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bilhardice

O estudo do regionalismo madeirense “bilhardice” tem como escopo a sua individualização em relação a outros termos que a língua portuguesa oferece e que poderiam aparecer como sinónimos deste regionalismo sem qualquer diferenciação semântica. A riqueza semântica do termo “bilhardice” (Regionalismos) obrigará a testes vários no eixo paradigmático e no eixo sintagmático, consoante a nomenclatura de Ferdinand Saussure. A semântica deste termo é mais sustentada em conhecimentos pragmáticos resultantes da sua realização em concreto, da experiência própria de sujeito falante do português madeirense e da sustentação ideológica em diferentes campos científicos, mais ou menos implícitos, nomeadamente da linguística, da semântica, da psicologia, da sociologia e de outros ramos gnosiológicos, incluindo o da filosofia. Com efeito, a consulta de dicionários e enciclopédicas da língua portuguesa revela que este vocábulo não regista nenhuma entrada nessas obras. Exceção a esta situação é o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (DPLP), online, que o regista como tendo o mesmo significado de “bisbilhotice”. A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, autoridade científica de reconhecido prestígio, na sua edição de 1936, registava uma entrada de um termo cognato de “bilhardice”, e definia assim “bilhardeira”: “o mesmo que mexeriqueira, intrigante, na ilha da Madeira; ordinária ou de fraco valor moral em Évora. Em Beja, mulher de mau génio”. Já nas últimas edições, entre 1998 e 1999, o termo deixa de aparecer. A sua formação morfológica fez uso das potencialidades do sistema aplicadas à forma, tendo-se o sujeito falante, por intuição linguística, limitado a acrescentar ao radical adjetival “bilhard-” o sufixo “-ice”, que se junta a adjetivos para formar nomes, como em: sovin- + ice > sovinice; tol- + ice > tolice. Assim, sem grandes meios de consulta do ponto de vista de dicionários ou enciclopédias que registassem o verbete do regionalismo “bilhardice”, i.e., aquilo a que a lexicografia designa o conjunto de aceções, exemplos e informações acerca de um termo, o recurso a exemplos construídos em situações possíveis de comunicação de fala foi a base essencial do estudo deste regionalismo. Em tal situação, este trabalho não pôde contar com o registo sistemático do termo “billhardice” em dicionários ou enciclopédias, que costumam reivindicar para si a objetividade, como se se situassem acima das determinações sócio-históricas em que um vocábulo surge e é usado, quando é certo que as definições de um verbete, em dicionários e enciclopédias, podem trazer implícitas perspetivas ideológicas e culturais, mesmo que possam não ter sido objeto de um ato reflexivo. Contudo, esse obstáculo tornou-se um desafio e determinou o método da pesquisa e da elaboração do mesmo, partindo da consulta de trabalhos já efetuados sobre o mesmo assunto, os quais tiveram e anotaram as mesmas dificuldades, mas cujos autores têm o conhecimento da realidade da língua em contexto, o contexto sociocultural madeirense, a língua portuguesa tal como é falada na Madeira e o uso muito peculiar do termo “bilhardice” pela população da região. Com efeito, as diferentes aceções de um termo resultam também daquilo a que Saussure chama “realidade da língua”, ou seja, da relação do sujeito com os signos que usa, porque a compreensão do signo linguístico e a sua realização se dão num determinado contexto sociocultural e, nesse contexto, adquire uma significação que vai para além da mera equivalência de significantes inscritos na paradigmática da sinonímia, o que implica a variação de valores de acordo com a realidade sociocultural em que se movimenta o sujeito falante, pois cada palavra de uma linha sintagmática se relaciona com as entidades no sintagma, mas igualmente com outras que são suscetíveis de o substituir na coluna paradigmática. Para além disso, os dicionários e enciclopédias são produto de autores que são fruto de contextos socioculturais que os condicionam e lhes proporcionam o material necessário para o seu trabalho, em que um exemplo ilustrativo pode ser, exatamente, este excurso sobre o termo “bilhardice”. Já o uso do verbo “bilhardar” e de “bilhardeiro” pode anotar-se no DPLP (“Bilhardar: Picar duas vezes a bola com o taco. Picar duas bolas ao mesmo tempo quando estão juntas. Jogar a bilharda. Regionalismo, o mesmo que bisbilhotar”; “Bilhardeiro: Jogador de bilharda. Mandrião, calaceiro.  O mesmo que bisbilhoteiro”) e na versão online da edição de 1913 do Novo Diccionário da Língua Portuguesa de Cândido de Figueiredo, encontram-se duas entradas para o verbo “bilhardar” e uma para “bilhardeiro”: “bilhardar, 1 v. I. Dar duas vezes na bola com o taco ou tocar duas bolas ao mesmo tempo, no jogo do bilhar. (Fr. billarder); bilhardar, 2 v. i. Jogar a bilharda. Pop. Vadiar”. “Bilhardeiro m. Jogador de bilharda. Vadio, garoto”. O termo “bilhardice” também não se encontra neste dicionário, facto já observado por outros autores, que, por sua vez, citam outros: “A palavra bilhardice é um termo regional para as palavras bisbilhotice, mexerico, coscuvilhice. O que a torna interessante, de facto, é tratar-se de um regionalismo, e ser usada, frequentemente, em detrimento das anteriores. Curiosamente, não constitui entrada de dicionários e é apenas referida como ‘falso testemunho, alveiosia. Aquelas raparigas não fazem senão bilhardar’” (BARBEITO, “Para a Compreensão…”). Note-se que o trecho da citação colocado em itálico tem por autor Jaime Vieira dos Santos, em “Vocabulário do Dialecto Madeirense”, artigo publicado na Revista de Portugal. Em Ana Cristina de Figueiredo, o termo aparece registado com várias aceções: “Ato de conversar animadamente (Cavaqueira). ‘Aquelas parecem duas comadres: sempre na bilhardice!’” Ou como “ação de comentar a vida alheia e de arranjar intrigas ou mexerico sobre a vida de outrem (alcovitice, bisbilhotice, coscuvilhice, mexerico)” (FIGUEIREDO, 2011, 104-105). Interessante será referir o que diz sobre “bilhardice” David Pinto-Correia: “Quanto à ‘bilhardice’, termo felicíssimo exclusivamente madeirense, que sintetiza, com os seus próximos ‘bilhardeiro’ e ‘bilhardeira’ e ‘bilhardar’ (interessante será verificar que este verbo quase só se conjuga no infinitivo ou em formas perifrásticas), e com uma sonoridade bem expressiva, muito do que outras palavras de sentido próximo (como, por exemplo, ‘intriga’, ‘bisbilhotice’, ‘mexeriquice’) não conseguem exprimir: a sua complexidade semântica integra a principal significação de ‘difundir uma situação’, mormente ‘reservada’, ‘que não era necessariamente divulgável’, ou mesmo ‘que devia ser mantida em segredo’, mas também a de uma crítica velada ou de reprovação ao ato em si, ao mesmo tempo que contém muito de ironia, e de caracterização de tal prática como lúdica (como se se quisesse indicar que ‘é um dizer por dizer’, ‘divulgar por divulgar’, sem procurar consequências graves para o que é divulgado ou sobretudo para quem é posto em causa pela divulgação, o que está longe de ser verdade), uma espécie de hábito atavicamente gratuito, inofensivo” (PINTO CORREIA, 2000, 25). Esta longa citação justifica-se não só pela autoridade científica do autor, mas, sobretudo, por colmatar a ausência já anotada do termo em dicionários académicos, na medida em que a sua riqueza semântica serve de fonte autorizada para este verbete. Na mesma linha do carácter lúdico-narrativo para aqueles que praticam a “bilhardice” envereda Teresa Brazão ao dizer “A bilhardice é o curioso e permanente hábito que têm as pessoas, de saber pormenores acerca daquilo que não lhes diz respeito, especialmente quando se trata da vida alheia. De cultivar e fazer crescer desmesuradamente esses pormenores, que acabam tão maiores quão enorme o desejo dos seus insaciáveis criadores […] A Madeira, meio pequeno, que, apesar de tudo, já não é assim tão pequeno, foi, desde tempos imemoriais, solo fértil para o cultivo de tal hábito social” (BRAZÃO, 2005, 68). A autora não deixa, contudo, de notar não só o jogo social que estava por detrás da sua prática em favor de elementos mais bem situados na esfera social, mas igualmente os efeitos que tal poderia provocar nos alvos da “bilhardice”, que, nesse caso, seriam mais frágeis na hierarquia social ou a desigualdade entre o homem e a mulher: “Era mesmo assim. Na mesma medida em que se exageravam e chafurdavam os defeitos de alguns, exaltava-se e engrandecia-se a virtude de outros. Esses outros alimentavam a bilhardice, porque ela lhes era favorável. Quanto mais mal se dissesse dos outros, mais bem se diria deles próprios, numa espécie de equação matemática ou regra dos termos da lógica aristotélica. Assim, as suas poses, estudadíssimas e refinadíssimas, refletiam a sua enorme embora só aparente virtude. […] As principais vítimas eram os mais fracos, ou senão mais fracos, os menos compensados socialmente” (BRAZÃO, 2005, 68). Neste jogo social, a autora observa a mudança que a liberdade política e cultural veio a ter na mudança das mentalidades: “A liberdade tendeu a desmontar esta coisa toda, graças a Deus. Foram inúmeras as personagens desmascaradas, e hoje fala-se das pessoas doutra maneira. Parecia que a mentalidade dos madeirenses estava a crescer. O número de pessoas aumentou, e deixou de ter o mesmo impacto saber que a dona Sílvia do monte andava a encontrar-se com o senhor Silva da zona velha. Porque ninguém os conhece. E também hoje as pessoas assumem muito mais o que fazem, e não tem graça nenhuma falar de coisas que as próprias pessoas assumem”. E recomenda, nessa sua abordagem sociocultural da liberdade, “A iliteracia do estado novo alimentava a bilhardice. Por isso, agora, temos de investir mais em cultura. Só assim a sociedade ficará melhor, para todos vivermos confortavelmente nela, com a tão propagada qualidade de vida” (Id., Ibid.). Este excurso de Teresa Brazão revela-se bastante pertinente neste verbete porque a autora, ao situar socioculturalmente a “bilhardice” num meio pequeno e ao perspetivá-la em outras vertentes, nomeadamente a político-cultural, confere a esta característica um cunho marcadamente regional, pela importância que ela assume na sociedade madeirense em todos os extratos socioculturais; ou seja, fica aqui claro não se tratar de uma característica exclusivamente popular, como, por vezes, se possa pensar ou dizer. O conhecimento desta realidade contribui para o enriquecimento da semântica do vocábulo “bilhardice” e, de certo modo, ajuda a preencher a lacuna que deriva da sua ausência sistemática em dicionários e enciclopédias. No estudo de um determinado regionalismo, a primeira questão que se coloca é a de saber se existem palavras no idioma que possam substituir, com propriedade ou total equivalência, esse regionalismo. E logo aqui deparamos com a questão da sinonímia. Outra é a de saber se a palavra em questão cumpre uma função que nenhuma outra cumpre para os sujeitos falantes dessa região. Posta assim a questão, o madeirensismo “bilhardice” pode ser comparado com outros termos que lhe são correlatos na língua portuguesa, como “coscuvilhice”, “mexerico”, “bisbilhotice”, “intriga”, “alcovitice”, ou até mesmo “fofoca”, que, note-se, nos remete mais para o português brasileiro pois não provém do português lusitano e tem etimologia africana, mais propriamente da língua banta. Apesar os dicionários darem de “fofoca” o sinónimo “mexerico”, esse termo não deixa de ter um contexto de significação que, não obstante a etimologia africana, tem ressonância nitidamente brasileira. Assim, ao ouvir o termo “fofoca”, um europeu tende a evocar de forma espontânea contextos exóticos, aquilo a que Sartre chama o “estado de consciência”, que implica uma espécie de inércia, de passividade reflexiva ao ouvir um determinado signo face à realidade que ele designa. Assim, se é certo que pode haver múltiplos sinónimos para o termo “fofoca”, tantos quantos aqueles que nos devolve um bom dicionário, a verdade é que nenhum deles ecoará melhor no nosso imaginário como significativo de um ambiente brasileiro. O que fica dito acerca do brasileirismo “fofoca” aplica-se, com a mesma propriedade, ao madeirensismo “bilhardice”. O uso de um signo provoca uma atitude de consciência que integra esse signo numa estrutura mental que não depende de um objeto particular (o signo “árvore” é o universal de todas as árvores, mas não se esgota em nenhuma delas em particular). O signo “bilhardice”, que não designa um objeto, uma realidade física, tangível, mas uma realidade fisicamente intangível, só pode ser entendido ligando-o à realidade exterior que lhe deu origem, em correlação com uma linguagem interior traduzida em imagens mentais que não se ativam de forma reflexiva, mas de forma inconsciente e automática, o que remete não só para o campo da psicologia, da sociologia, da cultura, do folclore, dos hábitos, da geografia e do meio, mas para uma fronteira que define o que é ser madeirense. Nessa perspetiva, o madeirensismo “bilhardice” não é suscetível de ser substituído por outros termos que se reivindiquem como seus sinónimos sem que isso tenha um custo de esvaziamento mental, do ponto de vista cultural, em quem ouve e em quem fala, no caso de falantes madeirenses, perdendo-se o contexto sociocultural de uma mundividência que só pode ser traduzida por este termo enquanto regionalismo compósito de uma realidade cultural. Esteja o sujeito falante na Madeira ou em qualquer parte do mundo, a “bilhardice” evoca a ida à igreja, os arraiais em seu redor, a conversa entre vizinhas, ou vizinhos, a aldeia, a rua, o bairro, a cidade e o campo, enfim, a Madeira e as suas duas ilhas. Ou seja, a relação necessária do uso de um signo com determinado contexto habita no sujeito falante em função de uma opção que lhe é imposta por um contexto sociocultural. A opção do sujeito falante pelo termo “bilhardice”, nesse caso, deriva de ele julgar que é o que melhor traduz a realidade que quer transmitir. Pode haver a tentação de o argumento do nível sociocultural do falante explicar o uso deste termo em detrimento de outros que poderiam ser tomados como sinónimos e com a mesma eficácia; contudo, tal não se verifica, pois observa-se o seu uso por indivíduos de diferentes extratos sociais. Também quando à questão diafásica, a opção ou não por este termo não difere da que é feita por qualquer outro que se apresente como sinónimo, e.g., em situação solene, onde não se fala de coscuvilhice e termos equivalentes; e se, após o ato solene, houver cavaqueira, o termo “bilhardice”, mesmo nos salões dos diferentes fora regionais – políticos, culturais, sociais – antepor-se-á a outros tomados como equivalentes. Resta a variação diatópica, e é nela que devemos prosseguir, visto tratar-se de um regionalismo. Sobre a questão da relação intrínseca entre o significante e o significado no interior do signo, ressalvando a voluntária construção pleonástica da frase, e se o significado de um signo é assumido como representação mental coletiva de um ente, ser concreto ou abstrato, aduz-se que um signo não pode subsistir, ontologicamente, numa espécie de mundo platónico das ideias, sem uma necessária ligação a um referente exterior a si, que é a razão da sua existência. As situações em concreto do uso da palavra remetem para a sua riqueza semântica e negam qualquer sinonímia simplificada. Tal implica considerar, para além do nome abstrato “bilhardice”, o verbo “bilhardar” e o adjetivo “bilhardeiro” (incluindo a sua forma correspondente ao grau aumentativo, “bilhardão”), classes morfológicas importantes para um quadro semântico variado destes termos. Vejamos casos concretos de aplicação: “Olhe, venho aqui fazer-lhe uma bilhardice”. Nesta enunciação, está pressuposta a cumplicidade entre os dois sujeitos falantes, a confiança e a proximidade, quer humanas, quer geográficas, tipo porta com porta, no aspeto espacial. Que significará, então, aqui “bilhardice”? Confidência, segredo, maledicência ou não, dependendo do conteúdo. Imaginemos vários exemplos: “– Olhe, venho aqui fazer-lhe uma bilhardice. Sabe que Maria tem um amante?! – Não me diga! E ela que se tinha por melhor que as outras!”: aqui, o caso é nitidamente de conversa de maldizer. “– Olhe, venho aqui fazer-lhe uma bilhardice. Sabia que Maria tem um tumor? – Ah, coitada da rapariga, tão nova, com filhos pra criar!”: aqui, o caso é de solidariedade, uma confidência, em que a “bilhardice” implica uma obrigação solidária, em que todos sabem de uma triste realidade que merece discrição, pelo menos perante a Maria, e todos têm o dever de passar a ser compassivos com ela. Como se vê, a imagem mental do signo “bilhardice” varia de acordo com as circunstâncias e a sua prática só pode ser entendida em meios geográficos pequenos, em que todos se conhecem. O mais importante, contudo, é que não é possível criar uma rede de sinónimos do mesmo campo semântico, visto que o vocábulo se estende em várias linhas significativas. Perguntar-se-á se nos casos exemplificados o termo “bilhardice” poderia ser substituído por outras palavras no campo da sinonímia. A resposta é que não, uma vez que, entre os sujeitos falantes, se dá ao termo “bilhardice” um significado de acordo com as circunstâncias, o que é relevante, porque os significados chegam a cair no campo da antonímia. Retenham-se, além dos exemplos já dados, mais dois: “Maria é uma pessoa a quem se pode fazer uma bilhardice!”: aqui, o sinónimo é confidência, claramente antónimo de coscuvilhice, a ideia de que Maria é discreta. “Helena andou a fazer bilhardices sobre Maria”: aqui, o termo “bilhardice” é sinónimo de coscuvilhice, veiculando a ideia de que Helena é indiscreta. Ou ainda outros casos, desta vez ilustrativos dos vários sentidos do nome “bilhardice”: “Não me venhas com bilhardices, que eu já te conheço, gostas é de espalhar confusão!”: aqui, significa intriga e origem de conflito. “Aquelas três estão há mais de duas horas numa bilhardice pegada!”: aqui, o termo adquire o sentido de cavaqueira, conversa, sem qualquer tipo de insinuação ou acusação. Para completar este excurso argumentativo e afastar de vez a hipótese de sinonímia absoluta de “bilhardice” com outros vocábulos da nossa língua, aduzo, em defesa da diferenciação deste vocábulo em relação a termos que se apresentam como sinónimos, outros exemplos: com um adjetivo da mesma família: “António é um bilhardeiro, contei-lhe um segredo e logo espalhou por todo o lado!”: António, aqui, é um indivíduo que não merece confiança. “Maria é um bilhardão! Ouve aqui e conta acolá e, ainda por cima, distorce tudo!”: Maria, além de coscuvilheira, é enredadeira e, subentende-se, mentirosa. Outro exemplo, em que o significado muda radicalmente, com recurso ao verbo “bilhardar”: “Estás a bilhardar, eu não disse nada disso!”: neste caso, a mentira é a base da significação. Como se pode inferir destes exemplos de vocábulos cognatos de “bilhardice”, cada palavra é o centro de uma gramática de interpretação da vivência humana em cada lugar e em cada circunstância, e há que concluir que os madeirenses procuraram novas palavras por necessidade de traduzir aquilo que mais nenhuma comunidade viveu. Por isso, a palavra “bilhardice” pode ser sinónimo de outras palavras, mas essoutras palavras não traduzem exatamente aquilo que os madeirenses viveram. Vejamos, a propósito deste assunto, a teoria de Gottlob Frege, esclarecendo, porém, a priori, a nomenclatura deste autor com a equivalente terminologia saussuriana: o sinal ou nome próprio é equivalente a signo; a referência ou realidade designada é o referente saussuriano; o significado é o mesmo que em Saussure (significado). Como é que a relação no interior do sinal ou nome próprio, em Frege, estabelece a ligação entre a referência (que é realidade designada) e o significado, ou seja, qual é a diferença entre o significado em Saussure e em Gottlob Frege, se ambos usam o mesmo termo? É que em Saussure tudo se passa no interior do signo, que é um universal abstrato, mas em Frege o significado é o modo como o referente, físico ou abstrato, se realiza na mente do sujeito falante: aquilo que cada um pensa ou sente ao ouvir um signo, seja ele qual for, é determinado pela sua experiência subjetiva, como adiante veremos. No caso em estudo, a mesma realidade pode ser designada por um sujeito falante não madeirense por outro termo que não “bilhardice”; já para um sujeito falante madeirense, a imagem da realidade contextual que ele pretende transmitir a outro sujeito madeirense só tem uma representação mental adequada se for designada pela palavra “bilhardice”. Para corroborar esta ideia, recorro-me do exemplo clássico de Frege, que vai mais longe, ao defender que a mesma referência pode, inclusive, ter significados diferentes em função do contexto em que é dita. O planeta Vénus não deixa de ser o mesmo em qualquer altura do dia, mas o ato elocutório ganha semânticas diferentes consoante a hora em que é designado, “estrela da manhã” ou “estrela da tarde”. Ou seja, a representação subjetiva do signo linguístico “estrela” muda de acordo com o contexto e a sua vivência. Por sua vez, enquanto o signo saussuriano é uma imagem universal e objetiva, apreendida coletivamente, ao sinal (o signo de Saussure, recorde-se) Frege associa outra componente: a representação que o sujeito falante associa a esse sinal, e que é inteiramente subjetiva. Entre o signo de Saussure e o sinal de Frege não há diferença quanto à universalidade e à representação de uma imagem apreendida coletivamente. A questão está em que, para Frege, a representação mental associada ao sinal é inteiramente subjetiva. Não é fácil encontrar na língua portuguesa um termo que traduza, com a mesma eficácia e fidelidade, a realidade sociológica madeirense veiculada pelo termo “bilhardice”, até porque ela mesma, como vimos nos exemplos expostos ao longo deste excurso, tem uma pluralidade semântica que difere de acordo com o sintagma em que se insere. Convém ler, para estabelecer um paralelo de situação, o seguinte texto sobre a palavra “saudade”: “Saudade é substantivo abstrato, tão abstrato que só existe na língua portuguesa. Os outros idiomas têm dificuldade em traduzi-la ou atribuir-lhe um significado preciso: ‘Te extraño’ (castelhano), ‘J’ai [du] regret [de] (francês) e ‘Ich vermisse dish’ (alemão). No inglês têm-se várias tentativas: ‘homesickness’ (equivalente a saudade de casa ou do país), ‘longing’ e ‘to miss’ (sentir falta de uma pessoa), e nostalgia (nostalgia do passado, da infância). Mas todas essas expressões estrangeiras não definem o sentimento luso-brasileiro de saudade. São apenas tentativas de determinar esse sentimento que sentem os povos de cultura portuguesa. Assim, essa palavra ‘saudade’ não é apenas um obstáculo ou uma incompatibilidade da linguagem, mas antes, e principalmente, uma característica cultural daqueles que falam a língua portuguesa” (LESSA, “O Mito da Palavra Saudade”). Donde se deduz que “bilhardice” está para o falar madeirense como “saudade” está para a língua portuguesa, no sentido em que nenhuma delas, no seu âmbito, encontra um sinónimo que a possa traduzir absolutamente. Explanada na sua polivalência semântica e, ao mesmo tempo, na sua singularidade, e mesmo reconhecendo que o termo “bilhardice” se integra na categoria de regionalismo, podia acontecer que adquirisse um estatuto idêntico ao de outros termos que também não são considerados como parte da norma padrão, nomeadamente os brasileirismos, como é o caso de “fofoca”, mas nem por isso deixam de ser usados correntemente como se o fossem. Para que a riqueza cultural, psicológica, linguística, sociológica e humana de “bilhardice” se tornasse comum ao mundo da lusofonia, como aconteceu, nos começos do séc. XXI, com alguns brasileirismos, veiculados, nomeadamente, pelas telenovelas produzidas no Brasil, seria necessário que houvesse a mesma intensidade de produção mediático-cultural do lado lusitano, sobretudo no rincão madeirense, que existe do lado brasileiro. Se uma mesma palavra tem um sentido geral e abstrato e, todavia, tem em cada sujeito falante uma representação mental que é subjetiva, o que acontece quando estamos perante um signo diferente, como “bilhardice”, oriundo de uma determinada região, no contexto mais geral da língua portuguesa? Já vimos isso com o signo “árvore” ou outro signo qualquer: o que pensa cada um quando o profere ou quando o ouve está dependente da experiência subjetiva. O signo “bilhardice” obteve, desde há muito, um significado que é geral e abstrato no contexto cultural madeirense, que deriva da vivência de uma comunidade e que se concretiza em cada ato de fala particular, como resultado da memória, da experiência e da vivência do falante, as quais conferem a essa palavra uma representação mental segundo a tese de Frege. É esta referência ao mundo real, à própria vida dos sujeitos falantes, que justifica a diferença que, de facto, existe, entre o termo “bilhardice” e os vocábulos que se apresentam como seus sinónimos na nossa língua. A bilhardice é, portanto, um conceito em cuja amplitude semântica não encontra paralelo em qualquer outro termo da língua portuguesa.   Miguel Luís da Fonseca (atualizado a 12.10.2016)

Cultura e Tradições Populares Sociedade e Comunicação Social

associação académica da universidade da madeira

A Associação Académica da Universidade da Madeira (AAUMa) foi criada a 10 de dezembro de 1991 com o intuito de responder às necessidades dos estudantes, sendo a estrutura representativa e comunitária dos estudantes da Universidade da Madeira (UMa). É uma instituição privada, sem fins lucrativos, que foi reconhecida em 2006 pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior; está inscrita no Registo Nacional do Associativismo Jovem do Instituto Português do Desporto e Juventude e possui, desde 2010, o estatuto de instituição de utilidade pública. Os primeiros órgãos sociais – liderados por Jorge Carvalho como presidente da direção, por Deodato Rodrigues como presidente da mesa da assembleia geral e por António Cunha como presidente do conselho fiscal – foram eleitos por 416 estudantes, tomando posse a 9 de janeiro de 1992. Diversas atividades foram desenvolvidas no sentido de consolidar uma estrutura estudantil única na Madeira, que representasse os estudantes da UMa. O registo legal, a idealização do logotipo, a organização de festividades e de colóquios aquando do Dia Nacional do Estudante, a participação em provas desportivas regionais e nacionais são disso exemplo. Para fazer cumprir algumas das promessas eleitorais, foi necessário “adquirir uma máquina de encadernação, formar uma tuna, adquirir um computador, fomentar a participação dos estudantes no grupo de teatro, realizar um festival de tunas e participar nas competições desportivas interuniversitárias” (Livro de Actas da Direcção…, 16 jan. 1993, s.p.). A 14 de janeiro de 1994 foi eleita, para mais um mandato, a equipa liderada por Jorge Carvalho na direção, com Deodato Rodrigues na mesa da assembleia geral e Ricardo Félix no conselho fiscal, tomando posse a 2 de fevereiro do mesmo ano. O apoio ao estudante e a organização de colóquios, de conferências e de fóruns de discussão sobre assuntos relacionados com o ensino superior e com a UMa e a sua oferta formativa foram as principais preocupações da equipa. O segundo mandato da equipa liderada por Jorge Carvalho terminou com o I Encontro de Estudantes Madeirenses do Ensino Superior, no qual, durante dois dias, se discutiram questões sobre o ensino de qualidade e sobre a formação de profissionais de excelência em Portugal. A 19 de janeiro de 1996 tomavam posse os novos corpos sociais da AAUMa, liderados por Vítor Freitas como presidente da mesa da assembleia geral, por Orlando Oliveira como presidente do conselho fiscal e por Eduardo Marques como presidente da direção, cargo que manteve até 18 de dezembro do mesmo ano, data em que trocou de lugar com a vice-presidente, Natércia Silva. É com esta equipa que se institui, pela primeira vez, a Semana do Caruncho e o Corte das Fitas (até então, designados de Semana Académica e Queima das Fitas), o primeiro Código de Praxe e Comissão de Praxe, a primeira publicação do jornal (Parenthesis), a 14 de maio de 1996, e a aposta no desporto e na contratação de bandas nacionais e regionais para celebrar o adeus aos finalistas e a receção dos novos estudantes da UMa. A 6 de março de 1998 tomavam posse Sara André Serrado, como presidente da direção, Paulo Santos, como presidente da mesa da assembleia geral, e José Costa, como presidente do conselho fiscal. Uma das primeiras preocupações foi a alteração estatutária e a regulação da praxe na UMa, modificando para tal o Código de Praxe em vigor e criando a Comissão de Veteranos. Seria, contudo, na direção seguinte, liderada por Clara Freitas, que as questões da praxe ficariam desvinculadas da AAUMa, por deliberação da Reunião Geral de Alunos. Eleita por dois mandatos – a 19 de janeiro de 2001 e a 20 de fevereiro de 2003 –, Clara Freitas vê o último mandato terminar de forma abrupta. A direção acaba por ser exonerada, pois o pedido de demissão apresentado pela maioria dos membros dos órgãos sociais inviabiliza a continuidade da restante equipa na liderança da AAUMa. No entanto, e enquanto os corpos sociais desta direção estiveram ao serviço dos estudantes, as questões desportivas, as de ação social, as culturais e as recreativas foram as suas principais bandeiras. A 23 de abril de 2004 é eleita a equipa de Marcos Pestana, que encontra uma estrutura associativa com uma situação financeira instável, parca de recursos e com uma credibilidade reduzida, o que acabou por dificultar grande parte do trabalho a que se havia proposto. A aposta no desporto universitário e na tradição académica da UMa foi, contudo, concretizada. A 8 de março de 2006 aquela dá lugar à equipa de Luís Eduardo Nicolau, que viria a ser, pelo menos até 2016, o presidente com maior longevidade à frente dos destinos da AAUMa, com três mandatos (14 de março de 2006, 21 de abril de 2008 e 3 de novembro de 2010) e três equipas diferentes (lideradas por André Dória, Andreia Micaela Nascimento e Rúben Sousa como presidentes da mesa da Reunião Geral de Alunos e por Pedro Olim, Tiago Seixas e Gonçalo Camacho como presidentes do conselho fiscal). A implementação do processo de Bolonha e do regime de prescrições na UMa foi uma das primeiras preocupações desta equipa. Nestes anos são criados vários projetos, muitos dos quais se mantêm vários anos depois. Uma publicação mensal, a emissão de programas de rádio e de televisão, um projeto de solidariedade social, um grupo de fados de Coimbra, um centro de explicações para o ensino básico, secundário e superior, o acolhimento de estágios curriculares e pedagógicos diversos, as lojas Gaudeamus e os projetos de valorização e de preservação do património histórico regional são alguns exemplos. Deve ainda enfatizar-se a participação da AAUMa no primeiro conselho de leitores do Diário de Notícias da Madeira, no Conselho de Cultura da UMa e no Observatório do Emprego e Formação Profissional da UMa. É no último mandato de Luís Eduardo Nicolau que, por decisão dos estudantes presentes na assembleia geral de 4 de março de 2010, se decide laurear, com o título de associado honorário, D. António Carrilho, bispo da Diocese do Funchal, José Manuel Castanheira da Costa, então reitor, Jorge Carvalho, Marco Faria, Idalécio Antunes, Andreia Micaela Nascimento, Carlos Diogo Pereira e a Tuna Universitária da Madeira. Em outubro de 2012, João Francisco Baptista assume a presidência, formando equipa com Vitor Andrade, como presidente da mesa da Reunião Geral de Alunos, e com Nuno Rodrigues, como presidente do conselho fiscal; em outubro de 2014, é reeleito, tendo Ricardo Martins como presidente da mesa da Assembleia Geral de Alunos e Nuno Rodrigues como presidente do conselho fiscal. No decorrer dos seus mandatos, salientam-se a continuidade e o crescimento de alguns projetos já existentes, o início da Imprensa Académica, linha editorial da AAUMa, a criação de projetos de apoio social destinados aos estudantes da UMa (a bolsa de alimentação, a bolsa escolar e a bolsa LER), o apoio ao estudante, o ateliê de férias Doutorecos, a dinamização de projetos de interesse turístico e cultural e o reconhecimento, pela União Europeia, da AAUMa enquanto entidade de acolhimento e de envio de voluntários pelo Serviço Voluntário Europeu. A cultura, o desporto, o apoio ao estudante (presencial, telefónico e remoto), a tradição, a ciência, a investigação, a empregabilidade, a formação e a cidadania ativa e responsável voltam a ser as prioridades de uma estrutura que cresceu e que representa a UMa e todos os estudantes que nela são formados.     Andreia Micaela Nascimento (atualizado a 14.12.2016)

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A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha ficaria dependente da Diocese do Funchal, que para ali nomeava capelão e ouvidor, sendo depois sucessivamente ocupada por Holandeses, Ingleses, prussianos e Franceses, até ser por fim abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios das antigas fortificações, com uma pequena povoação de pescadores-recoletores, sendo objeto de diversas lendas e narrativas. Palavras-chave: comércio; Descobrimentos; escravatura; feitorias fortificadas; tradição oral. Arguim é uma ilha na baía do mesmo nome, situada na extremidade norte da República Islâmica da Mauritânia, na costa ocidental de África. Com apenas 12 km² de área, a ilha é alongada, medindo cerca de 6 km de comprimento por 2 km de largura. Está situada a 12 km da costa, dela separada por canais arenosos repletos de recifes e de bancos de areia que se movem com as correntes. A ilha faz parte do Parque Nacional do Banco de Arguim, uma vasta zona protegida, classificada pela UNESCO como património mundial graças à sua importância como local de invernada de aves aquáticas. Vista aérea do Banco de Arguim. Arquivo Rui Carita. A ilha de Arguim foi a primeira feitoria portuguesa da costa ocidental de África (África Marrocos). Na sequência da passagem do cabo Bojador, em 1434, as embarcações portuguesas ao serviço do infante D. Henrique (1394-1460) prosseguiram para o Sul, passando ao largo da costa saariana e atingindo a costa da Mauritânia. Estas navegações, que de início se revelaram lucrativas, em virtude de atos de corso e de razias, chegaram ao golfo de Arguim na déc. de 1440; e.g., a caravela de Nuno Tristão (c. 1410-1446) tê-lo-á alcançado em 1441, embora outros navegadores ali tenham passado por esses anos, como Gonçalo de Sintra (c. 1400-1444) e Diniz Dias (há divergências entre os vários cronistas quanto à sua ordem de chegada). Em 1443, voltava àquela área Nuno Tristão, então já acompanhado de um mouro, dado como Sanhaja Berber, que servia de intérprete; aí, adquiriu 28 escravos, que levou para Lagos, no Algarve. É desse ano o pedido oficial de carta de corso do infante D. Henrique ao seu irmão D. Duarte (1391-1438), passando aquele a usufruir de 1/5 das capturas efetuadas – que, em princípio, pertenciam ao Rei –, pedido também posteriormente feito pelo infante D. Pedro (1392-1449). Banco de Arguim. Em 1444, a expedição de Lançarote de Lagos a Arguim, na qual participaram forças da Madeira e, provavelmente, o sobrinho de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), Álvaro Fernandes, conseguiria recolher 240 escravos. As relações da Madeira com estas navegações vão manter-se nos anos seguintes, tendo Álvaro Fernandes e Lançarote de Lagos, em 1446, a explorado a embocadura do rio Senegal e a área de Cabo Verde. Este navegador, que já comandara uma caravela de Zarco em 1444, dirigiu a expedição que em 1447 ultrapassou Cabo Verde e que se supõe ter atingido a ilha de Goreia. As relações da ilha da Madeira com este tipo de comércio e com esta área – Arguim, depois Cabo Verde, Guiné, Angola, etc. – vão manter-se nos anos seguintes. Na Furna de Arguim, como era por vezes chamada esta baía de recifes, ficava a ilha dos Coiros, principal centro de comércio de peles de toda a costa e, para o Sul, localizavam-se as ilhas das Garças, de Naar e de Tider. Serviram as mesmas, com mar bonançoso, para abrigo e repouso das naus. Por ali passaram madeirenses, como os da caravela enviada por Zarco até ao cabo dos Matos, com seu sobrinho Álvaro Fernandes, depois o genro do capitão do Funchal, Garcia Homem de Sousa, e Diogo Afonso, Denis Eanes da Grã, João do Porto e outros. Deve datar de cerca de 1445 a substituição da pirataria, com uma função simultaneamente económica e bélica, pelo comércio pacífico – ou, pelo menos, mais pacífico, dado não ser nessa altura possível fazê-lo sem armas na mão. Em 1444, já se procurava estabelecer o tráfico com os nómadas cameleiros do rio do Ouro, tendo cabido a João Fernandes, um colaborador próximo do infante D. Henrique, beneficiando das informações de Ahude Meimão sobre a localização das principais povoações e o interesse comercial da região, concretizar esses planos. Em 1445, aquele navegador foi responsável pela realização das primeiras operações comerciais com as populações muçulmanas daquela região, promovendo a aquisição de ouro, de goma-arábica e de escravos, em troca de tecidos e de trigo. Em 1447, iniciaram-se as relações com o Suz, em Marrocos – grande mercado de escravos, de ouro e de açúcar –, tentando o infante D. Pedro, ainda nesse ano, estabelecer a paz e manter relações comerciais com o Bori-Mali e com os jalofos, na área da Guiné. Poucos anos depois, por volta de 1454-1455, o italiano Luís de Cadamosto (1432-1488) (Cadamosto, Luís de) explica, nas suas memórias, a propósito do contrato da feitoria de Arguim, que, quando esteve ao serviço do infante D. Henrique, as caravelas costumavam ir armadas de Portugal ao golfo de Arguim, umas vezes quatro, outras mais, “e de noite desembarcavam” e saíam sobre as aldeias costeiras de pescadores, “e faziam correria pela terra”, de modo que prendiam esses “árabes, tanto machos como fêmeas e os traziam a vender em Portugal” (GODINHO, 1956, III, 125-126). Pontão. Antigo embarcadouro. A ilha de Arguim veio a configurar-se como um local privilegiado para o estabelecimento de um posto comercial fixo, dado situar-se numa região esparsamente povoada, mas próxima dos circuitos comerciais percorridos pelas caravanas mercantis que atravessavam o Saara, as quais frequentemente se aproximavam da costa, devido à abundância de sal na região. Sendo um território dotado de um bom porto e de água potável, era facilmente defensável pela vantagem que a sua situação insular oferecia face à previsível hostilidade das populações autóctones, sendo por isso escolhido para centralizar o comércio da costa africana. Entre 1454 e 1455, já se tinha efetuado um contrato por 10 anos, explicando Cadamosto que ninguém podia entrar no golfo para traficar com os locais, “salvo aqueles que entrassem no contrato” celebrado com a Coroa para esse comércio, no qual se incluía a “feitoria na dita ilha, e feitores, que compram e vendem àqueles árabes, que vêm à marinha, dando-lhes diversas mercadorias, como são panos tecidos, prata e alquicéis, que são uma espécie de túnicas, tapetes e sobretudo trigo, do qual estão sempre famintos, e recebem em troca negros, que os ditos alarves trazem da Negraria, e ouro Tiber” (Id., Ibid.). Acrescenta o navegador italiano que o infante fazia então levantar “uma fortaleza na dita ilha, para conservar este comércio para sempre; e por esta razão todos os anos vão e vêm caravelas de Portugal à ilha de Arguim” (Id., Ibid.). O castelo só seria terminado após o falecimento do infante, em 1461, sendo a capitania entregue a Soeiro Mendes de Évora, o vedor da construção, que viria a ter carta de 26 de julho de 1464, de D. Afonso V (1432-1481), a conferir-lhe, a si e aos seus descendentes, a capitania-mor da ilha. Saliente-se, no entanto, que o estatuto comercial de Arguim conheceu variantes. Assim, por volta de 1455, aquando da visita de Cadamosto, a feitoria era administrada por uma sociedade privada, que tinha obtido do infante D. Henrique esse monopólio por um período de 10 anos, provavelmente entre 1450 e 1460. Mais tarde, segundo o cronista João de Barros (1469-1570), Fernão Gomes da Mina (c. 1425-c. 1485), após ter assumido o mercado de exploração do comércio da Guiné, que dominou entre 1468 e 1474, conseguiu também obter o de Arguim, ao preço de uma renda anual de 100$000 réis. A área em torno de Arguim era habitada por berberes e negros islamizados, chamados “mouros” pelos Portugueses, sendo uma importante zona de pesca. Da parte portuguesa, esperava-se intercetar o tráfego do ouro que as caravanas transportavam de Tombuctu para o Norte de África; contudo, foi o comércio de escravos que mais prosperou, recebendo Portugal de Arguim, aproximadamente a partir de 1455, cerca de 800 escravos por ano, na sua maioria jovens negros, feitos prisioneiros durante razias conduzidas no interior do continente pelos líderes tribais da região costeira vizinha. No decurso do mandato de Fernão Soares como capitão e feitor, entre maio de 1499 e dezembro de 1501, obtiveram-se 668 escravos e 12.558 dobras e meia de ouro – moeda que, em 1472, valia 327 reais brancos, na razão 1$896 reais brancos por marco (cerca de 235 g de prata) –, sendo parte deste convertida em escravos, totalizando 840 indivíduos. O feitor seguinte, Gonçalo Fonseca, conseguiria somente 406 escravos em dois anos e meio, mas o que se lhe seguiu, Francisco de Almada, entre 1508 e 1511, ultrapassaria a cifra de 1500 escravos. Em segundo plano estava o importante comércio da goma-arábica, produto que a região produzia em quantidade significativa e com qualidade superior, que se adquiria em Arguim a preços muito atrativos. O território conquistado em Arguim passou então a assumir-se como um centro de comércio, estabelecendo ligações comerciais com os portos de Meça, Mogador e Safim (Safim), em Marrocos. Destes lugares provinham os tecidos, o trigo e outros produtos que, na feitoria de Arguim, eram trocados por ouro e escravos; as mercadorias eram transportadas pela rota que ia de Tombuctu até Hoden. A criação desta feitoria representou um ponto de viragem na expansão portuguesa, assinalando o início da política de construção de feitorias fortificadas, dotadas de uma guarnição militar capaz de as defender contra os ataques dos povos autóctones. Em 1487, foi fundada uma feitoria no interior do continente africano, na localidade de Ouadane (ou Wadan), e, na mesma área, foram feitas outras tentativas de fixação de feitorias, e.g., na região de Cofia e junto à foz do rio Senegal, todas goradas face à hostilidade das populações locais e à dureza do clima. Nos anos de 1505 a 1508, a guarnição do castelo de Arguim era composta de 41 indivíduos, 18 dos quais eram soldados e 5 marinheiros. O comércio da feitoria estava sob o controlo da Coroa, sendo os capitães nomeados pelo Rei, habitualmente para comissões de três anos. Tinham direito a arrecadar 25 % dos lucros do comércio realizado na feitoria, sendo assistidos por um feitor, que arrecadava 12,5 % daqueles, e por um escrivão assalariado, que recebia 20.000 réis na fase inicial dos trabalhos. Em finais de 1555, ou em princípios de 1556, a feitoria de Arguim foi atacada pelo pirata português Brás Lourenço e, em 1569, a guarnição tinha-se reduzido a 30 pessoas. A manutenção da guarnição de Arguim não era fácil, tendo de recorrer-se às vizinhas ilhas Canárias ou à Madeira, como aconteceu em 1513, quando era capitão de Arguim Fernão Pinto (que deve ter sucedido a Francisco de Almada, capitão entre 1508 e 1511, embora o seu nome não conste das listagens geralmente divulgadas, que referem apenas o Cap. Pero Vaz de Almada, em 1514-1515). O mestre do navio enviado às Canárias pelo capitão de Arguim acabou por aportar a Machico, tendo requerido ao almoxarife Antão Álvares a compra de diversos mantimentos – 30 moios de trigo, 20 quintais de biscoito e uma parte de remel (possivelmente o açúcar local) –, deixando como pagamento a João de Freitas (c. 1470-1533), executor das dívidas à Fazenda, seis escravos, marco e meio de ouro, e meia onça de ouro em pó e em pedaços, e tendo sido lavrada quitação com data de 3 de maio de 1513. Três dias depois, o mestre do navio São Miguel Fadigas entregava mais 78 dobras de ouro, em pó e em pedaços, para pagamento de novos mantimentos. Não se conhece qualquer descrição do castelo henriquino de Arguim, nem da sua reformulação na época de D. Afonso V, embora a carta de alcaidaria-mor refira ter havido então obras, nem também das remodelações da déc. de 80 do séc. XV, se bem que se saiba que, ao passar, em 1481, a monopólio régio, sob D. João II (1455-1495), o castelo foi aumentado. Arguim foi perdendo a sua importância ao longo dos anos seguintes, à medida que os interesses comerciais portugueses se transferiam para regiões localizadas a sul (e, depois, para a Índia). Desconhece-se a data em que Arguim passou a estar na dependência da Diocese do Funchal, mas julga-se ter isso ocorrido com o abandono de Safim, em 1541, de cuja Diocese deveria depender, embora não houvesse uma clara definição dos seus limites. A referência a Arguim como pertencente à Diocese do Funchal parece datar da bula do Papa Júlio III, de 1550, que separou da antiga Arquidiocese (Diocese e arquidiocese do Funchal) os territórios das novas dioceses dos Açores, de Cabo Verde, etc., que passaram à jurisdição eclesiástica de Lisboa. A referência à integração da ilha de Arguim na jurisdição do Funchal dá-se com o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), que recebeu a doação de Arguim, do seu castelo e do produto das pescas na costa de Atouguia e que, em 1601, nas Extravagantes que adicionou às anteriores Constituições Sinodais, refere que “dispondo os casos da sua jurisdição nela colocava Ouvidor Eclesiástico” (LEMOS, 1601, título 16, const. 2). Aliás, antes de ser meio-cónego da Sé, o cronista Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) foi vigário de Arguim, em 1567, na ausência do P.e António Fernandes, sinal de que a freguesia já existia e dependia do Funchal (embora pouco tempo ali estivesse, passando rapidamente a Lisboa e aí conseguindo a indigitação para uma futura eleição como meio-cónego da Sé do Funchal).   Voyages en Afrique- Asie-Indes orientales et occidentales-Jean Mocquet-1617 Arguim seria visitada por Jean Mocquet (1575-1617) (Mocquet, Jean), aventureiro francês, em 1601, na sua primeira viagem de recolha de objetos exóticos e curiosos, que lhe permitiu ocupar o boticário régio de Henrique IV (1553-1610) e organizar um gabinete de curiosidades (Colecionismo) nas Tulherias para o seu sucessor, Luís XIII (1601-1643). Jean Mocquet conta nas suas memórias que, na sua primeira viagem, em que visitou o Funchal, seguiu “o desejo que tinha há muito tempo de viajar pelo mundo: quis começar pela África”. Partira de Saint Malo a 9 de outubro de 1601, em La Syréne, que se destinava à Líbia (nome pelo qual se designava a costa marroquina à época e, assim parece, também as ilhas atlânticas e da Mauritânia), e que era um “navio carregado de sal e bem equipado de víveres e munições para a guerra” (MOCQUET, 1830, 27). A embarcação passou por diversas peripécias, chegando a ter de combater com vários corsários; passado o cabo de São Vicente, dirigiu-se ao Norte de África, e depois de dobrar o cabo Branco visitou a velha feitoria de Arguim. Conforme se usava à época (como referido), Jean Mocquet refere-se à região como “Líbia”, contando que “de toda a Líbia vão buscar água ao porto de Arguim”, que se situa sobre uma pequena ponta relevada, a seis léguas de cabo Branco. A fortaleza tinha então alguns soldados portugueses e um capitão. Mocquet menciona que os Portugueses eram amigos dos chefes da região, que não eram todos negros, havendo chefes brancos, mas que eram todos muçulmanos. Faziam comércio de plumas de avestruz e de peixe, “que aqui usam como moeda de troca” (Id., Ibid., 34). Mocquet já não refere o rendoso comércio de escravos e de ouro.     Arguim estava a entrar em franca decadência; embora periodicamente visitada pelos pescadores da Madeira e sob a jurisdição do bispo do Funchal, a sua situação militar era muito precária e a guarnição insustentável. A fortaleza de Arguim teve, em 1612, um projeto de reconstrução, a cargo do arquiteto-mor Leonardo Turriano (1559-1628), e elaborado com base nos dados que este recolhera quando estivera em idêntica função nas Canárias, entre 1588 e 1590, sendo muito provável que se tenha deslocado a Arguim. O projeto, no entanto, não passou do papel: não há registo de qualquer despesa ou movimentação de pessoal nesses anos.     A pequena fortaleza de Arguim acabaria por ser conquistada, em 1638, por forças holandesas e, alguns anos mais tarde, por forças inglesas, sendo posteriormente recuperada pelos Holandeses, até que, em setembro de 1678, foi arrasada por forças francesas, embora depois tenha sido pontualmente reconstruída pelos Franceses. Devem datar de meados do séc. XVII (de cerca de 1665) os dois desenhos flamengos de Johannes Vingboons (1616/1617-1670) que sobreviveram e que parecem representar já a remodelação de Arguim pelos Holandeses. Em 1685, estava quase abandonada, sendo então ocupada por tropas brandeburguesas, transformando-se Arguim na primeira colónia do principado de Brandeburgo. Em 1701, com a incorporação do principado no reino da Prússia, Arguim transitou para o controlo prussiano. Em 1721, perante o desinteresse da Prússia pelas suas colónias africanas, o território voltou à posse da França, momento a partir do qual se fazem muitas representações cartográficas e, inclusivamente, um levantamento planimétrico de Arguim, com Perrier de Salvert, a 8 de março de 1721.   Mapa de Arguim de Gerard van Keulen-1720   A praça seria novamente perdida para os Holandeses no ano subsequente, voltando todavia à posse dos Franceses em 1724, que ali permaneceram até 1728, ano em que abandonaram a ilha ao controlo dos líderes tribais mauritanos. Fez-se explodir a fortificação por ocasião da retirada, pouco devendo ter restado dela. A ilha regressou ao controlo francês nos princípios do séc. XX, quando foi incorporada no então protetorado da Mauritânia; em 1960, com a independência da Mauritânia, Arguim passou a fazer parte do território do novo Estado.       Teatro. A Ilha de Arguim, de Francisco Pestana Durante a sua conturbada história, a ilha foi sempre um dos centros do comércio de goma-arábica e, durante muitos anos, um importante local de caça de tartarugas marinhas e de outras atividades mais ou menos artesanais, em que estavam inclusivamente envolvidos pescadores madeirenses – isso justifica a existência de várias pequenas embarcações, quer no Funchal, quer em Câmara de Lobos, com o nome de Arguim. Embora alguns dos seus proprietários não saibam onde fica, e se tenham limitado a repetir os nomes que já os pais e avós tinham utilizado para as embarcações, subsistem lendas e narrativas populares sobre a ilha – que aparecia e desaparecia, que era o local para onde teria ido viver D. Sebastião, etc. –, que foram inclusivamente objeto de peças de teatro. Na época moderna, a dificuldade de navegação dos navios de algum calado nesta área, em razão dos bancos de areia e dos afloramentos rochosos, é patente no desastre ocorrido em julho de 1816 com a fragata francesa La Méduse, que transportava pessoal para a colónia do Senegal e que encalhou na região, sendo abandonada com grande perda de vidas. O acontecimento ficou imortalizado na obra Le Radeau de la Méduse (A Jangada da Medusa), do pintor francês Théodore Géricault (1781-1824), de 1818-1819. Arguim encontra-se ainda na base da fundação do Convento franciscano da cidade da Baía, no Brasil, como resultado da influência da lenda de S.to António de Arguim: nos inícios do séc. XVII, terá aparecido na costa brasileira, roubada por corsários franceses, uma imagem de S.to António, proveniente da antiga praça africana, pelo que o santo foi eleito padroeiro da cidade (padroado que perderia por proposta dos padres jesuítas, em 1686, passando para S. Francisco Xavier). Em suma: foi em Arguim que se localizou a primeira feitoria portuguesa fortificada, a partir da qual os Portugueses trocavam tecidos, cavalos e trigo, produtos essenciais para as populações locais, por goma-arábica, ouro e escravos, que levavam para a Europa. A ilha foi sucessivamente ocupada por Portugueses, Holandeses, Ingleses, Prussianos e Franceses, até ser abandonada, dada a crescente aridez e as dificuldades de acesso de navios de grande calado, resultantes dos perigosos bancos de areia e dos extensos recifes que a rodeiam. Nos começos do séc. XXI, a ilha encontra-se quase deserta, sem quaisquer vestígios da antiga fortificação, tendo uma pequena povoação, na sua costa oriental, habitada por cerca de uma centena de pescadores-recoletores da etnia imraguen, sendo, para os madeirenses, provavelmente até aos inícios ou meados do séc. XX, um destino de pesca, e permanecendo no seu imaginário como uma antiga lenda. Pesacadores. Arguim. 2006   Rui Carita (atualizado a 03.01.2017) Imagens: Arquivo Rui Carita

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arte na educação

Em matéria de arte na educação, a RAM aproveitou a descontinuidade territorial, que a separa do continente português e a privou de usufruir de muitas valências, invertendo a seu favor o sabor da insularidade. Usufruiu do mar e do que, em matéria social, este podia oferecer, proporcionando uma estreita relação com outros povos que ali paravam. Falamos, e.g., de uma forte relação com a comunidade inglesa, que por lá se estabeleceu no séc. XIX e com individualidades de outras nacionalidades, como a alemã, a espanhola e a russa, que ao longo dos séculos se distinguiram na relação com os autóctones. Pelos registos apurados, podemos afirmar que, desde o início do séc. XIX, as artes fizeram regularmente parte da educação. Existem referências à aprendizagem da música, à prática do canto, às danças de salão, às récitas teatrais e às artes e ofícios, a par de outras atividades de cariz artístico, como os lavores e a aprendizagem das línguas. Fazendo um périplo pelos periódicos entre 1821 e 2015, é possível observar-se o lugar que as artes ocuparam em instituições de ensino regular, bem como confirmar a existência de aulas artísticas de cariz doméstico e até em instituições mais regulamentadas. Na Madeira, as escolas com opção de disciplinas de âmbito artístico fizeram parte da educação ao longo do séc. XIX. Quando, em 1835, se assistiu à implementação do ensino primário obrigatório, uma das consequências foi a criação de múltiplas escolas e colégios. Na Madeira, a rede pública de escolas deveria ser notoriamente insuficiente, visto que encontramos, ao longo de Oitocentos, diversas escolas em espaços domésticos ou sem designação oficial onde era possível as famílias optarem por uma ou mais atividades artísticas, como o ensino do canto, da guitarra, do piano ou da dança, a par do desenho. Além destas atividades, as escolas e os pequenos colégios permitiam igualmente a opção pelo ensino das línguas, nomeadamente a francesa e a italiana, justificando-se esta última, sobretudo, quando do bel canto se tratava. Estas disciplinas (artísticas e línguas) tinham normalmente um custo acrescido. Apesar do ensino feminino já existir no reinado de D. Maria I, foi com a reforma do ensino primário, em 1836, que foram implementadas as “escolas de meninas”. Na Madeira, também encontramos referências ao ensino feminino na imprensa, registando-se que as escolas ou colégios para meninas eram dirigidas por senhoras, como atesta o seguinte anúncio: “Colégio para educação de meninas, direção de Felisberta Augusta Teixeira” (com opção de lições de piano, dança e desenho com pagamento extra) (A Flor do Oceano, 12 set. 1839, 4). Neste contexto, é interessante constatar a presença contínua do ensino da dança, a par de disciplinas ligadas às línguas, à música e ao desenho. As aulas de artes não aconteciam apenas em escolas ou colégios de ensino primário. Ao longo de todo o séc. XIX, há registos de aulas particulares, organizadas nas casas dos professores ou mesmo dos alunos. Entre outros, recolhemos anúncios na imprensa local de aulas de dança ministradas por Eduardo Soares e Paulo Valentino d’Ornelas Costa; lições de música, rabeca, piano, violoncelo e violino dadas por Nuno Graceliano Lino; e de piano e canto pelo P.e João Aleixo de Freitas. Até ao último quartel do séc. XIX, os docentes eram essencialmente masculinos, começando as mulheres, nessa altura, a predominar no ensino das artes. Importante, já então, era a presença de professores de naturalidades diferentes da portuguesa, proprietários, e.g., da Eschola Collegial Inglesa, que tinha lições de música e do Collegio de Jane H. Manly Tello. Estes factos revelam bem, ao nível da educação, a influência da comunidade inglesa na Madeira oitocentista. Além do ensino artístico em contexto doméstico, também era possível desenvolver-se uma prática artística em contexto institucional, principalmente nas sociedades e clubes que proliferaram no séc. XIX, depois da revolução liberal. Neste âmbito, salienta-se o coro da Sociedade Philarmonica; a Academia Marcos Portugal, que proporcionava lições de solfejo para violino, violeta, violoncelo, rabecão grande e instrumentos de metal e palheta; e a Sociedade Recreio Musical, com aulas de dança dadas por Eduardo Soares, que acumulava com aulas que lecionava no Theatro D. Maria Pia. Como se depreende do anteriormente enunciado, a maior parte das instituições e aulas artísticas desenvolvia-se fora do domínio público, embora houvesse algumas exceções. O Liceu, e.g., apresenta-se como uma escola oficial genérica que incluía atividades de educação artística. Outro caso de atividades artísticas promovidas por uma instituição pública é o da escola municipal de D. Francisco Vila y Dalmau, onde era possível estudar canto e dança. Por fim, uma categoria que não deve ser esquecida: as aulas proporcionadas por professores e companhias que passavam pelo Funchal, como, e.g., as aulas de dança do Circo Equestre, em 1865. Era comum que os artistas que passavam pela Madeira para realizar concertos e espetáculos se disponibilizassem também para dar aulas particulares a quem estivesse interessado, situação que se manteve na primeira metade do séc. XX, como mostram os seguintes casos divulgados pela imprensa periódica: maestro Ricardo Nicosia Cortesi (piano); professor Cleto Zavala (lições de piano); cavalheiro inglês, muito competente para ensinar violino; professor D. Domingo Bosch (lições de piano). Na transição do séc. XIX para o XX, qualquer novo estabelecimento de ensino vocacionado para mulheres que fosse criado no Funchal teria mesmo de incluir, quase obrigatoriamente, a disciplina de piano, embora de forma opcional, pois era lecionada em regime de aulas individuais. No colégio para meninas de D. Christina Adelaide Gomes, e.g., o currículo era constituído pelas disciplinas de inglês, francês, português, piano, machete, canto, viola e dança, em 1895. Em 1909, o colégio para raparigas João de Deus informava que as suas alunas podiam ter “aulas especiais de canto, piano e dança” com a professora Cora Cunha, discípula de Maria Capitolina Crawford do Nascimento Figueira (Almanach de Lembranças Madeirense, 1909, 288-289). Poucos anos mais tarde, por volta de 1912, foi criada, no convento de S.ta Clara, a Escola de Utilidades e Belas Artes, que se destinava a raparigas e que incluía no seu currículo também as áreas de música e de dança, assim como o ensino de piano em aulas individuais, de forma opcional.   Mª Adelaide Meneses e alunas. Photographia Vicentes. Fonte: Arquivo Sílvio Fernandes   Este aumento do papel da mulher na educação artística contribuiu, provavelmente, para a sua emancipação profissional através da música. Enquanto noutras áreas era considerado pouco apropriado que a mulher de classe média assumisse uma profissão, no caso da música, a mulher começou regularmente a aparecer como professora, sobretudo nas áreas do canto, do piano e da dança. No período entre 1812 e 1880 surgem poucas mulheres a lecionar, mas a partir de 1870 inverte-se esta tendência, aparecendo frequentemente mulheres a lecionar música como atividade profissional remunerada, desaparecendo, e.g., quase por completo, os professores de piano masculinos. No séc. XX, a par das reformas a no ensino oficial das artes, continuaram a ser criadas diversas escolas particulares de cariz doméstico que ofereciam no seu currículo a opção de atividades artísticas. Temos, assim, o Collegio de Santa Clara (piano e canto); o Collegio Maria José Ferreira (classe de dança, francês, inglês e música); o Colégio do Lisbonense (classes de instrução primária, português, francês, inglês, piano, dança e lavores); e o Colégio Madeira (classes de dança por Eugénia Rêgo). É igualmente relevante encontrarem-se anúncios com a redação que se segue, sem nomear as professoras: “Uma senhora devidamente habilitada dá lições de piano e francês em sua casa ou na das alunas, por preços moderados” (DNM, 9 out. 1911, 1); “Senhora competentemente habilitada dá lições de piano e bandolim” (DNM, 26 mar. 1915, 1); ou ainda, o pormenor, “Classe de dança – Para principiantes e praticantes” (DNM, 6 out. 1911, 2); “Chamamos a atenção para o anúncio que hoje publicamos sob a epígrafe, ‘Classes de piano’, recomendando a professora, que tem toda a competência requerida” (DNM, 19 ago. 1917, 1). No ensino específico e particular, nomeadamente em contexto doméstico, encontramos referências a lições de música dadas por Eduardo Antonino Pestana; Isabel Pamplona Spínola; Nuno Graceliano Lino; Artur Maria Lopes; Alfredo A. Graça, com o pormenor de se referenciar o método (piano e rabeca pelo curso do Real Conservatório de Lisboa, e bandolim pelo método de Christofaro y Gautiero); Angelique de Beer Lomelino; Gabriella Campos (lições de piano e solfejo pelo método do Conservatório de Lisboa); Maria Eugénia de Afonseca Acciaiolly Rêgo Pereira (ensinava coreografia erudita e folclórica a membros das classes alta e média madeirense num salão de dança); M. Graça Rego (ex-aluna dos professores Cleto Zavala, em piano e Beer Lomelino, em canto, dava lições de piano e canto); Maria Izabel Ferraz (aulas de dança). Denota-se uma preocupação com a metodologia aplicada e os fins a que se destinava. Leia-se “Lições de música. Curso geral completo pelos métodos mais modernos adotados no Conservatório de Lisboa” (DNM, 16 maio 1917, 1); “Professor Vasco de Oliveira (curso de violino seguindo todo o programa do conservatório (escola de Leonard)” (DNM, 4 abr. 1919, 1). Mantêm-se as escolas dirigidas por estrangeiros com atividades artísticas e as sociedades e clubes com atividades de educação artística: o artigo “Academia Dançante” referencia já o Atheneu Commercial com a professora Mathilde Xavier Ferraz, que dá lições de dança; o Grupo Recreativo da Mocidade Portuguesa proporciona aulas de música e classes de dança acompanhadas pelo pianista Leandro S. C. de Freitas. No contexto das escolas oficiais de ensino genérico, existem igualmente diversas menções ao ensino de disciplinas artísticas: no Instituto de Ensino Secundário e Comercial, referem-se aulas de música, em que os métodos adotados são os mesmos do Conservatório de Lisboa e um curso de canto regido por uma distinta professora, que dava lições individuais e em classe; no Liceu Jaime Moniz, o professor de canto coral era Júlio Câmara, contanto a tuna académica e o orfeão com a direção de Gustavo Coelho; na Escola de Utilidades e Belas Artes (estabelecimento de ensino feminino), era possível aprender dança, piano e canto. Em 1943 ocorreu um dos principais acontecimentos no campo da educação artística na Madeira, uma iniciativa que, em 2015, continua a dar frutos. Nesse ano, Luiz Peter Clode e seu irmão William Clode fundaram a Sociedade de Concertos da Madeira, que reunia um escola de intelectuais e artistas portugueses e estrangeiros, naturais ou residentes na Ilha, com a finalidade de contribuir para o crescimento de artistas e público especializado. No seguimento da criação dessa instituição, a prática das expressões artísticas cresceu substancialmente e, a partir de 1946, altura em que foi fundada, no âmbito da mesma, a Academia de Música da Madeira, que mais tarde conseguiu o paralelismo pedagógico com o Conservatório de Música de Lisboa, contribuiu para a creditação de professores e alunos madeirenses. Este estabelecimento foi sucessivamente restruturado após o 25 de Abril, vindo a integrar o ensino profissional das artes na viragem do século, alterando a sua designação, em 2000, para Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira e, em 2006, para Conservatório – Escola Profissional das Artes da Madeira Eng. Luiz Peter Clode, em homenagem ao seu mentor. Os cenários dos sécs. XX e XXI são completamente distintos e acompanham o natural desenvolvimento do ensino artístico na Região, tendo contribuído fortemente para o efeito o trabalho realizado, ao longo de 35 anos (1980-2015), pela Direção de Serviços do Ensino Artístico e Multimédia (antigo Gabinete Coordenador de Educação Artística). A par do trabalho de campo desenvolvido em toda a Região, motivou o surgimento de associações, filarmónicas e grupos de iniciativa privada que, em conjunto, contribuíram para os resultados atingidos: o ensino artístico integra, em 2015, a quase totalidade da rede do pré-escolar como atividade obrigatória e o ensino técnico profissional e especializado abrange já todas as áreas da expressão artística: a dança, a música, o teatro e variantes.   Paulo Esteireiro Teresa Norton Dias (atualizado a 26.09.2016)

Artes e Design Educação História da Educação

associações católicas

O direito de associação é um direito próprio do ser humano, reconhecido desde sempre. O facto de o homem se poder associar com outros para alcançar determinados objetivos ou finalidades em vista da sua realização pessoal e comunitária é algo inalienável, que não pode ser eliminado por nenhuma entidade humana. Tanto os filósofos como os teólogos e os juristas têm defendido esse direito da pessoa humana. O magistério pontifício sempre reivindicou para o cidadão o direito de fundar e pertencer a associações no campo civil, social, profissional e religioso. Assim o fizeram Leão XIII (na Rerum Novarum, de 15/05/1891), Pio XI, Pio XII, João XXIII, Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI, e Francisco. Na Exortação Apostólica Christifideles Laici, o Papa João Paulo II refere-se “às formas agregativas de participação”, falando de “uma nova era agregativa” dos fiéis leigos: “ao lado do associativismo tradicional e, por vezes, nas suas próprias raízes, brotaram movimentos e sodalícios novos, com fisionomia e finalidade específicas: tão grande é a riqueza e versatilidade de recursos que o Espírito infunde no tecido eclesial e tamanha é a capacidade de iniciativa e a generosidade do nosso laicado” (n.º 29). Muitas outras intervenções deste Papa (em particular no congresso mundial dos movimentos eclesiais, em 1998) demonstram o seu interesse pela promoção da vocação laical e das associações de fiéis. O Papa Francisco, ao receber os participantes de um congresso, afirmou: “Caros irmãos e irmãs, vós trouxestes já muitos frutos à Igreja e ao mundo inteiro, mas trareis outros ainda maiores com a ajuda do Espírito Santo, que sempre suscita e renova dons e carismas, e com a intercessão de Maria, que não cessa de socorrer e acompanhar os seus filhos. Ide para a frente: sempre em movimento. […] Não pareis! Sempre em movimento!” (FRANCISCO, 2014). A formulação jurídica do direito de associação como fundamental não existe no Catecismo da Igreja Católica (CIC) de 1917. Só a encontramos no Código de Direito Canónico (CDC) de 1983, por influência da doutrina e do Concílio Vaticano II, com o contributo anterior de numerosos estudiosos canonistas e teólogos. A limitação do primeiro Código não é tanto a falta de reconhecimento do direito de associação, mas sobretudo a sua não explícita afirmação e o não encorajamento do fenómeno associativo. A nível eclesial, sempre houve movimentos e associações, como comprova a vida e a evangelização da Igreja. Na Constituição da República Portuguesa encontramos vários artigos que caracterizam o fenómeno associativo como um direito fundamental do cidadão português: 46.º, 51.º, 247.º, 253.º, 270.º. O n.º 1 do artigo 46.º é explícito na proteção e defesa do direito de associação: “Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respetivos fins não sejam contrários à lei penal”. Depois dos cânones sobre as associações de fiéis em geral (cc. 684-699), o título ´XIX do CDC de 1917 regulamenta as associações de fiéis em particular (cc. 700-725) com estes tipos: Ordens Terceiras Seculares (cc. 702-706), que são associações approbatae; Confrarias (cc. 707-719), que podem ser constituídas só por formal ereção de decreto (can. 708); Pias Uniões, para as quais é suficiente a aprovação e que também podem ser eretas (can. 708); e ainda Arquiconfrarias e Uniões Primárias. (cc. 720-725). Quanto à aprovação, o CDC de 1917 prevê dois tipos de associações: as associações eclesiásticas, eretas e dirigidas pela autoridade eclesiástica e que adquirem personalidade jurídica; e as associações laicais, dirigidas por leigos, as quais podem ser probatae ou laudatae pela autoridade eclesiástica. Estas não têm o seu ser da autoridade eclesiástica, não são governadas por ela, e portanto não podem chamar-se erectae com personalidade jurídica. Nem sequer têm os seus estatutos e a sua organização interna aprovados por tal autoridade. São dirigidas por leigos, segundo os estatutos; são laicais, não eclesiásticas. Assim, ser associação “laical” não significava que os seus membros fossem só leigos, mas sim que a mesma não tinha sido ereta pela autoridade eclesiástica ou que não tinha sido aprovada juridicamente por esta. Tratava-se de associações constituídas por fiéis por sua própria iniciativa, e por eles governadas para fins espirituais ou caritativos. Mas estas associações não estavam fora da vigilância do Bispo: embora ele não as pudesse governar, olhava pela fé e bons costumes das mesmas. O CDC de 1917 considerava só as associações eclesiásticas, enquanto sujeito típico de direitos e de deveres no ordenamento jurídico eclesiástico, não se ocupando das associações laicais enquanto tal. Eram elas: as associações louvadas, de natureza privada (a autoridade eclesiástica limitava-se a louvar o fim da associação); as associações aprovadas, que entravam na estrutura organizativa da Igreja, mas sem possuir a personalidade jurídica; e as associações eretas, que entravam na estrutura organizativa da Igreja com a atribuição da personalidade jurídica depois da ereção formal. O fenómeno associativo na Igreja foi referido em alguns documentos do Concílio Vaticano II. Veja-se, por exemplo Apostolicam Actuositatem para o direito de associação dos leigos, e Presbyterorum ordinis para o direito de associação dos presbíteros. “A liberdade associativa dos fiéis não é uma espécie de concessão da autoridade, mas brota do Batismo, sacramento que convoca os fiéis leigos à comunhão e missão na Igreja” (Lumen Gentium, n.º 37). O Vaticano II delineou o contexto onde se deve situar o fenómeno associativo e apresentou o seu fundamento eclesiológico: o direito de associação dos fiéis, como modalidade típica de participação na única missão da Igreja. “Na Igreja, a diversidade de ministérios, mas unidade de missão” (Apostolicam ctuositatem, n.º 2); a distinção de ministérios, na única missão, em razão da sua condição ontológico-sacramental. O Concílio não emite uma qualificação jurídica das associações, pois essa não era a sua intenção e função. Descrevendo as várias relações das associações com a hierarquia, oferece uma interessante catalogação das associações nascidas da livre iniciativa dos fiéis: associações simplesmente constituídas por leigos, associações louvadas ou recomendadas, associações explicitamente reconhecidas, associações electas et particulari modo promotae. No fenómeno associativo e nas suas várias manifestações (grupos, agregações, movimentos, comunidades, pias uniões, confrarias, ordens terceiras, institutos, etc.), manifesta-se uma peculiar realização da comunhão eclesial: “Portanto, o apostolado em associação responde com fidelidade à exigência humana e cristã dos fiéis e é, ao mesmo tempo, sinal da comunhão e da unidade da Igreja em Cristo. [...] O apostolado associativo é de grande importância também porque, nas comunidades eclesiais e nos vários meios, o apostolado exige com frequência ser realizado mediante a ação comum. As associações criadas para a ação apostólica comum fortalecem os seus membros e formam-nos para o apostolado. [...] É absolutamente necessário que se robusteça a forma associada e organizada do apostolado no campo de atividades dos leigos” (Apostolicam Actuositatem, n.º 18). Analisando esta problemática à luz do CDC de 1983, pode-se concluir que o can. 215 é fundamental para a formulação jurídica do direito de associação e do direito de reunião na Igreja. Este cânon, que provém do esquema da Lex Ecclesiae Fundamentalis, entretanto não promulgado, configura este direito e confere-lhe uma grande relevância. “Os fiéis podem livremente fundar e dirigir associações para fins de caridade ou de piedade, ou para fomentar a vocação cristã no mundo, e reunir-se para prosseguirem em comum esses mesmos fins” (can. 215). O texto latino não emprega o termo “ius”, mas a expressão “integrum est” (SISTACH, 2012, 509). A liberdade dos fiéis no governo das associações privadas é muito ampla, enquanto nas associações públicas é mais limitada. O can. 299 estabelece que os fiéis têm direito, mediante um acordo privado entre eles, de constituir associações privadas. A causa eficiente desta realidade associativa é a vontade dos fiéis que se associam. O legislador começa por ressalvar que os institutos de vida consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica são de outro género, não sendo consideradas associações. Estes Institutos e Sociedades têm normas próprias (cc. 573-746). As normas consagradas às Associações estão legisladas nos cc. 298-329, na seguinte ordem: can. 298, §1 – associações no interior da Igreja para promoverem finalidades próprias da Igreja; cc. 298-312 – normas comuns para todos os tipos de associações; cc. 312-320: normas sobre as associações públicas de fiéis; cc. 321-326 – normas sobre as associações privadas; cc. 327-329 – normas para as associações de leigos. As finalidades das associações são: fomentar uma vida mais perfeita, promover o culto público ou a doutrina cristã, ou outras obras de apostolado, promover o trabalho da evangelização, exercício de obras de piedade ou de caridade, informar a ordem temporal com o espírito cristão. Podem ser membros destas associações todos os fiéis, clérigos, ou leigos, ou clérigos e leigos. Consoante o tipo dos seus membros, podem ser distinguidas: as associações clericais que, sob a direção de clérigos, assumem o exercício da ordem sagrada e são reconhecidas como tais pela autoridade competente (can. 302); as associações religiosas, que vivem a espiritualidade de um Instituto Religioso e tendem à perfeição cristã, tomando o nome de Ordens Terceiras ou de Associações (can. 303; e ainda as associações laicais, que são formadas por leigos, com as finalidades do can. 298. Devem cooperar com outras associações de fiéis na pastoral, e preparar devidamente os leigos (cc. 327-329). As associações não clericais podem ser presididas por leigos (can. 317, §3). Quando o Bispo dá o seu consentimento por escrito para a ereção de uma casa religiosa, o mesmo vale para a ereção, na mesma casa ou na igreja a esta anexa, de uma associação própria do Instituto (cc. 317, §2; 312, §2). As associações que foram constituídas por privilégio apostólico podem entrar numa Diocese, desde que recebam o consentimento escrito do Bispo diocesano (can.312 §2). Estas associações devem cooperar com as obras de apostolado existentes na diocese, sob a vigilância Ordinário do Lugar (can. 311). Qualquer associação pública ou privada tem de possuir os seus estatutos (can. 94) nos quais se determinam: o nome da associação; o fim ou objetivo da associação; a sede; o governo; o património; as condições de ingresso e pertença; o modo de agir, tendo em conta o meio em que trabalham (can. 304). Todas estas associações devem ser acompanhadas espiritualmente por um Assistente, normalmente presbítero, nomeado pela autoridade eclesiástica competente (cc. 317, §§1-3; 324, §2). A capacidade jurídica das associações está definida no CDC, nos respetivos Estatutos, e nas normas de direito particular e direito próprio. Elas podem intervir eclesial e socialmente, e administrar bens (cc. 319; 325). A supressão das associações deve realizar-se de acordo com o CDC (cc. 320, 326), os Estatutos, e as normas de direito particular e direito próprio. O CDC usa a distinção entre associações públicas e associações privadas, embora na linguagem corrente tenhamos outras denominações: confraria, irmandade, ordem terceira, fraternidade, grupo, movimento, etc. As associações públicas são eretas pela autoridade eclesiástica, para conseguir alguns fins reservados natura sua à hierarquia e outros fins que não tenham sido conseguidos pela iniciativa privada; são constituídas ipso iure pessoas jurídicas públicas e agem nomine Ecclesiae, sob a superior direção da autoridade eclesiástica (can. 116). Todas as suas ações abrangem a autoridade eclesiástica, supondo uma relação de quase identificação com ela. Uma associação não é pública porque tem um fim geral eclesial, porque teve um reconhecimento da autoridade eclesiástica, porque tem um carácter de internacionalidade, mas porque entra a fazer parte da estrutura Hierárquica da Igreja, conseguindo fins propriamente institucionais, como estabelece o can. 301, §1. As relações com a hierarquia – Santa Sé, conferência episcopal, bispo diocesano –estão definidas nos cc. 322 e 312, §1. As associações privadas são constituídas por fiéis mediante acordos privados para conseguir fins espirituais, e no can. 298 prevê-se que a sua atividade se desenvolva sob a sua direção e moderação; podem adquirir personalidade jurídica privada. O conceito “privado” não significa, portanto, “sem importância eclesial”. O critério que distingue associações públicas e associações privadas é dado pelo concurso do critério subjetivo e do critério objetivo: o sujeito da constituição das associações e a sua finalidade específica. As associações e os movimentos não podem descurar a comunhão eclesial: “É sempre na perspetival da comunhão e da missão da Igreja e não em contraste com a liberdade associativa, que se compreende a necessidade de claros e precisos critérios de discernimento e de reconhecimento das associações laicais, também chamados ‘critérios de eclesialidade’” (JOÃO PAULO II, 1988, n.º 30). Os movimentos e associações devem assim seguir critérios de eclesialidade que os introduzam na esfera da comunhão eclesial. Devem ter, pois, a responsabilidade em professar a fé católica. Com efeito, uma clara adesão à doutrina da fé católica e ao magistério da Igreja, que a interpreta e a proclama, é sem dúvida condição indispensável para que uma realidade possa existir como tal na Igreja. Também é necessário encontrar um equilíbrio entre dimensão pessoal e comunitária, entre a pertença à Igreja e a pertença ao grupo, entre empenho de oração e coerência de vida, entre valorização da vocação específica dos leigos e reconhecimento da função eclesial da hierarquia, entre autonomia de vida e atividade de grupo. Outro ponto a ter em conta é a conformidade com as finalidades da Igreja. De facto, desempenham atividades conforme à finalidade da Igreja – ou seja à evangelização – todas aquelas associações que se propõem fins espirituais, religiosos, formativos, pastorais, obras de piedade, de caridade, de misericórdia. A comunhão com os Pastores também é importante. A vontade de uma plena comunhão com o Papa, centro perpétuo e visível da unidade da Igreja universal, e com o bispo, “princípio visível e fundamento da unidade da Igreja particular” (Lumen Gentium 22) traduz-se concretamente na disponibilidade em acolher: os princípios doutrinais e orientações pastorais do bispo da diocese; a sua ação de coordenação pastoral que tem em vista harmonizar a atividade dos fiéis e a conjugá-la com o bem comum da Igreja; a sua presença através de um presbítero; o reconhecimento da legítima pluralidade das formas associativas na Igreja. Pede-se de cada associação uma atitude de respeito, de estima e de abertura em relação aos outros grupos e movimentos; e tal atitude demonstra-se verdadeira se se traduz numa disponibilidade real, no respeito pelos outros, sem constituir uma “capelinha” ou um grupo fechado, e na disponibilidade em colaborar com outras associações. Por último refira-se que o direito canónico de 1983 também prevê os “frutos espirituais” como objetivo a atingir pelas associações e os movimentos. Frutos espirituais são aqueles elementos de relevo sobrenatural que acompanham, a uma certa distância de tempo, a obra de uma associação, movimento, grupo, etc. e representam, em certo sentido, a contraprova dos autênticos dinamismos espirituais que neles e através deles se exprimem: a oração, o estilo de pobreza, a caridade, o florescimento de vocações, a coragem da evangelização (catequese, programas de pastoral) e a identificação com o carisma instituto de vida consagrada. De acordo com o can. 312, as associações eclesiais em Portugal são eretas e/ou aprovadas pelo bispo diocesano ou pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), de acordo com a sua natureza. Isto não impede que associações portuguesas possam pedir à Santa Sé a sua aprovação como internacionais e/ou mundiais. Nesse caso, terá de haver documentação e pareceres que apoiem a solicitação. A CEP publicou alguns decretos sobre as normas gerais das associações de fiéis e sobre o estatuto canónico das Misericórdias. A Comissão Episcopal do Laicado e da Família assume responsabilidades pastorais na promoção e coordenação do apostolado das associações e movimentos. A nível diocesano, há também os secretariados e/ou comissões, conforme a decisão do respetivo Bispo.  A nível nacional existe uma estrutura de comunhão e de unidade das diversas associações de fiéis, movimentos eclesiais e novas comunidades de apostolado dos leigos, com a designação de Conferência Nacional das Associações de Apostolado dos Leigos. Trata-se de uma pessoa coletiva privada canónica, com estatutos próprios, aprovados pela CEP a 5 de maio de 2011. As suas finalidades principais são: comunhão entre os seus membros, discernimento cristão das realidades contemporâneas, maior unidade de espírito e de ação. Uma lista pormenorizada das associações existentes em cada Diocese encontra-se no Anuário Católico de Portugal. Focando a atenção na Diocese do Funchal, pode dizer-se que, ao longo da sua história de 500 anos, há inúmeras páginas recheadas de labor apostólico das suas associações: confrarias, irmandades, associações de diverso tipo e movimentos. Sobretudo após o Concílio Vaticano II, os Bispos diocesanos incentivaram o apostolado laical organizado, de modo que os leigos pudessem corresponder à sua vocação e missão. Neste contexto, serão feitas algumas notas sobre o pontificado de D. Francisco Santana, Bispo diocesano de 1974 a 1982, cuja ação foi muito relevante no incentivo e na promoção das associações de fiéis leigos na Madeira, destacando os principais momentos e acontecimentos deste processo. Poucos meses depois da sua entrada solene na Diocese, D. Francisco convocou o Conselho Diocesano do Apostolado dos Leigos, “constituído por quantos, acedendo ao Decreto conciliar sobre o apostolado dos leigos (v. nº 26) e aos apelos do Santo Padre Paulo VI (v. motu proprio de 6 janeiro 1967) receberam e aceitem o convite para colaborarem por esta forma, na dinamização e trabalho pastoral da Igreja diocesana” (CDAL, 1.ª reunião). Seguiu-se o decreto de criação do Conselho Diocesano do Apostolado dos Leigos. As três primeiras páginas contêm uma reflexão sobre o mistério da Igreja, em que o bispo discorre sobre os carismas: “O apostolado dos leigos é participação na própria missão salvadora da Igreja e são especialmente chamados a torná-la presente e ativa, para que seja o ‘sal da terra’. Deste modo, todo e qualquer leigo é, ao mesmo tempo, testemunha e instrumento vivo da missão própria da Igreja” (CDAL, 1.ª reunião, dec., p. 2). E prossegue: “Os leigos da Igreja devem ter consciência, da função utópica (cf. Ernst Bloch) da fé cristã que nada tem de alienante do homem e da atividade humana, mesmo quando intimamente e conscientemente unidos à hierarquia estabelecida pelos Apóstolos segundo a vontade de Cristo e seguindo as práticas religiosas por Cristo instituídas” (Id., Ibid., p. 3). Considera o prelado diocesano que, após vários meses de estudo da comissão preparatória dos documentos conciliares e da situação real da Igreja diocesana, e com base no motu proprio de Paulo VI de 6 de janeiro de 1967 (I e III, 9), e na carta enviada à Diocese pelo Santo Padre em 14 de junho de 1974, é altura de declarar instituído o Conselho Diocesano do Apostolado dos Leigos. Determina ainda “nomear para este Conselho, e por um período de dois anos, se antes nada for determinado em contrário, os leigos adultos e jovens, apresentados pelas diversas Associações e Movimentos católicos e ainda pelas Paróquias, cujos nomes constam de um elenco anexo a este decreto” […] e entende “Determinar que todas as Obras, Movimentos, Associações ou Grupos de leigos, quer sejam de âmbito diocesano, ou mesmo nacional ou internacional enquanto atuarem na Diocese, ou regional, paroquial ou de área menor, reconheçam o Conselho Diocesano do Apostolado dos Leigos como superior na escala hierárquica e como elo de ligação entre si e com o Conselho de Pastoral (a instituir-se), com o Conselho Presbiteral e com o Bispo da Diocese”, bem como “recomendar a urgência de serem convenientemente instituídos, em todas as Paróquias da Diocese, com a colaboração dos respetivos Vigários, os Conselhos paroquiais (CoPar), cujo financiamento se deve articular com este Conselho Diocesano do Apostolado dos Leigos” (Id., Ibid., p. 4). A 24 novembro 1974, tem lugar uma reunião com vários pontos de relevo, como: o decreto de criação do Conselho, apresentação dos membros do Conselho, comentário à alocução do Santo Padre de 02/10/1974, relativa ao papel dos leigos, discussão sobre o funcionamento do Conselho, escolha dos membros do Secretariado, síntese e discussão das respostas ao questionário enviado. Nos apontamentos redigidos à mão por D. Francisco Santana, podemos ler: “Não é uma simples reunião de alguns leigos, não é uma organização ou uma associação que se pretende criar, mas é um Conselho diocesano. Chamo a atenção, desde já, para esta palavra ‘Conselho’ que deve orientar todos os nossos pontos de vista e todo o nosso trabalho. É um Conselho da Diocese” (CDAL, 1.ª reunião, s.p.). A documentação da Comissão Preparatória do Conselho Diocesano do Apostolado dos Leigos, cuja primeira reunião teve lugar nos dias 15 e 16 de junho de 1974, menciona que os seus membros são sete. “Foi uma Assembleia de cristãos da Diocese, no Seminário Maior, que teve como tema de reflexão: ‘As carências de apostolado e a oportunidade de ereção do Conselho diocesano do apostolado dos leigos’. Estiveram presentes cerca de 180 católicos responsáveis, integrados ou não em organizações e movimentos católicos. Concluiu ser oportuna e necessária a criação do ‘Conselho’, tendo eleito uma Comissão preparatória de 7 pessoas. Neste encontro, o médico Dr. Luciano Castanheira fez uma intervenção sobre o decreto Apostolicam Actuositatem do Concílio Vaticano II.” Esta Comissão passou a reunir-se mensalmente. A 8 de agosto de 1974, fez circular o primeiro documento, contendo as bases para a constituição do Conselho diocesano do apostolado dos leigos e pedindo sugestões. O segundo documento é escrito com base nessas críticas e sugestões, que não foram tantas como se esperava (reunião da C.P., 24 novembro 1974, CDAL, 1.ª reunião). Os leigos são envolvidos na organização da Jornada Eucarística Diocesana de 17 junho 1976, com procissão desde o Estádio dos Barreiros até à Sé. Nos anos seguintes repete-se esta efeméride, assim como outras iniciativas do apostolado dos leigos. Destaque-se ainda o documento-base sobre os CoPar, que representou outro impulso para o envolvimento dos leigos na vida eclesial. “Os Conselhos paroquiais são um órgão de pastoral, ordenado para despertar o espírito missionário da Paróquia, por forma a que todos se sintam membros corresponsáveis na comunidade paroquial». Possíveis atividades para estes Conselhos: liturgia, catequese, cultura religiosa, recoleções e retiros, formação humana e cristã da família, entreajuda fraterna, emigrantes, sentido do trabalho humano e condições da sua prestação, formação política social, meios de comunicação social, atividades recreativas e culturais, execução de trabalhos burocráticos” (CDAL, 1.ª reunião). A 22 de junho de 1975, tem lugar uma reunião do CDAL, destinada à análise do documento-base dos CoPar. Na ocasião, o bispo profere uma alocução acerca da missão da Igreja e do papel dos leigos. Entre 1975 e 1978, realizaram-se várias reuniões e assembleias do CDAL, que manifestam o dinamismo do apostolado laical; destaque-se a assembleia realizada em 1978, em que foram abordados os temas evangelização das paróquias madeirenses e a doutrina social da Igreja no contexto madeirense. De notar que, em várias ocasiões, houve jornadas de formação com oradores vindos de Lisboa, que discursaram sobre o papel dos leigos: Mário Pinto, Luís Marinho Antunes, outros (in CDAL, 1ª reunião). De 6 a 8 de dezembro de 1975, o CDAL organizou um Curso de preparação para os monitores dos CoPar. Daqui por diante irão suceder-se diversos encontros em vários lugares da Diocese, a fim de lançar os CoPar. Arciprestado do Porto Moniz (março e abril de 1976); Arciprestado do Funchal-suburbano (julho de 1976); Arciprestado do Funchal-centro e do Funchal-suburbano (julho de 1976; Paróquia da Nazaré (abril de 1976). Os novos CoPar foram constituídos, com aprovação dos nomes, sob proposta dos Párocos (anos 1976, 1977, ss). Existem atas das reuniões dos padres dos Arciprestados acerca do documento “Conselhos Paroquiais”. Para concluir esta nota sobre o papel de D. Francisco Santana na promoção do associativismo laical, refira-se a criação do Movimento Jovens Cristãos da Madeira, que dará um grande impulso à pastoral juvenil, orientando os jovens para a vida cristã, no meio de uma sociedade em grande alvoroço social e político, pouco tempo depois da revolução de 25 de Abril de 1974. No pontificado de D. Teodoro de Faria, o empenhamento dos leigos em vida associativa prosseguiu, pautando-se por caraterísticas próprias. Saliente-se, por exemplo, o congresso de pastoral juvenil de 1986. Um texto de D. Teodoro de Faria, “Os jovens e o futuro da nossa terra” (s.d.), analisa as diversas gerações de fiéis, a fé, a Igreja, a família, a escola, o ensino na UCP, afirmando o primado dos valores espirituais. O congresso foi preparado em diversas fases; a terceira realização foi de 17 a 20 de julho, estando os primeiros dias reservados aos delegados e o último aberto à participação de todos os jovens e familiares. António Carrilho, Bispo diocesano desde 2007, procurou fomentar o apostolado laical, na continuidade dos seus predecessores, com as suas visitas pastorais, agendamento de jornadas diocesanas do apostolado dos leigos, apoio a diversas atividades. As associações na Igreja não se justificam só pela inúmeras vantagens que comporta a ação associada pelo apostolado, mas porque sublinham uma exigência conatural à Igreja e ao ser cristão, a de ser comunhão a todos os níveis e aproveitar todas as oportunidades para construir comunidade. O fenómeno associativo na Igreja só tem sentido quando, consciente dos seus carismas, contribui para o anúncio do Evangelho, incrementa a unidade e a reconciliação e é capaz de ver a Igreja numa perspetiva católica. Os movimentos e associações eclesiais são formas privilegiadas de realizar uma vocação na Igreja, revitalizando a consciência batismal, aprofundando o apelo à santidade que a todos é dirigido e ajudando a configurar caminhos de vida e espiritualidades ao serviço de uma identidade cristã e do crescimento do Reino de Deus. Mas não são a única forma de concretizar a vocação cristã. Por outro lado, há aspetos negativos da experiência das associações e dos movimentos. Os movimentos colhem geralmente um aspeto do Evangelho com a sua espiritualidade. O risco reside nas leituras parciais do Evangelho, na fixação numa mentalidade teológica fechada, na não aceitação dos membros da hierarquia consoante as sensibilidades, na absolutização da própria experiência, entre outros. Evolução histórica das associações e movimentos da Diocese do Funchal (1989-2015): - 1989 (PEREIRA, 1989, II, 412): Ação Católica, Jovens Cristãos da Madeira, Movimento dos Estudantes Católicos Madeirenses, Corpo Nacional de Escutas, Movimento Esperança e Vida, Movimento de Educadores Católicos, Associação Católica Internacional a serviço da Juventude Feminina, Legião de Maria, Associação Católica de Enfermagem e Profissionais de Saúde, Cursos de Cristandade, Obra de Santa Zita, Equipas de Casais de Nossa Senhora, Centro de Preparação para o Matrimónio, Escola de Pais, Movimento de Defesa da Vida, Congregação de Nossa Senhora e Filhas de Santa Maria, Ordem Terceira de S. Francisco de Assis, Conferências de S. Vicente de Paulo, Obra de S. Francisco de Sales, Damas da Caridade, Lactário de Assistência a Crianças fracas, Escola-Creche de Santa Clara, Patronato de Nossa Senhora das Dores, Abrigo de Nossa Senhora de Fátima, Casa do Gaiato do Padre Américo, Associação dos Cooperadores Salesianos. - 2007 (elenco da Agência Ecclesia): Ação Católica dos Meios Independentes (ACI); Ação Católica Rural; Ação Católica dos Enfermeiros e Profissionais de Saúde; Associação dos Cooperadores Salesianos; Associação Portuguesa dos Centros de Preparação para o Matrimónio; Associação de Professores Católicos; Convívios Fraternos; Corpo Nacional de Escutas; Cursos de Cristandade; Equipas de Nossa Senhora; Legião de Maria; Liga Eucarística; Liga Operária Católica; Movimento de Apoio à Grávida; Movimento de Apostolado das Crianças (MAC); Movimento dos Jovens Cristãos da Madeira; Movimento dos Estudantes Católicos Madeirenses; Movimento da Mensagem de Fátima; Movimento dos Educadores Católicos; Movimento Esperança e Vida (MEV); Caminho Neocatecumenal; Obra de Santa Zita; Renovamento Carismático; Sociedade de São Vicente de Paulo; Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude Feminina; Equipas Jovens de Nossa Senhora; Filhas de Maria; Movimento de Defesa da Vida; Movimento dos Trabalhadores Cristãos; Oficinas de Oração e Vida; Movimento dos Focolares e Movimento Apostólico de Schoenstatt. Há ainda os Institutos Seculares, a Companhia Missionária do Coração de Jesus, os Cooperadoras da Família (Obra de Santa Zita) e as Servas do Apostolado. - 2015 (informação facultada pela Diocese do Funchal): Movimentos ligados à vida consagrada: Maria Rivier (Irmãs da Apresentação de Maria), Amigos da Irmã Wilson (Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias), Associação dos Cooperadores Salesianos, Damas da Caridade de S. Vicente de Paulo, Associação de São Vicente de Paulo, Ordem Franciscana Secular, Ordem Terceira do Carmo, Movimento por um Lar cristão (Obra de Santa Zita), Movimento de Apoio à Grávida, Juventude Dehoniana, Juventude Hospitaleira, Juventude Mariana Vicentina, Juventude Salesiana, Casais da Verbum Dei. Movimentos de Leigos: Associação Católica Independente, Ação Católica Rural, Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude Feminina, Equipas Jovens de Nossa Senhora, Equipas de Nossa Senhora, Legião de Maria, Liga Operária Católica, Filhas de Maria, Movimento Esperança e Vida, Cursos de Cristandade, Renovamento carismático, Oficinas de Oração, Jovens Cristãos da Madeira, Convívios fraternos, Corpo Nacional de Escutas (CNE), Movimento de Estudantes Católicos Madeirenses (MECM), Movimento Apostólico de de Schoenstat, Movimento Mensagem de Fátima.    M. Saturino da Costa Gomes (atualizado a 04.10.2016)

Religiões Sociedade e Comunicação Social

antilhas / índias ocidentais

O mais importante da ligação da Madeira com as Antilhas, a partir do séc. XVII, prende-se com as ilhas subordinadas ao império britânico. A partir de meados do séc. XIX, acontece uma importante vaga migratória diretamente da Ilha para as Antilhas inglesas para substituir os escravos nas plantações, onde se definira uma política de abolição do trabalho escravo. Esta rota emigratória manteve-se entre a Madeira e Antigua, Demerara, Guiana, Grenada, Jamaica, Nevis, Saint Kitts, Saint Vincents e Trinidad. Para o vinho, teremos as ilhas de Antigua, Barbados, Berbice, Bermudas, Dominica, Curazau, Dominicana, Honduras, Jamaica, Martinica, Montserrat, Nevis, Saint Thomas, Saint Christopher, Anguilla, Saint Vincent e Trinidad. Palavras-chave: comércio; emigração; vinho; Caribe; Antilhas. Por esta designação se entende todas as ilhas da América Central que, a partir do séc. XVII, entram na esfera de domínio e controlo do império britânico, com quem a Madeira teve fortes laços comerciais, baseados, de forma especial, no vinho e na emigração de populações para suprir a falta de mão-de-obra ou por força da perseguição aos seguidores do Rev. Robert Kalley. Esta mobilidade humana e comercial concretiza-se pelo facto de a Madeira manter uma relação direta com todo o mundo atlântico, desde o séc. XV, por ter sido o primeiro espaço de ocupação europeia, o ponto de partida em termos da ocupação de novos espaços e ilhas, e, por fim, pela sua situação geográfica como base de apoio e de afirmação do império colonial britânico. Aliás, a Ilha serviu de modelo para Portugueses e Castelhanos neste afã povoador dos espaços insulares atlânticos e das Antilhas. Assim, os Castelhanos viram na Ilha a resposta para as dificuldades da sua ação institucional nas pequenas ilhas do Atlântico, como se depreende do desejo manifestado, em 1518, pelas autoridades das Antilhas em resolver a difícil situação das ilhas de Curaçao, Aruba e Isla Margarita, com o recurso ao modelo madeirense de povoamento. Há uma ligação direta da Ilha às Antilhas, que se perpetua no tempo, por diversas razões. A primeira situação de proximidade é provocada pela expansão da cultura da cana-de-açúcar. Os madeirenses intervêm na sua expansão em Santo Domingo, Cuba e Jamaica. Em 1647, encontramos referência a um capitão francês que pretendia contratar um mestre de açúcar madeirense para a ilha de Saint Kitts. Esta desusada intervenção da Madeira, a partir do séc. XVII, resulta ainda do facto de a sua posição geográfica o permitir, sendo considerada a última etapa antes da chegada às Antilhas. A Madeira estava às portas deste novo mundo e abria-as aos europeus desta rota, o que implicava e facilitava também uma intervenção ativa neste processo, estabelecendo-se pontos entre a Ilha e as Antilhas, em termos comerciais e de movimentos emigratórios. As Antilhas serão, a partir de meados do séc. XIX, a solução fácil para os excedentes populacionais da Ilha que, a partir de então, atuam como emigrantes, muitas vezes com a função de substituir a mão de obra negra, quando, no passado, haviam assumido a posição de negreiros, de lavradores e de técnicos experimentados nas indústrias ligadas à atividade agrícola. Estes madeirenses que partem na última vaga do séc. XIX são obreiros da situação das Antilhas nos sécs. XX e XXI, tornando-se a sua presença notória em muitas ilhas, expressa através de múltiplas manifestações culturais, donde se destaca a terminologia e a culinária. Por outro lado, parece existir, na maioria destes madeirenses que partem neste século, uma forte consciência da identidade ilhoa, que os mesmos pretendem seja diferenciadora dos demais Portugueses, afirmando-se como madeirenses e não gostando de ser considerados Portugueses. As Antilhas: séculos XVII-XIX São diversas as designações deste grupo de ilhas da América Central. Primeiro, por equívoco de Colombo, ficaram conhecidas por Índias Ocidentais (West Indies); depois, atribuiu-se-lhes a designação indígena, daí Antilhas. Este grupo insular é composto por várias ilhas. O processo europeu de reconhecimento e ocupação destas ilhas começou em 1492, com as três viagens organizadas por Cristóvão Colombo, entre 1492-1493, 1493-1496 e 1496-1500, com o reconhecimento das Baaamas, Cuba e Haiti, Jamaica, Trindade e Porto Rico. Todas estas ilhas começaram por ser, em 1492, de domínio espanhol, daí a designação de Antilhas Espanholas, permanecendo algumas nesta situação até à sua independência, a partir de 1865: República Dominicana (1865), Cuba (1898) e Porto Rico (1898). A partir dos princípios do séc. XVII, começou a disputa pela sua posse, sendo partilhadas com os Franceses, Holandeses e Ingleses. As Antilhas Francesas compreendem Martinica, Guadalupe (arquipélago composto por Grande-Terre e Bassse-Terre, La Désirade, Marie-Galante e as Îles Les Saintes), Saint-Barthélemy e São Martinho (lado francês). As Antilhas Neerlandesas, ou Holandesas, que surgem a partir de 1634, são formadas por dois grupos de ilhas, ficando um a norte das Pequenas Antilhas (Saba, Santo Eustáquio e São Martinho) e o outro ao largo da costa da Venezuela (Aruba, Bonaire e Curaçau). A presença britânica regista-se aqui a partir de 1612 e afirma-se na segunda metade da centúria. A ocupação das ilhas obedece a interesses estratégicos, comerciais e agrícolas, pois são estes que dão um novo impulso à produção açucareira. Quanto às Antilhas Britânicas, estas incluem: Bermudas, Saint Kitts, Barbados, Jamaica, Baamas, British Virgin Islands, Montserrat, Nevis, Angula, Tortola, Saint Croix, São Vicente, Saint Thomas, Dominica, Cartagena, Honduras, Trindade. Neste conjunto de Antilhas pequenas e grandes, regista-se, desde o séc. XVI, o estabelecimento de relações comerciais, relacionadas com o vinho e a emigração, que se processam em duas etapas: no decurso dos sécs.XVI e XVII, onde se destacam técnicos açucareiros para Cuba e Santo Domingo, bem como judeus, vindos da Ilha ou a partir de Pernambuco, e a partir de meados do séc. XIX, período em que se regista outra vaga migratória diretamente da Ilha para as Antilhas Inglesas, com o intuito de substituir os escravos nas plantações, onde se definira uma política de abolição do trabalho escravo, numa forma especial conhecida como indentured labour. Esta rota migratória manteve-se entre a Madeira e Antígua, Demerara, Guiana, Granada, Jamaica, Nevis, Saint Kitts, São Vicente e Trindade. Para o vinho, as ilhas de Antígua, Barbados, Berbice, Bermudas, Dominica, Curaçau, Dominicana, Honduras, Jamaica, Martinica, Montserrat, Nevis, Saint Thomas, Saint Kitts, São Vicente e Trindade. Na costa atlântica da América do Sul, temos ainda a considerar a Guiana, partilhada por Ingleses, Franceses e Holandeses, que se enquadra neste grupo das Antilhas. Originalmente, a Guiana Holandesa consistia em três colónias: Essequibo, Demerara e Berbice. Em 1814, os Holandeses entregaram esta região aos Ingleses, que, a partir de 1831, lhe atribuíram a designação de Guiana Inglesa. Entretanto, os Holandeses mantiveram o Curaçau e Suriname. Esta última área, também conhecida como Guiana Holandesa, ficou subordinada aos Neerlandeses desde 1667, com o chamado Tratado de Breda, realizado entre a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos e o Reino da Grã-Bretanha, a 31 de julho de 1667, o qual pôs fim à Segunda Guerra Anglo-Holandesa através do controlo de rotas marítimas e do comércio, que decorreu entre março de 1665 e julho de 1667. Relativamente à Guiana Francesa, esta começou por ser um centro de negócios de comerciantes franceses, criado em Sinnamary (1624) e Caiena (1637). Esta última cidade foi ocupada por duas vezes pelos Holandeses (1664 e 1676), sendo legitimada a posse francesa pelo já referido Tratado de Breda. O comércio do vinho com as Antilhas deve-se a vários fatores. Primeiro, pelo facto de, a partir de meados do séc. XVII, os Ingleses terem escolhido a Madeira como base avançada para os seus interesses expansionistas no Atlântico, funcionando a Ilha como base de apoio e de reorganização das frotas militares e comerciais. Depois, pelo facto de ser um dos poucos vinhos europeus a suportar muito bem as mudanças de temperatura, atuando o efeito do calor como meio de envelhecimento do mesmo. Não deverá ser esquecido que um dos principais problemas da dieta de bordo das tripulações era a falta de vitamina C, que provocava o escorbuto, sendo o vinho um dos antídotos utilizados. Em relação às Antilhas, diz-se que o nome de Curaçau está relacionado com este facto, pois foi aqui que os Portugueses encontraram a cura do escorbuto, dando o nome à ilha. Comércio Uma das primeiras intervenções comerciais dos madeirenses nas Antilhas está relacionada com o comércio de escravos. Alguns ilhéus usufruíram de uma posição destacada nos entrepostos do tráfico negreiro em Santiago, São Tomé ou Angola, gozando mesmo, desde 1562, de privilégios especiais na captura de escravos para as suas fazendas ou para venda aos compatrícios que as possuíam. Outros procuravam intervir no rendoso contrabando, alargando os seus negócios até ao Brasil ou às Antilhas. Fascinados pela aventura destas paragens, muitos decidiram-se por uma intervenção direta, fixando-se em Santiago ou na costa da Guiné, pois que a situação de vizinho era condição obrigatória para participar neste tráfico negreiro. A comunidade madeirense residente em Santiago deveria ser numerosa, a avaliar pelos testamentos que chegaram às nossas mãos. Destes, merece especial referência o de Francisco Dias, morador na Ribeira Grande, que, pelo testamento de 1599, é apresentando como sendo um dos mais importantes mercadores de escravos empenhados no tráfico com a Madeira e as Antilhas. A permuta baseava-se, pelo lado africano, em escravos, a que se vieram juntar os produtos da terra, como o algodão, milho, cuscuz, chacinas, courama e sal, recebidos a troco de vinho, cereais e artefactos. Francisco Dias foi um, de entre muitos, dos que se lançaram na aventura, fixando morada na Ribeira Grande. Aí, foi escrivão do almoxarifado e memposteiro-mor da rendição dos cativos, atuando como um ativo agente do tráfico negreiro da costa africana próxima. Todo o empenho de Francisco Dias estava no tráfico com a vizinha costa da Guiné, sendo os cargos de memposteiro-mor dos cativos e de escrivão do almoxarife mais um meio para reforçar a sua posição. Era mercador e armador com uma rede de negócios, tendo como principais eixos as ilhas (Açores, Cabo Verde e Madeira), a costa da Guiné e as Antilhas Espanholas. Aqui, estávamos perante uma empresa de tipo familiar, onde atuavam, por exemplo, Álvaro, Diogo, João, Jorge e Lopo Fernandes. Este João Fernandes, filho de Álvaro Fernandes, morreu, ainda jovem, quando se encontrava em missão comercial na costa da Guiné, deixando os seus negócios entregues ao tio. Do outro lado do Atlântico, nos contactos com os mercados negreiros das Antilhas, representavam-no Manuel Diogo Cavalheiro, Álvaro Dias, Mariscal e Diogo Cavalheiro das Honduras. A partir da Madeira, o estreitamento das relações comerciais com as Antilhas inicia-se na segunda metade do séc. XVII, mas com a intervenção dos Ingleses. A política mercantilista inglesa definiu a hegemonia da burguesia comercial britânica, consolidada, na Madeira, com frequentes tratados luso-britânicos. A par disso, a afirmação do império colonial britânico nas Antilhas, com a ocupação da Jamaica (1654) e das demais ilhas, veio a valorizar a posição da Madeira como porto de escala e fornecedor de vinho e, mais tarde, de emigrantes. Com Oliver Cromwell, definiu-se um mercado de monopólio para a burguesia comercial inglesa, no qual a Madeira será um das pedras-base do processo. As leis inglesas de navegação de 1651, 1660, 1663 e 1665 definiram os contornos desta política mercantilista ao estabelecerem que todos os produtos entrados nos portos das colónias britânicas deveriam ser feitos sob pavilhão inglês. Assim, de acordo com a ordenança de 1663, as ilhas dos arquipélagos da Madeira e dos Açores detinham o exclusivo do fornecimento de vinho às colónias inglesas na América, África e Ásia. Foi assim que Barbados suplantou os portos brasileiros e angolanos no consumo do vinho Madeira, ainda no séc. XVII. Os dados da exportação para o ano de 1699 são esclarecedores desta mudança. Num total de 4987 pipas, temos as Antilhas em primeiro lugar, com 1303. Aqui, o protagonista deste tráfico é o comerciante inglês, sendo William Bolton o primeiro a definir os contornos desta realidade. Note-se que, de acordo com os registos de saída da Alfândega do Funchal entre 1650 e 1699, as embarcações inglesas dominam, de uma forma esmagadora, o comércio. A correspondência comercial de William Bolton para o período de 1696 a 171 é o testemunho do porto do Funchal como entreposto nas ligações e atividade com as Antilhas Inglesas. Ao vinho que seguia para Lisboa, junta-se outro, de embarque direto no Funchal pelos navios ou armadas. Em 1664, uma armada francesa com destino às Antilhas foi provida de 40 pipas. O vinho era conhecido como de beberagem, pelo que, segundo a tradição, estava isento de direitos. Ao longo do séc. XVIII, vários comboios que se dirigiam às Antilhas passavam pela Madeira, onde tomavam grandes quantidades de vinho, destacando-se o de dezembro de 1744, com 33 navios, e o de 1788, com 70 navios, que carregou 2000 pipas de vinho, a que se juntou outro, em outubro de 1799, com 60 navios, que carregou 3041 pipas. Em 1788, um comboio de 70 navios carregou 2000 pipas e outro, no ano seguinte, saído de Portsmouth com destino às Índias Ocidentais, comandado por Roger Curtis, com 96 navios, carregou 3041 pipas e meia pipa. Entre 16 e 21 de setembro de 1805, a frota das Antilhas, composta por 52 navios, lançou âncora. Depois, de 29 de setembro a 3 de outubro, atracaram no porto do Funchal as 60 embarcações da frota das Índias (17 navios mercantes e numerosos transportes). Os registos de saída da Alfândega do Funchal no séc. XIX assinalam a saída de vinho para gasto de embarcações estrangeiras. As colónias inglesas das Antilhas e da América do Norte foram o objetivo e o vinho o principal negócio. O vinho, que até então tinha como destino exclusivo o Brasil, passou também a ser conduzido para os novos mercados, que assumiram um lugar dominante a partir de finais da centúria. Aos portos de Pernambuco, Rio de Janeiro e Baía vieram juntar-se os de Nova Inglaterra, Nova Iorque, Pensilvânia, Virgínia, Maryland, Bermudas, Barbados, Jamaica, Antígua e Curaçau. No período de 1686 a 1688, das 688 pipas entradas em Boston, registam-se 266 da Madeira e 421 do Pico. Esta situação espelha uma realidade que marcará o comércio nas centúrias seguintes: os açorianos abasteciam, preferencialmente, os portos da América do Norte, levados pelo rumo dos baleeiros, enquanto os madeirenses faziam incidir os seus contactos nas Antilhas Inglesas e Francesas. Para a Madeira, a já referida correspondência comercial de William Bolton para o período de 1696 a 1714 permite reconstituir parte desse circuito comercial que dominou no séc. XVIII. Aqui, é evidente a definição de um circuito comercial hegemónico, delimitado pelos portos ingleses e das colónias da América Central e do Norte. As Antilhas (Curaçau, Barbados, Antígua, Nevis, Jamaica e Bermudas) surgem com uma posição destacada na importação de vinho, com 5005 pipas. William Bolton é o primeiro mercador inglês a enquadrar-se neste espírito, podendo a sua atividade comercial ser acompanhada através das cartas que nos deixou. Para as colónias inglesas das Antilhas, o vinho era o seu objetivo e principal negócio. O inglês John Ovington, que visitou a Madeira em 1689, afirma que “num cálculo modesto, a produção anual de vinho pode ser calculada em vinte mil pipas, sendo este número totalmente gasto. Pensa-se que oito mil serão bebidas na ilha, três ou quatro despendidas no tratamento ou melhoramento (através de aguardente destilada) e o restante exportado, principalmente para as Índias Ocidentais, especialmente Barbados, onde tem mais aceitação que os outros vinhos europeus” (ARAGÃO, 1981, 198). Um dos primeiros intervenientes neste negócio foi precisamente William Bolton. Sabemos da sua ação comercial com estas Índias através das já referidas cartas comerciais disponíveis, para o período de 1696 a 1714. Os navios saíam de Bristol, Dublin e Londres e, após escala no Funchal, seguiam para Antígua e Barbados. [table id=68 /] Para o período de 1780 a 1801, destaca-se a Jamaica como centro de redistribuição nas Antilhas: [table id=69 /] O momento de apogeu da exportação do vinho da Madeira para estes mercados situa-se entre finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX, altura em que a saída atingiu a média de 20.000 pipas. Mais de dois terços do vinho exportado destinavam-se ao mercado colonial americano, de que se destacam as Antilhas. Para o período de 1780-1799, a Ilha exportou 210.057 pipas, sendo 103.703 para as Antilhas. Duarte Sodré Pereira, governador e capitão da Madeira, comprometido com o comércio atlântico, dá-nos conta da situação do mercado no séc. XVIII. De acordo com o copista da sua correspondência, aquele esteve envolvido no comércio com Inglaterra, Lisboa, Estados Unidos da América, América Central (Barbados, Jamaica e Curaçau) e Brasil. As várias casas de vinhos inglesas mantinham laços estreitos com estas ilhas. Assim, por exemplo, a casa Phelps Page & Co. tinha uma rede de agentes, com especial incidência na Jamaica. Do mesmo modo, D. Guiomar de Sá de Vilhena troca vinho por cereais na Jamaica, Suriname e Santo Eustáquio. A firma Cossart Gordon & Co. manteve igualmente um comércio ativo com estas ilhas, de forma que, entre 1823 e 1834, regista-se: [table id=70 /] Muitas vezes, o retorno destas ilhas resumia-se a pipas vazias da Jamaica ou a carne de vaca, manteiga e farinha de Barbados. Entre 1831 e 1850, estas ilhas continuaram a receber importantes quantidades de vinho Madeira, o que significa igualmente que funcionariam como centros de redistribuição no Caribe. Só assim se justificam as 3464 pipas da Jamaica e as 2179 de Trindade. [table id=71 /] Para o séc. XIX, continuam a afirmar-se esta posição e interesse pelo vinho Madeira, no vasto universo insular das Antilhas. Assim, para o ano de 1843, temos: [table id=72 /] É evidente a afirmação do mercado das Caraíbas, dominado pelas colónias inglesas, com especial destaque para a Jamaica e Barbados. O centro de consumo estava nas Antilhas: o vinho Madeira era a bebida alcoolizada mais difundida. Bebia-se geralmente no sangaree, mistura de vinho, água e sumo de limão. Para os Ingleses, se o Porto é o vinho da metrópole, o Madeira é o vinho das Antilhas, mas também o das Índias. Este vinho corria nos serões de quase todas as ilhas, mas, em especial, na Jamaica, Barbados, Martinica, Santa Cruz, Santo Eustáquio e São Vicente. Emigração Desde o séc. XVI que notamos a presença de madeirenses nestas ilhas, seja como técnicos açucareiros, seja como agentes do tráfico negreiro. Contudo, a sua presença torna-se mais evidente numa segunda fase, quando a emigração madeirense atingiu o seu auge, na déc. de 40 do séc. XIX, tendo, para isso, em muito contribuído a perseguição aos protestantes (1844-1846), a crise do comércio do vinho Madeira, principal sustento das populações, a partir de 1830, e a fome que alastrou a toda a Ilha, em 1847. Entre 1834 e 1872, saíram da Ilha mais de 30.000 madeirenses, com destino ao Brasil e às Antilhas. Só a ilha de Demerara recebeu, entre 1841 e 1889, cerca de 40.000, enquanto o Havai, entre 1878 e 1913, atraiu mais de 20.000, na primeira grande leva da emigração madeirense para este destino, sendo, na centúria oitocentista, o principal motivo a questão religiosa em torno do Rev. Robert Kalley, pastor protestante e distinto médico que se fixara na Madeira em 1838, com o intuito de encontrar cura para a tuberculose da sua mulher, e que se tornou no principal chefe do movimento anglicano, arrastando consigo as gentes de Santa Cruz e Machico. As hostilidades, originadas pelo clero tradicional do Funchal, levaram à sua saída forçada em 1846, acompanhado de perto de 3000 madeirenses: 945 em navios portugueses e 2054 em ingleses. A 23 de agosto, 200 embarcaram no navio William. Primeiro, dirigiram-se às Antilhas menores (Trindade, Antígua e Saint Kitts) e daqui alguns passaram a Illinois, na América do Norte. Esta situação ia ao encontro dos interesses britânicos, uma vez que a abolição da escravatura tornava imprescindível o recrutamento de mão-de-obra livre. A segunda fase desta diáspora, mais importante do que a primeira, surge a partir de 1847, como resultado da grave crise vitivinícola. Perdidas as esperanças de uma imediata recuperação do mercado do vinho, o colono ou lavrador deixou-se aliciar pelas propostas enganosas de trabalho e bem-estar nas colónias britânicas. Um facto interessante, nesta conjuntura de fuga à fome, é que o movimento se retrai na época das vindimas, entre agosto e outubro, isto é, no momento em que era maior a procura de mão-de-obra na Ilha. Na déc. de 50, irremediavelmente perdida esta única fonte geradora de trabalho, o madeirense só tinha uma saída: a emigração. As gentes do norte abandonaram as terras e os seus miseráveis casebres, dirigindo-se à cidade, onde esperavam uma oportunidade para o salto até às promissoras Antilhas. Em 1854, dá-se uma paragem no movimento, nomeadamente de clandestinos, mercê de uma melhoria das condições da Ilha, propiciada pela iniciativa dos governadores civis. O fim do tráfico negreiro obrigava à procura de novas soluções e esta era uma delas, certamente a mais eficaz. Na déc. de 70, o fenómeno emigratório ganha novo vigor. Para isso, contribuíram o acelerar da crise económica e o reforço das promessas aliciadoras. Também as doenças que atacaram a cultura da vinha (o oídio, em 1852, e a filoxera, em 1872) deitaram por terra a única esperança económica dos madeirenses. Desta vez, o rumo é diferente: as Kanaka Islands (Sandwich ou Havai). Entre 1841 e 1889, Demerara manteve uma posição dominante enquanto destino da emigração madeirense, tendo recebido 36.724 emigrantes. Tais números dão conta de dois momentos da emigração para Demerara, a déc. de 40 e as de 70 e 80, coincidindo o último com o aparecimento de um novo destino, o Havai. Uma relação dos navios saídos com os emigrantes, no período de 11 de maio de 1854 a 11 de janeiro de 1855, reforça, mais uma vez, a posição dominante de Demerara, registando-se 88 navios para Antígua e 376 para Demerara. Devemos aqui realçar a iniciativa de alguns proprietários e consignatários de navios, como Diogo Taylor e João de Freitas Martins, este último proprietário de três embarcações: Christina, Divina Providência e Funchal. Demerara é, com efeito, nas décs. de 40 e 50, o “Eldorado do madeirense”, disputando esta posição nas décs. de 70 e 80 com o então recém-descoberto paraíso havaiano. Assim, só em 1841 terão partido mais de 4000 madeirenses para Demerara, chegando a comunidade portuguesa a representar mais de 30.000 residentes, maioritariamente da Madeira. A emigração clandestina é um fator determinante neste movimento para as Américas, dominadas pelas Antilhas e pelo Brasil, que assumem uma posição ímpar. Deste modo, torna-se difícil abalizar o valor numérico desta sangria na população da Ilha. Os números apontados pela imprensa madeirense da época são assaz elucidativos. Assim, de setembro de 1834 a junho de 1852, apontava-se que as saídas clandestinas correspondiam ao dobro das legais, que representavam 18.346 emigrantes. Depois, em 1845-1846, são referenciados 6000 clandestinos. Ainda na Ponta do Sol, no período compreendido entre abril de 1841 e outubro de 1852, outros 500. Note-se que, entre 1851 e 1853, regista-se apenas a saída de 1593 madeirenses com passaporte, quando os dados apontam a chegada de 2299 a Demerara, 281 a Antígua e 16 com a designação Índias Ocidentais, o que prova a importância da emigração clandestina. Para o período de 1843 a 1866, é possível acompanhar os destinos destes migrantes. Temos, portanto: [table id=73 /] Noutro registo de informação de 1846 a 1847, época de forte emigração madeirense, os destinos são parecidos. [table id=74 /] Mais uma vez, Demerara mantém-se como o principal destino desta emigração legal e clandestina. Em outubro de 1846, dos 16.297 emigrados, 5548 (54%) viajaram sem passaporte. No mesmo ano, aportaram em Demerara três embarcações com 547 passageiros clandestinos: a embarcação inglesa Palmira conduziu 160, enquanto o brigue português Visconde de Bruges, que saíra do Funchal com 25 passageiros, desembarcou 410 e outro bergantim português, Duas Anas, 171, quando, no Funchal, nele haviam embarcado apenas 71 com passaporte. Esta última embarcação, sete anos mais tarde, rumou ao mesmo destino, levando a bordo 173 passageiros clandestinos. Tais números são suficientemente elucidativos para demarcar a importância que assumiu na Madeira a emigração clandestina, ao mesmo tempo que demonstram a ineficácia da intervenção das autoridades locais no seu controlo. A disponibilidade de passaportes entre 1872 e 1915 permite acompanhar o movimento para estas ilhas, de forma legal, e, ao mesmo tempo, documentar a sua incidência geográfica. Apenas encontramos dados para as ilhas de Demerara, Antígua, Barbados, Trindade, Granada e São Vicente, sendo a maior incidência em Demerara, com 3732 pedidos de emigração. Pelo contrário, a ilha de Trindade regista apenas 539. A maior incidência registou-se no último quartel do séc. XIX, com 3312 pedidos. Por alvará de 4 de julho de 1758, fica estabelecida a obrigatoriedade do uso do passaporte, como forma de coibir a saída anómala de gentes da Ilha. Todavia, estavam longe os tempos da grande emigração e de afirmação desta forma de êxodo. Com o alvorecer da emigração para as colónias britânicas, o Governo Civil reclama esta medida moderadora do movimento emigratório. Em 1841, o governador civil chama a atenção ao oficial de visitas do porto para que não permitisse a saída de qualquer embarcação para Demerara, sem antes verificar se os seus passageiros eram portadores do passaporte e da licença respetiva da freguesia que os isentava de qualquer serviço ou encargo. Contudo, só em outubro de 1845 surge o primeiro caso, com o aprisionamento de 31 indivíduos no Porto Moniz, quando estes se preparavam para embarcar no iate Glória de Portugal, com destino a Demerara. Perante esta situação, o governador civil mandou publicar um edital sobre a emigração clandestina, alertando os intervenientes e cúmplices para as penas em que incorriam, de acordo com a portaria de 19 de agosto de 1842. Pela lei de 25 de maio de 1825, o capitão do navio incorria na pena de 400.000 réis, enquanto os passageiros, de acordo com a lei de 9 de janeiro de 1792, sujeitavam-se a 100.000 réis de multa. Estas medidas não alteraram em nada os planos da emigração clandestina, apenas aumentaram o risco dos seus intervenientes. Um exemplo disso é testemunhado em janeiro de 1846, quando o oficial do registo da Alfândega encontrou, a bordo do bergantim Claudine, com destino a Demerara, cinco passageiros sem passaporte. Passados dois meses, também o administrador do concelho do Funchal surpreendeu, nos Piornais, 88 pessoas que pretendiam embarcar clandestinamente para a barca inglesa Newilla. Até 1866, são frequentes as referências à intervenção de embarcações de cabotagem no apoio a este tráfico clandestino. A costa do Caniço, à Ponta do Pargo, oferecia enseadas adequadas a tal tipo de abordagem. O contacto com as embarcações de saída fazia-se, habitualmente, a partir do Caniço, Praia Formosa, Paul do Mar e Ponta do Pargo. Na última localidade, foram apresadas, por diversas vezes, embarcações saídas do Funchal com destino a Demerara. Destas, destaca-se, em 1847, o bergantim português Mariana, que, após 15 dias de saída do Funchal, ainda se encontrava na Ponta do Pargo, com o pretexto de fazer aguada. Numa inspeção a bordo, foram encontrados 187 passageiros, dos quais apenas 34 apresentavam passaporte. As Desertas surgem também como local de apoio a este tráfico clandestino. Aí foram encontrados, por diversas vezes, barcos costeiros a aguardar a passagem dos navios para Demerara. Entre fevereiro de 1845 e abril de 1847, foram aí apresadas duas embarcações que conduziam clandestinos do Caniço para a escuna portuguesa Eugénia. O recurso às Desertas e à Ponta do Pargo como locais de receção de clandestinos foi resultado da acentuada vigilância estabelecida para o porto do Funchal e para as áreas circunvizinhas. No início, este serviço de recrutamento de clandestinos para embarque era realizado no Funchal, sendo os emigrantes reunidos num armazém, à R. do Sabão, e, depois, embarcados, pela noite, para bordo das embarcações, porém, a apertada vigilância da Alfândega e a administração do concelho condicionaram a sua dispersão pela costa sul da Ilha. A intervenção das autoridades desdobrava-se entre um apertado controlo às embarcações que saíam do porto do Funchal e o estabelecimento de um sistema de vigilância de toda a costa e ilhas Desertas. Primeiro, usou-se o barco do contrato do tabaco, depois, estabeleceu-se um serviço de barcos para rondar a costa nas datas próximas da saída de qualquer embarcação. Por outro lado, o administrador do concelho tinha ao seu dispor 12 baionetas para a ronda noturna do litoral da cidade e, em toda a costa da Ilha, contava com o apoio dos cabos da polícia e artilheiros. Em julho de 1846, a saída dum bergantim elucida-nos sobre a forma como era ativado este plano de vigilância. O administrador do concelho montava, por seis dias, um serviço de vigilância em toda a costa, contando com o apoio dos regedores, cabos da polícia e de duas embarcações de ronda. A cabal intervenção das autoridades dependia do apoio de uma embarcação de guerra, daí a solicitação, em 1847, de uma escuna de guerra, o que veio a suceder com o envio do brigue de guerra Douro. Porém, a falta de dinheiro levou à sua substituição por uma escuna, retomando, em 1853, o anterior tipo de embarcações. A permanência e a insistência da prática clandestina da emigração atestam a pouca eficácia das medidas proibitivas ou de vigilância e a grande determinação do madeirense, bem como o empenho dos engajadores e seus acólitos. Deste modo, a quebra acentuada do movimento, a partir de 1863, deverá ser apontada não como uma consequência da intervenção repressiva, mas sim como resultado da diminuição da procura de mão-de-obra nos tradicionais destinos. Daí que, em 1885, estas medidas se tornem necessárias, uma vez que a emigração clandestina começa a fazer-se notar. Fator determinante no surto da emigração clandestina foi a ação destes engajadores, os principais sustentáculos do movimento. Desde o séc. XVIII que estes atuam na Ilha, pelo que, em 1779, o governador intervém junto do corregedor do Funchal, no sentido de se estabelecer medidas punitivas, sendo preso Álvaro de Ornelas Sisneiro, um desses engajadores. Todavia, só a partir da déc. de 30 do século seguinte, a ação destes agentes se torna preocupante, uma vez que atacam em todas as frentes, com particular incidência na vertente norte. Para dissimular a sua real intervenção, surgem como adelos ou compradores de vinho. Por meio de cartazes afixados na porta das igrejas, e com a conivência de algumas figuras importantes dos sítios, conseguem aliciar muitos lavradores com a promessa de enriquecimento no Brasil, Antilhas ou Havai. O transporte era, muitas vezes, gratuito e o ilhéu deveria desembolsar apenas 5000 réis para os custos do passaporte, quando, na realidade, a lei previa 4000 réis. Nas décs. de 40 e 50, surgem documentados 15 aliciadores no Funchal, Caniço, São Vicente, Ribeira da Janela, Arco de São Jorge e Ribeira Brava. Para coibir a sua ação, o Governo Civil adotara medidas repressivas, como a prisão e o julgamento, podendo a pena ir até quatro meses de cadeia. Em 1846, por exemplo, foi preso em São Vicente Manuel José Moniz, que aliciava emigrantes para Demerara. Nesta freguesia, sabemos que atuavam outros, como João Teixeira, Jorge Oliveira e Perpétua de Jesus. A ação dos aliciadores assumia, por vezes, situações rocambolescas: em julho de 1851, João Pestana, sapateiro, movera um auto contra Francisco, o poeta, por induzir e aliciar a mulher e o filho a emigrarem para Demerara; em agosto do mesmo ano, João Vieira ignora a mulher e filhos e entrega-se às promessas aliciadoras de Demerara; em 1853, uma mãe abandona duas crianças em São Jorge, enquanto uma rapariga de Boaventura foge para o Funchal, aliciada por Joaquim A. dos Reis. A política de emigração das autoridades locais define-se por duas formas de intervenção: o combate à emigração clandestina e a ação perniciosa dos engajadores, com medidas severas aplicadas a todos os infratores. Neste caso, incluía-se, ainda, o reforço de vigilância da costa madeirense. Depois, foi a procura de soluções conjunturais, capazes de travar o movimento de fuga, com a fixação das gentes à terra ou com a tentativa de desvio para regiões do Reino e colónias em vias de colonização. Estas medidas não foram suficientes para frenar o movimento emigratório, tanto legal como clandestino. A situação da Ilha continuava a ser difícil, pelo que ninguém estava capacitado para resistir às propostas risonhas dos aliciadores. Deste modo, houve necessidade de declarar guerra a este movimento, procurando atacá-lo em todas as frentes. Desde 1758, ficara estabelecido que nenhum madeirense poderia sair da Ilha sem o respetivo passaporte. Havia uma tradição de medidas limitativas, raramente recordadas e postas em prática. A elas recorria a Câmara do Funchal, em 1847, respondendo a uma circular de José Silvestre Ribeiro. Aí se recorda que a melhor providência estava na vinculação do povo à terra que o viu nascer. Na verdade, foi com este governador que se estabeleceu uma política pragmática de combate à emigração. O seu aspeto mais interessante não é o apelo a medidas punitivas à saída dos emigrantes, como reclamava o município funchalense, mas sim a definição de medidas capazes de inibir as gentes a esta fuga desesperada. Era preciso encontrar soluções para debelar a fome e empregar o máximo de força de trabalho inativa. Neste último caso, tivemos o plano de obras de construção civil, de acordo com o novo plano viário. A ação psicológica foi outra das armas utilizadas pelo governador para convencer os madeirenses a permanecerem na Ilha. Através de manifestos, divulgados pelos administradores do concelho e afixados nas portas das igrejas ou impressos em folhas volantes nos jornais, o governador fazia uso dos seus dotes literários para apelar ao sentimento dos seus súbditos. Num manifesto distribuído em agosto de 1852 pelo Clamor Público, é bastante evidente este apelo heroico: “Moradores das freguesias rurais! Não abandonais a vossa terra! Não fujais desses campos que vossos pais regaram com o seu suor! Não deixeis o teto das vossas moradas, onde nasceram vossos filhos! Não volteis as costas à vossa risonha ilha! Lembrai-vos que perdeis Pátria! Trazei à lembrança que muitas vezes tendes recolhido abundantes frutos, em recompensa às Vossas fadigas! E que não convém ceder aos primeiros golpes de adversidade” (VIEIRA, 1993, 122). Foram poucos os que entenderam a oratória do governador, secundados pelos incessantes apelos dos administradores do concelho ou pelos vigários das freguesias no sermão dominical. Aliás, é o mesmo governador o primeiro a reconhecer a necessidade de medidas práticas e eficazes: “A fatal tendência dos madeirenses para a emigração deve ser atalhada, principalmente por meios indiretos. Se os proprietários se lembrarem um dia de ir residir entre os seus caseiros, para os guiarem com ilustrados conselhos [...] a infeliz sorte dos habitantes dos campos melhorará consideravelmente, e eles ganharão afeição à terra do seu país, repetindo indignados as pérfidas sugestões de impios e desalmados embusteiros que os arrasta hoje para países longínquos” (Ibid.). Uma das suas grandes preocupações era o combate à política de engajamento feito por estranhos. O combate aos engajadores é antigo, sendo documentado desde 1780, altura em que foi processado o comandante de um navio inglês que havia levado clandestinamente a bordo 12 portugueses. Esta política implacável contra os engajadores continuou na centúria seguinte. Assim, em 1842, face à saída massiva de madeirenses, ficou estabelecido, por portarias de 19 de agosto e de dezembro de 1842, avançar com medidas de vigilância e de penalização dos mestres de navios. Ainda de acordo com a lei de 20 de julho de 1855 e a portaria de 27 de julho de 1857, o comandante do navio era obrigado a prestar uma fiança de 400 réis e a apresentar, no prazo de seis meses, um documento das autoridades ou do cônsul do porto de destino, tendo igualmente de indicar o número de passageiros desembarcados. O passaporte era uma das exigências obrigatórias para todos os que desejassem sair, contudo, nem todos tinham direito a ele, sendo negado a menores e mancebos. Desde 25 de setembro de 1841, deveria juntar-se a este um documento de freguesia referindo que o possuidor estava livre de encargos e serviços. É dentro desta opção que deverá ser entendida a guerra, sem tréguas, das autoridades aos agentes da emigração e aos seus colaboradores, como sejam os mestres de navio e barqueiros. A saída de qualquer emigrante só podia ser feita com passaporte, concedido a todos de maior idade, ficando excluídos os de 13 a 25 anos, abrangidos pela lei do recrutamento militar, e os mancebos. Todavia, era grande a apetência para o recurso à emigração clandestina, sujeitando-se os interessados a inúmeras privações para alcançarem o barco que os levaria a promissoras terras do outro lado do Atlântico. A grande preocupação das autoridades centrava-se no combate à emigração clandestina, que se desenvolvia em duas frentes: por um lado, a condenação dos engajadores e seus colaboradores e, por outro, a definição de um plano de vigilância em toda a costa da Ilha, procurando evitar-se a fuga dos clandestinos. O grande movimento de combate ficou reservado para as décs. de 40 e 50 do séc. XIX. Os casos sucedem-se com frequência e a atenção das autoridades foi reforçada, no sentido de evitar a fuga generalizada das gentes. Durante estas duas décadas, sucederam-se medidas repressivas, bem como o aprisionamento dos intervenientes, fossem engajadores ou mestres de navios. O cerco aos navios que entravam e saíam no porto do Funchal era permanente. Assim, para além do constante patrulhamento do mar madeirense e do alerta passado a todas as freguesias costeiras, as embarcações sujeitavam-se a um controlo apertado. Deste modo, estava proibido o contacto com qualquer navio mercante ou de guerra fora do porto. Além disso, em 1879, recomendava-se às embarcações com emigrantes que saíssem do porto durante o dia. As embarcações inglesas, que tocavam, com assiduidade, o porto do Funchal com destino aos locais de emigração, eram os alvos preferenciais para a saída dos clandestinos. Por essa razão, em 1845, o governador civil deu conhecimento ao cônsul inglês de tais medidas proibitivas. Todavia, em 1848, foi apresado na Ponta do Pargo o bergantim inglês Rowlay, com 16 clandestinos a bordo, correndo, por isso, um litígio entre o Governo Civil e o Consulado. O primeiro, através da administração do concelho e com o apoio dos cabos de polícia, regedores e forças militares, estabelecera um plano de vigilância da costa e do mar circunvizinho, até às Desertas, a ser ativado no momento de embarque no Funchal, através de uma visita a bordo, sendo depois reforçado a partir do momento da saída da embarcação do porto. Entre março e julho de 1846, foram gastos 86$695 réis com os barcos de ronda da costa. Por todo o ano de 1847, os barcos mantiveram-se em ação, tendo-se afirmado como um freio à emigração clandestina, o que levou a solicitar-se a presença de nova embarcação, não se sabendo, porém, ao certo se veio a concretizar-se. Não obstante estas medidas, a emigração clandestina continuava a ser uma realidade, não se esgotando aqui as oportunidades para controlar a saída dos madeirenses. Assim, a uma propaganda aliciadora por parte dos agentes, nomeadamente os cônsules brasileiro e inglês, contrapunha-se outra de alguns jornais e das autoridades que desmitificavam as esperanças do Eldorado. O debate teve início em 1841, resultado de uma proclamação do administrador geral, Domingos Olavo Correia de Azevedo, que, a determinado passo, referia que “Demerara [...] é uma possessão inglesa, cujo clima por extremo ardente e doentio, terminara em pouco tempo, com a existência da maior parte dos emigrantes que para ali vão, e onde estes infelizes, reduzidos, durante sua vida, a uma situação desesperada, vendo-se em total desamparo, e privados de meios de regressarem, se sujeitam a uma sorte tão cruel como a que em outro tempo ali experimentavam escravos negros” (Ibid., 126). A isto juntaram-se cartas de alguns emigrantes nas quais estes testemunham a ilusão das promessas feitas, apontando as condições difíceis em que viviam os madeirenses em Demerara. A todos responde Diogo Taylor, cônsul inglês e agente da emigração para estes destinos. À campanha, associaram-se outros jornais, sendo de realçar o Echo da Revolução, o Correio da Madeira e o Progressista, onde este movimento emigratório surge sob o epíteto de “escravatura branca”. De acordo com o cônsul português em Demerara, os emigrantes “são tratados como verdadeiros escravos, e mesmo pior do que são os negros da costa d’África” (Ibid.). A resposta a esta carta não se fez esperar pela voz do cônsul inglês Diogo Taylor, que realça os mútuos benefícios da emigração. A isso adicionava-se o testemunho abonatório de um grupo de portugueses residentes na Guiana Inglesa. Em oposição a este último testemunho, há registos de cartas de Demerara a dar conta da dura realidade da vida dos emigrantes. No primeiro destino, muitos madeirenses sucumbiram com febre-amarela. Para combater esta campanha contra a emigração, os agentes do Brasil e as colónias inglesas travaram uma luta sem tréguas. Para além dos desmentidos constantes, não se cansavam de anunciar os seus projetos aliciantes, devendo-se incluir, neste caso, a propaganda feita n’O Imparcial e na Revista Semanal. A esta situação, acresciam ainda os folhetos de promoção da emigração. Na segunda metade do séc. XIX, a imprensa insular deu desmesurado realce às consequências do surto emigratório. Sob a forma de notícia ou de trabalho de opinião, esta é uma preocupação central nas suas colunas, que se situa a dois níveis distintos: de um lado, os anúncios e descrições ou testemunhos laudatórios dos principais destinos de emigração; do outro, a opinião e os testemunhos reprovativos, apelando a uma intervenção das autoridades. Adensa-se o número de colunas dos periódicos O Progressista (1852-1854) e A Ordem (1852-1856). Neste contexto, a problemática da emigração para as terras ocidentais, no período de 1833 a 1873, marcou acesa discussão pública nos jornais que então se publicavam, ou nas Cortes, pela voz dos madeirenses aí representados. O Progressista, porta-voz do Partido Regenerador, é o periódico que dedica maior atenção à problemática da emigração, considerando Demerara e o Brasil como matadouros. Para os seus editores, o importante era travar o movimento emigratório, pelo que são frequentes os trabalhos de opinião, sob pseudónimo, a apelar a uma intervenção eficaz das autoridades locais, usando como ponto de referência a intervenção de 1847. Na déc. de 50, testemunhos de vária índole atestam a ineficácia das autoridades locais em coibir essa prática de emigração clandestina, acusando quer o administrador do concelho, quer o juiz eleito da Ribeira Brava, por não corresponderem ao estipulado nas leis de 1839, 1842, 1843 e 1849. O julgamento de 29 de fevereiro de 1852 de alguns aliciadores e barqueiros, comprometidos com a emigração clandestina, é motivo de regozijo no jornal. O ano de 1854 terá sido terrível para os madeirenses, permanentemente ameaçados pelo espectro da fome, pelo que a emigração, de acordo com o mesmo periódico, não resulta de ambição, mas da miséria dos colonos e da ineficácia do Governo. Em 1855, por iniciativa de três madeirenses, a embarcação Charles Keen conduziu 300 colonos a Demerara. Entre 1841 e 1846, O Defensor faz eco da intervenção do administrador geral do Funchal, Domingos Olavo Correia Azevedo. A reação dos principais interessados neste movimento promotor da emigração não se faz esperar. Assim, intervém Diogo Taylor, agente de emigração para a Guiana Inglesa. O primeiro refere, a propósito, que “Parece que a cidade do Funchal se converteu de repente numa grande feira de escravos brancos, destinados a irem perecer no clima mais infecto dos domínios britânicos – Demerara” (Ibid., 129), alertando mais adiante que “A emigração para Demerara é uma infame lotaria cujos bilhetes contendo raríssimas sortes em preto são comprados com as vidas dos nossos concidadãos” (Ibid.). Um dos aspetos que podemos assinalar com a emigração para Demerara, certamente o principal destino nesta época, é a questão do retorno, com forte impacto na sociedade local. O madeirense retornado deste destino passava a ficar conhecido como “o demerarista”, porque emigrante em visita ou regressado de Demerara. Assim, em 1853-1854, Isabella de França registava alguns casos de sucesso nessa vaga migratória. Numa das suas visitas à freguesia do Monte, descreve, a certa altura, ter visto “uma bela casa construída por um vilão que havia emigrado para Demerara e voltou rico, como tantos: deixam a terra natal sem outra coisa mais que uma camisa e calças, e carapuça na cabeça, e descalços, e regressam com seu colete de cetim e corrente de ouro, chapéu alto e botas de verniz” (FRANÇA, 1970, 9). Também o médico inglês Dr. Dennis Embleton, que visitou e testemunhou a Madeira entre 1880 e 1881, afirma que “Many country people have been abroad, made money, and returning, have bought land and settled” (EMBLETON, 1882, 31). Por fim, registe-se que os madeirenses levaram para estas ilhas muitas das suas tradições e hábitos alimentares. O facto de a Madeira exportar cebolas, por exemplo, deve-se ao facto de estas serem solicitadas pelos madeirenses para a sua dieta alimentar, que, segundo os registos de alguns observadores ingleses, se baseava em semilhas e cebola. Em 1843 e 1845, sabemos da chegada a Demerara de 162 caixas de batata comum e de 1000 arrobas de cebola, contando-se já 100 milheiros em 1851. Esta situação persiste em 1904 e 1910, com novo envio de cebola para Barbados. Não podemos igualmente esquecer as relações que se estabeleceram em torno da cana-de-açúcar. Em 1855, a Madeira recebeu, de Antígua, 294 barris de açúcar. Demerara, em finais do séc. XIX, e Barbados, de 1902 a 1905, abastecem com melaço o engenho do Hinton, no Funchal, acompanhando as diversas variedades de cana, quando se pretende restabelecer a cultura na Ilha. Em 1847, temos a variedade Bourbon de Caiena e, em 1903, outras variedades de cana (B208 e B147) de Barbados e a cristalina do Haiti.   Alberto Vieira (atualizado a 28.09.2016)

História Económica e Social Madeira Global