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comércio do funchal

O Comércio do Funchal teve a sua 1.ª edição em 1866 sob a direção do Cón. Abel Martins Ferreira, mantendo-se a sua publicação até ao n.° 13, em 1867. Reaparece em 15 de maio de 1910 e é suspenso a 15 de agosto do mesmo ano. No ano de 1966, um grupo de democratas madeirenses, que tinham atividade profissional ligada à agência de publicidade Foco, uma das duas primeiras agências de publicidade da Madeira, pretendendo fazer ouvir a sua voz através de um jornal autónomo e sem dependência editorial de terceiros, decidiu abalançar-se à publicação de um semanário. Na impossibilidade política e prática, devido à ditadura de Salazar, de criar um título novo, optou por “refundar” o CF, semanário já existente, arrendando-o ao seu proprietário, João Carlos da Veiga Pestana, e criando a sigla CF, para retirar significado ao nome original. Além de ser o proprietário, João Carlos da Veiga Pestana, embora sem exercer o cargo, figurava como diretor do jornal pois, face à legislação vigente, não era possível substituí-lo, aparecendo Vicente Jorge Silva como diretor interino, situação que se manteve até ao 25 de Abril. No grupo inicial de fundadores, que transcendeu os provenientes da Foco, contavam-se Artur Andrade (pai), António Aragão Mendes Correia, José Manuel Barroso, Vítor Rosado, Luís Manuel Angélica, Ricardo França Jardim, José Manuel Coelho, Duarte Sales Caldeira, entre outros. Alguns destes fundadores, apesar de já terem colaborado com outros periódicos regionais, Diário da Madeira, Jornal da Madeira e Eco do Funchal, não possuíam, no entanto, a experiência da publicação autónoma, o que não impediu que o grafismo adotado fosse inovador para a época, bem como a singularidade na escolha da cor (cor-de-rosa), que se ficou a dever ao facto de o preço deste papel ser o mais barato. Apesar da inexperiência e de todos os condicionamentos económicos e políticos, o grupo partilhava, para além da oposição ao regime salazarista, uma decidida vontade de inovar no jornalismo madeirense, rompendo, com esta proposta, o marasmo e a apatia reinantes, levando a liberdade de expressão o mais longe que a censura permitisse. Todos esses constrangimentos obrigavam a que, além de quatro funcionários administrativos, só dois elementos da redação, com dedicação exclusiva, auferissem ordenado. O CF existia graças ao apoio duma certa intelectualidade madeirense e nacional, tendo-se afirmado no panorama da imprensa nacional, com particular incidência junto da juventude universitária e dos milicianos que lutavam nas colónias, leitores fiéis, que constituíam quase exclusivamente o sustentáculo económico do jornal. Esta projeção valeu-lhe, no entanto, fortes dissabores com a censura e, posteriormente, com o exame prévio de Marcelo Caetano. Eram feitos, sistematicamente, cortes parciais e integrais em artigos, que tinham de ser substituídos em cima da hora de fecho da edição, tornando a saída de cada número uma odisseia. O periódico foi, inclusivamente, suspenso pela censura entre maio e outubro de 1968. O CF era paginado às quartas-feiras na Tipografia Minerva, situada na R. dos Netos, onde também era paginado o semanário Voz da Madeira, no qual colaborava Alberto João Jardim. Posteriormente, o jornal era dobrado manualmente e expedido, de modo a estar nas bancas no fim de semana. O jornal Voz da Madeira, da responsabilidade de Agostinho Cardoso, tio e figura tutelar de Alberto João Jardim, defendia e veiculava as ideias e posições da União Nacional e do regime salazarista. Todo o trabalho de dobragem e expedição do CF era realizado com recurso a trabalho voluntário predominantemente por pessoas ligadas à Juventude Operária Católica (JOC). A JOC, caso inédito a nível nacional, apesar de ser um movimento ligado à Igreja Católica, defendia e tinha na Madeira uma militância de esquerda. O CF chegou a atingir tiragens de 15.000 exemplares, a maioria dos quais expedidos para fora da Madeira. As receitas mal chegavam para cobrir os custos de edição e expedição para o continente e para as colónias, sendo o preço de venda do jornal nas colónias inclusivamente inferior ao preço dos portes. Ao longo da sua existência, o jornal ocupou várias sedes, respetivamente na R. dos Aranhas, na Av. do Mar, na R. do Seminário, na R. dos Netos, sendo a sua última fase na R. do Carmo (cedida gratuitamente pelo seu maior mecenas, o médico França Jardim). Paralelamente à sua atividade editorial, o CF apoiava e divulgava nas suas páginas toda uma série de iniciativas de âmbito cultural, fomentando um debate aberto e plural na sociedade madeirense. De entre essas iniciativas inéditas destacam-se debates sobre temas pertinentes tais como: a situação do turismo, a cultura na Madeira e o plano de urbanização do Funchal, da autoria de José Rafael Botelho, prestigiado arquiteto de esquerda, por encomenda do então presidente da Câmara do Funchal, Fernando Couto, plano esse que dividiu profundamente a sociedade madeirense. Outro dos assuntos debatidos versava o tema Portugal perante a Europa, participando nesses debates figuras regionais, algumas com ligações ao regime, e personalidades nacionais de relevo como Francisco Balsemão, António Barreto e João Martins Pereira. Desde os primeiros tempos interiorizou e assumiu o CF o desejo de autonomia como um dos seus traços mais característicos, não só a nível político e administrativo, face à centralização paternalista, asfixiante e castradora do salazarismo, mas um desejo de autonomia das próprias pessoas, no que se refere à sua dignidade de cidadãos. Quando começou a aventura do CF encarava-se a autonomia enquanto conceito libertador da secular dependência e do subdesenvolvimento da Madeira, sendo esse sentimento partilhado por um leque de pessoas dos mais variados quadrantes sociais e políticos, incluindo até responsáveis da União Nacional salazarista, como Agostinho Cardoso.   O CF e a censura do regime salazarista As contradições da época, o isolamento e a quietude social e política da Madeira permitiram que o CF tivesse beneficiado de um ambiente menos hostil à sua difusão local e ao seu posterior crescimento a nível nacional. Ao contrário do que se passava no resto do país, onde os censores eram numerosos e anónimos, na Madeira os censores não possuíam enquadramento ideológico seguro, tendo por vezes de aceitar essas funções, para as quais não estavam vocacionados, por arrasto doutras profissões que exerciam. Graças à proximidade e às boas relações pessoais existentes, era possível estabelecer um diálogo civilizado com os censores, sendo a censura na Madeira de certo modo mais benigna e sendo possível negociar cortes e proibições. Tinham os jornalistas e redatores uma luta constante para “escrever nas entrelinhas” de modo a que os censores não se apercebessem da verdadeira mensagem que estava a ser veiculada de forma sub-reptícia. Contudo, essa situação não se manteve eternamente e, a partir de uma edição sobre o Maio de 68 em França, arrancada quase a ferros ao censor, veio uma ordem do poder central para o CF ser censurado em Lisboa. Considerou o CF que, se obedecesse a essa ordem, estaria a criar um precedente gravíssimo e definitivo. A estratégia adotada foi a de interceder junto dos deputados madeirenses à Assembleia Nacional, invocando, por um lado, precisamente o (alegado e formal) regime de autonomia atribuído às chamadas ilhas adjacentes (distrito autónomo) e, por outro lado, argumentando que todo o material publicado na edição em questão tinha sido previamente visado pela censura local e que deste modo “não havia infringido nenhuma regra ou publicado material interdito […] e que se os textos dessa edição tinham sido carimbados e aprovados pela censura local e, além disso, se existia esse regime autonómico (apesar de formal), então o CF estava a ser alvo de uma medida claramente discricionária e até de uma flagrante ilegalidade” (SILVA, 2006, 19). No entanto, teve de se esperar que Salazar fosse substituído por Marcelo Caetano, iniciando-se a chamada “primavera marcelista” (fictícia primavera política), para que a coação exercida de forma continuada junto dos deputados madeirenses à Assembleia Nacional produzisse resultados. Apesar de ter nascido e ser editado na Madeira, o CF implementou-se em Portugal continental, junto dum público fidelizado, o que, até então, nenhum órgão de comunicação madeirense alcançara. Progressivamente, o CF foi-se afirmando a nível nacional, assumindo o papel de ponto de encontro, de plataforma nacional que espelhava debates ideológicos que as esquerdas, em especial as esquerdas universitárias, vinham travando. Essa abertura alterou, contudo, o “centro de gravidade” do jornal, que de algum modo, e pouco a pouco, começou a refletir as posições políticas e ideológicas dos seus colaboradores. Apesar de debater e refletir os grandes temas de discussão nacional, o CF nunca perdeu de vista nem descurou as suas raízes, dedicando, de forma continuada e permanente, atenção aos temas regionais, tendo inclusivamente uma secção específica para o efeito, a secção “Aqui e Agora”. Os tempos eram contudo de tempestade política que prenunciava, aliás, o fim do Estado Novo. Ninguém escapou a esse movimento que exacerbou as divergências entre as várias tendências da esquerda mais radical, acentuando clivagens ideológicas e o sectarismo das correntes maoistas, neoestalinistas e trotskistas, tanto por parte dos leitores como dos colaboradores. A descontinuidade geográfica em relação ao continente e a circunstância de se encontrar longe do epicentro das lutas que se travavam permitiu uma providencial distanciação física e ideológica insular ou, se se quiser, provinciana, filtrando e atenuando as mais exuberantes manifestações, preservando e possibilitando a existência dum resguardo. Por outro lado, a linha não engajada, que era a linha do socialismo libertário, da autogestão, da social-democracia norte europeia, prosseguida por Vicente Jorge Silva, principal responsável editorial do jornal, conseguiu durante algum tempo exercer uma arbitragem eficaz, mesmo que quixotesca, junto às posições opostas e cada vez mais extremadas dos colaboradores do CF.   O CF e o 25 de Abril Citando o próprio Vicente Jorge Silva, “quando acontece o 25 de Abril, o Comércio do Funchal constituía o núcleo central da oposição visível à ditadura na Madeira. Tinha sido a partir do Comércio do Funchal que se tinha tomado a iniciativa da chamada Carta ao Governador (que era então o coronel Braamcamp Sobral, um homem de grande estreiteza mental e que fazia pressões sistemáticas junto da censura para criar dificuldades crescentes ao jornal). Tinha sido também a partir do CF que se organizou a lista da oposição às eleições de 1969. Nessas iniciativas é justo destacar o papel de José Manuel Barroso e António Loja. Entretanto, tinham afluído ao jornal pessoas de novas proveniências, nomeadamente, a nível local, do militantismo católico e que em grande parte acabariam por converter-se, mais tarde, ao marxismo-leninismo. Foi-se verificando, assim, um choque de tendências entre a chamada oposição moderada e a oposição mais esquerdista que se refletiu também no interior do Comércio do Funchal, onde a influência do esquerdismo predominava (e a que não eram estranhos a maioria dos colaboradores radicados no continente)” (SILVA, 2006, 21). À medida que as posições ideológicas se extremavam, tornava-se cada vez mais difícil a situação de Vicente Jorge Silva, emparedado entre essas tendências, porque, por um lado, considerava a chamada oposição moderada e republicana, protagonizada pelos que mais tarde viriam a fundar o Partido Socialista, demasiado branda, mas, por outro lado, não se identificava “nem com o comunismo soviético (o Comércio do Funchal era, aliás, muito crítico em relação à URSS e aos regimes de Leste), nem com as correntes maoistas dominantes na juventude universitária onde o jornal tinha forte implantação” (SILVA, 2006, 22). O 25 de Abril tomou a todos de surpresa. Nas primeiras horas, a falta de informação e a informação contraditória não permitia descortinar quem eram os reais autores do golpe e a sua verdadeira dimensão, correndo inclusivamente, nessa altura, o boato de que se poderia tratar de um golpe de extrema-direita protagonizado por Kaúlza de Arriaga. Nos dias seguintes, à medida que ia chegando informação de que se tratava da queda do regime, a assimilação das suas verdadeiras implicações por parte dos madeirenses, incluindo as autoridades civis e militares, não foi imediata, pelo que se viveu “na Madeira um tempo de confusão verdadeiramente surreal, em que as autoridades locais fingiam comportar-se como se nada se tivesse passado (apesar de Tomás e Caetano terem sido enviados sob prisão para o Funchal) e em que alguns agentes da PIDE apareciam nos cafés falando em voz alta para serem ouvidos nas mesas vizinhas, alegando que nunca tinham feito mal a ninguém. Sentia-se que era preciso reagir, fazer qualquer coisa, mostrar que o 25 de Abril também tinha chegado à Madeira, apesar de não ter havido na ilha nenhuma movimentação militar. Ora, as comemorações do primeiro 1º de Maio em liberdade constituíam uma ocasião particularmente propícia para isso. E foi a partir das instalações do Comércio do Funchal, transformadas em quartel-general, que se organizou a manifestação do 1.º de Maio que juntou dezenas de milhares de pessoas ao longo das ruas do Funchal, passando pelo palácio de S. Lourenço onde estavam detidos Tomás, Caetano e ministros da ditadura como Moreira Baptista e Silva Cunha, até terminar no largo do Colégio. Os discursos foram feitos a partir da varanda da Câmara Municipal (alguns elementos do MFA destacados na Madeira tinham colaborado na parte logística) que decidimos ocupar simbolicamente, até para exigir a demissão dos responsáveis do antigo regime que se mantinham placidamente nos seus postos, fingindo ignorar o que acontecera no país” (SILVA, 2006, 22). Com a Revolução de 25 de abril, o tradicional papel histórico do CF, sem ninguém disso se aperceber, estava paulatinamente a chegar ao fim. Na primeira edição do período depois do 25 de Abril, dada a indefinição existente, nem se sabia ao certo se seria ou não necessário submete-lo à censura. Nos dias, seguintes, multiplicavam-se as edições, à medida que surgiam novos desenvolvimentos. Foram dias de frenesim e excitação revolucionária, com novos desenvolvimentos hora a hora, minuto a minuto. A excitação e a euforia revolucionária desses dias forneciam a energia para ultrapassar o cansaço. Para além de assegurar as múltiplas tarefas inerentes às sucessivas edições, o núcleo de pessoas pertencentes ao CF teve de conciliar essa ação com as atividades emergentes da militância política. Rapidamente se colocou a questão de saber qual o papel que o jornal deveria assumir futuramente. Adquirido era apenas o facto de que continuaria a ser de esquerda, porém estava em questão se deveria continuar a ser uma publicação politicamente autónoma e independente ou se, pelo contrário, deveria tornar-se o porta-voz de um movimento político e partidário. Vicente Jorge Silva e o núcleo duro dos fundadores moderados defendiam a primeira alternativa, mas estavam claramente em minoria face à vontade dominante, que acabaria por prevalecer. Entretanto, fora criado um movimento político, a União do Povo da Madeira (UPM), que juntou a oposição mais à esquerda, e ao qual aderiram também muitos recém-chegados à democracia. A certa altura, chegou-se a verificar um mimetismo entre a redação do CF e os órgãos de cúpula da UPM, cujos membros eram oriundos em parte dos movimentos cristãos da juventude, embora incluíssem também outros militantes, nomeadamente Liberato Fernandes, Milton Morais Sarmento e Paulo Martins, que formaram uma tendência claramente maoista no interior do CF. A oposição mais tradicional ao regime lançou o Movimento Democrático da Madeira (MDM). “Apesar de algumas tentativas para aproximar os dois movimentos, o corte consumou-se, em larga medida devido à irredutibilidade do chefe do MDM, Fernando Rebelo. O MDM chegou rapidamente ao poder transitório da época, mas acabou também rapidamente por consumir-se no fogo-fátuo do PREC madeirense. Quanto à UPM, tornou-se progressivamente uma sucursal da UDP e ganhou um cariz cada vez mais radical e populista, propagando as teses da revolução operária e camponesa numa terra sociologicamente muito conservadora e marcada pelo caciquismo político-religioso. Um caciquismo a que o novo bispo do Funchal, Francisco Santana, não deixou de recorrer em força: foi ele, aliás, quem escolheu Alberto João Jardim para diretor do jornal da Diocese, o Jornal da Madeira, dando-lhe a notoriedade e a cobertura para lançar a carreira política que se conhece” (SILVA, 2006, 24) Com a fragmentação e clivagem que se verificou, bem como com a consequente radicalização das diferentes fações ideológicas no interior do CF, assumiu preponderância a linha ligada à UPM, com as suas teses marxistas-leninistas-maoistas. Uma das suas exigências era a da fixação dum salário mínimo regional igual ao do continente, sem se considerar a exiguidade e sustentabilidade económica dessa medida, i.e., a possível falência das empresas e o consequente desemprego que poderia provocar. A UPM estava interessada predominantemente na luta de classes e nas teses que dela decorriam, pelo que não olhava com bons olhos os editoriais – do seu ponto de vista pouco ortodoxos –assinados por Vicente Jorge Silva nem o facto de este não estar engajado em qualquer das correntes dominantes e se encontrar preocupado com questões de outra ordem, como as relacionadas com autonomia da Madeira, que não eram consideradas como tendo valia suficientemente revolucionária e que representavam, no entender dos seus delatores, graves desvios em relação à “linha correta” por eles prosseguida. Essas críticas, partilhadas por parte significativa dos colaboradores regulares de Lisboa, foram aumentando de tom até se tornarem insustentáveis e conduzirem ao pedido de demissão de Vicente Jorge Silva, que posteriormente prosseguiu uma carreira profissional a nível da imprensa nacional, desempenhando cargos de chefia no Público e no Expresso. Com a liberdade trazida pelo 25 de Abril, deixou de sociologicamente fazer sentido uma plataforma de encontro entre as várias tendências da esquerda portuguesa, que até aí tinham conseguido coexistir de forma relativamente pacífica e que eram a base de sustentabilidade do CF. As diferentes tendências ou partidos criaram os seus próprios órgãos de comunicação social. Com a saída de Vicente Jorge Silva, chegou ao fim a linha editorial que o CF prosseguira, tendo a tendência ligada à UPM (futuramente União Democrática Popular e Bloco de Esquerda) feito dele o seu órgão de comunicação. Mais tarde, a comissão de trabalhadores, liderada por Vasco Sousa, saneou os elementos maoistas da UPM e assumiu a direção do jornal, tendo-se, por razões táticas que se prenderam sobretudo com a sustentabilidade do periódico, aliado ao Partido Comunista Português. Contudo, tal aliança não foi suficiente para garantir a sustentabilidade do jornal, o qual veio a encerrar algum tempo depois, tendo perdido toda a importância e o prestígio que a oposição ao regime de Salazar e Caetano lhe tinham granjeado.   Helder Melim (atualizado a 28.01.2017)

História Económica e Social História Política e Institucional Literatura Sociedade e Comunicação Social Madeira Cultural

2ª conferência do teatro "madeira de a a z"

Vem aí mais um final de tarde com as Conferências do Teatro - Madeira de A a Z. É já no próximo dia 15 de Fevereiro às 18 horas no Teatro Municipal Baltazar Dias que prossegue o ciclo das Conferências do Teatro Madeira de A a Z. As conferências pretendem, pela sua regularidade e interesse geral, ser parte do calendário da cidade, envolvendo o público como participante. Com a periodicidade mensal, as conferências, três por sessão, de diferentes áreas do saber, ligam-se a efemérides ou comemorações nacionais e internacionais, contribuindo para consciencializar o público no que toca às suas tradições e memória histórica. Pretendendo-se levar ao público as temáticas tratadas no âmbito da criação do Grande Dicionário Enciclopédico da Madeira, desta feita em destaque a Língua Materna, cujo dia Mundial se comemora a 21 de fevereiro e cuja comunicação estará a cargo da investigadora Naidea Nunes, o assinalar da data de nascimento da escritora Luisa Grande Lomelino (15 de fevereiro), nome próprio da escritora Luzia com comunicação de Cláudia Neves e Armando Correia fechará o painel sob a efeméride do Dia Europeu da Vítima do Crime datado a 22 de fevereiro. Conferência inaugural durante comunicação do Professor José Eduardo Franco

Madeira Cultural Notícias

galerias de arte

Entre os finais do séc. XIX e as primeiras décadas do séc. XX, as poucas exposições de arte que ocorreram na Madeira foram organizadas em espaços improvisados. A designação galeria de arte foi usada em 1922, no contexto da primeira exposição de arte moderna que teve lugar no Funchal. Nas décadas seguintes, foram espaços como o Ateneu Comercial do Funchal e a Junta Geral que chamaram a si a organização de exposições. A partir dos anos 60, surgiram projetos privados mais próximos do conceito de galeria, destacando-se as galerias Tempo, Decorama, Mundus, Quetzal, Funchália, Porta 33, Edicarte e Mouraria. Dentro das iniciativas de caráter institucional, merecem registo a galeria da SRTC e o teatro municipal do Funchal. Fora do desta cidade, refira-se a Casa das Mudas, as casas da cultura de Santa Cruz e de Câmara de Lobos e a Galeria dos Prazeres. Palavras-chave: exposições; artes plásticas; artistas. O Grémio Artístico, nos finais do séc. XIX, e a Sociedade Nacional de Belas Artes, a partir de 1901, dominaram o panorama das exposições de pintura e escultura em Portugal, com os seus frequentes “Salões” de inspiração francesa. Na Madeira, em contraste com Lisboa, as exposições esporádicas de que há notícia aconteceram em espaços improvisados de hotéis e casinos da cidade do Funchal. Contudo, o protagonismo dos artistas madeirenses Francisco Franco, Henrique Franco e Alfredo Miguéis, tanto em Lisboa como em Paris, motivou o inesperado aparecimento, embora efémero, da primeira galeria de arte moderna no Funchal, em abril de 1922. A Galeria de Arte do Casino Pavão, como ficou conhecida, foi uma iniciativa do banqueiro e mecenas Henrique Vieira de Castro. Este espaço foi especialmente construído para acolher a, também primeira, exposição de arte moderna na Ilha, e na qual os artistas referidos participaram ao lado dos estrangeiros Bernard England e Madeleine Gervex-Émery, e do aguarelista continental Roberto Vieira de Castro, formando assim o Grupo dos Seis, que deu nome à exposição. Dois meses antes da sua abertura, um artigo no Diário de Notícias do Funchal, anunciando esta inédita exposição, insistia na necessidade de dotar a cidade com museus e galerias de arte, de maneira a promover o necessário e urgente desenvolvimento cultural da Madeira. Apesar das intenções de ali se organizar anualmente uma exposição de arte moderna, tal nunca veio a acontecer. Nesta déc. de 20, encontramos apenas a iniciativa isolada de Adolfo de Noronha que, em 1929, com o apoio da Câmara Municipal, abriu ao público o Museu Municipal do Funchal, que contemplou, nos primeiros anos, uma sala de pintura e escultura, mas que logo se especializou nas ciências naturais. Durante o regime do Estado Novo, o número de galerias privadas a nível nacional foi verdadeiramente exíguo, tendo cabido às instituições do Estado o controlo e organização das exposições artísticas. Nas décs. de 30 e 40, passaram pela Madeira, muito esporadicamente, algumas exposições de pintura organizadas pelo Estado, tendo o átrio da então Junta Geral funcionado como sala de exposições temporárias. Como exemplo, é de mencionar a visita do pintor Alberto de Sousa, que ali expôs em 1934. Às salas de hotéis e casinos que acolheram as exposições no período anterior, acrescentam-se, a partir dos anos 40, espaços não menos provisórios em associações comerciais, clubes, e galerias, que eram mais lojas de antiguidades do que espaços de exposição. Da iniciativa privada, destaca-se o papel dinamizador do Ateneu Comercial do Funchal, que, fundado em 1898, ganhou algum protagonismo cultural, a partir dos anos 30. Durante os anos 40 e 50, o Ateneu promoveu diversas atividades, sobretudo no âmbito da poesia e literatura, através de concursos e prémios. Contudo, é de salientar a criação, em 1936, de um núcleo de fotografia, que promoveu a realização do I Salão de Arte Fotográfica no Funchal, em 1937. Aquando do estabelecimento do museu da Quinta das Cruzes, em 1946, à data conhecido como Museu César Gomes, foi pensada a criação de um espaço que serviria de ateliê a artistas visitantes e um outro que funcionaria como sala de exposições temporárias. Mas tal não aconteceu, a não ser muito pontualmente, pois esta não seria a vocação do museu. A primeira exposição temporária ocorreu em 1949, com a Exposição de Estampas Antigas da Madeira e, durante os anos 50, há notícia de duas mostras, uma do pintor Francisco Maya, em 1953, e outra de desenhos de Egon von der Wehl, no ano seguinte. Para além dos espaços referidos, na sede da Sociedade de Concertos da Madeira ocorreram algumas exposições. Em 1950, foram exibidos 42 trabalhos – entre aguarelas e desenhos de paisagem – de Américo Marinho, pintor de origem continental e, por essa altura, professor da Escola Industrial e Comercial do Funchal. No mesmo ano, foi notícia na revista Das Artes e da História da Madeira uma exposição de aguarelas e óleos de uma pintora inglesa, Bryce Nair, desta vez nas Galerias da Madeira. Este local comercial, situado na esquina da rua 5 de Outubro com a rua Bettencourt, era vocacionado, sobretudo, para a venda de antiguidades. Por sua vez, o Clube Funchalense, entidade de carácter social e cultural, já criada no séc. XIX (foi fundado em 1839), organizava, mormente, bailes e soirées, e só apresentou exposições de arte muito esporadicamente; sendo de destacar, no séc. XX, a primeira exposição individual de Lourdes Castro, em 1955, uma das poucas que realizou na Madeira, e uma mostra de António Aragão, no ano seguinte. A partir dos anos 60, o número de galerias aumentou, em Portugal continental, de forma significativa, passando de três, no início da década, para cerca de 30. Alguns novos projetos seguiram o figurino de loja-galeria ou galeria-livraria, em voga nessa época. Em 1964, é o tempo de inaugurar, na Madeira, o primeiro espaço próximo deste figurino, a Galeria de Artes Decorativas Tempo, sita na rua do Bom Jesus. Iniciativa do Arqt. Rui Goes Ferreira e do escultor madeirense Amândio de Sousa, esta galeria apostou na comercialização de objetos de design moderno e também em exposições temporárias. Na sua exposição inaugural, Sete Pintores Portugueses, foram apresentados trabalhos de Manuel Mouga, Jorge Pinheiro, Espiga Pinto, Manuel Pinto, José Rodrigues, Ângelo de Sousa e Júlio Resende. Num figurino semelhante, merece destaque a abertura da Galeria Mundus, em 1965. Neste espaço comercial foram realizadas as primeiras exposições de arte moderna de uma nova geração de artistas madeirenses. Em 1966, foram expostos desenhos surrealizantes de António Vasconcelos (Nelos) e Humberto Spínola; assim como pintura abstrata de Danilo Gouveia e Ara Gouveia. Por esta galeria passaram também artistas continentais mais ou menos conhecidos, entre os quais António Palolo, que ali expôs individualmente em 1967. Outra iniciativa integrada no conceito de loja-galeria foi a fugaz Decorama, da responsabilidade de João Silvério Cayres. Esta trouxe ao Funchal mobiliário e objetos de gosto contemporâneo, mas cedo deu lugar a uma loja mais vocacionada para mobiliário clássico, mais ao gosto do comprador local. Um projeto ambicioso foi o da utópica Casa do Artista, que partiu da ideia trazida por alguns críticos e galeristas franceses de visita à Madeira por ocasião da II Exposição de Arte Moderna realizada no Funchal, em 1967, entre outros, Victor Lacks e Michel Tapié de Céleyran. A proposta atraiu alguns artistas empreendedores da Região, nomeadamente Amândio de Sousa e António Aragão, que cedo contribuíram para transformá-la num projeto, que chegou a ser apresentado à Junta Geral do Funchal, em 1968. Aquela que parece ter sido a primeira tentativa real para criar uma estrutura cultural de apoio e divulgação das manifestações artísticas de vanguarda, e que incluía um espaço de exposições, próximo do conceito de galeria, acabou por não vingar, por desinteresse das entidades governamentais. Entrados os anos 70, novas intenções de constituir espaços para a exposição de arte moderna foram surgindo, mas não tiveram continuidade. Lembremos o caso da Sociedade de Empreendimentos Turísticos Matur, que organizou duas exposições em 1973, uma com artistas locais e outra com convidados do continente. O objetivo era criar um museu/galeria no Hotel Atlantis, pertencente àquele grupo, mas a ideia não vingou. No pós-25 de Abril, as anteriores iniciativas privadas foram desaparecendo. O Governo Regional, através de algumas galerias institucionais, foi promovendo o desenvolvimento dos espaços expositivos. Foi o recém-criado Instituto de Artes Plásticas da Madeira (ISAPM) que se constituiu como uma das alternativas mais atuantes ao longo das décs. de 80 e 90. Na sua sede, na rua da Carreira, foi criada uma pequena galeria de exposições aberta ao público, onde foram realizadas inúmeras mostras escolares e, com alguma frequência, exposições de artistas locais, nacionais e estrangeiros. Em simultâneo, a galeria da Secretaria Regional do Turismo e Cultura (SRTC), situada na avenida Arriaga, e conhecida localmente como Galeria do Turismo, desempenhou um papel importante ao longo das décs. de 80 e 90 na realização de exposições de artistas locais, nacionais e estrangeiros, tirando partido da sua localização privilegiada no centro da cidade, o que permitiu uma afluência considerável de visitantes. Por outro lado, e no mesmo período, o salão nobre do teatro municipal Baltazar Dias também acolheu numerosas e diversificadas iniciativas apoiadas pela Câmara Municipal do Funchal, em estreita colaboração com várias instituições, sobretudo com o ISAPM e o Cine Forum do Funchal. Ainda na déc. de 80, e em diálogo com as instituições acima mencionadas, assiste-se ao aparecimento de alguns espaços de iniciativa privada, hoje desaparecidos, tais como a galeria Quetzal, em 1981, e a galeria Funchália, em 1989. A primeira, da responsabilidade de Francisco Faria Paulino, e associada a uma editora homónima, trouxe ao Funchal exposições de artistas portugueses contemporâneos. A Quetzal não abriu portas em local próprio, tendo sido as suas exposições montadas em espaços como o teatro municipal Baltazar Dias, o Museu de Arte Sacra do Funchal, e a galeria da SRTC. No contexto da sua atividade como galerista, Francisco Faria Paulino foi também o principal responsável, em 1987, pelo Festival de Arte Contemporânea MARCA-Madeira, evento inédito no Funchal que contou com a participação de 31 galerias portuguesas e incluiu um congresso de arte contemporânea, entre outras ações paralelas que muito dinamizaram o ambiente artístico regional, por esses anos. Por sua vez, a galeria Funchália foi inaugurada no centro comercial Eden Mar sob a direção de Manuel Brito, Maurício Fernandes e Rui Carita, entre outros. De iniciativa local, esta galeria constituiu a primeira iniciativa com sede própria dedicada à arte contemporânea local e nacional. Ali foram organizadas um total de 31 exposições, sete das quais com artistas locais, tendo cessado a sua atividade em 1994. Expuseram na Funchália artistas como Helena Vieira da Silva, Celso Caires, João Moreira, André Sander, Cruzeiro Seixas, Rocha Pinto e António Botelho. Preenchendo o vazio deixado pelo encerramento da Funchália, o galerista Francisco Faria Paulino propôs um novo projeto, desta vez com sede própria: a galeria Edicarte, inaugurada em 1996, com sede na rua dos Aranhas, e que foi responsável pela realização da segunda e terceira edições do festival MARCA-Madeira onde, uma vez mais, estiveram representadas importantes galerias portuguesas. Ainda nos anos 90, regista-se a abertura de uma delegação, na zona turística do Caniço, da galeria Falkenstern Fine Art, sediada na ilha de Sylt, na Alemanha, vocacionada para mostrar trabalho de artistas estrangeiros de passagem pela Madeira e também do seu fundador, Siegward Sprotte. No começo do séc. XXI, a sede alemã continua em atividade, mas a delegação da Madeira, aberta em 1991, revelou-se um projeto efémero. Um caso à parte é a galeria Porta 33, criada em 1989 e ainda em funcionamento. Concebido, nos seus estatutos, como associação cultural, este espaço tem trazido ao Funchal nomes importantes da arte contemporânea. Para mais, tem desenvolvido com alguns artistas projetos específicos de exposição; tem promovido o debate com críticos convidados de âmbito nacional e internacional; e tem organizado diversos workshops e palestras. A Porta 33 trouxe ao Funchal obras de artistas de recorte nacional como Graça Pereira Coutinho, Ilda David, João Penalva, Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis, Pedro Croft e Pedro Calapez. De entre os artistas locais ou madeirenses que fizeram carreira no exterior, destacam-se Lourdes Castro, António Aragão, Rigo, António Dantas e Rui Carvalho. Esta galeria também tem participado em feiras de arte internacionais, tais como a ARCO, em Madrid. No dealbar do séc. XXI, foi inaugurado um novo espaço comercial, a Galeria Mouraria, da responsabilidade de Ricardo Ferreira, e que trouxe ao Funchal algumas coletivas com representantes do contexto nacional, apresentando obra de artistas locais, assim como desenvolvendo a iniciativa project room, com mostras de carácter mais experimental. Alguns dos artistas que a galeria representou individualmente ao longo da sua existência foram reunidos numa coletiva comemorativa do seu 10.º aniversário, em 2011, a saber: Cristina Perneta, Filipe Rodrigues, Guareta, Hernando Mejia, Marcos Milewski, Maria São José, Patricia Morris, Roberto Bolea, Sílvio Sousa Cró e Trindade Vieira. Meses depois, este projeto galerístico fechou portas. O início do séc. XXI viu desaparecer a galeria da SRTC, em 2006, pondo-se assim fim a um intenso trabalho de divulgação e dinamização cultural no centro da cidade. Um ano antes, fora também encerrado o Centro Cívico Edmundo Bettencourt, situado na rua Latino Coelho, e cuja ação foi muito menos marcante do que a daquela galeria, por se ter resumido a exposições coletivas de pouco impacto e com critérios de organização pouco consistentes. Fora do Funchal, outros espaços, sob a tutela das autarquias locais, foram cumprindo a missão de organizar exposição de artes plásticas, complementando assim o trabalho das poucas galerias privadas que se foram mantendo em atividade. É exemplo a Casa da Cultura de Santa Cruz, cuja atividade profícua teve como coordenadores José Baptista e o escultor António Rodrigues, e que apresentou, ao longo dos anos 90, para além de inúmeras coletivas, mostras individuais de António Aragão, Hélder Baptista e Lagoa Henriques. Por sua vez, e sob a coordenação de Paulo Sérgio BEJu, a Casa de Cultura de Câmara de Lobos privilegiou, entre 2005 e 2010, as mostras coletivas em formato de instalação, com propostas temáticas que desafiavam a criatividade dos aristas convidados. Para além destas, foram apresentadas mostras individuais de artistas locais, tais como Teresa Jardim, Domingas Pita e Rita Rodrigues. Neste contexto, é importante destacar o papel da Casa das Mudas, Casa da Cultura da Calheta, inaugurada em 1997, coordenada por Luís Guilherme Nóbrega até 2007. Esta galeria aproveitou a sua localização para operar uma descentralização cultural e uma ação direta no meio. Alguns dos artistas ali apresentados foram José Manuel Gomes, Lígia Gontardo, Élia Pimenta e Ara Gouveia, do contexto local, e Alberto Carneiro, António Palolo e José de Guimarães, do contexto nacional. Este espaço privilegiou também a linguagem fotográfica, trazendo à Madeira mostras coletivas e individuais neste âmbito, assim como mostras de importantes coleções de fundações nacionais, como a da Fundação Serralves. Uma outra iniciativa descentralizadora é a que levou à criação da Galeria dos Prazeres, inaugurada em 2008 e orientada por Patrícia Sumares até 2012. Trata-se de um projeto galerístico inserido na Quinta Pedagógica dos Prazeres, uma iniciativa, por sua vez, de origem paroquial e com carácter recreativo e cultural. A galeria propriamente dita pauta-se por uma estreita ligação com natureza e com o património local, privilegiando exposições de artistas locais e estrangeiros que desenvolvem propostas artísticas nesse sentido. A partir de 2013, a galeria passou a ser coordenada por Hugo Olim, artista visual e docente na Universidade da Madeira. Nesse espaço, destacam-se, para além de artistas estrangeiros, as mostras individuais de artistas locais como Carla Cabral, António Dantas, Paulo Sérgio BEju, Jose Manuel Gomes, Filipa Venâncio, Ara Gouveia, Martinho Mendes e o Arqt. Paulo David.   Carlos Valente (atualizado a 01.02.2017)

Artes e Design Cultura e Tradições Populares Educação Madeira Cultural

cinco artistas vagabundos (os)

A 2 de agosto de 1916, o Diário da Madeira anunciava, para breve, o aparecimento nas suas páginas de “uma interessante narrativa que sairá aos folhetins” e cuja autoria era atribuída a “cinco rapazes d’esta terra, bons cultivadores de literatura” (Diário da Madeira, 2 ago 1916). Entre 4 de agosto e 12 de setembro de 1916, este diário funchalense dava à estampa vários capítulos desse folhetim, provocatoriamente intitulado Novela Romântica e Burlesca de Cinco Artistas Vagabundos. Contada por 5 Autores Absurdos e Todos Verdadeiros. Esta novela constitui um interessante contributo madeirense para o debate estético e ideológico que na déc. de 1910 decorria em Portugal, sobretudo depois da publicação de Orpheu em 1915, mas também nos principais centros culturais da Europa, então assombrados pela Primeira Guerra Mundial e pelas propostas modernistas de vanguarda. Embora praticamente esquecida nas páginas do Diário da Madeira ao longo de todo o séc. XX e só reeditada no início do séc. XXI, Novela Romântica e Burlesca de Cinco Artistas Vagabundos. Contada por 5 Autores Absurdos e Todos Verdadeiros foi, porém, noticiada quer por Cabral do Nascimento logo em 1917, quer por Alfredo de Freitas Branco, já em 1953. O primeiro fê-lo na lista bibliográfica de obras de sua autoria que publicou na abertura do livro de poesia Hora de Noa, editado no ano seguinte à edição do folhetim. Nascimento assume-se aí como um dos coautores dessa narrativa, identificando os companheiros que, com ele, haviam assinado o folhetim: A. de Freitas Branco, Álvaro Manso, Luiz Vieira de Castro e Manoel de Lins. Alfredo de Freitas Branco, por sua vez e então já assinando como Visconde do Porto da Cruz, reportava-se, no seu Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, a esses “escritos” “muito revolucionários” publicados no Diário da Madeira e que “fizeram sensação” no verão funchalense de 1916, sobretudo “pela extravagância e irreverência”, embora apresentando uma lista autoral diferente da enunciada por Cabral do Nascimento, em 1917. De acordo com Freitas Branco, “Os Cinco Artistas Vagabundos” tinham sido “um grupo de estudantes universitários e de escritores” composto por “João Cabral do Nascimento, Luís Vieira de Castro, Álvaro Manso de Sousa, Rodolfo Ferreira e eu” (PORTO DA CRUZ, 1953, 8-9). Verificamos, assim, que a complexidade conferida à novela dos Cinco Artistas Vagabundos, desde logo pelo carácter coautoral da sua composição e pela estrutura fragmentária da publicação em folhetim, será adensada por três irónicas ocorrências que se prendem com as assinaturas autorais: (1) o facto de não serem coincidentes as indicações autorais dadas por Cabral do Nascimento e Alfredo de Freitas Branco, pois enquanto este não refere Manoel de Lins, identifica Rodolfo Ferreira, nome que, por sua vez, não está presente na lista de Nascimento; (2) o facto de nenhum destes dois últimos nomes ser detetável em trabalhos de referência que se tenham ocupado da identificação de autores do sistema literário madeirense; (3) o facto de nenhum dos fascículos do folhetim ser afinal assinado por qualquer dos nomes identificados por Nascimento e pelo Visconde do Porto da Cruz. Por conseguinte, duas questões se colocam relativamente à autoria deste folhetim: quem é Manoel de Lins e/ou Rodolfo Ferreira? E quem, de entre as duas listas de escritores apresentadas por Cabral do Nascimento e Alfredo de Freitas Branco, é de facto responsável pela criação de cada uma das figuras autorais que assinam a Novela Romântica e Burlesca de Cinco Artistas Vagabundos? As respostas a estas questões exigem a leitura atenta do próprio folhetim, assim como o cruzamento dos seus fragmentos com outros textos e trabalhos artísticos. Ao longo do verão de 1916, os funchalenses foram conhecendo as escritas de cinco supostos novos autores que, desde o título do folhetim autobiográfico (semificcional, acrescente-se, desde já), se autodefiniam como “vagabundos, absurdos, mas todos verdadeiros”, sendo aqui de destacar o duplo sentido de “vagabundo”, significando andarilho à deriva, mas também mendigo, marginal que se exclui e/ou é excluído do meio social, económico e cultural em que vive. Os seus nomes estranhos e os parcos dados autobiográficos referidos na novela conferem a alguns dos “artistas vagabundos” uma nacionalidade estrangeira, evidenciando-se nas suas escritas e nos seus percursos de vida um manifesto registo cosmopolita e moderno: Ismael de Bó é um poeta luso-judeu; Enrick Porchá, um contista húngaro; Rogério Lehusen, um músico experimentalista sem nacionalidade atribuída, mas não português em exclusivo, dado o sobrenome; Diogo de Eiró, um escritor saxão; e Ymário Koman ou Imário Koman, o “paradoxal e estranho desenhador polaco”, como a ele se refere Ismael de Bó numa passagem do folhetim (BÓ, 1916a, 2). O conjunto destes cinco artistas acompanha a líder do grupo, Collecta de Nylves, uma “femme artiste” atenta a tudo o que de novo ocorria no mundo, uma intelectual com vida amorosa e social pouco convencional e, por conseguinte, representando na fábula a figura da emancipada mulher moderna, enquadrável na vanguarda da primeira fase dos movimentos feministas ocidentais que na déc. de 1910 se consolidavam também em Portugal. Desta forma, a novela dá conta de uma suposta aventura cosmopolita, de deriva excêntrica e transnacional, realizada pelo grupo dos seis intelectuais diletantes que, entediados e sempre em busca de experiências-limite e do novo, percorrem algumas das mais relevantes metrópoles da Europa, do Médio Oriente, da Índia e da América Latina, assim como espaços que, desde 1914, se encontravam intimamente associados à Grande Guerra. Alternadamente, os “cinco artistas vagabundos” assinam 16 capítulos dessa novela, distribuídos de forma irregular por quatro secções, destacadas no Diário da Madeira como tratando-se de três volumes e um livro. Acresce a esses 16 capítulos um último fascículo autónomo, o qual, na economia da narrativa, funciona como epílogo, justamente por não surgir numerado e por narrar o suicídio de um dos artistas, Enrick Porchá, incidente que justifica o fim da própria novela (cf. Fig. 1). Com o folhetim, dialogam, no entanto, outros textos: uns atribuídos às figuras autorais que assinam a novela; outros aos autores madeirenses que efetivamente as criaram (Cabral do Nascimento, Funchal, 1897-Lisboa, 1978; Luiz Vieira de Castro, Funchal, 1898-Lisboa, 1954; Álvaro Manso, Funchal, 1896-1953; e Alfredo de Freitas Branco, Funchal, 1890-1962; lista a que deveremos acrescentar Ernesto Gonçalves, Funchal, 1898-1982, pelas razões que adiante apontaremos). Estabelece-se, deste modo, uma constelação de textos, cuja leitura exige a adoção de um paradigma hipertextual, sobretudo quando se pretende desvendar a identidade do criador de cada um dos cinco artistas vagabundos. A esta constelação pertence, para além dos textos acima indicados, um outro conjunto de textos em número considerável, com autorias dificilmente identificáveis, e que foram também publicados no Diário da Madeira, entre 1916 e 1918 (cf. Fig. 2). Novela Romântica e Burlesca apresenta-se, portanto, como uma narrativa autobiográfica, num processo criativo altamente irónico, cujo sarcasmo já se anuncia no título. Esta ironia sarcástica exigirá do leitor uma redobrada atenção crítica, manifestando-se, desde logo, no caráter autobiográfico da narrativa conjunta, na medida em que alguns dos dados biográficos atribuídos aos “cinco artistas vagabundos” são totalmente ficcionais, enquanto outros se apresentam como acontecimentos/vivências efetivamente experienciados por Cabral do Nascimento, Ernesto Gonçalves, Luís Vieira de Castro, Alfredo de Freitas Branco e Álvaro Manso de Sousa. Ismael de Bó, já apresentado por Cabral do Nascimento quer em As Três princesas Mortas num Palácio em Ruínas (NASCIMENTO, 1916b, 21), quer em “Carta a alguém que nunca viu a Madeira. Ismael de Bó – Judeu errante da Belleza”, surge no folhetim ora como um poeta luso-judeu que compõe versos sobre “Les trois Princesses [qui] sont mortes” (BÓ, 1916a, 2), ora como autor do polémico livro Princesses of Thule (em suposta tradução inglesa) e que, para além disso, se encontrava implicado no debate sobre as vanguardas modernistas, protagonizado, em Portugal, pelo grupo de Orpheu. Quer a referência à origem judaica de Ismael de Bó, quer as irónicas citações da sua obra poética, nas quais encontramos uma evidente alusão a As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas, primeiro livro de Cabral do Nascimento, editado em 1916, onde as protagonistas são apontadas como sendo também “as três Princesas de Tule” (NASCIMENTO, 1916b, 10), quer ainda a referência à participação desse “artista vagabundo” nas polémicas em torno das vanguardas, conduzem a uma identificação parcial de Ismael de Bó com João Cabral do Nascimento. Isto não invalida, porém, que a maior parte das aventuras narradas no folhetim e que são protagonizadas pelas personagens que o assinam sejam, de facto, ficcionais. Quanto ao “juvenilíssimo Diogo” de Eiró, este “escritor saxe” que, “uma vez em Coimbra, se declarará integralista fervoroso”, é apontado como um autor fascinado pelo “seu querido Oscar Wilde” (BÓ, 1916a, 2). Além disto, no primeiro capítulo do vol. II do folhetim, cuja autoria é atribuída ao próprio Eiró, este surge como o “gentil” anfitrião dos restantes “artistas vagabundos”: acolhe-os, durante “um mês divino”, no seu “sumptuoso palácio” indiano de Tuticorin, embora no “derradeiro” momento da partida, tenha sido tomado pela “miséria exquisita e aristocratica da sua nevrose”, a qual o leva a incendiar o próprio palácio (EIRÓ, 1916b, 2). Os atributos de “juvenilíssimo”, de “integralista fervoroso” e de anfitrião/mecenas dos “cinco artistas vagabundos” levam-nos a associar a figura de Diogo de Eiró a Luiz Vieira de Castro. Lembremos a atividade mecenática e filantrópica desenvolvida pela família Vieira de Castro nas primeiras décadas do séc. XX na Madeira, sobretudo pelo pai, Henrique Viera de Castro; e não esqueçamos que Luiz Vieira de Castro, com 18 anos em 1916, era, na verdade, um dos mais novos do grupo criador do folhetim, tendo desenvolvido, nos seus anos de estudante em Coimbra, uma intensa atividade política que o levaria, e.g., em 1921, a fundar o semanário monárquico Restauração, uma vez mais em parceria com Cabral do Nascimento e Ernesto Gonçalves, entre outros jovens madeirenses. Por outro lado, um artigo de Cabral do Nascimento, publicado em 1918 no Diário da Madeira, confirmará a veracidade dessa pista em torno da identidade do criador da personalidade ficcional Diogo de Eiró. Indicando Luiz Vieira de Castro como um admirador de Oscar Wilde e como autor de três livros – Nebuloses (1916), Livro estranho (1916) e Civilisados (1918) –, Cabral do Nascimento destacará, neste último, o “melhor trabalho” de Vieira de Castro: “o conto ‘A ultima labareda’” que, como declara Nascimento, era “o entrecho da nossa novela de colaboração, dos cinco artistas vagabundos e absurdos” (CABRAL, 1918, 1). Deste modo, o autor de As Três Princesas Mortas… confere a Luiz Vieira de Castro o engendramento do estranho episódio do incêndio do palácio de Tuticorin, reconhecendo no escritor de Civilisados, implicitamente, também o criador da figura autoral de Diogo Eiró. Por seu lado, Rogério Lehusen surge na novela como o músico, “o compositor genial e rebelde, duma incompreensível transbordação de talento”, que estaria a preparar com Ismael de Bó uma “opera quase a terminar” (BÓ, 1916a, 2). De entre os autores madeirenses apontados por Cabral do Nascimento e Alfredo de Freitas Branco como responsáveis pela criação dos “cinco artistas vagabundos”, o único que aparece implicado nas artes performativas é Álvaro Manso de Sousa. Luiz Peter Clode lembra que, para além de escritor e arquivista, este intelectual funchalense se dedicava “também à música e teatro”, tendo deixado, entre outras obras, quer “algumas peças de teatro para amadores, como dois “Vaudevilles”, quer “letra e música sacra” (CLODE, 1983, 299). Mas outro facto reforça a identificação de Rogério Lehusen com Álvaro Manso. Lehusen é apresentado no folhetim como criador que trabalha em parceria com Ismael de Bó, o “artista vagabundo” criado/identificado com Cabral do Nascimento. Esta referência pode ser lida como uma irónica transposição para a fábula da relação de amizade e de trabalho conjunto que, de facto, Álvaro Manso e Cabral do Nascimento desenvolveram entre si, desde muito cedo e ao longo da vida. Cooperaram na fundação do Arquivo Distrital do Funchal, nos anos de 1920 e 1930; e, no início da déc. de 1920, e.g., publicaram no semanário Restauração uma narrativa conjunta, também editada em folhetim. No caso de Ymário Koman ou Imário Koman, a novela apresenta-o como um “paradoxal e estranho desenhador polaco”, compositor de uma obra intitulada Bailarina Nua, na qual a excelência da sua criação plástica consegue dar visibilidade ao “ritmo oriental das curvas coreográficas e serenas” dessa bailarina (BÓ, 1916a, 2). As notas biobibliográficas que hoje dão conta do percurso de Cabral do Nascimento, Alfredo de Freitas Branco, Luiz Vieira de Castro e Álvaro Manso de Sousa não nos indicam que estes intelectuais insulares tenham desenvolvido qualquer trabalho criativo na área das artes visuais. Este facto leva-nos a supor que Ymário Koman, o responsável pela representação verbal (mas quase plástica, pela capacidade sugestiva do seu discurso descritivo) do incêndio do palácio de Tuticorin, é o “artista vagabundo” criado por Rodolfo Ferreira ou por Manoel de Lins. A respeito deste último, importa sublinhar que o seu nome surge também inscrito em Novela Romântica e Burlesca como o de uma personagem: Manoel de Lins é o “escritor” evocado por Collecta de Nylves, por ter inspirado uma “paixão dolorosa” nesta mulher “inteligente” e só comparável a “Ana Clara” (BÓ, 1916a, 2). O cruzamento deste facto com o desconhecimento de qualquer informação que comprove a existência empírica de um cidadão com o nome Manoel de Lins indicia estarmos, também neste caso, perante uma ficcionalização autoral, inscrita na novela, como acontece com os “cinco artistas vagabundos”. Quanto a Ymário Koman, será Cabral do Nascimento quem, uma vez mais, decifra o mistério da sua criação. No mesmo artigo de 1918 em que atribui a Luiz Vieira de Castro a autoria de Diogo de Eiró, Cabral do Nascimento aplaudirá a qualidade da escrita de Ernesto Gonçalves, classificando-o como um dos mais notáveis escritores da “novíssima geração” literária madeirense. Isto, sobretudo, por encontrar em Ernesto Gonçalves “um pintor, um debuxista botticelino, um Moreau”, caracterização que, de imediato, nos faz evocar as capacidades plásticas da escrita assinada por Ymário Koman. E, prosseguindo no comentário à obra deste “novíssimo” madeirense, acabará por documentar o elogio dirigido a Ernesto Gonçalves transcrevendo um fragmento que atribui a este autor, mas sobre o qual se apressa a anotar, não sem ironia: “Duma novela que publicámos neste jornal, a colaboração dele sobressai com notável relevo. Certamente passou despercebida, mas transcrevemos-lhe um trecho, para documentação do que vimos dizendo […]. O período citado, escrito há dois anos – teria o autor 18 de idade – revela qualidades tão notáveis” (CABRAL, 1918, 1). Se a citação feita por Cabral do Nascimento no Diário da Madeira, de facto, documentava a qualidade da escrita agora atribuída a Ernesto Gonçalves, o irónico comentário do autor de Hora de Noa a respeito dessa citação deve também ser lido como testemunho que documenta a identificação do criador de Ymário Koman. Na verdade, o fragmento textual atribuído, em 1918, a Ernesto Gonçalves, pelo seu amigo Cabral do Nascimento, corresponde a uma passagem de Novela Romântica e Burlesca, mais concretamente, a um fragmento do cap. II do vol. II, assinado por Imário Koman. Uma coincidência que confirma, assim, a afirmação, também expressa por Cabral do Nascimento, de que Ernesto Gonçalves fora um dos ativos participantes no projeto folhetinesco dos “cinco artistas” “absurdos”, mas “todos verdadeiros”. Resta Enrick Porchá, o contista “incoerente”, sempre “achando um encanto superior na elegância perversa de irritar a burguesia” (BÓ, 1916a, 2), cuja pena ridicularizará, de acordo com a fábula da novela, os britânicos James Cook e Edward Trifler (personagens que, não inocentemente, surgem assim nomeadas na novela) e cujo perfil, até por exclusão de partes, permite associá-lo ao jovem polemista Alfredo de Freitas Branco, que desde cedo, mas sobretudo durante os anos da Segunda Guerra Mundial, viria a assumir-se como um inequívoco germanófilo. Confirma-se assim que os “cinco artistas vagabundos”, autores absurdos da Novela Romântica e Burlesca, foram, de facto, figuras autorais identificáveis, em parte, com “5 autores” “verdadeiros”: Cabral do Nascimento, Alfredo de Freitas Branco, Álvaro Manso de Sousa, Luiz Vieira de Castro e Ernesto Gonçalves. Por seu turno, o carácter absurdo que os próprios autores atribuem à sua escrita narrativa não deve ser descontextualizado, mas antes lido como mais uma das provocações irónicas e questionadoras que marcam a ação cultural deste grupo de jovens intelectuais madeirenses, sobretudo na segunda metade da déc. de 1910, quando nos principais centros culturais portugueses e europeus se discutiam a(s) modernidade(s) e os modernismos. Os “artistas vagabundos”, em 1916, nas páginas do Diário da Madeira e antecipando um pouco o que, entre 1918 e 1933, os Artistas Independentes experimentariam, nas suas tertúlias do café Golden, procuravam criar condições para, também na Madeira, se discutirem esses problemas e essas propostas modernas. Não por acaso, dois dos “artistas vagabundos” (João Cabral do Nascimento e Ernesto Gonçalves) fizeram também parte do grupo eclético dos Artistas Independentes, que integraria outros criadores insulares e visitantes temporários da Madeira: Henrique Franco, Francisco Franco, Alfredo Miguéis, Emanuel Ribeiro e João Abel Manta.   [table id=80 /]   [table id=81 /]     Ana Salgueiro (atualizado a 28.01.2017)    

Literatura Madeira Cultural

canovai, stanislao

Stanislao Canovai nasceu a 27 de março de 1740 em Florença, e nesta mesma cidade morreu a 17 de novembro de 1812. Foi um dos matemáticos e físicos mais famosos do séc. XVIII, e é considerado o iniciador da corrente científica que se afirmou na segunda metade deste século, nas Escolas Pias de Toscana. A par disto, Canovai foi considerado pelos seus contemporâneos um grande escritor, pela sua doutrina e pelo seu estilo preciso e eloquente. Estudou em Florença e Pisa, como iniciante na Ordem dos Esculápios, e em 1765, foi nomeado para a cátedra de Filosofia e Teologia no seminário episcopal de Cortona, onde lecionou Matemática durante 15 anos. Em 1768, interrompeu, por um período muito curto, o seu ensino em Cortona para ensinar Física matemática no colégio real de Parma. Em seguida foi chamado para ensinar Hidráulica no colégio florentino dos Esculápios. Publicou em Florença, com o editor Giovacchino Pagani, o volume Elogio di Amerigo Vespucci, che Riportò il Premio dalla Nobile Accademia Etrusca di Cortona nel dì 15 Ottobre dell'Anno 1788. Con una Dissertazione Giustificativa di questo Celebre Navigatore. A obra apresentava-se bem fundamentada e historicamente fundada. Canovai confrontou códices e publicações, e discutiu as escolhas e declarações de estudiosos anteriores, como Angelo Maria Bandini. A obra visava sobretudo considerar e enquadrar o significado cultural do empreendimento de Vespúcio num âmbito crítico e científico mais amplo, e acabou por provocar um debate animado. Canovai, como eminente cientista, queria estabelecer a jornada de Vespúcio de forma conclusiva, e, em particular, decidiu examinar as rotas, a fim de resolver a questão da longitude. A passagem pela Madeira era crucial, dado que a Ilha e o arquipélago eram um dos pontos geográficos fundamentais, tanto para os cálculos de Canovai, como para confirmar a verdade histórica das várias viagens de Vespúcio. Obras de Stanislao Canovai: Elogio di Amerigo Vespucci, che Riportò il Premio dalla Nobile Accademia Etrusca di Cortona nel Dì 15 Ottobre dell'Anno 1788. Con una Dissertazione Giustificativa di questo Celebre Navigatore (1798).   Valeria Biagi (atualizado a 28.01.2017)

Matemática

ateneu comercial do funchal

Fig. 1 – Capa do jornal Re-Nhau-Nhau (Funchal, 4 abr. 1935). O Ateneu Comercial do Funchal (AtCF) surgiu em nome dos interesses dos empregados do comércio a 8 de dezembro de 1898, sendo os seus estatutos votados só a 8 de janeiro de 1899 e o alvará que os aprovou datado de 22 de dezembro do mesmo ano. Em fevereiro de 1895 fundou-se a Associação de Socorros Mútuos dos Empregados do Comércio, que acabaria por ter uma curta duração, pois em abril do ano seguinte terá sido decidido exonerar os sócios que não pagavam as quotas; alguns destes membros, inseridos num grupo de empregados do comércio, estiveram na origem da criação do futuro Ateneu. Em novembro de 1897, alugaram um quarto ao número 14 da Rua da Sé, com os objetivos de se distraírem nas horas vagas e difundirem palestras educativas, levando assim ao nascimento de uma associação de classe. Os empregados pretendiam também encontrar proteção e apoio na defesa dos seus interesses junto dos patrões. Sob o impulso dos seus principais promotores, empenharam-se na recolha de um avultado número de adesões entre os seus colegas, abrindo, assim, caminho para a primeira reunião, na qual ficou deliberado nomear-se uma comissão para se constituir uma associação da respetiva classe profissional. O grupo reunia-se frequentemente no escritório de comissões de Júlio A. de Carvalho, à Rua do Sabão, e em estabelecimentos comerciais, em assembleias que somavam o empenho de vários colaboradores, o que permitiu que, em pouco tempo, fosse concretizada a aspiração de fundar uma agremiação para defesa dos empregados do comércio. À época debatiam-se, na sociedade local, questões relacionadas com a construção de um jardim no espaço do demolido Convento de São Francisco e do Teatro Municipal (inaugurado em 1888 com o nome de Teatro D. Maria Pia), a par de temas políticos. É neste contexto que nasce, em 1898, o AtCF, associação cujos membros lutam pela concretização daquilo que consideram serem as aspirações dos madeirenses. A atividade do AtCF abarca, assim, não só a defesa dos interesses dos empregados do comércio, mas também o domínio intelectual e o âmbito das obras de utilidade pública, procurando contribuir, dessa forma, para o progresso social da Madeira. Desde a sua fundação até 1900 o Ateneu funcionou no segundo andar do número 24 da Rua Direita, mudando-se, depois, para o número 3 do Largo da Sé, onde permaneceu até 1905. Nesse ano, transferiu-se para o número 108 da Rua dos Ferreiros, onde passou a dispor de instalações mais cómodas e capazes de permitirem o alargamento das diversas iniciativas. Com mais de 90 sócios fundadores, era constituído por personalidades influentes como César de Oliveira, Francisco António Ribeiro, João Maria Valente, Manuel Dias Tavares, Agostinho Dias Tavares, Luís Canuto Gonçalves, Vasco M. de Ornelas, João Gonçalves Farinha, João Pereira Martins, José de Freitas, Manuel Marques Júnior. Júlio A. de Carvalho, que acompanhava os acontecimentos do Ateneu Comercial de Lisboa, foi apontado como impulsionador deste projeto; Vieira de Castro, delegado do Banco de Portugal, fez a redação dos estatutos conforme os do Ateneu Comercial de Lisboa (AtCL) e tratou da sua aprovação. O Ateneu recebeu influências do AtCL, fundado a 10 de junho de 1880, bem como da Sociedade Nova Euterpe – que, em 1884, adotou o nome de Ateneu Comercial do Porto – e do Ateneu Popular, inaugurado em Coimbra em 1885. Segundo José Laurindo de Goes, a partir de 1850 surgiram, por toda a Europa, diversas coletividades com a designação de ateneu, bebendo a sua inspiração da antiguidade clássica Madrid, Roma, Londres ou Paris são exemplo dessa realidade. Fig. 2 – Imagem da simbologia do Ateneu Comercial do Funchal Para Jaime Vieira dos Santos, os fundadores destas coletividades eram homens de amplos horizontes, já que, para além dos proveitos resultantes da atividade comercial, tinham em vista ser homens de cultura, dignificando a sua profissão e elevando o seu espírito. Procuravam a sua própria valorização intelectual, bem como a de todos os membros do Ateneu e respetivas famílias. O comerciante não poderia ser um simples burguês boçal e inculto, mas deveria ser um verdadeiro homem de sociedade, que, ao lado das preocupações do lucro, se interessava também pelos acontecimentos que marcavam a realidade à sua volta Na Madeira, vivia-se um moderado progresso comercial e uma agitada discussão sobre os fundamentos da instauração da República, com vários títulos dedicados à causa republicana, bem demonstrativos do envolvimento e da participação da população na vida política da Ilha. Rafael Bordalo Pinheiro descrevia a época através de uma caricatura que apresentava o vilão madeirense, vestido a rigor, a segurar o deputado Manuel de Arriaga, enquanto pontapeava Fontes Pereira de Melo, chefe do governo da época. Para republicanos como Teófilo Braga, as comemorações camonianas realizadas no Ateneu significavamo começo de uma era nova da democracia portuguesa. A história desta instituição reparte-se em três fases. A primeira, desde a fundação até 1925, consiste sobretudo na sua afirmação enquanto coletividade. É a fase embrionária, marcada pelo entusiasmo dos membros do Ateneu, na qual assumiram grande significado as reivindicações sócio económicas dos anos 20. A segunda fase inicia-se em 1925, com a elaboração dos segundos estatutos, e prolonga-se até aos anos 60, sendo conhecida como o período áureo do AtCF pelos acontecimentos que nesta altura se despoletaram; considerada uma fase mais intelectual que sindical, atinge o seu clímax na década de 50. A terceira fase, iniciada nos anos 60, reflete algum esmorecimento das iniciativas, mantendo-se, no entanto, a realização de atividades como a Festa da Flor. Nos seus primeiros estatutos, o AtCF definia-se como “uma associação de instrução profissional, física e recreativa, representação e proteção mútuas, criada pelos empregados do comércio”, que tinha como finalidade proporcionar a “aquisição de conhecimentos teóricos e práticos que mais diretamente interessem à profissão do comércio em geral” (GOES, 1985, 128). Não se limitaria a agremiar empregados e a zelar pelos seus interesses, mas teria objetivos mais ambiciosos, os quais compreendiam os campos da cultura e da arte. Ao mesmo tempo, pretendia ser um espaço de descanso e partilha de opiniões. O projeto do AtCF visava a valorização intelectual dos associados e respetivas famílias, o que passava pela criação de escolas primárias para os filhos dos seus membros, por cursos de aperfeiçoamento linguístico para os sócios, por lições para o melhoramento da técnica comercial, por conferências sobre arte e literatura, por sessões científicas e palestras, pela ampliação progressiva da sua biblioteca, pela criação de divertimentos – como as tardes dançantes, festas de carácter regional, matinées destinadas às crianças, representações de pequenas peças teatrais – e por outras iniciativas que contribuíssem para estreitar os laços de solidariedade no interior da classe profissional. Seriam estas as linhas gerais estatutárias que algumas direções do AtCF procurariam concretizar ao longo dos tempos. Na qualidade de primeiro presidente da direção do Ateneu, entre 1898 e 1900, Sabino Joaquim Rodrigues procurou promover o desenvolvimento intelectual e social da vida da agremiação, zelando pelo melhoramento do nível de instrução dos seus sócios. Em fevereiro de 1899, inauguraram-se aulas ministradas por personalidades como Manuel Augusto Martins, Francisco Correia Caldas e Jaime Campos Ramalho. Em 1901, nos mandatos de José de Freitas e de Maximiano de Sousa Rodrigues, destacam-se a realização de uma exposição industrial e de uma récita no Teatro D. Maria, aquando da trasladação dos restos mortais de Almeida Garrett para o Mosteiro dos Jerónimos; em 1903, ocorreram a fundação de uma tuna e de um grupo dramático, a recolha de fundos para a construção de um monumento a Câmara Pestana e uma quermesse no então Jardim de São Francisco. Nesta altura, lutou-se pela Lei do Descanso Semanal, fizeram-se viagens pela Ilha e melhoramentos na sede do AtCF. Em 1905, sob a direção de João Lomelino Ferreira, a atividade reivindicativa diminuiu e a instituição virou-se para as áreas do desporto e das artes e letras. No final da primeira década, fundou-se o Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, pela mão de Luíz César Vieira, Francisco Melim e Aquino Baptista; no ano de 1912, foi criada uma escola de instrução primária para as crianças pobres, por proposta do presidente Agostinho Dias Tavares. Em 1913, com o objetivo de congregar a classe do comércio e de defender os seus interesses, alguns elementos do grupo desportivo fundaram O Athenista, jornal que se dedicava aos problemas mais graves da classe. Todavia, por pressão do patronato, por falta de apoio dos comerciantes e pela proximidade da Primeira Grande Guerra, O Athenista deixou de se publicar, o que coincidiu com o colapso do Ateneu. Só depois de 1925 foi possível assistir à retoma da associação e restituir-lhe a dinâmica dos primeiros tempos, por influência do presidente da direção, Carlos Alberto Ferreira, e dos presidentes que se lhe seguiram, personalidades como Diogo M. de Freitas, Juvenal de Araújo e Luís Vieira de Castro. A segunda fase do Ateneu seria marcada pela modificação dos estatutos iniciais, em março de 1925, cujo projeto de reforma foi elaborado pela comissão nomeada a 1 de março, sendo os princípios que regiam a coletividade lidos e aprovados em sessão de 29 de julho de 1925. Os 130 artigos dos novos estatutos veiculavam uma nova compreensão do Ateneu, que passou a definir-se como uma associação de classe de profissionais do comércio constituída tanto por empregados como por patrões – beneficiando, assim, de um critério mais alargado na admissão dos seus sócios, até porque muitos empregados do comércio se tinham tornado patrões com o passar dos anos. Para além da redefinição dos estatutos, também houve alterações nas atas, que recomeçaram a ser numeradas; escolheu-se, para símbolo do comércio, a figura alegórica de Mercúrio; e foi ainda decidido colocar um busto desta divindade no átrio do Ateneu. Seguiram-se tempos marcados por uma conjuntura de sentimentos autonomistas, pela falência de bancos da praça funchalense, em consequência da grande depressão, e pela Revolta da Madeira, bem como pelas transformações políticas que iriam consolidar a governação do Estado Novo. Apesar destas circunstâncias, o Ateneu impôs-se uma nova dinâmica, que acabaria por resultar num vasto conjunto de iniciativas de sucesso. As preocupações dos sócios não se cingiam às questões económicas, mas incluíam também a transmissão de uma panorâmica etnográfica dos costumes da Madeira. Além disso, voltou a incentivar-se o sentido lúdico do baile. Nesta altura, vivia-se um período de maior participação política. Em 1926, foi enviada a Lisboa uma delegação para se encontrar com vários ministros, com o propósito de solucionar as reclamações do comércio local e da própria associação. Pretendia criar uma comissão de verificação e defesa do bordado da Madeira e garantir uma melhor proteção à indústria do bordado; ambicionava a expedição direta de encomendas postais e maior celeridade na sua entrega; apostava na criação de uma representação do comércio na Junta Autónoma da Madeira, no aumento da carteira de descontos nos bancos locais e na simplificação da contribuição industrial. Ao levar as suas pretensões ao Governo Central, os empregados do comércio procuravam também afirmar-se no interior da sociedade madeirense. Insistiram em requerimentos ao Poder Central, sendo 1927 o ano mais ativo, em que trocaram correspondência com o Conselho da Bolsa Agrícola em defesa dos agricultores; com o chefe de serviços da Alfândega, o Governo e a Câmara sobre a questão dos linhos, que era fundamental para a indústria dos Bordados Madeira; com a Direção da Associação Comercial de Lojistas de Lisboa sobre a pauta alfandegária; com o Ministro do Comércio acerca de mercadorias e do movimento de turistas; com o Ministério das Finanças sobre a situação dos impostos, a carteira de descontos, a recolha de moeda, a situação da vinicultura e da obra de verga, a importação das farinhas e outros temas do interesse dos madeirenses. O Ateneu funcionava como uma Câmara de Comércio, que promovia o diálogo com as entidades oficiais em vista da luta pela defesa do comércio da Ilha. Estas conversações permitiram que, em 1928, o Ateneu solicitasse às entidades competentes que os bilhetes de identidade passassem a ser feitos no Funchal; que, em 1929, a importação de farinhas fosse livre; que a situação dos vendedores ambulantes fosse regularizada; simultaneamente, procurou intervir no sentido de que o liceu do Funchal tivesse um edifício próprio. Quanto à década seguinte, destaca-se, em primeiro lugar, o facto de, em 1933, se ter preparado uma exposição de flores naturais, a realizar, em agosto, nos salões do Ateneu, iniciativa que não chegaria a concretizar-se, por motivos políticos. A questão viria a ser ultrapassada por uma manifestação de rua, já que se procurava utilizar as flores, com a sua cor e vivacidade, para fazer a propaganda relativa ao golpe de Estado de 28 de maio de 1926 e, desta forma, impressionar não só os madeirenses, como todos os visitantes da Ilha. O cuidado da questão etnográfica justificou que, em 1935, se efetuasse um levantamento das vendedoras de flores e se publicasse uma postura camarária onde se estipulava o uso do traje obrigatório para as floristas, que usaram o vestuário, pela primeira vez, nas comemorações do 28 de maio, instituindo-se assim, um traje-padrão. Em 1935, após a substituição de diversos dirigentes governativos da Ilha, face às nomeações de Salazar, com Fernão de Ornelas na Câmara Municipal do Funchal e João Abel de Freitas na Junta Geral, o AtCF iria ser o palco escolhido para debater os problemas económicos da Ilha e para procurar esclarecer o rumo dos dinheiros enviados para a Região. Pó, fumo e nada foi o resultado do debate, o que motivaria uma firme resposta de Salazar, em carta enviada ao Presidente da Junta Geral, caricaturada a 6 de junho de 1935 pelo trimensário humorístico Re-Nhau-Nhau. Apesar das dificuldades económicas, cria-se, em 1936, o Núcleo Fotográfico do Ateneu e faz-se o I Salão de Arte Fotográfica, tendo-se destacado, como colaboradores mais distintos, José Carlos de Mendonça, António Manuel Trigo, Eduardo Pereira, Pita Ferreira e Carlos Maria dos Santos. Com a Segunda Guerra Mundial, o comércio da Madeira viveu uma fase crítica, visto que muitos dos bens essenciais foram racionados – além disso, a população padeceu de fome com o conflito. Neste período, a atividade do AtCF enfraqueceu, levando, depois, algum tempo a recuperar a sua dinâmica. Nos primeiros anos da década de 40 fazem-se jogos florais com atribuição de prémios e, em 1942, surge a Festa da Primavera. Assiste-se à afirmação da literatura e do seu aspecto criativo. Carlos Cristóvão, Alfredo Vieira de Freitas e Florival dos Passos são personalidades que marcaram esta época. Horácio Bento de Gouveia assegura que foi “pelo fim da década de 1940 e por todo o decénio de 50” que o Ateneu teve “uma função retintamente cultural” e que desenvolveu, com consciência esclarecida, uma ação de mecenato (GOES, 1985, 131). Vivia-se o espírito clássico do ateneu, que implicava a crítica e o diálogo, com conferências de variadas temáticas em que várias figuras apresentaram as suas ideias. Passaram pelo AtCF, inscrevendo-se na sua história, Ângelo Augusto da Silva, Ernesto Baltazar Gonçalves, José Pereira da Costa, Horácio Bento de Gouveia, J. Vieira dos Santos, J. Brito Câmara, Aragão Mendes Correia, Carlos Lélis e Maria Mendonça, entre outros, os quais marcaram esta época e deram o seu contributo para a literatura da Madeira. Para lá das atividades de pendor intelectual, distinguia-se, no AtCF, uma vertente recreativa, no âmbito da qual havia lugar para diversas modalidades desportivas e passeios a pé, bailes, serões e convívios, ao jeito da belle époque, procurando o descanso mental e a distração da conjuntura económico-social que então se vivia. Em 1954, o Ateneu organizou o Natal do Recém-Nascido e a Festa da Rosa. Seguiram-se a Festa do Avental, em 1956, a organização do I Rally Automóvel do Ateneu e da Festa da Uva, em 1957, para além de uma excursão às Ilhas Canárias e, nos anos 60, uma viagem aos Açores. As relações de amizade com outras regiões do País e com outros países iam-se consolidando, conferindo ao Ateneu um carácter universal. Figuras de toda a Europa e de diferentes ramos de atividade ficaram ligadas a esta instituição, como foi o caso da Viscondessa de Porto Formoso. A Festa da Flor está indissociavelmente ligada ao Ateneu. A Festa da Flor terá a sua origem na Festa da Rosa, quando a direção do AtCF realizou um evento de que fazia parte uma exposição/concurso desta espécie de flores. Para estimular a participação e aumentar o entusiasmo dos membros do Ateneu, foram atribuídos vários prémios, alguns bastante valiosos. O êxito da iniciativa levou a que esta se realizasse todos os anos, não apenas com rosas, mas com qualquer flor, mudando-se a designação, em 1955, para Festa da Flor. Numa terra onde são abundantes as flores de várias espécies, o acontecimento ganhou projeção e adquiriu um valor turístico excecional, dando razão aos que defendiam que podia ali estar a génese de um atrativo turístico de categoria mundial. Ao longo desta década, o AtCF desempenhou papel relevante na procura da elevação do nível cultural da cidade, promovendo conferências, proporcionando noites de arte e outras distrações de carácter cultural. A partir dos anos 60, o associativismo ressente-se não só da adversidade da conjuntura sociopolítica, como também da falta de novas ideias. Nesta altura, o dinamismo e a capacidade criativa do Ateneu perdem fulgor, atravessando-se anos de reduzida expressão cultural pública, o que caracteriza a terceira fase desta instituição. Mantêm-se, no entanto, algumas atividades, nas quais se recordam momentos da história do Ateneu, ou de que fazem parte vários intelectuais madeirenses: por exemplo, Bernardete Falcão, Elisa de Carvalho e Alice Ogando participaram nas conferências realizadas nos anos 60, salientando o papel da mulher. Nos anos 70, destaca-se o aspeto alegórico e renova-se a Festa da Flor, sob a direção do paisagista Fernando Pessoa e do professor Francisco Simões, que aproximam a coletividade das artes plásticas. Depois de se ter realizado, em 1957, no Casino da Madeira, a Festa da Flor volta à sede por razões de espaço. Em 1974 autorizou-se o regresso das atividades culturais ao AtCF; esta retoma cultural foi assinalada no dia 10 de junho com uma conferência sobre Camões, proferida no Teatro Municipal do Funchal. Organizaram-se também exposições de autores como Isabel Cabral, Afonso Costa, Ruy Teles, Carlos Luz e Francisco Simões (Francisco d’Almada). Nesta terceira fase, a atividade do AtCF não se caracterizou pela novidade das suas iniciativas, mas pela repetição da realização de eventos culturais já anteriormente levados a cabo. Os associados organizaram conferências, colóquios, saraus musicais e literários, jogos florais, bailes, exposições, a Mostra do Antúrio e do Sapatinho e, em especial, a Festa da Flor. Em 1981, em razão do trabalho desenvolvido ao longo de várias décadas, o Governo Regional da Madeira (GRM), reunido em plenário, resolveu declarar de utilidade pública o AtCF por intermédio da Resolução n.º 268/81. Foram reconhecidos os importantes serviços que o Ateneu prestou à Região nos setores cultural, artístico, desportivo e comercial, dinamizando a participação cívica dos seus associados e promovendo o associativismo da Região, aos quais se ficou a dever o seu lugar de destaque no interior da sociedade madeirense. Em 1982 reabriu-se o ciclo cultural do Ateneu, com uma forte participação da juventude. Organizaram-se os Jogos Florais de Verão e convidaram-se personalidades como Maria Aurora, Ângela Varela e Gonçalo Nuno, para estimular o renascimento do Ateneu. Nas comemorações do Dia de Camões de 1983 assumiu especial relevo a conferência de Mendes Marques, designada “O Ateneu Comercial do Funchal do Passado ao Presente”, assim como a de Maria Margarida M. Silva. Foram, ainda, expostas várias obras de interesse existentes na biblioteca. Nos anos seguintes, a coletividade continuaria a desempenhar um papel importante na dinamização de atividades socioculturais. Ao assinalar o seu 85.º aniversário, em 1983, ficou claro que o Ateneu, paladino de todos os verdadeiros valores, não estava, nem nunca estaria ultrapassado, assim o quisessem as suas gentes. Entre períodos difíceis e épocas áureas, faziam-se balanços anuais, esperando, ao mesmo tempo, a revitalização desta associação da sociedade madeirense. Procurando adaptar-se à evolução da sociedade, os professores Atanásio e Vítor Costa souberam captar os jovens para as iniciativas do AtCF. Ao longo dos tempos, vários membros desta instituição têm colaborado com ela espontaneamente, empenhando a sua inteligência e o seu esforço em valorizar a atividade do Ateneu. Atingido o centenário da fundação do AtCF, o GRM afirmou-se disposto a apoiar esta instituição, que apresentou formalmente o projeto de reconstrução do edifício-sede, considerado monumento de interesse público. O palacete urbano do século XIX, situado na Rua dos Netos, foi adaptado às exigências da época, procurando contribuir-se, deste modo, para a revitalização do Ateneu, que enfrentara, desde os anos 60, um crescente esmorecimento das suas iniciativas. João Evangelista, presidente desta instituição entre 1983 e 1992, expressaria o seu descontentamento, referindo, com tristeza, que parecia ter caído uma maldição sobre o Ateneu. Os anos iniciais do século XXI foram difíceis, com David Abreu, presidente demissionário desde 2002, a confirmar a acumulação de dívidas, a degradação do edifício e o afastamento dos sócios, não permitindo o desenvolvimento do tipo de atividades que, no passado, o AtCF, na sua qualidade de associação interventiva, havia realizado.   Agostinho Lopes (atualizado a 23.01.2017)

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