imprensa católica
A Igreja Católica vê na imprensa e na sua influência sobre a formação da opinião pública um instrumento central da expressão da cultura e do pensamento, pelo que está ligada a vários títulos e movimentos editoriais. A imprensa católica acompanhou o crescimento e a especialização do sector, muito unida, no seu início, a membros da hierarquia e leigos católicos comprometidos neste campo. A atenção a este fenómeno parte dos próprios papas e já Leão XIII, em 1882, escreve a carta Cognita Nobis sobre a imprensa católica, favorecendo o aparecimento de publicistas e jornalistas católicos, nomeadamente entre os eclesiásticos. Em 1895, a Santa Sé realizou um inquérito em vários países sobre a situação do jornalismo católico em cada um deles. O mesmo aconteceu em Portugal, num estudo do militante católico Manuel Frutuoso da Fonseca que concluiu que, entre 1840 e 1895, foram publicados 66 jornais católicos, embora algumas destas publicações tenham tido um número pouco significativo de exemplares (FONTES, 2002). Nos finais do séc. XIX desenvolveu-se o chamado apostolado da “boa imprensa", com destaque para o Congresso dos Escritores e Oradores Católicos (Porto, 1871-1872) e o Congresso dos Jornalistas Católicos Portugueses (Lisboa, 1905), realizado por proposta de Abúndio da Silva, iniciativa que estaria na origem da criação de comissões diocesanas da Liga da Boa Imprensa. A primeira exposição da imprensa católica, realizada em dezembro de 1943, revelava a existência de mais de uma centena de títulos, incluindo entre os quotidianos O Jornal do Funchal. A tipologia da altura dividia as publicações em imprensa católica “oficial”, “oficiosa” e “independente”. O decreto do Concílio Vaticano II sobre os meios de comunicação social, Inter Mirifica, publicado em 1966 pelo papa Paulo VI, retomava as preocupações com a promoção da “boa imprensa”, com a intenção de formar e promover uma opinião pública em consonância com a doutrina e os princípios católicos, para conseguir um “critério cristão” sobre todos os acontecimentos. A imprensa na Madeira e o seu contexto político O surgimento da imprensa na Madeira está intimamente associado à revolução liberal de 1820, que veio colocar em causa o primado ideológico e político do catolicismo, situação que se viria a agravar com a expropriação e expulsão das ordens religiosas, e com uma crescente intromissão reguladora do poder político na esfera religiosa. O processo de secularização laicizante das sociedades liberais gerou novos protagonismos e novas autonomias, o que levou a Igreja Católica a servir-se da imprensa para a sua afirmação e expressão doutrinal. O advento do liberalismo representou na Madeira, como em todo o reino português, um momento particularmente delicado para a Igreja Católica, a qual procurou manter-se alerta, reagindo à dinâmica efetiva da maçonaria, que começou a tornar-se ativa e congregadora de muitas personalidades notáveis. Além disso, o ideário católico foi também colocado em causa pelo proselitismo protestante, num choque que acabaria num raro episódio persecutório. Esta dinâmica é retratada na imprensa católica e acabaria por servir de rampa de lançamento para o séc. XX, que levou ao arquipélago movimentos com novas estratégias para envolver mais os leigos e aproximar a Igreja Católica das populações. Face à grande taxa de analfabetismo, a imprensa periódica chegava inicialmente a um grupo muito reduzido da sociedade madeirense, sobretudo no Funchal (além desta cidade, apenas se conhece a imprensa na Ponta de Sol e Santa Cruz), mas nem por isso deixou de ser um meio de divulgação cultural e de combate político. Neste contexto, a 2 de julho de 1821, Nicolau Caetano de Bettencourt Pita iniciava a publicação de O Patriota Funchalense, o primeiro periódico que apareceu na Madeira, com edição bissemanal. No total foram publicados 214 números. Esta publicação empenhou-se na defesa do evento revolucionário de 1820 e permite fazer uma leitura do papel assumido por alguns membros do clero da Diocese do Funchal face à mudança política. O jornal mostra, de forma geral, opiniões favoráveis à aceitação da revolução liberal, elogiando a abertura e a colaboração ativa de vários clérigos (alguns dos quais ali escreviam) na promoção das vantagens da nova ordem nacional. O redator de O Patriota Funchalense elenca os párocos de Santana, Estreito de Camara de Lobos, Campanário, Monte, São Jorge, Ponta Delgada, Machico e Gaula, sublinhando as virtudes e ideias liberais destes e outros membros do clero. Noutro número, tecem-se louvores ao vigário da Ribeira Brava, P.e Januário Vicente Camacho, que promoveu na sua paróquia a aclamação da Constituição. Outra figura particularmente referida é a do P.e João Manuel de Freitas Branco, vigário de São Jorge que foi eleito deputado pela Madeira às Cortes de 1822. No mesmo concelho, o Cón. Jerónimo Álvares da Silva Pinheiro, vigário de Santana, abraçou com entusiasmo o movimento liberal, tornando-se um grande “propagandista revolucionário”. No seu Elucidário Madeirense, Fernando Augusto da Silva associa esta atividade à maçonaria, acusando o Cón. Silva Pinheiro de ter pertencido às sociedades secretas a quem atribui a revolução liberal, posição que justifica com os artigos que o sacerdote escrevia no Patriota Funchalense, sob o pseudónimo de “Estrela do Norte”. A figura do “cura constitucional” era apresentada no jornal O Patriota… como a do verdadeiro homem da Igreja ao serviço da causa da nação, por oposição aos que se “atrevem” a não aceitar a nova ordem política. Em 1823, a 17 de fevereiro, o P.e João Crisóstomo Spínola de Macedo, suplente nas eleições para as Cortes Constituintes, lança o segundo jornal publicado no Funchal, que tinha o título de O Pregador Imparcial da Verdade, da Justiça e da Lei, e que foi publicado durante 34 números. O primeiro exemplar publica uma mensagem relativa às circunstâncias “terribilíssimas” que derivavam do que o sacerdote classificava como “desastrosos” acontecimentos políticos, numa crítica que se prolonga pelas quatro páginas do periódico (O Pregador Imparcial, Funchal, 17 fev. 1823, 1). A lei de censura, estabelecida por decreto de 12 de junho de 1823, acabaria por silenciar a voz dos jornais que então se publicavam: O Patriota Funchalense, O Pregador Imparcial da Verdade, A Atalaia da Liberdade e O Regedor. A partir daqui, verificou-se um período de interregno na imprensa, que só retornou em 1827, com O Funchalense. Joaquim Azevedo e José Ramos publicaram em 1991 um inventário da imprensa católica publicada entre 1820 e 1910. Em relação ao Funchal, além do referido jornal do P.e João Crisóstomo Spínola de Macedo, encontramos em 1858 o Almanach Ecclesiasticum, dirigido pelo P.e António Ribeiro de Vasconcelos. Esta publicação era impressa em Coimbra, mas destinava-se à Diocese do Funchal. No mesmo ano, era publicado A Verdade, órgão da Associação Católica. Em 1875 seria publicado um jornal católico com o mesmo título, dirigido por João Batista de Freitas Leal. Entre 1866 e 1867 são publicados 13 números do Comércio do Funchal, sob a direção do Cón. Abel Martins Ferreira. Este jornal reaparece em 15 de maio de 1910 e é suspenso em 15 de agosto do mesmo ano. O Cón. Alberto César de Oliveira dirige, entre 1872 e 1874, A Lâmpada, publicação de comentário à atualidade política e diocesana que viu serem publicados 51 números. Inocêncio Camacho dirigiu durante 44 números, entre 1879 e 1880, o Religião e Progresso, que se apresentava na sua capa como jornal “religioso, literário, político e científico”, no qual se publicaram, por exemplo, explicações catequéticas sobre figuras bíblicas. Em 1885 era publicado no Funchal O Domingo Catholico, periódico mensal da Obra de Santificação Do Domingo, instituição católica presente em Portugal e no Brasil. O Cón. António Vicente Varela dirigiu durante 191 números (1889-1891) a publicação O Látego, folha política, noticiosa e literária. A Quinzena Religiosa da Ilha da Madeira, órgão da Liga Dominical e da Obra Salesiana dirigido por João Macedo, é publicada a partir de 1900. Em 1911 passa a ser também o órgão da Juventude Católica da Madeira. O órgão oficial da Diocese, Quinzena Religiosa (1901-1912, 254 números), tem como diretor o Cón. António Manuel Ribeiro, que viria a estar na origem do Jornal da Madeira (JM). Foi suspenso em 15 de Setembro de 1910, reiniciando-se a sua publicação em Fevereiro de 1911. Entre 1901 e 1902 foram publicados no Funchal 25 números de A Cruz. Os seminaristas da Diocese editaram, entre 1907 e 1908, a revista de formação católica e social A Esperança. A Ponta do Sol viu nascer, em 1909, o Brado d' Oeste, uma publicação com direção e propriedade de Clemente de Freitas da Silva que se prolongou durante 858 números, até 1918. A partir de 1917 teve como diretor o P.e João Vieira Caetano. Origem do Diário de Notícias e do Jornal da Madeira Em 1876 o Cón. Alberto César de Oliveira surge com o primeiro jornal diário da Madeira, o Diário de Notícias (DN); 30 anos depois aparece o Jornal, fundado em 1906 pelo Cón. António Manuel Pereira Ribeiro, que desde 1932 passou a chamar-se Jornal da Madeira. As duas publicações viriam a tornar-se as principais referências da imprensa escrita na RAM nas décadas seguintes. A primeira edição do DN do Funchal surgiu a 11 de outubro de 1876, dando origem ao jornal diário mais antigo da Madeira. Na redação e direção do DN, o Cón. Alfredo de Oliveira foi coadjuvado pelo escritor madeirense João de Nóbrega Soares No dia 8 de fevereiro de 1882, seis anos após a primeira edição, Alexandre Fernandes Camacho Júnior, que era proprietário do Diário da Manhã, suspendeu o mesmo e adquiriu o DN, que voltou a mudar de proprietário dois anos depois, ao passar para as mãos de Tristão Câmara. Nos finais do ano 1896, o DN teve a sua sede no centro do Funchal concentrando lá a sua redação, administração e tipografia. Por ocasião da implantação da República, em outubro de 1910, o matutino madeirense pertencia a João Martins, proprietário e editor. Em 1911, o jornal passa a incluir um novo secretário da redação e editor, Francisco da Conceição Rodrigues, um defensor dos valores democráticos, que veio a ocupar a direção do DN,. Em março de 1926, a comissão executiva da Câmara Municipal do Funchal homenageou o DN dando esse mesmo nome a uma das ruas mais movimentadas do Funchal, denominação que se manteve até 1935. Em 1927, foi a vez de Feliciano Soares assumir a direção do DN, seguindo-se o jovem advogado Alberto de Araújo, que se manteve no cargo até maio de 1974. Entretanto, o jornal tinha sido adquirido pela família Blandy, de origem britânica e ligada ao comércio do vinho na Ilha. Armindo Abreu sucedeu a Alberto de Araújo na direção, mas ali permaneceu apenas um mês, tendo sido substituído pelo sociólogo José Manuel Paquete de Oliveira, que tinha sido chefe de redação do JM nos finais da década de 50 (antes de ser ordenado padre), sob a direção do Cón. Agostinho Gonçalves Gomes, então deputado na Assembleia Nacional. Na génese deste periódico encontra-se o Jornal, com o subtítulo “Diário da Tarde”, que veio a público a 27 de março de 1906 pela mão do Cón. António Manuel Pereira Ribeiro; em 22 de novembro de 1923, passou a ser publicado com o título Jornal da Madeira, mas a 1 de janeiro de 1927 foi novamente publicado o n.º 1 de O Jornal, que a 6 de maio de 1931 passou a ter o subtítulo “Diário Regionalista”. No dia 1 de maio de 1932 – data que é assinalada como a de fundação do periódico – foi adquirido pela Diocese do Funchal e continuou a publicar-se com o título O Jornal e o subtítulo “Diário da Manhã”, iniciando-se a sua Série II. A 1 de maio de 1952 voltou a ser publicado com o título Jornal da Madeira, mantendo-se a mesma numeração. O JM apresenta-se como um órgão de comunicação social de inspiração cristã, na tradição do Jornal. República e Igreja Como aconteceu na revolução liberal de 1820, a nova situação política provocada pela implantação da República, a 5 de outubro de 1910, encontrou forte repercussão na imprensa católica. A reação partiu do próprio episcopado, com uma pastoral assinada por todos os bispos residenciais do continente e pelo coadjutor de Viseu, com data de 24 de dezembro de 1910. A Igreja mostrava a preocupação de proteger a imprensa católica e pedia aos jornalistas que deixassem de lado quaisquer polémicas “irritantes”. Na Madeira, em 1912 começa a ser publicado o Boletim Eclesiástico da Madeira, dirigido pelo Cón. António Manuel Pereira Ribeiro, que viria a ser bispo do Funchal entre 1915 e 1957, depois de ter sido vigário capitular durante três anos. Numa circular de 23 de abril de 1917, D. António Manuel Pereira Ribeiro critica as notícias e informações tendenciosas de quem acusa de promover o “vírus do erro, da desgraça, da irreligião, da licenciosidade e do impudor” (Boletim Eclesiástico da Madeira, Funchal, maio de 1917, 45). Neste ponto, a Madeira seguia o panorama nacional, com novas lideranças eclesiásticas: em diversas dioceses, sobretudo a partir de 1914, assistiu-se ao surgimento de boletins diocesanos que espelhavam de forma orgânica a ação mais autónoma dos bispos face ao regime. O advento da República, com o seu anticlericalismo radical inicial e o regime de separação Igreja/Estado, veio a formar uma elite de militantes católicos no Funchal, com destaque para Juvenal Henriques de Araújo, Antonino Pestana e Manuel Pestana Reis. Surgiram associações caritativas e de ensino, como a Associação Protetora da Mocidade, com a Escola de Artes e Ofícios, fundada em 1921 pelo P.e Laurindo Pestana, e entregue, em 1925, aos Padres Salesianos, e a Liga de Ação Social Cristã (1922), a que se somou a chegada de novas congregações religiosas, como os Irmãos de S. João de Deus (1922) e as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração (1925). O aumento da formação e militância, com os Círculos Católicos e a Juventude Católica, ajuda a um ressurgimento da imprensa católica, com destaque para a revista Esperança (1919-1938) e o jornal Correio da Madeira (1922-1932), onde foi redator, entre outros, o P.e Eduardo Clemente Nunes Pereira. A tentativa falhada de ressuscitar o combate anticlerical inicial, materializada nos jornais A Luz (1919-1922), O Vigilante (1918-1920) e A Razão (1920-1921), não conseguiu impedir a instalação de congregações religiosas, sinal de um bom entendimento entre as autoridades civis e religiosas. A hierarquia católica acabou por acatar o novo regime e colaborar com as instituições políticas vigentes. A 22 de janeiro de 1917, uma pastoral dos bispos apelava à organização dos católicos e à apresentação de candidatos próprios nas eleições para deputados, atitude que pode ser vista como um novo paradigma de atuação da Igreja, que levou ao reforço da sua presença na sociedade portuguesa de então. Ideologicamente, é possível encontrar nalguma imprensa católica da época o legado filosófico e político do tradicionalismo legitimista de um grupo de homens, reunidos à volta da Nação Portuguesa (1914-1926) e do diário A Monarquia (1917-1925), que via na República um mal anunciado desde o liberalismo. Nascia, então, o Integralismo Lusitano, movimento de doutrina e de ação política, inspirado em França, com uma aproximação doutrinária e ideológica entre legitimistas e integralistas, apesar da dificuldade de entendimento no campo monárquico em geral em relação à questão dinástica. A posição da Igreja e dos monárquicos viu-se reforçada pela chegada à Madeira, nos finais de 1921, do ex-imperador Carlos de Áustria, exilado com a esposa, Zita de Bragança Bourbon Parma, neta do rei D. Miguel, e os sete filhos de ambos. O ex-imperador era profundamente católico, tendo escolhido como capelão pessoal o Cón. Homem de Gouveia, visitando as igrejas da cidade e passeando sozinho com a mulher na baixa, tendo recolhido enorme simpatia durante a sua permanência na Ilha. A Igreja na Madeira, no entanto, procurava distanciar-se das questões dos monárquicos e as posições mais radicais dos integralistas eram rejeitadas pela maioria dos elementos do Centro Católico, que se apresentavam, através do Correio da Madeira, a defender independência na política ativa, como propunham as pastorais dos bispos portugueses. A polémica teve como um dos seus protagonistas Alfredo de Freitas Branco, o visconde do Porto da Cruz, o qual surge em vários periódicos a atacar os católicos que se aliavam à República contra as forças monárquicas. O discurso republicano nestes anos passou, essencialmente, pelo DN do Funchal, cujo chefe de redação era Domingos Reis Costa, presidente da comissão executiva da Junta Geral e que seria deputado em 1925. Ao contrário do que aconteceia no JM, as notícias são, essencialmente, vinculadas a partir de jornais de Portugal continental. Em 1921 começou a ser publicado o boletim da Diocese do Funchal, Vida Diocesana, com direção do P.e Manuel Gomes Jardim. Autonomia O discurso ligado ao integralismo lusitano, por sua vez, foi veiculado no arquipélago, essencialmente, pelo JM, propriedade da Gráfica Madeirense Lda., que tinha como principal acionista o diretor do jornal, Luís Vieira de Castro, assumidamente monárquico, que chegou a líder regional desta causa. No editorial do primeiro número de 1923, abordava-se o tema da descentralização, criticando-se o liberalismo que eliminara as atribuições conferidas pelos velhos forais. O JM procura assumir nesta época um estilo mais claramente de imprensa específica regional, pretendendo libertar-se do noticiário nacional. A esta atenção pela atualidade local somou-se a promoção de uma nova orientação política, nomeadamente a luta regionalista. O periódico tem assim uma orientação ideológica e formativa, que o leva a dedicar mais espaço e atenção aos problemas regionais. O movimento regionalista não se centrou apenas no combate pela autonomia, contando com personalidades que se evidenciaram no estudo e na promoção da história e da cultura madeirenses. Neste contexto, destacam-se as comemorações do V Centenário do Descobrimento da Madeira, que decorreram nos anos de 1922 e 1923, e o projeto de publicação do Elucidário Madeirense, de Fernando Augusto da Silva (em colaboração com Carlos Azevedo de Meneses), uma das personalidades ligadas à chamada tertúlia “O Cenáculo”, que retomava alguns textos publicados em vários jornais do Funchal como o Heraldo da Madeira, o Diário da Madeira e o DN. Fernando Augusto da Silva também coordenou a publicação comemorativa do centenário da Comissão de Propaganda e Publicidade (1922). Durante a República existiram condições para a proliferação dos periódicos, que assumiram um destacado papel no debate público e na promoção da cultura madeirense, como veículo de propaganda política e cultural. O regime de ditadura imposto pelos militares em 1926 introduziu a censura, conduzindo a uma perda de influência da imprensa, em particular a que estava ligada a sectores da oposição, como o trimensário humorístico Re-nhau-nhau, que se publicou de 1929 a 1977, e, a partir da década de 1960, o semanário Comércio do Funchal. Um decreto do bispo D. David Sousa, de 24 de novembro 1960 e que entrou em vigor a 1 de janeiro de 1961, aumentou significativamente o número de paróquias da Diocese do Funchal, criando 50 que foram desmembradas das 52 já existentes e ficando a Diocese com 102 paróquias. Esta decisão repercutiu-se no número de boletins locais. D. João Saraiva, seu sucessor, teria de enfrentar queixas e ações da Censura por causa da orientação do JM. No pós-25 de Abril, ganha relevo a relação entre o futuro presidente regional, Alberto João Jardim, designado como diretor do JM por D. Francisco Santana (1924-1982), bispo do Funchal entre 1974 e 1982, e este prelado, que centralizou a resistência ao gonçalvismo na Madeira. As mudanças políticas que se seguiram ao final do Estado Novo começaram a ser mais visíveis a partir das comemorações do 1.º de Maio, uma manifestação preparada pelo chamado Grupo do Comércio do Funchal e pelo grupo dos “padres do Pombal”, sacerdotes considerados progressistas, com ligações ao movimento de operários católicos, que divulgavam as suas opiniões em vários artigos. O JM, que passou a ser propriedade do Governo Regional, não deixou de divulgar os valores cristãos e contou, desde então, com uma tradição de textos de opinião e documentos oficiais assinados pelos vários bispos diocesanos, com uma atividade assinalável de D. Teodoro de Faria, e a direção, entre 1978 e 2003, do Cón. Tomé Velosa, que faleceu em 2010. Ao referido bispo deve-se a aposta num serviço diocesano próprio para as Comunicações Sociais e a criação de umde pastoral, que viu a luz do dia a 26 de março de 1989. Enviado gratuitamente para todas as paróquias, casas religiosas e movimentos apostólicos, o Boletim assumia-se como um órgão de informação sobre a vida da Diocese. Em nota pastoral de 1996, o prelado diocesano sublinhava que a evangelização não dispensa os meios modernos de comunicação social. João Paulo II, o primeiro papa a visitar o arquipélago, a 12 de maio de 1991, recordou o 35.º Dia Mundial das Comunicações Sociais, que se assinalava nessa data, apelando a um sentido de responsabilidade moral por parte dos profissionais do sector. D. António Carrilho, 32.º bispo do Funchal, sublinharia que a ação evangelizadora da Igreja se tornava mais visível com os meios de comunicação social, tendo promovido a criação de um Gabinete de Informação, uma preocupação que se estendeu ao renovado site da Diocese: www.diocesedofunchal.pt (acedido a 28 out. 2015). Meios católicos A análise dos dois últimos séculos revela a importância que a imprensa católica veio a ocupar na relação da Igreja com o todo da sociedade e na definição do seu papel no debate público; esta intervenção manifestou-se ao longo das sucessivas revoluções e transformações políticas que agitaram o universo católico, o seu sentido de crença e o exercício da cidadania, numa dinâmica que acompanhou o alargamento da rede de títulos a nível da informação geral, da propaganda religiosa e da doutrinação social, num inédito horizonte de laicidade e pluralismo. A este novo relacionamento dos católicos com a sociedade madeirense correspondeu a utilização de meios modernos, da imprensa às tecnologias da comunicação digital. A necessidade de promover a “boa imprensa” levou a um empenhamento direto de várias figuras eclesiásticas, a começar pelo próprio episcopado, nesta tarefa, com a criação de órgãos de comunicação próprios de dimensão regional, e de uma rede de boletins paroquiais que fortaleceu a dinâmica de reaproximação dos fiéis. Na passagem para o séc. XXI, a presença da Igreja Católica na comunicação social fez-se cada vez menos através de meios próprios. O anuário católico da Conferência Episcopal Portuguesa registava em 2014 a existência de 513 meios de comunicação ligados à Igreja (jornais, revistas, boletins, rádios, editoras, tipografias, livrarias), dos quais três na Diocese do Funchal: - O Posto Emissor do Funchal, oficialmente inaugurado a 28 de maio de 1948. É uma sociedade por quotas, pertencendo a maioria do capital social à Diocese do Funchal, que assume no seu estatuto editorial o quadro de valores e princípios da doutrina cristã. - A Rádio Jornal da Madeira. Nascida em 1989, em complementaridade com a atividade do próprio JM, apresenta-se como um órgão de comunicação social de perspetiva cristã. - A Paulinas Livraria do Funchal. Com o carisma de evangelizar através dos meios de comunicação mais modernos, na linha do seu fundador, o Beato Tiago Alberione, as Irmãs Paulinas instalam-se no Funchal em 1972, criando no ano seguinte a Livraria Paulinas. Este estabelecimento nasceu e desenvolveu-se como um polo de difusão da edição religiosa (livros e produtos multimédia) na Madeira. As Paulinas marcaram também presença na rádio, criando programas semanais de natureza religiosa: “A verdade vos libertará”, começado a emitir em 1974 na Rádio Madeira; “Ama e Viverás” inaugurado no Posto Emissor do Funchal em 1978; e “Amanhã é Festa” iniciado em 1981 na Antena 1 Madeira. - O suplemento Pedras Vivas (JM), com 12 páginas, publicado ao domingo, que é o principal espaço dedicado à Igreja Católica na imprensa madeirense, num jornal detido na quase totalidade (99,98 %), pelo Governo Regional da Madeira. A 27 de agosto de 2015, a Diocese do Funchal anunciava, em comunicado divulgado através da sua página na Internet, o final da sua participação na empresa Jornal da Madeira, Lda., em ordem à sua privatização, reservando para si o título original de Jornal da Madeira e do suplemento semanal Pedras Vivas. A 1 de setembro de 2015 era publicado o primeiro número do novo matutino regional JM, já sem a participação da Diocese do Funchal. O periódico apresentou-se como “herdeiro de um legado histórico e civilizacional de tradição judaico-cristã que moldou o povo madeirense” (“Estatuto editorial”, JM, Funchal, 01 set. 2015, 1). Imprensa regional Alexandre Manuel, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa, apresentou em 2013 um trabalho sobre a imprensa regional da Igreja Católica em Portugal, revelando que os seus cerca de 800 títulos são lidos por cerca de metade da população portuguesa com mais de 15 anos. O estudo confirma que o caminho da imprensa católica em Portugal no séc. XXI foi cada vez mais de aposta na proximidade e na regionalização, face ao fracasso de projetos nacionais, em particular de um jornal de referência – a última experiência aconteceu, por iniciativa do Patriarcado de Lisboa, com o semanário Nova Terra, em 1975. O percurso da imprensa católica na Madeira mostra, a este respeito, que a questão da presença da Igreja no debate público não se limita ao facto de dispor de “púlpitos” próprios para transmitir a sua mensagem, mas se reflete na aposta por estar representada nos locais onde se faz opinião. O panorama geral da imprensa na Região foi traçado pela ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação Social –, a qual contabilizava, a 7 de dezembro de 2009, um total de 728 jornais locais e regionais, dos quais apenas 11 (1,5 % do total) na Madeira. Imprensa missionária Em 2014, a Associação de Imprensa de Inspiração Cristã tinha como único associado registado da Diocese do Funchal a revista trimestral O Reino do Coração de Jesus, fundada pelos religiosos dehonianos em 1958. Aos católicos madeirenses, no entanto, chegam várias publicações das ordens e congregações religiosas no país, como a Boa Nova, a revista missionária mais antiga em Portugal, mensalmente publicada desde 1924 pela Sociedade Portuguesa das Missões Católicas Ultramarinas; Missões Franciscanas, mensário da Ordem Franciscana publicado desde 1937; Acção Missionária, jornal lançado em 1940 pela Congregação do Espírito Santo; Fátima Missionária, revista publicada desde 1955 pelo Instituto Missionário da Consolata; Além-Mar, revista publicada desde 1956 pelos Missionários Combonianos que, desde 1966, editam também uma revista para o público juvenil, Audácia. Além destas publicações missionárias, cerca de centena e meia de congregações e institutos de vida consagrada masculinos e femininos, bem como as ordens terceiras, possuem, por norma, publicações informativas ou de carácter espiritual e formativo, com títulos de grande circulação como a revista mensal Família Cristã, publicada em Portugal desde 1954 pelos Paulistas. Octávio Carmo
israel, menasseh ben
Rabino, impressor, diplomata e autor de um relevante conjunto de obras em torno da exegese dos textos sagrados hebraicos, Menasseh Ben Israel, nascido Manoel Dias Soeiro, em 1604, descendia de uma família de cristãos-novos portugueses. O seu pai, Joseph Ben Israel, converso ao judaísmo uma vez estabelecida a família em Amesterdão, foi por várias vezes preso pelo Tribunal do Santo Ofício. Juntamente com a mulher, Rachel Soeiro, Joseph terá conseguido escapar secretamente às malhas inquisitoriais, viajando de Portugal até à cidade portuária francesa de La Rochelle, de onde, na companhia dos filhos, partiu para a Holanda. As origens portuguesas da família parecem, pois, indiscutíveis. Porém, diferentes fontes, da autoria de Menasseh, dão conta de uma divergência quanto ao seu local de nascimento. Com efeito, no seu registo de casamento, datado de 1623, Menasseh Ben Israel declarava que procedia de La Rochelle. Já em Orígen de los Americanos […] (1650), chama “pátria” a Lisboa (ISRAEL, 1881, 97). Cecil Roth, divulgador da hipótese de que o autor terá nascido na ilha da Madeira, na biografia que lhe dedica, A Life of Menasseh Ben Israel: Rabbi, Printer, and Diplomat (1945), chama a atenção para o facto de Ben Israel, na versão hebraica da referida obra, se referir a Lisboa como cidade-natal do seu pai, em passagem correspondente. Além disso, um documento da Inquisição publicado por Maximiano Lemos, em 1909, apresenta uma chave quanto à sua proveniência madeirense. Atente-se, pois, no depoimento de Duarte Guterres Estoque, datado de 14 de novembro de 1639, presente no documento em causa, o Caderno 19 da Inquisição de Lisboa, fólio 21: “Disse mais que haveria oito ou nove anos pouco mais ou menos na dita cidade de Amesterdão na sinagoga dos judeus viu ele denunciante a um cristão-novo o qual estava na dita sinagoga com uma toalha branca sinal com que costumam estar os judeus na dita sinagoga e que falando com o dito judeu português lhe disse que se chamava Manoel Dias Soeiro e que era natural da ilha da Madeira e depois soubera de outras pessoas que o dito cristão-novo se chamava do dito nome e que era natural da dita ilha, o qual em hebraico se chamava na dita cidade Menasseh Ben Israel e que era público rabino e professor da lei de Moisés o qual disse a ele declarante que tinha mandados dois caixões de livros que tinha composto a Espanha um caixão e ao Brasil outro e que o livro se intitula Reconciliações de la Sagrada Escritura” (LEMOS, 1909, 361). Partindo desta referência, Roth delineia o percurso da família Dias-Soeiro da seguinte forma: partem de Lisboa para se refugiarem na Madeira e, posteriormente, deslocam-se a La Rochelle, onde se estabelecem temporariamente, passando a Amesterdão ainda durante a infância de Menasseh Ben Israel, que, por essa altura, tinha dois irmãos, Efraim e Ester. Reunindo todo um conjunto de figuras eminentes das letras, da política e da finança, a recém-formada comunidade judaica de Amesterdão compõe-se, na sua génese, por homens e mulheres de origem portuguesa e espanhola nascidos e criados como cristãos. Com um passado marcado pelo cativeiro da Inquisição, muitos encontram na Holanda o ambiente de tolerância propício ao refúgio. O português e o espanhol são usados não só em reuniões de negócios, mas também nos exercícios religiosos. Dentre os instrutores de Menasseh Ben Israel, destaca-se um importante nome da filosofia e exegese talmúdica, rabi Isaac Uziel, nascido em Fez. Com apenas 13 anos, Menasseh torna-se membro da Santa Irmandade de Talmud Torah, fundada em 1616. Neste contexto, tem as suas primeiras experiências como orador e começa a desenhar-se a sua carreira como escritor, compondo, para começar, uma gramática de hebraico (Safah Berurah). Cedo vê reconhecidos os seus talentos de estudioso. Assim, após a morte de Uziel, sucede-lhe na qualidade de professor de Talmud e vem também a ser ordenado rabino, ainda antes de completar 20 anos. Pouco depois, casa-se com Rachel Abrabanel, cuja família procedia de Guimarães e reclamava parentesco com D. Isaac Abrabanel, filósofo e homem de finanças de D. João II e dos Reis Católicos, pai de Leão Hebreu, autor dos Diálogos de Amor (1535). Menasseh e Rachel tiveram três filhos, Gracia, Joseph e Samuel. Com a finalidade de prover ao sustento da família, estabelece-se como impressor, a partir de 1626. Manterá esta atividade durante cerca de 30 anos. Do seu prelo saem diferentes obras judaicas, desde livros de orações a textos clássicos, como a Mishna. Entre outros títulos, publicou o clássico de filosofia Emunot Vede’ot, de Saadia Gaon, bem como o tratado messiânico do já referido Isaac Abrabanel, Ma’yene ha-Yeshu’ah. A partir da déc. de 30 do séc. XVII, assumem relevo, por outro lado, as publicações originais da autoria de Menasseh Ben Israel. Uma das suas mais significativas obras intitula-se Conciliador, o de la Conveniencia de los Lugares de la S. Escriptura, que Repugnantes entre si Parecen. Com vários tomos, publicados entre 1632-1651, tal como o título indica, neste texto o autor pretendeu efetivar uma conciliação entre passagens do Velho Testamento aparentemente divergentes. Graças à ilustração do escolasticismo judaico junto dos intelectuais não-judeus, levada a cabo em Conciliador […], Ben Israel ficou célebre no círculo de intelectuais da Holanda e dos países vizinhos, cuja proximidade vem a desempenhar um importante papel na sua vida. Estabelece, pois, a partir daqui, relações de amizade com vários teólogos e filósofos cristãos, como Gerhard Johann Vossius, Huig Grotius, Samuel Bochart e Simon Bischop, e igualmente, entre outros, com o místico da Silésia, Abraham von Frankenburg, discípulo de Jacob Boehme. Aquele terá dirigido correspondência a Menasseh, na déc. de 40, evidenciando a sua apreensão em torno da vinda do Messias, expectativa que estava na ordem das preocupações dos intelectuais contemporâneos. Na esfera portuguesa, são assinaláveis as relações entre Israel e o P.e António Vieira, em 1646 e 1647, aquando das missões diplomáticas do jesuíta ao Noroeste Europeu, sob a égide de D. João IV. Vieira teve um contacto próximo com os refugiados marranos e chegou a assistir a um sermão pregado por Israel. A convergência entre o pensamento de um e outro autor foi já alvo de abordagem por parte de vários estudiosos. Christopher Lund refere o espírito de conciliação, similar ao de Conciliador […], que perpassa obras como História do Futuro e Chave dos Profetas, de António Vieira. Aponta também, no seio dos intercâmbios teológicos judeu-cristãos na Holanda e em Inglaterra, que o pensamento de Menasseh e de Vieira se terá tornado cada vez mais estreitamente sinónimo no que toca à iminência, urgência e vantagem de uma reconciliação entre judeus e cristãos num Quinto Império, expectativa que preside à elaboração de dois significativos textos de ambos: Esperança de Israel (1650) e Esperanças de Portugal (1659), respetivamente. Na déc. de 40, Menasseh torna-se professor da academia Talmud Torah, onde todas as crianças da comunidade recebiam instrução. Assim, não parece destituída de sentido a hipótese de ter sido mestre de Bento de Espinosa, outra figura célebre da comunidade sefardita de Amesterdão. Sobre a atividade de estudioso de Menasseh Ben Israel, Cecil Roth põe em relevo não só o facto de ter contribuído para dignificar e popularizar os estudos judaicos entre os não-judeus, mas também o de a exposição sistematizada da teologia judaica por si levada a efeito ter servido de base ao movimento de recuperação e estudo crítico da literatura, cultura e tradições judaicas que tem lugar no séc. XIX, o chamado Jüdische Wissenchaft. É sobretudo no plano da erudição e da antologia que a obra do autor assume relevo, de acordo com Roth. Com efeito, sobressaem, da sua pena, publicações como Humas de Parasioth y Aftharoth (1627), tradução para o espanhol dos textos do Pentateuco e dos Profetas, e Thesouro dos Dinim (1645-1647), em português, que se apresenta como uma sistematização da lei judaica para orientação dos marranos recém-conversos ao judaísmo, passando por itens de observação religiosa, como a oração, os deveres morais, jejuns e festas e preparação da comida. Ainda na déc. de 30, vêm a lume De la Ressureccion de los Muertos, Libros III (1636) e De Termino Vitae (1639). No primeiro, como se indica no título em frontispício, o autor teve o propósito de provar a imortalidade da alma e a ressurreição dos mortos. No segundo, faz uma apologia do livre-arbítrio face à ideia de predestinação, operando, em suma, uma afirmação da liberdade humana perante o seu destino, noções que assumem centralidade no seio do debate teológico nas Províncias Unidas, durante o séc. XVII. Já em Piedra Gloriosa o de la Estatua de Nebuchadnesar (1655), a sua última obra, o autor oferece uma interpretação do sonho de Nabucodonosor, segundo o comentário do profeta Daniel. Sustenta, aqui, a vinda do Messias (a “pedra gloriosa”) e a eminência do seu império temporal sobre as restantes quatro monarquias assinaladas (babilónios, persas, gregos e romanos), concluindo com uma exaltação da eternidade e perdurabilidade do povo de Israel (ISRAEL, 1655, 259). Trata-se de uma obra para a qual o pintor Rembrandt, amigo e retratista de Ben Israel, realizou quatro estampas. Antes ainda, em 1650, publicara a já referida Orígen de los Americanos, Hlarsy Hvqm, esto es Esperanza de Israel, obra igualmente relevante do ponto de vista de uma parénese do retorno do povo israelita à Terra Santa, inerente ao messianismo judaico. Neste texto, partindo do relato de um viajante ao continente americano – Antonio de Montezinos, ou Aharon Levi, que chega a Amesterdão em 1644 –, Menasseh Ben Israel procura demonstrar a migração de parte das 10 tribos de Israel para a América. Este judeu de religião, e português de nação, também ele, em tempos, preso pela Inquisição, alegava (e jurou perante o tribunal rabínico) ter contactado com povos, na região das Índias Ocidentais, cujos hábitos e práticas se assemelhavam muito às do judaísmo. Tomando a sua narrativa como credível, Ben Israel procura conferir fundamento ao relato de Montezinos através da citação de autores judeus (Abraham Aben Ezra, Levi Ben Guerson, etc.) e não-judeus (Platão, Baronio, Beroso, Arias Montano, Malvenda, etc.). As conclusões finais do livro traduzem de forma clara a perspetiva defendida pelo autor: as Índias Ocidentais foram antigamente habitadas por descendentes da casa de Israel, que desde a Tartária passaram pelo estreito de Anian, ou da China, e ainda vivem ocultos em partes desconhecidas da América, preservando a sua religião. Dispersadas as 10 tribos por várias partes do mundo, Ben Israel sustenta o seu recolhimento futuro nas províncias de Assíria e Egipto, donde passarão a Jerusalém. Segundo o autor, estas tribos reunir-se-ão num reino sob o governo de um só príncipe, o Messias, filho de David, “y nunca mas seran expulsas de sus tierras” (ISRAEL, 1881, 114-115). Menasseh Ben Israel responde, desta maneira, aos anseios messiânicos dos seus contemporâneos. Em termos práticos, a sua ação diplomática a favor do perseguido povo judaico traduziu-se numa procura de resultados concretos. Em 1655, viaja até Inglaterra com a finalidade de obter permissão para que os judeus possam estabelecer-se neste país, sem restrição ao direito de praticar a sua religião. Em última instância, e de acordo com as profecias bíblicas em Daniel 12, 7 e Deuteronómio 28, 64, apenas quando as 10 tribos estiverem definitivamente espalhadas pelo mundo a restauração da casa de Israel pode ter lugar. Aparentemente, faltava então o estabelecimento em Inglaterra do francês Angle-Terre, o “limite da terra” (cf. ROTH, 1945, 206-207). Fundamentos místicos à parte, Menasseh submete um pedido de readmissão dos judeus a Cromwell. Depois de inúmeros debates decorridos no seio do Conselho de Estado, não consegue obter o estabelecimento da comunidade de acordo com as condições que pretende. Desapontado, regressa dois anos depois à Holanda, na sequência do falecimento do seu filho Samuel, em setembro de 1657. Dois meses depois, no dia 20 de novembro, o pai segue o filho, falecendo em Middelburg. Os esforços iniciados por Menasseh Ben Israel revelaram-se, anos mais tarde, proveitosos, sendo que a comunidade judaica inglesa conseguiu de Carlos II um alvará de proteção, em 1664. Finalmente, em 1698, o Act for Suppressing Blasphemy reconheceu legalidade à prática do judaísmo em Inglaterra. Obras de Menasseh Ben Israel: Safah Berurah (s.d.); Humas de Parasioth y Aftharoth (1627); Conciliador, o de la Conveniencia de los Lugares de la S. Escriptura, que Repugnantes entre si Parecen (1632-1651); De la Ressureccion de los Muertos, Libros III (1636); De Termino Vitae (1639); Thesouro dos Dinim (1645-1647); Orígen de los Americanos, Hlarsy Hvqm, esto es Esperanza de Israel. Publicado en Amsterdam 5410 (1650) (1650); Even Yeqarah. Piedra Gloriosa o de la Estatua de Nebuchadnesar. Con Muchas y Diversas Authoridades de la Sagrada Escritura y Antiguos Sabios (1655). Marta Marecos Duarte (atualizado a 03.02.2017)
islamismo
A relação da Madeira com o mundo islâmico é tão antiga quanto o próprio reconhecimento e povoamento do arquipélago, pois dois dos três futuros capitães do donatário – Zarco e Teixeira – evidenciaram-se aos olhos do infante D. Henrique na tomada de Ceuta e, posteriormente, no descerco da mesma cidade. A expansão portuguesa, começada, precisamente, no norte de África, deu origem à formação de um contingente de cativos que, feitos escravos, iriam, mais tarde, para o arquipélago, onde, aparentemente, foram usados, mais do que no cultivo da cana-de-açúcar, como elementos representativos do patamar social elevado dos seus possuidores. Apesar de irmanados no estatuto, os escravos não eram todos tratados da mesma maneira, conforme cedo se evidencia e foi captado por Júlio Landi, um conde italiano que escreveu, em 1530, sobre as impressões que lhe ficaram da Madeira. Diz, então, Landi, que os escravos que se encontravam na Ilha o eram por uma de três causas: “ou pela religião, como são os que eles chamam mouros, pois observam a religião de Maomé; ou pela cor, como os etíopes, por eles chamados negros; ou ainda pela procriação, como os que nascem de um negro ou de uma branca, ambos escravos, ou então de uma negra e de um homem livre, ou vice-versa, e estes são chamados mulatos”. Um pouco adiante, registava o Italiano que eram muitos os mouros criminosos que fugiam dos patrões, o que se explicava pela dificuldade que tinham em suportar a escravatura, “pois primeiramente foram livres; mas quando são feitos prisioneiros de guerra logo são reduzidos à escravidão e mantêm-nos agrilhoados”. O mesmo se não passava com os negros, tidos como, “na maior parte, bons e fiéis, embora de engenho rude”, caraterísticas que, apesar de os não isentarem de uma vida dura, faziam com que não andassem “agrilhoados como os mouros, a não ser por qualquer crime” (ARAGÃO, 1981, 92). Segundo Eduardo Pereira, a população madeirense devotava mesmo um ódio particular à comunidade mourisca, o que o autor ilustra com a existência, no alto da serra do Porto Moniz, de um sítio chamado Cova do Mouro, onde se encontra um monte de pedras que assinalaria o local onde teria sido morto um escravo mouro. A persistência da desconfiança que os ilhéus nutriam pelos muçulmanos atesta-se pelo facto de, ainda séculos depois, a população que por ali passava atirar pedras ao mouro, ato que se fazia acompanhar da imprecação “aquele cão” (PEREIRA, 1968, 192). A maior aversão que os madeirenses nutriam pelos escravos de religião islâmica, se comparada, por exemplo, com alguma tolerância que demonstravam aos negros ou mulatos, pode encontrar justificação também no permanente estado de guerra que opunha Portugal e a Berbéria, particularmente nos sécs. XV e XVI, conflito que mantinha aceso o espírito de cruzada e que implicava penosos contributos da Madeira, em gentes e bens. Os elevados custos que essas campanhas representavam para o arquipélago aguçavam a animosidade contra o mouro que, privado de liberdade, acorrentado e ainda negativamente discriminado, reagia, procurando praticar o seu culto, de acordo com uma tradição que atribui a estes escravos a escavação de um tufo de pedra mole, na freguesia do Faial, onde funcionaria uma improvisada mesquita, depois descoberta e destruída por Irvão Teixeira. Um descendente deste último, António Teixeira Dória, mandou edificar, nesse mesmo local, quase à laia de exorcismo, a capela de N.ª Sr.ª da Penha de França, que se instituiu em 1680. As guerras do norte de África, porém, não geravam apenas mouros cativos. O reverso desta medalha era, precisamente, o aprisionamento de cristãos em terras muçulmanas, contingente que se acrescentava com as razias que as embarcações muçulmanas periodicamente faziam às costas do arquipélago da Madeira, onde se visava, sobretudo, o Porto Santo, que era muito mais difícil de defender. Assim, esta ilha era presa fácil de piratas berberes e, por essa razão, com alguma frequência arrasada, sendo a grande maioria da sua população aprisionada e levada para o norte de África, onde a aguardava a servidão, e, em casos assinalados, o resgate, quase sempre muito bem-vindo. Há, no entanto, que registar alguns casos em que, ao contrário do que seria expectável, os cativos não apreciavam a libertação, como aconteceu com um cativo que foi resgatado por Tristão das Damas, filho de Tristão Vaz Teixeira, e segundo capitão de Machico. Tristão filho, também chamado “das damas”, por atos da sua vida privada que implicaram acusações de trato ilícito com mulheres, inclusivamente da sua família próxima, acabou por ser preso e condenado a um exílio que fez com que, passados 10 anos, viesse solicitar ao Rei D. Manuel I um perdão que o obrigou a diversas penalizações, entre as quais se contava a obrigação de resgatar dois cativos do norte de África. O capitão assim fez, tendo contribuído para a libertação de “um João, criado de Bartolomeu Sampaio” e de “Diogo Peres, morador em Palmela”. Se Diogo Peres aceitou o fim do cativeiro, o mesmo não aconteceu com João, o “qual tornara a fugir para terra de moiros com uma moira” (FERREIRA, 1959, 168-169), o que demonstra que, por vezes, os cativos acabavam por reconstruir a sua vida em terras de infiéis, preferindo voltar a essa existência a trocá-la pela anterior permanência entre cristãos. A maioria das situações de cativeiro, porém, resultava na conversão forçada de cristãos à fé muçulmana, com obrigação de cumprirem os rituais islâmicos, de adotarem traje e nome “de turco” e de se sujeitarem aos variados trabalhos impostos pelos seus amos, conforme se pode confirmar pelos processos da Inquisição que se reportam a antigos cativos que, depois de alcançarem a liberdade, se entregavam ao Santo Ofício para se penitenciarem do desvio da ortodoxia católica. O modo como estes madeirenses tinham sido feitos reféns variava entre estarem embarcados e a nau em que seguiam ser aprisionada e serem moradores no Porto Santo e apanhados pelas razias muçulmanas. Depois de levados a Argel, eram comprados como escravos, e os amos, ao mesmo tempo que lhes forneciam aptidões profissionais – jardineiros, tecelões, alfaiates –, pressionavam-nos a adotar a fé islâmica. Os interrogatórios a que, mais tarde, depois de se entregarem ao Santo Ofício, eram sujeitos insistiam na averiguação do grau de compromisso dos “renegados” com a nova religião, sendo inquiridos sobre se tinham ou não sido circuncidados (a maioria fora-o), se alguma vez tinham entrado em mesquitas, se sabiam as orações muçulmanas, se praticavam o jejum dos mouros (o Ramadão), e se se tinham abstido do consumo de carne de porco e de vinho. As respostas eram normalmente afirmativas, mas a justificação para esse comportamento vinha sob a forma do medo das represálias e dos maus tratos a que se poderiam sujeitar caso o não fizessem. Declaravam, porém, os cativos que a sua fé era apenas aparente, proferida com a boca, mas mantendo o coração fiel à doutrina da Santa Madre Igreja. A forma como se tinham conseguido libertar do jugo muçulmano passava, geralmente, por, a dado momento, os seus senhores os terem resolvido empregar em atividades de corso. A bordo, por vezes, a tripulação era maioritariamente constituída por cristãos “renegados” que aproveitavam a disparidade de forças para se revoltarem contra os muçulmanos e forçarem o desembarque em terras cristãs. Também acontecia alcançarem a liberdade através de um naufrágio ou da captura por barcos franceses ou espanhóis, o que lhes proporcionava o regresso a Portugal, onde se entregavam, então, às mãos da Inquisição. Apesar de serem incontestáveis as razias mouras ao Porto Santo, o inverso também acontecia, como se pode constatar a partir de uma descrição que consta de um manuscrito, Lembranças de Algumas Coisas Antigas que Estão Esquecidas de Algumas Gerações da Ilha do Porto Santo com transcrição de Maria Favila Paredes. Nesse documento, dá-se conta de que no tempo em que o “Marquês de Lançarote ia fazer saques aos mouros de Safim e Sal […] vinha ao Porto Santo” buscar pessoas que o acompanhassem, levando-as para fazer assaltos de que resultavam apreensões de “gados, e bestas e gente”. Destes saques obteve o Porto Santo a receção de uma casta de gado preto e branco e “das carnaduras borquilhas”, mas também de escravos, entre os quais de uma escrava moura, que morreu afogada num poço que se passou a chamar o “poço da moira” (PAREDES, 2005, 68). O contacto de alguns séculos entre madeirenses e muçulmanos acabou por deixar marcas na cultura insular, que fazem, mesmo, parte da identidade madeirense. Desta forma, temos, em termos gastronómicos, o cuscuz e o bolo do caco; no campo do vestuário, a carapuça tradicional; enquanto na toponímia as alusões aos mouriscos são encontradas no Lombo do Mouro, no Paul da Serra, na Cova do Mouro (Porto Moniz), na Cova do Moirão (Arco da Calheta e Serra de Água), e na Eira da Moura. A tolerância religiosa viria a tornar-se uma realidade no seio das sociedades ocidentais, nas quais se integra o arquipélago da Madeira, que viu abrir a primeira mesquita no Funchal a 14 de dezembro de 2009, passando a pequena comunidade muçulmana a dispor de local adequado às suas reuniões que, até então, se faziam numa habitação particular. Cristina Trindade (atualizado a 03.02.2017)
confrarias
As confrarias ou irmandades são organizações religiosas muito antigas, que se instituíram desde a Idade Média e se estabeleceram na Madeira com os primeiros povoadores. As confrarias eram então especialmente instituídas para os que desejavam as vantagens de ação prática que ofereciam as organizações religiosas, no sentido de uma certa proteção religiosa, social e até económica, na vida e na morte, mas que não sentiam vocação para entrar para as verdadeiras ordens religiosas. Dentro deste quadro, os madeirenses, desde os meados do séc. XV, resguardaram-se em confrarias, devendo as mais antigas da Ilha ser as dos marítimos e pescadores, sob a proteção do “Corpo Santo”, denominação popular de S. Pedro Gonçalves Telmo (1190-1246), arrogando-se a do Funchal de ser a mais antiga de todas as confraria da Madeira. As primeiras informações que temos do funcionamento de confrarias não apontam, no entanto, para a do Corpo Santo, mas sim para a da igreja de Santa Maria de Cima, onde depois se viria a levantar o convento de Santa Clara. Na vereação da câmara do Funchal, de 7 de fevereiro de 1489, foi perguntado a Gonçalo Eannes, cerieiro, “pela cera que tinha da confraria de Santa Maria de Cima e do círio”, ao que o mesmo respondeu que iria ver no “seu livro e o que achasse, diria por juramento” (COSTA, 1995, 238). Não se volta a mencionar o assunto e, na vereação de 17 de setembro de 1491, acordaram os vereadores a esse respeito que Pero Correia, que então tinha a “cera da confraria de Santa Maria de Cima”, “a emprestasse por peso” a quem o quisesse, devendo a mesma ser pesada perante o secretário da câmara (Ibid., 293). Não é fácil interpretar corretamente o que seria esta confraria à época e tal não invalida que, no cabo do calhau de Santa Maria, não estivesse já a funcionar a Confraria do Corpo Santo, cuja capela é mencionada nesses anos como já levantada. Quase todas as organizações profissionais do Antigo Regime tiveram, de acordo com o espírito do tempo, carácter religioso, e esse aspecto da sua atividade tinha, no sentir dos membros, tanta importância como a sua finalidade secular. Em muitos casos, os oficiais que formavam uma corporação organizavam-se independentemente desta numa confraria religiosa para em comum praticarem os atos de devoção, dentro dos princípios da caridade, fé e piedade. Existe assim um certo paralelismo entre corporação e confraria, quando não mesmo uma certa confusão e sobreposição. Às primeiras deviam corresponder os aspectos técnicos e profissionais, devendo organizar-se no âmbito camarário e dos ofícios e mesteres reunidos na Casa dos 24, e às segundas os encargos pios e de assistência, com especial relevância para o acompanhamento dos enterros, organizando-se no âmbito geral da paróquia ou freguesia onde estivessem instituídas. As primeiras confrarias teriam assim tido por base vínculos profissionais, num quadro, ainda herdado da Idade Média, no qual as atividades profissionais passavam de pais para filhos, servindo também as confrarias para a manutenção desses vínculos. Os oficiais mecânicos do Funchal, e.g., como os ferreiros, os serralheiros, os caldeireiros, os cutileiros, os ferradores, os picheleiros e afins, que trabalhavam com o ferro e o fogo, associavam-se sob a bandeira de S. Jorge, proclamando que a Confraria da Sé do Funchal tinha sido fundada em 1515, embora depois refiram 1562 e só se conheça documentação a partir de 1667. Num curto espaço de tempo, esta passou a associar também os barbeiros, os douradores e outros, aparecendo inclusivamente, na segunda metade do séc. XVII, mulheres e escravos e datando, assim, dos meados desse século o esbatimento progressivo dos iniciais vínculos profissionais nestas organizações. As confrarias organizavam-se sob a proteção de um orago e de acordo com um compromisso, sendo administradas por um juiz, um reitor ou um presidente, um escrivão, um tesoureiro e um número definido de mordomos, de acordo com os seus estatutos, sendo o de confrades mais ou menos ilimitado. A base económica eram as esmolas de entrada dos confrades, a que se seguiam as cotizações e os legados pios, sempre carregados com missas pela alma do doador, de forma a ser encurtada por esses sufrágios a sua permanência no Purgatório, como em muitos testamentos se refere. Uma das primeiras preocupações e obrigações da confraria era assim a aquisição de uma arca para guardar os seus bens e documentos, que só podia ser aberta na presença dos elementos diretivos. Sendo associações detentoras, por vezes, de avultada capacidade económica e financeira, concediam empréstimos em numerário aos seus confrades, mas também os apoiavam noutras situações – não só a eles como às suas famílias na eventual falta dos mesmos –, podendo conceder pensões, constituir pequenos hospitais e recolhimentos, etc. No quadro geral da sua constituição, encontram-se as Misericórdias, essencialmente assistenciais, com base nas quais vão surguir os primeiros hospitais e a assistência aos pobres de uma forma geral, à infância, presos e condenados, assim como ao enterramentos dos mortos (Cemitérios). Ao longo do séc. XVI, a constituição de confrarias na Madeira terá sido exponencial, embora mais em intenção que em efetivação. Ainda assim, com a crise religiosa vigente na Europa nos meados desse século e com a resposta católica que se consubstanciou na reativação dos tribunais da Inquisição, na implantação do Santo Ofício e, depois, na divulgação das normas emanadas pelo Concílio de Trento, a sua multiplicação é um facto. A Igreja assume então aspectos algo repressivos e, ao mesmo tempo, sigilosos, pelo que a proteção dada pelas confrarias passa a ser quase essencial à comum vida social e até profissional de qualquer cidadão. A sua multiplicação e capacidade de angariação de fundos levarão, entretanto, também a uma crescente necessidade de um maior controlo por parte das autoridades religiosas. As primeiras normas centralizadoras em relação às confrarias aparecem nas Constituições Sinodais de D. Jerónimo Barreto (1543-1589), promulgadas em 1578 embora só editadas alguns anos depois, especificando que no “sagrado Concílio Tridentino é ordenado que os administradores assim eclesiásticos como seculares da fábrica de qualquer igreja, ainda que seja catedral, hospital, confraria, ou outros quaisquer lugares pios sejam obrigados em cada um ano a dar conta aos ordinários da sua administração e cargo”. Acrescenta-se ainda: “e não vindo os mordomos dar a tal conta, os confrangerá a isso com penas pecuniárias que aplicará para a dita confraria e meirinho, e com censuras, se necessário for” (BARRETO, 1578, 138-139). As normas de 1578 tinham carácter geral e visavam, essencialmente, as fábricas e os legados pios, tal como as receitas e despesas, quer das igrejas quer das confrarias, insistindo: “e o que se ficar devendo fará logo com efeito entregar e meter na arca da fábrica, que em cada igreja deve haver com duas chaves, uma das quais terá o recebedor e outra o escrivão do cargo”, determinação depois ampliada para três chaves, no caso das arcas de confraria, sendo a terceira para o vigário ou para o reitor da confraria, muitas vezes a mesma pessoa. A fiscalização das contas deveria ser feita “pelo S. João” ou até “oito dias depois da festa de que é a confraria” (Id., Ibid.), embora este assunto só se cumprisse verdadeiramente nas visitações. Nas seguintes Constituições, chamadas Extravagantes – porque fora do que já havia sido promulgado e por as anteriores “serem breves e não compreenderem tudo”, tendo havido ainda “casos que tinham necessidade de outras novas”, como mandou escrever D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608) na abertura das editadas em 1601 (LEMOS, 1601, fl. 2) –, logo se determina que as eleições das confrarias da Sé tinham obrigatoriamente de ter a assistência do deão, ou seu representante, salvo a do Santíssimo (Id., Ibid., fl. 29). Associada às eleições estava a apresentação das contas, a serem entregues oito dias depois ao vigário geral, e, caso tal não acontecesse, seriam multadas em 1$000 réis “para a chancelaria e meirinho” (Id., Ibid., fl. 30), o que anteriormente não ficara estipulado. Para além disso, deixava-se cair o dia de S. João para só se mencionar a festa do orago. Canonicamente as confrarias passaram a reger-se, a partir de 1604, pela Constituição de Clemente VIII e, a partir de 1610, pela de Paulo V. Voltava-se a insistir que para a sua fundação se requeria o consentimento do prelado, que examinava os seus estatutos, geralmente sob a forma de “compromisso” depois alargado a “estatuto”, a quem competia dar-lhes ou negar-lhes a aprovação. Podiam fundar-se em todas as igrejas, embora a Congregação do Concílio de Trento, em 1595, proibisse as de homens nos conventos de religiosas. Clemente XIII também proibiu duas confrarias do mesmo santo ou evocação na mesma povoação, excetuando as “sacramentais” e as de doutrina cristã, que deveriam funcionar em todas as paróquias. As confrarias, para além do aspecto religioso, constituíam também um espaço de afirmação social, ostentando os irmãos eleitos para a mesa as suas varas nas festas, muitas vezes em prata, que lhes conferiam o estatuto e os restantes as suas capas, diferenciando-se assim dos demais. Por outro lado, as suas mesas de reunião, geralmente anexas aos respetivos altares, eram um local de encontro privilegiado, ali se trocando informações e, inclusivamente, fazendo negócios. O visitador da sé do Funchal regista, e.g., em 1601, ter visto nas mesas das confrarias, durante as missas, ajuntamentos de algumas pessoas que “se encostam a praticar com os estão nelas sentados, no que dão torvação e se ocasionaram já desordens”. Para evitar esses encontros, que perturbavam os atos religiosos, determinou, sob pena de excomunhão, “que mais se não juntem nem encostem a praticar nas ditas mesas” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 33, fls. 30-30v.). As questões de prestígio social de uma confraria incluíam igualmente a aproximação às autoridades eclesiásticas, como era o caso dos elementos do cabido que, como membros de um órgão coadjuvante do prelado, especialmente numa diocese com longos períodos de sé vacante, motivavam as confrarias a solicitarem constantemente a sua presença, palavra e proteção. Na sequência das Constituições de D. Jerónimo Barreto e da implantação da organização tridentina, o cabido deliberou inclusivamente, em 1584, “não irem daqui por diante a uma solenidade de confraria, fora das da Sé, sem que pelo caminho se dessem dois mil réis, fora a esmola da missa e dos ministros que se vestem para ela, que será o que somente costumam dar” (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, liv. 2, 151v.-152). Nos primeiros anos de fundação da sé do Funchal, não devem ter funcionado ali confrarias, pois as primeiras teriam sido instituídas na velha igreja de N.ª Sr.ª do Calhau e lá continuaram a funcionar, salvo a do Santíssimo Sacramento, obrigatória em todas as igrejas matrizes, que em 1566 já tinha altar próprio na sé, dado então como do Santo Sacramento (Sé do Funchal). Esta confraria só oficializou o seu compromisso no séc. XVII, mas no século seguinte arvorava-se na mais antiga da sé, com início logo da primeira metade do XVI, anterior ainda a 1515, data que depois várias delas citam como a da sua fundação, o que se referia, com certeza, à vaga intenção de se reunirem como tal, longe de toda a oficialização a que foram posteriormente obrigadas. Nesse quadro, talvez se tenha igualmente instalado, pela mesma altura, a confraria de S. Miguel Arcanjo, anjo protetor de Portugal, cujos confrades alegavam a sua fundação também em 1515. O arcanjo S. Miguel era então devoção muito especial da casa real portuguesa e de D. Manuel em particular, pelo que logo após a instituição da sé do Funchal seria lógica a fundação de uma confraria dessa evocação na catedral, o que, a ter-se verificado, não foi, no entanto, no quadro institucional que determinou depois o Concílio de Trento. Nesse quadro, somente bastante mais tarde, em 1572, a mesma veio a ser instituída e associada aos santos irmãos padroeiros dos sapateiros, provavelmente para, juntando as duas devoções, ganhar um outro peso económico. Mas tal também alegaram depois as confrarias de S. Jorge e de S. Roque. Em 1602, requeriam os “mordomos da confraria do Bem-aventurado S. Roque sita na sé da cidade do Funchal da ilha da Madeira, que no ano de 1521, por causa do grande mal da peste, que o povo da dita cidade padecia”, se juntaram as autoridade da cidade e, lançando sortes, saíra por padroeiro Santiago Menor (Voto da cidade do Funchal), “ao qual logo dedicaram casa e votaram por si e por seus sucessores fazer-lhe a festa cada ano”, o que, como já escrevemos, só veio a ocorrer depois. Acrescentam ainda os mordomos que “logo tomaram juntamente por seus protetores os Bem-aventurados S. Sebastião e S. Roque” e que a câmara ficara de apoiar economicamente as suas festas. Acontecia que a câmara apoiava as festas de S. Sebastião “cada ano, por ordinária, na renda da imposição dos vinhos”, com vinte mil réis, pelo que requeriam ao rei que o mesmo se passasse com a sua confraria, ao que o rei acedeu a 25 de abril de 1603 (Ibid., avulsos, mç. 22, doc. 24). No entanto, uma coisa seria a Confraria de S. Sebastião, instalada numa capela da câmara do Funchal, e outra seria a Confraria de S. Roque, instalada na Sé, mas o Rei aceitou as razões evocadas. Em carta do bispo D. Fr. Fernando de Távora (c. 1510-1577), datada de 15 de junho de 1572 e escrita em Lisboa, pois que nunca foi à sua diocese, mandava o prelado que se levantassem mais dois altares no transepto, dado que os existentes eram poucos para o serviço da Sé, prevendo-se a instalação de mais duas confrarias, cujos estatutos enviou depois. Não foram, no entanto, enviados diretamente ao cabido, como seria lógico, mas para os confrades das Confrarias de S. Miguel e, posteriormente, da Ascensão do Senhor, que os apresentaram, depois, para aprovação ao mesmo cabido. A Confraria de S. Miguel e dos santos irmãos Crispim e Crispiniano, aos quais tinham os sapateiros do Funchal obrigação de mandar “cantar missa no dia” 24 de outubro, dia que lhes era dedicado, foi instituída oficialmente por aprovação do prelado de 26 de agosto de 1572, ordenando-se-lhe que para ela fizessem um “retábulo muito bom” (Ibid., avulsos, liv. 2, fls. 114-115). O assunto foi apresentado depois ao cabido, em reunião na sacristia, a 29 de setembro, pedindo os membros da confraria para se servirem do altar de S.to António, no qual “pudessem fazer sua confraria, com sua mesa e oficiais”, obrigando-se os suplicantes ao encargo do “ornato” e da festa anual do seu santo protetor. Prometiam os confrades de S. Miguel, S. Crispim e S. Crispiano também recompensar o cabido com “a esmola acostumada que dão por missa, que é de mil réis de pensão, além da esmola que se costuma dar ao sacerdote e ministros que os visitem”, entre outros compromissos. O auto foi assinado no transepto da sé, sobre o altar da Ascensão (Ibid., liv. 2, fls. 117-118). A situação indica desde logo um aspecto importante: que os altares eram do cabido da sé, que sobre os mesmos exercia absoluto controlo, assim como uma coisa era a institucionalização da confraria, da responsabilidade do prelado, e outra era o seu funcionamento, da responsabilidade do cabido. Talvez daí o pormenor do auto ter sido assinado no braço oposto do transepto, onde estava então o inicial altar da Ascensão. A confraria veio a funcionar talvez de início e como pediram, no altar de Santo António, mas depois em altar montado na parede nascente da mesma capela, na sequência do altar de S. Roque, que já existia em 1566 (FRUTUOSO, 1968, 347) (Saque dos corsários ao Funchal). Em 29 de outubro de 1572, instituiu-se a Confraria da Ascensão do Senhor, de “irmãos nobres”, cujo pedido a D. Fr. Fernando de Távora partiu de “um nobre da casa d’el-rei” e da qual foi primeiro reitor Gaspar Mendes de Vasconcelos, por certo o interlocutor em causa, chegando a instituição da confraria ao cabido na mesma forma da de S. Miguel. A confraria pretendia celebrar e instalar-se na capela de Santana, referindo o bispo, em Lisboa, que tinham a obrigação de fazer retábulo e obras “conforme suas possibilidades” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 2, fl. 115), o que não entendemos bem, dado já existir um altar da evocação da Ascensão. As contrapartidas em relação ao cabido eram também nos mesmos termos das anteriores. Os confrades da nova Confraria da Ascensão do Senhor, pouco tempo depois, entre 1573 e 1590, fazendo jus à condição de “irmãos nobres”, encomendariam ao célebre pintor Fernão Gomes (1548-1612) o retábulo para o altar, das melhores tábuas e com as maiores dimensões existentes não só na sé como em toda a ilha, dado possuir mais de três metros de altura. Em 1603, em princípio, temos informação também da existência de uma Confraria de S.to António na Sé. O assunto parece ter sido despoletado por um milagre ocorrido na aluvião do primeiro de dezembro de 1601, conforme escreve Henriques de Noronha. Segundo este autor, nesse dia a Ribeira de João Gomes transbordou e começou a inundar a igreja do Calhau, chegando a “quatro palmos de água, quando os sacerdotes e seculares mais zelosos se arrojaram a salvar o Santíssimo Sacramento e as imagens”. Com a de Santo António se abraçara “Diogo Barbosa, ourives de oiro e a depositou em sua casa”, reparando então “que tinha a cor do rosto desnudada, os olhos elevados ao céu, vermelhos e chorosos, com algumas lágrimas que tinham corrido sobre o Menino Jesus”. A imagem foi depois levada para a igreja de Santiago, posterior matriz de Santa Maria Maior, e “repetiu o Santo outra vez as lágrimas e [foi] justificado o sucesso, primeiro pelo vigário-geral, António Moniz da Câmara, e logo pelo prelado, o venerável bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos”, pelo que, ouvido depois “um conselho de teólogos”, foi lavrada sentença sobre o milagre e a mesma publicada a 12 de janeiro de 1602 (NORONHA, 1996, 338-339). A 23 de maio de 1603, a pedido da Confraria de S.to António da Sé e da congénere de N.ª Sr.ª do Calhau, D. Luís Figueiredo de Lemos, ordenava que fosse “festa de guarda o dia de Santo António” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 6, doc. 18). A confraria deveria estar em instalação e, com o falecimento do prelado, não se deve ter passado à sua oficialização com estatutos, pois não se volta a referir a Confraria de S.to António da Sé até aos finais do século, quando os mordomos pediram ao Rei a reforma do altar e, na desmontagem do antigo, na tarde de 20 de fevereiro de 1697, o pedreiro Teodósio Pestana caiu de cima do mesmo. O pedreiro salvou-se por ter conseguido agarrar-se à corta do lampadário, tendo o sucedido sido considerado um milagre e lavrando-se auto em 1702 (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, mç. 4, doc. 20). Estas organizações eram detentoras, por vezes, de avultada capacidade económica e financeira, especialmente no Funchal. Administravam prédios arrendados e foros, que tinham herdado com determinadas obrigações pias, concediam empréstimos em numerário aos seus confrades, e não só, constituindo os juros uma das suas principais fontes de rendimento. Não admira assim que a principal preocupação das autoridades religiosas fosse o controlo das contas e dos elementos colocados à frente das confrarias. Cite-se, e.g., o “instrumento de obrigação de juro a retro”, assinado na casa do cabido da sé a 5 de setembro de 1697, entre o Cón. Pedro Bettencourt Henriques, em nome da Confraria do Amparo, e o P.e Daniel Gonçalves Jardim, por si e em representação da sua mãe e irmãos. A confraria emprestava 100$000 réis com um juro anual de 6$250 réis, “em dinheiro de contado”, “que é por razão do estilo da praça, de 6 e 4 por cento”, isto é 6,25 %. Como garantia, os devedores hipotecavam diversas propriedades na freguesia da Ponta do Pargo, cultivadas de vinhas, árvores de fruto e inhame (Ibid., Cabido da Sé do Funchal, mç. 21, doc. 5). As confrarias estendiam-se, entretanto, por toda a cidade, com sede nas igrejas matrizes, mas também pelos conventos da cidade e da ilha, tal como pelas freguesias rurais e respetivas matrizes, estando também, no entanto, pontualmente sedeadas em determinadas capelas isoladas, as ermidas. Porém, o movimento de doações e de encargos, face à concentração populacional na área do Funchal, quase não tem comparação com o que se passa no resto da ilha. O P.e Francisco Vaz da Corte, vigário de S. Pedro do Funchal, e.g., a 3 de dezembro de 1608, deixou à Confraria do Santíssimo da sua igreja uma naveta de prata para o incenso, “no valor máximo” de 20 cruzados; mas também 15 cruzados à congénere Confraria da Sé e 2$000 réis à da Candelária de S. Pedro, para a ajuda do retábulo; e 2 cruzados por ano à do Bom Jesus da sé, impostos numa fazenda que tinha na Carne Azeda (VERÍSSIMO, 2000, 390). No séc. XVIII, algumas confrarias do Convento de S. Francisco do Funchal funcionavam quase como se se tratassem de casas de penhores, o que aliás acontecia com quase todas as restantes da ilha, mas aqui de forma institucional e oficial, registando o empréstimo, inclusivamente na secretaria do governo em S. Lourenço. A 23 de março de 1757, e.g., o P.e Manuel Franco Herédia, de Machico, solicitou um empréstimo a esta confraria de 20$000 réis, com um juro anual de 1$000, apresentando como penhores um cordão de ouro e um par de sevilhanas, avaliados em 38$950 réis (Id., Ibid.). O Convento de S. Francisco do Funchal detinha uma excecional importância na vida social insular e era tradição, e.g., entre os finais do séc. XVIII e os meados do séc. XIX, os governadores, entrarem para membros da Confraria de N.ª Sr.ª da Soledade como “Irmão Protetor e Presidente da Confraria”, após tomarem posse. O último foi o prefeito e Cor. Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, com a mulher, “a Ilustríssima e Excelentíssima Senhora D. Anna Mascarenhas de Athaide”, que assina o termo a 14 de março de 1835, “prometendo não só guardar as obrigações do Compromisso, mas também promover o aumento Espiritual, e temporal da Mesma Confraria” (ABM, Governo Civil, liv. 246, fl. 71). O Convento de S. Francisco do Funchal, entretanto, foi extinto e desocupado por forças militares, a 9 de agosto do mesmo ano de 1834, às ordens do mesmo prefeito, que pouco depois mandava o provedor da Alfândega do Funchal tomar conta do edifício. Entre os finais do séc. XVI e os inícios do séc. XVII instituíram-se assim confrarias um pouco por toda a ilha, sendo comum, inclusivamente, as pessoas pertencerem a várias confrarias instituídas em várias igrejas, entretanto também abertas a mulheres. Nos meados do séc. XVI, e.g., já se detetam nove confrarias na freguesia de Santa Cruz, sendo ainda criadas no século seguinte as de S. Benedito, dos Santos Passos e da Ordem Terceira de S. Francisco. O testamento de Filipa de Sousa, de 1680, benfeitora da Misericórdia daquela vila, declara que era irmã das Confrarias de N.ª Sr.ª do Rosário, dos Santos Passos, N.ª Sr.ª da Piedade, de S.to António e de S. Benedito. Outra benfeitora, Catarina de Ornelas, tinha declarado, em 1658, que era irmã de N.ª Sr.ª do Rosário, S.to António, Nome de Deus e S. Bento do Convento, que, cremos, era no Convento da Piedade de S.ta Cruz, tal como também aí seria sedeada a dos Irmãos Terceiros (Convento da Piedade de Santa Cruz). A instalação das confrarias no norte da ilha foi mais tardia e difícil, dada a escassez de recursos e o isolamento geral dos pequenos núcleos populacionais. A exceção vai para a freguesia de S. Jorge, com uma certa liderança naquela costa, que logo nos inícios do séc. XVI, a 4 de dezembro de 1515, era dotada com um importante conjunto de alfaias enviadas de Lisboa. Pelos provimentos das visitas da primeira metade do séc. XVII, publicados pelo P.e Silvério Aníbal de Matos, antigo pároco de S. Jorge, temos muitas informações sobre a vivência das confrarias, então montadas sem estatutos superiormente aprovados. Tal terá sido o caso da Confraria do Santíssimo Sacramento, que teria resultado de um privilégio dos reis de Portugal a essa freguesia para celebrar a Festa do Corpo de Deus no seu dia próprio e à qual deveriam concorrer os eclesiásticos das restantes paróquias do Norte. Nos provimentos da visita de 20 de julho de 1647, refere-se um pedido feito pelos irmãos dessa confraria, que dado se terem “comprometido a dar um arrátel de cera cada um, em cada ano para a dita Confraria e os gastos que se fazem com os padres na Semana Santa”, pretendiam colmatar parte dessa despesa com a posterior venda da cera “para pagamento dos ditos padres” (MATOS, 2000, 16), solicitação não atendida pelo visitador. As festas da Semana Santa, a que deveriam acorrer os demais vigários da costa norte, os quais, nesta época, se limitavam praticamente só ao de Santana e a alguns outros que, entretanto, se encontrassem na área, levantaram sempre inúmeros problemas. Na visita de 1636, refere-se que “alguns fregueses se queixam da opressão que tinham em darem de comer aos padres que vinham fazer a festa e que antes lhes queriam dar dinheiro seco” a cada um deles, “pelos três comeres da véspera, do dia e do seguinte”. Nessa altura o visitador estabeleceu então a verba de $450 réis, “os quais lhes darão os mordomos de seus bolsos, não lhe dando de comer”, entendendo que tal dinheiro deveria sair “das esmolas das confrarias”. Entretanto, também o vigário de S. Jorge entendia que deveria ser pago pelo trabalho acrescido desses dias, tal como acontecia aos outros padres, acabando o visitador doutor Lucas Gonçalves Correia, a 18 de agosto de 1650, por entender que deveria ser igualado “na benesse com os vigários das outras paróquias”, até por “saber cantar” e “pelo trabalho dos tais dias, porque conforme sua obrigação, não está obrigado a tanto quanto a devoção cristã se tem aumentado nas procissões, paixões e mais cerimónias da dita semana” (Id., Ibid., 17). A festa do Corpo de Deus, no entanto, envolvia grandes custos e, na visita de 23 de julho de 1681, o cónego Dr. Marcos da Fonseca Cerveira, “informado que os mordomos do orago desta igreja, sendo seis, tinham muitos gastos para assistirem nela à festa do Senhor S. Jorge, mas também em dia de Corpo de Deus”, determinava uma nova articulação dos encargos. Assim, deveriam eleger-se dez mordomos, “a saber, seis para a festa de S. Jorge e quatro para assistirem com o sustento aos padres que vierem para a procissão do Corpo de Deus”, repartindo os encargos por um número superior de fregueses, “para que lhes seja aliviado o gasto” (Id., Ibid., 18). Teria sido na sequência do aumento dos encargos sobre os fregueses, que vinha de uma anterior visitação, que, logo em 1643, “algumas pessoas devotas e zelosas do serviço de Deus” se queixavam ao visitador, o licenciado Francisco Rebelo, vigário da Ponta do Sol, “que se extinguiram nesta igreja de alguns anos a esta parte, algumas confrarias e devoções que nela havia”, pelo que se não faziam as festas a alguns santos, entendendo-se que era “falta muito notável em um povo tão cristão”. O visitador insistia então perante “todos que de novo tornem a ressuscitar as suas antigas devoções, e se ofereçam a servir e festejar os santos, que seus pais e avós com tanta devoção festejavam”, acrescentando: “E obriguem os mesmos Santos a intercederem por eles a Deus Nosso Senhor na Sua Glória” (Id., Ibid., 17). A inicial igreja do calhau de São Jorge tinha altar-mor e dois altares colaterais ou laterais – um dos quais, provavelmente, servindo de altar do Santíssimo –, devotados ao Bom Jesus e a Nossa Senhora da Encarnação. Embora não encontremos referências concretas à articulação interna da matriz, a referência a três altares e as determinações de instituição de confrarias com as devoções do Bom Jesus e de Nossa Senhora da Encarnação levam a pensar já se encontrarem levantados, claro que sem a qualidade dos que viríamos a conhecer na matriz da Achada. As visitações referem ainda a necessidade de constituição de uma confraria do orago da freguesia, o que era obrigatório na sequência das determinações do Concílio de Trento, que funcionaria depois no altar-mor com essa evocação. Nesse quadro, nos provimentos da visita de 1631, o licenciado Francisco de Aguiar determinava “ordenar a Irmandade do Bom Jesus” de modo a que tivesse os seus compromissos devidamente assinados, tal como os da irmandade de Nossa Senhora da Encarnação, para serem assinados e terem “licença do Ordinário”. Os compromissos teriam sido mais ou menos elaborados, pois, 10 anos depois, na visitação de 11 de julho de 1641, o mesmo licenciado Francisco de Aguiar atendia a uma súplica dos irmãos da Confraria de Jesus, que pediam que se “lhes baixasse a pensão de cento e cinquenta réis que todos os anos pagam à confraria, em razão do compromisso da irmandade” para um tostão, ou seja, $100 réis, pelo que o visitador assentou que nessa “parte revogo o dito compromisso e mando que daqui em diante paguem somente um tostão” (Id., Ibid., 16). Mais tarde, nos provimentos de 20 de julho de 1647 do licenciado Simão Gonçalves Cidrão, era de novo determinada a organização da confraria do orago da freguesia: “Mando ao Reverendo Vigário que ordene com os fregueses que haja Irmandade da Confraria de S. Jorge” (Id., Ibid.). Os confrades, em princípio, não elaboravam de forma detalhada os estatutos das suas confrarias, facto de que se queixou, nos meados do século seguinte, o bispo D. frei João do Nascimento (1741-1753) em visitação pessoal a esta e às outras freguesias, mandando então que esses fossem elaborados por toda a ilha, daí resultando a grande parte dos estatutos que conhecemos. Na visita de 1647, também foram registadas outras prescrições referentes à organização económica das confrarias, já determinadas nas Constituições Sinodais de alguns anos antes: “E para melhor governo das confrarias e para que cessem as queixas de se dizer que se salvam os mordomos ou outras pessoas dos sobejos delas, ordeno que se faça uma caixinha de três chaves, dentro da qual se lançará todo o dinheiro e um livro em que se irá assentando o que à confraria pertence”. As indicações do visitador contrariavam em princípio as vigentes depois nas confrarias da Madeira, que determinavam que as chaves ficassem na posse do vigário, do procurador da igreja e a outra de “quem o reverendo vigário e procurador parecer” (Id., Ibid.). Na maioria das confrarias que conhecemos, a maior parte com estatutos dos meados do séc. XVIII, as chaves ficavam com o juiz da confraria, o tesoureiro e o escrivão, embora as duas últimas funções fossem muitas vezes e alternadamente ocupadas pelo vigário da freguesia. O visitador determinava ainda que a “caixinha” deveria estar “em outra, dentro da igreja ou na parte que aos três parecer mais segura, a qual se fará dentro de um mês” (Id., Ibid., 17). Desconhecemos se chegou a ser feita nessa altura a “caixinha” em causa, só havendo depois referência a uma arca das três chaves, mas para todo o serviço da freguesia. A especial devoção da freguesia de São Jorge, no entanto, deveria ser a de Nossa Senhora da Encarnação, devoção que aliás se manterá depois na igreja da Achada. Assim, o cónego Cidrão, na visitação de 1647, faz um provimento curioso, mandando abrir “uma fresta de quatro dedos em largo, e um palmo pouco mais ou menos em comprimento” na porta principal da igreja, “para que os devotos vejam a Senhora e santos e se encomendem mais a eles com mais fervor e devoção”. Uma das referências mais interessantes nos provimentos é a prática penitencial para expiação dos pecados, especialmente nas sextas-feiras da Quaresma e, muito especialmente, na Quinta-feira Santa. Nos provimentos de 1641, estabelece o visitador, sem referir quais as penitências, “que os que se disciplinarem em Quinta-feira das Endoenças ou Sexta-feira da Quaresma, o não façam por entre as mulheres, da porta travessa para cima” (MATOS, 2000, 16-17), donde se deduz ficarem as mulheres dessa porta para a frente e os homens para trás. Tomando como exemplo as confrarias do Porto do Moniz, as mesmas só se teriam instalado verdadeiramente nos finais do séc. XVII, facto de que se queixavam amargamente os visitadores. A Confraria do Santíssimo de N.ª Sr.ª da Conceição, e.g., ainda não estava instalada em 1666, determinando o visitador a sua montagem com a escrituração de um livro onde constassem as entradas de irmãos, bem como a receita e despesa da irmandade. A confraria estava montada nos finais do século, tendo aderido à mesma os principais proprietários locais, mas não era acessível aos restantes fregueses, dado o pagamento de uma cota de $600 réis anuais. Vieram assim a surgir as Confrarias de S. Sebastião, dos Fiéis de Deus, que utilizavam uma bandeira de Misericórdia, mas que pertenciam ao Santíssimo, tendo de ser alugadas, e cujas cotas eram de $060 réis anuais, e ainda uma Confraria das Almas. A Confraria das Almas seria acusada pelo visitador de 1685 de não cumprir as suas obrigações, quer no acompanhamento dos defuntos quer na satisfação das esmolas, que nesta Confraria era de $200 réis. O visitador advertia, inclusivamente nos seus provimentos, que quem não cumprisse o pagamento das “esmolas” deveria ser expulso, excetuando os que, devido à sua pobreza, não pudessem pagar. A situação não melhorou nos anos seguintes e o visitador de 1689 mencionava que as Confrarias das Almas eram das principais em qualquer igreja, ainda que, no Porto do Moniz, parecesse “não haver almas nem quem se lembrasse delas” (RIBEIRO, 1996, 230). Os provimentos parecem não ter tido especial efeito, pois, em 1691, voltava-se a registar em novo provimento que deveria haver um livro de contas e das entradas dos irmãos. Os problemas económicos, quase mais que os religiosos e de costumes, parecem atravessar grande parte dos provimentos das visitações. Assim aconteceu na igreja de S. João Batista da Fajã da Ovelha, em 1678, quando o cónego Marcos Cerveira condenou os empréstimos a juros praticados pelas confrarias e ordenou ao vigário que cobrasse todas as importâncias em dívida, “assim por escritos, como sem eles”, porque eram necessárias à “obra do retábulo” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal, Provimentos e Visitações..., mf. 144-145, fl. 113-113v). Situação diversa era a vivida na cidade do Funchal, onde, embora sempre ocorressem queixas de falta de verbas, as confrarias proliferaram e, com as mesmas, os luxos das suas festas e dos seus altares. Temos assim ainda na Sé as Confrarias do Senhor Jesus, por reforma da de Santa Ana, de N.ª Sr.ª do Rosário e de N.ª Sr.ª do Amparo, devoções comuns aos finais do séc. XVI e inícios do séc. XVII, da Conceição, dos meados do séc. XVII, de S. José e, ainda, a das Almas, com compromisso aprovado pelo bispo, D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), a 6 de maio de 1713, e a do Senhor dos Passos, dos meados do séc. XVIII. A Confraria de S. José, incorporando os oficiais carpinteiros e pedreiros, mas também entalhadores e outros, deve ter seguido o exemplo dos sapateiros, instituídos em confraria em 1562, e a dos ferreiros, instituídos em 1572, mas só lhe conhecemos documentação da segunda metade do século seguinte. Um alvará de 23 de dezembro de 1688, assinado pelo arcediago do Funchal, doutor António Valente de Sampaio, por ordem do então vigário geral e provisor do bispado, José Mendes de Vasconcelos, autoriza oficialmente os irmãos da Confraria de S. José a “levarem Cruz em Procissão”, acrescentando que a mesma deveria ser acompanhada de “pelo menos, seis irmãos” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal..., Regimento Geral das Capelas…, liv. 19, fl. 33). Por essa época, os mordomos da Confraria de S. José da Sé exploravam uma pedreira no Cabo Girão. O problema da pedra regeu-se, durante o Antigo Regime, pelo alvará manuelino de 9 de fevereiro de 1502, que liberalizava o seu corte e utilização enquanto “bem comum”. A primeira dificuldade teria ocorrido nos finais do séc. XVII, sendo objeto de uma sentença do juiz de fora da Ilha, Manuel de Sousa Teixeira, datada de 28 de março de 1696, a favor da Confraria de S. José da Sé do Funchal e contra o P.e Aires de Ornelas e Vasconcelos. O padre entendia possuir direitos contra a provisão citada, “alegando o direito de posse sobre as terras da pedreira de Cabo Girão” e “exigindo um tributo de 600$000 réis, por cada barco de pedra caída e 400$000 réis, de cada barco que se tirasse da mesma pedreira”. O despacho do juiz de fora foi confirmado pelo ouvidor Teotónio Martins de França, a 24 de maio seguinte, e, mais tarde, pelo ouvidor Francisco de Vasconcelos Coutinho (1665-1723), a 18 de abril de 1698. Subiu ainda à Relação de Lisboa, onde voltou a ter o mesmo despacho, a 15 de dezembro de 1699, assim como o do juiz da Coroa, a 13 de fevereiro de 1700, ficando tudo registado na Alfândega do Funchal (BNP, reservados, cod. 8391, fls. 29-33) e na Câmara do Funchal (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fl. 247v.), devendo o P.e Aires de Ornelas e Vasconcelos pertencer à família dos instituidores da capela de S.to António visto conseguir fazer todos estes recursos. A relevância desta confraria no séc. XVIII é notória pelo recurso à eleição como juízes dos representantes da família dos Bettencourt de Vasconcelos e Sá, onde se sucedem, em 1760, João José de Vasconcelos Bettencourt (1715-1766), reeleito nos anos seguintes, e, em 1768, a irmã, a “Ilustríssima e Excelentíssima Senhora Dona Guiomar Madalena de Sá e Vilhena” (1705-1789), como vem escrito, que assina a partir daí as atas, sendo esta situação, a de uma mulher aparecer como juiz de uma confraria de homens, neste caso dos pedreiros e carpinteiros do Funchal, única na Ilha, com muito pouco paralelo em Portugal (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 25-27, 29 e 32). D. Guiomar assinaria os termos de eleição até 1779, inclusivamente o termo de 17 de maio de 1771, onde se levantou na mesa o problema do empréstimo das cortinas da confraria e onde se deliberou “que nenhum escrivão nem tesoureiro emprestassem as cortinas”, sob pena de pagar “a condenação imposta pela visita”, repor às suas custas as mesmas e “ser lançado fora do serviço” da confraria. Excetuavam-se, no entanto, os empréstimos “a S. Francisco, ao Corpo Santo, ao Rosário, a Santa Clara e ao Carmo” (Ibid., fl. 34). A morgada faleceu em 1789, pelo que na eleição desse ano, a 19 de março, era eleito para juiz o sobrinho, o “Ilustríssimo Senhor” João de Carvalhal Esmeraldo Vasconcelos Bettencourt de Sá Machado (1733-1790), que assina a folha já com uma letra algo trémula (Ibid., fl. 54), falecendo pouco depois. A 15 de novembro de 1790, fez-se eleição para novo juiz e, “na falta de seu pai”, como filho mais velho, foi eleito o coronel Luís Vicente de Carvalhal Esmeraldo Vasconcelos Bettencourt Sá Machado (c. 1752-1798), que assina com uma letra de excecional segurança para a sua época (Ibid., fl. 56). O coronel faleceria em 1798, mas só em 1800 a confraria deve ter conseguido que aceitasse a eleição para juiz o futuro conde de Carvalhal (1778-1837), embora não assine a folha (Ibid., fl. 66). O futuro conde de Carvalhal continuaria a ser oficialmente juiz da confraria até 1808, quando já saíra da ilha em 1802. Na eleição de 20 de março de 1809, presidida pelo cónego João Francisco Lopes Rocha, que assina o termo, já não se faz referência à eleição de qualquer juiz, o mesmo acontecendo na seguinte, a 20 de maio de 1814, presidida pelo mesmo cónego, agora também arcediago, que já nem assina a ata. Como se pode ver pelo espaçamento das datas das eleições, as velhas confrarias dos ofícios agonizavam lentamente, não havendo referência a mais eleições até aos meados do séc. XIX. As confrarias religiosas foram confrontadas ao longo do séc. XVIII com uma complexa situação de centralização do poder régio. Ao longo desse século, as relações da corte portuguesa com Roma foram um longo "braço de ferro", tentando-se transformar a igreja em Portugal numa “igreja portuguesa”, logo sob a superintendência da coroa e dentro de um processo de centralização do poder régio. Em relação à Madeira, numa primeira fase, assistimos à tentativa do recrudescimento do papel da Inquisição e, depois, à campanha rigorista da “jacobeia”. A campanha dos bispos jacobeus na Madeira assentou num especial rigorismo de interpretação dos preceitos religiosos, com enfâse na prática da confissão, na educação do clero, na moralização geral dos costumes e na centralização do poder episcopal, com o primeiro prelado jacobeu, D. frei Manuel Coutinho (1715-1741), e, após o terramoto de 1748, com o seu sucessor, D. frei João do Nascimento. Os princípios por que se orientavam os jacobeus assentavam no propósito de fazer observar escrupulosamente os preceitos religiosos do catolicismo, tanto ao nível do clero como entre os seculares. Tentavam adequar os costumes das populações à ética cristã, aprofundando uma piedade mais espiritual e interior do que ritualista, estimulando a prática quotidiana da “oração mental”, o regular exame individual da consciência, a correção fraterna dos que pecavam, a frequência dos sacramentos, com particular destaque para a confissão, a mortificação dos vícios e das paixões desordenadas, os jejuns, o desprezo do mundo, a pobreza no vestir e a frugalidade no comer. Nesta mesma linha de cuidados, surgia a necessidade de se observarem as contas das confrarias, das quais não se encontravam registos em quase lugar nenhum, o que se atribuía à incúria de um clero pouco vigilante, depois das capelas e legados pios, dos conventos e recolhimentos, etc. As reações dos clérigos ficaram traduzidas no relatório que o vigário geral apresentou ao bispo em finais de 1725. Nesse relatório foram apresentadas as queixas dos ministros eclesiásticos por serem obrigados a fazer exame, a apresentar habilitações “de genere”, a entregar a tempo os róis de confessados, a dar as contas das confrarias, etc., o que de todo estranhavam, “dizendo que o rigor era demasiado” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal..., doc. 270, fls. 195-202). A situação da freguesia de S. Jorge face às novas diretivas emanadas pelo bispo D. frei Manuel Coutinho está bem patente na visita de 10 de outubro de 1727 feita pelo doutor Silvestre Lopes Barreto, vigário e ouvidor eclesiástico da colegiada de N.ª Sr.ª da Conceição da vila de Machico, àquela freguesia, quando era ali vigário o P.e António Fernandes Barradas. Regista o visitador nos seus provimentos que achara não existir “livro do tombo das missas e obrigações e pensões anexas”, mas “tão-somente uma pauta muito diminuta”, ordenando que “em termo de seis meses” se fizesse o respetivo tombo, onde se haveria de registar os encargos, legados e obrigações, que se era preciso ir sempre atualizando. O mesmo se deveria passar em relação a cada uma das confrarias e às ermidas, acrescentando ainda que, em relação às missas, havia então determinações muito específicas do prelado para se não aceitarem “pensões de missas perpétuas”, salvo se com seu consentimento (MATOS, 2000, 17). Teceu em seguida o visitador uma série de considerações sobre as confrarias, com especial destaque para o que se encontrava regulado pelas Constituições Extravagantes sobre a eleição dos novos mordomos, de que se deveriam fazer os termos de eleições, as responsabilidades dos tesoureiros e do vigário, que deveria aprovar as contas do tesoureiro, etc. Explicava ainda os inconvenientes resultantes da falta de registos, como era o caso “do grande número de missas caídas, a que era obrigada a dizer a Confraria de N.a Sr.a da Encarnação desta igreja, que todas mando satisfazer para alívio e bem das almas dos testadores” (Id., Ibid.), onde se deveriam encontrar as inúmeras missas deixadas no testamento do P.e Tomé Caldeira. Silvestre Lopes Barreto refere ainda a vistoria que fizera no Livro da Arca das Três Chaves, onde achara “tudo na mesma confusão, no lançar do dinheiro na dita arca e nos termos do dito livro”, voltando a insistir na separação das entradas e das saídas, assim como nos títulos dos bens das confrarias. Sobre os fregueses de S. Jorge, refere o visitador que fora informado de que, devendo ir ouvir missa, chegavam atrasados, pelo que determinava “que dobrando o sino pela segunda vez” viessem todos para a igreja, para que à terceira vez que tocassem os sinos já estivessem todos reunidos para ouvir o vigário, sob pena de multa em $200 réis “para a fábrica da igreja”. O visitador também fora informado de outras infrações no adro da igreja, “ajustando contas e armando conversas, de que muitas vezes resulta haver pendências e gritadas”, tudo contribuindo para o descrédito dos lugares sagrados. Os infratores deveriam ser multados também em $200 réis, mas pagos no aljube (ABM, S. Jorge, Registo de Provimentos..., mf. 681, cota 58, fls. 1-3v.). A seguinte visita ocorreu a 28 de agosto do seguinte ano de 1728, então pelo bispo D. Fr. Manuel Coutinho, cujos provimentos se iniciam com uma ríspida admoestação ao P.e António Fernandes Barradas, na medida em que este não tinha elaborado o “tombo da sua igreja”, nem o que dizia respeito às “missa e obrigações”, ameaçando-o “com pena de suspensão do seu ofício” se não desse princípio àquela obra e continuasse a ter somente uma “pauta das missas”. Dava-lhe assim mais seis meses para elaborar os tombos, após o que viria a S. Jorge o juiz dos resíduos para “tomar conta das capelas nesta paróquia” (Ibid., fls. 35v.-36v.), mas o vigário, quase de imediato, era afastado. O projeto de D. frei Manuel Coutinho era o de “plantar nova cristandade” no território insular, como se registou nas memórias que mandou elaborar sobre o seu trabalho na Madeira. A delimitação da área de manobra das confrarias, a tentativa de chamar à diocese o controlo absoluto sobre os legados pios, envolvendo os bens e seus encargos, criou uma profunda crispação que, aliás, foi apanágio de todos os episcopados jacobeus, como o do seu sucessor, D. João do Nascimento, dentro de um programa de ação rigoroso e reformador, que raramente conheceu desvios. Data deste episcopado a reforma de uma parte substancial dos estatutos das confrarias madeirenses e a criação de uma nova confraria, a dos Escravos de Nossa Senhora do Monte, a 6 de abril de 1750, “dia em a Igreja Católica solenizou os Prazeres da mesma Senhora”, na sé do Funchal e em todas as mais igrejas, revelando bem o título adotado o espírito jacobeu estirado no compromisso de serem “escravos servos” (ABM, Confrarias, liv. 53, fl. 1). Numa segunda fase, temos a centralização pombalina, que levou à extinção da Companhia de Jesus, “um estado dentro do próprio Estado”, à delimitação das entradas nos conventos e ao controlo económico das confrarias. O governo da Diocese foi então entregue a D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1703-1784), que se pautou por um certo autoritarismo, certamente inspirado no gabinete pombalino e, provavelmente, no facto de ter iniciado o seu episcopado na Madeira, assumindo o governo de armas. Assim, em 1760, o juiz dos resíduos e provedor das capelas, Pedro Nicolau de Bettencourt Freitas, queixava-se do bispo e do vigário-geral pela prisão arbitrária e vexatória do seu filho João José Bettencourt e Freitas e do seu irmão Francisco José Bettencourt e Freitas. O problema da provedoria e do juízo das capelas, onde constavam os registos das missas das confrarias, mas não só, arrastou-se com as interferências contínuas do prelado em tudo o que dissesse respeito a esse assunto e não pararia de extremar até aos finais do século, pois era impossível cumprir os legados pios estipulados, por vezes, centenas de anos antes. Entre as principais lesadas estavam as confrarias, cuja vida assentava, principalmente, nos legados pios, assunto que em breve passava para o foro civil, sob a tutela do governador. No quadro da centralização régia, em 1766, procedera-se à incorporação na coroa das capitanias, sendo estas extintas na déc. de 90 juntamente com as ouvidorias. Procedeu-se também a reformas na organização religiosa, na tentativa de reduzir as regalias, posse de bens e a percentagem de membros pertencentes ao clero em relação à população ativa, aspectos que começaram a ser sensíveis logo em 1766 com a retirada progressiva da superintendência do bispo sobre as confrarias, passando nessa altura a aprovação dos estatutos para a coroa, assunto que levaria anos a resolver. Foram igualmente colocados em causa os beneficiados da diocese, ordenando, uma vez mais, o rei, a 27 de julho de 1768, o envio de listas completas e atualizadas de todos os beneficiados e de todas as colegiadas insulares. Acumulavam-se, entretanto, em Lisboa as queixas contra a ação do prelado e dos seus visitadores, principalmente na área dos resíduos e capelas. Uma das queixas foi emanada pela câmara da Ponta do Sol, em novembro de 1779, e assinada por todos os vereadores. A queixa era acompanhada de um relatório assinado pelo então provedor José Vicente Lopes de Macedo Correia e referia as violências e vexames praticados pelo visitador eclesiástico, bacharel Manuel Roque Ciríaco de Agrela, com os tesoureiros e administradores das confrarias e irmandades da Ilha, narrando circunstanciadamente vários casos (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 542 e 553). As queixas repetiram-se no ano seguinte, novamente pelo provedor e então também pela Câmara Municipal do Funchal, envolvendo, genericamente, os abusos e excessos de jurisdição frequentemente exercidos pelo bispo e seus visitadores, vigários e párocos sobre as confrarias. A situação não deixou de piorar nos anos seguintes e, com a chegada do novo governador João Gonçalves da Câmara Coutinho, em 1777, o ministro Martinho de Melo e Castro (1716-1797) teve mesmo de admoestar o governador e o bispo. A carta abre com um pedido de desculpas: “Vossa Senhoria desculpe a um ministro velho, com alguma experiência do mundo, a sincera liberdade do que lhe disser; na certeza de que toda ela nasce do ardente desejo que tenho de que sirva bem”. Ao longo de 16 páginas, não deixando de criticar a ação do bispo, “demasiado zeloso”, e do vigário geral, “mais pronto a atear conflitos, que os resolver”, admoesta o governador para que não se repetissem mais questões entre as duas autoridades, “para que nem Vossa Senhoria tenha o desgosto, nem eu o pesar, de que elas cheguem à Real Presença” (Ibid. doc. 71, fl. 15). A nomeação para novo bispo do Funchal recaiu em D. José da Costa Torres (1741-1813), prelado que iria enfrentar corajosamente, acrescente-se, uma das situações políticas e económicas mais complexas da história portuguesa e insular, com o rescaldo da guerra de independência das colónias inglesas da América do Norte, de 1775 a 1782, e, depois, as ideias maçónicas que iriam conduzir à Revolução Francesa, em 1789. A ação do prelado estendeu-se depois, mais uma vez, ao juízo da provedoria dos resíduos, sobre a qual exerceu algumas pressões que parecem ter-se estendido ao “conteúdo das contas”, pelo que o tribunal da mesa da consciência e ordens, em 16 de outubro de 1780, ordenou ao governador: “fareis ouvir por escrito ao reverendo bispo do Funchal” sobre esse assunto, devendo depois comunicar os resultados aos deputados daquela mesa (ABM, Governo Civil, liv. 535, fls. 13v.-14). Em causa estava a superintendência régia sobre o juízo dos resíduos e capelas, estabelecida deste a vigência do gabinete pombalino, sobre o que, logicamente, a Igreja mantinha as maiores reservas, entendendo ser assunto seu. Tentou a igreja madeirense nesses anos recuperar algum espaço de manobra perdido anteriormente através de uma nova imagem, de acordo com os gostos da época, dentro da tentativa de recuperação do antigo protagonismo regional do prelado. As obras envolveram a abertura de duas grandes janelas na fachada e a montagem de uma varanda corrida e, interiormente, o alargamento das paredes das naves laterais para que aí tivesse lugar a remontagem da maioria dos altares das confrarias, até então no transepto. O problema foi a sequente montagem dos altares, a que as confrarias, de certa forma, resistiram. Para fazer face à situação, D. José da Costa Torres tentou acabar com as antigas irmandades de ofícios, que haviam levantado parte dos altares do transepto, por provisão episcopal de 18 de abril de 1792, alegando a sua “irregular ou nula administração”, passando os seus documentos e receitas para a fábrica da sé, que se encarregou do cumprimento das respetivas obrigações pias. O assunto, no entanto, não era linear e as confrarias tinham, de certa forma, personalidade jurídica independente, pelo que, embora não afrontando o prelado, os novos altares só vieram a ser montados nos anos seguintes. Tal como no continente, também na Madeira se viveu um clima de grande agitação com a proclamação da Constituição de 1820, a reação absolutista de 1823 e a Carta Constitucional de 1826. Se, por um lado, era ideia dos liberais a completa separação entre Igreja e Estado, a liberdade religiosa e a delimitação de outras áreas, como a que conduziu à extinção imediata dos conventos, por outro lado, tiveram que contemporizar com toda uma tradição ancestral, definindo a Carta Constitucional que os portugueses apenas podiam professar a religião católica romana, credo oficial do reino. A partir desta data, algumas confrarias iniciam timidamente a sua reformulação, enviando os seus novos estatutos ao governo de Lisboa, como a Confraria de S. Miguel da Sé, que os reforma em 1819 e em 1839. Com os acontecimentos políticos que se desenrolaram com a implantação do governo constitucional, e que protelaram o preenchimento das dioceses em Portugal, houve uma rutura entre o governo português e a cúria romana. Assim, o bispo D. Francisco José Rodrigues de Andrade (1761-1838) saiu da Madeira em maio de 1834 e só em junho de 1843 foi confirmado D. José Xavier de Cerveira e Sousa (1810-1862) como bispo do Funchal. Chegado ao Funchal no ano seguinte, foi durante o seu episcopado que ocorreram as sedições contra os calvinistas e, com a chegada à Madeira de José Silvestre Ribeiro (1807-1891) em finais de 1846, também o bispo D. José Xavier saía, nos inícios de 1848, do Funchal, ficando a sé vacante até meados de 1859. A atuação dos seguintes governadores foi algo mais contemporizadora e a da Igreja mais tradicional. Dentro de uma nova segurança, tentou então recuperar algumas das suas estruturas, incentivando as velhas confrarias, como podemos ver no Livro da Confraria de São José. Por ata de 20 de fevereiro de 1859, tentou-se assim a reativação da confraria. Tinha então falecido o último tesoureiro, António Rodrigues Santos, pelo que os confrades rogaram a presença do cónego João Frederico Nunes, “atual Mordomo da Reverenda Fábrica” da sé, para que presidisse à sessão, “fazendo as vezes de conservador, como é costume na confraria”, pedido a que o mesmo anuiu, tomando assento na mesa (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 73). Até então, no entanto, nunca tinha sido costume nesta confraria a figura do “conservador”, embora existente noutras confrarias, como na do Senhor Bom Jesus, citado desde 1735 nos estatutos da confraria e entregue a um capitular, e na Confraria de S. Miguel, lugar entregue ao próprio deão. Compareceu então à eleição da nova mesa da Confraria de S. José o genro do falecido tesoureiro, que pediu à mesa “em seu nome, pelos mais herdeiros, suas cunhadas e sogra” que tomasse conta das alfaias, livros e mais objetos pertencentes à confraria, à guarda do seu sogro, e que os desobrigassem dessa responsabilidade, o que, depois de conferido, foi aceite. Foi então eleito o cónego para conservador, “por escrutínio secreto”, tendo este aceitado. Foi ainda solicitado ao mesmo cónego que escrevesse ao 2.º conde de Carvalhal (1831-1888) participando-lhe de que havia sido eleito para juiz da confraria, “como tem sido feito aos Maiores de Sua Ex.ª”, colocando-se em primeiro lugar o nome de D. Guiomar, depois João de Carvalhal, o filho e coronel Luís Vicente de Carvalhal “e, ultimamente, o falecido Exmo. Sr. Conde de Carvalhal”, que aliás falecera em 1837, ou seja, 22 anos antes (Ibid., fl. 74). Foi ainda decidido aceitar como novos irmãos os oficiais dos diferentes ofícios de carpinteiro e pedreiro, “que espontaneamente comparecerão e declararão que queriam entrar”, perdoando-se-lhes, “por essa ocasião somente”, “a joia do costume” ($400 réis), ficando a pagar anualmente $100 réis no dia da festa do orago. Seguidamente, foram então eleitos o tesoureiro, o escrivão e os 12 mesários e mordomos (Ibid., fls. 73v.-74v.). O livro apresenta depois algumas folhas em branco e, a folhas 77, uma interessante cartela, embora algo ingénua, encimada pelas armas do 2.º conde de Carvalhal e com o termo de eleição do conde, assinada por “O Irmão da Mesa servindo de secretário o fiz e assino”, António Joaquim Abreu Jardim. Mais à frente, aparece a lista dos “Irmãos antigos” (Ibid., fls. 79-82v.), somente 10, e a lista dos novos irmãos, que entraram naquele dia 20 de fevereiro de 1859, discriminados com o nome completo, estado e morada: 113 membros, o que não deixa de ser espantoso. A 5 de maio do mesmo ano, ainda entraram mais 17 irmãos, a 26 de fevereiro do seguinte ano de 1860, mais 5, a 28 de abril, mais 1 e, a 29, mais 2. No entanto, as folhas seguintes estão em branco, sinal de ter sido “sol de pouca dura”. As confrarias de ofícios tiveram um importante papel de coesão social no Antigo Regime, estabelecendo normas de comportamento, disciplinando e desenvolvendo hierarquias, bem como socorrendo e prestando assistência, especialmente aos doentes, pobres e defuntos. Com a centralização do poder régio, a partir do gabinete do marquês de Pombal, o seu controlo passou a ser objeto de disputa entre a Coroa e a Igreja, sendo progressivamente cerceada a sua autonomia, que se apagou discretamente ao longo do regime liberal. As velhas confrarias dos ofícios extinguiam-se, assim, progressivamente ao longo da segunda metade do séc. XIX, resistindo somente as sacramentais, ou seja, as do Santíssimo e as dos oragos de cada freguesia. Pontualmente, no entanto, subsistem outras, renascendo também algumas dentro de uma certa liturgia de celebração, no âmbito, hoje exclusivo, das paróquias. Não é, pois, de excluir futuros renascimentos de associação e devoção que nos ultrapassam, como a adesão de mais de 100 novos membros à confraria de São José da sé em 1859. Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)
convento de são bernardino
O primeiro convento franciscano que se fundou fora do Funchal teve por titular S. Bernardino de Sena, um dos grandes santos da mesma ordem, e foi fundado na freguesia de Câmara de Lobos, entre 1459 e 1460, em lugar ermo e solitário, a certa distância da igreja matriz, a norte do Pico da Torre, ainda restando grande parte dos seus edifícios, embora das campanhas de obras dos sécs. XVIII, XIX e XX. O convento teve uma humilde e obscura origem, mas tornou-se célebre e afamado em toda a Ilha, e até no continente, por ter ali vivido e falecido Fr. Pedro da Guarda (1435-1505), a que o povo chama “santo servo de Deus” (VERÍSSIMO, 2002, 79-91). A fundação é atribuída a Fr. Gil de Carvalho, um humilde frade franciscano que veio do continente do reino para a Madeira, quando os Franciscanos que ocupavam o hospício de S. João da Ribeira acabavam de sair da Ilha para irem estabelecer uma comunidade nas proximidades de Lisboa, em Xabregas, que fundaram em 1456, sobre as ruínas do antigo paço de Xabregas e a invocação de S.ta Maria de Jesus, mas que ficou mais conhecido por Convento de S. Francisco. Desejando Fr. Gil viver em lugar desértico como eremita, como escreveu depois o deão, António Gonçalves de Andrade (1795-1868), anotador da História Insular do P.e António Cordeiro (1641-1722) a partir da História Seráfica, levantou um pequeno cenóbio com dois cubículos “em dois pés de terra semeada entre rochas”, num dos quais habitava o fundador e no outro João Afonso e Martinho Afonso, os quais esmolavam pelo povoado para a sustentação dos três (SOLEDADE, 1705, III, 170-171). Crescendo o número de religiosos, trataram de levantar um pequeno convento em terreno que lhes foi doado por João Afonso Correia (c. 1435-1490), escudeiro do infante D. Henrique, e sua mulher, Inês Lopes, que na Ilha foram o tronco da casa Torre Bela. A nova casa religiosa erguia-se num sítio afastado da povoação, cercado de um lado pela ribeira e do outro, por uma rocha, sendo bem própria para o género de vida a que se dedicavam. Passados alguns anos reuniram-se outros religiosos, que formaram a comunidade inicial, mas uma enchente da ribeira, pelos anos de 1480, haveria de destruir a pequena ermida e os primeiros cubículos, o que desgostou irremediavelmente Fr. Gil de Carvalho, que se retirou para o continente, entregando a direção a Fr. Jorge de Sousa. Foi Fr. Jorge de Sousa que reconstruiu o convento, um pouco mais acima, ao abrigo das correntes caudalosas da ribeira, tendo sido levantada nova e mais vasta igreja, com novas celas, “que logo foram habitadas”, tendo ficado o espaço inferior do inicial ermitério para “algumas oficinas de menor importância” (SOLEDADE, Ibid., 173). Data dos finais do séc. XV aos inícios do XVI a organização canónica do convento como uma verdadeira casa monástica, depois de ter melhorado consideravelmente as condições materiais através de doações, contratos de arrendamento, etc., como era hábito, pois estes mosteiros funcionavam também como empresas agrícolas. A fama e o desenvolvimento da comunidade encontram-se decididamente ligados à presença ali de Fr. Pedro da Guarda que, nascido na Guarda, em 1435 e que, tendo professado por 1455, “querendo subtrair-se à admiração que causavam as suas virtudes” (SILVA e MENESES, 1998, II, 103), se refugiou em S. Bernardino por 1485. Falecido em 1505, logo a sua fama se espalhou pela Ilha e pelo continente, sendo referido por Fr. Marcos de Lisboa (1510-1591), depois bispo do Porto, na terceira parte das suas Crónicas de los Frayles Menores, editadas em Salamanca, em 1570, não tendo nunca cessado o culto popular que lhe tem sido devotado. A comunidade de S. Bernardino foi crescendo ao longo do séc. XVI e, por 1584, Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) refere que ali viviam permanentemente 7 a 8 religiosos, sendo o Convento “abastado de toda a fruta e vinhos” (FRUTUOSO, 1968, 122). Em 1598, no Recenseamento dos Fogos, Almas, Freguesia, e Mais Igrejas, registavam-se 10 a 12 religiosos, sinal de continuar a crescer a população residente do Convento e, por certo, pela devoção suscitada com a ocorrência, no ano anterior, da localização da sepultura de Fr. Pedro da Guarda. No início do ano anterior, a 9 de janeiro de 1597, registam as vereações do Funchal não se ter realizado sessão da parte da manhã, por falta de comparência dos oficiais do concelho, que haviam sido informados de que os franciscanos tinham descoberto os restos mortais de Fr. Pedro da Guarda (ABM, Câmara Municipal do Funchal, 1313, 3 v.). A exumação oficial deve ter ocorrido depois, a 28 de janeiro desse ano, na presença, de novo do bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), do reitor do colégio do Funchal, P.e Cristóvão João “e outras pessoas qualificadas”, como regista a História Seráfica (SOLEDADE, Ibid., 173). O certificado de transladação de Fr. Ambrósio de Jesus, à época definidor-geral e comissário dos conventos franciscanos da Madeira, datado de 23 de maio de 1624, regista somente tal ter ocorrido em janeiro de 1597 e reivindica para si o ter encontrado, nos claustros, os restos do corpo de Fr. Pedro da Guarda (Girão, 1992, 8, 396-397). A capela-mor da nova igreja foi fundada por Rui Mendes de Vasconcelos (c. 1460-c. 1520), filho mais novo de Martim Mendes de Vasconcelos e de Helena Gonçalves, filha de Zarco, e a sua mulher Isabel Correia, que era filha dos doadores do terreno em que se tinha levantado o primitivo convento. Pajem da rainha D. Leonor e um dos homens-bons do concelho do Funchal, onde serviu de vereador, guarda-mor da saúde e procurador do concelho, Rui Mendes de Vasconcelos mandou redigir cédula de testamento a 15 de setembro de 1515, antes de seguir para o reino, onde determina vir a ser enterrado no meio da capela-mor, junto dos seus filhos já falecidos. A capela teria sido reconstruída por 1533 e a lápide em causa, nessas ou nas obras seguintes, transferida para o adro da igreja, onde se encontra. Mais tarde, o neto homónimo Rui Mendes de Vasconcelos deixou ainda em testamento, de 16 de abril de 1569, 160$000 réis da sua terça para sufrágios por sua alma. Com essa importância deveriam ainda ser compradas várias alfaias e paramentos, como um cálice de prata dourada, de três marcos, uma vestimenta, uma capa e um frontal de seda de damasco. O remanescente seria aplicado em bens de raiz, “em boa terra, em Câmara de Lobos, e em água” para subsistência dos frades, tudo ficando enfeudado, “enquanto o mundo durar” (VERÍSSIMO, 2002, 33), a duas missas semanais rezadas, às quartas e às sextas, pela sua alma e as dos seus filhos. O seu testamento não veio a ser aprovado, fazendo-se inventário e partilhas, de forma a assegurar o legado. Os bens destinados a esse efeito, embora ligeiramente inferiores aos inicialmente destinados, à época, cumpriam suficientemente o determinado, mas o mesmo não viria a ocorrer alguns anos depois. O neto do segundo Rui Mendes de Vasconcelos, por via materna, também padroeiro da mesma capela-mor, João de Bettencourt de Vasconcelos (1535-1615), nos finais do século, requeria ao bispo do Funchal a redução das missas em questão. O bispo D. Luís Figueiredo de Lemos já tinha exposto a situação para Roma e havia recebido uma carta da Sagrada Congregação dos Cardeais, de 4 de outubro de 1589, concedendo-lhe o poder para reduzir as capelas e missa dos administradores do seu bispado “que se sentissem carregados com grande número de missas e encargos, ao justo e razoável, conforme as propriedades e rendimentos” (ABM, Juízo da Provedoria de Resíduos e Capelas, tombo 3, 608-608 v.). O despacho do pedido do administrador da capela-mor de S. Bernardino teve a data de 19 de dezembro de 1593, reduzindo o bispo o número de missas de duas semanais para uma por mês, mas mantendo as demais obrigações dos padroeiros, que eram o pagamento de azeite, pão, peixe ou carne e vinho para a subsistência dos frades. João de Bettencourt de Vasconcelos, a quem, regista Henriques de Noronha (1667-1730) (Noronha, Henrique Henriques de) no seu Nobiliário Genealógico, chamavam “o Cavaleiro, de alcunha”, tendo passado à Índia por capitão da nau São Gregório, sucedeu, entretanto na terça dos seus avós, por morte de seu irmão Rui Mendes de Vasconcelos, homónimo dos vários avós e que falecera sem descendência. Por testamento aprovado em 12 de dezembro de 1607, como administrador dos bens do irmão, refere que a terça do mesmo ainda tinha como obrigação para o Convento de S. Bernardino uma pipa de vinho novo, quatro arrobas de azeite e 3$500 réis de missas rezadas e cantadas, pelo que deve ter havido ainda outras alterações a estes legados. No seu testamento, João de Bettencourt de Vasconcelos deixou vinculada a sua terça nas fazendas por cima de Câmara de Lobos e abaixo da quinta da Torre, deixando-a aos frades de S. Bernardino. Determinou que a administração desta capela, depois conhecida como “Terça dos Frades”, deveria passar à sua filha Helena de Vasconcelos (c. 1572-1625), instituidora da capela-mor da igreja do Colégio do Funchal, dado o filho Henrique de Bettencourt não ter descendência e falecer pouco depois, em 1620, e Guiomar de Bettencourt (c. 1571-1607), a irmã mais velha, já ter falecido. Data de cerca de 1633 a construção de três pequenas capelas na cerca, para além de outros melhoramentos nos edifícios do Convento. As capelas de homenagem a Fr. Pedro da Guarda ficavam, uma junto à sepultura do “santo”, identificada nos finais do século anterior, outra junto da cozinha, onde a tradição contava ter havido anjos a ajudá-lo nos seus trabalhos e a última, junto à pequena lapa onde costumava meditar, isolado de tudo e de todos. Por esses anos igualmente se fizeram obras nos claustros e na casa do capítulo, para o que Rui Mendes de Vasconcelos (II) deixara os materiais, como madeira de cedro e que a mandara colocar na loja do mosteiro. Saliente-se, no entanto, que nem sempre estas determinações testamentárias eram cumpridas, pois que no documento em questão se refere a importação de uma laje da Flandres, que não temos informação de alguma vez ter existido, tal como determina que se fizessem grades de ferro, de varões grossos, lavrados e dourados para a capela-mor, de modelo idêntico aos da capela do Santíssimo da sé do Funchal, a fim de substituir os de madeira que já estavam velhos, que também mais ninguém volta a referir. Alguns anos depois Henrique Henriques de Noronha descreve pormenorizadamente o Convento, a “uma légua da cidade do Funchal, para poente”, por cima do lugar de Câmara de Lobos, que com os anos fora aumentando o número de edifícios, especialmente graças à contínua romagem do “Servo de Deus”, constituindo-se numa das melhores casas franciscanas e a segunda da Custódia de S. Tiago Menor da Madeira. Tinham então boas oficinas e “excelentes cómodos” para os 18 religiosos que habitavam no Convento. Compreendia três dormitórios, que com a igreja formavam um “perfeito quadro”, com um claustro rodeado de varandas sobre pilares de “cantaria fina” e no meio uma fonte de “perene água” (NORONHA, 1996, 250-251). O cronista descreve as várias capelas, uma das quais no claustro, dedicada a Fr. Pedro da Guarda, “onde misteriosamente foram achadas as relíquias na sua sepultura, pelo bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos, em oito de janeiro de 1597”, o que, se de algum modo pode ser confirmado pelas vereações camarárias do Funchal, que no dia seguinte não tiveram sessão por todos terem acorrido a Câmara de Lobos, embora esteja em desacordo com o que escreveu Fr. Fernando da Soledade, que regista o dia 28 de janeiro, e, logicamente, omite ter sido o bispo do Funchal a fazer o achado. Refere-se ainda à capela construída na antiga cozinha, também dedicada ao “santo”, onde “vinham os anjos beneficiar o comer, enquanto ele se ocupava em outra maior contemplação”, figurando aí a sua imagem de joelhos, em oração, dentro da antiga chaminé “e os anjos ocupados no ofício do Santo” (Id., Ibid.). Nos claustros havia outra capela, que servia de capítulo aos religiosos, dedicada a N.ª Sr.ª da Piedade, “cuja imagem é de maravilhosa pintura”, capela fundada por André Afonso Drumond e sua mulher Branca de Atouguia. Fora do claustro, junto à portaria e à igreja ainda havia outra capela, dedicada às almas, com uma confraria e, a “poucos passos adiante”, ainda a capela de S. Lourenço, dentro da qual, do lado da epístola, ficava uma “lapa fechada com grades de ferro” (Id., Ibid., 252), que ainda subsiste, onde era tradição que Fr. Pedro da Guarda se retirava para oração. A igreja era “proporcionada ao convento”, de uma só nave, com capela-mor e dois altares colaterais: o do lado do evangelho dedicado ao Senhor Jesus, com irmandade e, o da parte da epístola, à Conceição de N.ª Sr.ª. O retábulo-mor possuía três nichos, sendo o central ocupado pela imagem de S. Bernardino de Sena e os laterais, pelas imagens de S. Francisco e de S.to António. Na parede do lado da epístola figuravam as armas dos Vasconcelos e, no lado oposto, havia uma tribuna. Na porta lateral que saía para os claustros havia uma laje com as letras A e D, indicação de que ali havia sido enterrado Fr. António Descalço, “religioso leigo cuja virtude e largas penitências lhe adquiriram larga veneração” (Id., Ibid.), mas na lápide aí existente no começo do séc. XXI figura o nome por extenso do frade leigo, por certo bem anterior aos anos de 1722, em que foram escritas as memórias do cronista Noronha. Fr. António Descalço havia sido canavieiro de açúcar de António Correia, o Grande (1457-1572), filho dos doadores do terreno inicial do Convento, tendo entrado como donato, ou seja “consagrado ao Senhor”, em referência a alguém mais novo e que estaria a preparar-se para seguir a vida religiosa, professando depois, mas como leigo. Passou a usar o nome de Descalço, “porque jamais calçou alparcatas” e quando se “faziam gretas nos pés, do exercício, as cozia com fio de sapateiro”. Faleceu em 27 de maio de 1590, o que parece corresponder à lápide depois colocada, tendo escrito Noronha que foi contemporâneo de Fr. Pedro da Guarda, “que sem dúvida seria o modelo do seu espírito”. No entanto, tendo o “santo” falecido em 1505, não podem ter sido contemporâneos, pois embora o antigo amo, António Correia, tenha falecido com 115 anos, um canavieiro que sempre andou descalço dificilmente teria passado dos 70 anos. Escreveu também Noronha que sobre a sua sepultura “se viam algumas vezes luzes” e ouviam cânticos amenos, com “um suavíssimo cheiro, que saindo dela se fundia por toda a igreja” (Id., Ibid., 251-253). Na descrição de Noronha do então oratório de S. Sebastião da Calheta, refere-se que no Convento de S. Bernardino se havia homiziado Pedro Bettencourt de Atouguia (1622-c. 1680), o qual tinha assassinado, por problemas de coleta de impostos, o corregedor Gaspar Mouzinho de Barba, a 29 de dezembro de 1642. O corregedor viera à Madeira para investigar uma série de tumultos ocorridos no ano anterior e, tomando conta da fazenda real, passou a tratar dos vários pagamentos em atraso. Entre esses pagamentos encontravam-se os de Pedro de Bettencourt, Manuel Homem da Câmara e outros, pelo que dirigindo-se à Câmara do Funchal, então nas traseiras da sé, para prender o último, foi assassinado às portas da mesma por Pedro de Bettencourt. Conta então Noronha, que foi depois preso, em princípio, pelo seguinte corregedor Jorge de Castro Osório, por sua vez, morto por envenenamento poucos meses depois (Aclamação de D. João IV). O morgado Pedro de Bettencourt teria, entretanto “arrombado a prisão” e passou a viver homiziado, de início, no Convento de Câmara de Lobos, “mas com tal mudança de vida”, que despendia a maior parte dos rendimentos do morgado em benefício da caridade, tendo feito “à sua custa as varandas do claustro de S. Bernardino”. Aí permaneceu até 1670, data em que comprou o terreno para o oratório de S. Sebastião da Calheta, cuja construção se iniciou por essa data, professando ali como Fr. José da Encarnação, onde “andou sempre descalço” e foi depois sepultado na capela-mor daquele oratório (Id., Ibid., 257). O Convento de S. Bernardino beneficiava, entretanto do púlpito da colegiada de S. Sebastião da Câmara de Lobos, pelo menos, desde o alvará de D. Filipe II, de 20 de outubro de 1612, que atribuiu ao guardião um ordenado anual de 15$000 réis e a obrigação de pregar na colegiada no Advento e na Quaresma, o mesmo acontecendo com os restantes conventos franciscanos, em relação às colegiadas das matrizes das freguesias próximas. Mais tarde, com a dinastia dos Bragança, as porções e esmolas dos sermões auferidas pelos religiosos estariam isentas do pagamento da décima, por provisão régia de maio de 1650. Os frades de S. Bernardino, e o Convento em geral, a partir dos inícios e meados do séc. XVII, vieram a beneficiar com o recrudescimento da devoção de Fr. Pedro da Guarda, tendo sido contínuas as tentativas de beatificação e os processos enviados para Roma. O Papa Urbano VIII, a 30 de agosto de 1625 ordenou, inclusivamente ao bispo do Funchal, D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), que, com dois dignatários da Sé, fizesse nova inquirição por autoridade apostólica. O processo foi concluído em 1628, sendo enviado para Roma, mas não tendo conhecido despacho. Novas tentativas foram feitas pelo P.e Fr. Baptista de Jesus, que se deslocou a Roma para negociar a causa, ainda sendo conduzida outra tentativa pelo deão, vigário-geral e provisor do bispado em sé vacante, Pedro Moreira (c. 1600-1674), em 1652, igualmente sem resultados. O erário público, entretanto concorreu igualmente para os processos de beatificação, determinando o rei D. João IV, por alvará de 3 de setembro de 1653, que os ministros da justiça aplicassem na Ilha metade das condenações pecuniárias para ajuda das despesas. A determinação de D. João IV foi confirmada cem anos depois, pelo bisneto D. José, por novo alvará, em 27 de fevereiro de 1753, para que se mantivesse a ajuda das despesas ao processo de beatificação do “Santo Servo de Deus” (BNP, Índice Geral do Registo da Antiga Provedoria da Real Fazenda, 118 v.), assunto cumprido ao longo dos séculos seguintes, mas sem resultado, ainda se arrastando o processo por Roma. O Convento de S. Bernardino veio a ser totalmente reconstruído nos inícios e meados do séc. XVIII, quase que somente se tendo preservado a lapa e a sepultura de Fr. Pedro da Guarda, assim como algumas das lápides sepulcrais. As obras devem ter-se iniciado por 1735, como atesta a data inscrita na base da cruz do frontispício da igreja e prolongaram-se, pelo menos para além de 1747, como se inscreveu no lintel de uma das janelas próximo da torre. A igreja ficou então dotada de três portas com molduras assentes em colunas oitavadas e conjunto rematado por cornija relevada sobre a qual assenta um pequeno nicho de cantaria aparente. O conjunto das portas parece ter tido o risco de um mestre das obras reais anterior, talvez Manuel de Vasconcelos, mas toda a fachada deve ter sido reformulada nos inícios do XIX, depois da aluvião de 1803 e ainda nas obras de 1924 a 1928, não sendo fácil deduzir o que ficou das campanhas de obras mais antigas e, inclusivamente, se não se aproveitaram cantarias de outros locais do Convento. Para estas obras, em princípio, o guardião e demais frades tiveram autorização da Câmara do Funchal, por alvará de 13 de janeiro de 1742, licença para cortar vinte e cinco paus nas serras do concelho. Entre 1730 e 1740 também se encomendaram vários painéis de azulejos para os claustros a uma das boas oficinas de Lisboa, de que chegaram aos nossos dias dois muito bons e grandes arcanjos, podendo ter sido mais. De 1740 a 1750 também deve ser o lavabo da sacristia, dos mais interessantes existentes na Região e que, contra o que seria de esperar, recupera o trigrama de S. Bernardino de Sena, de que se haviam apropriado os Jesuítas para a sua emblemática oficial, o que à época teria sido uma atitude corajosa. O Convento voltou a ter obras após o terramoto de 1748, que afetou bastante toda esta área e, então quase uma nova reconstrução, após a terrível aluvião de 9 de outubro de 1803. A descrição da aluvião de João Pedro de Freitas Drumond (1760-1825), o célebre “Dr. Piolho”, dada a fraca estatura, feita a pedido da Câmara do Funchal, refere que a ribeira da Saraiva ou ribeiro dos Frades levara “a cerca, claustros, cozinha, refeitório e adega” do Convento, de que só ficara a igreja e a casa dos romeiros. Uma testemunha ocular, a 15 de outubro seguinte, refere mesmo que “o convento do Servo de Deus também foi ao mar” e “dizem que escapou parte do refeitório e um pequeno celeiro” (VERÍSSIMO, 2002, 65). No livro de Receita e Despesa dessa época registam-se “o gasto que se fez depois do dia 10 deste mês de outubro, quando amanheceu a triste cena do aluvião, que levou este nosso convento com as alfaias que nele se achavam, etc.”. Os frades tiveram assim que adquirir quatro panelas, um tacho, uma frigideira, duas peneiras, seis copos, um cutelo, dois quartos, balança e pesos, tendo tudo custado 16$350 réis. Tiveram também de contratar um carpinteiro, por dois dias, “para consertos”, como regista o escrivão Fr. João de Santa Rosa (ANTT, Conventos, Convento de São Bernardino de Câmara de Lobos, liv. 2, fl. 87). No pedido depois feito pelo guardião Fr. Matias de São Boaventura para se fazer uma vistoria, refere-se que os frades tiveram de trepar pela rocha vizinha do lado nascente, pois a água havia tomado a saída do Convento, demolido a portaria e entrado na igreja. Os frades tiveram que se recolher nas instalações dos Terceiros e na casa dos romeiros, pois haviam ficado sem os dormitórios e mais instalações, solicitando poder utilizar o rendimento da capela instituída por João de Bettencourt de Vasconcelos para a reedificação do Convento. A vistoria determinada pelo provedor dos resíduos e capelas só veio a ocorrer a oito de julho de 1805, levada a cabo pelo então mestre das obras reais e antigo mestre entalhador Estêvão Teixeira de Nóbrega (1746-1833), assessorado pelo mestre António José Barreto, que lhe haveria de suceder. Os prejuízos tinham sido muito grandes, perdendo-se na totalidade o muro da cerca, as latrinas, o dormitório que estava ao lado do ribeiro, a cozinha e loja anexa, a casa de profundis, o refeitório, a adega, metade do claustro, a capela da cozinha do servo de Deus, a da cova do “santo”, a sacristia e a varanda que lhe ficava em cima, tal como as celas junto da mesma varanda. Na igreja, encontrava-se perdido o teto sextavado, o altar teria de ser refeito, e os azulejos, porque em mau estado, teriam de ser retirados. A ribeira dos Frades alterara o seu leito, passando então junto à porta travessa da igreja, que ia para a capela-mor, tudo necessitando de ser assim corrigido. As obras tiveram autorização do provedor-proprietário das capelas, Pedro Nicolau Bettencourt de Freitas e Meneses, devendo ser colocados em praça “os frutos” do morgadio instituído por João de Bettencourt de Vasconcelos, para se liquidarem pela melhor oferta. Satisfeitos os legados pios, deveria aplicar-se o remanescente na reconstrução do Convento e da capela-mor, de acordo com as diretivas deixadas no auto de vistoria. Ao longo dos anos seguintes as obras arrastaram-se, ainda havendo pagamentos em julho de 1822 e, em 1827, o síndico do Convento queixava-se que a vistoria às obras se achava por completar, em relação à capela-mor, oficinas do Convento e outras instalações. Estes anos foram muito complexos em Portugal com a implantação do primeiro liberalismo e com a contrarrevolução do infante D. Miguel, seguindo-se a guerra civil que, não tendo afetado fisicamente a Madeira, levou à emigração dos principais quadros eclesiásticos insulares, como grande parte dos cónegos da sé e dos vigários das freguesias. As obras do Convento nunca teriam sido completadas. A vida quotidiana da comunidade de S. Bernardino entre os finais do séc. XVIII e os inícios do XIX pode ser analisada pelos quatro livros de receita e despesa que sobreviveram. A documentação do Convento parece ter-se perdido parcialmente com a aluvião de 1803, tendo ficado alguns livros de despesas de obras no conjunto proveniente da provedoria do Funchal; os quatro livros de receita e despesa foram depositados na Torre do Tombo, indo integrar o núcleo dos conventos, tendo a documentação avulsa ficado no núcleo do Ministério das Finanças do mesmo arquivo. O estado de conservação dos cadernos iniciais do Livro de Contas de setembro de 1792 a 1798, quando era guardião o P.e Fr. António do Amor Divino, é testemunho da dificuldade por que deve ter passado toda a documentação do Convento. As receitas do Convento provinham essencialmente de foros e de missas, inclusive nos altares das confrarias, capelas e oratório do síndico, sermões na Quaresma e no Advento na colegiada de Câmara de Lobos, tal como da venda de túnicas, hábitos de saial e de burel para mortalhas, aspeto que era igualmente praticado nos restantes conventos franciscanos masculinos da Ilha. Um hábito de burel e o acompanhamento de um funeral registados, e.g., na primeira semana de setembro de 1792, custaram 2$500 réis, embora um outro enviado para o campanário na mesma semana tivesse custado somente $8000 réis. Os hábitos para mortalha eram feitos no Convento, comprando-se periodicamente uma vara de burel, como nos inícios de fevereiro do ano seguinte, que custou 6$000 réis. As túnicas também ali deviam ser feitas, vindo o linho sedado ou em rama, da Ponta do Pargo e da Fajã da Ovelha, em princípio, como esmola. Na última semana de maio de 1798, e.g., entre os inúmeros envios de hábitos de burel e de saial, registam-se verbas de 4$000 réis, para o do burel enviado para o funeral de Manuel de Sousa, das Eiras, acompanhado por dois religiosos “a 500 réis cada um” e 9$000 réis, para o hábito de saial enviado para Rita dos Santos, da Várzea, cujo funeral foi acompanhado por seis religiosos. Nessa semana também se receberam 3$000 réis pelo “caminho e assistência” ao ofício das exéquias do governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, falecido no Funchal, a 30 de março desse ano, determinadas pelo Cap.-mor Filipe Esmeraldo e nas quais participaram cinco religiosos “a 600 rs.” (ANTT, Conventos, Convento de São Bernardino de Câmara de Lobos, liv. 2, f. 1v.). As verbas auferidas pelas missas eram também variáveis, registando-se, e.g., na primeira semana de fevereiro de 1793, 35 missas, que renderam 2$800 réis; na segunda semana, 25 missas, 2$000; na terceira, 33 missas, 2$050; e na quarta, 35 missas, 1$800, dependendo assim de onde eram celebradas e dos acordos anteriormente estabelecidos. Havia uma série de missas que eram obrigação do Convento, outras de outras obrigações, tal como as das capelas e das confrarias, nem todas pagas. Na última semana de abril de 1798, no livro de contas de quando era guardião o P.e pregador Fr. Manuel da Piedade, especifica-se que se “disseram” 23 missas, 7 do Convento, 3 de obrigações, 3 das confrarias e 4 de “ofícios de frades”, somente tendo sido pagas quatro, a 200$000 réis, pelo que houve de receita 800$000 réis (Ibid., liv. 2, fl. s/n.ºv.). Nas semanas seguintes variam os quantitativos, havendo missas pagas a $200, a $300 e, inclusivamente, a 1$550 réis, como ocorreu na terceira semana de maio desse ano de 1798 e que parece corresponder à missa que antecedeu ou finalizou o “Noturno da confraria de Jesus” (Ibid., liv. 2, fl. 1) As festas dos padroeiros das confrarias sedeadas no Convento eram igualmente fontes de receita, principalmente se tivessem sermão, podendo chegar aos 3$000 réis. Os foros representavam ainda maiores fontes de receita, como os provenientes da antiga Terça dos Frades, que a célebre morgada Guiomar Madalena de Sá Vilhena (1705-1789) chegou a colocar em tribunal, em 1771, face à aplicação da lei pombalina de 4 de julho de 1768 e do alvará de 12 de maio do ano seguinte sobre os bens vinculados, mas que veio a ter despacho da Relação de 14 de dezembro de 1776, favorável ao Convento e condenando a morgada ao pagamento das custas do processo. Os seus sucessores acabaram por continuar a pagar a célebre “terça”, como o seu sobrinho-neto João de Carvalhal (1778-1837), futuro conde de Carvalhal, que em janeiro de 1811 pagou pela “sua capela”, 16$440 réis, para além de ter rendido ao Convento, “do merecido da Capela da Terça”, mais 49$400 réis (Ibid., liv. 3, fl. 3). Outra fonte de rendimento eram os peditórios, que extravasavam, em princípio as áreas estabelecidas, pois concorriam com o pequeno Convento de S. Sebastião da Calheta e mesmo com o oratório da Porciúncula da Ribeira Brava. Os peditórios decorriam em determinados períodos, consoante as festas em causa e os produtos a recolher, como era o caso do vinho, do trigo e do pão, para o que o Convento adquiria o vasilhame para a recolha e pagava a determinados “moços” ou donatos para fazerem o peditório, tal como depois pagava pontualmente os transportes, quando excediam as quantidades transportáveis pelo homem. Uma vez recolhidos no Convento, uma parte dos mesmos era vendido. As despesas do Convento eram essencialmente na alimentação, feita à base de peixe de aquisição local, ao contrário dos conventos do Funchal onde a aquisição de peixe era mais difícil, mas também de bacalhau, de salmão fumado, de carne e legumes. Na última semana de março de 1793, e.g., uma das principais despesas foi a do peixe fresco, quase 7$000 réis, mas sendo ultrapassada pela do bacalhau, em que se gastou 7$200 réis. Compraram-se ainda feijão “fradinho”, legumes vários e fruta, vários tipos de azeite, inclusivamente “de peixe”, e lenha para cozinhar, uma despesa sempre corrente; nessa semana, foram 23 feixes, 15 a $150 réis e 8 a $100, num total de 3$050 réis (Ibid., liv. 1, f. 11v.). Os frades cultivavam ainda terrenos na sua cerca e em outras propriedades, inclusivamente, contratando pessoal em épocas de maior trabalho. Tinham vinhas e produziam vinho em adega própria e aguardente, tal como criavam animais. Pontualmente compravam um porco “para o chiqueiro”, que depois deviam matar pelo Natal, tal como também compravam galinhas e tinham ovos, pois, pontualmente, aparece o envio de ovos para o Convento de S.ta Clara, de onde depois recebiam doces. No dia de Jesus, ou seja 1 de janeiro, havia cavacas, tal como também nesse mês, a abertura da arca do servo de Deus era assinalada com um jantar de galinha. Pelo Entrudo consumiam carne de vaca e sonhos, antes do jejum e abstinência da Quaresma. Na Quinta-feira Santa não faltava o arroz-doce e em toda a Semana Santa tinham biscoitos, havendo cavacas do dia de S. João Batista, tal como carneiro e cerejas, aparecendo para outras datas festivas aquisições de especiarias, presunto, queijos e outros doces. As despesas gerais incluíam ainda nesses dias festivos o pagamento de músicos, tal como o do transporte de determinadas entidades que visitavam o Convento, vindas, geralmente, do Funchal, que incluíam, não só o barco como o de rede até S. Bernardino. Uma das contínuas despesas era ainda o tabaco, por certo para consumo do Convento, mas também para pagamento de “mimos” a visitantes, funcionários e simples trabalhadores. Contínua era também a despesa com os irmãos doentes, que obrigava à alteração da alimentação, que passava, essencialmente, a dieta de frango e canja, tal como exigia o pagamento dos medicamentos. Em 1834, no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecido pelo “mata-frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas. A execução do decreto na Madeira foi determinada pelo prefeito da província da Madeira, Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1846), que a 27 de agosto desse ano enviava ao provedor do concelho do Funchal, Manuel de Santana e Vasconcelos (1798-1851) instruções precisas a esse respeito, embora somente cumpridas quase um ano depois. As primeiras diligências ocorreram assim a 7 de abril de 1835, na presença do provedor do concelho, do tabelião Domingos João de Gouveia e do fiscal da fazenda Manuel Joaquim Lopes. Elaborado o inventário do Convento, registaram-se como objetos sagrados, uma custódia, uma âmbula, quatro cálices e um relicário de prata dourada, assim como nas capelas se inventariaram quatro lampadários de prata, um turíbulo, um naveta e três castiçais. Os objetos sagrados foram entregues ao P.e Alexandrino Salgado, vigário capitular da Diocese, e os não sagrados recolheram à provedoria da Fazenda, tendo seguido, a 28 de maio de 1836, no brigue de guerra Tejo, para a Casa da Moeda de Lisboa, de que o prefeito da Madeira havia sido provedor. Todo o conjunto de paramentos e vestiária foi entregue à Diocese e inventariou-se ainda os adornos de prata das diversas imagens. Foram ainda inventariados os livros de coro: um saltério, um antifonário, um livro de missas e um livro de calendário, conjunto entregue à Diocese. No entanto, o conjunto dos 35 livros da biblioteca, os manuscritos de contas do Convento, e um maço de 78 papéis avulsos de escrituras, títulos, provisões e outros documentos, recolheram ao governo civil, sendo depois entregues na provedoria da fazenda. Inventariou-se também todo o mobiliário do Convento, como mesas, cadeiras e, inclusivamente, vidros, loiças, cobres e demais objetos de cozinha, posteriormente vendidos em hasta pública. No mesmo dia do inventário os funcionários da provedoria da fazenda tomaram posse oficial do conjunto dos imóveis, tal como dos bens do Convento, que depois de inventariados e avaliados, previa-se também colocar em hasta pública. Tal aconteceu pouco depois com as diversas propriedades, mas o mesmo não veio a acontecer de imediato com o imóvel. Uma parte do recheio do Convento, a cargo da colegiada da matriz de S. Sebastião de Câmara de Lobos e do vigário-geral da Diocese, foi sendo distribuído pelas matrizes limítrofes, como já havia acontecido com o património dos Jesuítas e aconteceu então com os conventos franciscanos. Na altura do inventário, tal como a paramentaria foi entregue à Diocese, alguns móveis, como os cinco confessionários, duas cadeiras e duas escadas para armações, foram de imediato transferidos para a matriz de Câmara de Lobos. Em abril de 1835, o vigário da freguesia do Estreito de Câmara de Lobos recebeu o sino maior do Convento e o menor foi entregue à matriz da Santíssima Trindade da Tabua. Refere o P.e Pita Ferreira que a imagem de N.ª Sr.ª da Conceição seguiu para a matriz, o sacrário foi oferecido à igreja da Piedade do Curral das Freiras, em 1850, e a imagem do Senhor Jesus foi oferecida à capela da Vera Cruz, na Quinta Grande, em 1866. Com a implantação do Governo liberal foi nomeado para o Funchal um novo vigário capitular e governador do bispado, o Cón. António Alfredo de Santa Catarina Braga (c. 1795-c.1845), que se havia refugiado em Cabo Verde e depois no Brasil, em razão das suas ideias liberais. Tendo já publicado no Porto um folheto contra o culto do “santo”, uma vez na Madeira, a 2 de junho de 1835, fez uma visita extraordinária à capela e lapa de Fr. Pedro da Guarda no extinto convento de Câmara de Lobos. Tendo examinado o monumento onde se guardavam os restos mortais do Franciscano, junto do altar-mor da igreja, mandou-os destruir, o mesmo mandando fazer à pintura existente na capela do “santo” e demais imagens que encontrou, tudo sendo queimado em novo “auto de fé” ao sabor do antigo regime. Entendia assim cumprir o seu “rigoroso dever, para desagravar a verdadeira e sã doutrina do cristianismo”, pois que nunca havia sido canonicamente autorizado o culto de Fr. Pedro da Guarda (A Flor do Oceano, 21 jun. 1835, 30). Se esfriaram e diminuíram momentaneamente estes preitos de devoção e piedade, mas não se extinguiram de todo, tendo-se transformado na sede da paróquia de S.ta Cecília, um número considerável de indivíduos procura a sepultura, onde foram depostos os restos mortais de Fr. Pedro da Guarda. As imagens só se retiraram da igreja de S. Bernardino a 18 de junho de 1837, umas para a igreja paroquial e outras para a posse de algumas famílias que as conservaram, passando a incorporá-las na procissão anual das Cinzas. Entre estas, encontra-se o busto relicário de Fr. Pedro da Guarda, aparentemente datável dos meados ou finais do séc. XVII, que pertenceu à família de Jorge Sabino de Castro, que em outubro de 2002 a doou ao antigo Convento de S. Bernardino. O edifício do Convento foi vendido em hasta pública, a 12 de março de 1872, por 811$000 réis, a Manuel Joaquim Lopes, sendo registado como Convento Velho, e não integrando a capela dos Terceiros e a casa dos romeiros, então registadas como Convento Novo. A venda já se enquadrava num outro contexto político e religioso, pois desde 1857 já funcionava no antigo convento uma escola feminina e, pelo menos desde 1867, se pretendia reedificar o convento e retomar o processo de beatificação do santo, editando-se folhetos sobre a vida do mesmo e reativando-se a devoção através da Ordem Terceira e dos Salesianos, que ali instalaram uma escola. Fig. 1 – Luís Bernes, Desenho do Convento de São Bernardino em Câmara de Lobos, Luís Bernes. Fonte: Semana Ilustrada, 9 out. 1898, 217. O edifício do velho convento, entretanto, arruinava-se decididamente, como comprova o desenho editado pelo pintor Luís António Bernes (1864-1936) na Semana Ilustrada de 9 de outubro de 1898, assim como algumas fotografias da época, mas que ao mesmo tempo demonstram o interesse que passara a haver pelo imóvel. Efetivamente, a 6 de julho desse ano de 1898, os proprietários tinham vendido o convento velho por 60$000 réis ao prelado diocesano D. Manuel Agostinho Barreto (1835-1911), mas que era mais uma doação do que uma venda, pois foi vendido muito abaixo do preço pelo qual o haviam adquirido. As ruinas do velho convento vieram a ser pontualmente recuperadas por iniciativa da M.e Mary Jane Wilson (1840-1916). O projeto de recuperação do edifício teve início por volta de 1911, mas só foi concretizado em meados de 1916 para funcionamento do curso preparatório para o seminário diocesano. Foi neste edifício que a M.e Mary veio a falecer, em 18 de outubro desse ano, não tendo assistido à chegada dos alunos. O edifício voltaria a ter obras de reabilitação, por iniciativa do pároco de Câmara de Lobos, P.e João Joaquim de Carvalho (1865-1942), entre janeiro de 1924 e meados de 1928. A igreja sofreria uma total remodelação, eliminou-se grande parte das preexistências, como a antiga tribuna e as armas dos Vasconcelos nas paredes norte e sul da capela-mor, removeram-se igualmente as lápides sepulcrais e encomendou-se em Braga um retábulo-mor com amplo camarim, executado naquela cidade pela antiga oficina do entalhador Leandro de Sousa Braga (1837-1897), que ainda usava o seu nome. O retábulo custou 12$000 réis e chegou ao Funchal a 24 de setembro de 1926, procedendo à montagem um dos mestres entalhadores da mesma oficina. No ano seguinte ainda haveriam de chegar os altares colaterais, em abril de 1927. A igreja seria de novo benzida pelo bispo do Funchal, D. António Manuel Pereira Ribeiro (1879-1957), a 24 de outubro de 1926, durante as festas de S. Francisco, nesse ano ligeiramente adaptadas para coincidirem com as celebrações do 7.º centenário da morte do patriarca dos Franciscanos. Até 1933, continuou ali a funcionar o curso preparatório do Seminário Diocesano, que nessa data foi integrado no Seminário da Encarnação. O conjunto voltaria a sofrer reabilitação em 1960, para a instalação da paróquia de S.ta Cecília, tendo decorrido, em 2014 e 2016, novas obras de reabilitação geral do conjunto, a cargo da mesma paróquia e com o apoio da Ordem de S. Francisco, segundo projeto de 2006 do ateliê dos arquitetos Victor Mestre e Sofia Aleixo. Rui Carita (atualizado a 20.02.2017)
corpo santo
Ordenação de São Pedro Gonçalves Telmo. Capela do Corpo Santo do Funchal. Foto BF Corpo Santo é a denominação popular de S. Pedro Gonçalves Telmo (1190-1246), religioso leonês, em princípio, que teria nascido em Astorga ou Placência, tendo entrado para a ordem dos dominicanos e sido prior de S. Domingos de Guimarães. O seu culto aparece associado ao fogo-de-santelmo, eflúvio luminoso que aparece nos mastros dos navios em determinadas condições atmosféricas, bem como noutros lugares, e que deve o seu nome ao congénere padroeiro dos navegantes mediterrâneos, S. Telmo. O seu culto espalhou-se pelas comunidades marítimas do centro e norte de Portugal e da Galiza, sendo o padroeiro, por exemplo, da Diocese de Tui-Vigo. A capela do Corpo Santo do Funchal deve ser uma das capelas mais antigas da cidade, devendo datar dos finais do séc. XV, sendo já referência toponímica na vereação de 21 de fevereiro de 1497 e, em 9 de agosto de 1505, como limite oriental da vila. Entre os finais do séc. XV e os inícios do séc. XVI, os pescadores e marítimos madeirenses organizaram-se em confrarias religiosas sob a devoção do Corpo Santo, devendo a do Funchal ser a mais antiga da Ilha, pelo menos disso se vangloriando os seus membros, o que parece confirmar-se pela sua capela, onde o portal deverá ser pré-manuelino. Pouco depois, provavelmente, ter-se-iam organizado os marítimos da Calheta, que tiveram capela junto da praia, da qual sobreviveu a imagem do orago, dos meados do séc. XVI, e um livro de receita e despesa para os anos de 1738 a 1789, tal como os marítimos de Câmara de Lobos, embora se tenham organizado canonicamente apenas no século seguinte, e dos quais se conhece mais documentação. Os marítimos de Santa Cruz e a sua Confraria ainda foram mais tardios em se organizar, nunca tendo tido instalações próprias, funcionando no altar de N.ª Sr.ª da Conceição da igreja matriz do Salvador, onde ficou uma pequena cartela pintada a óleo com uma fragata, provavelmente dos meados a finais do séc. XVIII. Os marítimos de Machico parecem ter-se integrado nas confrarias ligadas à Misericórdia daquela vila, na capela dos Milagres, e os do Porto Santo ter-se-ão organizado na Confraria de S. Pedro, de que não conhecemos documentação, embora tenham subsistido festejos em honra desse orago. O mesmo parece ter-se processado com os marítimos da Ribeira Brava, organizados na Confraria de S. Pedro e fazendo-se representar nas procissões com a barquinha, miniatura de um barco de pesca, aspeto referido nos compromissos das confrarias do Corpo Santo, nomeadamente na do Funchal, de 1745: “para pompa e crédito da confraria”, quando sair “a bandeira e a barquinha serão acompanhadas por aqueles que se costumam reservar e destinar para esse efeito” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 2, § 2.º). A Confraria e a capela do Corpo Santo do Funchal deve ter gozado de um certo desafogo económico, fruto dos tradicionais “quartões”, ou seja, a quarta parte de quinhão do pescado, entregue pelos seus membros para as campanhas de obras a que a capela foi sendo sujeita. O edifício que sobreviveu parece confirmá-lo, com um portal de arquivolta apontada, muito simples e sem marcação dos capitéis, por certo do séc. XV. O edifício teve uma reconstrução manuelina, com campanário de desenho tardo-gótico sobre a empena da fachada e gárgulas em forma de canhão na abside (Arquitetura religiosa e Gárgulas). Interiormente, ostenta a tábua pintada do orago da primeira metade do séc. XVI, inclusivamente com o santo a abençoar uma nau manuelina em dificuldades, que será a mais antiga representação de uma embarcação na Madeira. Teto da Capela do Corpo Santo do Funchal. Foto BF Da mesma campanha de obras poderão ser as restantes tábuas do retábulo-mor com uma Nossa Senhora da Conceição, um S.to António pregando aos peixes, um S. Lourenço, provavelmente em memória da barca do primeiro reconhecimento feito à Madeira por Zarco e Tristão, e ainda outra tábua dificilmente identificável. O conjunto assenta em predelas igualmente pintadas sobre madeira, com S. Pedro e S. Paulo, havendo uma imagem de Deus Pai a encimar o retábulo, todos estes trabalhos parecendo de uma oficina portuguesa da primeira metade do séc. XVI, conjunto entretanto refeito ao gosto maneirista nos inícios ou meados do séc. XVII. Mais tardia deve ser a pintura da porta do sacrário, com um Senhor dos Passos. A capela do Corpo Santo teve obras em 1559, data que apareceu “na verga de uma fresta que se tapou na parte do norte”, como se registou no frontispício do “livro do compromisso e termos de entrada de irmãos”, tresladado de 1738 (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 80, fl. 1). Entre 1567 e 1570, a capela já apresentava a configuração geral que tem persistido, com um adro mais amplo, à frente e para o lado do mar, como aparece na planta do Funchal de Mateus Fernandes (III) (c.1520-1597), arquivada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNB, Cart. 1090203). A capela do Corpo Santo voltaria a ter obras nos finais do séc. XVI, encontrando-se uma das janelas da capela com a data de 1594. As duas décadas finais desse século teriam sido excecionais para os marítimos do Corpo Santo do Funchal, pois a Confraria possuía um fantástico cálice de prata dourada, com campainhas, datado de 1580, depois exposto no Museu de Arte Sacra e, entre os finais desse século e os inícios do seguinte, mandou executar nas oficinas madeirenses três lampadários de varetas (Ourivesaria e prataria). Por 1590, encomendou a um dos melhores pintores em atividade em Portugal, Fernão Gomes (1548-1612), um novo retábulo de S. Lourenço, que curiosamente já se encontrava pintado no retábulo-mor, o retábulo de Nossa Senhora da Estrela, talvez de outra oficina continental, mas dentro dessa época. Ora se Nossa Senhora da Estrela se encontra dentro das normais devoções dos marítimos e é igualmente invocada para casos de doença, funcionando a confraria com especial ênfase no apoio aos doentes, o recrudescimento da devoção de S. Lourenço encontra-se nessa época, por certo, ligado ao facto de ter assumido o trono de Portugal o Rei Filipe II de Castela (1527-1598). A tábua com um S. Lourenço no retábulo-mor parece indicar, assim, já haver a sua devoção entre os elementos da confraria antes de Filipe II assumir o trono de Portugal, devoção que se manteve no séc. XVIII, tendo o altar missa todas as sextas-feiras e, a 10 de agosto, dia do santo, missa cantada e sermão. Esta evocação, inclusivamente em altar próprio, parece poder confirmar a informação, depois divulgada pelos cronistas do final do séc. XVI, de ter tido a barca em que João Gonçalves Zarco e Tristão fizeram a primeira viagem à Madeira esse nome, que ficou depois como topónimo da primeira ponta que tiveram de dobrar para aportarem à Ilha. Parece também poder-se associar o protagonismo da confraria à estadia no Funchal do Cap. Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) como governador (Encarregado de negócios da guerra), que a partir de 1585 prolonga a muralha do Funchal para oriente (Muralhas da cidade). Por 1600, a muralha atingia as arribas por baixo da então igreja de Santiago Menor, dando origem à necessidade de construção de uma nova fortaleza: Santiago (Fortaleza de Santiago), tendo havido um forte investimento em obras em toda esta área urbana. As obras na capela do Corpo Santo também não pararam, tendo sido a capela-mor totalmente revestida com pinturas sobre a vida do santo protetor, algumas datadas de 1615 e 1616, com um monograma, provavelmente “LSA”, que não levou à identificação do autor. Uma das representações de S. Pedro Gonçalves Telmo, no teto, é acompanhada de uma detalhada representação de uma importante nau, com as armas de Portugal pintadas no castelo da popa e, no mastro grande, a bandeira pessoal dos Reis de Castela. As confrarias do Corpo Santo eram essencialmente constituídas por marítimos. O compromisso da Confraria de Câmara de Lobos, de 1691, que deve transcrever o do Funchal, também reformulado nesse ano, mas que não conhecemos, refere taxativamente que a entrada estava reservada aos homens do mar e pescadores. Pelo compromisso do Corpo Santo de Câmara de Lobos pode concluir-se que, por esse tempo, os pescadores e mareantes daquela localidade procuraram legalizar a sua confraria nos moldes da Confraria do Funchal, cujo compromisso tinha então sido confirmado pelo bispo da Diocese, D. Fr. José de Santa Maria (c. 1640-1708), que tomara posse em março de 1691. Desconhece-se o fundador da capela da Conceição de Câmara de Lobos, sede da Confraria local do Corpo Santo, bem como a data da primitiva construção desta capela, porém sabe-se em 1569 decorriam ali obras. Rui Mendes de Vasconcelos, um dos descendentes de Zarco (c. 1390-1471), deixou, por testamento de 16 de abril de 1569, 3$000 réis para ajuda do lajeamento da “casa de Nossa Senhora da Conceição” (ABM, Misericórdia do Funchal, liv. 684, fl. 52v.). Gonçalo Pires, em 8 de dezembro desse ano, legou, também por cláusula testamentária, 2$400 réis para aquelas obras. Duas sepulturas colocadas a descoberto em 1986, a primeira de António Garcia, tabelião público em Câmara de Lobos, e sua mulher Brásia Soares, datada de 1587, e a segunda de Joana de Atouguia (c. 1550-1631), mulher de Mendo Rodrigues de Vasconcelos (c. 1550-1609), indicam os Atouguia, pelo menos, como financiadores desta capela. Assim, Mendo Rodrigues de Vasconcelos, como neto de um primeiro Rui Mendes de Vasconcelos (c. 1460-c. 1520) e de Isabel Correia, que tinham instituído a capela-mor do convento de S. Bernardino, optara por ali ser sepultado com os pais e avós. Pela altura da oficialização ou reforma do compromisso de 1691, os homens do mar de Câmara de Lobos vão chamar a si a capela de N.ª Sr.ª da Conceição, que se encontrava em estado arruinado e onde já tinham a imagem do seu orago. Em 1702, o bispo do Funchal autorizou a confraria a reconstruir a capela, com a condição de manutenção da imagem de Nª Sª da Conceição no altar-mor e de se reservarem 12 sepulturas para se enterrarem os confrades dos escravos da Confraria da Conceição, mas desta Confraria não restou qualquer documentação. A 9 de maio de 1710, um mandado do Conselho da Fazenda autorizava a arrematação do muro da capela de Câmara de Lobos a João Bettencourt Perestrelo, por 1870$000 réis, sinal provável de que as obras já teriam terminado. O retábulo da capela, datado de 1723, foi executado pelo mestre entalhador açoriano Manuel da Câmara e seu filho e homónimo. No compromisso dos irmãos do lugar de Câmara de Lobos de 1691, a entrada na Irmandade ainda estava exclusivamente reservada aos homens do mar e pescadores. Contudo, no Funchal, o novo compromisso de 1745 admitia já irmãos não vinculados à atividade marítima, desde que pagassem de esmola de entrada $600 réis e um tostão de esmola anual, cobrada no dia da festa do patrono ou quando fosse pedida de porta em porta. Este alargamento a outras profissões, não previsto no compromisso antigo, fizera-se “por serem poucos os homens do mar, como para lhes suavizar as obrigações e poupar suas esmolas para a confraria” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 1.º, § 2.º). Pelos termos de entrada na Confraria do Funchal, concluímos que dos 335 irmãos, com profissão identificável, admitidos entre 1738 e 1772, apenas 49 não eram marítimos: 12 eram sacerdotes católicos, 11 alfaiates, 6 mercadores, 5 sapateiros, 4 barbeiros-sangradores, 2 pedreiros, 2 tanoeiros, 2 ferreiros e mais 4 homens, um de cada uma das seguintes profissões: vendeiro, oleiro, prateiro e carpinteiro, havendo ainda um estudante. Quanto aos clérigos, eram na sua maioria da colegiada de Santa Maria Maior, então Santa Maria do Calhau, cujo vigário presidia à mesa da Confraria do Corpo Santo. Os padres eleitos, capelães “de boa vida e costumes” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 4.º, § 1.º), entravam habitualmente para a irmandade. Assim, para a Confraria do Corpo Santo do Funchal, ao longo do séc. XVIII, tinham passado a entrar elementos não marítimos, mas com interesses relacionados com o mar ou de relevo para os confrades. Francisco Mendes, v.g., era oficial de tanoeiro, mas proprietário de uma embarcação de pesca que varava nas Fontes, e, em 20 de outubro de 1766, entrou para a Confraria sem dar esmola de entrada, por contribuir com o quartão do seu barco. A Confraria tinha conveniências na admissão de irmãos de profissões da terra, numa troca de benefícios recíprocos. Em 20 de abril de 1738, foi admitido na Irmandade do Corpo Santo do Funchal o mestre sangrador Ambrósio Homem, sendo-lhe dispensada a habitual esmola de entrada, mas com a obrigação “de sangrar e deitar ventosas a todos os irmãos homens do mar, suas mulheres e filhos, e a todos aqueles que cada um dos ditos irmãos homens do mar tiverem em sua taxa de obrigação” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 80, fl. 8). Quando não pudesse cumprir esta obrigação, teria de, à sua custa, contratar algum substituto. Só assim gozaria de privilégios idênticos aos que desfrutavam os homens do mar, nomeadamente os 3$000 reis para o hábito de defunto. Mais tarde, em 14 de agosto de 1770, Domingos João de Ornelas, barbeiro, morador em Santa Clara, fez-se irmão do Corpo Santo e também não pagou os $600 réis de entrada, sob a condição de fazer três sangrias por $100 reis aos “irmãos do sítio das Fontes” (Ibid., fl. 67v.), provável indicação de dois grupos de mareantes: os de Santa Maria do Calhau e os do sítio das Fontes de João Dinis. No dia 20 de março de 1772, Jerónimo José Tavares, oficial de barbeiro, foi admitido na Irmandade, sendo-lhe também dispensada a esmola de entrada, em troca da obrigação de sangrar aos irmãos da confraria, cobrando “por cada duas aventaduras”, que pensamos ser a aplicação de ventosas, $100 reis (Ibid., fl. 73v.). No ano de 1743, 6 alfaiates ingressaram também na Confraria, em troca de consertos nas capas de seda que vestiam os irmãos em momentos solenes. As confrarias do Corpo Santo, no entanto, eram essencialmente irmandades de homens do mar e contavam sobretudo com a contribuição destes. O compromisso do Funchal de 1737 determinava que todo o mareante e irmão entregasse $010 de cada 1$000 réis ganhos, e os pescadores dessem uma esmola de peixe, para além das esmolas particulares. Os irmãos de Câmara de Lobos cotizavam, de todos os barcos de pesca e de carreira, meio quinhão para a sua Confraria, o mesmo fazendo os da Calheta. No compromisso de 1745 do Funchal, estipulava-se o quinhão de cada barco, para os marítimos. O quartão, ou seja a quarta parte de um quinhão, era um excecional contributo dos barcos dos mareantes do sítio das Fontes do Funchal. Porém, antes de ser estipulado o quinhão, aquele donativo já era prática corrente. Reunidos em 12 de outubro de 1766, comprometeram-se os arrais daquele sítio, todas as vezes que fossem ao mar em pesca, a entregar ao tesoureiro da Confraria um quartão do pescado. Quando um arrais entrava para a Confraria, normalmente, toda a tripulação do seu barco ingressava também na Irmandade. As mulheres dos marítimos, a partir dos inícios do séc. XVIII, acompanhavam habitualmente os seus maridos na admissão à Confraria, não pagando a esmola de entrada. Pelos termos de entrada na Confraria do Funchal, concluímos que, entre 1738 e 1772, foram admitidos 335 homens e 183 mulheres, das quais apenas 28 ingressaram individualmente, sendo as restantes conjuntamente com os maridos. As confrarias madeirenses do Corpo Santo realizavam anualmente a festa solene do seu patrono, S. Pedro Gonçalves Telmo, e a do Funchal fazia também a festa de S. Lourenço, como estava estabelecido no compromisso e para o que, na sua capela, existia altar consagrado àquele mártir. Os irmãos, de opas brancas, deveriam acompanhar a confraria nas procissões em que habitualmente saía, com a bandeira e a barquinha, como na procissão do Corpo de Deus, e nos funerais dos irmãos falecidos. No Funchal tinham, para além das missas nos domingos e dias santos, missa todas as sextas-feiras no altar de S. Lourenço, nove Missas do Parto e três pelo Natal. No oitavário de Todos os Santos, a confraria ficava obrigada a celebrar um ofício de nove lições, com vésperas, em sufrágio dos irmãos defuntos, e de suas mulheres e filhos. As preces pelas almas dos mortos constituíam grande preocupação da gente marítima que, desprovida de bens materiais para uma capela vinculada, encontrava na confraria o dispositivo adequado para a celebração de missas e outras orações em sua memória. Por cada irmão que morria, por sua mulher, ou por filhos com idade superior a 18 anos e sob poder paternal, a confraria tinha a obrigação de mandar rezar um ofício de três lições, segundo os compromissos de Câmara de Lobos, de 1691, e do Funchal, de 1737, enquanto o seguinte desta cidade, de 1745, estabelecia quatro missas. Os filhos falecidos com mais de 10 anos e menos de 18 tinham direito a duas missas rezadas por suas almas, enquanto aos menores de 10 a confraria apenas facultaria dois círios para o funeral. O compromisso de 1745 do Funchal refere que anteriormente a obrigação por cada irmão defunto, sua mulher ou filhos menores de 18 anos sob a proteção do pai constava de um noturno, mas que se havia mudado, porque as missas “têm mais valor porque são infinitas” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 3.º, § 2.º). Contudo, em Câmara de Lobos, faziam-se habitualmente noturnos pelos irmãos defuntos, como atesta o tesoureiro João da Costa nas contas que presta entre 1776 e 1785. As viúvas dos marítimos desfrutariam destes sufrágios desde que não viessem a casar-se com homens de terra. Os filhos dos homens do mar receberiam idêntica penalização quando abandonassem o ofício de seus pais, e as filhas, quando se casassem com homens de terra. As confrarias do Corpo Santo serviam, assim, também para perpetuar o grupo e evitar ligações fora do mesmo. Os irmãos e suas mulheres tinham direito, por altura da sua morte, à quantia de 3$000 réis, para ajuda da mortalha ou do enterro. Em janeiro de 1742, a Confraria de Câmara de Lobos tornou este privilégio extensível aos filhos dos homens do mar, pescadores ou tripulantes de navios de carreira, contribuintes com o meio quinhão para a Irmandade. O tanger do sino à hora do enterro lembrava à Irmandade do Corpo Santo a sua obrigação estatutária de acompanhamento do funeral do irmão defunto, com as suas opas brancas, a cruz, as insígnias e os círios, “a cera que para essas funções deve se haver pronta”, como se refere no compromisso do Funchal de 1745 (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 2.º, § 2.º). Aos mareantes vítimas de naufrágios ou assaltos em viagem, a confraria tinha a obrigação de dar esmola para o seu sustento. Os irmãos pobres ou enfermos, as viúvas necessitadas e os órfãos recebiam igualmente esmolas, do fundo das sobras. No compromisso do Funchal de 1745, ficou estipulado que apenas uma quarta parte das sobras seria utilizada nestas manifestações de solidariedade. Ainda dentro deste espírito de socorros mútuos, mas já não como esmola, faziam-se empréstimos de dinheiro. Por alguns registos deduz-se que se procedia a cobrança de juros, à razão de 5 % ao ano, o que encontramos em outras confrarias. Estas confrarias contavam, aliás, como a maioria das restantes, com rendimentos oriundos de juros. Em 3 de junho de 1760, v.g., o Cap. João Bettencourt Herédia ingressou na Irmandade do Corpo Santo do Funchal, dando 2$000 réis de esmola de entrada, com a condição de não lhe cobrarem as anuais. Esses 2$000 réis seriam postos “a juro a razão de cinco por cento, que é um tostão, que será para a confraria e ainda depois de sua morte, ficar à dita confraria” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 80, fl. 38v.), conforme declaração do escrivão. Na conta apresentada por João da Costa, tesoureiro da confraria de Câmara de Lobos, dos anos de 1776 a 1785, o capítulo “Rendimento” subdivide-se em “Juristas e alugueres e meias partes” (ABM, Juízo dos Resíduos..., cx. 3). Em 1776, os “juristas” entregaram à confraria 34$830 réis, o que corresponde a 22,5 % das receitas desse ano. O rendimento principal da confraria era constituído pelas esmolas do quinhão, meio quinhão ou quartão. Porém, era uma receita suscetível de variações, por ser uma percentagem e depender do número de saídas para o mar. Outras receitas eram as esmolas anuais, $100 réis no Funchal, esmolas espontâneas, alugueres de casas e, claro, os juros do dinheiro emprestado. Sobre o pescado entregue à confraria, os compromissos estabeleciam normas a fim de se evitarem fraudes. Determinava-se no compromisso de Câmara de Lobos que o meio quinhão de cada barco deveria ser registado pelo escrivão “com toda a inteireza e verdade e se assentará por adições com distinção e clareza no livro” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 1, fl. 18v.). Na Calheta, em 11 de setembro de 1766, ficou determinado pelo juiz do resíduo secular, face ao procedimento pouco correto de alguns tesoureiros nas contas das meias partes, que o seu registo não se fizesse em papéis avulsos, por ocasião das arrematações em praça, mas num livro próprio e pelo escrivão. Em cada termo, deveriam constar os nomes do arrais e do proprietário do barco, do arrematante, que deveria assinar, e a respetiva importância. Para estas arrematações, realizadas na presença do vigário da colegiada da vila da Calheta, o povo deveria ser convocado com oito dias de antecedência. A partir dos finais do séc. XVII, as confrarias do Corpo Santo eram presididas pelo vigário da freguesia, que servia, assim, de juiz, e administradas pelos mordomos da mesa, um escrivão e um tesoureiro. Em Câmara de Lobos eram 3 os mordomos e no Funchal, 12. Os cargos de escrivão e tesoureiro – referindo o compromisso de Câmara de Lobos o escrivão e o arrecadador – eram eleitos em assembleia de irmãos, realizada no dia do patrono e presidida pelo vigário. Segundo o compromisso da confraria do Funchal, de 1745, os 12 irmãos da mesa e o escrivão deveriam ser irmãos da terra, enquanto o tesoureiro seria obrigatoriamente homem do mar. Esta regra criou alguns problemas ao normal funcionamento da Confraria, pois tornava-se difícil o recrutamento de tão grande número de homens da terra, quando a Irmandade se compunha maioritariamente de marítimos. Em 16 de maio de 1756, a Confraria reuniu na capela do Corpo Santo e deliberou retomar os preceitos estatutários antigos, ficando a administração cometida apenas ao escrivão e ao tesoureiro que os homens do mar escolhessem, sem, à partida, estar a elegibilidade condicionada pela atividade profissional em terra ou no mar. As razões apontadas e registadas em ata prendem-se com o reduzido número de irmãos da terra e o facto de estes, normalmente, pertencerem e servirem outras confrarias, recusando a eleição para a do Corpo Santo. Nesta assembleia, os homens do mar reafirmaram a sua posição hegemónica e fizeram valer o seu pragmatismo, para continuação e bom funcionamento da Irmandade “que foi erigida e feita pelos homens do mar e estes até agora, desde sua criação sempre a sustentaram à custa das esmolas que lhes dão do ganho de suas pescarias” (ABM, Confrarias, cx. 1, liv. 79, fl. 43). O vigário, o tesoureiro e o escrivão detinham, cada um, uma das três chaves da arca onde se guardavam valores e o dinheiro da confraria, de que subsistiu uma pequena arca na capela do Corpo Santo do Funchal, talvez já dos inícios do séc. XX. Tanto o juiz, como o escrivão e o tesoureiro eram portadores de varas de prata quando participavam em atos públicos da confraria ou em cerimónias em que esta se fazia representar, das quais subsiste ainda uma, de meados do séc. XVIII, assinada por “VIF.”, marca de ourives não identificado. Ao escrivão cabia a guarda dos livros da irmandade, a admissão de novos elementos, e o acompanhamento do tesoureiro na cobrança dos quinhões dos barcos e na arrecadação das esmolas. O tesoureiro ficava ainda responsabilizado pelo inventário da prata e de outros bens móveis. No Funchal, os irmãos do Corpo Santo pertenciam também à Confraria do Santíssimo Sacramento da freguesia de Santa Maria Maior do Calhau, sem esmola de entrada, com direito a todos os sufrágios. Do quinhão que davam dos seus barcos, o tesoureiro da Confraria do Corpo Santo entregava, no final de cada ano, 1/6 ao tesoureiro da Confraria do Santíssimo, ficando assim “os homens do mar mais aliviados de fazerem as suas contas e pagar a 2 cobradores porque em tempos antigos pagavam também um quartão àquela Confraria” (APEF, Compromisso da Confraria..., cap. 10.º, § 3.º). Nas confrarias do Corpo Santo os marítimos podiam assim contar com uma série de apoios em vida, quer em casos de naufrágios e de ataques corsários, quer na doença, onde “as necessidades não esperam nem sofrem demoras” (Ibid., § 7.º) e, depois, no sufrágio da sua alma e da dos seus parentes mais próximos, satisfação reconfortante em tempos de profunda crença na eternidade, e sabiam ter o seu corpo direito a um funeral condigno. Em vida, a confraria assegurava-lhe socorro em acidentes e contribuía para a sua sobrevivência, quando doentes ou na velhice, proporcionava cuidados médicos, concedia empréstimos e investia em casas de habitação para arrendamento. As confrarias começaram a conhecer dificuldades quando, ao longo do séc. XVIII, começaram a ser alvo de disputa entre os poderes eclesiásticos e reais, na base dos quais, essencialmente, se encontravam os aspetos económicos. As primeiras ações régias foram para chamar a si a aprovação dos compromissos, o que foi logo transmitido à Madeira e aceite pelo bispo jacobeu D. João do Nascimento (c. 1690-1753), ordem que, a 11 de julho de 1750, transmitiu às confrarias, mas que poucas cumpriram. A 17 de novembro de 1766, haveria nova ordem, então para o provedor das capelas da ilha da Madeira e do Porto Santo, registada na Câmara do Funchal. A Confraria do Corpo Santo do Funchal, v.g., só então enviou os seus estatutos para aprovação em Lisboa, recebendo a aprovação com data de 29 de agosto e a confirmação a 24 de outubro de 1767. A partir de então os conflitos institucionais dispararam, tornando muito difícil a vida das confrarias. A Confraria do Corpo Santo do Funchal ainda estava bem ativa entre 1881 e 1887, período da execução do conjunto dos lampadários e da cruz processional em prata, pelo ourives Guilherme Guedes Mancilha, ensaiador do Porto, e a Confraria de Câmara de Lobos, quando empreendeu, em 1908, uma ampla campanha de reabilitação da capela da Conceição, entregue ao pintor Luís Bernes (1864-1936). Os marítimos madeirenses estiveram, inclusivamente, na base da fundação do mutualismo moderno, quando, em reunião de 17 de outubro de 1897, 177 irmãos decidiram a instalação de uma caixa de montepio marítimo. Mais tarde, a 10 de dezembro de 1950, em cerimónia solene e numa iniciativa da Empresa do Cabrestante, Ld.ª, a gente do mar atribuía o título de arrais ao seu santo patrono, S. Pedro Gonçalves Telmo. A capela do Corpo Santo do Funchal foi classificada pelo dec. nº 30.762, de 26 de setembro de 1940, como imóvel de interesse público, e um decreto de 1974, por intercedência da DRAC, que esclarece que a capela não se designa de Corpo Santo, como normalmente é referida, mas do Espírito Santo; a razão deste esclarecimento é um enigma. Em 1954, a Direção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais procedera a obras de arranjo e reparação, com a demolição do alpendre e da antiga sacristia, a colocação do óculo sobre a porta principal e a substituição da cobertura. As obras prolongaram-se por 1955 e 1957, com beneficiações do exterior, e concluíram-se em 1960. Em 1987 foi efetuado levantamento sumário dos bens, entregue na Diocese e na paróquia de Santa Maria Maior, e nesse mesmo ano a DRAC e a oficina Arte e Restauro executaram a recuperação geral das telas da capela-mor. Em 1995, procederam à limpeza sumária da tábua central do altar-mor e à recuperação geral, para abertura ao público. Rui Carita