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aragão, antónio

António Aragão Natural de São Vicente, na ilha da Madeira, António Aragão foi uma figura cultural multifacetada do séc. xx. A poesia terá sido a sua área de eleição, mas fez igualmente experiências no âmbito da narrativa e do texto dramático. Também se dedicou a outros planos de intervenção e de estudo, e.g.: a formação do Cine Clube do Funchal para a visualização de cinema cultural. Dirigiu duas instituições madeirenses de relevo: o Museu da Quinta das Cruzes e o Arquivo Distrital da Madeira. Palavras-chave: António Aragão; historiador; promotor cultural; artista; escritor; escrita experimental. Existem algumas fotografias a preto e branco de António Aragão, no n.º 28 da revista Margem, que lhe é dedicado. Nelas, sobressai uma figura de pequena estatura e de porte cuidado, vestida com um casaco de fazenda e tendo a cabeça coberta com uma boina ou boné de cor preta. Na cara barbeada repousam uns óculos de vista (ou de sol) de aros escuros e grossos, não muito grandes, que estavam bastante em moda na déc. de 60 do séc. XX. Aqueles recobrem-lhe o pequeno rosto e possibilitam o seu reconhecimento: dão-lhe a marca da intelectualidade que o diferenciou. Praticamente todas as fotografias se reportam à fase de maturidade da sua vida, englobando, sensivelmente, o período da déc. de 60 à de 90 do séc. XX. Este retrato caricatural não permite adivinhar a sua genialidade criativa, revelada nas múltiplas classificações que lhe foram atribuídas. Através do índice da revista Margem referida, fica sem se saber se foi promotor patrimonial da comunidade local (ou melhor, regional), historiador, arqueólogo, poeta, ficcionista, dramaturgo, criador experimentalista, pintor, escultor, desenhista, cinéfilo, ou, simplesmente, um intelectual interessado em preservar o passado aberto à novidade do futuro, na vivência do seu tempo presente. Além de possuir outros epítetos, não se resumirá a nenhum deles, porque será a soma de todos. A personalidade de António Aragão recorda os artistas renascentistas, devido à sua insaciedade de saber e de inventar; era uma pessoa curiosa, nutrindo vários interesses. O acervo que foi constituindo, e que algumas entidades públicas, além de outras privadas, tentam adquirir, revela esta pluralidade de interesses e a sua curiosidade pela diversidade cultural. As balizas temporais, medidas entre o nascimento a 22 de setembro de 1921, em São Vicente, na ilha da Madeira, e o falecimento a 11 de agosto de 2008, no Funchal, indicam que António Manuel de Sousa Aragão Mendes Correia viveu quase 87 anos; fá-los-ia no mês seguinte à sua morte, depois de uma fase de doença prolongada. Embora haja uma biografia divulgada e reiterada, seria preciso observar muitos detalhes para compreender inteiramente este homem do séc. XX, amante do passado e do futuro, e para evidenciar a sua faceta artística: foi escritor, poeta, pintor, escultor e também historiador e investigador. De facto, António Aragão destacou-se como um importante vulto da cultura portuguesa, não só pela sua vasta formação académica como pela sua criatividade na cultura e na arte, o que lhe permitiu vencer as barreiras da insularidade e afirmar-se nos meios académicos e culturais nacionais e europeus. O seu carácter irrequieto e polémico afastou-o do conformismo criativo. Era assim na investigação histórica, na etnografia, na pintura, na escultura e na arte da palavra. Além de todas as suas potencialidades e capacidades, também possuía uma grande paixão pelo cinema. Aliás, em 1955, contribuiu para a formação do Cine Clube do Funchal, a fim de possibilitar a visualização de obras de cinema alternativas às classificadas como comerciais. Da sua vida pessoal, poucas informações são divulgadas nas biografias existentes. Provavelmente por vontade própria, intentou separar a sua vida privada da sua vida pública. É sabido que se casou, em Roma, com Estela Teixeira da Fonte, de quem teve um filho, Marcos Aragão Correia, advogado de profissão. Sua irmã, Ruth Aragão de Carvalho, formada em ballet na capital portuguesa, casou-se com o ator Ruy de Carvalho. A nível de formação académica, a vida desafogada dos pais permitiu-lhe ir estudar no Liceu Jaime Moniz, o que poucos jovens ilhéus, sobretudo os nortenhos, podiam almejar. Posteriormente, como acontecia com os setimanistas madeirenses, seguiu para o continente e frequentou a Universidade de Lisboa, instituição onde se licenciou em Ciências Histórico-Filosóficas, fazendo depois uma especialização em Biblioteconomia e Arquivística na Universidade de Coimbra. Estudou ainda etnografia e museologia em Paris, sob a orientação do diretor do Conselho Internacional de Museus da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Finalmente, dedicou-se ao estudo do Restauro de Arte, em Itália, mais precisamente no Instituto Central de Restauro de Roma, tendo usufruindo de um estágio no Laboratório do Vaticano. Tanto em Paris como em Roma, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG). No âmbito do seu percurso profissional, fruto da diversificada e rica formação que tinha adquirido, desempenhou, no plano regional, alguns cargos importantes, tendo dirigido o Arquivo Distrital da Madeira e o Museu Quinta das Cruzes, e sido delegado dos Museus e Monumentos Nacionais na Madeira, associado à Comissão de Arte e Arqueologia da Câmara Municipal do Funchal. Os lugares por onde passou, no domínio laboral, coadunavam-se perfeitamente com os interesses que nutria, quer quanto à museologia, quer quanto à arquivística e à dimensão histórica da sua formação inicial. Notável é a sua atividade enquanto investigador e arqueólogo, da qual derivou vasta e conhecida obra: Os Pelourinhos da Madeira (o seu primeiro livro, de 1959); O Museu da Quinta das Cruzes (1970); Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória (1979); A Madeira Vista por Estrangeiros, 1455-1700 (1981); As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História (1984); O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal (1992). A partir das escavações arqueológicas por si dirigidas no lugar do aeroporto, onde se situava o Convento quinhentista de N.ª Sr.ª da Piedade (Santa Cruz), foi possível proceder ao levantamento da planta geral do Convento franciscano, ao estudo das suas características tipológicas e à exumação de variado espólio, onde se inclui uma vasta diversidade de padrões de azulejaria hispano-mourisca ou mudéjar, proveniente do Sul de Espanha, bem como múltiplos exemplares de azulejaria portuguesa seiscentista e setecentista, e de elementos primitivos em cantaria lavrada: portais do Convento, janelas, arco triunfal da igreja, condutas de águas, lajes tumulares e pavimentos, que passaram a constar nos jardins da Q.ta do Revoredo, Casa da Cultura de Santa Cruz. É de destacar que todos os trabalhos por ele efetuados se encontram devidamente catalogados e documentados com plantas rigorosas, desenhos e fotografias. Também se deve realçar a ação da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, que era então o poder executivo do arquipélago, que encomendou e incentivou este trabalho e que, depois de entregue pelo autor, o depositou em grande parte no Museu Quinta das Cruzes. A par da profissão oficial, foi dando realce à sua faceta de artista, como comprovam as suas ilustrações do livro Canhenhos da Ilha de Horácio Bento de Gouveia. Outro exemplo é a sua poesia espacial OVO/POVO, apresentada, em 1977, na XIV Bienal de São Paulo, tendo tido uma exposição em Lisboa, no ano seguinte, e outra em Coimbra, no decorrer de 1980. Outro exemplo ainda foi a exposição PO.EX. 80, que esteve na Galeria Nacional de Arte Moderna, na capital portuguesa, em 1980 e em 1981. A sua vertente artística culminou em 2007, com uma exposição no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, tendo, porém, exposto também na Madeira. Pese embora estas facetas, será sempre lembrado e reconhecido pela sua intervenção na literatura de cariz experimental, nomeadamente pela sua colaboração na organização dos dois números da revista Poesia Experimental (1964, 1966). A este propósito, como afirma Rui Nepomuceno: “Em Portugal, o experimentalismo poético e literário ocorreu em Lisboa nos meados dos anos 60, mais precisamente em 1964, com a publicação da ‘Revista Experimental 1’; muito embora desde os finais de 50 já tivesse começado a germinar, como até podemos verificar ao cotejar os trabalhos literários de António Aragão organizados e divulgados naquele decénio, na Madeira” (NEPOMUCENO, 22 fev. 2010). É curioso verificar que a linguística teve um papel preponderante neste movimento e, consequentemente, em António Aragão, algo que Rui Nepomuceno também sugere: “Deste modo, na teorização deste movimento, passaram a assumir grande importância e estatuto determinante os diversos fatores relacionados com a ‘Linguística Moderna’, a ‘Semiótica’, o ‘Estruturalismo’, e, obviamente, os diversos aspetos da ‘Teoria da Forma e da Informação’, de que foram principais intérpretes e seguidores no estrangeiro Abraham Moles, Saussure, Jakobson e, sobretudo, o muito citado Lévi-Strauss” (NEPOMUCENO, 22 fev. 2010); e esta influência tem reflexos em toda a sua criação literária (com particular incidência na linguagem verbal). Por conseguinte, foi pela dimensão literária e artística que António Aragão ganhou renome. Esta ligação com a linguagem manifestou-se em muitas das peças artísticas de António Aragão numa fase de maturidade da vida artística, já que teve um percurso marcado por diversos períodos. As artes plásticas associaram-se, de certo modo, à sua poesia, que usou a linguagem verbal como matéria de jogo em quadros ou em textos e não com o valor que tinha para os linguistas, algo que era próprio da poesia experimental. É preciso lembrar que, além de artista, foi curador de arte contemporânea e promoveu diversas exposições, inclusive na galeria associada à editora Vala Comum, que possuía em Lisboa. Ele próprio contribuiu muitíssimo para a produção de obras de arte de diversas tipologias. O fascínio pela impressão e pelos recortes, com colagens e montagens originalíssimas, acentuou esta veia artística, mais inovadora, se assim se pode dizer, do que a que concebeu em suportes como tela ou pedra. A sua obra vivenciou diversas fases, algo que foi mais notório na pintura. De um período figurativo inicial, com tendência naturalista, passou para uma vertente expressionista com opção pela abstração, por via de uma geometrização e autonomia do traço. Produziu, além de óleos, algumas aguarelas e, em determinada altura, recorreu à laca como material. Na última fase, concebeu composições a partir de colagens, construindo as suas pinturas essencialmente pela destruição do material-base (e.g., jornais). Os quadros, as gravuras, as esculturas e as outras peças concebidas por António Aragão, enquanto desenhista, pintor e escultor, têm merecido um estudo cuidado por parte de peritos. É o caso de Isabel Santa Clara, que releva três obras emblemáticas do artista: “Da obra pública de António Aragão, na qual o autor opta por uma figuração abstratizante, destacam-se, em 1960, o monumento comemorativo do quinto centenário da morte do infante D. Henrique, paralelepípedo com desenho inciso, no Porto Santo; os relevos da fachada da Escola Industrial, depois Escola Secundária de Francisco Franco; e um painel cerâmico no mercado de Santa Cruz, de 1962” (SANTA CLARA, “Artes plásticas”). Todas as obras foram fortemente marcadas pela época em que foram criadas. Assim, das peças mais conhecidas, destacam-se, primeiro, os painéis de cerâmica da Escola Secundária Francisco Franco, no Funchal, onde sobressaem vultos que laboram. Depois, o colorido painel de cerâmica do mercado da localidade madeirense de Santa Cruz, que comunga da representação das ilustrações que António Aragão fez para o já referido livro Canhenhos de Horácio Bento de Gouveia. A terceira referência escultórica, que ficou localizada no Porto Santo, é designada popularmente por “pau de sabão”, pela analogia da forma que possui o bloco de pedra com uma medida de sabão azul. A rigidez do padrão comemorativo ficará para a eternidade a evocar o momento celebrativo e a criatividade de António Aragão. O padrão diferencia-se bastante dos painéis porque contém detalhes regionais, onde se observam trabalhadores, essencialmente agrícolas, mas também pescadores, quase todos sem rosto, que surgem a desempenhar tarefas do quotidiano, reportando uma vida de trabalho árduo. É de realçar igualmente a imagem de S.ta Ana, em cantaria rija, na Câmara Municipal de Santana, 1959. Desenho de António Aragão. 1944. Foto de Rui A Camacho   Óleo de António Aragão datado de 23 de Julho de 1946. Foto Rui A Camacho Na pintura, desde a déc. de 40 do séc. XX, evidenciou-se em diversas temáticas abordadas e na exploração de técnicas diferenciadas. Realizou exposições em Portugal (Galeria Divulgação, Quadrante, Galeria III, Galeria Diferença, FCG – II Exposição de Pintura Portuguesa) e no estrangeiro, nomeadamente em Espanha (Madrid, Sevilha, Barcelona), México, França (Paris) e Itália (Roma e Turim), encontrando-se representado em coleções particulares e oficiais em vários países, nomeadamente na Fundação Serralves, em Portugal. António Aragão concretizou um projeto artístico contemporâneo baseado em novas tecnologias numa casa que lhe pertenceu, situada na Lapa, em Lisboa. O projeto enquadrava uma associação de educação popular com uma galeria de arte vanguardista, ao qual foi atribuído mecenato pela Secretaria de Estado da Cultura. Antes da doença prolongada de que padeceu até à sua morte, António Aragão, de volta ao Funchal, pintou os seus últimos quadros, que constituíram uma série que intitulou Os Monstros e consistiram numa crítica corrosiva ao que considerava ser a hipocrisia dominante na sociedade. As últimas exposições individuais em vida de António Aragão foram realizadas na Madeira e comissariadas por António Rodrigues. A antepenúltima teve lugar em abril de 1996, na Casa da Cultura de Santa Cruz, e integrou 16 dos seus últimos quadros, bem como uma seleção retrospetiva de 13 trabalhos, em diferentes técnicas, realizados nas décs. de 50 e 60 do séc. XX. A penúltima, Exposição Retrospetiva, teve lugar na Casa da Luz, no Funchal. A última exposição de António Aragão antes da sua morte ocorreu no Museu de Arte Contemporânea da Madeira (Forte de S. Tiago, Funchal). Verifica-se que, por um lado, numa dimensão quase de intervenção social, se interessou por representar o povo, as pessoas, que não valem por si próprias porque não se identificam individualmente, mas configuram grupos profissionais; por outro lado, criou pinturas de paisagens, habitadas ou não, e exemplares de natureza morta. Estas últimas reportam-se, sobretudo, ao período inicial da produção artística, que foi mudando e se foi adaptando aos gostos e às vivências inspiradoras do criador. Em síntese, Isabel Santa Clara descreveu muito bem a versatilidade de António Aragão: “Uma vertente experimentalista sacudiu o panorama artístico de forma peculiar nas décadas de 70 e 80. No centro desta atividade está a multifacetada figura de António Aragão, de inesgotável disponibilidade para com os novos talentos, cujas inquietações e inconformismos lograva canalizar para uma profícua experimentação artística. Ganharam força as práticas de poesia visual e de mail art, potenciadas pelas capacidades técnicas, a acessibilidade, a rapidez e a liberdade de produção de múltiplos da eletrografia. Surgiu assim Filigrama, mail art zine editada entre 1981-1983, revista de folhas soltas, que ia sendo sucessivamente alterada na sua composição e enviada pessoalmente através dos circuitos internacionais da mail art, que passavam muito especialmente pelo Brasil” (SANTA CLARA, 2010, 186); tendo colaborado em diversas manifestações de mail art, divulgou os seus trabalhos em revistas da especialidade. Compreende-se a estreita interligação, assim sintetizada, entre a obra artística e a produção escrita do artista-escritor. António Aragão terá sido, na juventude, um dos poetas da Tertúlia Ritziana, e, em 1946, com cerca de 25 anos, viu o seu conto “Pressentimento” obter um prémio: o 2.º lugar nos Jogos Florais promovidos pelo Ateneu Comercial do Funchal. Em 1952, colaborou com Jorge de Freitas, com Florival dos Passos, com Rogério Correia e com Herberto Helder, entre outros, no caderno de poesia Arquipélago, e, em 1956, foi editor da revista literária Búzio, impressa e publicada a suas expensas, em que colaboraram, além do próprio, Edmundo Bettencourt, Herberto Helder, Eurico de Sousa, Jorge Sumares, José Escada, Esther de Lemos e David Mourão-Ferreira. A sua vasta obra foi publicada essencialmente no Funchal e em Lisboa, uma obra em que se encontram frequentemente textos criados em conjunto com outros autores. Dos seus trabalhos – livros inteiros, revistas ou composições singulares –, tanto de carácter científico como criativo, referenciamos, em seguida, alguns. São vários os seus textos na déc. de 60, designadamente no âmbito da ficção literária, incluindo a poesia e o teatro; participou em ações coletivas e antologias literárias. Em 1962, escreveu o Poema Primeiro; em 1964, o Romance de Iza Morfismo, e também, com Herberto Helder, Cadernos de hoje (uma antologia de poesia experimental); em 1965, colaborou no suplemento especial do Jornal do Fundão sobre poesia concreta com “Visopoemas” e “Ortofonias” (com Ernesto M. de Melo e Castro); em 1966, compôs Hidra I, Folhema 1 e Folhema 2; em 1967, Operação I; em 1968, Mais exactamente P(r)o(bl)emas; em 1969, “Hidra 2”. Na déc. de 70, publicou, para além da já mencionada monografia O Museu da Quinta das Cruzes, Poema Azul e Branco e o romance Um Buraco na Boca, em 1971; também neste ano, participou na Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa. Em 1972, dirigiu a edição de Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal, e, em 1973, colaborou na Antologia da Poesia Concreta em Portugal. Em 1975, publicou Os Bancos antes da Nacionalização; em 1976, colaborou na Antologia da Poesia Visual Europeia; e, em 1979, produziu Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977 e a já referida obra Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória. Nos anos 80, manteve o ritmo alucinante de escrita e de publicações. Assim, em 1981, apresentou não só o livro A Madeira Vista por Estrangeiros, 1455-1700, como também a peça de teatro Desastre Nu, que ganhou o 2.º prémio do Concurso de Peças de Teatro Inéditas promovido pela Secretaria de Estado da Cultura em 1980. Também neste ano, escreveu Metanemas e tornou-se um dos fundadores de Filigrama. Em 1982, publicou igualmente o opúsculo de carácter panfletário Pátria. Couves. Deus. Etc. e, ainda neste ano, Joyciana (com Alberto Pimenta, Ernesto M. de Melo e Castro e Ana Hatherly). Em 1983, compôs Líricas Portuguesas. Antologia e, no ano seguinte, iniciou as eletrografias: O Elogio da Loura do Ergasmo nu Atlânticu, Céu ou Cara Dente por Dente e Merdade My Son, realizadas em 1984, 1985 e 1987, sendo publicadas em 1990. Em 1984, com Alberto Pimenta, deu à estampa Os 3 Farros. Descida aos Infermos (uma curiosa troca de correspondência entre os dois autores), além de ter publicado As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História. Ainda em 1984, numa divulgação em dois discos LP, resultado de trabalhos de investigação no campo etnográfico, ganharam visibilidade as suas recolhas de música tradicional das ilhas da Madeira e do Porto Santo, empreendidas na década anterior com Jorge Valdemar Guerra e com o músico Artur Andrade. Em 1985, fez uma exposição itinerante com Poemografias e, em 1987, apareceu uma nova edição, revista e aumentada, de Para a História do Funchal. Já com mais de 70 anos, ainda manteve alguma produção, tendo sido publicados, em 1992, O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal, anteriormente mencionado, e o livro de contos Textos do Abocalipse, que colocaram várias questões, nomeadamente políticas. Além destes títulos, em 1993, foi reeditado o romance Um Buraco na Boca, que recria de algum modo a linguagem verbal, desafiando as convenções da norma. Escreveu ainda para várias publicações: Comércio do Funchal; Línea Sud, Nápoles; Letras e Artes, Lisboa; Expresso; Colóquio-Artes, FCG, Lisboa; Diário de Notícias, Lisboa; Comércio do Porto; Espaço Arte, Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira; e Diário de Notícias da Madeira. A nível internacional realça-se a sua participação em vários fóruns de natureza cultural e artística: Sevilha, 1980; em 1982, Itália e Brasil; 1983, Cuenca; 1984, Comuna de Milão, Itália; 1984, São Francisco, EUA, e Barcelona; 1985, Israel e Nova Iorque; 1986, México e Sevilha; 1987, México e França; 1989, Itália e Paris; 1990, Siegen, Alemanha, México e Washington; e 1992, Madrid. Em suma, as décs. de 60, de 70 e de 80, destacando-se, decerto, o ano de 1981, foram um período muito fértil, marcando toda a sua carreira. Quando se observa detalhadamente a listagem dos títulos, para se quantificarem as publicações não literárias e as literárias, verifica-se que estas se sobrepõem àquelas. Portanto, foi, indubitavelmente, um escritor insaciável e incansável, sendo-o mais de poesia do que de ficção ou de teatro. Contudo, os seus trabalhos não literários, quase todos dedicados à Madeira e ao Funchal, são referências incontornáveis para quem se dedica às temáticas de que trataram. António Aragão faleceu no Funchal, a 11 de agosto de 2008. A sua família doou ao Arquivo Regional da Madeira, posteriormente Arquivo Regional e Biblioteca Pública Regional da Madeira, grande parte do seu espólio histórico. No entanto, o legado do seu acervo artístico ao país e, particularmente, à Madeira foi reconhecido ainda em vida pela Câmara Municipal do Funchal, que atribuiu o seu nome a uma via citadina. Obras de António Aragão: Os Pelourinhos da Madeira (1959); Poema Primeiro (1962); Romance de Iza Morfismo (1964); Visopoemas (1965); Ortofonias (1965); Hidra I (1966); Folhema 1 (1966); Folhema 2 (1966); Operação I (1967); Mais exactamente P(r)o(bl)emas (1968); Hidra 2 (1969); O Museu da Quinta das Cruzes (1970); Poema Azul e Branco (1971); Um Buraco na Boca (1971); Os Bancos antes da Nacionalização (1975); Antologia da Poesia Portuguesa 1940-1977 (1979); Para a História do Funchal. Pequenos Passos da Sua Memória (1979); Desastre Nu (1981); A Madeira Vista por Estrangeiros (1981); Metanemas (1981); Joyciana (com Alberto Pimenta, Ernesto M. de Melo e Castro e Ana Hatherly) (1982); Pátria. Couves. Deus. Etc. (1982); Líricas Portuguesas. Antologia (1983); Os 3 Farros. Descida aos Infermos (1984); As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História (1984); O Elogio da Loura do Ergasmo Nu Atlânticu, Céu ou Cara Dente por Dente (1990); Merdade My Son (1990); O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal (1992); Textos do Abocalipse (1992).   Helena Rebelo Miguel Fonseca (atualizado a 14.07.2017)

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junta de planeamento 1975

A transição da Madeira para o processo democrático foi de certa forma calma, se comparada com a agitação vivida no continente ou nas antigas colónias portuguesas de África. As forças militares e militarizadas não colocaram especiais problemas ao Movimento das Forças Armadas (MFA), e a primeira agitação, aliás vaga, decorreu na manifestação do 1.º de Maio, quando apareceu um cartaz a colocar em causa a presença no Funchal dos ex-governantes Américo Thomaz (1894-1987) e Marcello Caetano (1906-1980), com os dizeres “A Madeira não é caixote de lixo”. A notícia chegou a António de Spínola (1910-1996), que presidia à Junta de Salvação Nacional e se comprometera com Marcello Caetano, no quartel do Carmo, a fornecer-lhe proteção pessoal, pelo que poucos dias depois se encontrava na Madeira um delegado do Movimento, o Ten.-Cor. Carlos de Azeredo Pinto Melo e Leme (1930-) (Azeredo, Carlos de). A função do delegado do Movimento era a segurança das altas figuras do final do Estado Novo, mas, embarcadas as mesmas para o Brasil, a 20 de maio, teve de aguardar a nomeação do governador civil do Funchal (Governo civil), Fernando Rebelo (1919-2002) (Rebelo, Fernando Pereira), somente exarada a 7 de agosto. O novo governador tomou posse em S. Lourenço a 8 de agosto e, nesse mesmo dia, Carlos de Azeredo regressou ao continente, fixando-se no Porto. A 13 de setembro de 1974, o novo governador civil do Funchal – em consequência do pedido de exoneração de Rui Vieira (1926-2012), pedido que nunca fora aceite por Carlos de Azeredo – nomeava nova presidência para a Junta Geral. A 10 de outubro, a Junta Geral é dissolvido e é nomeada uma comissão administrativa, que também não resistiu muito tempo. As nomeações que se seguiram, essencialmente de elementos sem impacto político e social nas restantes estruturas locais, que não haviam sofrido especiais alterações, tornariam a situação geral insustentável a curto prazo. A instabilidade que se viria a desenvolver depois na Ilha levou a que, por solicitação dos elementos do Movimento na Madeira, o Ten.-Cor. Carlos de Azeredo, então graduado em brigadeiro, regressasse no final desse ano de 1974 ao Funchal. A 11 março de 1975, em Lisboa, entretanto, registava-se novo pronunciamento militar. O grupo mais moderado de forças políticas e militares ligadas ao Gen. António de Spínola, que não tinha aceitado o seu afastamento, a 30 de setembro, na sequência do falhanço da manifestação da “maioria silenciosa” de dois dias antes, nem, essencialmente, o acelerado processo de descolonização e de politização progressiva da sociedade portuguesa, movimentou-se. Os grupos mais politizados e a Comissão Coordenadora estavam, no entanto, atentos à movimentação, pelo que a mesma se saldou por um novo fracasso, sendo o Gen. Spínola definitivamente afastado, e tendo tido, inclusivamente, de abandonar o país. As notícias chegadas ao Funchal levaram à realização de manifestações de rua em apoio ao MFA. O processo foi acompanhado pelos comandos militares madeirenses, não tomando o Brig. Carlos de Azeredo qualquer posição, dependente, até certo ponto, que estava ainda do governador civil, Fernando Rebelo. Carlos de Azeredo encontrava-se nessa manhã numa cerimónia de distribuição de diplomas e condecorações na sede da Polícia de Segurança Pública do Funchal, à R. dos Netos, e, tendo sido informado pelo Maj. José Manuel Santos de Faria Leal (1936-2015) do que se passava em Lisboa, não interrompeu a distribuição. Escreveria mais tarde que continuou “calmamente na cerimónia” (AZEREDO, 2004, 205), mas, regressado ao palácio de S. Lourenço, acompanhou a situação, como os vários oficiais do seu gabinete, com a máxima apreensão. Com o pronunciamento de 11 de março, as forças mais à esquerda desenvolveram o que ficou conhecido por Processo Revolucionário em Curso e popularizado como PREC. No dia seguinte, a Junta de Salvação Nacional e o Conselho de Estado eram extintos e substituídos pelo Conselho da Revolução, a que se seguiria um plano de nacionalização da Banca, dos Seguros, dos Transportes, etc. Este período constituiu a fase mais marcante da tentativa de revolução portuguesa, durante o qual as tensões políticas e sociais atingiram uma virulência nunca experimentada. Principalmente o verão desse ano de 1975, o chamado “verão quente”, prestou-se a todo o tipo de violências numa sociedade considerada até então de brandos costumes e que nesse período parecia ter querido deixar de o ser. As forças madeirenses ligadas ao velho Movimento Democrático mostraram-se completamente incapazes de fazer face à situação e, a 20 março, Fernando Rebelo deixava o cargo de governador civil. Nesse mesmo dia, em Lisboa, onde fora chamado, desconhecendo o motivo e tendo tido então as mais sérias reservas e apreensões, Carlos de Azeredo tomava posse desse cargo, por despacho do ministro da Administração Interna. A nomeação de um elemento dado como próximo do Gen. António de Spínola não foi bem aceite nos sectores militares e civis continentais ligados ao PREC, que preferiam a nomeação do Maj. José Manuel Santos de Faria Leal (1936-2015), mas representou uma vitória para os sectores mais moderados e marcaria, na Madeira, o início da progressiva demarcação em relação ao processo continental. O Brig. Carlos de Azeredo, como governador civil – mas sempre fardado –, quase de imediato, a 25 de março, dava posse no Funchal à Junta de Planeamento para a Madeira, criada pelo dec.-lei n.º 139/75, promulgado no polémico dia 11 de março, pelo Presidente da República, Gen. Francisco da Costa Gomes (1914-2001), e publicado a 18 seguinte. O dec.-lei já considerava este órgão com um cariz transitório, mas com forte poder de decisão, sendo composto pelo governador civil, que presidia, com voto de qualidade, e por três vogais. Este órgão vinha um pouco na sequência do grupo criado alguns anos antes no âmbito da Junta Geral, a comissão regional de planeamento, mas já com funções deliberativas mais amplas, superintendendo, inclusivamente, sobre a mesma Junta Geral que, embora dissolvida, continuava em exercício. Foram então empossados como vogais João Abel de Freitas (n. 1942), Virgílio Higino Pereira (n. 1941) e José Manuel Paquete de Oliveira (1936-2016), que dirigia o Diário de Notícias. A presença de João Abel de Freitas, ligado à comissão do salário mínimo, e mesmo dos restantes elementos, pois que a sua nomeação fora acordada em Lisboa, não reunia o consenso alargado que alguns sectores locais requeriam, pelo que a Junta de Planeamento foi alvo de críticas no Jornal da Madeira, o que levou Carlos de Azeredo a convocar a S. Lourenço Alberto João Jardim (1943-), recentemente colocado à frente daquele jornal pelo bispo do Funchal, D. Francisco Antunes Santana (1924-1982), embora tal não tenha refreado os ataques daquele periódico à nova estrutura governativa regional. As críticas ainda aumentaram com o dec.-lei de 2 de julho de 1975, que alargava os poderes da Junta de Planeamento para proceder ao saneamento dos serviços do Estado e dos corpos administrativos, podendo suspender por 90 dias os funcionários desses organismos e nomear comissões para efetuarem reclassificações dos mesmos. Foi por esse diploma que se acrescentou um quarto elemento à Junta de Planeamento, dado como representante do comando militar, Faria Leal, que desde o início participava já em todas as reuniões. A Junta de Planeamento sofreria uma contínua contestação, não só local, dado que, como o governador Carlos de Azeredo anunciara na sua formação, tinha sido escolhida de cúpula, por decisão autocrática, logo sem a consulta das forças políticas já sumariamente colocadas no terreno, como igualmente dos círculos mais à esquerda do MFA nacional, que a consideravam não revolucionária. Poucos dias depois, comemorando-se o segundo 1.º de Maio em liberdade, deslocar-se-iam à Madeira dois conselheiros da revolução, o Com. Carlos de Almada Contreiras e o Maj. José Manuel Costa Neves, que participariam na manifestação, mas que quase não contactaram os elementos das forças armadas de S. Lourenço, limitando-se o Brig. Carlos de Azeredo a depois os acompanhar ao aeroporto. Ao contrário do ano anterior, também nenhum dos elementos militares da Madeira participou na mesma manifestação que, inclusivamente, levou a alguns incidentes na baixa da cidade, o que não acontecera no ano precedente. A Junta de Planeamento começou a conhecer dificuldades de articulação interna a partir das eleições de 25 de abril de 1975 (Eleições Autonomia), que elegeram a Assembleia Constituinte (sendo a organização dessas eleições a mais importante missão de que a referida Junta estava incumbida). Assim, se até então a sua nomeação de cúpula, como havia sido referido por Carlos de Azeredo na sua apresentação pública, era defensável por não ter havido eleições na Região, a partir daquela data, tal já não era sustentável. Acrescia a isto o desgaste do “verão quente” de 1975, que começara a 11 de março, e logo a 4 de abril registara uma tentativa de assalto ao palácio de S. Lourenço por uma manifestação de produtores de cana-de-açúcar – situação geral à qual Carlos de Azeredo deu uma resposta que não foi entendida como correta, nem pela esquerda, nem pela direita, tentando limitar a sua atuação a uma gestão negociada de crise, que nunca fora bem aceite por alguns elementos da Junta de Planeamento. A cisão foi iniciada pelo pedido de demissão de João Abel de Freitas, a 5 de agosto de 1975, pois que o mesmo não poderia ter sido feito pelo Maj. Faria Leal, dada a sua condição militar, pretendendo ambos a detenção de alguns empresários madeirenses por sabotagem económica. A demissão de João Abel Freitas foi imediatamente aceite pelo Brig. Carlos de Azeredo, e seguiu-se-lhe a demissão dos restantes membros. Estava assim aberto o caminho para a constituição de um novo órgão de gestão governativa da futura Região Autónoma da Madeira, que, embora ainda não democrático nem verdadeiramente representativo das forças políticas com representação no terreno, caminhava já nesse sentido: a Junta Governativa e de Desenvolvimento de 1976. Levaria, no entanto, mais de seis meses para ser negociada e tomar posse.     Rui Carita (atualizado a 09.06.2017)

Direito e Política História Militar História Política e Institucional

forte novo de são pedro

Entre 1704 e 1712, o novo governador Duarte Sodré Pereira, fidalgo e mercador, aumentou a defesa da ilha da Madeira, tendo mandado construir o forte novo de São Pedro, então datado de 1707 em lápide sobre o portal da entrada. O forte tinha planta pentagonal, incorporando-se no pano da muralha sobre a chamada R. dos Balcões, quase em frente da R. dos Barreiros, posterior Campo Almirante Reis, e apoiando as restantes fortalezas da orla marítima. Em 1797, foi ainda este forte dotado de um forno de balas ardentes, vindo a ser demolido entre 1897 e 1898. Palavras-chave: fortes; arquitetura militar; defesa; praça académica; urbanismo.   Nos finais do séc. XVII foram enviados à Madeira alguns fortificadores, habilitados nas novas escolas continentais, que completaram as muralhas (Muralhas do Funchal) e terão deixado algumas propostas de obras, face ao aumento da navegação e do comércio marítimo no Funchal. Assim, com a vigência do Gov. Duarte Sodré Pereira, fidalgo e mercador, a defesa da Ilha foi bastante aumentada, executando-se uma série de fortes, desde Machico (Fortes de Machico) até ao Porto do Moniz (Fortes do norte da Ilha). Duarte Sodré Pereira era morgado de Águas Belas e notabilizara-se como capitão na armada da corte; terá sido nessa altura que estabeleceu contactos comerciais vários, que, durante a sua vigência na Madeira, entre 1704 e 1712, utilizou, tornando-se num fidalgo-mercador. Nos meados do séc. XVII o porto tinha sido melhorado com a construção do baluarte da Alfândega (Reduto da Alfândega), que protegia a entrada das fazendas e com a fortaleza do Ilhéu, que oferecia proteção geral aos navios surtos no local. Com o incremento do porto do Funchal, nos inícios do séc. XVIII, sentiu-se de imediato a necessidade de erigir mais uma fortaleza que apoiasse, concretamente, as de São Filipe e de São Tiago, assim como a longa muralha entre as duas. Nesta sequência, construiu-se o forte Novo de São Pedro, integrado no meio da longa muralha do bairro de Santa Maria do Calhau. O forte tinha planta pentagonal, incorporando-se no pano da muralha sobre a chamada rua dos Balcões, quase em frente da rua dos Barreiros. Possuía seis canhoneiras abertas para artilharia grossa e uma importante porta de cantaria regional, encimada por uma inscrição sob o brasão das armas reais: “No último ano de governo d’el rei D. Pedro II, nosso senhor, mandou levantar este forte de S. Pedro, o governador e capitão general Duarte Sodré Pereira e juntamente os de Machico, Santa Cruz e Ribeira Brava, que se guarneceram de artilharia que meteu nesta Ilha, que foram 54 peças, além de munições, armas e outros reparos que fez fazer em todas as fortificações dela. E tudo se acabou no ano de 1707” (ARAGÃO, 1987, p. 307). Foi primeiro comandante do forte Novo de São Pedro o capitão Zenóbio Acciauoli de Vasconcelos, em 1707 e, no ano seguinte, dado o seu falecimento, foi provido como comandante desta fortaleza, a 8 de setembro, o antigo capitão do Campanário, Jorge Correia de Vasconcelos. O primeiro condestável da fortificação foi Domingos Carvalho e, por provimento de agosto de 1709, Manuel Fernandes Vieira ocupou depois o lugar, passando o anterior condestável para a bateria da Alfândega. Manuel Fernandes Vieira prestara serviço como bombardeiro da Alfândega, com 50 réis por dia e fora aí provido, a 9 de junho de 1704, pelo Gov. Duarte Sodré Pereira, numa “praça paga”, passando a receber 36$000 por ano (ARM, Governo Civil, cód. 418, fls. 1-1v.). Esta “praça” era a que cumpria ao capitão António Nunes e se “achava vaga por impedimento crime e ausência” do mesmo (Id., Ibid.), dado ter-se envolvido numa sedição contra o anterior governador. Em 1724, Manuel Fernandes Vieira era ainda condestável de São Pedro, recebendo a carga de 15 peças de artilharia de ferro, montadas, de calibres de 4 até 24 libras. Havia também uma peça ligeira, de calibre de 4 libras, montada no revelim da “porta grande do cabo do calhau”, igualmente à carga daquela fortificação (Id., Ibid., fls. 9-9v.). Em 1729, dada a idade avançada de Manuel Fernandes Vieira, tomou posse um novo condestável, Francisco Dinis, recebendo a mesma carga. Depois, em 1771 e de acordo com os encargos financeiros do pessoal militar, era condestável do forte, José Gonçalves, com um ordenado 36$000 réis. Nos finais do séc. XVIII, o forte foi ainda dotado de um artifício tecnológico: um forno de balas ardentes. Tratava-se de uma inovação de combate naval, mais tarde vulgarizada a bordo, mas com graves problemas e sem a potência e o alcance da artilharia de costa, assente em terra firme. A alteração baseava-se no disparo, ou seja, enquanto nas bocas-de-fogo tradicionais desta época se colocava a carga de pólvora, a bala e depois se acionava o disparo por um morrão, aqui era a bala incandescente que acionava o disparo. Este dispositivo obrigava ao isolamento da pólvora, que era feito através de um pano humedecido sobre o qual ia atuar a bala previamente colocada ao rubro num forno e depois para ali transportada por tenazes. O disparo da bala e dos pedaços incandescentes do pano que tinham servido de “atraso”, indispensável para pôr a peça em bateria após a colocação da bala ardente, incendiavam as velas, cordame e madeiras dos navios. Na parede exterior do forte, onde se fez o dito forno, havia uma inscrição: “Forno de balas ardentes feito com o conserto neste forte no ano de 1797” (SARMENTO, 1951, 58). Embora fosse dos fortes mais modernos do Funchal, com o decurso do séc. XIX e verificadas as alterações das estratégias de combate, por se encontrar então demasiado exposto, perdeu o interesse militar. Assim, na descrição de Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), de 1817, o forte Novo era considerado em boa posição, “porém, o ângulo saliente que oferece ao mar não foi boa lembrança de quem o construiu, porque o navio que fundear na direção do ângulo não sofrerá o menor dano, só o fogo dos lados serve para proteger S. Tiago e as praças do Pelourinho e Ilhéu” (CARITA, 1982, 92). Nessa data já só tinha duas peças de calibre 12 e cinco de calibre 24. Paulo Dias de Almeida eliminou então a guarita avançada ao mar, colocando nesse espaço uma das novas peças de longo alcance, como fizera em São Tiago, queixando-se de que o forte tinha “um sofrível quartel” e não tinha cisterna (Id., Ibid.). Este engenheiro levantou a planta e o alçado do forte em apreço, como também o fez António Pedro de Azevedo (1812-1889), em 1855 e em 1862. Mesmo assim, nos finais do séc. XIX era considerado inútil e foi demolido em 1898, durante a vigência do Dr. José António de Almada (1843-1905) como chefe do distrito. Esta demolição permitiu o alargamento do “campo das pipas”, como era alcunhado o espaço em frente, dada a localização na área de vários armazéns de vinho, passando então a designar-se “Praça Académica”. Este campo seria depois chamado “das Loucas”, dado ser o local onde passeavam, a horas mortas, algumas mulheres “da miséria social a que a pobreza arrasta”, como se dizia (SARMENTO, 1951, 60). Foi, ainda nesta época, também chamado “dos Chalons” e “de São Tiago”, dados os exercícios militares que ali decorriam. Com a visita do rei D. Carlos e com a exposição comercial e industrial que se realizou, passou a ser “D. Carlos”; com a República, “Almirante Reis”, tal como o conhecemos hoje. O projeto de “melhoramentos” urbanísticos começou a ser equacionado em 1886 e consumou-se em 1897, com a demolição do velho forte, de que só resta um desenho do portal publicado no Diário Popular do Funchal, de 10 de outubro de 1897, as plantas militares entretanto feitas e algumas fotografias daquela área urbana da cidade, onde o mesmo aparece timidamente.   Rui Carita (atualizado a 31.01.2017)

Arquitetura História Militar Património

fortes da ribeira brava

O escarpado das encostas nesta área da Ilha não oferece grandes possibilidades para qualquer desembarque de forças, tendo o sistema de defesa, implantado nos sécs. XVI e XVII, privilegiado a instalação de vigias. No entanto, dada a importância e riqueza do lugar, houve logo a construção de um forte, São Sebastião, designação que parece apontar para a década de 70 do séc. XVI. Mais tarde, em 1708, foi edificado o forte de São Bento, por ocasião da campanha desenvolvida ao tempo do governador Duarte Sodré Pereira, quando se erigiram também as fortificações de Machico (Fortes de Machico), Santa Cruz e o forte Novo de São Pedro, no Funchal; tal como, muito provavelmente, se reforçaram algumas das posições das vigias da costa norte. A aluvião de 9 de outubro de 1803 destruiu ambos, tendo ficado do forte de S. Bento somente a torre de gola, que foi aproveitada para posto de turismo. Palavras-chave: aluviões; artilharia; arquitetura militar; defesa; turismo.   De acordo com a inscrição ainda existente na torre da gola, o forte de São Bento, orago do lugar, foi levantado sob a direção do capitão Henrique Manuel João e “a artilharia dele foi a primeira que entrou neste lugar sem despesa para a fazenda real”. O governador empenhara-se em envolver nesta campanha de fortificação os elementos da governação local, pois eram quem mais beneficiava da defesa, assegurando a proteção das suas propriedades. O forte encontrava-se ativado e guarnecido pouco depois, tendo o governador D. Pedro Álvares da Cunha nomeado para capitão do mesmo, a 14 de janeiro de 1713, João de Vasconcelos Uzel. Em 1742, forneceu-se “papel pardo para cartuchos” ao condestável da Ribeira Brava, provavelmente Tomé Ferreira da Silveira, que custaram $200 réis (ANTT, Provedoria..., liv. 840, 1742, fls. 17-22). O primeiro forte de São Sebastião é referido por Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832) como tendo sido destruído na aluvião de outubro de 1803. O autor comenta que sequer tinham restado vestígios dele, acrescentando que o mesmo acontecera com o de São Bento. Do forte de São Sebastião tinham ficado seis peças de diferentes calibres, reprovadas e do forte de São Bento, oito, também de diferentes calibres, igualmente reprovadas, além de 307 balas. A defesa do lugar reduzia-se a um pequeno plano em cima da ponta de rocha a nascente, a que então chamavam Reduto, onde se instalou uma posição fortificada, entre as duas grandes guerras mundiais e onde existiam três peças no chão, sem palamenta alguma. No entanto, no livro de carga da artilharia de 1724 já não se menciona o forte de São Sebastião, mas sim o forte de São Bento, de que era condestável Ferreira da Silva e ao qual foram entregues, com data de 4 de outubro desse ano, seis peças de artilharia de ferro montadas de calibre de 2 até 9 libras, três colheres de cobre com as suas hastes, cinco soquetes elanados, um riscador, um saca-trapo, duas pranchas de chumbo para os fogões, dois caixões para recolher pólvora e cartuchos, e “um cano de mosquete com seu reparo que serve para exercício de barreira aos artilheiros” (ARM, Governo Civil, liv. 418, fl. 24). A 30 de setembro de 1730 foi carregado ao mesmo condestável outros quatro soquetes, dois polvorinhos e duas agulhas. Em 1733, entretanto, servia de condestável Tomé Ferreira da Silveira, que recebeu ordem de entregar as armas de pedreneira que tinha para guarda no forte, e que recolheram ao Funchal. O engenheiro António Pedro de Azevedo (1812-1889) levantou a planta do lugar em 1841, na sua primeira descrição da ilha da Madeira e, de novo, em 1860, para o “tombo militar” (DSIE, Gabinete..., n.os 5584 e 5540, 1A-12A-16; ARM, Arquivos Particulares), onde o forte surge já reduzido à torre de gola, com um pano adjacente para nascente e dois lanços de escadas no mesmo, o que também aparece registado nas fotografias do final do séc. xix. Tudo parece indicar que o forte inicial era triangular, com torre de gola na entrada e semelhante aos do Amparo de Machico (embora este sem torre) e de São João Batista do Porto do Moniz (Fortes do Norte da Ilha). Na descrição do tombo militar refere-se que, não havendo quem se encarregasse da conservação da pequena parte que restava da fortificação, tinha a mesma sido arrendada para habitação a José Felício de Aguiar. A aluvião de 1842 parece não ter afetado especialmente o que restava do antigo forte de São Bento, embora na planta levantada não haja menção à construção. O forte ou, mais corretamente, o que dele sobejava, veio a ser entregue à nova câmara municipal, criada a 6 de maio de 1914, por interferência do ex-visconde da Ribeira Brava (1852-1918), havendo referências a obras realizadas por volta de 1916, altura em que, por certo, os merlões foram rematados com vivos relevados, de pequena guarita superior de proteção à escada que dá acesso ao terraço e foram executadas as frestas e o oratório do lado do mar, elementos que não se configuravam assim nas fotografias que conhecemos dos finais do séc. XIX e inícios do XX. Nos desenhos de António Pedro de Azevedo e nas fotografias mais antigas, a face, hoje do lado do mar, era dotada de larga porta de acesso à parada do forte inicial e provida superiormente de ampla janela, componentes que foram depois entaipados. Segundo a tradição local, terá servido de prisão camarária, mas não existe qualquer confirmação documental de tal serventia durante o séc. XX. Na década de 90, foi remodelado para servir de posto de turismo, situação que, de forma algo intermitente, se mantém até hoje. Nos alvores da Segunda Guerra Mundial foi levado a efeito um largo plano de defesa para a ilha da Madeira, altura em que algumas das principais baías foram dotadas de novas estruturas defensivas, onde, para além das novas baterias de costa e antiaéreas do Funchal, foram construídos abrigos enterrados, para seções de metralhadoras pesadas, como aconteceu na Ribeira Brava e na praia Formosa (Fortes da Praia Formosa). O trabalho foi entregue à Companhia de Sapadores Mineiros, pertencente à rede das unidades de engenharia, conhecendo-se uma planta para o “abrigo para uma secção de metralhadora pesada” da Ribeira Brava, da autoria do alferes miliciano de engenharia Rogério Afonso, que deve datar de meados de 1942, pois que a aprovação do subsecretário de Estado da Guerra foi de 12 de agosto de 1942 (BOTELHO, 2006, p. 3). Por esse ano ou no seguinte, escavou-se o abrigo enterrado para a secção de metralhadora pesada, que subsiste na arriba do pequeno porto da Ribeira Brava, inclusivamente com um baixo-relevo numa das antigas portas de alvenaria, com o emblema da Companhia de Sapadores Mineiros, ainda com vestígios de pintura.   Rui Carita (atualizado  a 31.01.2017)

Arquitetura História Militar Património

fortes do norte da ilha

O povoamento do norte da Ilha, da responsabilidade da capitania de Machico, foi mais tardio e o alcantilado da costa também contribuiu para não haver especial e urgente necessidade de construções defensivas, que por esta razão foram prorrogadas. Nos inícios do séc. XVIII deve ter sido construído o forte do Porto da Cruz, de que somente resta a casa da guarda. Datado da mesma altura, o arruinado forte do Porto do Moniz foi, entre 1998 e 2000, reconstruído para acolher o aquário. No calhau de São Jorge também veio a ser levantado um pequeno forte, em 1785, que as cheias de novembro de 1848 destruíram, restando somente o antigo portal de entrada. No início do séc. XX, uma das famílias do Faial levantou um miradouro romântico, o chamado forte do Faial, que equipou com velhas bocas-de-fogo abandonadas nas praias. Palavras-chave: aluviões; aquário da Madeira; artilharia; arquitetura militar; Romantismo.   Porto da Cruz Não houve necessidade urgente ou especial de edificar construções defensivas no norte da Ilha, pois o povoamento da área, da responsabilidade da capitania de Machico, foi mais tardio e o perfil da sua costa é alcantilado. A freguesia do Porto da Cruz era a que mais contactos estabelecia com a sede da capitania de Machico, embora por caminhos de difícil acesso, nos sécs. XVI e XVII. Assim, em princípio, terá sido uma das primeiras localidades do norte onde foi erigida uma fortificação, determinada nos primeiros anos do séc. XVIII pelo governador Duarte Sodré Pereira. Estaria em construção em 1708 e para ela foi nomeado capitão João de Vasconcelos Uzel, em 1713. No entanto, no livro de carga da fortificação de 1724 não consta que a mesma estivesse artilhada, ao contrário do Porto do Moniz, que já teria um reduto artilhado. Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), em 1817, não considerou que o vago arranjo executado no quase ilhéu do porto fosse uma verdadeira fortificação. Assim, escreveu: “tem um pequeno plano, em que se pode formar uma bateria pelo menos de quatro peças, de que bem necessita” (CARITA, 1982, 73). Conta também que existia no sítio um barbuzano e duas oliveiras, das quais se recolhia o fruto, não havendo memória de terem sido aí plantadas. Acrescenta ainda que a povoação estava dispersa pelos diversos lombos, cobertos de balseiras e que os caminhos até à Portela eram todos feitos através de despenhadeiros. O local em apreço tinha sido objeto de trabalhos de fortificação alguns anos antes, tendo sido efetuada, pelo menos, a reconstrução da casa da guarda, que ainda ostenta a data de 1793 num lintel. Quando Paulo Dias de Almeida elaborou a referida descrição, a obra estaria já levantada, porém, o autor não lhe faz referência, talvez pela sua insignificância e porque, segundo o Elucidário Madeirense, o forte teria sido desmantelado em 1804, sendo a guarnição existente mandada trabalhar na desobstrução da ribeira de Machico. Esta situação, no entanto, terá sido pontual, motivada pela aluvião de 9 de outubro de 1803, não se tratando da guarnição efetiva do forte, que nunca a terá tido em permanência, mas sim do pessoal das companhias de ordenança da freguesia que montavam a guarnição do mesmo. Mais tarde, em 1819, depois da visita geral efetuada à Ilha pelo governador Sebastião Xavier Botelho (1768-1840), o tenente-coronel Paulo Dias de Almeida, na planta da Madeira onde indicou os pontos que necessitavam de ser fortificados, registou que se devia ativar de novo a bateria do Porto da Cruz, bem como montar uma outra bateria na ribeira do Lava-pés, hoje ribeira da Maiata, na encosta nascente, efetivamente um local com um muito bom comandamento sobre toda a baía e de onde nos finais desse século vários viajantes tiraram fotografias. Não cremos que se tenha feito coisa alguma na baía do Porto da Cruz durante as décadas de 20 e 30 do séc. XIX, pois o tombo militar desse forte é de 1870, não foi escriturado por António Pedro de Azevedo (1812-1889) na década anterior, quando este considerou a grande maioria das restantes fortificações da Ilha. O forte encontrava-se na “origem setentrional da Ponta de São Lourenço”, segundo a descrição de 1870 e constava então de uma casa da guarda para depósito de munições, arruinada, e de um terrapleno de parapeito de terra, estando tudo totalmente abandonado (ARM, Arquivos Particulares, tombo militar). Não tinha, assim, qualquer interesse militar, pelo que deveria ser arrendado, segundo opinião do engenheiro Domingos Alberto da Cunha (1826-1892), que assinou a descrição a 31 de dezembro de 1870. A descrição seguinte, de António Leite Monteiro, datada de 3 de novembro de 1893, mantém a mesma opinião e propõe um valor global de 20$000 réis. É tradição local que este forte esteve artilhado até aos inícios ou meados do séc. XX. As peças terão então sido lançadas ao mar, sendo uma delas recuperada depois pela firma Soares Branco e entregue ao Museu da Quinta das Cruzes, nos finais da década de 60, mas entretanto depositada no museu de artilharia do Grupo de Artilharia de Guarnição n.º 2, onde ainda se encontra. A área do forte foi ocupada nos anos 30 por um posto da Guarda Fiscal, que deixou várias inscrições esgrafitadas nas paredes e, em 1960, por uma senhora de nome Raquel, segundo informação local, para exploração agropecuária. Voltou a ficar vago poucos anos depois, sendo ocupado somente como ponto de lançamento de fogo-de-artifício das festas regionais locais. A povoação de São Jorge desenvolveu-se na parte de cima da alta escarpa sobre o calhau da praia, tendo essa área de ocupação inicial sido mais ou menos abandonada entre os finais do séc. XVI e os inícios do XVII, justificando, inclusivamente a desmontagem da igreja matriz inicial da freguesia e a sua reconstrução na achada superior. Paulo Dias de Almeida, na sua descrição de 1817, afirma que por tal era “muito saudável e livre de humidades” (CARITA, 1982, 72-73). Menciona igualmente que “a paróquia é a melhor de toda a Ilha” (Id., Ibid.), referindo-se à igreja paroquial, reformulada nos meados do séc. XVIII, sendo que o templo compreende, de facto, um dos melhores exemplares de talha barroca da Madeira. Explica também que, sendo o porto de rocha, os barcos que ali iam receber os vinhos não se chegavam a terra, recolhendo as pipas em vaivém, pelo que muitas se perdiam. Junto ao porto onde se encontravam os armazéns desta freguesia e da de Santana, havia um pequeno reduto com duas peças de calibre 6 deitadas no chão. Acrescenta ainda Paulo Dias de Almeida que, no porto, só ficava um morador “efetivo” e os restantes recolhiam-se diariamente para o alto da população (Id., Ibid.). São Jorge O forte de São Jorge tinha sido construído a expensas de Francisco Manuel Jardim de Mendonça (Tello de Meneses), em razão do que foi nomeado, em 1785, primeiro capitão do dito forte; por sua morte, o cargo passou ao filho, Honorato Francisco Tello de Meneses. Segundo o tombo deste forte, “tudo” constava de uma “declaração passada por Agostinho Luiz Homem de El-rei, engenheiro e mestre das obras reais, e que só a bandeira, duas peças e dois reparos haviam sido pagos pela fazenda real” (ARM, Arquivos Particulares, tombo militar). Acrescente-se, entretanto, que este Agostinho Luiz Homem de El-rei não era engenheiro nem mestre das obras reais, mas sim apontador. Escreveu António Pedro de Azevedo que uma cheia, ocorrida entre 17 e 20 de novembro de 1848, destruiu totalmente a casa da guarda, que podia alojar cerca de oito homens, assim como parte da muralha do lado da ribeira, ficando o parapeito do forte “totalmente escalavrado e o terrapleno coberto de grossos calhaus” (Id., Ibid.). O forte era triangular, correndo o parapeito paralelo à praia, com 26,5 m e 9 de profundidade. O tombo foi assinado a 19 de fevereiro de 1864, por António Pedro de Azevedo, que calculava que o conjunto valeria então cerca de 350$000 réis. Em nota a esta descrição, António Pedro de Azevedo escreveu que, em toda a costa do norte da Ilha, se não podia tentar um desembarque em força sem grande perigo; embora não tirasse conclusões, tudo parece indicar que este militar não se inclinava para a reconstrução do pequeno reduto de São Jorge. A planta levantada por si, em 1868, apresenta uma “Vista do forte de S. Jorge antes da cheia de 17 de novembro de 1848”, que o mesmo teria efetuado pouco depois da sua chegada à Madeira, em 1841 (DSIE, Gabinete..., n.º 5534, 1A-12A-16). O tombo militar apresenta ainda um apontamento de cerca de 1890, dizendo estar o forte então desocupado e ter um valor de 200$000 réis. Parece ter ido entretanto a hasta pública, dado o terrapleno ser hoje propriedade privada. Faial No remate da propriedade do Faial da família do Dr. João Catanho de Meneses (1854-1942) existe um pequeno e alcantilado “forte” redondo, decorado com uma importante coleção de velhas bocas-de-fogo de ferro, quase todas inglesas e parecendo provenientes de navios desmantelados. O chamado forte do Faial foi construído como mirante de quinta madeirense, ao gosto romântico do séc. XIX, encontrando-se a uma grande altura e distância do mar, o que não lhe permitiria fazer eficazmente qualquer tipo de tiro. Deve datar dos inícios do séc. XX, ter sido executado para puro recreio dos utilizadores da propriedade, tendo a sua decoração sido feita com objetos provenientes dos vários fortes abandonados na costa norte. Num desenho do forte do Porto do Moniz, de cerca de 1850, as três bocas-de-fogo sumariamente traçadas, parecem ser “caronadas” inglesas dos inícios do séc. XIX, como as deste forte. Três destas bocas-de-fogo estiveram a decorar a esplanada do reconstruído forte do Gorgulho, no complexo balnear do Lido, no Funchal, por solicitação da Câmara do Funchal e com o acordo dos proprietários, assim como uma outra, a mais pequena de todas (98 cm de comprimento e 6,8 de calibre), integrou a exposição sobre arquitetura militar da Madeira dos sécs. XVI a XIX, realizada a 10 de junho de 1981 no teatro municipal do Funchal. Ao longo da década de 90, este conjunto de bocas-de-fogo, que tradicionalmente salvavam nas festas de N.ª S.ª do Faial, por razões de segurança, deixaram de ser usados nas ocasiões festivas. Em 1998, entretanto, utilizando-se cargas de pólvora mais fracas e depois de terem sido testadas as suas condições pela equipa militar de salvas de artilharia, os antigos canhões voltaram a disparar. O velho forte foi entretanto classificado, reconhecendo-se o seu valor local, e foi alvo de uma recuperação geral, levada a cabo pela Direção Regional dos Assuntos Culturais (DRAC), refazendo-se então as carretas de artilharia, dentro do modelo de marinha e sítio, das várias bocas-de-fogo. Todo o empedrado em calhau rolado madeirense foi refeito, as paredes e a muralha foram consolidadas e a casa de apoio central foi reparada, sendo dotada com uma pequena exposição de fotografias de gravuras antigas da área, acompanhadas por um pequeno historial da família Catanho de Meneses, tudo sob direção e execução de técnicos da DRAC. Porto do Moniz As primeiras informações que temos das defesas do Porto do Moniz são de 1642. Assim, em julho desse ano, o capitão Manuel de Castro da Câmara recebeu 1$970 réis pelo arranjo da vigia local, sinal de ser a esta anterior e decorrente das ordens emanadas no regimento de vigias de 1567. Com a vigência do governador Duarte Sodré Pereira e com os contactos comerciais internacionais que este estabeleceu, foi sentida a necessidade da revisão geral da fortificação da Ilha. Nesse sentido, foi determinada a fortificação do norte e, especificamente, do Porto do Moniz e do Porto da Cruz, ambos sob a invocação de S. João Batista. A construção deve ter sido, assim, iniciada antes de 1711, data em que sabemos ter tido então novas obras. Foram levadas a cabo pelo capitão Manuel Rodrigues Ferreira Ferro (1685-1756), a cuja família foi dado o encargo do respetivo forte. As obras foram orçamentadas pelo mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), mas só terminadas na vigência do conde de S. Miguel como governador, em 1758. O capitão do Porto Moniz tivera patente assinada no Funchal, a 30 de abril de 1709 e registada em Machico, a 22 de junho, sendo depois provido como sargento-mor de Machico, por patente assinada em Lisboa, a 12 de setembro de 1753 e que tomou posse no Funchal, perante o governador conde de São Miguel, a 25 de março do seguinte ano de 1754. Atendiam-se aos serviços feitos ao “longo de mais de 62 anos de soldado, à sua conta, sem soldo, em toda a costa de mar e no tempo de guerra”, assim como a edificação da “fortaleza daquele lugar”, dotada com “duas bocas-de-fogo, casa de vigia, de soldados e prisão” (ARM, Câmara..., liv. 85, fls. 86-87; ANTT, Provedoria..., liv. 973, fls. 203-204). A dotação de artilharia para este forte foi estabelecida em 1730, como se pode ler no livro de carga iniciado em 1724. Foi então transferida uma boca-de-fogo do forte de São Filipe do Funchal para o do Porto do Moniz, juntando-se-lhe mais duas, ficando o forte com uma carga de três peças de artilharia montadas, de calibre de 3 a 7 libras, três soquetes elanados com as suas hastes, um riscador, um saca-trapo e uma agulha para exercícios de pontaria. Assinou o termo o artilheiro com encargo de condestável, Manuel Lopes da Silva e o tabelião do judicial, António Cotrim, em 11 de novembro de 1730. Nos meados do séc. XVIII e com a vigência na Ilha do governador D. Álvaro José Xavier Botelho de Távora (1708-1789), 4.º conde de S. Miguel, e também com a tomada de posse do capitão do Porto Moniz como sargento-mor de Machico, deram-se andamento a algumas obras já planeadas, que aguardavam fundos e empenho político. Entre elas, a do forte do Porto Moniz, tendo corrido com a obra o filho homónimo daquele último, Francisco Ferreira Ferro (1715-1794). Como se podia ler na entrada do forte, “Este forte se fez por ordem de el rei nosso senhor, o Sr. D. João 5.°, sendo governador desta Ilha o exmo. conde de S. Miguel e provedor da fazenda real e superintendente das fortificações, Manuel Teixeira de Castro e de cuja obra foi inspetor pelo dito senhor, o capitão cabo dele, Francisco Ferreira Ferro, filho do sargento-mor do mesmo nome no ano de 1758”, lápide transcrita por António Pedro de Azevedo em 1848 (ARM, Arquivos..., Planta dos Ancoradouros, 1848). Nos inícios do séc. XIX, quando Paulo Dias de Almeida fez uma volta de inspeção à Ilha o panorama da costa norte era desolador. Toda a costa estava profundamente isolada, só mantendo contactos com a costa sul pelo mar no verão. As ligações por terra com essa costa eram feitas pelo Paul da Serra e pela garganta da Encumeada, descendo depois até à serra de Água e à Ribeira Brava, mas tratava-se de uma verdadeira aventura. A ligação com a Calheta, feita pelo Paul da Serra, era ainda mais perigosa. Segundo Paulo Dias de Almeida, na sua já citada descrição de 1817, o Porto Moniz era o melhor porto que se encontrava no norte da Ilha e onde qualquer barco da costa “corrido do tempo” encontrava abrigo. A povoação estava espalhada pelo alto, nos bons terrenos da Madalena e os habitantes mais ricos tinham as suas propriedades em baixo, no porto, onde estavam igualmente os seus armazéns de vinho. Perante este quadro, alertava Paulo Dias de Almeida, se algum corsário mais esperto quisesse, poderia aproximar-se, fundear e saquear os armazéns, pois que nenhuma defesa havia para se lhe opor. Observa ainda que “um pequeno forte triangular que ali tinham, de nada servia por se encontrar arruinado” (CARITA, 1982, pp. 67-68). Tinha então uma peça de 4 libras em bom estado, e seis de calibre 6, mas reprovadas, no chão e sem reparos. A casa de armas tinha abatido e as 29 espingardas que havia estavam umas sem fechos, outras com as coronhas podres e o correame no mesmo estado. Alguns anos mais tarde, por volta de 1850, temos um desenho do forte feito por um turista inglês: Ruin of a Fort. Porto Moniz. Madeira (Casa-Museu Frederico de Freitas) e do qual, muito provavelmente, foi depois feito um óleo, hoje numa coleção privada do Funchal. Por esse desenho vemos que o forte teria um esquema muito semelhante ao da Ribeira Brava: triangular, fechado a terra por um torreão, com porta encimada por inscrição e brasão das armas reais. No forte do Porto do Moniz havia uma passagem alta, indicativa, em princípio, de ter havido ponte levadiça. No meio do forte, em ruínas, são reconhecíveis três peças de artilharia, duas sobre possíveis reparos navais, que parecem caronadas. Muito provavelmente, estas peças foram depois recolhidas no forte do Faial. A única coisa que parece intacta neste desenho é um mastro alto, mas sem bandeira. Alguns anos depois, escrevendo sobre este forte, o tenente-coronel Alberto Artur Sarmento refere que a inscrição veio nos inícios do séc. XX para a fortaleza de S. Lourenço, no Funchal mas infelizmente, já ali não se encontra. Aliás, algumas peças de ferro igualmente recolhidas ao longo dos anos 30 e 40 desse séc. XX e que chegaram a estar na parada baixa de São Lourenço foram entregues, nos anos 50, à Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. A junta entregou-as ao Museu Quinta das Cruzes que, por seu lado, as entregou à Câmara Municipal de Machico. Encontram-se hoje a decorar o forte de Nossa Senhora do Amparo. Pelas informações do forte de São João Baptista nos tombos militares, com sequência a partir de 1870, podemos reconstruir um pouco da sua vida mais recente. Assim, “o forte referido fica a 55 quilómetros do Funchal, na costa norte da Ilha, onde se não pode tentar desembarque sem grande perigo e trabalho, em razão das escarpas serem muito mais elevadas e aprumadas que na costa sul e por serem raras as praias e enseadas, além da circunstância importantíssima dos ventos do quadrante norte, que na maior parte do ano sopram com violência naquelas paragens”. O forte consistia então numa pequena luneta bastante arruinada, com uma casa para depósito de materiais de guerra, totalmente destruída. Havia ainda uma outra, em estado sofrível, mas sem porta nem janela e que poderia alojar quatro praças. Nesta sequência, havia mais a prisão e o paiol, mas ainda em pior estado. O forte apresentava 12 m na gola onde estavam as casas referidas, ou seus vestígios, como se acrescentava em 1870. Havia também, a 70 m do forte, sobre a escarpa e a leste, uma casa de vigia que podia alojar três praças. O tombo militar descreve ainda o ilhéu Mole em frente do forte, a uma distância de 110 m, que “mascarava” o forte pelo norte e oeste, embora o mesmo continuasse a cobrir bem a praia do lado leste. A fortificação teria sido arruinada pelo mar havia muito tempo, dado se encontrar bastante exposta e situada na praia do porto, pelo qual confrontava por todos os lados. O valor total calculado do forte e vigia nesta época era de 100$000. Mais tarde, por volta de 1890, estimava-se que o valor das ruínas seria de 88$860 réis. Com a promulgação da carta de lei de 13 de setembro de 1897, permitiu-se proceder à alienação das fortificações sem interesse militar, vindo diversos fortes a serem arrematados em hasta pública. Foi o caso deste, em abril de 1926, arrematado pelo Dr. Jaime César de Abreu (1899-1976), médico no Funchal, ao Ministério da Guerra. O imóvel era então constituído pela pequena luneta, as ruínas do pequeno quartel, do paiol e o campo de exercícios anexo, tendo a respetiva posse sido tomada em maio 1927, pelo Dr. Lúcio Tolentino da Costa (1870-1939), natural da freguesia do Porto Moniz e sogro do novo proprietário. Nos finais do séc. XIX, entretanto, tinha sido editada uma fotografia pelo Bazar do Povo, em princípio da autoria de João Anacleto Rodrigues (1869-1948) e que tem sido dada como tirada no Porto Moniz. No entanto, dada a configuração do forte, tudo parece apontar tratar-se de um fotografia tirada nos Açores e não na Madeira, embora existam referências à baleação no Porto Moniz. Pela configuração do forte e a rampa anexa ao mesmo, somos levados a crer que se trata do forte do Negrito, em São Mateus, na ilha Terceira. Em 1998, a Câmara Municipal do Porto Moniz adquiriu a propriedade e, dois anos depois, iniciaram-se as obras de reconstrução do antigo forte de São João Batista, instalando-se no seu interior um aquário constituído por 12 tanques, nos quais se propôs representar os vários habitats do mundo marinho madeirense.   Rui Carita (atualizado a 31.01.2017)

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fortes de santa cruz

O desenvolvimento de Santa Cruz e da restante costa sul da Ilha, nos finais do séc. XV, encontra-se ligado à produção açucareira. Santa Cruz, embora estivesse integrada na capitania de Machico, foi sede da alfândega ducal em 1474, tendo sido, entretanto, dotada de bocas-de-fogo ou “bombardas”, as primeiras de que existe referência na Madeira. Muito mais tarde, por volta de 1595, o mestre das obras reais Mateus Fernandes (III) (c. 1520-1597) registou que as bombardas de Santa Cruz ainda se encontravam abandonadas e sem estância conveniente, devendo-se construir para elas um reduto, tal como tinha sido feito em Machico. Em 1582, não havia em Santa Cruz qualquer construção defensiva, como refere a Filipe II António da Gama, que pensamos ser o desembargador António da Gama Pereira (1520-1604). Escreveu então que, da vila de Machico para a cidade do Funchal, não havia uma defesa e esta era necessária. Assim, informava que havia um bom “desembarcadouro de praia de seixos miúdos, de largura de um tiro de espingarda”, no porto do Seixo e que distava da vila de Santa Cruz meia légua (AGS, Guerra y Marina, leg. 421, doc. 307). Explicava que era também necessário defender a vila de Santa Cruz, que tinha uma praia com “larga distância para o inimigo poder desembarcar” (Id., Ibid.). Alvitrava que, para se “impedir o desembarcadouro”, se deveriam fazer dois fortes: “um no lugar e sítio que lhe chamam Guindaste, que é defronte do mosteiro de S. Francisco; e outro aonde está a ermida de S. Fernando. E de um ao outro haverá dois tiros de espingarda” (Id., Ibid.). No entanto, parece que só bastante tempo depois tal se concretizou. Com efeito, o primeiro condestável da vila de Santa Cruz de que temos conhecimento, João Baptista da Veiga, só teve nomeação, de Lisboa, a 11 de dezembro de 1699, registada no Funchal a 14 de dezembro do mesmo ano, com 5$000 réis cada ano. Com a implantação dos regimentos de vigias e de ordenanças, por certo se levantaram estâncias mais ou menos perenes, como nos mesmos vem indicado (Vigias, e Ordenanças), posteriormente consolidadas. Pelo menos durante a vigência como governador do bispo D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), foram construídos vários redutos defensivos, havendo informação de o mesmo ter decidido tais obras. Mais tarde, em 1747, o bispo D. Fr. João do Nascimento (c. 1690-1753) determinou a construção do forte de São Francisco, que entendemos ser uma reconstrução, devendo ter feito o mesmo em relação ao de São Fernando, de forma a garantir a defesa e enquadramento correto da praia de Santa Cruz. Nos anos seguintes, procederam-se a novas obras de reconstrução, imprescindíveis para as edificações na orla marítima e que, nos inícios do séc. XVIII, seriam reequacionadas, com a construção de um forte maior no centro da praia da vila. Nos finais do séc. XVII, a defesa da Madeira tinha sido avaliada por dois especialistas nacionais, o capitão de engenheiros Manuel Gomes Ferreira e o estudante António Rodrigues Ribeiro, que tinham estado na Ilha em 1689; provavelmente, em sequência, foi oficializado o lugar de condestável de Santa Cruz. Poucos anos depois, durante a vigência do governador Duarte Sodré Pereira, levantou-se o forte de Nossa Senhora da Graça e Águas Belas, em Santa Cruz, em homenagem a esse governador, morgado de Águas Belas, em Tomar. O forte foi construído no centro da praia da vila, junto à antiga capela desta evocação e deve ter tido, como todos os outros, uma lápide sobre o portal da entrada onde se mencionava quem tinha corrido com a obra e a data dos trabalhos, mas ninguém parece ter anotado tal registo. A fortificação de Santa Cruz deve ter sido concluída antes de 1707, conforme ficou exarado no forte Novo de São Pedro, no Funchal, onde se lia que no “último ano do governo de el-rei D. Pedro” se levantara esse forte, os de Machico, Santa Cruz e Ribeira Brava, “e tudo se acabou no ano de 1707”. A planta do forte de Santa Cruz era igual ao Novo de São Pedro do Funchal, pentagonal e com porta na face virada à povoação, como o desenharam depois os engenheiros do séc. XIX e deveria articular-se com uma muralha ao longo da praia, como se deduz dos desenhos do final do séc. XVIII e dos meados do seguinte. Em 1724 já esta fortificação tinha uma avultada carga de peças de artilharia, tendo o condestável Sintão de Freitas Cunha recebido, a 16 de outubro, toda a carga do distrito, incluindo espingardas e um quantitativo de 10 peças de artilharia que, como mostram as plantas da construção e defendem opiniões posteriores, como a do tenente-coronel António Pedro de Azevedo (1812-1889), não cabiam no citado forte. À data, deviam estar ocupados com artilharia outros redutos, como o de São Francisco ou o de São Fernando, concentrando-se a carga neste. Ao condestável do forte da Graça foi então levada uma pesada carga de bocas-de-fogo; vários apetrechos para tiro de artilharia; “um cano de mosquete em seu reparo para tiro de barreira”; 30 mosquetes; 25 espingardas de pederneira; uma bandeira de veludo com as armas reais pintadas, mastro e corda (ARM, Governo Civil, cód. 418, fls. 34-35). Em breve, foram-lhe abatidas as 25 espingardas, por ordem do governador Francisco da Costa Freire, sendo as mesmas repartidas pelas companhias de ordenanças. Em 1730, foi também abatida uma peça de artilharia de ferro, montada, de calibre de quatro libras, que foi entregue no reduto do Caniçal (Fortes de Machico). Em 1735, a mesma carga foi entregue ao novo condestável do forte, Domingos de Araújo, cuja posse foi dada em Santa Cruz pelo capitão José Teixeira, a 28 de julho de 1735, sendo confirmada no ano seguinte, por Lisboa. Perto do final do século, em 1782, era condestável de Santa Cruz José Dias, com um ordenado de 18$000, como registou contador geral António João Figueira de Chaves, a 18 de julho desse ano. Nos finais do séc. XVIII, o forte da Graça encontrava-se em adiantado estado de ruína. Por essa altura, foi encarregado de rever as defesas da Madeira o major Inácio Joaquim de Castro, que nos deixou a primeira planta da vila de Santa Cruz, datada de 28 de agosto de 1799. Nela aparece representada a dita fortificação, já então tão arruinada, que se figura como se sempre tivesse sido triangular: “Nossa Senhora da Graça e Águas Belas”, acrescentando-se: “Este forte se acha inteiramente arruinado, e só com os bocados de muralha de pé”, “precisa um grande conserto”, “que do fundamento dos seus alicerces, deve principiar a sua edificação” (IICT, Centro..., pasta 33, nº 19). Na mesma planta, tal como se pode interpretar também das seguintes de António Pedro de Azevedo, parece integra-se no forte uma cortina de muralha que ia ao longo do calhau da praia de uma a outra ribeira. Embora o autor refira as linhas ao longo do calhau como “trincheiras”, deveriam estar, muito provavelmente, associadas a muralhas preexistentes. Nas contas da fortificação de outubro de 1744, referem-se as despesas das muralhas da Calheta e de Santa Cruz; embora se possa admitir tratarem-se das muralhas das ribeiras, as mesmas eram, no entanto, da responsabilidade específica da câmara e, muitas vezes, houve sérios conflitos entre o governador e a câmara do Funchal. Contudo, nada parece ter sido feito por esta época. E, quando Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832) passou em revista a Ilha para a sua descrição de 1817, a vila de Santa Cruz passou quase em branco, não sendo feita qualquer referência às suas fortificações, que aquele sequer desenhou, o que não deixa de ser estranho. Dois anos depois, na primeira planta mandada executar pelo governador Sebastião Xavier Botelho (1768-1840), face à revista feita em toda a Ilha, mandou-se proceder a obras na “praça Forte de N.ª S.ª das Águas Belas (ex-S.ª da Graça)” e na vigia do ribeiro do Seixo, que deveria ser transformada em reduto (ACL, Cartografia, 1 G. 4, n.º 11). No entanto, nas várias plantas e informações dos anos seguintes, parece ter-se abandonado a ideia de fazer obras no forte da Graça, só se mencionando obras nos dois fortes laterais. A vila foi, entretanto, também muito afetada pela aluvião de 1842, pelo que a ruína do forte da Graça, situado na praia, deve ter sido progressiva ao longo desse século. A descrição militar executada pelo então capitão António Pedro de Azevedo, em 1841, regista o forte como pentagonal, não devendo ter ocorrido, assim, obras que não as de manutenção, tal como sugere o desenho realizado por volta de 1863. O tombo militar deste forte, efetuado pelo já então tenente-coronel de engenharia e assinado a 15 de julho de 1865, descreve a fortificação como gozando de uma “mais dilatada vista dos navios que dobram a ponta de São Lourenço”, mas adianta que concorria com pouca eficácia para a defesa da vila (ARM, Arquivos Particulares, 1865). Era descrito, à data, como uma pequena luneta com duas faces e dois flancos, que não admitia mais do que quatro bocas-de-fogo de pequeno calibre. O forte da Graça não voltou a ter obras de beneficiação, sendo entregue, em 1893, à Guarda Fiscal. Tinha então um valor estimado de 800$000 réis. Pouco depois, por escritura de 27 de novembro de 1908, foi entregue à Câmara Municipal de Santa Cruz que o demoliu para ampliação do então passeio público. O pequeno reduto intitulado forte de São Fernando ou São Lázaro deve ter sido construído ao longo dos sécs. XVII e XVIII, provavelmente com base numa das vigias da vila. Deveria estar algo arruinado nos finais do séc. XVIII, como cita Inácio Joaquim de Castro na sua planta de 1799. Em 1820, foi objeto de reparação por Paulo Dias de Almeida, quando foi essencialmente ampliada a bateria para poder levar três bocas-de-fogo. O seu nome proveio de uma capela da área, dedicada a S. Fernando, que já não existia nos finais do séc. XVIII e nos inícios do XIX. Ao mesmo tempo, a casa da guarda do forte encostava-se a uma outra capela, dedicada a S. Lázaro, mas também arruinada nos inícios do séc. XIX, como anotou Paulo Dias de Almeida. O tombo militar de 1865 descreve-o como estando situado “num pontal de rocha basáltica, no flanco direito da enseada da vila de Santa Cruz, avançando sobre o mar entre as torrentes ou ribeiras denominadas de Santa Cruz e da Boa Ventura” (Id., Ibid.). Confrontava então com a estrada geral da vila para o Funchal, e com a antiga estufa de Leandro Tibúrcio de Meneses Cabral. No entanto, António Pedro de Azevedo queixava-se de que o forte tinha uma bateria insignificante, com capacidade para apenas duas bocas-de-fogo (na verdade, na ocasião em que o desenhou, entendeu que seria somente uma), quando na baía de Santa Cruz eram capazes de fundear barcos de qualquer porte, embora por vezes fossem sujeitos a ventos de nordeste que sopravam com violência. A casa da guarda só dava para alojar um fiel de munições e uma guarnição de três homens. Alvitrou então, esse militar, a construção de nova e maior bateria (com efeito, os parapeitos de São Fernando tinham 66 cm de espessura), mais acima, logo, não tão sujeita a ser destruída pelos primeiros tiros de qualquer esquadra. No entanto, não foram efetuadas quaisquer obras. Em 1893, a construção teria um valor de 200$000 réis, encontrando-se arrendada a Manuel de Olival. Voltou a ser arrendada ao mesmo em julho de 1898, após o que foi entregue ao Ministério das Finanças e, depois, à Guarda Fiscal, que ainda ali se encontra. Nos inícios do séc. XVI fora instituído, junto da vila de Santa Cruz, um pequeno convento franciscano, tendo sido seus fundadores os descendentes de Urbano Lomelino, em cumprimento das disposições testamentárias do próprio, de 9 de julho de 1518. O convento teve a evocação de N.ª S.ª da Piedade e estava concluído em 1527, data da entrega à província franciscana de Portugal (Convento da Piedade de Santa Cruz). A edificação de uma defesa na pequena praia junto a este cenóbio foi ordenada pelo bispo-governador D. Fr João do Nascimento, em 1749, tendo sido aplicadas, na construção, as muitas multas que pagavam as ordenanças pelas faltas de serviço de vigia. Em 1752, foi nomeado capitão deste forte, designado de São Francisco, António Rodrigues Martins. No entanto, em 1865, no tombo militar da mesma fortaleza, António Pedro de Azevedo escreveu que “parece ter sido na primitiva mandado fazer em 1632 pelo bispo D. Jerónimo Fernando, denominado Apóstolo Bravo, para defender dos piratas o antigo convento de S. Francisco, que lhe fica próximo e de que hoje apenas existem as paredes” (Id., Ibid.). Este engenheiro descreveu o forte como sendo constituído por uma pequena bateria semicircular de duas peças, dois telheiros e uma casa para o governador. Acrescentou ainda que a casa que servia de alojamento ao governador estava então reparada, apesar de se encontrar muito exposta às intempéries. Confrontava com terrenos do morgado das Cruzes, Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880) e valia, à data, cerca de 1$500 réis. Esteve de certa forma abandonado, ao longo da segunda metade do século e foi vendido à edilidade, em 1877, para a instalação da cadeia da comarca, mas pensamos que esta não se concretizou à época. A responsabilidade pelo forte de São Francisco continuou na área militar até 1924, data em que, porque provavelmente abandonado pela edilidade havia alguns anos, se encontrava parcialmente em ruínas, tendo sido então desenhado e levantado por Joaquim Vasconcelos de Gouveia e pelo capitão engenheiro Carlos Venceslau Sardinha. Em causa estava um novo pedido da Câmara de Santa Cruz para ali ser instalada a cadeia comarcã, voltando a ser feito o levantamento e certificadas as confrontações, encontrando-se o forte, a 29 de junho de 1939, entre a estrada para Machico e os terrenos de “Dona Luísa F. Lomelino”, ou seja, a escritora D. Luísa Grande de Freitas Lomelino (1875-1945), neta dos morgados das Cruzes (DSIE, Gabinete..., n.º 5517, 1A-12A-16). O forte, com uma área de 329 m2, veio a ser vendido à Câmara ainda nesse ano ou no seguinte e, nos meados de 1974, foi cedido a algumas famílias dos chamados retornados – Portugueses empurrados das ex-colónias quando estas se tornaram independentes – para residência precária. Classificado com o congénere de São Fernando, com as obras de ampliação do aeroporto, em 1983, foi demolido, tendo o processo de classificação de ser anulado.     Rui Carita (atualizado a 31.01.2017)

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