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fortes da ribeira dos socorridos

Quando Zarco e os seus companheiros deram a primeira volta de reconhecimento à Ilha, ao passarem por uma ribeira caudalosa, dois rapazes de Lagos que acompanhavam o futuro capitão aventuraram-se a nado na foz da mesma; por terem sido socorridos, ficou o nome de ribeira dos Acorridos ou ribeira dos Socorridos. Com uma larga praia propícia a desembarques, podia ser testa-de-ponte para ataques à vizinha localidade de Câmara de Lobos ou ao Funchal, como tinha sido a praia Formosa. Assim, as primeiras informações que temos da construção das defesas da ribeira dos Socorridos devem-se a Mateus Fernandes, no seu sumário relatório de cerca de 1595. Escreveu o mesmo, que “na ribeira dos Acorridos, a uma légua do Funchal, mandou sua alteza, que está em glória”, em princípio D. Sebastião, embora os alvarás tivessem sido assinados pelo seu tio-avô cardeal D. Henrique, “fazer uns lanços de muros com seus traveses, com os quais se fecha a dita cidade pela parte de poente e todos os que vêm por terra daquela parte entram por uma porta que está no dito muro, entre traveses que a defendem” (ANTT, Cartas Missivas, 2-53). Acrescenta ainda, que “dos quais traveses, um deles ficara com a praça desentulhada e é necessário ver-se quem a desentulhou, para que a torne a terraplanar à sua custa” (Id., ibid.). O pano de muralha que envolvia, assim, a escarpa nascente da ribeira, que ainda fotografámos na década de 80 do século passado, com os seus traveses e espaldões para bocas-de-fogo, constituiu, portanto, o forte da ribeira dos Socorridos, cujas muralhas desciam até à praia e tapavam qualquer acesso ao Funchal. Temos várias informações de terem ocorrido obras nesta área ao longo do séc. XVII, apontando o forte como, essencialmente, uma vigia (Vigias), tal como indica a reconstrução de 1642. Neste ano, em março, foram entregues ao capitão Bartolomeu Fernandes Pereira, da companhia de ordenanças da ribeira 4$000 réis de 500 telhas, a cinco réis cada e pagaram-se mais $300 réis ao ferreiro Gaspar Gonçalves, por quatro “camelos” para o ferrolho da porta do muro e da fechadura e chave, com seus pregos. O transporte foi feito duas semanas depois, pagando-se aos quatro negros que as levaram aos barcos, $080 réis, remunerando-se também Manuel Gonçalves, arrais, por transportar no seu barco as portas, 500 telhas e duas sacas de cal. No entanto, chegadas as portas à foz da ribeira dos Socorridos, descobriu-se que lhes faltavam os suportes, que só então foram mandados fazer. Pagou-se depois, ao mesmo Gaspar Gonçalves, serralheiro, por dois mancais e duas argolas para a porta do muro, $320 réis. Em abril desse ano, no entanto, as contas da obra da ribeira dos Socorridos não estavam todas saldadas, pagando-se ainda mais algumas telhas ao capitão Bartolomeu Fernandes. Nos séculos seguintes, quer o reduto da ribeira dos Socorridos, quer outros dois pequenos redutos feitos na área, eram tidos como fortes. O tenente-coronel António Pedro de Azevedo (1812-1889) em 1868, teceu algumas considerações sobre a necessidade de reconstruir os fortes da foz da ribeira dos Socorridos. Nessa data, encontrava-se em construção a nova estrada de ligação a Câmara de Lobos, na continuação da estrada monumental, pelo que as reticências anteriores sobre as difíceis comunicações em breve deixaram de ser verdade, impondo-se uma outra atenção para esta área. A bateria da ribeira dos Socorridos era constituída por uma esplanada de 16 m, a morrer na falda da escarpa e com uma casa da guarda interior, com 7 m x 4,75 m, confrontado com terrenos do 2.º conde de Carvalhal (1831-1888). As recomendações do engenheiro não tiveram acolhimento e, a 1 de janeiro de 1895, a área foi arrendada a João Blandy, por 1$400 réis. No entanto, a muralha envolvendo a escarpa e marcada por cordão relevado ainda subsiste. A margem oposta da ribeira dos Socorridos, entretanto, foi igualmente dotada de um pequeno forte, que recebeu o nome de uma fazenda e produto da área: Pastel. A construção deve ser posterior a 1817, dado Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832) não fazer qualquer referência ao edifício, e deve datar da época das campanhas liberais. Muito provavelmente, terá sido feito por um dos proprietários locais, possivelmente o 1.º conde de Carvalhal (1778-1837) dado que eram terrenos seus. O reduto do Pastel era “uma insignificante bateria”, como escreveu António Pedro de Azevedo (DSIE, Gabinete..., n.º 5525, 1A-12A-16), com 10 m x 4 m, embora ocupasse uma importante posição estratégica na escarpa. Possuía somente lugar para duas bocas-de-fogo e uma “escavação, ou abrigo aberto na rocha”, ou seja, uma furna, onde chegou a residir o fiel de munições (Id., Ibid.). Confrontava por todos os lados com terrenos pertencentes então ao 2.º conde de Carvalhal. Escreveu ainda o engenheiro Azevedo que teria possuído uma escada de nove degraus, obstruída em 1868 pelas obras da nova estrada. Veio a ser entregue às Obras Públicas depois de 1896, para ampliação da estrada monumental. Numa pequena plataforma das margens da ribeira dos Socorridos, foi levantada, por instituição de Francisco de Bettencourt, em 1594 e como sede de morgado, uma capela dedicada a N.ª S.ª da Vitória, que estaria concluída em 1609, conforme a data que ainda ostenta. Segundo António Pedro de Azevedo, por volta de 1831 e em apoio a um engenho de açúcar da casa Carvalhal, foi erigido um pequeno forte que confrontava, em 1868, com terrenos dessa casa senhorial que passaram depois à posse de João Blandy e do antigo caseiro do conde, Manuel Afonso, cujo terreno era necessário transpor para se chegar ao forte. O forte de N.ª S.ª da Vitória era uma pequena bateria montada num baluarte pentagonal, com entrada por nascente e que utilizava como casa da guarda também uma furna, logo à entrada. Muito arruinado, foi arrendado, a 31 de janeiro de 1896 e sobreviveu até aos finais do séc. XX, tendo sido parcialmente demolido em 1989, com a ampliação das instalações industriais ali construídas.     Rui Carita (atualizado a 31.01.2017)

Arquitetura História Militar Património

teatro, salas de

Do grego théatron, o teatro procura, inicialmente, representar as ligações do humano com o divino, por um lado, e envolver os espectadores num ambiente mágico, por outro, até se tornar naquilo que é nos tempos modernos: a representação de ações através de vozes e gestos, levada à cena por atores. Na Madeira, os locais das primeiras representações teatrais são os locutórios dos conventos e as igrejas, espaços improvisados que nem sempre respeitam a santidade do lugar. Ainda que as constituições do bispado do Funchal determinem “que se não façam nas igrejas ou ermidas representações [...] de dia nem de noite, sem especial licença do prelado, pelos muitos inconvenientes e escândalos que disso se seguem” (SILVA e MENESES, 1998, III, 602), tal como aconteceu em 1578, aquelas não deixaram de se realizar nas centúrias seguintes. Em 1622, é representado um auto religioso na igreja de São João Evangelista, por ocasião da canonização de S. Francisco Xavier, e, em 1718, na igreja ou convento de Santa Clara, há uma representação dramática, da autoria de Francisco de Vasconcelos Coutinho, representada pelas freiras residentes, por ocasião da despedida do governador e Cap.-Gen. João de Saldanha da Gama, em que eram personagens a Ilha, a corte, a saudade, a religião e a fama. A partir do séc. XVIII, as casas de espetáculo tornam-se uma preocupação para as autoridades municipais. A Casa da Ópera, no Lg. da Restauração, uma modesta casa de espetáculos na rua das Fontes, nomeada Comédia Velha nos princípios do séc. XIX, e o teatro Grande, edificado em frente do palácio de S. Lourenço, são os principais espaços de representação existentes no Funchal. O teatro Grande ocupa, em 1780, uma grande parte do então Lg. da Restauração. É uma construção ampla, dispendiosa e demorada, o maior teatro do país depois do teatro S. Carlos, o qual, diziam as vozes mais dissonantes, não seria necessário para uma localidade pequena como o Funchal. Consumido pelo fogo no final do século, é utilizado como arrecadação de víveres e de apetrechos das tropas inglesas no início da centúria seguinte, na altura da ocupação, entre 1801 e 1802, embora se encontre em estado adiantado de ruína. Após a reedificação, nos anos seguintes, é habilitado com 90 camarotes, 300 assentos de plateia e 100 de varanda, e nele representam várias companhias, nacionais e estrangeiras, como a Companhia Grotesca, de Fabri, que canta operetas e executa bailados, segundo noticia o Patriota Funchalense, em 1821. No ano seguinte, num espetáculo solene, é apresentada uma sinfonia composta por António Francisco Drumond e a representação de A Festa do Olimpo, drama em três atos, de Manuel Caetano Pimenta de Aguiar. Durante as lutas civis, o teatro é encerrado por longos períodos. Quando episodicamente se abre ao público, é palco de manifestações de carácter político, com alterações da ordem e com intervenções da força armada. Em algumas noites de espetáculo, os partidários das ideias constitucionais aproveitaram a reunião do grande número de espectadores para expandirem os sentimentos liberais, tanto no palco como na plateia, apesar da afronta que causam às instituições vigentes. Desta forma, o despotismo do governo absoluto e a guerra civil que assolam o país privam o Funchal desta grandiosa e bem ornamentada casa de espetáculos. Os adeptos da demolição defendem que se trataria de uma construção contígua à fortaleza, que causaria embaraços à defesa da cidade, e que o alargamento da rua e o embelezamento da entrada do palácio dos governadores seriam necessários: argumentos que contribuem para o fim do teatro em 1833. Cerca de 1820, o teatro Bom Gosto é erguido a poucos metros de distância do teatro Grande. Situado entre a R. de São Francisco e o edifício da Misericórdia, possui entrada para aquela rua e para o lado do antigo Passeio Público. Presume-se que a sua edificação tenha sido um capricho do 1.º conde de Carvalhal, a quem pertenceu. Ao regressar do exílio, em 1834, manda fazer reparações e o espaço é transformado numa regular casa de espetáculos com 18 camarotes de primeira ordem, 6 de segunda, 230 lugares na plateia e 2 varandas, uma para homens e outra para mulheres. Não se sabe quando é encerrado, apenas se sabe que, em 1838, ali se realiza um espetáculo, embora se encontre em estado adiantado de ruína. O teatro Prazer Regenerado, inaugurado em Dezembro de 1840, é um aproveitamento do refeitório e de outras dependências do extinto convento de São Francisco. A sua existência não tem larga duração. As sociedades dramáticas são uma realidade na Madeira, embora nem sempre possuam espaços próprios para as representações. A escola Lancasteriana é, entre outros, um local utilizado para a execução de concertos musicais e representações. O teatro Concórdia, elevado na R. do Monteiro em 1842, é impulsionado pela sociedade dramática com o mesmo nome. O conhecido ator Robio é um dos elementos que integra o elenco. Em 1844, é ali levado à cena o drama Amor e Pátria, de Sérvulo de Medina e Vasconcelos, um dos seus marcos históricos. Em 1851, ainda se dão récitas no seu espaço. Por 1858, funda-se no Funchal uma sociedade dramática conhecida pelo nome de Thália. Dá representações em diversos locais e, posteriormente, arrenda uma casa no Lg. do Pelourinho. Não se sabe quando deixa de existir nem quem eram os seus sócios e dirigentes, mas ainda apresenta récitas ao público em 1859. Em 1858, o teatro Esperança nasce de uma sociedade dramática que propõe concretizar representações teatrais e proceder à construção duma pequena casa de espetáculos, e de que fazem parte Júlio Galhardo de Freitas e Pedro de Alcântara Góis. O comerciante João de Freitas Martins cede um armazém na R. dos Aranhas, e a Câmara e o conde de Carvalhal impulsionam as obras e assumem a manutenção do grupo. A inauguração solene realiza-se a 10 de março de 1859. António José de Sousa Almada, compositor dramático e redator duma revista teatral, presta à sociedade Esperança vários serviços, tanto na escolha como no ensaio e na representação de peças, até ao início dos trabalhos de abertura da rua 5 de Julho, altura em que são demolidas algumas das dependências do espaço. Em 1887, o mesmo é adquirido pelo conde de Canavial e, até 1888, ano em que é inaugurado o teatro D. Maria Pia, o pequeno teatro Esperança é a única casa de espetáculos da Madeira, levando ao palco várias companhias dramáticas e de opereta. Em 1915, é vendido ao empreiteiro João Pinto Correia, que pouco depois procedeu à sua demolição. Até à construção do teatro D. Maria Pia, as salas usadas para espetáculos, como o teatro Thália, o teatro Concórdia, o teatro Esperança e o teatro Conde do Canavial, estabelecem-se aproveitando espaços já existentes, ligados a empreendimentos privados, e dependentes da vontade de sociedades dramáticas, de orquestras musicais e de outros entusiastas das artes. O objetivo destes locais, e dos que funcionam colateralmente com o D. Maria Pia, é a criação de espaços de lazer e a divulgação das produções artísticas dos amadores, associadas a iniciativas culturais de cariz filantrópico. A segunda centúria do séc. XIX é marcada por várias tentativas de carácter particular e oficial para dotar a cidade do Funchal com um espaço grandioso e belo como o teatro S. Carlos de Lisboa. O desejo da população é concretizado durante a presidência de João Sauvaire da Câmara. Os trabalhos de construção são iniciados em 1884 e concluídos em 1887. O edifício possui 18 frisas, 20 camarotes de primeira ordem, 21 de segunda, 100 fauteuils, 160 cadeiras e 200 lugares de geral. A inauguração solene é realizada a 11 de março de 1888, altura em que sobe à cena a zarzuela Las Dos Princesas, pela companhia espanhola de José Zamorano. Nos anos seguintes, importantes companhias de zarzuelas, de líricas, de operetas, dramáticas, de concertistas, de prestidigitadores e de variedades levam à cena nomes sonantes da cultura e do espetáculo, nacionais e estrangeiros. Inicialmente, no tempo da monarquia, é denominado teatro D. Maria Pia, passando a teatro Manuel de Arriaga em 1910, com a chegada da República. Mas o antigo deputado pela Madeira recusa que seja dado o seu nome ao espaço e a Câmara Municipal batiza-o de teatro Funchalense. Só após a sua morte, e até à posterior designação de teatro Balthazar Dias, na década de 30 do séc XX, é denominado teatro Manuel de Arriaga. Apesar da existência de outros espaços de lazer, é no teatro principal que o público se revê. Expressões como “o nosso teatro”, “o elegante teatro”, “o nosso primeiro teatro”, “a nossa primeira casa de espetáculos” leem-se frequentemente na imprensa, dado ter sido um sonho dos madeirenses. Pelo seu palco, passam grandes companhias internacionais e nacionais, as melhores produções dramáticas e musicais de madeirenses, nos seus espaços organizam-se exposições de pintura, e as figuras públicas sobem ao palco em datas comemorativas, ocasiões em que a sociedade vai em peso ao teatro para participar dos momentos solenes. Pelo pavilhão Paris e pelo teatro Circo passam sobretudo companhias portuguesas, onde permanecem dois e três meses seguidos, contrariamente ao que acontece no teatro principal, onde raramente excedem um mês de permanência. Durante a estadia, os artistas mais conhecidos organizam uma festa artística, ou um dia de destaque na representação, que geralmente dedicam a coletividades ou a personalidades, como forma de atração do público. As companhias nacionais dão récitas de caridade, uma tradição na Madeira, por ser uma região com elevados índices de pobreza. As grandes companhias, dado o elevado custo das deslocações, pedem auxílio à Câmara do Funchal, e a sua ida só se concretiza mediante a recolha de assinaturas para conjuntos de 10 récitas, como nos casos da companhia de Italia Vitaliani, em 1913 e 1914, considerada pelo engenho erudito da edilidade funchalense um elemento educativo de inapreciável valor prático. Eventos desta envergadura são acautelados pelas autoridades locais que, a pensar no proveito, fazem melhoramentos na plateia do teatro, de modo a obterem um maior número de lugares; assim aconteceu por ocasião da vinda de Henrique Beut, em 1914, com a criação de melhores condições elétricas, e na altura da estadia de Italia Vitaliani e da representação da Guiomar Teixeira, de João dos Reis Gomes, com a colocação de lâmpadas mais económicas e mais intensas, ficando o teatro com o triplo da luz de que dispunha. Nos anos de 1910 e 1911, marcados pelas enfermidades da cólera e da tuberculose, e também em 1914, por ocasião da deflagração da Primeira Guerra Mundial, dado a navegação ser reduzida, as companhias dramáticas fazem-se anunciar, mas não chegam a vir deslocar-se ao Funchal, sendo as produções locais e os concertos musicais as principais distrações dos madeirenses neste tempo. Efetivamente, nos períodos em que as companhias de profissão não visitam a Ilha, a elite social, com o propósito de realizar ações de caridade e de beneficência, organiza os mais variados eventos e leva ao palco das várias salas de espetáculo da Madeira, mais especialmente do teatro Funchalense, artistas amadores. Alguns deles celebrizam-se no meio, sendo aplaudidos como profissionais e bem vistos pelos críticos de arte. Outros chegam a ter projeção nacional e internacional. Os principais artistas amadores são nomes de famílias ilustres, como Emma Trigo, Isabel Soares, Angelique Beer Lomelino, que representam peças conhecidas do reportório das companhias nacionais e de autores madeirenses, e que, não raras vezes, se inserem nas companhias de fora, representando ao seu lado. Os concertos musicais são um marco do teatro na Madeira durante a República, destacando-se a atuação de músicos no início e nos intervalos das representações e das exibições cinematográficas, não apenas no teatro Funchalense, mas também no pavilhão Paris e no Teatro Circo. Os madeirenses revelam um apurado gosto pelo teatro, repugnam as imitações e a fraca qualidade da revista, condenam o excesso de obras estrangeiras, incentivam o trabalho dos amadores, escrevem peças de teatro de elevado mérito, representadas nos melhores teatros do país, e sobressaem na área da crítica teatral.     Elina Baptista (atualizado a 30.01.2017)

Artes e Design Cultura e Tradições Populares Madeira Cultural

tavares, edmundo

O estudo da arquitetura do século XX na Madeira passa por uma análise à obra de Edmundo Tavares, dada a relevância do contributo deste professor e arquiteto na introdução e desenvolvimento da arquitetura moderna no Funchal. O seu percurso no arquipélago revela hesitações estilísticas que refletem os avanços e recuos da arquitetura moderna em Portugal pois, tendo assinado alguns exemplares dentro do gosto português suave, aplicou uma linguagem mais historicista no edifício da agência do Banco de Portugal, implantado na Avenida Zarco, para logo arriscar uma linguagem mais modernista no Mercado dos Lavradores, talvez a sua obra mais marcante, e no Liceu Jaime Moniz. Nascido na freguesia e concelho de Oeiras, a 8 de novembro de 1892, estudou arquitetura civil na Escola de Belas Artes de Lisboa. Ali, foi discípulo do mestre José Luís Monteiro (1848-1942) entre 1903 e 1913. A partir de 1914, passou a arquiteto da câmara de Lisboa, sendo nomeado, em 1932, professor efetivo da Escola Industrial e Comercial de António Augusto Aguiar, no Funchal. A sua nomeação para um estabelecimento de ensino técnico-profissional no Funchal, onde fixou residência até 1939, relaciona-se com a criação nesse ano, por parte do ministro das obras públicas, Duarte Pacheco, de delegações nas diversas regiões do país para cuidarem da introdução do novo figurino oficial do já Estado Novo. Por outro lado, eram necessários docentes qualificados na área dos cursos artísticos e técnicos lecionados naquele estabelecimento de ensino insular, que melhor preparassem os futuros desenhadores e mestres-de-obra com uma maior atenção aos novos modos de olhar a arquitetura. A obra de Edmundo Tavares desenvolveu-se numa linha de renovação da linguagem arquitetónica. No âmbito da arquitetura doméstica de cunho regionalista, Edmundo Tavares, seguidor de Raul Lino (1879-1974), desenvolveu vários estudos de habitação com feição tradicional modernizada, designação que o mestre aplicava aos seus projetos. Do conjunto de moradias que projetou pode aferir-se que riscou para uma classe mais abastada da sociedade madeirense, cujas habitações se implantaram nas freguesias da periferia da cidade, confirmando a expansão do perímetro urbano funchalense ocorrida nos anos 30 do século XX. A sua primeira obra no Funchal, enquanto residente, remonta a 1932. Trata-se de uma habitação unifamiliar entretanto demolida e então projetada para José de Freitas, que se iria localizar entre a Travessa do Lazareto e a Estrada ao Sítio dos Louros, em zona de cota mais elevada. Este exemplar de linha eclética, ligado à casa à antiga portuguesa, associa-se esteticamente à formação académica do arquiteto. No mesmo gosto estético o arquiteto desenhou, em 1934, a Vila Santos, uma moradia localizada no Caminho de Santo António, área de expansão de novos casarios para a elite madeirense. No âmbito das habitações mais centrais e para outra classe social, destaca-se a Vivenda Fátima, na Avenida Infante, uma das novas artérias de expansão da cidade para Oeste, desenhada, em 1915, no Plano de Miguel Ventura Terra. Para esta habitação, tipo palacete burguês, cujo estudo data de 1934, o arquiteto privilegiou a utilização de elementos do vocabulário arquitetónico madeirense. Os terraços com varandas de balaustrada, os pitorescos alpendres floridos, as múltiplas floreiras e ainda o corpo torreado que se destaca do conjunto, lembrando as torres de ver o mar, são elementos que emprestam a este projeto um cunho regionalista e tradicional preconizado por Raul Lino na sua casa portuguesa. A partir de 1935, ano de entrada do dinâmico autarca Fernão Ornelas (1908-1978) na presidência da câmara do Funchal, Edmundo Tavares tem uma participação mais intensa na arquitetura da cidade, podendo afirmar-se que assumiu o papel de arquiteto da edilidade funchalense. A partir desta data é evidente também uma mudança de orientação estética na sua obra, tomando as suas moradias um gosto entre a art deco e o cariz popular regionalista da sua época. Dentro deste gosto estão as habitações para o Beco do Viveiro, ambas de 1936, e a moradia no Pico de São João, entretanto demolida, como também a moradia desenhada em 1937 para a Levada de Santa Luzia, cujo primeiro proprietário, Herculano Ramos, era então diretor dos serviços municipalizados da câmara do Funchal. No âmbito dos equipamentos escolares destaca-se, essencialmente, o projeto para o Liceu Jaime Moniz. Sendo o primeiro estudo, idealizado em 1934, de cariz bem mais modernista e numa linha art deco depurada, perdeu progressivamente para a versão depois edificada, mais ao gosto do português suave e já brutalista, quase de inspiração italiana, linguagem estilística defendida pelo Estado Novo e que marcou o lançamento dos concursos públicos para este tipo de equipamentos. Na mesma linha estilística, Tavares projetou o Preventório de Santa Isabel implantado numa zona alta da cidade. Trata-se de um exemplar com volumetria deco depurada, composto por um único volume de grandes dimensões e de fachadas simétricas. Numa linha mais revivalista, e no âmbito dos equipamentos, encontramos o Banco de Portugal, projetado também por Edmundo Tavares, inaugurado em 1940 e inscrito na nova avenida surgida do prolongamento da Avenida Zarco. Um corpo torreado destaca-se do conjunto, com um portal onde desfilam alguns elementos escultóricos ao gosto neobarroco, elaborados em mármore branco do continente, nomeadamente as cariátides, com cornucópias laterais e as armas nacionais. Lateralmente dois nichos esculpidos, onde se encaixam floreiras em cantaria cinzenta esculpidas por Agostinho Rodrigues. A sua composição, mais barroquizante, terá certamente beneficiado das recolhas do reportório formal associado aos solares madeirenses, que incluiu no livro Casas Madeirenses. Na mesma linha revivalista e de gosto neobarroco o arquiteto projetou, em 1936, a Capela de Nossa Senhora da Conceição, na Estalagem Quinta do Monte, exemplar que reflete a persistência de revivalismos arquitetónicos na Madeira. Trata-se de um exemplar de arquitetura religiosa particular, traçado a pedido de João José de Freitas Belmonte com o objetivo de perpetuar a memória da sua única filha, falecida com apenas 31 anos. Um excecional conjunto de painéis de azulejos monocromos a azul sobre esmalte branco, desenhados pelo pintor Américo Tavares de Oliveira e Silva e pintados pelo sobrinho e afilhado do arquiteto Ventura Terra, Gilberto Renda (1884-1971), percorrem o interior e exterior do edifício. Esta capela possui também um rico conjunto de vitrais da conceituada fábrica de Ricardo Leone (c. 1890-1971). Em 1938, por encomenda da câmara municipal do Funchal de Fernão Ornelas, Edmundo Tavares projeta uma das suas maiores obras para a Ilha, o Mercado dos Lavradores. Edifício de forte influência art deco, ocupa todo um quarteirão, com uma praça retangular no espaço interior e amplos espaços de circulação. Depois dos estudos a que se procedeu para a escolha do local do novo mercado, foi necessário proceder a diversas expropriações que decorreram de forma amigável. Foi o desenhador da repartição técnica da Câmara, João Ferraz Júnior, que se empenhou de forma perfeita nesta missão, conseguindo alcançar o entendimento com todos os intervenientes, facto que lhe valeu um voto de louvor em reunião camarária pelo zelo e competência demonstrados. O Mercado dos Lavradores seria considerado a obra de maior valor orçamental da sua época, tendo sido entregue ao empreiteiro Manuel Alberto Gomes que, em carta fechada, apresentou a proposta mais baixa entre 12 candidatos, que foi adjudicada por 2605 contos. Esta obra seria inaugurada em 24 de novembro de 1940, juntamente com o Matadouro Municipal, também da autoria de Edmundo Tavares, construído na margem direita da Ribeira de João Gomes e inserido num vasto conjunto de obras associadas ao auspicioso programa das Comemorações, em 1940, do Duplo Centenário da Independência (1140) e da Restauração (1640). As obras de Edmundo Tavares no Funchal surgiram no âmbito de um programa de modernização e de renovação dos edifícios públicos da cidade liderado pelo autarca Fernão de Ornelas. Nele estiveram também incluídos, entre outros, vários edifícios destinados a escolas primárias de onde se destaca a escola primária de São João, projetada em 1936 para uma zona nova da cidade, que se edificou junto à Capela de São João, sob o Pico de São João e a Escola Salazar, na rua dos Ilhéus, também de 1936, onde posteriormente funcionariam os Julgados de Paz do Funchal. Há também os edifícios dos Bairros Económicos e o Sanatório Dr. João de Almada, este último edificado na antiga quinta de Santa Ana no Monte. Foi também a oportunidade para alargamento da rede de água potável, com a construção de fontenários nas freguesias suburbanas, cujo modelo seguiu o projeto-tipo do atelier de Carlos João Chambers Ramos (1897-1969), enviado à edilidade funchalense e posteriormente redesenhados por Edmundo Tavares, e de que subsistiriam algumas dezenas de exemplares. Este conjunto de obras destaca-se de entre as muitas iniciativas levadas a cabo por toda a Ilha como forma de mostrar que o Estado Novo respondia às reivindicações da população, tendo sido disponibilizados todos os recursos materiais e humanos disponíveis para a sua efetivação. No conjunto de obras não realizadas, merece destaque o estudo para um Casino, de 1939, cuja área de intervenção incluía as três quintas do Estado; Quinta Vigia, Quinta Bianchi e Quinta Pavão, tendo-se privilegiando a centralidade desta última para a implementação do Casino. O edifício apresenta um traçado modernista, pela utilização de grandes aberturas, pela depuração geométrica de alguns elementos arquitetónicos e pelas coberturas planas; no entanto, exibe ainda elementos tradicionalistas, visíveis nas coberturas em telha, na estruturação da planta e na introdução de colunatas. Não deixa de ser curioso que, tendo este projeto sido solicitado num período de guerra e encontrando-se o Casino de então fechado, a Delegação de Turismo tenha incluído nas novas condições de concessão a possibilidade de o concessionário explorar dois casinos, implantando-se o segundo junto ao cais da entrada da cidade, fazendo lembrar a proposta de localização do casino de Ventura Terra. Do grupo de projetos de Edmundo Tavares não levados à prática evidencia-se ainda o estudo, ao gosto art-deco, para a Igreja Central no Funchal. Trata-se de um estudo não datado para a Igreja Presbiteriana, situada junto ao Jardim Municipal. No âmbito cultural, o arquiteto Edmundo Tavares publicou vários livros de carácter técnico-construtivo e outros sobre temas da arquitetura portuguesa, dos quais se destaca a sua participação em Casas Madeirenses, de Reis Gomes (1896-1950), de 1937 (reedição de 1968), com ilustrações de modelos de habitações. Trata-se de uma publicação que coloca em debate a problemática da existência de uma arquitetura madeirense, através da apresentação de elementos típicos regionais recolhidos a partir da observação de edifícios existentes na cidade do Funchal. O arquiteto deixou também as suas impressões sobre a Ilha no artigo, “Quadros, Presépios e Lapinhas”, de 1948. A obra de Edmundo Tavares no Funchal pautou-se pela pluralidade de opções estilísticas que caracterizou a sua geração, onde a flexibilidade de linguagem esteve sempre presente, deixando no Funchal uma obra que se destaca pela introdução da modernidade arquitetónica portuguesa na especificidade da cultura insular. O arquiteto será transferido para Coimbra em 1939, tendo sido posteriormente nomeado diretor da Escola Industrial e Comercial Tomaz Bordalo Pinheiro, mas manteve nos anos seguintes contato com a Madeira. Obras de Edmundo Tavares: “Quadros, Presépios e Lapinhas” (1948).     Teresa Vasconcelos (atualizado a 30.01.2017)

Arquitetura Património História Económica e Social Madeira Cultural

pronunciamento militar na madeira

Os problemas económicos de Portugal foram uma constante ao longo da sua história. A Madeira foi, desde o seu povoamento até 1470, excedentária na produção de trigo; a partir de então foi sempre carenciada, assistindo a uma sucessão de intermitências no abastecimento e fomes cíclicas. Tal ficou a dever-se, em parte, à opção pela produção açucareira. Nos finais do séc. XIX, surgiram tendências monopolistas, que persistiram e se tornaram a matriz da economia madeirense durante as primeiras sete décadas do século XX. O descontentamento manifestou-se com a “questão sacarina”, agravou-se nas décs. de 1920 e seguinte, abrangendo outros sectores fundamentais como o moageiro e os laticínios, mas foi na bancarrota das casas bancárias funchalenses que se deram as situações mais graves. A denominada Revolta da Farinha, que teve lugar na Madeira entre 4 e 9 de fevereiro de 1931, foi uma revolta espontânea de cariz popular contra o decreto n.º 19.273, de 29 jan. 1931, o chamado “decreto da fome”, que restringia a importação do trigo a três moageiros, fazendo aumentar o preço do trigo importado. Na sequência deste protesto, os militares exilados no Funchal convenceram o gen. Sousa Dias (o mais graduado) a liderar o movimento que fora iniciado a 4 de abril desse ano com a tomada do Palácio de São Lourenço. Cerca de 2000 efetivos dos aquartelamentos do Funchal aderiram ao movimento, resistindo até à rendição, a 2 de maio seguinte, principalmente por inferioridade numérica e de qualidade de armamento. Trata-se, portanto, de duas ações com origem e motivações distintas, ligadas entre si pelo facto de os chefes do movimento militar terem aproveitado a revolta popular para mobilizar uma parte significativa dos praças madeirenses no ativo, contando simultaneamente com o apoio da população. O que se passou em 1931 está quase sempre envolto em confusa e fantasiosa interpretação, gerada fundamentalmente pela memória popular. O trabalho dos historiadores consistiu em complementar a oralidade recorrendo à imprensa e à documentação coeva. Maria Elisa Brasão e Maria Manuela Abreu observam, nos prefácios às duas edições do seu A Revolta da Madeira – 1931, que se tratou de “um dos acontecimentos notáveis da nossa História, até há bem pouco tempo credor de atenções reduzidas por parte dos nossos historiadores, mas largamente utilizado, sem a fundamentação devida, como bandeira de algumas correntes de opinião” (BRAZÃO e ABREU, 1994, 6); e também que é sua intenção repor a verdade histórica “deste movimento de oposição à Ditadura instalada em Portugal, que teve como cenário principal a ilha da Madeira” (BRAZÃO e ABREU, 2008, 15). Por sua vez, em A Revolta da Madeira, alimentando a tradição oral, João Soares explana sucintamente o desenvolvimento de duas manifestações populares que tiveram lugar na Madeira do séc. XIX, que distingue do que aconteceu na década de 1930. “A Revolta da Farinha, em 1931, e a Revolta do Leite, em 1936, são manifestações contra o regime de Salazar e só ocorrem na Madeira. […] A Revolta da Farinha […] não é propriamente a causa da revolta da Madeira de 1931 [ou seja, o Pronunciamento Militar da Madeira], mas surge como representando uma fase introdutória deste movimento” (MARQUES DA SILVA, 2014, 45). Nesta perspetiva, “esta foi, aliás, entre todas as revoltas contra a ditadura a que teve mais impacto nacional e internacional. […] A sua proximidade com a da farinha, de 6 de fevereiro do mesmo ano, é geradora de confusões. Na verdade estamos perante dois acontecimentos distintos. Em fevereiro, ocorreu a revolta popular e espontânea dos madeirenses contra o decreto regulamentador do sistema de moagens que […] pretendia estabelecer o monopólio no sector” (VIEIRA, 2001, 357). Por outro lado, logo no dia 4 de abril, Manuel Gregório Pestana Júnior falou largamente aos madeirenses, no Palácio de São Lourenço, sobre os objetivos do pronunciamento militar, gerando o primeiro título de jornal sobre este acontecimento: “No Funchal – Pronunciamento Militar” (DN, Funchal, 5 abr. 1931, 1). Noutro discurso, largamente transcrito, o preletor, Com. Sebastião da Costa, esclareceu os objetivos do pronunciamento militar e argumentou com a vivência democrática e republicana dos seus líderes, observando que o Gen. Sousa Dias e as pessoas que os acompanhavam “são mais, o mais sinceramente, contrárias ao regresso a uma vida política da República semelhante àquela que é costume representar pela palavra políticos, e que incarna nos homens que dirigiam os destinos da nação à data de 28 de Maio” (DNM, 8 abr. 1931, 3). Esta ideia – de que o movimento se baseava na legalidade democrática e desmascarava a impostura do golpe de 28 de Maio de 1926 – é propagandeada nos comunicados distribuídos à população e nos que saíram na imprensa funchalense. A perspetiva pode mesmo alargar-se, pois este movimento local, ou até insular, envolveria, segundo alguns historiadores, “os políticos radicais de Portugal, de Espanha, da França e da Itália, tendo relações com os socialistas e anarquistas desses países e com os bolchevistas de Moscovo, planearam transformações especiais na Ibéria” (BRAZÃO e ABREU, 2008, 71). No entanto, à parte as iniciativas militares que eclodiram em duas ilhas açorianas e na Guiné – nesta de pouca expressão ou efeito –, a planificação falhou no conjunto nacional. Houve mesmo um pormenor, importante para as expetativas dos elementos da Junta Revolucionária da Madeira, que falhou: a receção de um lote de armas mais modernas que as utilizadas por eles, que não embarcou no vapor Pero de Alenquer, da Companhia dos Carregadores Açoreanos, como estava previsto. Voltando à denominada Revolução da Farinha, recorde-se que se trata de um movimento espontâneo e de cariz popular. Nesse contexto, a sequência dos factos e da legislação aprovada permite aventar que as medidas tomadas não foram obra do acaso. Com efeito, o dec. n.º 18.325, publicado a 14 de maio de 1930, estabeleceu “o direito a cobrar pelo trigo e pela farinha importados pelo distrito da Horta, referente ao atual ano cerealífero” e teve repercussões na Madeira. Nesta perspetiva, uma proeminente figura política opinou que “ambos os regimes são absurdos, porque protegem o trabalho da farinação no estrangeiro. Mas o segundo ainda é mais que o primeiro […] continuar o absurdo da importação das farinhas, é evidente que pelo menos o regime fiscal da Horta e do Funchal devem ser idênticos, lucrando o tesouro alguns milhares de contos” (SOUSA, 1989, 213). Na sequência do referido absurdo de importação das farinhas, foi publicado o dec. n.º 19.273, de 22 jan. 1931, com o argumento de que no Funchal as fábricas de capitais nacionais estavam bem apetrechadas e para “que o Estado e o consumidor não continuem a ser prejudicados nos seus justos interesses”; o decreto foi publicado “para valer como lei, o seguinte: Art. 1.º É livre a importação de trigo no distrito do Funchal. § único. O direito que deve ser pago pelo trigo a importar no corrente ano cerealífero é fixado em $25 por quilograma. Art. 2.º Não é permitida a importação de farinhas exóticas no distrito do Funchal enquanto a indústria nacional as possa fornecer de seu fabrico ao preço e nas condições do presente decreto. A farinha nacional importada no distrito do Funchal pagará o direito de $21 por quilograma”. Este decreto fez aumentar em dois centavos ao preço praticado na cidade da Horta, o que exaltou ainda mais os ânimos, provocando um movimento de solidariedade que envolveu organizações, associações e responsáveis políticos, que reagiram uniformemente no sentido de pedir a revogação do mesmo, porque lesava a economia local e os madeirenses. Com este propósito, a imprensa local publicou uma pequena notícia de discordância da situação criada pelo decreto, porque “há ainda a considerar que estas medidas são publicadas precisamente num momento em que se acentua a baixa do preço do trigo e das farinhas, o que evidentemente daria lugar, em breve, a uma sensível descida no preço do pão, diminuindo, portanto, as terríveis dificuldades com que luta toda a população da Madeira” (O Jornal, 29 jan. 1931, 1). O Gov. José Maria de Freitas prometera a sua intervenção junto do Governo de Lisboa, mas a publicação do referido decreto fez com que a população considerasse que nada fizera. Em consequência deste desinteresse e da indignação popular, foi convocada uma greve para o dia 4 de fevereiro de 1931. Temendo a reação popular, a gerência da Companhia Insular de Moinhos, Limitada anunciou por comunicado que “não pode ser responsabilizada – com ele [o dec. n.º 19.273] não concordando – no que se refere á proibição de importação de farinhas exóticas, montagem de novas moagens, proibição de montagem de novas padarias” (DNM, 4 fev. 1931, 2). A despeito deste anúncio, as instalações desta companhia foram danificadas a 6 de fevereiro de 1931 e, nesse dia, os estivadores do porto do Funchal deram início à greve anunciada. Simultaneamente, houve manifestações de desagrado na cidade até o dia 9 de fevereiro desse ano, que provocaram cinco mortos e vários feridos. O controlo desta situação escapou às autoridades, dado que a polícia não foi capaz de manter a ordem sem a ajuda do exército, tendo alguns militares confraternizado com a população revoltada. Para tentar repor a ordem, saiu de Lisboa a Companhia de Caçadores n.º 5, comandada pelo Cor. Silva Leal, que, como delegado especial do Governo, levava com poderes discricionários. Em reação a esta decisão, um grupo de oficiais colocados em serviço nos aquartelamentos do Funchal e alguns deportados decidiram levar a cabo um Pronunciamento Militar. Da Junta Revolucionária faziam parte o cap. Carlos Vilhena (madeirense), o Ten. Ferreira Camões, o Alf. Hasse Ferreira, o Cor. Fernando Freiria, o Gen. Sousa Dias, o Maj. Bragança Parreira, o Cor. Mendes dos Reis, o Cap. Filipe de Sousa, o Cap. Augusto Casimiro e o Com. Sebastião Costa. No dia 4 de abril de 1931, resolveram entregar o comando militar ao Gen. Sousa Dias que, por sua vez, nomeou chefe de Estado-Maior o cor. Fernando Freiria, entregando ao Cor. Mendes dos Reis o comando das forças militares da Madeira. O Ten. Camões era o delegado dos oficiais da guarnição que fizeram o movimento junto do comando militar. No dia seguinte, o Maj. Carlos Bragança Parreira, em nome do comandante militar das forças, intimou todos os militares residentes na Madeira a apresentarem-se naquele comando até às 15.00 h do dia 6 de abril. No dia 6 de Abril, o gabinete civil do Comando Militar da Madeira requisitou as oficinas e as instalações de O Jornal, “sem direito a qualquer indemnização, a fim de ser nelas redigido e composto um jornal republicano”. No dia seguinte, o cônsul dos EUA no Funchal ofereceu “os seus serviços como medianeiro para o caso de prováveis lutas” (SOARES, 1979, 61). Depois de impor quatro condições, acreditando na mediação neutral do cônsul, o general Sousa Dias aceitou a proposta, “com o fim de poupar a vida e as propriedades dos estrangeiros e nacionais residentes na Madeira” (Id., Ibid., 62). No dia 8 de abril de 1931, o Cor. Fernando Freiria informou a população, através de comunicado que havia fundeado na baía do Funchal, pelas 10.40 h, o cruzador inglês London. O objetivo deste comunicado foi serenar a população madeirense sobre “as nobres intenções que determinaram o Governo inglês, segundo o costume internacional, a enviar um vaso de guerra às águas da Madeira” (Id., Ibid.). A intenção de Inglaterra era proteger os súbditos britânicos e seus bens de qualquer emergência, ou de situações que fugissem ao controlo militar instalado da Madeira. No dia seguinte, o comando militar reagiu energicamente à notícia da Press News sobre o bloqueio da Madeira decretado pelo Governo do país com uma elucidativa nota oficiosa: “Madeira-Açores. Guarnições militares e população protestam contra qualquer caluniosa insinuação sua atitude resultar qualquer outra coisa diferente seu terminante desejo cesse imediatamente situação excepcional Ditadura sejam restabelecidas liberdades públicas suspensas evitando ao país cada vez mais graves consequências ordem política social afirmam sua inalterável dedicação Pátria, República Portuguesa declaram obedecer apenas governo que restabeleça liberdades públicas garanta lei. Porto Funchal não está bloqueado sendo visitado vapores Royal Mail. Guarnições militares e população aguardam completa serenidade efectivação bloqueio conforme ameaças governo ilegal da ditadura. Governo Madeira garante livre entrada movimento Porto Funchal, desejando assegurar relações comerciais de exportação importação todo o mundo” (Id., Ibid., 63). A 11 de abril de 1931, os sargentos – cujo desempenho fora crucial para o sucesso da ação realizada no dia 4 desse mês – iniciavam uma mensagem telegráfica da forma seguinte: “Aos sargentos portugueses no continente da República, Açores e colónias. A Hermínio Branco, director de ‘Marte’ em Coimbra: Sargentos! São os vossos camaradas do 13 de Infantaria, do Funchal, que vos falam” (Id., Ibid., 97). Em meados de abril do mesmo ano, circulavam em algumas capitais europeias notícias sobre a recusa de vários regimentos da província em obedecer às ordens das chefias. Noticiou-se também uma concentração de tropas no Barreiro e nas Caldas da Rainha e, em Lisboa, havia patrulhamentos noturnos em camiões armados. A Londres, chegou um telegrama expedido em Medina del Campo com notícias de revolta de vários regimentos de província e de diversas detenções em Lisboa, nomeadamente de Armando Cortesão. O ten.-cor. Francisco Aragão percorria as principais cidades provincianas de aeroplano, lançando manifestos de incitamento à revolta. De Madrid espalhou-se a notícia de que os rebeldes da Madeira dispunham “de 1200 homens armados dispostos a se bater até ao fim” (Id., Ibid., 63). A 15 de abril de 1931, o embaixador português em Paris enviou um telegrama ao ministro dos Negócios Estrangeiros, onde lhe comunicava a preocupação do Governo francês a propósito da abdicação do rei de Espanha que, segundo as notícias, tinha embarcado diretamente para Inglaterra; o telegrama transmitia a preocupação do Governo francês pela situação política em Espanha. Numa fotografia tirada em Paris e publicada por Le Populaire, Afonso Costa despedia-se dos ministros da Instrução e das Finanças do Governo provisório espanhol que, exilados em França, regressavam a Madrid. Estas alterações políticas em Espanha entusiasmaram os republicanos portugueses, que se sentiram irmanados num projeto comum: a República. Também de Paris chegou a notícia de que o Governo de Lisboa declarara o estado de sítio nos Açores e enviara tropas para acabar com insurreições militares no Funchal, em Ponta Delgada, em Angra e na Graciosa. Em Londres, o Daily Mail publicou uma nota da Union Castle Line que confirmava a saída do porto do Funchal do vapor Edinburgh Castle no dia 9 de abril, e que o número de passageiros registava um movimento normal para a época, o que contrariava as campanhas de propaganda contra a Madeira feitas a partir de Lisboa e de outros países europeus. Entretanto, o Governo continuou a fazer insinuações, a que o cor. Fernando Freiria respondeu alertando a opinião pública para a contra-informação emanada a partir de Lisboa que circulava em várias capitais europeias: “[…] que o movimento legalista da Madeira e dos Açores visa proclamar o independência dos arquipélagos. Até as agências informadoras estrangeiras declaram esta insinuação infundada e ridícula”. E continua: “o governo dizendo que reina a maior desordem na cidade e porto do Funchal, procura efetivar o bloqueio marítimo da Madeira e Açores, desvirtuando o movimento, atribuindo-lhe origens políticas e uma finalidade diversa das que precisamente o determinam – a qual é o restabelecimento imediato das liberdades públicas por um governo que as garanta, consultando o país e restaurando a lei. O chefe de Estado-Maior, Fernando Freiria” (Id., Ibid., 64). No dia 13 de abril de 1931, houve necessidade de alertar a população para o inevitável racionamento dos combustíveis e a redução do consumo de energia elétrica, ficando como prioritários os serviços de telégrafo e telefones e o funcionamento das panificadoras. Aos particulares seria fornecida energia elétrica entre as 19.00 e as 24.00 h. Nesse mesmo dia, pelas 09.00 h, o vapor Guiné, em serviço de vigilância afastada, informou o chefe de Estado-Maior local de que não se avistavam navios de guerra, para além da pequena canhoneira Ibo, que há cinco dias cruzava o mar entre a Madeira e o Porto Santo, passando também em frente ao Funchal. No dia seguinte, o comando geral militar da Madeira avisou os comerciantes que pretendessem subir os preços dos géneros alimentícios de que tomaria as “mais enérgicas providências contra quem quer que pense em aproveitar este momento para a realização de lucros imorais” (Id., Ibid., 65). No mesmo dia, o cônsul inglês no Funchal, J. P. Brown, colocou à disposição do gen. Sousa Dias a sua ajuda pessoal e a do comandante do navio London como mediadores com o Governo de Lisboa; este comunicou, através do embaixador britânico na capital portuguesa, que a única condição que aceitava era a rendição incondicional do comando militar da Madeira. Entre os dias 14 e 20 de abril de 1931 foram publicados no Notícias da Madeira, órgão oficioso da Junta Revolucionária da Madeira, alguns artigos de elevado amor pátrio, onde se louvavam a coragem e o espírito dos soldados, conscientes da sua missão patriótica; num deles, perguntava-se: “que há a recear, portanto? se temos um inimigo apenas, a ditadura, sem coragem para nos bater, enjaulada em Lisboa, medrosa e inerte, temendo justificadamente que, num rompante breve, os soldados da República acabem com a farsa trágica que de há cinco anos se desenvolve lutuosamente nesta bendita terra de Portugal?” (Id., Ibid., 102). Para além das questões políticas, estavam em causa situações que afetavam o quotidiano, como o “repugnante regímen cerealífero, de monopólio, contra o qual as massas populares verteram o seu sangue. Pensou neles, a par da defesa militar da Madeira, o Governo republicano – pelas pastas entregues à incontestada competência dos nossos ilustres patrícios Dr. Pestana Júnior e Eng. Frazão Sardinha” (Id., Ibid., 103). Depois de acabar com os monopólios, os já referidos membros da Junta Revolucionária da Madeira, que também se intitulavam “este governo republicano instalado no Funchal” comprometeu-se a tomar outras “medidas de extraordinário alcance”: “A Madeira, sob o governo da Constituição, encontrou eco nos seus queixumes, que é como quem diz – foi ouvido o pulsar do seu coração. Nunca mais – nunca! – este nobre povo será olhado, pelos poderes de lá ou de cá, como um triste rebanho sob o varapau de qualquer despótico pastor! Há que contar connosco, porque somos portugueses – como todos os portugueses de Portugal! ” (Id., Ibid.). Nos jornais ingleses que entretanto chegaram ao Funchal, foram publicadas notícias animadoras para o movimento militar da Madeira. Segundo um articulista, a imprensa londrina e o povo inglês acolheram com agrado as notícias, pois “Não suportam, não admitem, dentro do seu claro civismo, sistemas políticos de opressão e de terror. Para eles, é tão necessária a liberdade como as tranquilas comodidades do seu home” (Id., Ibid., 104). Como se pode verificar, era claro o objetivo dos responsáveis pelo movimento militar na Madeira: pretendiam restabelecer o Governo constitucional em Lisboa e queriam acabar com a “censura à imprensa e as deportações”. Para o sucesso do movimento era importante o apoio britânico, pois “Na Madeira, há uma grande colónia inglesa. Essa colónia, ligada à mais fecunda atividade desta ilha, pode comprovar que o Pronunciamento Militar não perturbou o aspecto da cidade. Em 4 de abril, e depois, não se praticou qualquer acto que causasse pânico ou sobressalto na população citadina. Hoje, como desde há séculos respeitamos nesta lealdade, a Aliança Inglesa. Hoje, como ontem e como sempre, o pensamento inglês não se nega a todas as ideias de liberdade” (Id., Ibid., 105). O regime procurou criar instabilidade no seio do exército português, recorrendo à distinção entre elementos puros e elementos impuros do exército, sendo os puros os fiéis ao Governo e os impuros os revoltosos: “A parte pura é em seu peregrino conceito aquela que sanciona os crimes da polícia de informação, a que aplaude a política financeira de Sinel de Cordes, a que canta, louva e elogia a sabedoria de Oliveira Salazar, a que se alegra com o espírito de delação semeado nas fileiras militares e a que expõe Portugal à chacota do estrangeiro” (Id., Ibid.). A 16 de abril de 1931, as forças expedicionárias enviadas de Lisboa contra a Madeira e os Açores chegavam à baía do Faial. No dia seguinte, um telegrama de Londres confirmava que as universidades e as escolas públicas do continente tinham sido encerradas. Constava também que havia movimentação de tropas contra o regime, pelo que tinham sido proibidas as reuniões e as manifestações em Lisboa. Entretanto, na Madeira, a canhoneira Ibo, sem combustível, fez uma tentativa para se abastecer no porto do Funchal, mas o comando militar impediu esse movimento e providenciou para que o mesmo acontecesse no Porto Santo. Nesse mesmo dia à tarde, a canhoneira Limpopo substituiu a Ibo no patrulhamento dos mares da Madeira. No dia 18 de abril, esta mesma canhoneira encontrava-se fundeada no Porto Santo, devido a uma avaria que a impossibilitava de navegar. Dos Açores chegavam à Madeira notícias contraditórias e outras não confirmadas. Foi intercetada uma mensagem do Governo de Lisboa por via rádio, com a indicação de que as autoridades tinham mandado lançar sobre as ilhas mensagens de ação psicológica. Na parte da tarde, o cruzador Vasco da Gama chegou à Horta e o comandante das forças expedicionárias preparou o desembarque. No dia seguinte, conseguiram desembarcar algumas forças na Praia da Vitória, mas a defesa da ilha concentrava-se perto de Angra e ao redor da cidade. No dia 21 de abril, o vapor Pero de Alenquer fundeou na baía do Funchal levando dos Açores alguns oficiais e civis que para lá tinham sido deportados pelo anterior delegado especial. Também levava notícias da ilha de S. Miguel, onde havia fortes núcleos de militares preparados, um deles no Forte de S. Brás, para resistir aos ataques das tropas enviadas de Lisboa, ditas expedicionárias. Uma força militar que impressionou a população funchalense após o desembarque foi o destacamento misto de Caçadores n.º 5 e Metralhadoras n.º 1, comandado pelo cap. Ferreira Camões, e cujo aprumo e disciplina militar foram apreciados. Tinham ido de Lisboa para combater ao lado das forças republicanas e legalistas da Madeira e ficaram aquartelados na R. Arcebispo D. Aires. Na Madeira, foram emitidos muitos comunicados e artigos com argumentos para a mobilização e motivações para a defesa. Como garantia, assegurava-se que as forças republicanas estavam preparadas para lutar até conseguir o seu principal objetivo: restituir a legalidade e a legitimidade, derrubando o Governo do regime. Um dos argumentos centrou-se na impiedosa cobrança de impostos, que não se destinavam a obras de fomento, mas à manutenção dum exército privativo e duma polícia numerosa, como afirmavam os revoltosos da Junta. Outra questão preocupante na altura, e também criticada, foi a chamada “negociata dos tabacos”, tida como capaz de resolver o deficit português O desfecho deste Pronunciamento Militar foi a derrota. O sucesso do desembarque das tropas leais ao Governo de Lisboa no Caniçal e o rápido avanço das tropas expedicionárias de Machico até ao Funchal resultaram da impreparação dos soldados madeirenses e do seu armamento inadequado. Foram enviados para a Madeira muitos meios navais e até aéreos (pequenos hidroplanos com metralhadoras), juntamente com um grande número de efetivos devidamente treinados, que acabaram por derrotar as tropas revoltosas a 2 de maio de 1931.   José Luís Ferreira de Sousa (atualizado a 03.02.2017)

História Militar

silva, nuno estêvão lomelino da

(Funchal, 1892 - Lisboa, 1967) Lomelino Silva foi um tenor lírico madeirense do séc. XX, de renome internacional. Estudou canto em Lisboa e em Itália, estreando-se no Teatro Dal Verme de Milão. Realizou várias digressões pelos grandes palcos mundiais, alcançando sucesso na interpretação de importantes papéis em óperas de, entre outros, Verdi e Puccini. Nos Estados Unidos da América foi chamado de “Caruso português”, por comparação com Enrico Caruso, célebre cantor italiano de música clássica. Em 1926, gravou alguns temas musicais pela editora britânica His Master’s Voice, que foram recuperados em 2009, na edição de um CD áudio, no Funchal. Palavras-chave:  música, ópera, tenor, teatro, cultura. Nuno Estêvão Lomelino da Silva foi um tenor lírico do séc. XX, que se tornou uma das figuras madeirenses mais célebres da sua época, com uma carreira artística de grande projeção internacional. No meio artístico usava o nome Lomelino Silva, pelo qual também ficou conhecido. Lomelino Silva nasceu na R. das Maravilhas, no sítio da Cruz de Carvalho, pertencente à freguesia de São Pedro, no Funchal, a 26 de dezembro de 1892, e faleceu em Lisboa, a 11 de novembro de 1967, um mês antes de completar 75 anos. Era filho de Guilherme Augusto da Silva e de Helena Lomelino da Silva. Completou o curso da Escola Comercial Ferreira Borges e, posteriormente, da Escola de Oficiais Milicianos. Trabalhou em Lisboa, no Banco Totta, alistando-se depois no Exército, onde alcançou o posto de alferes de Artilharia. Durante a Primeira Guerra Mundial participou na defesa da ilha da Madeira, quando foi atacada por submarinos alemães. Todavia, encorajado por amigos, acabou por abandonar a carreira militar e prosseguir os estudos na área da música. A sua estreia como cantor aconteceu em 1916, num recital de caridade, no então denominado Teatro Dr. Manuel de Arriaga (posteriormente Teatro Municipal Baltazar Dias), onde recebeu vários elogios pela sua interpretação da opereta Primeiros Afectos, da autoria de Alberto Artur Sarmento. Após o sucesso da sua primeira apresentação pública, seguiu para Lisboa, em 1918, ainda antes do fim da Primeira Guerra Mundial, para ter aulas de canto com o professor Alberto Sarti. Mais tarde, por volta de 1920, depois de regressar à Madeira, acatou diversos conselhos para estudar em Itália, onde foi aperfeiçoar o seu talento musical e adquirir conhecimentos técnicos do bel-canto como discípulo de Giovanni Laura e Ercole Pizzi, dois conceituados músicos da época. No dia 31 de dezembro de 1921, estreou-se nos palcos italianos, no Teatro Dal Verme de Milão. Esta data determinaria o início de uma carreira singular como cantor lírico, marcada por várias digressões internacionais, com apresentações públicas em vários países. Em Itália, Lomelino Silva interpretou os importantes papéis de Duque de Mântua, na ópera Rigoletto, de Verdi, e de Rodolfo, em La Bohème, de Puccini, alcançando notável reconhecimento. Ao longo da sua carreira artística desempenhou vários papéis de destaque, em obras como Mefistófeles, Tosca, Fausto, entre outras. Interpretou igualmente canções portuguesas conhecidas na época, que cantava nos seus espetáculos. No início de 1922, integrou uma companhia italiana de ópera e fez uma digressão pela Holanda. No final daquele ano, fez a sua primeira digressão ao Brasil. Nas diversas atuações que realizou nos anos seguintes, incluíram-se as que efetuou pela Europa onde, além dos concertos produzidos em várias cidades italianas, o cantor madeirense atuou ainda em Espanha, França, Suíça e Inglaterra. Decorria o ano de 1926 quando Lomelino Silva foi convidado pela editora musical britânica His Master’s Voice para gravar alguns temas, tendo sido o primeiro madeirense a ter este privilégio, de acordo com Duarte Mendonça. O reportório fonográfico incluiu composições de Verdi, Sarti, Tomás de Lima, Fernando Moutinho, Coutinho de Oliveira, António Menano, Alfredo Keil e Rui Coelho. As gravações foram distribuídas internacionalmente, o que contribuiu para a projeção mundial do tenor madeirense. Em 1927, andou em digressão pelos Estados Unidos da América, sobretudo na Florida, Nova Iorque, Pensilvânia, Massachusetts, Virgínia e Califórnia. Neste país foi comparado ao tenor italiano Enrico Caruso, devido à sua excelente voz, tendo recebido a alcunha de “Caruso português”. Na verdade, também no Brasil, em 1930, a imprensa brasileira corroborou o cognome atribuído pelos americanos e os elogios à sua voz. Em 1931, encetou outra digressão mundial, que duraria cerca de dois anos, com início pela costa leste e oeste dos Estados Unidos e pelo Havai. A partir da América empreendeu uma viagem por diversos territórios asiáticos como Xangai, Hong-Kong, Macau, Filipinas, Singapura e Índia, passando depois por Moçambique e a África do Sul, onde deu vários concertos. Em 1934, realizou uma digressão pelas Antilhas e, mais tarde, em 1936, viajou novamente pelos Estados Unidos, apresentando-se em cidades como Nova Iorque, Hollywood e Los Angeles. Entre 1938 e 1949, Lomelino Silva terá ainda voltado a atuar nas Antilhas e no Brasil, antes de se despedir dos palcos, em fevereiro de 1949, no Cinema Tivoli, em Lisboa. A par das atuações internacionais, em que foi reconhecido pelo seu talento, o tenor madeirense foi realizando concertos no seu país, nomeadamente, em Lisboa, no Porto e nos arquipélagos. À Madeira regressou várias vezes, apresentando diversos recitais líricos no Teatro Municipal do Funchal, que ia interpolando com a sua aclamada carreira internacional. Refira-se, e.g., os espetáculos realizados nos anos de 1921, 1925, 1926, 1928, 1931, 1933, 1939, 1943, 1944 e 1946, o que revela a sua estima à terra natal, pelo número de vezes que atuou “em casa”. A imprensa da época, quer a regional, quer a nacional e mesmo a internacional, por diversas vezes elogiou a melodiosa voz de Lomelino Silva e os seus concertos tiveram largo destaque nas páginas dos diferentes jornais. A imprensa madeirense, em reconhecimento do seu conterrâneo, dedicou-lhe vários artigos, sobretudo quando atuava no Funchal. Cantores de Ópera Portugueses (1984), de Mário Moreau, dedica um longo artigo ao tenor madeirense incluindo transcrições de artigos de alguns periódicos nacionais e internacionais com menções a Lomelino Silva. É também possível seguir a trajetória do célebre cantor lírico através das informações ali contidas, relativas a datas, locais, programação dos recitais e concertos dados ao longo da sua carreira artística. Em reconhecimento do seu talento, foram-lhe prestados vários tributos em vida e póstumos. Em 1925, foi realizada uma homenagem no Funchal, com o descerramento da uma placa de mármore com o seu nome no Salão Nobre do Teatro Municipal. Tratou-se de uma iniciativa do Club Sport Marítimo, após o êxito de um concerto promovido pelo Club Sports da Madeira, organizado por um grupo de amigos de Lomelino Silva, em agosto de 1925, e das solicitações do público para a realização de uma segunda récita. O Club Sport Marítimo decidiu então promover um segundo concerto, pedindo ainda autorização à Câmara Municipal do Funchal para a colocação de uma placa comemorativa da passagem do tenor pelo Teatro. A proposta foi aprovada pelo município funchalense, que se associou à iniciativa. Quatro anos depois, a 19 de junho de 1929, foi condecorado por Óscar Carmona, então Presidente da República portuguesa, com o grau de Oficial da Ordem Militar de Cristo, a maior homenagem que recebeu em vida no seu país natal. Em 1992, por ocasião do centenário do seu nascimento, o Governo regional da Madeira promoveu a colocação de uma placa comemorativa no local onde nasceu Lomelino Silva. Posteriormente, em 2001, o tenor português Carlos Guilherme (n. 1945) prestou-lhe tributo, promovendo um espetáculo no Teatro Municipal Baltazar Dias, onde interpretou o mesmo reportório apresentado pelo madeirense em Lourenço Marques (a então capital de Moçambique), a 29 de dezembro de 1932. Mais tarde, em 2009, foi editado um CD que recupera as gravações de Lomelino Silva realizadas em Londres, em 1926. Esta edição discográfica inclui um livreto com a sua biografia, elaborada por Duarte Miguel Barcelos Mendonça, assim como transcrições de artigos publicados na imprensa.   Sílvia Gomes (atualizado a 03.02.2017)

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silva, josé marmelo e

José Marmelo e Silva nasceu no Paul, concelho da Covilhã, a 7 de maio de 1911, tendo falecido em Espinho, a 11 de outubro de 1991. Frequentou o ensino secundário na Covilhã e em Castelo Branco, e o ensino superior em Coimbra e Lisboa, onde se licenciou em Filologia Clássica, com a dissertação Um Sonho de Paz Bimilenário: a Poesia de Virgílio. Fez serviço militar em Mafra, uma experiência com ecos em Depoimento, e na Madeira, vivência que ressoará em Desnudez Uivante. Regressa à Madeira já casado para, com a esposa, lecionar no Colégio Académico do Funchal, no ano letivo de 1946-1947. No ambiente insular, encontrou inspiração para escrever os Poemas da Ilha do Porto Santo, que publica na Seara Nova, na década de 1960. Foi, porém, em Espinho que exerceu funções docentes a maior parte do tempo, dando o seu nome à biblioteca local. De 1932 a 1983, publicou, com várias reedições, diversos livros, deixando inéditos os Memoriais, de carácter autobiográfico: O Homem que Abjurou a Sociedade – Crónicas do Amor e do Tempo, contos (Renegado); a novela Sedução; Depoimento, contos; O Sonho e a Aventura, narrativas; a novela Adolescente, título da 1.ª edição, alterado para Adolescente Agrilhoado na 2.ª edição aumentada; O Ser e o Ter Seguido de Anquilose, contos (a primeira versão de O Ser e o Ter é O Conto de João Baião, que teve uma única edição); o romance Desnudez Uivante. Foi agraciado, em 1987, com a medalha de ouro da cidade de Espinho e, em 1988, com o grau de Comendador da Ordem de Mérito, pelo então Presidente da República, Mário Soares. Obras de José Marmelo Silva: Poemas da Ilha do Porto Santo; O Homem que Abjurou a Sociedade – Crónicas do Amor e do Tempo (1932); Sedução (1937); Depoimento (1939); O Sonho e a Aventura (1943); Adolescente (1948) Adolescente Agrilhoado (1958); O Ser e o Ter seguido de Anquilose (1968); Desnudez Uivante (1983).   António Moniz (atualizado a 03.02.2017)

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