós-conciliares, os documentos da Santa Sé, os dos bispos diocesanos e as orientações internas dos seminários traçam caminhos e metas exigentes para todas essas pessoas.   Ana Cristina Trindade  Bruno Abreu Costa (atualizado a 29.12.2016)

Religiões

casas da madeira

A forma violenta como algumas pessoas se desapegam do seu local de origem e da sua casa conduz a um processo de desterritorialização, de perda das suas raízes e dos seus vínculos culturais e emocionais que as leva a buscar meios de retorno. Desta forma, a integração num novo local, concebida como um processo de reterritorialização, implica esse retorno à origem, que se torna fundamental para a construção de uma harmonia dentro da nova realidade. As casas regionais assumem-se, assim, como o espaço e o lugar onde isso acontece, seja dentro do território do país ou no estrangeiro. As casas da Madeira, que se constroem ou surgem em qualquer parte do mundo, regem-se pela ideia fundamental de recriação do espaço vivido, que se transplanta em termos físicos e mentais para outros territórios, estando a sua fruição ligada à sugestão de um retorno a casa ou de um hiato num mundo que não é sentido como o nosso. Desta forma, a casa em si é o retrato da Ilha e das origens, a insistência numa cultura e num território que, embora ilhado e, por isso, isolado, continua a ter um significado especial, sendo capaz de reunir todos aqueles que se encontram na mesma situação de afastamento. Contudo, nem todos manifestam esse espírito de pertença. Na verdade, muitos dos que se consideram enraizados no território de acolhimento preferem identificar-se com o novo espaço que os acolheu e perder, de forma intencional ou não, parte das suas raízes emocionais e culturais. O processo de aparecimento das casas regionais não é linear e nem sempre mereceu o mesmo entendimento por parte do poder político, que ora o acolhe ora encara com desconfiança. O discurso histórico mostra-nos diversos momentos deste processo evolutivo, que se coadunam com a situação política do país. O Estado Novo, entendido como o período que decorre com a afirmação do regime político saído da Constituição que vigorou entre 1933 e 1974, constituiu um momento favorável à criação e elaboração desta identidade regional, que ganha, fora da Ilha, alicerces nas casas regionais existentes na capital do país. Mas a atitude perante as casas regionais ou de Portugal que se constroem nos locais de acolhimento dos inúmeros emigrantes foi diferente, certamente porque aquelas acolhem os oposicionistas ao regime. No caso da Madeira, a maioria das casas nasce sob um signo fundamental para a vivência do arquipélago, definido pelo processo autonómico que ganhou forma a partir da Constituição de 1976 e da transformação do arquipélago numa região autónoma, com governo próprio. Há uma definição do território e um processo de construção da identidade madeirense que diferencia os cidadãos residentes na Madeira dos demais do território nacional. Desta forma, à exceção da Casa da Madeira de Lisboa, as casas que foram surgindo obedecem a esta lógica. Existe um jogo mútuo entre a Ilha e as diversas formas da sua representação configuradas por estas casas. O madeirense emigrante lança as raízes da sua madeirensidade no local de acolhimento e recria, conforme pode, o local de origem, que assume o papel de ponte com o seu mundo local. Por outro lado, os que ficaram na ínsula constroem, no quadro político da autonomia, uma ponte com estas ilhas da Ilha espalhadas pelo mundo. É a Ilha ou arquipélago a aumentar o seu território. O ideal que norteia a criação das casas da Madeira está sempre sinalizado no território da Ilha ou do arquipélago e nos elos de proximidade que existem no território atual de acolhimento dos madeirenses. Os que estão fora olham para a Ilha como uma recordação, com o objetivo do regresso, esperando ter o ânimo para cumprir o sonho de lá retornarem com aquilo que ambicionaram. É em torno desta realidade que se constroem as casas da Madeira em território nacional ou estrangeiro, tal como as diversas instituições que juntaram muitos madeirenses na diáspora. Em qualquer dos casos, estas são um lugar de criação identitária e de expressão de uma comunidade imaginada. Este associativismo emigrante não se resume à motivação do lugar, que acontece com maior acuidade no séc. XX, mas alarga-se a múltiplas motivações que podem levar à união de emigrantes de diversas proveniências, que não apenas a Madeira. Este associativismo do lugar/região é típico do séc. XX e reforça-se em Portugal, de forma evidente, a partir da afirmação do movimento autonómico gerada com a Constituição de 1976, em que se diferenciam, no todo nacional, as regiões autónomas da Madeira e dos Açores. A afirmação das autonomias regionais foi favorável ao desenvolvimento deste associativismo local, muitas vezes incentivado pelas autoridades madeirenses, através de múltiplas iniciativas que visaram congregar os emigrantes madeirenses em torno da sua Região, como foram, desde 1977, o Centro das Comunidades Madeirenses e, em 1984, o I Congresso das Comunidades Madeirenses. A partir de então, a casa da Madeira deixou de ser a casa regional para se afirmar como a casa da autonomia. A existência de uma associação ou casa da Madeira não deriva apenas da existência de uma comunidade de madeirenses, tendo mais que ver com o dinamismo por estes demonstrado em termos associativos. Vários são os motivos que os levam a reunir-se num momento determinado ou a associar-se, de forma permanente, para criar vínculos de solidariedade. O movimento regionalista foi um factor importante no quadro nacional para o aparecimento das casas regionais na capital portuguesa. Assim, em 1905, surge a Casa de Trás-os-Montes e, passados dois anos, a da Madeira. As demais casas da Madeira no território nacional seguem a sequência do dinamismo dos madeirenses no continente português, nomeadamente nas cidades do Porto, de Coimbra e de Faro. Este movimento alarga-se ao território ex-ultramar, com o aparecimento de uma casa da Madeira em Moçambique, em 1937, na então cidade de Lourenço Marques, e, depois, aos Açores, com a casa da Madeira que surge em Ponta Delgada, em 1986. Releve-se que a iniciativa da Casa da Madeira de Coimbra, que nasceu a 10 de maio de 1986, se deveu aos estudantes madeirenses que estudavam nessa cidade. A constituição da comunidade madeirense de Moçambique prende-se com a oportunidade que este país representava para os madeirenses de entrarem na África do Sul. No entanto, nem todos conseguiam atingir o fim ambicionado e acabavam por ficar em Moçambique, o que explica a importância de tal comunidade em Lourenço Marques. Lembremos, a propósito, que D. Teodósio Clemente de Gouveia (1889-1962), natural de São Jorge, foi arcebispo dessa cidade a partir de 1941. Nos diferentes destinos da emigração madeirense, o espírito associativo ganha uma diversidade de expressões, surgindo, assim, associações, sociedades, clubes e irmandades. A questão da origem pode ser um motivo aglutinador, mas muitas vezes estes organismos são manifestações de carácter religioso que marcam a religiosidade madeirense. É o caso das festividades em torno do Espírito Santo ou de alguns oragos das freguesias, ou de momentos especiais do calendário litúrgico. No Havai, destacam-se, e.g., as festas do Espírito Santo e as de N.ª Sr.ª do Monte. Para além disso, também o desporto e os clubes de futebol madeirenses ou nacionais são motivos que fazem reunir os madeirenses, sendo muitas vezes o que os leva a criar elos de união e espaços físicos de convívio em momentos determinados. Há também alguns elementos emblemáticos que acompanham estes momentos de vida associativa, como o folclore, a música e a gastronomia. Por outro lado, no decurso do séc. XIX, as sociedades beneficentes ou de socorros mútuos tiveram uma presença muito evidente na Ilha e fora dela, nas comunidades de emigrantes. Estas associações tinham como objetivo ajudar os pobres e necessitados da comunidade. Todavia, o que unia os seus associados era o ideal fraterno e não a origem geográfica. Vemos, e.g., em Honololu, na Sociedade Lusitana Beneficente de Havai (1882) e na Sociedade de São Martinho (1903), uma predominância de madeirenses. O mesmo espírito norteia a comunidade portuguesa emigrante na Guiana Inglesa, onde as associações assumem um carácter nacional, embora irmanadas no ideal de beneficência. Assim, surgiu, em 1913, a Associação Portuguesa de Auxílio Mútuo e Beneficência e, em 1924, o Portuguese Club. Em Trinidade e Tobago, encontramos o mesmo espírito nas associações criadas, destacando-se o surgimento, em 1905, da Associação Portuguesa Primeiro de Dezembro e, em 1927, do Portuguese Club. Entretanto, no Curaçau, o espírito associativo dos madeirenses surgiu em torno dos clubes de futebol, com o Madeira Futebol Clube, o Clube Futebol União Português e o Sport Clube Madeirense. Dentro do mesmo espírito, temos as associações de emigrantes nos Estados Unidos. Esta forma de reunião e união acontece por meio de associações recreativas e culturais, clubes desportivos e sociais, fundações para a educação, bibliotecas, grupos de teatro, bandas filarmónicas, ranchos folclóricos, sociedades de beneficência e religiosas, e casas regionais. De entre estas, merece relevo a Associação Protetora da União Madeirense, criada em 1911, tendo como primeiro presidente o madeirense João Gouveia. Em Oakland, na Califórnia, surgiu, em 1913, a Associação Protetora Madeirense do Estado da Califórnia, por iniciativa do madeirense José Amaro de Pita, com uma sucursal em New Bedford. Esta Associação deu auxílio aos madeirenses carenciados residentes na Ilha com o envio de apoio monetário, tendo como seu representante, na Madeira, João da Conceição Teixeira. Já em New Bedford, surgiu, em 1915, o Clube Madeirense do Santíssimo Sacramento, que passou a contar, desde 1979, com um grupo folclórico. Este Clube surgiu em torno das festas do Santíssimo Sacramento, celebradas, pela primeira vez, na igreja da Imaculada Conceição no primeiro fim de semana de agosto de 1915. Esta festa, que era celebrada na paróquia do Estreito da Calheta, foi transplantada para os EUA por iniciativa de quatro emigrantes madeirenses: Manuel d’Agrela, Manuel d’Agrela Coutinho, Manuel Santana Duarte e Manuel Sebastião. No Canadá, a primeira associação relacionada com os madeirenses surgiu em 1953, na cidade de Montreal, mas foi em Toronto que, em 1963, nasceu a Casa da Madeira Community Center. A esta associação foram associados um rancho folclórico criado em 1983 e outro criado em 2011, sendo este último designado de Floristas da Madeira. Com ligação a esta Casa, temos o Canadian Madeira Park, onde habitualmente se realizavam todas as atividades desta associação de madeirenses. Destaca-se ainda a Associação Madeirense de Apoio das Festas de Câmara de Lobos em Toronto, uma associação cultural de oriundos de Câmara de Lobos com um objetivo específico. Por fim, é de mencionar o Grupo Folclórico da Madeira Vancouver, criado na cidade de Vancouver, que foi fundado no ano 2000 por Eleutério Rodrigues. No Brasil, um dos destinos tradicionais da emigração madeirense, a presença insular afirma-se a partir de um dos principais destinos desta emigração no séc. XX – o Estado de São Paulo. Em Santos, porto tradicional de chegada e local onde permaneceram muitos dos madeirenses, surgiu, a 14 de abril de 1934, a Casa da Madeira. Aí apareceu ainda, em 1975, o Rancho Folclórico Típico Madeirense do Morro São Bento. Em São Paulo, surgiu uma associação idêntica, que começou a dar os seus primeiros passos a 17 de outubro de 1967, por iniciativa de um grupo de madeirenses liderados por Jaime de Nóbrega e João da Cruz Nóbrega Correia. Em 15 de junho de 1969, ganhou estatuto institucional a Sociedade Amigos Ilha da Madeira, como o objetivo de divulgar os costumes, as tradições, a cultura e o folclore da Ilha, sendo conhecida como Casa Ilha da Madeira. Na Venezuela, país de forte emigração madeirense, ficou especialmente conhecido o Centro Português de Caracas, mas podemos assinalar associações específicas relacionadas com a Madeira. Assim, temos o Centro Social Madeirense de Valência, que surgiu em 1978, por iniciativa de César Andrade, Agostinho Henriques, Agostinho Nunes e Agostinho Pinto; o Grupo Folclórico Luso Venezolano Pérola do Atlântico, criado em 1982 por Ilídio Adriano Pita; a Academia da Espetada; o Marítimo da Venezuela, equipa de futebol criada em 1957 por António Firmino Barros e Artur Brandão Campos; o Grupo Folklorico Luso Venezolano Jardim da Madeira; a Asociación Centro Atlántico Madeira Club, fundada a 26 de agosto de 1984 por um grupo de portugueses radicados no Estado Lara. Na Austrália, a presença madeirense está assinalada também pelas associações. Em New South Wales, forma-se, a partir de 2002, o Grupo Folclórico Regional da Madeira INC e, ainda, o Portugal Madeira Sydney Social & Cultural Sports Club Ltd. Em Victoria, destaca-se o Madeira Folk Dancing Pérola do Atlântico e, na Austrália Ocidental, a Associação de Nossa Senhora do Monte. Na África do Sul, a presença madeirense acontece de forma especial em Durban, Cidade do Cabo, Joanesburgo e Pretória. Nesta última, temos a Casa Social da Madeira de Pretória, que acolhe um rancho folclórico. Em Inglaterra, a presença madeirense é mais notória em Londres, mas há também comunidades em Manchester e Bormouth. A organização madeirense torna-se visível através do Futebol Clube Santacruzense, criado em 1993, da Associação Empresarial Santana Madeira Londres, criada a 22 de janeiro de 2012, e do Grupo Folclórico Pérola do Atlântico. Em França, merece destaque o Grupo Folclórico Fleurs de Madère.   Alberto Vieira (atualizado a 22.12.2016)

Madeira Global

candomblé e umbanda

O candomblé é a religião afro-brasileira dos escravos africanos levados para o Brasil, que aí mantiveram algumas das tradições culturais das religiões de várias partes de África, nomeadamente o culto dos orixas (termo iorubano que significa “ser sobre-humano” ou “Deus”) – manifestações do grande deus Olorum (criador de tudo) que representam as forças da natureza –, que constitui uma forma de xamanismo. Trata-se de uma religião com uma base filosófica, mistérios, crenças e rituais específicos: tem uma teologia própria (estudo dos orixás, experiência da divindade e conhecimento da formação do seu mundo religioso), uma liturgia (todos os ritos, públicos e secretos, existentes na religião para os iniciados, como cantos e danças) e dogmas que sustentam a doutrina desta tradição religiosa. A religião dos orixás – entendidos como entidades espirituais ancestrais dos reis e das rainhas que existiram nas terras africanas e foram levados como escravos para o Brasil – formou-se na Baía no séc. XIX, sendo parte das tradições do povo ioruba (nome do idioma) ou nagô, também chamado nação Ketu. A maioria das religiões de origem africana que se firmaram no Brasil sofreu grande influência deste povo do antigo reino africano, onde surgiriam a República Popular do Benim e a Nigéria. A nação Ketu é considerada a verdadeira raiz africana, enquanto a nação Angola é vista como um braço do Ketu que tornou os seus preceitos ou obrigações mais brandos, mantendo os mesmos fundamentos: resguardo e respeito. O Ketu tornou-se uma espécie de modelo para o conjunto das religiões dos orixás, pelo que as outras nações (assim chamadas por corresponderem a povos) acabaram por incorporar algumas das suas práticas ou rituais. Foram principalmente os candomblés baianos das nações Ketu (ioruba) e Angola (banto) que mais se propagaram no Brasil. A nação Banto ou Angola, dos povos do Congo e Angola, tinha como idioma o quimbundo, sendo facilmente reconhecida pela forma diferente de dançar, cantar e tocar atabaques. Esta nação incorporou os orixás iorubanos, utilizando nomes dos inkices ou divindades bantas. Existem ainda outras variantes de cultos do candomblé no Brasil, mas todas têm o mesmo propósito nas suas crenças e liturgia: o equilíbrio entre os homens e as divindades como ligação do mundo material com o sagrado. Por isso, praticamente todas as variantes seguem as mesmas determinações: iniciação, cânticos (na linguagem original), toque de atabaques, oferendas e sacrifícios. Tradicionalmente, esta religião afro-brasileira vive do conhecimento dos orixás, que determinam as características e o destino pessoal dos crentes. O santo de proteção ou orixá da cabeça (ori) é conhecido através do jogo de búzios feito pela mãe (iaolorixá) ou pelo pai (babalorixá) de santo. Estes comandam as sessões ritualísticas com a ajuda dos seus filhos de santo, iniciados ou iaôs, que têm funções específicas no terreiro, onde se realizam os cultos e os religiosos recebem ou incorporam os santos e/ou orixás que “baixam”. O barracão é a casa central de um terreiro de candomblé, onde acontecem as festividades, os rituais religiosos e as incorporações dos orixás nas pessoas iniciadas, ao som dos tambores. Um iniciado é uma pessoa que é escolhida para ser filho ou filha de santo, passando por anos de aprendizagem sobre a religião, as músicas, os cânticos, as folhas e ervas utilizadas nos trabalhos espirituais ou ebós, maneiras de andar, dançar e estar diante de um pai ou mãe de santo, a história dos povos africanos e os seus eguns (espíritos), entre outras coisas. Enquanto religião, o candomblé foi muito perseguido, mas, no Brasil, a Igreja Católica acabou por aceitar os pais e as mães de santos trajados com os seus filhos de santos. Esta religião sofreu, assim, transformações ao longo dos séculos: por um lado, sincretizou o seu conteúdo com a Igreja Católica, por outro, preservou os elementos essenciais da identidade cultural dos negros africanos escravizados no Brasil. Como escravos de senhores católicos, os negros foram proibidos de cultuar a sua religião, sendo obrigados a assistir às missas nos portais das igrejas. Numa tentativa de fazer sobreviver a sua cultura, começaram a estabelecer paralelos entre as suas divindades e os santos da Igreja Católica, num gesto de sincretismo religioso. Cada orixá tem as suas características, o seu dia, a sua cor, a sua dança, os seus instrumentos, frutas e comidas favoritas, e saudações. Também há uma correspondência entre os orixás e os signos do zodíaco. No que diz respeito à presença do candomblé na Madeira, existem pais e mães de santo na ilha que vieram do Brasil ou que foram formados no Brasil ou por brasileiros e africanos no continente português. O barracão de candomblé ou roça de santo/ casa de santo é um lugar considerado sagrado, onde ocorre a gira para cultuar o orixá. O terreiro engloba o quarto do orixá, o salão para fazer as festas, cantar, exaltar e receber o orixá, etc. Num terreiro de umbanda, tal como no candomblé, a gira é a entrada no recinto da mãe ou pai de santo, ou seja, a abertura para receber uma entidade com o propósito de cura e orientação espiritual. A umbanda (“arte de curar”, do quimbundo de Angola) é uma religião formada dentro da cultura religiosa brasileira, que sincretiza vários elementos: índios (indígenas ancestrais ou caboclos), negros (ancestrais pretos-velhos de África, da religião afro-brasileira candomblé), brancos (religião católica) e da doutrina espírita de Kardec (Espiritismo). Uma das principais diferenças em relação ao candomblé é que, na umbanda, os orixás não incorporam, devido à sua elevada posição na hierarquia divina. A prática da caridade é a característica principal deste culto, que tem por base o evangelho. Ao longo do tempo, a umbanda passou por várias transformações e criou diversas ramificações. Assim, as entidades ou guias que cultua estão ligados a diferentes linhas espirituais: pretos-velhos (linhagem africana), caboclos (sobretudo índios), baianos (também chamados Zés e marinheiros), boiadeiros, povo do Oriente, crianças (erés), exus e pombagiras, entre outros. Na Madeira, existem pai de santo de umbanda que realizaram a sua “feitura”, o “assentamento” ou “fundamento” (cerimónia ou ritual de iniciação) de preto-velho no Brasil ou em Lisboa, na linhagem africana, sendo médiuns de incorporação que juntam o espiritismo e o catolicismo, bem como a sua intuição e visão, na sua atividade. Desde agosto de 2006, existe o Umbanda Center na Madeira, começando a divulgação da religião e a realização de rituais. Este centro ou terreiro de umbanda na Madeira está ligado a uma casa de santo do Rio de Janeiro e foi fundado com o seu apoio. Designando-se primeiramente tenda espírita Sete Luas, o seu nome foi depois alterado para TEMO – Umbanda Center, que significa tenda espírita Mensageiro de Oxalá – Centro de Umbanda. A aceitação do candomblé e da umbanda na Madeira revelou-se um processo lento devido ao preconceito oriundo do desconhecimento destas religiões, que são conotadas negativamente como práticas de macumba e de feitiçaria.   Naidea Nunes (atualizado a 15.06.2020)

Religiões

comunidades madeirenses

A Constituição da República Portuguesa (CRP), na sua versão originária, definia as regiões autónomas como pessoas coletivas de direito público (art.º 229.º); não continha, assim, qualquer preceito que legitimasse o intérprete para eleger o território como seu elemento definidor. Entretanto, a consideração dos condicionalismos geográficos, como elementos que dão fundamento à autonomia, a evidência da individualidade territorial e a sua qualificação como pessoa coletiva de direito público – aproximando-a das outras pessoas coletivas de direito administrativo de base territorial, como a freguesia e o município – fizeram com que rapidamente se vulgarizasse, na doutrina, a ideia de que as regiões autónomas eram entes coletivos de base territorial, isto é, definidas e estruturadas, essencialmente, em função do respetivo território. Quando da revisão constitucional de 1982, tentou-se proceder a uma caracterização correta das regiões autónomas dos Açores e da Madeira, i.e., conforme à realidade das mesmas. Essa tentativa consistiu fundamentalmente em duas propostas: uma tinha em vista substituir, no n.º 1 do art. 227.º, “condicionalismos” por “características”, e incluir nestas, também como fundamento da autonomia, “as características culturais”; outra tinha como fim eliminar no corpo do art. 229.º a referência a “pessoas coletivas de direito público”. A primeira foi aprovada, mas a segunda não passou. Poder-se-á pensar que se está perante um mero jogo de palavras. Mas não é assim. Com efeito, fundar a autonomia nas características dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, em vez de a fundar nos condicionalismos, tem o objetivo de a desconjunturalizar, transformando-a numa imanência da realidade insular. A referência às características culturais insere nos fundamentos da autonomia o elemento que decisivamente define um povo, que é a sua cultura, e que permanentemente o identifica. E que não se trata de uma mera questão de palavras, prova-o a resistência demonstrada pelos membros da respetiva comissão eventual para a revisão constitucional à introdução daquelas alterações. Numa correta caracterização das regiões autónomas, torna-se claro que, se a Constituição fundamenta a autonomia nas características geográficas, económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, é porque as regiões autónomas não são apenas o território, mas sobretudo as pessoas, que são o agente ativo ou passivo daquelas características. Esta consideração permite dar um salto qualitativo, que ultrapassa o território como elemento definidor e contempla o povo madeirense na sua plenitude. Desta forma, a autonomia deixa de ser uma questão que apenas diz respeito às pessoas residentes no território das regiões autónomas para passar a estar intimamente ligada a todos os madeirenses, onde quer que se encontrem. E, se a população emigrante é o dobro ou o triplo da população residente no arquipélago da Madeira, esta ideia nada tem de lírico, antes se insere profundamente na realidade do povo madeirense. Só a esta luz se consegue explicar a expectativa com que os madeirenses espalhados pelo mundo vivem a experiência autonómica e o empenho com que participam nela, bem como as tentativas que têm sido feitas para institucionalizar a participação dos madeirenses não residentes nas instituições autonómicas e de criar mecanismos de ligação e apoio às comunidades que, pelo mundo fora, esses madeirenses constituíram e mantêm. A este respeito, tornou-se conhecida a querela acerca da existência de círculos eleitorais de não residentes que, por via dos mesmos, passariam a ter assento nos Parlamentos regionais. A matéria recebeu consagração legislativa no Estatuto Político-Administrativo dos Açores, e foi declarada inconstitucional em relação ao Estatuto Político-Administrativo da Madeira, matéria que será retomada em passo ulterior do presente texto. Alguns receiam que o reforço da autonomia regional afete a unidade do Estado. E não é por acaso que a base territorial das regiões autónomas é veementemente afirmada pelos constitucionalistas de pendor centralista; como não é por acaso que os responsáveis políticos com uma visão centralista da estrutura do Estado português rejeitam energicamente a conceção institucional de região autónoma. Uns e outros ter-se-ão apercebido de que se está perante uma questão de importância fundamental para a adequada caracterização do sistema autonómico português. É importante reter que, no estado atual do direito português nos começos do séc. XXI, há base formal e legitimidade política para defender que a região autónoma é uma pessoa coletiva de base institucional, que diz respeito a todos os madeirenses e seus descendentes, quer residam na Madeira, no Porto Santo, no continente, nos Açores ou no estrangeiro. Erigir o território como elemento definidor da região  autónoma é uma atitude reducionista da própria autonomia, cuja consequência mais imediata é subtrair à jurisdição das instituições políticas regionais os madeirenses não residentes para, de modo centralista, os colocar sob tutela do Governo central. Na realidade, está-se perante pessoas coletivas de base institucional, já que o que é relevante na caracterização da Região Autónoma da Madeira (RAM) não é o território, mas o seu povo, que está disperso pelos cinco continentes. Não há um censo específico que permita quantificar com rigor este universo de Portugueses, mas calcula-se que só no continente português vivam, no começo do séc. XXI, cerca de 300.000  madeirenses, e nas comunidades radicadas no estrangeiro à volta de 600.000. Nesta “madeirofonia” deverão integrar-se também os “madeirodescendentes”, em número elevado, embora impossível de determinar. É este valioso potencial humano que reclama dos órgãos de Governo próprio da RAM uma política para as comunidades madeirenses no exterior. Trata-se de um universo caracterizado pela dispersão, pela dimensão planetária e pela diferenciação. Com efeito, as comunidades madeirenses encontram-se dispersas por vários países, estão presentes nos cinco continentes e cada comunidade tem características próprias que a diferenciam das demais. As centenas de milhares de madeirenses não residentes e as suas comunidades constituem um elemento estrutural e estruturante da RAM. O espírito empreendedor, a abertura a outros povos e culturas e uma fácil integração nas sociedades de acolhimento, sem prejuízo da sua ligação à terra de origem, são características peculiares da maneira de ser dos madeirenses. É, em grande parte, através dos madeirenses residentes no continente português e no estrangeiro que a RAM se afirma no exterior e que se concretiza a vocação universalista e humanista do povo madeirense. O elo mais forte que liga todos os madeirenses entre si, e à sua terra de origem, é a língua portuguesa, a cultura e as tradições madeirenses. No plano jurídico, é preciso respeitar a igualdade de direitos e deveres entre madeirenses residentes e madeirenses não residentes, bem como defender os direitos e legítimos interesses dos madeirenses não residentes face aos ordenamentos jurídicos e às autoridades dos países de acolhimento, e pugnar pela igualdade de tratamento em relação a todos os não residentes, dando uma especial atenção aos jovens, aos idosos, aos hospitalizados e aos detidos. Ao nível da manutenção e reforço dos laços afetivos e culturais com a Região de origem, deve, em todas as circunstâncias, ser aprofundado o amor à pátria madeirense e cultivado o orgulho em se ser madeirense. Os madeirenses não residentes devem ser defendidos junto dos órgãos de soberania, combatendo todo o tipo de discriminação em relação aos outros Portugueses e assegurando a participação das comunidades madeirenses, através das suas estruturas representativas, na definição das políticas a levar a cabo pelos órgãos de Governo próprio, nomeadamente, na política para as comunidades madeirenses no exterior. Do ponto de vista prático, uma política só é eficaz quando dispõe dos instrumentos e meios adequados à sua concretização. A política direcionada às comunidades madeirenses no começo do terceiro milénio carece, antes de mais, de meios financeiros suficientes e de apoios logísticos idóneos. No domínio deste tipo de políticas, é recorrente a exiguidade das dotações orçamentais, pelo que se torna necessário procurar formas de financiamento para além dos apoios oficiais. Quanto aos apoios logísticos e aos instrumentos adequados para levar a cabo esta política, é preciso ter presente o princípio da universalidade: tais apoios e instrumentos devem permitir que as medidas e ações de política sejam acessíveis a todos, esbatendo ao máximo a tentação natural de privilegiar as comunidades que se encontram mais próximas da região de origem. De entre os meios a utilizar, são de privilegiar uma cobertura consular adequada, uma informação atualizada e o mais ampla possível, e um apoio estratégico ao associativismo, tão vulgarizado e atuante no seio das comunidades madeirenses. A cobertura consular é da competência do Governo da República, cabendo aos órgãos de Governo próprio da Região tirar partido dos consulados, que existem em cada país de acolhimento, beneficiando assim as comunidades madeirenses radicadas nas respetivas áreas consulares. Na déc. de 80 do séc. XX, na Venezuela, cujo território é nove vezes maior que o território de Portugal continental, para uma comunidade de cerca de meio milhão de Portugueses, só existia um consulado de carreira em Caracas, com jurisdição sobre a totalidade do território venezuelano e dos territórios autónomos de Curaçau e Aruba. A maior parte dos Portugueses residentes naquela vasta área consular era de origem madeirense e foi devido ao empenho de um secretário de estados das comunidades portuguesas natural da Madeira que se procedeu à abertura de um novo consulado em Valência e à ampliação e modernização das instalações do consulado em Caracas, melhorando-se substancialmente a cobertura consular naquele país, com benefício para todos os Portugueses lá residentes. A informação a fornecer aos madeirenses residentes fora da Madeira não pode ser só de carácter utilitário, mas também de cariz cultural, social, recreativo, desportivo, o mais ampla e atualizada possível. A informação adequada às comunidades madeirenses terá de ser tridirecional, isto é, da RAM para as comunidades, das comunidades para a RAM e para o país em geral, e das comunidades entre si. Só assim se alcança um conhecimento recíproco, que é o suporte indispensável de qualquer universo que se pretenda coeso e solidário. Trata-se de um desiderato facilmente alcançável graças aos múltiplos meios de comunicação proporcionados pela tecnologia. Não será exagerado considerar que este é o instrumento mais eficaz de política junto das comunidades madeirenses no exterior. O apoio ao associativismo, baseado em uma visão estratégica da presença dos madeirenses no mundo, também é relevante. Tal visão consiste em, para além do apoio prestado ao associativismo tradicional, de cunho saudosista e folclórico, promover o associativismo de jovens e de empresários. É neste ponto que reside, em grande parte, o que permitirá dar o salto qualitativo em matéria de política para as comunidades madeirenses. Ao privilegiar o associativismo jovem e empresarial, contribui-se para uma melhor integração dos madeirenses e dos seus descendentes nas sociedades de acolhimento, o que aumentará a importância política, cultural, económica e social das comunidades portuguesas no seio dos países que as acolhem, e garantirá a sua perenidade no futuro. De facto, só os descendentes da primeira geração de emigrantes poderão perpetuar a sobrevivência das comunidades madeirenses nos países de acolhimento. Para isso é necessário que se mantenham ligados à Região dos seus antepassados e vejam permanentemente vivificada a herança cultural e afetiva que os antepassados lhes legaram. O papel da internet, como já se disse, é fundamental, bem como a existência de programas de rádio e televisão nacionais e regionais especialmente dirigidos a jovens. O recurso às tecnologias de comunicação não dispensa, porém, o conhecimento presencial de lugares e pessoas, através da criação e manutenção de mecanismos que permitam intensificar o intercâmbio de conhecimentos e experiências, através da celebração de protocolos ou parcerias, e da obtenção de apoios públicos e privados que o propiciem. Deve realçar-se, neste contexto, a importância que assume o intercâmbio ao nível do ensino superior, dada a sua repercussão em termos de um maior protagonismo dos jovens descendentes de madeirenses nas sociedades de acolhimento, e a organização de iniciativas específicas que permeiem os jovens participantes por razões de mérito, dando-lhes a conhecer a terra dos seus antepassados. Outro instrumento fundamental a ter em conta é o ensino à distância, tirando partido das plataformas comunicacionais para criar salas de aula virtuais para esse efeito. Ponto fulcral desta política dirigida aos jovens é a preservação e divulgação da língua portuguesa. O português é uma língua estratégica, pelo número de pessoas que a falam em vários países de diferentes continentes. Além disso, é o meio de comunicação privilegiado no seio do chamado mundo lusófono, e constitui o mais poderoso meio de ligação à pátria portuguesa e à região de origem dos portugueses que vivem no estrangeiro, e dos seus descendentes. Daí que a aprendizagem do português deva estar entre as prioridades da política para as comunidades madeirenses. Além do associativismo juvenil, deve estimular-se o associativismo empresarial, não só pela importância de que se reveste o poder económico dos empresários madeirenses nas economias das sociedades de acolhimento e pelas vantagens que daí podem resultar para o desenvolvimento económico da RAM, mas também pelo apoio financeiro que podem dar às iniciativas culturais, sociais e filantrópicas das comunidades de madeirenses, e às candidaturas de madeirenses e seus descendentes a cargos de responsabilidade política nos diferentes níveis da organização do poder político dos Estados onde residem. É conhecido o sucesso empresarial de muitos madeirenses nos países de acolhimento e a repercussão que isso tem na internacionalização da economia portuguesa e no desenvolvimento da sua Região de origem. Foi com o objetivo de reconhecer e aproveitar esse potencial económico que, no início da déc. de 90 do séc. XX, foi criada a Confederação Mundial dos Empresários das Comunidades Portuguesas, e que, durante as décadas que se seguiram, os órgãos de Governo próprio da RAM criaram e mantiveram condições atrativas para que os empresários madeirenses dispersos pelo mundo investissem na sua terra natal. Em termos estratégicos, os empresários, graças ao seu poder económico, também podem desempenhar um papel decisivo na afirmação da presença cultural das comunidades madeirenses no estrangeiro, reforçando a importância global dessas comunidades nos países de acolhimento, quer sob a forma de mecenato, quer sob a forma de simples ajudas financeiras avulsas. O quadro jurídico-constitucional exclui dos poderes das regiões autónomas os chamados atributos da soberania ou poderes soberanos: política externa, defesa, segurança interna e justiça. Mas não em absoluto, já que, para além do direito de audição junto dos órgãos de soberania sobre as questões da competência destes que lhes digam respeito, bem como em matérias do seu interesse específico (art. 227.º, n.º 1, alínea v), da CRP), e do direito de participar no processo de construção europeia (alínea x) do mesmo artigo), os órgãos de Governo próprio têm o poder de participar nas negociações de tratados e acordos internacionais que diretamente lhes digam respeito, bem como nos benefícios deles decorrentes (alínea t) do n.º 1 do art. 227.º da CRP). No âmbito da política para as comunidades madeirenses, estes poderes revestem-se de particular importância, quer no que toca à proteção consular, quer na negociação de tratados e convenções internacionais com interesse para a situação dos madeirenses residentes no estrangeiro, quer no que respeita, em geral, à política do Governo central para as comunidades portuguesas. Trata-se, assim, de um raro domínio em que a RAM participa na execução da política externa do Estado português. O regresso definitivo dos madeirenses que residem no estrangeiro é outro aspeto que não pode ser descurado numa política direcionada às comunidades madeirenses. Trata-se de um fenómeno incontornável, cuja dimensão varia consoante a situação interna dos países de acolhimento. O regresso definitivo de tais cidadãos confronta os poderes autonómicos com problemas específicos, nomeadamente no que toca à inserção escolar de crianças e jovens, à integração no mercado de trabalho, a apoios de natureza social e à aplicação de poupanças. Isto significa que os responsáveis aos níveis político, social e económico devem contribuir para a criação de condições adequadas de reinserção, sob pena de o regresso à terra natal se configurar como uma segunda emigração. A participação dos madeirenses não residentes na vida política, cultural, social e económica da RAM é desejável e deve ter maior expressão. Para o efeito, devem ser legalmente reconhecidas as estruturas representativas das comunidades madeirenses e regulado o modo de participação na conceção e execução dos programas de governação regional e autárquica. A forma como se constituem as estruturas representativas no seio das comunidades madeirenses é outro assunto que não pode ser descurado. A este respeito, a lei deve assegurar que a representação seja genuína, democrática e interclassista. Além das estruturas representativas dos madeirenses residentes fora da Região, devem ser criadas e mantidas instituições, de natureza pública ou privada, que constituam uma presença permanente e visível das comunidades madeirenses no seio da sociedade madeirense, sediadas na cidade capital da Região. A título de exemplo, refira-se a necessidade de existência de um fórum das comunidades madeirenses e de uma fundação das comunidades madeirenses, inexistentes no começo do séc. XXI. O fórum disporia dos seguintes espaços: um núcleo museológico, onde estaria presente a memória da saga das migrações madeirenses ao longo dos tempos e o espólio de individualidades madeirenses com responsabilidades políticas na área das comunidades portuguesas e/ou madeirenses; um núcleo cultural, onde estariam patentes obras relacionadas com a temática das comunidades, resultantes da produção intelectual e artística de madeirenses residentes no estrangeiro, ou até residentes na Região, e onde se levariam a cabo iniciativas de natureza cultural; e um núcleo de apoio aos Madeirenses residentes fora da Região, que compreenderia um universo de serviços de resposta às múltiplas necessidades dos não residentes, e dos regressados definitivamente, perante as entidades e serviços da administração pública autónoma, os municípios da Região e as entidades privadas. O outro exemplo consiste em criar uma entidade que seria a fiel depositária e a gestora dos donativos (feitos a título de mecenato ou outro), das doações e das deixas testamentárias de madeirenses que perecem fora da Região ou de residentes – ajudas e patrimónios que seriam administrados de acordo com o interesse dos madeirenses regressados em situação de emergência social, em obras de solidariedade social e em iniciativas de dignificação da presença dos madeirenses no mundo. A participação política nas eleições regionais, legislativas e autárquicas é recomendável. Os madeirenses não residentes, dada a sua dupla cidadania, portuguesa e europeia, têm o direito de participar nas eleições de âmbito europeu e de âmbito nacional, nos termos da respetiva legislação. A este respeito, merecem especial destaque a eleição do Presidente da República e a eleição dos deputados à Assembleia da República. Por tudo quanto fica exposto, é imperativo concluir que a existência de comunidades madeirenses radicadas fora do território da Região, com a importância que assumem, na Região e nos países que as acolhem, exige dos responsáveis políticos a definição de uma política específica, que abranja as múltiplas vertentes em que tal realidade se desdobra, adequada às especificidades de todas e de cada uma dessas comunidades e com visão estratégica e sentido de responsabilidade face aos interesses vitais da RAM.   Manuel Filipe Correia de Jesus (atualizado a 30.12.2016)

Madeira Global

catequese na diocese do funchal

A catequese é a ação da Igreja para fazer discípulos de Jesus que creiam, em comunidade, que Ele é o Filho de Deus. Articulada com o primeiro anúncio do Evangelho, a busca de razões para crer, a vida cristã, os sacramentos, a integração na comunidade e o testemunho garante a expansão da Igreja em termos de convicção, geografia e número de fiéis. Catequizar foi, desde tempos apostólicos, deixar a Palavra de Deus ecoar nos corações. Partindo da explicação do Antigo Testamento e da memória dos gestos e palavras de Jesus de Nazaré, o anúncio oral foi-se sedimentando através da tradição e dos escritos neotestamentários. Entretanto, têm mudado os intervenientes, o espaço, o tempo e o modo da catequese; as suas mutações coincidem com as reformas da Igreja. É o caso da publicação de catecismos próprios por Lutero (1529) e Calvino (1537), em campo protestante; em âmbito católico, D. Fr. Bartolomeu dos Mártires (Braga, 1564), Fr. Vicente Foreiro (1566, por mandato do Concílio de Trento), os Jesuítas Astete, Ripalda e Pedro Canísio (também no séc. XVI). Entrepunha-se assim, progressivamente, o catecismo entre quem testemunha a fé e quem nela se inicia. É este o contexto de uma cristandade transplantada do velho continente para o arquipélago da Madeira, nos inícios do séc. XV, entretanto constituída diocese em 1514. Os catecismos, que a invenção de Gutenberg difundira, constituem fontes para o estudo da catequese, mas nada dizem do seu método. O texto doutrinal era posto nas mãos dos catecúmenos e catequizandos? Explicado? Comentado? Livremente utilizado como referência? Integrado com outros instrumentos? Responderá Catechesi Tradendae: “A catequese […] compreende especialmente um ensino da doutrina cristã […]. Sem se confundir formalmente com eles, anda ligada com certo número de elementos da missão pastoral da Igreja, que têm um aspeto catequético, que preparam a catequese ou que a desenvolvem” (JOÃO PAULO II, 1979, n.º 18). Tais elementos e doutrina têm merecido, desde os primórdios da diocese funchalense, o cuidado dos seus bispos e colaboradores. Do séc. XVI ao XIX As constituições do bispado, promulgadas em 1579 por D. Jerónimo Barreto, denotam que a doutrina cristã era ministrada por quem ensinava a ler e escrever. Usavam-se papéis e livros de boa doutrina, aproveitáveis aos bons costumes das crianças, entre os quais uma cartilha então reimpressa. Fr. José de Santa Maria, tendo entrado na Diocese em 1691, várias vezes a visitou toda, reuniu um sínodo diocesano e tomou particular interesse pelo ensino da doutrina cristã, publicando e fazendo imprimir instruções práticas para ministrar esse ensino. Ordenado bispo em 1725, D. Manuel Coutinho votou o seu múnus episcopal especialmente à explicação insistente do Evangelho nas paróquias, a uma catequese metódica, às missões evangélicas entre o povo, às visitas pastorais. D. Gaspar Brandão (1757-1784) prosseguiu as missões evangélicas na maioria das paróquias, zelou pela propagação da boa doutrina, pregações e vida de piedade do laicado, do clero e da vida consagrada. Em 1803, o n.º 441 do Heraldo da Madeira noticiou que o morgado João de Freitas da Silva fora mandado instruir-se nos rudimentos da doutrina cristã para o Convento de S. Bernardino, donde fugiu, sendo posteriormente preso na Fortaleza de S. Tiago. Este testemunho denota zelo por parte das autoridades e eclesiásticas e desmazelo da comunidade, mesmo da de elevada extração. Na segunda metade do séc. XIX, os capelães do Hospício da Princesa D. Maria Amélia converteram a Capela seiscentista de N. S.ª da Penha de França em escola e centro de piedade e de ensino do Catecismo da Doutrina Cristã, o qual perdurou no séc. XX. Outro prelado zeloso pela propaganda da doutrina católica foi D. Patrício Xavier de Moura (1870-1872), que imprimiu austeridade de vida no seu clero e disciplina quanto às leis eclesiásticas. Os leigos também assumiram o seu papel na catequese e demais evangelização; oriundos de diferentes estratos sociais, fundaram, em 1874, a Associação Católica do Funchal. Esta tinha por missão defender e propagar a doutrina católica por meio de conferências, prática de atos religiosos e uma oficina de impressão. Desta saiu, desde 1875, e durante anos, o jornal A Verdade. Vinda do mundo britânico e anglicano, a Ir. Wilson encontrava, em 1881, uma catequese restrita e deficiente, pelo que fundou diversos centros catequéticos por toda a diocese. Igualmente estimulada pela pregação protestante, foi aprovada, em 1893, a Obra de S. Francisco de Sales. Permitiu, num só ano, abrir nove escolas em que se ensinava o catolicismo a cerca de 500 alunos, as quais se foram estabelecendo em dezenas de paróquias. Fonte histórica preciosa é o Boletim Mensal Diocesano daquela Obra, dirigido pelo P.e Xavier Prevot, da Congregação da Missão e professor do Seminário. O séc. XX 1905 trouxe à luz o Catecismo da Doutrina Cristã Composto Especialmente para a Diocese do Funchal. Em 1917, de Lisboa, foram publicadas as 288 páginas do Catecismo da Doutrina Cristã da Diocese do Funchal. Entretanto, estabeleceu-se, em 1912, na diocese do Funchal, a Confraria da Doutrina Cristã, para fornecer os rudimentos principais da doutrina cristã, em igrejas, capelas e novos centros de catequese. A transição do séc. XIX para o XX, marcada pelo laicismo, mas também pela atenção à criança, revolucionou a catequese. Pio X quis que esta se sistematizasse, conduzindo as crianças à comunhão solene, a primeira, pelos 10 ou 11 anos. À encíclica Acerbo Nimis, de 1905, e ao Catecismo, de Pio X, sucedeu, em 1910, o dec. Quam Singulari, que apontava a idade da razão, pelos sete anos, como suficiente para ser iniciado à penitência e à eucaristia. O Código de Direito Canónico de 1917, o dec. Provido Sane de Pio XI (1935) e o Concílio Plenário Português (1926) preconizavam a organização da catequese na paróquia, na diocese e a nível nacional, respetivamente. Paroquialmente, os presbíteros “explicavam” uma catequese em ordem à primeira comunhão das crianças, das quais voltariam algumas, entretanto crismadas, para a comunhão solene. Ineficaz, o desejo do Concílio Plenário Português de 1926 só se concretizaria com a autonomia do Secretariado Nacional da Catequese (1952): a publicação dum Catecismo Nacional (1953-1956). Dos anos 20 aos 50 do séc. XX, caminhou-se para a adoção deste catecismo pelas dioceses. Neste contexto, D. David de Sousa criou no Funchal, a 6 de agosto de 1959, o Secretariado da Catequese, articulado com a “religião” no início da escolaridade, contando com consagradas e presbíteros entre os delegados das várias partes da diocese e uma equipa de estudos. Esta, na segunda ata, distinguia o papel do ensino e dos centros paroquiais de catequese: “Na escola […] vai falar-lhes à inteligência; e, no centro, […] vai completar tudo por meio de um conto, por meio do filme, ensinando a estar dentro da igreja, ensinando outra coisa prática” (SECRETARIADO DIOCESANO DA CATEQUESE, 1959-1960a, 3). Das Atas do Secretariado da Catequese consta um resumo de atividades: além de se criar o Secretariado e, a 21 de novembro de 1959, as regiões, nomearam-se os delegados destas, fez-se um inquérito acerca do estado da catequese, foi aprovada legislação concernente à catequese, a 28 de abril de 1960, realizaram-se 17 cursos (para os delegados, nas regiões e paróquias, para religiosas e professoras), 10 reuniões (metade para delegados, as restantes para a equipa de estudos) e 13 visitas do responsável diocesano a escolas de religiosas. Desde então, aumentou o número de catequistas leigos e seus formadores. O mundo foi-se tornando pluralista. A catequese ganhou outra consciência de si própria, conforme ao Concílio Vaticano II, ao serviço da Palavra de Deus (constituição Dei Verbum) e de quantos, cedo ou tarde, queiram conhecer, celebrar, amar, testemunhar Cristo (decreto Ad Gentes). Ainda o primeiro Catecismo Nacional não destronara o de Pio X, já os catecismos conciliares estavam no prelo (1969). Surgido para disponibilizar o novo catecismo nacional, o Secretariado Diocesano funchalense, até então mais nominal, recebeu considerável tempo de dedicação do P.e Juvenal Pita Ferreira. Tendo falecido, sucederam-lhe Manuel Ferreira Cabral, entretanto eleito bispo auxiliar de Braga, o P.e Dr. Sidónio Peixe, por um ano, e o cónego Tomé Velosa, entre 1966 e 2002. A obra deste último é fonte preciosa para a história da catequese no período referido e períodos antecedentes, pelo que me cingirei a alguns aspetos dela. D. João Saraiva esteve à frente da igreja funchalense entre 1966 e 1972. Promoveu a formação com vultos como Cassiano Floristán, Manuel Useros Carretero, François Coudreau, Amílcar Amaral, etc., e acompanhou a realização da “nova” catequese que propunham: partindo da vida iluminada pela Palavra de Deus e voltando para a vida. Destinados a catequistas, multiplicaram-se, entre 1966 e 1974, o curso de iniciação (o abecê dos novos métodos pedagógicos, psicologia aplicada), o curso complementar (teologia, pedagogia da fé, psicologia e catequética), o estágio e formação permanente, nomeadamente com o lançamento de novos catecismos. Aos presbíteros dedicaram-se jornadas de atualização acerca da catequese e confiou-se a alguns, além da missão catequética de párocos, a de delegados regionais. Incentivou-se a estruturação da catequese nas paróquias e a colaboração com a educação moral e religiosa católica, a começar nos primeiros anos de escolaridade. Promoveu-se o Dia Catequístico, de formação e convívio, em quatro regiões. As paróquias disponibilizavam meios humanos, logísticos e financeiros à obra da catequese. O Secretariado prosseguia a formação dos catequistas, essa “escola permanente”, no dizer de D. João. Este autorizou o arrendamento de uma sede (até então na antiga Câmara Eclesiástica) para o Secretariado, no Funchal: inicialmente, no n.º 230 da rua dos Ferreiros (1966-1969) e, depois, na rua do Bispo, n.º 16 (1969-1989). Em 1967, o Secretariado do Funchal iniciou o programa radiofónico “Mensagem”, publicou o boletim Crianças e, com “Abertura” do seu bispo, foi cofundador da Revista da Catequese, interdiocesana, fundida em 1969-1970 com a patriarcal Voz da Catequese. Em 1970, o encontro nacional de catequese, uma reunião com periodicidade anual, juntou no Funchal os responsáveis da catequese das dioceses portuguesas, o qual se viria a repetir em 1990 e 2010. Entretanto, concluía-se em Roma (1971) o Directório Catequístico Geral e o Congresso Catequístico Internacional. Entre 1974 e 1982, reorganizou-se o Secretariado, intensificaram-se os estágios e os encontros de reflexão para catequistas, por zonas interparoquiais. D. Francisco Santana esteve no Funchal entre dois sínodos romanos: um sobre a evangelização (1974) e outro sobre a catequese (1977), após os quais viriam a lume as exortações apostólicas Evangelii Nuntiandi (1975) e Catechesi Tradendae (1979). Quis impulsionar os animadores de zona, que seriam colaboradores e não fiscalizadores das paróquias, com funções de âmbito diocesano no campo da catequese. No Corpo de Deus de 1978, aconteceu o Dia Catequístico Diocesano, em que D. Francisco agraciou os catequistas que celebravam bodas de prata e ouro.  Regressado ao Funchal como bispo, D. Teodoro de Faria pastorearia a diocese de 1981 a 2007; apresentou-se-lhe as atividades do Secretariado Diocesano, entre as quais um centro experimental de catequese e formação diversificada de catequistas. Foi tempo de jornadas catequísticas locais e nacionais; preparação para o ano santo de 1983-1984 e para o ano mariano de 1988, com peregrinação dos catequizandos à Sé para a visita do papa João Paulo II, em 1991 (ano da C); Dias Catequísticos com cunhagem e atribuição de medalhas a catequistas. Propôs-se o curso de iniciação às paróquias; o geral às zonas. No mesmo ano, após errar pela cidade, o Secretariado Diocesano da Educação Cristã adquiriu sede, à rua Fernão Ornelas, e personalidade jurídica, em 1992. Apresentou os 10 novos catecismos, que começaram a ser editados em 1991, e, em 1997, o Catecismo da Igreja Católica e o Diretório Geral da Catequese. O presente Em 1999, D. Teodoro integrou na direção do Secretariado o autor destas linhas, nomeando-o seu responsável em 2002, função em que foi confirmado por D. António Carrilho, bispo do Funchal desde 2007. Da atual atividade do Secretariado, referimos apenas a do departamento da catequese. Este integra outros membros com formação teológica superior e/ou especializada em áreas afins, fruto da aposta pessoal e dos bispos diocesanos na escola teológica e Universidade Católica Portuguesa. A formação inicial para ser catequista segue o Curso de Iniciação publicado pelo Secretariado Nacional da Educação Cristã em 1999. Aborda a identidade do catequista, do catequizando, da catequese e o seu método, tem a duração de 16 horas, realiza-se predominantemente nas paróquias e atinge uma média anual de duas centenas de formandos, a qual diminui na formação subsequente, o curso geral. Este acontece a nível central e interparoquial e tem sido renovado entre nós até 2012, ano da publicação nacional da Catequética (identidade e método da catequese), depois de a Psicologia e a Doutrina (conteúdos bíblicos e teológicos). A formação permanente dos catequistas tem incidido sobre temas concernentes à espiritualidade e ação do catequista e a utilização dos novos instrumentos escritos e audiovisuais publicados desde 2005. Realiza-se a nível paroquial, interparoquial e diocesano, nomeadamente no Dia Diocesano do Catequista, em que o bispo da diocese congrega acima de um milhar de catequistas. Da catequese das crianças e adolescentes, passamos atualmente à escola paroquial de pais, autêntica catequese de adultos, em que a Igreja os ajuda a crescer e fazer crescer na fé os filhos. Perfilam-se no futuro próximo a atenção à adolescência, como idade progressivamente diferenciada da infância, e a catequese familiar, em que os pais assumem-se como o sujeito da catequese dos filhos. Além das publicações nacionais, o Secretariado do Funchal promove algumas edições complementares. Estudos de teologia pastoral realizados em fins do séc. XX na diocese do Funchal indicam que os seus diocesanos são batizados maioritariamente antes da “idade da razão”, sendo residual o número dos que o fazem após os 15 anos de idade. Ingressados na catequese por essa idade, uma percentagem crescente de catequizandos desiste após a primeira comunhão e à medida que se aproxima o final do itinerário catequético. A catequese de iniciação termina normalmente com a celebração da confirmação, sendo raros os casos de catequese dirigida a adultos iniciados na fé.   António Héctor de Araújo Figueira (atualizado a 29.12.2016)

Religiões

exílio

“Exílio” (lat. exilium) significa banimento, desterro ou degredo, sendo o estado de ter sido expulso e estar longe da própria casa, cidade ou nação, podendo assim ser definido também como a expatriação, voluntária ou forçada, de um indivíduo. Alguns autores utilizam o termo “exilado” no sentido de refugiado, embora esta última situação se enquadre somente no quadro de autoexílio ou exílio voluntário, como aconteceu na Madeira no período do absolutismo miguelista. No contexto da Madeira, a situação de exílio, ao contrário da situação de asilo, que pressupõe a ida de elementos nessa situação para a Ilha, aponta para a expulsão de elementos madeirenses da sua casa ou da sua terra. Além de pessoas, pode haver também governos em exílio, como o do Tibete face à invasão do seu território pela China, ou mesmo nações em exílio, como foi o caso dos judeus, exilados na Babilónia no séc. IV a.C. e, depois, após a destruição de Jerusalém, noutros locais, no que ficou conhecido como diáspora. Tal foi também, entre 1078 e 1375, o caso da Arménia, que, depois da invasão do seu território por tribos seljúcidas, se exilou na baixa da Anatólia, na posterior Turquia, formando um novo reino. O termo não tem sido extensivo à deslocação da corte portuguesa para o Estado do Brasil, até então vice-reino, por se entender que se manteve em território nacional. Tal território foi inclusivamente elevado a reino, passando D. João VI, a partir de 16 de dezembro de 1815, a intitular-se Rei de Portugal, Brasil e Algarves, reino que, a partir de 13 de maio do ano seguinte, passou a ter armas próprias. Alguns indivíduos, sentindo-se ameaçados ou vítimas de perseguição política, racial ou religiosa, podem igualmente procurar exílio por iniciativa própria em outros locais ou países, sem que tenha havido qualquer ato legal ou jurídico para tal. Costuma chamar-se a essa atitude autoexílio ou exílio voluntário, embora essa posição seja, na generalidade, desvalorizada pelas autoridades no poder por não configurar um exílio imposto, ou seja, oficial, não sendo assim facilmente detetada na documentação. Somente em meados do séc. XVIII se pode escrever concretamente sobre situações de exílio na Madeira, pois que até então não havia uma concreta consciencialização política que permitisse equacionar tais casos. Porém, já nessa altura ocorreram inúmeras situações de degredo, mas por processos judiciais e não políticos ou religiosos, como na contemporaneidade. Ao analisarmos, e.g., a documentação da Inquisição, constatamos que, nos finais do séc. XVI, terá havido uma forte corrente de autoexílio por parte da comunidade de cristãos-novos madeirenses, quer para Amesterdão, quer para o Brasil. Tal não se terá devido a motivos especificamente religiosos, mas ao medo de futuras denúncias relativas à sua situação, pelo que, instalando-se na Holanda, logicamente acabariam por professar o judaísmo. A ilha da Madeira foi visitada, nos finais do séc. XVI, entre 1591 e 1592, pelo inquisidor Jerónimo Teixeira Cabral (c. 1550-1614), que, entre 1600 e 1614, foi bispo de Angra, tendo sido denunciadas quase 200 pessoas e organizados quase 100 processos, na base dos quais se viria a organizar depois o “Rol dos Judeus e seus Descendentes”. Em 1618, voltou a haver nova visitação, então a cargo de Francisco Cardoso de Torneo, deputado do Tribunal de Coimbra, que terá ficado surpreendido com a escassez de denúncias por judaísmo na Madeira. Assim, a 23 de outubro de 1623, foi à Inquisição de Lisboa Francisco Gomes Simões, cristão-velho, piloto de nau e morador na Madeira, para informar que, tendo partido da Madeira para a Flandres cerca de 5 anos antes, vira ali muitos portugueses fugidos do reino, que lá viviam como judeus. Francisco Simões denuncia cerca de uma dezena de pessoas, entre as quais três que tinham vivido na Madeira: “porquanto ele denunciante partindo das ilhas para a dita cidade de Amesterdão, o senhor Francisco Cardoso, inquisidor, que então visitava as ditas ilhas, lhe encomendou que fizesse na dita cidade diligências sobre as pessoas de nação que para ali eram fugidas, de que ele, denunciante, as fez muito largas e lhas mandou das ditas ilhas” (ANTT, Inquisição de Lisboa, Cadernos do Promotor, n.º 202, fl. 301). O autoexílio em questão dos três cristãos-novos detetado nos inícios do séc. XVII era, assim, perfeitamente residual, o mesmo se passando nos dois séculos seguintes, ainda que existissem sempre informações pontuais sobre o autoexílio da chamada gente de nação. Nos meados do séc. XVIII, com a centralização do poder régio e a ação do Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804) (Pereira, João António de Sá), existem casos de exílio por razões políticas, embora à data não fossem naturalmente assim apresentados. O referido governador, e.g., mandou prender e degredar para o norte da Ilha o P.e João José Bettencourt de Sá Machado (1707-1781), que, embora mulato e filho de uma escrava, frequentara a Universidade de Coimbra, fazendo-se inclusivamente acompanhar de um criado branco. O padre afrontara, em várias reuniões, as despóticas diretivas do governador, alvitrando que, como capitão-general, a sua ação se deveria restringir à organização militar e pouco mais. Estas opiniões valeram-lhe o desterro do Funchal, não se cansando o governador de repetir que o “soberbo, arrogante e dissoluto clérigo”, “pardo por nascimento, como filho que é de uma preta”, afrontava as suas ordens (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 4804 e 4805). O clérigo em causa era meio tio-avô de Guiomar Madalena de Vilhena (1705-1786), levando a família a intervir a seu favor na corte de Lisboa. O Gov. João António de Sá Pereira tomou idêntica atitude com o Cón. Pedro Nicolau Acciauoli e com o Cón. António Acciauoli, assim como com o P.e Luís Spínola, todos enviados para Lisboa sob escolta do sargento-mor, o que levou o intendente Pina Manique (1733-1805) a investigar a atitude do governador, ouvindo o sargento-mor a esse respeito. O clero madeirense nem sempre se pautou pela contenção devida ao seu ministério. Note-se, e.g., que, tendo-se reformado o P.e António Maria do Sacramento, capelão da infantaria de guarnição da Madeira, propôs-se a nomeação do P.e Francisco José da Silva. No entanto, como expôs para Lisboa o Gov. Diogo Pereira Forjaz Coutinho (1726-1798) (Coutinho, D. Diogo Pereira Forjaz), “algum tempo depois da expedição desta proposta, ele se ausentou fugitivamente desta ilha, por se lhe imputar o crime de esperar traiçoeiramente um homem” e o tentar assassinar à espadeirada (ABM, Governo Civil, liv. 519, fls. 141v.-142). O padre, entretanto, não voltou à Madeira, acabando o governador por ter de apresentar outro para o lugar. O referido exílio do P.e Bettencourt de Sá Machado para o norte da Ilha não foi caso único. Na complexa situação da ocupação inglesa de 1801 a 1802, o Gov. José Manuel da Câmara (c. 1760-c. 1825), em 1803, chegou a exilar o bispo D. Luís Rodrigues de Vilares (c. 1740-1810) para o Santo da Serra. O bispo teria tido reuniões secretas com o cônsul inglês e com outros elementos dados como maçons, pelo que, em junho de 1803, o governador comunicou tal situação para Lisboa, fixando-lhe residência no Santo da Serra e proibindo-o de entrar no Funchal. A decisão foi revogada pelo Governo de Lisboa num curto prazo de meses, a 22 de agosto, mas a situação de conflito entre as duas autoridades não deixou de piorar, pelo que acabaram por ser obrigados a regressar a Lisboa em navios separados. Na Madeira, a situação complicou-se nos finais do séc. XVIII com a verdadeira guerra levada a efeito pelo bispo do Funchal, D. José da Costa Torres (1741-1813), contra as lojas maçónicas (Maçonaria). O bispo arvorou-se em defensor dos interesses da Coroa e do Estado, posição que, prudentemente, não quis assumir o Gov. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, perseguindo o prelado, feroz e primariamente, os elementos que entendia ligados à Maçonaria. O bispo perseguiu a tal ponto os presumíveis maçons do Funchal, em princípio com o tácito acordo do governador e até com ordens emanadas de Lisboa, que famílias inteiras tiveram de abandonar a Madeira. D. José da Costa Torres exorbitou, assim, a tal ponto as ordens recebidas, que o próprio Governo central teve que intervir nos excessos praticados pelo prelado, ordenando-lhe que soltasse grande parte dos acusados e “recomendando-lhe a maior moderação no castigo dos delinquentes” (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 918). A perseguição envolveu civis, militares e eclesiásticos, citando-se em documento oficial que, inclusivamente, “demitira, suspendera e prendera, por castigo alguns eclesiásticos” (SILVA e MENESES, 1998, I, 326), pelo que, tendo já sido transferido para Elvas, foi violentamente levado da sua residência privada, então na Penha de França, para o embarcarem para o continente. A memória das lojas maçónicas madeirenses manter-se-ia na corte de Lisboa. Dissolvidas as Cortes, derrogada a Constituição de 1822 e restabelecido o Governo absoluto em julho de 1823, a Madeira era de novo assolada por uma alçada. Em causa estavam as questões das lojas maçónicas, dos vagos mas emergentes partidos políticos (Partidos políticos) e das ligações às ideias liberais, tudo indiciando que os madeirenses queriam subtrair-se à Coroa portuguesa e ligar-se à Inglaterra. Num breve espaço de tempo, havia mais de uma centena de presos, embora só viesse a ser condenada uma dezena deles. De qualquer forma, eram muitos os indiciados e vários saíram da Madeira. A Ilha veio, assim, a ser desapropriada de muitos dos seus principais quadros, entre morgados, funcionários públicos, cónegos e vigários, escritores, militares de todas as patentes, etc. Tal alçada não seria, infelizmente, a última, pois, com a tomada de poder pelo infante D. Miguel (1802-1866), em 1828, e conquistada a Ilha pelas forças absolutistas, nova alçada era enviada à Madeira, levando à prisão quase duas mil pessoas acusadas de “malhados” e maçons. Num curto espaço de tempo, a Ilha perdia, de novo, exilados para Cabo Verde (Cabo Verde), Angola e Moçambique, parte dos seus principais quadros sociais e económicos, militares, administrativos e religiosos. Muitos deles não voltariam à Madeira, optando por ficar em Londres e, depois, no continente, havendo uma parte que optou por emigrar para o Brasil. Ao longo dos sécs. XIX e XX, a Madeira foi um dos principais locais de exílio das várias revoltas políticas ocorridas no continente. Na sequência, e.g., da Revolta de Torres Vedras, a 4 de fevereiro de 1844, foram enviados para a Madeira 23 dos insurgentes, entre advogados, eclesiásticos e militares. Os primeiros deram entrada na fortaleza do Ilhéu a 20 de abril, e os seguintes na do Pico, mas todos vieram a ser colocados em liberdade após o malogro da Revolta. Também ao Funchal chegavam, a 8 de maio de 1919, os prisioneiros políticos da Revolta de Monsanto, a bordo do vapor África, da Empresa Nacional de Navegação, o qual fora arvorado em transporte de guerra. Os deportados monárquicos, em número de 289, foram acompanhados de uma força da Marinha, desembarcando três dias depois e sendo instalados no Lazareto de Gonçalo Aires. Não obstante as precauções, no dia 3 de junho deu-se pelo desaparecimento de oito prisioneiros, sabendo-se depois que tinham chegado a Las Palmas, na lancha rápida Glafiberta, pertencente ao sportsman Humberto dos Passos Freitas (1893-1926) (Freitas, Humberto dos Passos), que preparara a evasão. A situação mais complicada veio a ocorrer com a Revolta do Porto, de 1927, na sequência da qual uma série de militares foi para a Madeira. Embora deportados, estes gozavam de uma certa liberdade de movimentos e de contactos, podendo alguns estar por detrás do movimento popular conhecido como Revolta das Farinhas, entre 4 e 9 de fevereiro de 1931 (Revolta das Farinhas). A ditadura destacou então para a Madeira uma força especial, sendo os oficiais subalternos da mesma quem desencadeou, a 4 de abril de 1931, a chamada Revolta da Madeira (Revolta da Madeira). Na sequência deste acontecimento, constituiu-se um Governo autónomo com os principais militares deportados na Ilha, mas também civis, como Manuel Gregório Pestana Júnior (1886-1969), que fora ministro das Finanças do Governo de José Domingos dos Santos (1885-1958), nos finais de 1924 e inícios de 1925. A ditadura responderia um mês depois, quase com todas as forças disponíveis no continente, inclusivamente hidroaviões, recuperando a situação, tendo então os principais revoltosos sido deportados para Cabo Verde e Moçambique. O Ten. Manuel Ferreira Camões (1898-1968) e o Ten. Manuel Silvio Pelico de Oliveira Neto (c. 1888-1953) haviam de se radicar na ilha de S. Nicolau, em Cabo Verde, lugar onde continuaram a ser recordados (Cabo Verde). Deportados da Revolta da Madeira em Cabo Verde. 1932. Arquivo Rui Carita Pela Madeira tinham, entretanto, passado exilados internacionais de grande destaque, como, em 1921, o ex-Imperador da Áustria, posteriormente designado por beato Carlos de Habsburgo (1887-1922), acompanhado da família. Depois de breves dias na Vila Vitória, anexa ao Reid’s Palace Hotel, instalou-se na Qt. do Monte (Quinta do Monte), onde viria a falecer de pneumonia dupla a 1 de abril de 1922, sendo os seus restos depositados na igreja de N.ª Sr.ª do Monte, onde permaneceram. Estaria também alguns dias no Reid’s Palace Hotel, nos finais de 1959, o Gen. Fulgêncio Batista (1901-1973), que havia sido derrotado pela Revolução Cubana em janeiro desse ano. Mais tarde, o Funchal ainda seria local de exílio dos principais governantes portugueses afastados com o pronunciamento militar de 25 de abril de 1974: o ex-Presidente da República Américo de Deus Rodrigues dos Reis Thomaz (1894-1987), o ex-presidente do Conselho José das Neves Alves Marcello Caetano (1906-1980) e os ex-ministros Joaquim Moreira da Silva Cunha (1920-2014) e César Moreira Baptista (1915-1982).   Marcello Caetano e Américo Thomaz na Madeira. Comércio do Funchal.01.05.1974. Arquivo Rui Carita   Declaração de Entrega dos Ex-membros do Governo. 26.05.1974. Arquivo Rui Carita           Rui Carita (atualizado a 03.01.2017)

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