Mais Recentes

orçamento

Análise da forma e da evolução dos orçamentos, tendo em consideração os nacionais e os locais, através da Junta Geral e do Governo Regional. Palavras-chave: Orçamento; Junta Geral; Governo Regional. O orçamento é a previsão da receita e despesa para o ano económico. É a partir da Lei do Orçamento, aprovada pelo Parlamento, que o Estado está autorizado a cobrar receitas e a efetuar as despesas. Os orçamentos são uma realidade recente, em termos de contabilidade, pois iniciam-se, formalmente, em Portugal, em 1533. No entanto, há quem aponte a sua existência a partir de 1473. Até então, não passavam de meros relatórios de contas realizados por um contador, sob a supervisão do vedor da Fazenda. Nos sécs. XVI e XVII, eram apenas registos de previsão da despesa realizados pelo vedor da Fazenda; tratava-se de documentos de carácter irregular, que só eram feitos mediante solicitação superior. No que diz respeito ao Reino, temos referências a documentos orçamentais dos anos de 1526, 1534, 1557, 1607 e 1619. Destes, podemos referir para o Estado da Índia os de 1574, 1581, 1588, 1588-90, 1607, 1609-12, 1620, 1635, 1680 e 1687. O orçamento e modelo de gestão orçamental que vigora no começo do séc. XXI, como ato jurídico, foi estabelecido na Constituição de 1822, mas só teve execução a partir de 1834. De acordo com a Constituição de 1822 (arts. 103 e 227), a Carta constitucional de 1826 (arts. 15, 136 e 138) e a Constituição de 1838 (art. 37, 54, 132 e 136), competia às Cortes determinar a despesa pública e os impostos a arrecadar, assim como fiscalizar a sua execução anual. O orçamento foi reformado pela Constituição de 1911 (art. 23, 26 e 54) estabelecendo-se, no art. 54, que deveria ser entregue ao Congresso, para discussão e apresentação, até ao dia 15 de janeiro. Mas nem sempre esta situação aconteceu, por força da instabilidade política que se viveu durante a Primeira República. Assim, entre 1918 e 1926, apenas dois foram aprovados e, ainda assim, com algum atraso. Nestas circunstâncias, recorria-se às Leis de Meios e aos duodécimos. Com a Constituição de 1933 – que surge como resultado do golpe militar de 1926 e da reforma fiscal apresentada por Salazar –, retira-se à Assembleia Nacional a capacidade de aprovar e fiscalizar o orçamento, que passa a ser elaborado e posto em execução pelo Governo. Desta forma, a Assembleia aprova uma Lei de Meios genérica e, ao Governo, fica a liberdade de estabelecer o Orçamento Geral do Estado, que será publicado sob a forma de decreto orçamental. Em algumas circunstâncias, a situação passa por uma norma legal que estabelece o orçamento do ano anterior, como aconteceu entre 1896 e 1910. São aqui referidos os anos económicos sem orçamento definitivo: o período de 1821-1836, 1838-39, 1840-41, 1842-43, 1843-44, 1844-45, 1847-48, 1851-52, 1856-57, 1858-59, 1859-60, 1861-62, 1862-63, 1865-66, 1868-69, 1869-70, 1870-71, 1871-72, 1879-80, 1905-06, 1906-07, 1910-11, 1919-20, 1920-21, 1921-22, 1924-25 e 1925-26. Nesta enumeração, deveremos diferenciar o orçamento das propostas governamentais e dos diplomas de aprovação do mesmo: as propostas governamentais de orçamento reportam-se a 1913-14, 1917-18, 1919-20, 1925-26, 1926-27 e 1936-347. De acordo com os preceitos constitucionais do Estado Novo, a aprovação do orçamento pelo Parlamento fazia-se através de uma lei, chamada Lei da Receita e da Despesa. Assim, o Parlamento deveria aprovar, antes do início do ano económico, o respetivo Orçamento, apresentado pelo Governo. Antes de o submeter à apreciação da Assembleia, o Governo deveria aprová-lo por decreto-lei. Com a Constituição de 1976, foi criada uma Lei do Orçamento de Estado, e o Governo tem de aprovar o Orçamento através de um decreto orçamental. Junta Geral da Madeira (1903-1976) Com a definição da autonomia distrital a partir de 1901 surgiu a figura institucional da Junta Geral, que gere o Governo do distrito do Funchal. Era esta junta que exercia a administração do espaço do arquipélago, mediante competências delegadas. Os orçamentos desta Junta Geral eram elaborados e propostos pela Comissão Distrital do Funchal para aprovação à Junta Geral na última sessão ordinária do ano civil, devendo entrar em execução a partir do dia 2 de janeiro do ano a que se reportavam. A não existência do mesmo na data era considerada motivo para a demissão da comissão que presidia à Junta. Os orçamentos das Juntas Gerais eram equiparados, em termos de contabilidade, aos orçamentos a que estavam obrigados os concelhos de primeira ordem (art. 33), isto é, os mais importantes no quadro da administração municipal. Esta ideia, determinada no Estatuto, implicava uma exigência em termos procedimentos contabilísticos. A lei n.º 88 de 1913 dedica o capítulo II aos orçamentos, onde estão definidas as regras da sua estrutura e elaboração, bem como dos tipos de orçamentos que a Junta pode elaborar: ordinários e suplementares. Os últimos acontecem apenas como resultado de alterações que sucedam no decurso da execução dos primeiros, não havendo qualquer limite quanto ao número dessas alterações. Esta situação e a transferência de verbas orçamentais eram autorizadas pelo governador civil, depois de ouvida a Comissão Distrital. Em termos de política orçamental, a comissão executiva da Junta apenas estava autorizada a proceder a transferências de verbas entre as diversas rubricas. O valor anual do orçamento era imutável, i.e., os orçamentos suplementares não aumentavam nem diminuíam o valor inicial atribuído à receita e à despesa, a não ser que ocorresse uma receita extraordinária e existisse a necessidade de aplicá-la. As principais fontes de receita da Junta Geral eram os impostos (impostos distritais, contribuições diretas e adicionais, imposto do vinho de estufa, imposto para hospitalização de alienados e socorros a náufragos, impostos sobre o açúcar, o álcool e a aguardente, imposto sobre os combustíveis, fundo de viação e turismo, contribuição predial, contribuição industrial, imposto sobre capitais, imposto sobre transações, imposto de camionagem, imposto profissional, imposto de trânsito, imposto de compensação, imposto do tabaco, imposto do selo, imposto de circulação, as cobranças estabelecidas no art. 1.º do dec.-lei n.º 34051 e no art. 2.º do dec--lei n.º 34051, bem como os emolumentos, as multas e taxas, as receitas de diversos serviços, o rendimento das levadas do Estado, os recebimentos para outras entidades, os subsídios, os empréstimos, as dívidas, os subsídios do fundo de desemprego e outras receitas. Devemos ainda assinalar, desde 1956, o adicional de 10 % sobre o imposto profissional, assim como diversos adicionais consignados a certas despesas. Assim, por despacho ministerial de 30 de dezembro de 1953, foi estabelecida uma taxa sobre a entrada e saída de mercadorias para a assistência distrital. A isto acrescentara-se, em 1933, as comparticipações de 50 % do fundo de Desemprego para as obras de utilidade pública. As principais despesas obrigatórias eram: os vencimentos do pessoal; as pensões de aposentação; os encargos de empréstimos; o pagamento de dívidas exigíveis; as despesas com os litígios; as despesas de dotação dos serviços distritais; a hospitalização de alienados. Ainda temos as despesas relacionadas com o funcionamento do Governo Civil, com as escolas do ensino liceal e técnico; com a delegação do Tribunal do Trabalho e Previdência; com o Tribunal do Trabalho; com a direção do distrito escolar; com o Arquivo Distrital; e as despesas de representação do presidente da Comissão e do Governo do distrito. Governo Regional da Madeira A Constituição de 1976 estabelece um regime híbrido entre a Constituição de 1933 e os anteriores textos constitucionais. Deste modo, ao Governo compete elaborar o orçamento, publicado por decreto-lei orçamental, enquanto à Assembleia compete aprovar a Lei do Orçamento. O plano de atividades, que fundamenta a despesa e que até então era apresentado de forma separada, passou a estar integrado no orçamento. Com a revisão constitucional de 1982, a Assembleia aprova o orçamento, e ao Governo compete executá-lo. Na revisão de 1989, a mudança mais significativa prende-se com o regime do plano de atividades. A integração de Portugal na União Europeia implicou alterações da política orçamental, nomeadamente a partir da assinatura do Tratado de Roma, a 7 de Fevereiro de 1992, que determinou a necessidade de convergência económica e financeira. Nesse quadro, releva-se a fiscalização, pela Comissão Distrital, da evolução da situação orçamental, designadamente no que concerne à dívida pública, que, suplantando os limites estabelecidos, implicava pesadas penalizações de carácter financeiro. O orçamento regional é elaborado, desde 1976, pelas regiões autónomas da Madeira e dos Açores. A elaboração e execução destes orçamentos baliza-se pelo Estatuto Administrativo da Região, a legislação de enquadramento do orçamento e das finanças regionais, o programa do Governo regional, o Quadro Comunitário de Apoio e o Orçamento Geral do Estado. De acordo com o primeiro Estatuto, dito provisório enquanto o definitivo não é elaborado pela Assembleia Regional da Madeira, a Região deve elaborar um orçamento e plano económico regional, a enquadrar no Orçamento do Estado, que deve ser submetido à aprovação da Assembleia Regional. Recorde-se que o orçamento regional começou por ser integrado no Orçamento do Estado, o que implicava que a sua plena execução estava sempre pendente do orçamento nacional. A proposta de orçamento é elaborada pela Secretaria Regional das Finanças, aprovada em plenário do Governo por resolução, assinada pelo presidente e pelo secretário das Finanças, e depois submetida à aprovação da Assembleia Regional, quer sob a forma de decreto regional (apenas nos anos de 1977-1978), quer passando depois a resolução desta Assembleia (a partir de 1979), dando lugar a decreto legislativo regional (desde 1988). A execução deste documento é definida por decreto regulamentar regional, sendo as alterações ao mesmo orçamento feitas através de decreto legislativo regional. A situação de dependência do orçamento regional em relação à aprovação do Orçamento Geral do Estado, por forças das verbas, consideradas de acordo com o princípio de solidariedade do Estatuto de 1976 (art. 56), conduzirá a que seja aprovado muitas vezes de forma tardia, como sucedeu entre 1977 e 1986. Até 1988, o orçamento, depois de aprovado pela Assembleia Regional e assinado pelo ministro da República, era remetido ao Governo da República para ser integrado no Orçamento do Estado. A partir desta data, com base no artigo n.º 22 da Constituição, o Governo Regional passou a submeter o orçamento à Assembleia Regional sob a forma de proposta de decreto legislativo regional, que, depois de aprovado pela Assembleia, era assinado pelo presidente da mesma e pelo ministro da República, sendo depois publicado em Diário da República. Esta fórmula era também seguida quanto aos programas e projetos plurianuais do Plano de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração da RAM. As alterações orçamentais, que até 1990 estavam sujeitas à apresentação e aprovação, pela Assembleia Regional, de um orçamento suplementar, deixam de existir (de acordo com o art. 20 do dec.-lei 40/83, de 13 de dezembro), estando o Governo autorizado a realizá-las, desde que não impliquem alteração na despesa, procedendo à sua publicação no Jornal Oficial da RAM. Em termos de execução orçamental, surgiram alguns instrumentos legislativos. A lei n.º 28/92 DR 201/92 Série I-A, de 1 de setembro, estabeleceu as regras referentes ao Orçamento da Região Autónoma da Madeira, os procedimentos para a sua elaboração, discussão, aprovação, execução, alteração e fiscalização, e a responsabilidade orçamental. Foi alterada pela lei n.º 53/93 DR 177/93 Série I-A, de 30 de julho. A lei n.º 91/2001, de enquadramento do Orçamento do Estado, estabelece “as disposições gerais e comuns de enquadramento dos orçamentos e contas de todo o setor público administrativo”. Assim, define “as regras e os procedimentos relativos à organização, elaboração, apresentação, discussão, votação, alteração e execução do Orçamento do Estado, incluindo o da segurança social, e a correspondente fiscalização e responsabilidade orçamental, e à organização, elaboração, apresentação, discussão e votação das contas do Estado, incluindo a da segurança social”. A orgânica da Direcção Regional de Orçamento e Contabilidade foi aprovada pelo dec. reg. n.º 21/93/M DR 157/93 Série I-B, de 7 de julho. A falta de controlo sobre o sistema tributário e a sua arrecadação, associada à insuficiência de recursos financeiros, por parte do Estado, para satisfazer as necessidades de funcionamento das instituições, nomeadamente dos setores da saúde e da educação, criou insistentes problemas de tesouraria às finanças regionais, obrigando a constantes recursos a empréstimos. Assim, as políticas orçamentais geraram conflitos entre os Governos regional e central. A isto associa-se, muitas vezes, a aprovação tardia do Orçamento Geral do Estado, mecanismo que estipula o valor anual das verbas correspondentes às transferências do Estado, que conduz a atrasos na aprovação do Orçamento regional, bem como na definição de políticas orçamentais. Os anos de 1985 e 1986 foram de particular significado para esta conjuntura de difícil execução orçamental, tendo levado à negociação de um programa de reequilíbrio financeiro com o Governo da República. Desta forma, pela resolução 9/86, de 16 de janeiro, o Governo mandatou o ministro da República e o ministro das Finanças para estabelecerem com o Governo Regional um programa de reequilíbrio financeiro da RAM, assinado a 26 de fevereiro de 1986. A 22 de setembro de 1989, houve novo programa de recuperação financeira, que vigorou até 31 de dezembro de 1997.   Alberto Vieira Eduardo Jesus (atualizado a 15.12.2017)

Direito e Política Economia e Finanças História Económica e Social

pautas aduaneiras

As pautas aduaneiras podiam ser únicas ou múltiplas (ou seja, o objeto era alvo de uma tributação única ou variável, de acordo com a sua origem ou condições de importação), ou mistas. A partir da década de 30 do séc. XIX, ocorreram diversas alterações nas pautas, as quais foram apontadas por vários madeirenses como responsáveis pelas dificuldades comerciais do arquipélago. Palavras-chave: Alfândegas; Pautas.   As pautas aduaneiras eram tabelas de mercadorias, com as respetivas taxas de importação e exportação. Estas pautas podiam ser únicas ou múltiplas, ou seja, o objeto era alvo de uma tributação única ou variável, de acordo com a sua origem e as suas condições de importação. Havia, ainda, as chamadas pautas mistas, que contemplavam as duas situações. A necessidade da sua quase permanente adaptação às novas circunstâncias do mercado obrigou as autoridades a criarem comissões para a sua revisão. As alfândegas foram criadas na Madeira em 1477 e o seu funcionamento em termos de regulamentação das taxas foi estabelecido por regimentos (1499). Na documentação da antiga Alfândega do Funchal, existem: as avaliações de artigos de produção e indústria inglesa (1811); a Pauta Geral da Alfândega grande de Lisboa – impresso, cópia e emolumentos (1782-1836); e a Pauta Geral e inglesa para a avaliação das mercadorias (1834). A Pauta Geral da Alfândega era um documento onde se estabeleciam as normas precisas para avaliação dos géneros, sob o ponto de vista fiscal. Foi estabelecida em 1782, por D. Maria I, para a Alfândega de Lisboa, e tornou-se aplicável a todas as do reino, tendo-se mantido até 1832. Entretanto, em 1818, D. João VI, no Brasil, determinou, por alvará régio de 25 de abril, alterações aos direitos pagos nas Alfândegas de Portugal e do Brasil. O facto de as pautas terem sido estabelecidas, de forma geral, para o país, ignorando as especificidades, nomeadamente dos arquipélagos insulares, criou várias situações penalizadoras que fizeram levantar a voz dos insulares. O debate político local, nomeadamente após a revolução liberal, será muitas vezes alimentado em torno destas pautas e dos seus efeitos positivos ou negativos para a vida económica local, insistindo-se na necessidade de adaptações ou de uma pauta específica. Pelo dec. n.º 14, de 20 de abril de 1832, fez-se a reforma da Pauta Aduaneira, a que se seguiu outra, pelo dec. de 10 de Janeiro de 1837. A partir desta data, a Pauta passou a ser geral para todo o país, deixando de existir pautas específicas para cada Alfândega. É nítida uma intenção livre-cambista, mas a necessidade de receita impediu um maior progresso. A 4 de julho de 1835, foi criada uma comissão para proceder à revisão da Pauta. A nova Pauta entrou em vigor pelo decreto de 10 de janeiro de 1837. A Madeira não foi ouvida e apenas foram considerados os interesses da burguesia comercial do Porto e Lisboa. Por essa razão, a referida Pauta revelou-se danosa para as demais regiões, nomeadamente para a Madeira, tendo por isso merecido a contestação dos madeirenses, por permitir a entrada livre de vinhos e aguardentes do continente. Mesmo assim, alguns artigos considerados ruinosos para a Madeira foram suspensos pelas Cortes, por influência do deputado Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, que fora governador e era então deputado eleito pela Madeira. No séc. XIX, a cobrança dos direitos de exportação no Funchal estava regulamentada por duas Pautas: a geral e a inglesa. A última, feita de acordo com o tratado de comércio com Inglaterra (1810), determinava privilégios especiais aos Ingleses. Diogo Teles de Menezes (1788-1872), diretor da Alfândega, decidiu, por sua iniciativa, fundir ambas e criar uma nova Pauta Alfandegária, que motivou um aceso protesto da Associação Comercial do Funchal, que fora criada em 1836. Em 1839, a Associação Comercial submeteu à Câmara do Funchal uma proposta de alteração da Pauta, que não foi contemplada. Todavia, na revisão da Pauta de março de 1841, a Madeira continuaria a manter o regime de exceção para os vinhos aguardentes e os cereais. Neste mesmo ano, surgiu, no Funchal, uma comissão auxiliar da comissão permanente da Pauta Geral das Alfândegas. As diversas alterações e reformas da Pauta Aduaneira que tiveram lugar ao longo do séc. XIX (em 1837, 1841, 1850, 1852, 1856, 1860, 1870, 1882, 1885, 1887, 1892, 1924 e 1926) sempre mereceram reparos dos madeirenses, que a apontaram como responsável pelas dificuldades comerciais do arquipélago, nomeadamente devido à falta de competitividade com os portos vizinhos das Canárias. Com efeito, a Pauta será motivo de permanente reclamação, porque a Madeira está numa situação distinta dos demais portos do reino e as medidas protecionistas apenas ponderam as condições de Portugal continental. A este propósito, diz-nos Paulo Perestrelo da Câmara: “Finalmente deve-se contemplar, na massa dos males, que, ultimamente mais tem pesado sobre a Madeira, a lei das Pautas, que com os seus efeitos proibitivos, nada mais tem feito, senão aperfeiçoar a ciência do contrabando, dando cabo de um comércio já tão enfraquecido. A mania de tudo mudar, levou esses novos legisladores á demencia de por a Madeira na mesma escala de produções e interesses que Portugal, com quem esta ilha não pode comerciar, pois abundando em vinhos excelentes, não os consome aquela, a quem também não pode fornecer os artefactos, de que carece. A Madeira só pode negociar com países não vinhateiros, e deles receber os artigos de que carece, mas com direitos suaves” (CÂMARA, 1841, 95-96). Assentando a economia da Ilha apenas no comércio do vinho e, sendo este o principal alvo das tributações, era difícil conseguir algum lucro e competitividade no mercado externo. Por outro lado, a Madeira necessitava de importar tudo aquilo de que precisava para a sua manutenção, desde manufaturas a cereais. Na mesma linha, a possibilidade de trazer para a Madeira parte da navegação oceânica, como forma de animar o movimento do porto comercial, passaria por medidas que favorecessem essa situação, face às melhores condições oferecidas por outros portos como os das Canárias. Neste caso, existiria a necessidade de estabelecer condições mais favoráveis à entrada e saída no porto do Funchal, através da criação de infraestruturas e de medidas fiscais que não fossem penalizadoras, nomeadamente quanto à entrada e saída do carvão, o principal meio de combustível a partir desta centúria. O grande objetivo era fazer do Funchal a principal estalagem do oceano. Uma pauta penalizadora destas importações era, portanto, prejudicial para a Madeira, fazendo aumentar o clamor por soluções aduaneiras que tivessem em conta esta situação específica, que raras vezes merecia a aprovação e o entendimento dos pares e das autoridades da metrópole. As Pautas necessitavam de permanente atualização, criando-se para o efeito comissões específicas. A Comissão Revisora foi criada para aceitar as reclamações sobre as mesmas e propor a sua reforma, de acordo com a situação da indústria nacional e com as alterações das pautas estrangeiras. Reorganizada por decreto de 31 de março de 1845, foi extinta em 28 de dezembro de 1852, para dar lugar à Comissão para as Pautas Aduaneiras que, por sua vez, deu lugar, por decreto de 25 de outubro de 1859, à Comissão Revisora da Pauta Geral da Alfândega, que estava incumbida da missão de proceder à realização da estatística das fábricas e oficinas do país, à recolha de informações sobre a produção, o consumo e a exportação dos seus produtos e, ainda, ao estudo sobre a importação de produtos das indústrias estrangeiras. Foi substituída, a 3 de novembro de 1861, pelo Conselho Geral das Alfândegas. As reformas das Alfândegas foram estabelecidas pela portaria de 14 de outubro de 1864 e pelos decretos de 7 de dezembro de 1864, bem como de 28 de agosto e de 23 de dezembro de 1869, tendo o corpo auxiliar das Alfândegas sido transformado num serviço de rondas volantes. O decreto de 7 de dezembro de 1864 estabelece a reorganização das Alfândegas, com a extinção da Administração Geral do Pescado, e constitui duas circunscrições: a marítima e a da raia. Na Alfândega do Funchal, a regulamentação de toda a atividade da repartição, bem como o cômputo e a arrecadação dos direitos de entrada e saída regulavam-se através das Pautas de 1843, 1850, 1856, 1860, 1885 e 1887, e por meio das cartas de lei de 1844-1845. Os serviços da Alfândega diferenciavam-se dos do Almoxarifado por estes apenas poderem proceder à cobrança, funcionando, assim, como recebedoria. Com a Pauta de 1892 foram consideradas algumas especificidades locais das ilhas, com salvaguarda o comércio do açúcar na Madeira, nos Açores e no continente, com uma taxa reduzida de 1/4 do seu valor monetário. Com a implantação da República, introduziram-se alterações na cobrança dos direitos, sendo de destacar que apenas em 9 de fevereiro de 1915 se suspendeu a cobrança do imposto de farolagem no porto do Funchal, uma medida reclamada havia muito tempo, que ganhou força de lei pela intervenção do visconde da Ribeira Brava. Por força da desvalorização da moeda e da Primeira Guerra Mundial, ficou determinado, pelo dec. n.º 41.333, de 18 de abril de 1918, que os direitos de importação seriam pagos em ouro. Criaram-se, assim, dificuldades à exportação, assim como à entrada de mercadorias. Por outro lado, o dec. n.º 4682, de 27 de abril de 1918, estabeleceu sobretaxas relativas à importação de diversas mercadorias. A oneração fiscal das importações continuou, pois, pelo dec. n.º 6263, de 2 de dezembro de 1919, e foram duplicados todos os direitos e sobretaxas de importação estabelecidos em 1918, permanecendo a exigência do pagamento em ouro, mas aplicada apenas de metade do valor. Posteriormente, o dec. n.º 1193, de 31 de agosto de 1920, determinou que o quantitativo integral dos direitos e sobretaxas fosse exigido em ouro. A Pauta única nacional vigorou, por todo o séc. XIX, dando lugar, com a reforma de 1921, ao regime de pauta múltipla. Em 1922, insiste-se na falta de funcionários, mas a principal reclamação recaía sobre o quase permanente aumento das pautas, numa altura de grave crise económica, marcada por descidas, quase contínuas, da moeda portuguesa. Pelo dec. n.º 8747, de 31 de março de 1923, foi aprovada nova Pauta Aduaneira em que foram abolidas algumas sobretaxas. Ao mesmo tempo, em 17 de março, criou-se um adicional de 2 % sobre todos os direitos de importação para acudir às despesas com a Misericórdia do Funchal. Depois, a 10 de março do ano seguinte, surgiu mais um adicional de 5 % para o serviço de incêndios. A Pauta foi revista pela lei n.º 1668, de 9 de setembro de 1924, e não gerou consensos; era uma forma de regularizar o comércio externo no pós-Primeira Guerra Mundial. A 12 de outubro de 1926, os combustíveis sólidos ou líquidos passam a ser taxados a 0,5 % sobre o seu valor. No quadro da lista de produtos das pautas alfandegárias, os valores cobrados pelas farinhas e os cereais mereceram, por parte dos madeirenses, uma atitude de permanente repulsa, tendo em conta a dificuldade que tinham em se prover dos mesmos. Com o regime da Ditadura Militar, ocorreu uma reforma da Pauta, consoante o dec. n.º 17.823, de 31 de dezembro de 1929, que era já a expressão plena da mudança das conjunturas mundiais, política e económica. Todavia, as medidas protecionistas continuaram a marcar presença, como se poderá verificar pelos decs. n.º 20.935, de 26 de fevereiro de 1932, que impunha um adicional de 20 % aos direitos de importação, e n.º 24.115, de 29 de junho de 1934, por meio do qual foi estabelecido o regime de proteção de bandeira, ao serem taxadas, através de um adicional de 13,5 %, as mercadorias exportadas em navios estrangeiros. Já o dec.-lei n.º 30.252, de 30 de dezembro de 1939, duplicou o valor dos direitos de exportação específicos e fez incidir 2,5 % sobre a taxa dos direitos de exportação ad valorem. Esta situação perdurou até 1947. No período da guerra, a principal atenção foi para a exportação de volfrâmio.A partir de 1948, com a entrada de Portugal na Organização Europeia de Cooperação Económica, e depois em 1959, com a adesão à Associação Europeia do Comércio Livre, foram operadas outras mudanças nas pautas, pelo dec.-lei n.º 42.656, de 18 de novembro de 1959. Este processo culmina, em 1962, com a adesão de Portugal ao Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e Comércio. Entretanto, em 1961, havia sido criada uma zona de comércio livre entre Portugal e as colónias que, por ter sido um fracasso, foi abolida em 1971. Em 1972, Portugal assinou um tratado de associação à Comunidade Económica Europeia que seria o início de uma caminhada para a sua integração nesta comunidade em 1986, com reflexos evidentes, também, nas pautas aduaneiras, como expressado no dec.-lei n.º 19/92, de 5 de fevereiro, que aprovou a Pauta dos Direitos de Importação que conduziu à aplicação da Pauta Aduaneira comum, a partir de 1 de janeiro de 1993. Com a entrada de Portugal na CEE, houve uma alteração das pautas alfandegárias. Assim, a Pauta Aduaneira comum, um dos elementos constitutivos da união aduaneira, é publicada anualmente por regulamento comunitário, que altera o regulamento de base (regulamento CEE n.º 2658/87 do Conselho, de 23 de julho de 1987, relativo à nomenclatura pautal e estatística e à Pauta Aduaneira comum). A Pauta Aduaneira compreende, entre outros elementos, os direitos de importação e a nomenclatura combinada das mercadorias. Além desta, existe a Pauta de Serviço, que é o documento onde se estabelecem as informações sobre a tributação das mercadorias importadas de países terceiros. Constam ainda da mesma as medidas de política comercial comum, nomeadamente restrições quantitativas, direitos aduaneiros, direitos anti-dumping, suspensões e contingentes pautais, bem como as medidas de âmbito nacional, tais como o imposto sobre o valor acrescentado, os impostos especiais de consumo e as informações complementares sobre as condições de desalfandegamento das mercadorias. A Pauta de Serviço é elaborada com base nos elementos integrados da Pauta Integrada das Comunidades Europeias (TARIC) que são recebidos, diretamente, de Bruxelas. Contém, igualmente, informações de carácter nacional (taxas do IVA e informações sobre as condições a respeitar na importação e exportação de mercadorias). Por fim, existe a Pauta Integrada da Comunidade Europeia, que é a Pauta Aduaneira comum, em sentido lato, atendendo a que o regulamento anual não contém diversos elementos essenciais para o desalfandegamento das mercadorias, nomeadamente taxas dos direitos aduaneiros a aplicar no âmbito de regimes pautais preferenciais, suspensões de direitos de importação, direitos anti-dumping, licenças de importação, medidas de vigilância, proibições, etc.   Alberto Vieira (atualizado a 19.12.2017)

Direito e Política Economia e Finanças História Económica e Social

partido socialista

A implantação do Partido Socialista (PS) na Região Autónoma da Madeira (RAM), após a Revolução de 25 de abril de 1974, segue o movimento geral da criação dos partidos a nível nacional e o seu alargamento a todo o território. Com efeito, logo após o 25 de Abril, as diferentes correntes ideológicas e partidárias do centralismo, por um lado, e da autonomia, por outro, vão dirimir os seus argumentos e lograr a sua implantação social e política. Com a entrada em vigor da Constituição de 1933, os partidos então existentes tinham sido todos ilegalizados. A reintrodução do sistema partidário em Portugal, no novo regime implantado após o 25 de Abril, segue o figurino internacional, com correntes que vão da extrema-direita à extrema-esquerda. O PS tinha sido fundado em 1973, na Alemanha, por socialistas no exílio, entre eles Mário Soares, seu primeiro Secretário-Geral, e pretendia retomar a linha ideológica do antigo Partido Socialista Português, fundado por José Fontana no séc. XIX, situando-se à esquerda do espetro partidário. Esse Partido Socialista Português reivindicava-se como marxista, primeiro, e depois como proudhoniano e federalista. O novo PS de Mário Soares, na mesma linha de afastamento das correntes conservadoras, demarcou-se, reiteradamente, da social-democracia dos países nórdicos, quer antes, quer depois do 25 de Abril, por considerá-la gestora do capitalismo, afirmando que o exemplo a seguir em Portugal era o dos partidos socialistas do sul da Europa, nomeadamente do Partido Socialista francês e do Partido Socialista Operário Espanhol. A base ideológica e sociológica dos socialistas portugueses entronca, remotamente, nos liberais, que se opuseram aos absolutistas no séc. XIX, e, de entre estes, nos setembristas – a ala esquerda dos liberais, por oposição aos conservadores cartistas. Tendo como referência o período da primeira República, o PS liderado por Mário Soares revia-se no Partido Democrático de Afonso Costa, que resultou da ala esquerda do primitivo Partido Republicano, já existente nas últimas décadas da monarquia, e cuja ala direita viria a dar lugar aos unionistas de António José de Almeida. Este alargamento à Madeira dos partidos nacionais após o 25 de Abril tem, assim, precedentes na história, quer na Primeira República, quer ainda na monarquia, desde o início do séc. XIX, com as lutas liberais Para compreender a posterior evolução dos partidos na RAM, é necessário ter em conta dois fatores: o posicionamento ideológico e a relação entre o poder insular e o poder central, que se traduz nas ideias dicotómicas de centralização e descentralização do poder. A ideia de descentralização, que é comum ao território continental e insular do país, mas se exprime com especial acuidade no caso insular, sobretudo nos finais do séc. XIX, evolui para o conceito de autonomia, primeiro administrativa e depois política. A forma como o PS, na Madeira, se vai relacionar com estes dois vetores, o ideológico e o autonómico, aliada à realidade sociológica da RAM, é determinante para a compreensão da sua evolução política. Estabelecidos os vetores da filiação e identificação do PS com a sua base histórica, para a compreensão da sua inserção posterior na realidade sociológica das ilhas da Madeira e do Porto Santo, é necessário ainda conhecer os antecedentes imediatos do PS nacional, sobretudo seguindo os passos do seu fundador e líder histórico, Mário Soares. Desde o momento da fundação do PS em Bad Munstereifel, na então República Federal da Alemanha, a 19 de abril de 1973, até as primeiras inscrições de militantes madeirenses no PS, a 19 de setembro de 1974, e à visita de Mário Soares à Madeira, a 15 de fevereiro de 1975, há uma série de acontecimentos que vão condicionar decisivamente a vida futura do PS na Madeira e o colocarão, politicamente, entre uma extrema-esquerda, que o empurra para a direita, e uma direita sociológica que aceita abrigar-se sob a égide de um partido ideologicamente situado no centro-esquerda, o PSD, que vai retirar ao PS o lugar que, tradicionalmente, cabe aos partidos sociais-democratas, trabalhistas e socialistas europeus. Se, pela prática governativa – como a aplicação da reforma agrária, com a extinção do regime de colonia, e a implantação do estado social nas áreas da saúde e da educação –, os sociais-democratas na Madeira ocupam o espaço do PS, já do ponto de vista ideológico, o PSD situa-se, naturalmente, à direita dos socialistas. Como resultado, as classes médias e médias-altas urbanas e as populações rurais, veem no PSD a força política que pode servir de barreira à esquerda marxista, característica que o próprio PS reivindicava para si em manifestações de rua no Funchal Há um acontecimento que vai contribuir para conotar o PS local com as forças revolucionárias de extrema-esquerda. No dia 1 de março de 1975, um grupo de socialistas ocupou um edifício que tinha pertencido a uma instituição bancária, que será a sede do PS na Madeira até 1980. Este ato foi identificado pela população com as ocupações que, no mesmo ínterim, se faziam no Sul do País. Assim, e apesar de o PS nacional ser um partido historicamente defensor da descentralização, e garante constitucional das autonomias, que ficam consagradas na Lei Fundamental de 1976, o seu posicionamento ideológico na Madeira vai coloca-lo do lado do poder central e de setores de extrema-esquerda, visto que a autonomia aparece como uma das formas de resistir à deriva revolucionária que entusiasmava a esquerda e amedrontava a direita. É com este fundo histórico-ideológico que se deve perspetivar o percurso do PS na Madeira desde o 25 de Abril de 1974. A sua implantação dá-se entre 1976 e 1978, no auge da dicotomia entre o poder central e o poder regional, numa altura em que o PSD detém o poder na Região, ao passo que o PS é o partido maioritário na Assembleia da República Por outro lado, a permanente rotação na liderança constante também não ajudou à sua consolidação eleitoral, o que faz com que, entre 1974 e 2015, tendo embora exercido funções a nível municipal, este partido nunca tenha exercido funções de governo.       Miguel Luís da Fonseca (atualizado a 19.12.2017)  

Direito e Política

ribeiro real, visconde do

Visconde do Ribeiro Real. 1885. Arquivo Rui Carita João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo nasceu no Funchal, a 21 de dezembro de 1841, filho do morgado Francisco António de Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo e de Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo. Casando-se, a 24 de junho de 1882, já com mais de 40 anos, com Teresa da Câmara Carvalhal, filha do 2.º conde de Carvalhal, recebeu o título de visconde do Ribeiro Real. Passara, entretanto, pela Junta Geral e depois pela presidência da Câmara do Funchal, onde defendeu o caminho de ferro do Monte e acabou a construção do Teatro Municipal D. Maria Pia. Na sua vereação camarária ainda se fundou o corpo de bombeiros voluntários e procedeu-se a reformas urbanas na área do cemitério britânico, tendo hoje o seu nome o largo que fica mais a sul. Foi ainda cônsul de França e elevado a conde do Ribeiro Real, título que parece não ter usado. Faleceu em 1902. Palavras-chave: bombeiros voluntários; Câmara Municipal do Funchal; cemitério britânico; caminho de ferro do Monte; Teatro Municipal.     João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo nasceu no Funchal, a 21 de dezembro de 1841, filho do morgado Francisco António de Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo, de São Pedro, no Funchal, e de Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo, de Ponta Delgada. Casando-se, a 24 de junho de 1882, com Teresa da Câmara Carvalhal (1857-c. 1925), filha do 2.º conde de Carvalhal (1831-1888), recebeu o título de visconde do Ribeiro Real por decreto de 23 de março desse ano, sendo depois elevado a 1.º conde, por decreto de 16 de fevereiro de 1899, após a sua passagem pelo governo civil do Funchal, em 1897, como interino. Para além do cargo que ocupou na Junta Geral e da presidência da Câmara do Funchal, onde defendeu o caminho de ferro do Monte e acabou a construção do Teatro Municipal D. Maria Pia (Teatro Municipal), ocupou também o lugar de cônsul de França. O futuro visconde do Ribeiro Real deveria ser uma figura muito discreta e reservada, não sendo fácil recuperar o seu percurso político e social. Casou-se bastante tarde para a época, já passando dos 40 anos, não havendo descendência do seu casamento. A primeira referência política a seu respeito é como procurador da Junta Geral, quando se pronuncia sobre a lei de 13 de maio de 1872, que criara as bases da nova regulamentação. Como vogal, João Bettencourt Araújo de Carvalhal Esmeraldo esteve na reunião de 11 de março de 1874 e na de 11 de abril seguinte, aprovando as alterações que o vogal do conselho de distrito, visconde de S. João, Diogo Berenguer de França Neto (1812-1875) mandou imprimir a 14 de abril desse ano. A sua ação mais relevante foi à frente da Câmara Municipal do Funchal, onde sucedeu ao sogro, 2.º conde de Carvalhal, que somente ocupara o lugar no quadriénio de 1882-1885 por ser, ainda, o maior proprietário latifundiário do Funchal, mas cujas funções tinham sido desempenhadas pelo vice-presidente, morgado João Sauvaire da Câmara e Vasconcelos (1828-1890). A partir de 1886, a Câmara do Funchal teve uma interessante atividade, entre outras coisas, acabando as obras do Teatro Municipal, apresentado aos funchalenses a 29 de julho de 1887, e inaugurado oficialmente a 11 de março de 1888. Nessa altura, teve o visconde de se defrontar com o primo, João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos (1829-1902), conde de Canavial e então governador civil, que queria ocupar o camarote da presidência, o que veio a acontecer, mas como convidado, pois o Teatro era propriedade da Câmara. A questão do camarote do Teatro ocupou então as primeiras páginas da imprensa da cidade. Foi durante a presidência do visconde do Ribeiro Real, quando tinha o pelouro dos incêndios o Dr. José Joaquim de Freitas (1847-1936), então também médico do hospital da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, que se fundaram os bombeiros voluntários do Funchal, serviço inaugurado oficialmente a 24 de setembro de 1888. A apresentação pública do inúmero material adquirido para esse serviço, de que existe abundante documentação fotográfica, foi feita junto à fachada do referido hospital, a 7 de abril de 1889. O primeiro quartel foi construído na antiga R. do Príncipe (assim designada em homenagem ao príncipe, depois D. João VI (1767-1826)), posteriormente R. 31 de Janeiro, passando, duas décadas depois, para a R. da Princesa (em referência a D. Carlota Joaquina (1775- 1830)), posteriormente R. 5 de Outubro. José Joaquim de Freitas era um republicano de arreigadas convicções (República), mas tal não obstou ao apoio que sempre lhe foi dado pelo visconde do Ribeiro Real, tendo-se registado, inclusivamente, um forte apoio das mais destacadas famílias funchalenses à criação dos bombeiros voluntários, existindo fotografias destes anos de inúmeros dos seus elementos fardados de bombeiros, independentemente da sua filiação partidária e, inclusivamente, nacionalidade; há mesmo fotografias de comerciantes britânicos, o que só se explica pelo apoio dado à iniciativa pelo visconde. João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo foi igualmente um dos principais impulsionadores do projeto do caminho de ferro do Monte, numa altura em que o projeto poderia ter sucumbido ao conflito de interesses entre os comerciantes britânicos radicados na Ilha e os financeiros alemães, que o apoiavam. Ao nível do Governo central, o apoio ao projeto não foi muito evidente, exceto na isenção de impostos que concedeu à Companhia do Caminho-de-Ferro do Monte, aquando da entrada na Alfândega do Funchal do material fixo e circulante para a via-férrea. O grande apoio partiu da Junta Geral, que adquiriu algumas ações, e, especialmente, da Câmara do Funchal, através do vereador João Luís Henriques e do presidente, o visconde do Ribeiro Real, tendo a Câmara adquirido 250 obrigações. As transformações ocorridas na malha urbana da cidade permaneceram e decorrem da urbanização envolvente do traçado da via-férrea e da montagem de uma série de instalações turísticas de apoio, como o Hotel do Bello Monte, e depois das instalações do Terreiro da Luta, consolidando a estruturação da freguesia de Santa Luzia e a ligação da cidade à freguesia do Monte, e contribuindo para a visão geral de anfiteatro que da encosta do Funchal. Foi também a vereação do visconde de Ribeiro Real que permitiu e apoiou a ampliação do cemitério britânico (Cemitério britânico), como contrapartida pela expropriação de uma faixa do terreno do mesmo. Foram então demolidas duas das vielas anexas entre aquele espaço e a R. dos Aranhas, do que resultou a R. 5 de Junho, depois R. Major Reis Gomes, onde viria a ser construído o largo com o seu nome. Os viscondes do Ribeiro Real habitaram o palácio de S. Pedro que, desde 1883, era partilhado com o Colégio de S. Jorge, dirigido pela futura M.e Mary Jane Wilson (1840-1916). Também ali faleceu, a 4 de fevereiro de 1888, o 2.º conde de Carvalhal, António Leandro Carvalhal Esmeraldo e, em 1897, ainda se instalou em parte do palácio o Clube Internacional. O visconde do Ribeiro Real seria elevado a conde do Ribeiro Real, a 16 de fevereiro de 1899, mas parece nunca ter usado o título, falecendo a 22 de março de 1902, altura em que se encontrava já retirado da vida pública, não havendo, por exemplo, qualquer referência a seu respeito na visita régia de junho de 1901. A condessa do Ribeiro Real, em 1921, deu início ao processo de venda do palácio, mas a mesma foi contestada pelos coproprietários, conde de Resende e família de Eça de Queiroz, descendentes de sua irmã, Maria das Dores Carvalhal (1855-1910). A a 20 de janeiro de 1923, a condessa mandou vender em leilão o recheio do palácio, momento em que se dispersou aquele importante espólio. Deverá ter falecido pouco depois dessa data. O espadim de honra do visconde do Ribeiro Real, como fidalgo da Casa Real, deve ter sido logo entregue à Câmara Municipal do Funchal, por legado do mesmo. A sua liteira, no entanto, com as armas de visconde envolvidas pelos atributos utilizados pela Câmara, um ramo de videira e outro de cana-de-açúcar, tal como o seu monograma, encimado por coroa de visconde, deve ter ido então a leilão, tendo passado a mãos particulares e depois ao Museu Quinta das Cruzes, sendo dos poucos exemplares deste tipo de transporte que sobreviveu. É provável que do leilão de 1923 tenha sobrevivido uma fotografia, onde aparece um dos dois óleos de Tomás da Anunciação (1818-1879), encomendados pelo 2.º conde de Carvalhal em 1865, e que fazem igualmente parte do acervo do Museu Quinta das Cruzes. No mesmo leilão deve ter sido vendido o retrato das duas filhas do 2.º conde de Carvalhal, depois depositado na Fundação Eugênia de Canavial.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

Direito e Política História Militar História Política e Institucional

teixeira, virgílio

Homenagem ao ator Virgílio Teixeira Galã do cinema dos anos 40, 50 e 60 do século XX, Virgílio Gomes Delgado Teixeira nasceu no Funchal a 26 de outubro de 1917. Desportista, fluente em inglês e de boa figura, Virgílio Teixeira, filho de Gastão Teixeira, comerciante e ex-emigrante em Demerara, começou por ser guarda-redes de futebol – alinhou pelo Sporting da Madeira e pelo Marítimo – e era bom em saltos acrobáticos e ténis. O seu primeiro contacto com a indústria do cinema – além dos filmes que ia ver – aconteceu numa partida de ténis com o realizador inglês Thorton Freeland, que passava férias na Madeira. Para não humilhar o adversário, Virgílio Teixeira deixou-o ganhar. O realizador não terá gostado mas, mesmo assim, disse ao madeirense para fazer as malas e o acompanhar até Londres, onde teria a porta aberta para uma carreira no cinema. Assim teria sido, se a situação política e a aproximação da Segunda Guerra Mundial não tivessem dificultado o seu percurso, pelo que o futuro ator regressou a casa. Em 1941, mudou-se para Lisboa e, por falar bem inglês, arranjou emprego na American Export Line, a única empresa que, na altura, fazia a ligação marítima entre a América e a Europa. Pouco tempo depois, mudou-se para uma companhia aérea, mas acabou por ser despedido por causa das noitadas. Vendo-se sem trabalho, penhorou os fatos e os sapatos numa tentativa de se manter pela capital; em desespero, pediu dinheiro ao pai que, em vez de um cheque, lhe mandou uma passagem para o Funchal. Virgílio Teixeira recusou e a decisão de ficar em Lisboa acabou por lhe abrir as portas do mundo do cinema. O convite para entrar em Ave de Arribação (1943) aconteceu pouco tempo depois, mas a fama só chegaria com Zé do Telhado (1945), a versão portuguesa do ladrão que rouba aos ricos para dar aos pobres. Este papel valeu-lhe o prémio de melhor ator do ano de 1945 e a sua vida no cinema estava apenas no começo; sem nunca ter estudado representação, o rapaz da Madeira iniciava uma carreira onde iria somar 92 participações em filmes, uma telenovela, séries televisivas e 2 papéis no teatro, ao lado de Carmen Dolores e de Eunice Muñoz. Antes de se mudar para Espanha - no fim dos anos 40 –, Virgílio Teixeira selou o seu estatuto de galã ao contracenar com Amália Rodrigues no filme Fado, História de Uma Cantadeira; a cena onde Júlio Guitarrista ensina a fadista Ana Maria é das mais célebres do cinema português. Viveu 12 anos em Espanha, e fez tantos filmes que chegaram a pensar que era espanhol; com efeito, o Sindicato Nacional do Espetáculo do país vizinho considerou-o, em 1955, um ator genuinamente espanhol. A conjuntura – o facto de os filmes rodados em Espanha ficarem mais baratos à indústria americana – permitiu-lhe contactar com atores, atrizes e realizadores de nome internacional, sobretudo americanos, abrindo-lhe portas em Hollywood. Virgílio Teixeira fez de Ptolomeu em Alexandre, o Grande (1956) e de general russo em Dr Jivago (1965) – e estes são apenas dois dos filmes em que participou. Virgílio Teixeira privou com atores como Ava Gardner, Lana Turner, Sofia Loren, Richard Burton, Tyrone Powell e Rita Hayworth. Nos cartazes dos filmes, o seu nome aparecia como Virgilio Texera ou John Texera. Em 1966, regressou à Madeira afirmando “Eu vim embora de Hollywood porque estava a sentir que aquilo ali começava a ser uma autêntica selva”. (SILVA, 2006, 60), mas, ao longo dos anos, continuou a participar em filmes, nomeadamente A Mulher do Próximo (1988), de José Fonseca e Costa Em 1984-85, entrou na telenovela Chuva na Areia, onde fazia o papel de homem rico mas, pesar de ter representado em mais alguns papéis, esta já não era a sua principal atividade, pois vivia dos negócios; foi também agente da Ibéria, delegado das Páginas Amarelas, da Rádio Televisão Comercial e da Sociedade Portuguesa de Autores. Teve uma curta passagem pela política, como vereador do PSD na Câmara Municipal do Funchal no início dos anos 80. Foi homenageado pela TVE e pelo Governo Regional da Madeira, sendo condecorado pelo Presidente da República com a comenda de oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Morreu no Funchal, com 93 anos, a 5 de dezembro de 2010.   Marta Caires (atualizado a 08.12.2017)

Cinema, Vídeo e Multimédia

lei regional

O sistema vigente de repartição de competências legislativas entre o Estado e as regiões com autonomia político-administrativa Distribuição horizontal de competências: recomposição do modelo de lista plural Em termos de modelo de repartição de competências entre o Estado e as regiões autónomas (RA), o paradigma da lista plural conservou‑se com a revisão constitucional de 2004, mas com um retorno parcial à arquitetura primitiva consagrada em 1976, no sentido da equação de duas “listas” constitucionais de poderes, uma estadual e outra regional, às quais acresce uma terceira lista subconstitucional de enumeração de poderes regionais (com reservas ao sistema de listagem no período que antecedeu a revisão constitucional de 2004, veja-se Maria Lúcia Amaral, “Questões regionais e jurisprudência constitucional…”; já no sentido da admissão de um sistema de listas, no período posterior a esse ato de revisão, com uma lista regional desconstitucionalizada, veja-se a obra, da mesma autora, A Forma da República). Tratou‑se de um retorno apenas parcial à versão constitucional de 1976, na medida em que se passou, com a revisão constitucional de 2004, a atribuir expressamente aos Estatutos Político-Administrativos (EPA) das Regiões Autónomas um papel central na discriminação de matérias das respetivas competências, nas quais incidirão os poderes legislativos autonómicos de tipo comum. Deste modo, foi conservada na Constituição da República Portuguesa (CRP): uma listagem de matérias de competência estadual, exclusivamente reservadas aos órgãos de soberania (exceção feita a certas matérias da reserva de competência legislativa do Parlamento que são delegáveis nas regiões); uma listagem, por via remissiva, de matérias de competência legislativa regional com carácter delegado (art. 227.º, n.º 1, alínea b))complementar (alínea c)) do mesmo preceito, bem com um elenco de matérias de competência mínima (art. 227.º, n.º 1, alíneas i), j), l), n), p), e q)); e uma remissão importante das restantes matérias de virtual competência autonómica para uma terceira lista regional de natureza subconstitucional inscrita nos Estatutos (art. 227.º, n.º 1, alínea a) e art. 228.º, n.º 1), a qual coexiste num universo concorrencial com competências dos órgãos de soberania integradas numa reserva móvel. É neste domínio de concorrência paralela que confluem, em binários diferentes dentro de uma mesma matéria, o exercício das competências regionais comuns e o exercício de poderes soberanos. Há, contudo, que separar nessa mesma matéria do domínio concorrencial uma esfera ou nível de poder regional e uma outra esfera atribuída aos poderes do Estado.   Taxatividade da enumeração estatutária das matérias respeitantes à competência legislativa regional comum ou primária Outra regra estruturante da revisão constitucional de 2004, que reforçou a listagem das competências regionais comuns, resultou, no nosso entendimento, da imposição de uma taxatividade da enumeração constitucional e estatutária dos poderes legislativos das regiões (refira-se que Jorge Miranda, que sempre militou em favor de uma lista aberta, alterou posteriormente a sua posição em favor de uma enumeração estatutária taxativa). Essa taxatividade parece decorrer: (i) do proémio do n.º 1 do art. 227.º da CRP, confirmado pelo n.º 1 do art. 228.º, que reza: “A autonomia legislativa das regiões autónomas incide sobre as matérias enunciadas no respetivo estatuto político‑administrativo [adiante designado por Estatuto] que não estejam reservadas aos órgãos de soberania”. Ora, semelhante fórmula não deixa grande margem para o exercício de poderes legislativos de tipo comum fora do limite positivo e negativo do Estatuto. Isto, sem prejuízo dos poderes legislativos de tipo mínimo – referimo‑nos às escassas matérias de competência legislativa regional que se encontram dispersas no n.º 1 do art. 227.º e que se designam, por vezes, de “competências mínimas” e da faculdade de as regiões poderem desenvolver leis de base estaduais e regionais em domínio de competência concorrencial (alínea c) do n.º 1 do art. 227.º); (ii) da supressão da antiga alínea o) do art. 228.º, que permitia expressamente legislar fora das listagens constitucional e estatutária. Em face do exposto, crê‑se que será organicamente inconstitucional um ato legislativo das regiões que incida sobre uma matéria que, fora dos domínios respeitantes às alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 227.º da CRP, não seja previamente definida como de âmbito regional no Estatuto, já que não existe, diversamente do que sucedia no período que mediou entre as revisões constitucionais de 1997 e 2004, uma norma constitucional que habilite o exercício de poderes legislativos comuns fora das matérias que se encontram elencadas no marco estatutário. O n.º 2 do art. 67.º do Estatuto, na redação dada pela sua terceira revisão, “testou” essa taxatividade, estabelecendo uma cláusula residual habilitante do exercício de competências na área concorrencial fora do marco estatutário. O Tribunal Constitucional (TC), numa primeira argumentação translúcida, esquivando-se a uma pronúncia clara sobre a admissibilidade de uma cláusula residual e sobre a taxatividade estatutária (que passou a ser uma realidade à luz do n.º 1 do art. 228.º da CRP), acabou por admitir de algum modo essa mesma taxatividade mediante uma formulação lateral, aludindo ao novo papel central dos Estatutos na definição das competências regionais. Para o ac. n.º 402/2008, “o Tribunal entende, pois, que a cláusula geral do artigo 67.º, n.º 2, do Estatuto não cumpre satisfatoriamente o mandato constitucional a ele cometido, no que diz respeito à competência da Assembleia Legislativa, de definir e enunciar as matérias por ela abrangidas. Pelo seu teor irrestrito e indeterminado, com total omissão de qualificações materiais delimitadoras, ela não atinge o grau de densificação constitucionalmente exigível. Temo-la por ferida de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 112.º, n.º 4, 227.º, n.º 1, alínea a), e 228.º, n.º 1, da CRP”. Posteriormente, outros arestos do TC (acs. n.º 304/2011 e n.º 187/2012) tornaram ainda mais claro o papel incontornável dos Estatutos na definição das matérias de âmbito regional atribuídas à competência legislativa regional comum.   Cláusulas gerais Para o efeito dessa separação ou delimitação de domínios numa mesma matéria, torna‑se relevante o uso de limites à competência regional sediados em cláusulas gerais. Tal é o caso dos conceitos jurídicos indeterminados do “âmbito regional” e, segundo o entendimento do TC, da “reserva de competência dos órgãos de soberania” na sua variante móvel ou não expressa.   A substituição do limite positivo do interesse específico pelo conceito constitucional de “âmbito regional” A revisão constitucional de 2004 extinguiu o limite positivo do interesse específico (cláusula geral que operava como pauta de repartição horizontal ad casum dos poderes legislativos das regiões em matérias onde também incidiam os poderes do Estado), cessando um conceito indeterminado que permitia à justiça constitucional invalidar diplomas regionais que não dispusessem sobre matérias que apenas ocorriam na RA ou que aí tivessem uma especial configuração. A grande maioria das declarações de invalidade de atos legislativos regionais desde 1976 fundou‑se, precisamente, no vício de inconstitucionalidade orgânica, por violação do interesse específico. Doravante, as regiões passam a legislar relativamente às matérias do universo concorrencial paralelo, no “âmbito regional”, uma medida de valor constitucional igualmente indeterminada que configura um novo critério de delimitação competencial. De acordo com o n.º 4 do art. 112.º, todos os decretos legislativos, independentemente do tipo de competência ao abrigo do qual são aprovados, “têm âmbito regional”. A expressão “âmbito regional” constitui, ainda assim, um conceito inovador indeterminado que se encontra sujeito ao teste da descodificação jurisprudencial.   O conceito comporta um elemento espacial e um elemento substancial. Trata-se de um limite mais linear do que o da noção de “interesse específico”, dado aludir fundamentalmente à projeção de uma dada matéria no âmbito geográfico ou espacial de uma RA. Assim, uma política pública que ocorra num domínio como o turismo deve decompor‑se, sob o ponto de vista legislativo, numa esfera geral de incidência estadual e numa esfera especial de carácter regional, sendo as mesmas reguladas por leis distintas. Apenas se a lei regional for revogada sem substituição ou se ostentar lacunas é que a lei geral aprovada pelo Estado poderá aplicar‑se na RA, já que aí vigora supletivamente (art. 228.º, n.º 2 da CRP) – no sentido de uma circunscrição predominante da noção de “âmbito regional” à dimensão espacial dada pelo elemento geográfico ou territorial são de referir Jorge Miranda e Rui Medeiros, que decantam a existência do que afirmam ser um “elemento institucional” que impeça, salvo disposição constitucional em contrário, os atos normativos dos parlamentos regionais de se projetarem em outras pessoas coletivas (MIRANDA e MEDEIROS, 2007, III, 351). O conceito pode sofrer um alargamento no plano substancial, ditado por exigências de especialidade. Na verdade, certos bens jurídicos e imperativos institucionais de alcance unitário e relevo imediato para todos os cidadãos, mas com repercussão no âmbito geográfico das regiões, podem carecer de um denominador comum à luz dos princípios da unidade e solidariedade nacionais (art. 225.º, n.º 2 da CRP), denominador que poderá ser negativamente afetado por legislação regional antitética passível de inviabilizar ou depreciar os próprios objetivos da lei do Estado e os interesses de toda a população residente em Portugal. Nessas circunstâncias, não seria improvável que o TC viesse a enxertar, na noção de “âmbito regional”, um limite simultaneamente negativo e positivo, soldado, no plano substancial, à ideia de especialidade regional dos bens e interesses tutelados. E que viesse a julgar a inconstitucionalidade de decretos legislativos regionais que projetassem indiretamente os seus efeitos fora desse âmbito. Ora, efetivamente, com o emblemático ac. n.º 258/2007, o TC procurou fixar o seu entendimento sobre a descodificação do conceito indeterminado de âmbito regional, em termos não muito distantes da sua primitiva noção de interesse específico. Assim, em primeiro lugar, o TC fez caber no conceito de “âmbito regional” a componente mais ampla da noção póstuma de “interesse específico”, na sua dimensão de interesse especial (como referimos em “As competências legislativas das regiões autónomas….”); o interesse específico desdobrava‑se numa componente de interesse exclusivo (matérias que apenas ocorrem nas RA) e numa componente de interesse especial (matérias que podem ocorrer nas demais partes do território, mas têm neste uma especial configuração). Reza a este propósito o acórdão citado: “Crê‑se não ser abusivo associar a expressão ‘âmbito regional’, para além de uma referência territorial, às expressões ‘matérias que dizem [digam] respeito às Regiões Autónomas’, constantes dos Projetos de revisão constitucional n.os 2/IX e 3/IX, definidas ‘em função da especial configuração que as matérias assumem na respetiva região’ (como se lê na exposição de motivos do Projeto de revisão constitucional n.º 1/IX), e surgindo aquela expressão como sucedânea da anterior menção a ‘matéria de interesse específico para as respetivas regiões’, ainda utilizada nos Projetos de revisão constitucional n.os 4/IX e 6/IX”. Em segundo lugar, o TC considerou que o critério geográfico deveria ser completado por um critério material. Segundo o ac. n.º 258/2007, “há, na verdade, que atender aos fundamentos, aos fins e aos limites que a Constituição assinala à autonomia regional, no seu artigo 225.º: os fundamentos dessa autonomia assentam nas características geográficas, económicas, sociais e culturais dos arquipélagos dos Açores e da Madeira e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares; os fins consistem na participação democrática dos cidadãos, no desenvolvimento económico‑social, na promoção e defesa dos interesses regionais, mas também no reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses; os limites derivam da não afetação da integridade da soberania do Estado e do respeito do quadro constitucional. Assim, a circunstância de a legislação regional se destinar a ser aplicada no território da Região não basta, só por si, para dar por verificado o apontado requisito”. Ora, segundo o mesmo aresto, na componente material, avulta um critério negativo de acordo com o qual as leis regionais não podem afetar a ordem jurídica nacional “atentas as pessoas (designadamente, pessoas coletivas públicas) envolvidas e os interesses e valores em jogo”. Do que resulta que, mesmo que o ato legislativo regional se aplique apenas na RA, de acordo com o critério geográfico, violará o limite configurado pelo âmbito regional caso se projete sobre interesses e fins qualificados de ordem geral e unitária prosseguidos pelos órgãos de soberania, sendo para o efeito irrelevante que a matéria não figure expressamente na reserva de competência dos mesmos órgãos.   O limite da reserva de competência implícita dos órgãos de soberania O posicionamento do TC acabado de referir implicou uma retoma da tradicional construção de recorte centralista, tecida pelo mesmo órgão previamente à revisão constitucional de 2004 (ac. n.º 711/97), retoma essa que pressupõe o entendimento segundo o qual se se concluir, por aplicação do critério substancial da noção de âmbito regional, que as normas regionais dispõem sobre um domínio que se repercute ou projeta em questões de interesse ou fim público geral, elas serão organicamente inconstitucionais, na medida que invadem um domínio implícito da reserva de competência dos órgãos de soberania. O TC mantém a sua controvertida jurisprudência, no sentido de integrar, na reserva não expressa dos órgãos de soberania, os domínios materiais que requeiram a intervenção legislativa estadual em razão de exigências soberanas. Com efeito, a alínea a) do n.º 1 do art. 227.º da CRP veda às RA o poder de legislarem sobre matérias reservadas aos órgãos de soberania (sendo o mesmo preceito alterado pela revisão de 2004, que modificou a primitiva fórmula, “reserva própria” dos órgãos de soberania). Ora, tal como é sabido, o TC, antes da revisão constitucional de 2004, através de uma jurisprudência não isenta de polémica, integrava, na referida reserva, quer matérias expressamente reservadas aos órgãos de soberania (mormente nos arts. 164.º e 165.º da CRP, entre outros), quer matérias e domínios materiais não enumerados na CRP, sempre que, em nome dos princípios da unidade e da solidariedade nacional, aqueles detivessem um relevo imediato para todos os cidadãos (ac. n.º 348/93). Tratou‑se, no segundo caso, de um domínio móvel da reserva, que permitia, casuisticamente, ao Tribunal integrar, no binário soberano da concorrência paralela entre o Estado e as RA, áreas que ia entendendo serem de relevo unitário e, como tal, subtraídas à competência regional. Ter‑se‑á verificado uma jurisdicionalização subtil de um critério de mérito soldado à noção de interesse nacional ou de interesse coletivo unitário. O ac. n.º 258/2007 sustenta que “há que atentar que a matéria em causa, tendo uma natureza relacional, não se esgota nem pode ser perspetivada isoladamente a propósito da definição dos estatutos de cada uma das entidades envolvidas. O que ocorre é que, englobando nesse tratamento relacional titulares de órgãos de soberania, o órgão legislativo para tal competente não pode deixar de ser o legislador nacional, por ser o único que se situa numa posição de supraordenação relativamente a todas essas entidades. Trata‑se, assim, de matéria que, mesmo que se considere não incluída na reserva de competência legislativa da Assembleia da República, sempre reclamará a intervenção do legislador nacional, justamente por afetar o posicionamento institucional de entidades pertencentes a distintos poderes do Estado e outros corpos públicos, sendo certo que as reservas assinaladas a este entendimento ‘amplo’ da ‘reserva da República’, que padeceria de um ‘sincretismo de critérios’, se esbateram face ao desaparecimento do critério reportado ao respeito das leis gerais da República”. À luz dessa jurisprudência, haveria que considerar, uma vez mais, a existência, a par da reserva explícita ou listada dos órgãos de soberania, de uma reserva implícita dos mesmos órgãos, a qual incide sobre domínios materiais indeterminados da esfera concorrencial paralela entre o Estado e as RA, que se encontram subtraídos ao âmbito regional. Daqui se retirará que o conceito constitucional de “âmbito regional”, previsto no n.º 4 do art. 112.º da CRP, como limite fixado à legislação das RA, assume uma relação de estreita conexão com outro limite, também ele constitucional, que é o da reserva dos órgãos de soberania na sua dimensão implícita. Com efeito, relativamente a cada matéria da esfera de uma concorrência paralela ou complementar entre Estado e Região Autónoma existem dois âmbitos, um estadual e outro regional, cuja delimitação é operada através do recurso à convocação e à harmonização de medidas de valor, como o conceito de âmbito regional e os princípios da unidade e da solidariedade nacionais, que sustentam o recorte da reserva soberana. E, na verdade, se uma dada disciplina exceder os limites espaciais ou materiais do âmbito regional, enfermará de inconstitucionalidade orgânica por invasão de uma reserva (móvel) de competência dos órgãos de soberania, cujas fronteiras são recortadas por cláusulas gerais fixadas na CRP.   A distribuição vertical de competências legislativas regionais: a tipologia das competências legislativas das RA A distribuição vertical de poderes reporta‑se às modalidades de competências legislativas que as regiões podem exercer numa relação de observância dos limites de natureza unitária que as vinculam. Quanto a esses mesmos limites, verifica‑se que parâmetros da legislação autonómica que se retiram do processo de distribuição horizontal de poderes (como os do “âmbito regional” ou da “subsidiariedade”) se combinam com outros limites próprios da distribuição vertical e que resultam da projeção da hierarquia material de certas leis estaduais (estatutos, leis de autorização, leis de bases, leis‑quadro e regimes gerais) sobre diferentes categorias de leis regionais. Assim, cada tipo de competência legislativa regional se encontra pautado por limites gerais (como é o caso do âmbito regional) e limites específicos (o tipo e o regime operativo das leis parâmetro do Estado que os correspondentes atos legislativos regionais devem observar).   A competência legislativa comum Noção O poder legislativo em epígrafe encontra‑se previsto na alínea a) do n.º 1 do art. 227.º, em conjugação com o n.º 4 do art. 112.º e o n.º 1 do art. 228.º da CRP. Trata‑se da competência que tem por objeto o maior acervo de matérias sujeitas ao exercício de poderes legislativos regionais, e que uma parte da doutrina designa por competências “primárias” (MIRANDA e MEDEIROS, 2007, III, 307).   Critérios reitores do exercício da competência legislativa regional comum Os decretos legislativos regionais aprovados ao abrigo deste tipo de competência devem incidir sobre matérias enumeradas nos EPA, devem conter-se no “âmbito regional” e, ainda, respeitar a reserva explícita ou implícita de competência dos órgãos de soberania da república. Procurando explicitar esta asserção, importa destacar que a competência legislativa em epígrafe se exerce no respeito dos seguintes critérios: (i) a RA pode legislar apenas no “âmbito regional” (CRP, art. 112.º, n.º 4) decantado nas matérias enumeradas no correspondente EPA, o qual, depois de 2004, passou a constituir‑se inequivocamente como um ato‑condição dessa categoria de legislação regional, já que só os Estatutos podem definir o objeto material do exercício da competência legislativa comum; (ii) essas matérias disponíveis à regulação regional não podem invadir a reserva de competência dos órgãos de soberania; (iii) existindo, nestes termos, um fenómeno de confluência legislativa em domínios territoriais e substanciais da mesma matéria (concorrência paralela entre leis do Estado e da RA em matérias não reservadas expressamente aos órgãos de soberania), verifica‑se que, no contexto de uma dessas matérias (v.g., turismo, comércio ou artesanato), os decretos legislativos regionais disciplinam um domínio parcelar da mesma que corresponda ao seu “âmbito regional” e a legislação da República domínio remanescente situado fora do correspondente âmbito; (iv) a densificação do âmbito regional, em situações concretas e dilemáticas de fronteira com as competências soberanas, pode justificar a convocação do princípio da subsidiariedade, o qual permite que a regulação de um domínio em particular possa ser cometida às regiões no caso de se demonstrar que a lei regional (e o respetivo sistema de execução – cf. conexão entre a lei e a sua execução administrativa no plano da incidência do princípio da subsidiariedade na sentença n.º 303 de 2003, do TC italiano) exibe uma maior eficácia e adequação do que uma lei da república, na disciplina jurídica desse domínio; (v) a enumeração estatutária daquilo que eram, antes da revisão constitucional de 2004, matérias de interesse específico foi elaborada de forma excessivamente generalista e indeterminada (facto que não permitiu assegurar uma salvaguarda efetiva dos direitos regionais contra a compressão do poder legislativo estadual concorrente), parecendo não se ter apercebido o legislador autonómico que, caso consagrasse um mínimo de definição do núcleo de competência regional na lei estatutária, essa definição constituiria um defeso com eficácia relativa contra legislação invasiva de leis concorrentes do Estado (já que as leis estaduais devem respeitar os direitos regionais expressos em estatuto, nos termos da alínea d) do n.º 1 do art. 281.º da CRP); (vi) a aprovação da terceira revisão do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores (lei n.º 2/2009, de 12 de janeiro), pese as suas graves deformidades constitucionais, corrigiu a insuficiência referida na alínea precedente, a qual sempre foi por nós sublinhada, tendo pormenorizado o objeto de cada matéria da reserva de competência legislativa regional, do que resultou uma maior garantia contra a intromissão indevida de leis da república; (vii) contudo, se é certo que a forma concreta como o âmbito de uma dada matéria atribuída ao poder legislativo regional se encontra definido no Estatuto Político-Administrativo pode assegurar uma maior garantia do exercício dos poderes regionais contra legislação estadual excessivamente densa ou intrusiva, certo é, também, que essa densificação estatutária deverá, ela própria, ser compatível com a noção constitucional de “âmbito regional”, não consistindo a enumeração estatutária uma salvaguarda absoluta em relação à contenção de cada diploma no limite positivo representado pelo referido âmbito – se as leis da república não podem revogar decretos legislativos regionais que disponham sobre matérias elencadas estatutariamente como de “âmbito regional” (sob pena de ilegalidade), o facto é que a própria definição do referido âmbito de uma dada matéria, no estatuto, deve ser conforme ao conceito constitucional de âmbito regional, o qual já foi objeto de uma caracterização exploratória por parte da justiça constitucional; assim, se a definição estatutária atribuir às regiões o poder de emitir legislação que exceda a esfera geográfica da RA e se repercuta, sem credencial constitucional habilitante, na esfera de poder de outras instituições não regionais ou, ainda, se puser em causa regimes jurídicos estatais que devam ter repercussão igual e mediata em todos os cidadãos, à luz dos princípios constitucionais da unidade, solidariedade nacional e subsidiariedade, ela será inconstitucional; (viii) embora as leis do Estado da esfera concorrencial possam circunscrever o seu âmbito de aplicação ao território continental, o facto é que não estão obrigadas a fazê-lo, podendo dispor em geral para todo o território nacional, não sendo por esse facto organicamente inconstitucionais com fundamento em invasão de domínios reservados à competência regional – um pouco à semelhança dos ordenamentos espanhol e italiano, a nova regra da supletividade acabou por afastar a relação de desvalor de inconstitucionalidade das leis estaduais que incidam sobre domínios materiais reservados à competência regional, em sede de concorrência paralela, já que, podendo os órgãos de soberania legislar para todo o território nacional, a sua legislação que incida sobre domínios de “âmbito regional” será apenas desaplicada pelo operador administrativo e jurisdicional, quedando‑se no status de direito supletivo; contudo, é defensável que legislação especial do Estado reportada às RA que intente revogar expressamente legislação regional emitida no âmbito reservado à competência dos entes autónomos poderá ser ilegal, com fundamento em violação de direitos regionais constantes do EPA (art. 281.º, n.º 1, alínea d)) –, devendo aplicar‑se nas RA como direito supletivo ou subsidiário (art. 228.º, n.º 2 da CRP); (ix) a aplicação subsidiária do direito dos órgãos soberanos terá lugar: sempre que a Assembleia Legislativa regional não fizer uso do seu poder legislativo; caso se verifique a revogação não substitutiva ou a caducidade de diplomas regionais em domínios que requeiram regulação; ou sempre que numa dada disciplina legislativa regional se registarem vazios regulatórios e lacunas em leis regionais (embora estas, a serem integradas pelos tribunais, devam ter em conta, preferentemente, o espírito da lei regional ou a reconstituição do pensamento do legislador regional).   As competências delegadas Objeto das autorizações legislativas à RA Os pressupostos constitucionais das autorizações legislativas oriundos da revisão constitucional de 2004 permitem às RA aceder a algumas das matérias da reserva relativa de competência da Assembleia da República previstas no art. 165.º da CRP, mediante delegação legislativa parlamentar, o que, na generalidade, representou um acréscimo de poderes legiferantes sobre matérias de indiscutível relevo político. Trata‑se de uma derrogação ao quadro geral do sistema de repartição horizontal de competências, dado que permite a disponibilização, às regiões, de algumas áreas da competência expressa dos órgãos de soberania. Muitas das matérias integradas na reserva relativa da Assembleia da República não se encontram disponibilizadas às RA. De acordo com a alínea b) do n.º 1 do art. 227.º da CRP, por força de remissão para disposições do n.º 1 do art. 165.º, excluiu‑se do objeto deste tipo de autorizações matérias da reserva relativa da Assembleia da República de mais evidente recorte unitarista ou relevo imediato e geral para todos os cidadãos, v.g.: estado e capacidade de pessoas; direitos, liberdades e garantias; definição de crimes, penas e medidas de segurança; regime geral do ilícito disciplinar; bases do sistema de Segurança Social e do Serviço Nacional de Saúde; criação de impostos e sistema fiscal e regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a favor das entidades públicas; composição do Conselho Económico e Social; sistema monetário e padrão de pesos e medidas; organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respetivos magistrados, bem como de entidades não jurisdicionais de composição de conflitos; estatuto das autarquias locais e regime das finanças locais; associações públicas, garantias dos administrados e responsabilidade civil da administração; bases do regime e âmbito da função pública; definição e regime dos bens do domínio público; regime dos meios de produção integrados no setor cooperativo e social de propriedade; regime e forma de criação das polícias municipais.   Trâmites e vicissitudes da autorização legislativa Nos termos do n.º 2 do art. 127.º da CRP, que, segundo alguma doutrina, integra o critério ou “cláusula de junção” (GOMES CANOTILHO, 2003, 813), as propostas de lei de autorização devem ser acompanhadas do anteprojeto do decreto legislativo regional a autorizar, o que representa um forte condicionamento do processo de delegação. As leis delegantes devem, nos termos da remissão feita pelo mesmo preceito para os n.os 2 e 3 do art. 165.º, conter os requisitos típicos das leis de autorização legislativa. De todo o modo, considera‑se, tal como já foi antecipado, que o legislador regional não se encontra vinculado a editar uma normação legal idêntica à do anteprojeto, contanto que o diploma legal por si aprovado se contenha nos limites da autorização. O anteprojeto constitui apenas uma formalidade instrutória de natureza obrigatória, que permite ao legislador parlamentar estadual balizar os parâmetros da delegação legislativa requerida pela RA. As autorizações caducam com o termo da legislatura ou a dissolução da Assembleia da República ou da Assembleia Legislativa da RA a que tenham sido concedidas (CRP, art. 127.º, n.º 3). Os decretos legislativos regionais autorizados devem invocar a correspondente lei de autorização e podem, ainda, ser sujeitos a apreciação da Assembleia da República, nos termos do art. 169.º com as devidas adaptações para efeitos de cessação de vigência (de acordo com o n.º 4 do art. 227.º). Considera‑se que não será admissível que a apreciação parlamentar nacional envolva alterações, já que tal implica uma intromissão constitutiva do Estado no exercício de uma competência reservada à RA, com a depreciação desta última, devendo entender‑se que a aplicação do art. 169.º da CRP às leis regionais delegadas, ao operar com adaptações, envolve a exclusão da possibilidade da apreciação parlamentar com emendas. Sendo a Assembleia da República o órgão normalmente competente e titular primário das competências delegadas nas RA e sendo a autorização legislativa uma delegação legislativa e não uma transferência de poderes, entende‑se que o Parlamento da República pode alterar a sobredita lei de autorização antes de a mesma ter sido esgotada e revogar o diploma autorizado, no quadro de uma avocação de poderes, idêntica ao que sucede com as autorizações legislativas ao Governo. Considera‑se, no entanto, que não poderá alterar o diploma regional. Na verdade, uma coisa será avocar os poderes delegados e proceder ao seu exercício pleno e outra, modificar o diploma regional, descaracterizando‑o e procedendo a uma estatização parcial de uma disciplina jurídica regional. O modelo horizontal e vertical de distribuição e repartição de competências entre Estado e RA revela ser incompatível com leis mistas, editadas pelas regiões no âmbito regional e alteradas pelo Estado no uso de uma espécie de “tutela corretiva” adaptava à função legiferante. Se a Assembleia da República fosse o órgão normalmente competente para revogar os decretos legislativos regionais por ela autorizados, deveria fazê‑lo expressamente, pois a simples emissão, pela mesma Assembleia, de legislação geral que seja superveniente à aprovação de um decreto legislativo regional autorizado não supõe a revogação deste, nos termos do princípio da especialidade que determina que lei geral não revoga lei especial, salvo vontade inequívoca do legislador nesse sentido. Do mesmo modo, a mera emissão de legislação geral do Estado, depois de aprovada uma lei de autorização à RA ainda não utilizada, não determina, só por si, a revogação tácita dessa autorização, podendo assumir a natureza de normação legal supletiva.   A competência complementar A competência a que se refere a alínea c) do n.º 1 do art. 227.º da CRP reporta‑se ao desenvolvimento para o âmbito regional dos “princípios” ou das “bases gerais dos regimes jurídicos” contidos em leis que aos mesmos se circunscrevam. Corresponde a mesma à faculdade de desenvolver e concretizar o conteúdo de leis de bases e leis de enquadramento e ditar disciplinas legais de conteúdo especial não contrárias a regimes gerais da reserva da Assembleia da República. No texto constitucional anterior à revisão de 2004, as Assembleias regionais poderiam desenvolver, quer leis de bases relativas a um domínio concorrencial indeterminado (matérias não reservadas à competência da Assembleia da República), quer as bases gerais reportadas a algumas matérias da reserva relativa daquela Assembleia. O novo regime constitucional permite, em abstrato, o desenvolvimento para o âmbito regional de qualquer base geral, sem aceção de matéria, abrangendo, em tese, quer as áreas concorrenciais, quer os domínios da reserva absoluta ou relativa da Assembleia da República, quer ainda matérias cobertas por decretos legislativos regionais de bases. Doravante haverá a considerar as seguintes leis parâmetro, para efeito do exercício de competências legislativas regionais complementares: (i) leis de bases (bem como leis de enquadramento e regimes gerais) da reserva dos órgãos de soberania de alcance geral e aplicáveis a todo o território nacional; (ii) leis de bases respeitantes a matérias não reservadas aos órgãos de soberania, com âmbito geral; (iii) decretos legislativos regionais de bases, nomeadamente os habilitados por uma lei de autorização legislativa dos órgãos de soberania. O presente enunciado permite, em tese, o desenvolvimento de bases em todas as matérias relativamente às quais estas sejam passíveis de edição, nomeadamente as matérias de reserva absoluta. Não se exclui, e.g., que, no âmbito regional, os entes autonómicos desenvolvam as bases gerais da reserva absoluta de competência da Assembleia da República, tais como as “bases gerais da organização, do funcionamento, do reequipamento e da disciplina das Forças Armadas” e as bases do Sistema de Ensino (cf. o ac. n.º 262/2006, onde se reconhece esta faculdade). Embora, no primeiro caso, razões lógicas de ordem unitária (excedência do “âmbito regional”) mandem que se tenha como proibido esse desenvolvimento, o mesmo já se não passa no segundo, pese o facto de causar alguma perplexidade a admissibilidade de diversos regimes legais de detalhe entre o continente e os territórios dos arquipélagos, em relação a uma matéria de evidente interesse e relevo para a unidade nacional. O desenvolvimento das bases do art. 164.º da CRP deveria encontrar‑se vedado às RA. Considera‑se, contudo, que, depois da revisão constitucional de 1997, as RA não poderão, na falta de bases gerais previamente editadas pelos órgãos de soberania sobre matérias reservadas à Assembleia da República, legislar apenas com referência a princípios gerais decantados ou deduzidos pelos órgãos regionais da legislação estadual comum, dado que essas leis de bases são legislação‑pressuposto dos atos legislativos complementares autonómicos que as deverão necessariamente invocar (CRP, art. 227.º, n.º 4). O contraponto desta ampliação dos poderes regionais no desenvolvimento das bases gerais dos regimes jurídicos consiste na faculdade de os órgãos de soberania ditarem leis de bases fora da respetiva reserva, ou seja, no universo concorrencial, as quais, no nosso entendimento (que, no entanto, não foi seguido na terceira revisão do EPARAA), deverão ser respeitadas por toda a legislação regional emitida ao abrigo da competência comum.   As competências residuais ou mínimas Trata‑se das faculdades legislativas diretamente exercitáveis a partir de diversas alíneas do n.º 1 do art. 227.º da CRP, encontrando‑se os mesmos poderes misturados com outros de natureza administrativa. Uma destas responsabilidades regionais assume carácter tendencialmente primário, tendo a CRP como uma base fundamental de referência: é, numa primeira leitura, o caso da elevação de povoações à categoria de vilas ou cidades (art. 227.º, n.º 1 alínea m)). Outras exercem‑se no respeito de leis estaduais paramétricas: é o caso de leis relativas à disposição do património, as quais são instrumentais em relação à lei prevista na alínea v) do art. 165.º da CRP no respeitante ao regime dos bens do domínio público (art. 227.º, n.º 1, alínea h)); da criação, extinção e modificação da área das autarquias, a qual deve observância à lei prevista na alínea n) do art. 164.º; do exercício de poder tributário próprio, de acordo com as leis previstas na alínea i) do n.º 1 do art. 165.º (art. 227.º, n.º 1, alínea i)); e da aprovação do orçamento regional, na observância do regime legal constante da alínea s) do art. 164.º (art. 227.º, n.º 1, alínea p)).   A competência relativa à transposição de diretivas da União Europeia Com a revisão constitucional de 2004, corrigiu‑se o excesso da revisão constitucional de 1997, que vedava a transposição de diretivas da União Europeia por ato legislativo regional e depreciava a sua esfera de competência legislativa. A nova redação do n.º 8 do art. 112.º da CRP permite à RA transpor, mediante decreto legislativo regional, diretivas em matérias situadas fora da reserva de competência dos órgãos de soberania que sejam reconhecidas, através das listagens constitucional e estatutária, como fazendo parte do âmbito regional.   Síntese sobre as relações de tensão entre atos legislativos do Estado e da RA Volvida a eliminação das leis gerais da república, as quais geraram complexas dúvidas sobre o seu regime de prevalência em relação aos atos legislativos regionais, o quadro das relações inter-legislativas entre o Estado e as RA ficou simplificado com a revisão constitucional de 2004.   Solução de antinomias no plano jurisdicional Os tribunais comuns dispõem de uma ampla margem de competência para solucionar antinomias derivadas das relações entre as leis do Estado e das RA, a qual lhes é dada pelo art. 204.º da CRP, que os investe no direito‑dever de desaplicar normas inconstitucionais, e pelo art. 280.º, que confirma a mesma regra e a alarga à faculdade de desaplicarem leis estaduais e regionais violadoras de normas legais com valor reforçado. Caem, nomeadamente, no âmbito das desaplicações legais fundadas em juízos de inconstitucionalidade: (i) a violação do objeto e extensão (inconstitucionalidade orgânica) e duração (inconstitucionalidade material) das leis de autorização legislativa por decretos legislativos regionais autorizados); (ii) a incursão de norma legal do Estado ou de decreto legislativo regional, na reserva do Estatuto (inconstitucionalidade formal); (iii) a violação do limite positivo do “âmbito regional” por decreto legislativo regional que invada no campo vedado das competências expressamente reservadas aos órgãos de soberania, ou do âmbito da concorrência entre o Governo e a Assembleia da República ou no âmbito da competência da outra RA (inconstitucionalidade orgânica). Os tribunais podem, no quadro de antinomias que impliquem uma violação ao conteúdo de leis com valor reforçado, julgar a ilegalidade de: (i) decretos legislativos regionais que ofendam as normas paramétricas constantes das bases gerais dos regimes jurídicos, leis de enquadramento, regimes gerais da reserva da Assembleia da República ou de outras leis com valor reforçado que os vinculem especificamente; (ii) normas que definem o sentido das leis de autorização legislativa (sem prejuízo de, discutivelmente, o TC aferir esta antinomia em sede de inconstitucionalidade orgânica, em cumulação com a violação do objeto e da extensão); (iii) leis dos órgãos de soberania que ofendam direitos regionais constantes dos Estatutos de autonomia e decretos legislativos regionais que violem o disposto nos referidos Estatutos. Colocam‑se dúvidas a respeito de colisões entre decretos legislativos regionais que incidam sobre matérias do âmbito regional e leis dos órgãos de soberania respeitantes a matérias situadas fora da sua reserva explícita de competência legislativa. Os tribunais devem, de acordo com o critério da especialidade, articulado com o critério da competência, dar aplicação preferencial, nas RA, à lei que contenha uma disciplina particular e cuja esfera de aplicação se circunscreva necessariamente ao âmbito das RA, sendo essa lei o decreto legislativo regional. Em consequência, a lei do Estado terá a sua eficácia bloqueada ou suspensa nas RA sempre que tiver preferência um decreto legislativo regional sobre a mesma matéria. Contudo, nos termos do n.º 2 do art. 228.º da CRP, a lei estadual vigorará supletivamente nas RA e poderá ser aplicável na falta de legislação regional (caso de não emissão de legislação autonómica, caducidade, revogação puramente supressiva ou declaração de invalidade sem repristinação de diplomas regionais antecedentes).   Solução de antinomias legislativas pelo operador administrativo A Administração Pública, estadual e regional, não tem competência para solucionar antinomias impróprias, ou seja, para desaplicar leis com fundamento em inconstitucionalidade ou ilegalidade, sem prejuízo de, num quadro de antinomia, a administração estadual periférica se dever abster de aplicar leis regionais que disponham sobre as matérias da reserva expressa de competência da Assembleia da República e do Governo, onde não existe concorrência e os atos regionais se encontram absolutamente vedados. Daí que, salvo situações excecionais, em que as normas da CRP se apliquem diretamente, e na falta de cláusulas constitucionais de solução imediata de conflitos, a Administração Pública deva conferir, nas RA, como decorrência do princípio da especialidade, aplicação prevalecente aos diplomas regionais sobre os estaduais, no âmbito das matérias situadas fora da esfera da reserva.     Carlos Blanco de Morais (atualizado a 11.02.2017)

Direito e Política