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pacheco, antónio aires

António Aires Pacheco Nasceu em São Bartolomeu de Vilarouco, concelho de São João da Pesqueira, distrito de Viseu, a 15 de setembro de 1854. Cursou Teologia no Seminário do Funchal e foi ordenado sacerdote, em agosto de 1880, pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto (1835-1911), que o levou para a Madeira aquando da sua tomada de posse efetiva da Diocese, em 1877. Exerceu as funções de professor e vice-reitor do Seminário Diocesano e foi elevado à dignidade do canonicato em 1888. De 1882 a 1889, foi redator do semanário madeirense A Verdade que, a partir de 14 de abril de 1883, ostenta como subtítulo: “Semanário religioso, polémico e noticioso”. Este órgão da Associação Católica do Funchal não refere no cabeçalho o nome do redator, mas o Elucidário Madeirense afirma-o e o próprio semanário, numa pequena notícia no n.º 524, de 24 de agosto de 1885, à página 3, informando o regresso ao Funchal do P.e António Ayres Pacheco, vindo de Santana, refere-o nessa função; também o n.º 568, de 21 de julho de 1886, ao noticiar, na página 1, a realização de exéquias na Sé do Funchal por alma do Maj. Daniel Simões, professor do Liceu, informa que o pregador será o P.e Ayres Pacheco, “redator principal desta folha”. Exerceu ainda o cargo de diretor espiritual da Associação Católica do Funchal, que fora criada a 21 de junho de 1874, e que passou a publicar o referido semanário a partir de 10 de Fevereiro de 1875. O envolvimento do semanário em muitas polémicas – com a imprensa local, com o alferes César de Freitas e até com o Cón. Filipe José Nunes, em vários artigos não assinados e que portanto deveriam ser da autoria do redator – terá possivelmente ditado a partida do então já cónego da Sé do Funchal para Lisboa. Efetivamente, a 4 de junho de 1897, pediu a demissão das funções de cónego da Diocese do Funchal, passando a estar incardinado no Patriarcado de Lisboa, onde começou a exercer as mesmas funções em outubro de 1901. Foi ainda capelão e mestre-de-cerimónias da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, bem como desembargador da Relação e Cúria Patriarcal. A 19 de janeiro de 1912, é-lhe passada carta de pároco encomendado para a freguesia de Nossa Senhora das Mercês. Entre 1912 e 1923, foi, por diversas vezes, vigário-geral interino e provisor do Patriarcado. Distinguiu-se como orador sagrado, tendo pregado em diversas localidades, nomeadamente Funchal, Lisboa, Porto e Barcelos, merecendo especial destaque as orações fúnebres proferidas nas exéquias do Rei D. Luís, na Sé do Funchal, no dia 29 de novembro de 1889, e nas exéquias do Rei D. Carlos e do príncipe Luís Filipe, a 25 de abril de 1908, no Mosteiro dos Jerónimos. Foi também notável a sua ação como polemista católico, com o opúsculo O Sudário Negro no Banco dos Réus, em resposta ao folheto O Sudário Negro ou Apontamentos para a Biografia de D. Manuel Agostinho Barreto Bispo do Funchal, publicado pelo jornalista Frederico Pinto Coelho (1851-1916) em 1881, e ainda com um opúsculo em defesa de D. António Mendes Belo, no qual apresentou vários documentos relativos à expulsão do patriarca de Lisboa. Para além disso, colaborou nos jornais A Época e Novidades. Foi-lhe atribuída a comenda da Ordem de São Tiago. Faleceu em São João da Pesqueira, a 3 de novembro de 1946. Obras de António Aires Pacheco: O Sudário Negro no Banco dos Réus (1882); El-Rei D. Luís I. Oração Fúnebre (1890); No Templo dos Jerónimos. Oração Fúnebre Proclamada nas Exéquias de El-Rei D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luís Filipe, Mandada Celebrar pelo Governo no dia 25 de Abril de 1908 (1908); A Expulsão do Senhor Patriarca D. António I. Documentos para a História da Perseguição Religiosa em Portugal (1912).     Gabriel Pita (atualizado a 19.12.2017)

Religiões

sé do funchal

A Sé do Funchal é o mais importante conjunto patrimonial religioso da Madeira. Construída e sagrada como tal na época áurea da expansão portuguesa e europeia, foi dotada com aquilo que de melhor o rei de Portugal pôde enviar para a Ilha e que, nos anos seguintes, os seus quadros, ou seja, bispo, cabido e demais ministros eclesiásticos, mas também a população, através das confrarias e de ações individuais, preservaram e aumentaram. Contingências várias proporcionaram que conseguisse chegar aos nossos dias com as linhas gerais com que foi construída nos primeiros anos do séc. XVI e com o principal equipamento com que foi inicialmente dotada, por D. Manuel I (1469-1521), o que não aconteceu com as suas congéneres continentais, espelhando interiormente as várias épocas e devoções, bem como a maior parte da história da Madeira. Sé do Funchal. Vista da nave central. Foto: BF A necessidade de construção de uma nova igreja para o Funchal fez-se sentir logo pelos meados do séc. XV, dado o desenvolvimento populacional e económico dessa então vila. A determinação surgiu em 1486, com a subida à administração da Ordem de Cristo do à data duque D. Manuel, escolhendo-se o antigo “chão do duque” seu pai, até então utilizado para experiências de plantio das várias espécies de cana-de-açúcar, para se edificar uma câmara e paço de tabeliães, uma “igreja grande” e uma praça para o pelourinho, denominado “picota” (Urbanismo; Pelourinho). A situação de instabilidade das coroas de Portugal, Castela e Aragão, face à delimitação das áreas de influência ultramarina, protelou as obras da igreja, acontecendo o mesmo localmente, dados os custos que tal empreendimento representava para a população e até porque, pouco tempo depois, também estava em construção o convento de Santa Clara. Os oficiais do concelho insistiam que seria mais fácil e económico construir a “igreja grande” como ampliação da de N.ª Sr.ª do Calhau, ou como ampliação da da Conceição de Cima, onde estaria para se fazer o convento de S.ta Clara. O impasse levou, inclusivamente, a que, nos finais de 1488, na vereação de 28 de dezembro, o capitão do Funchal ameaçasse não participar na reunião camarária se os oficiais não respondessem à carta do duque sobre “o fazimento da sé em baixo” (ARM, Câmara Municipal..., liv. 1299, fl. 53v.); de facto, somente acedeu depois de lhe garantirem que já havia sido dada a resposta afirmativa ao contador do duque. Saliente-se que o capitão do Funchal já utiliza a designação de “sé”, sinal que a instituição da Diocese era assunto assente em 1488, provavelmente com base nas cartas de D. Beatriz e do vigário de Tomar, escritas quase 10 anos antes, quando, em janeiro de 1477, o bispo de Tânger, D. Nuno de Aguiar, pretendeu incluir a Madeira na sua diocese e visitar a Ilha. Nessa data, a infanta escreveu, em nome do “dom” prior de Tomar, e o mesmo fez o secretário da Ordem de Cristo, não autorizando o bispo a entrar na Ilha e exortando a população a que não se “agastasse”, pois “cedo, com o favor divino, esperava el-rei, nosso senhor, criar bispo da mesma Ordem na Ilha” (COSTA, 1995, 36). As cartas foram presentes à vereação camarária de 1 de junho seguinte, realizada em N.ª Sr.ª do Calhau. Nessa data ainda reinava D. Afonso V (1432-1481) e, em 1488, reinava D. João II (1455-1495), existindo já um herdeiro para o trono, o infante D. Afonso (1475-1491). Logo, foram escritas e remetidas numa altura em que o duque D. Manuel não tinha em mente a possibilidade de vir a ser rei. Nesse quadro, só depois da subida ao trono de D. Manuel, em 25 de outubro de 1495, se começou a pressionar decisivamente para a executar as obras da nova igreja e só com a definição concreta da Coroa portuguesa no quadro ibérico se passou a contemplar um projeto mais alargado, de criação de uma diocese, o que se equacionava havia mais de 20 anos. O rei D. Manuel era primo direito da rainha de Castela, Isabel, a Católica (1451-1504), casada com Fernando de Aragão (1479-1516). Com o falecimento do infante D. Afonso, filho de D. João II e legítimo herdeiro da coroa, subiu ao trono D. Manuel, que se casou com a viúva do infante, filha mais velha dos Reis Católicos, pelo que, em 1498, o casal chegou a ser jurado herdeiro dos tronos de Castela e de Aragão. Entretanto, falecendo a rainha de parto e, pouco depois, o jovem príncipe, a sucessão dos senhorios desses reinos ibéricos passou para a outra irmã e para o filho, o futuro imperador Carlos V. Mas, mantendo-se em Roma o papa Alexandre VI (1431-1503), nascido Rodrigo de Bórgia e que fora arcebispo de Valência, especial defensor dos interesses dos Reis Católicos, foi preciso aguardar mais algum tempo para poder negociar a criação de uma diocese ultramarina em Portugal. O rei D. Manuel, a partir de 1500, iniciou um programa de reestruturação administrativa geral da ilha da Madeira, começando por criar, em dezembro de 1501, com o falecimento do segundo capitão-donatário, em março desse ano, a vila da Ponta do Sol e, em julho de 1502, a vila da Calheta, desmembrando, assim, o espaço administrativo do Funchal. No entanto, a 16 de agosto de 1502, cativou as imposições das vilas recém-criadas para fazer face às obras da nova igreja do Funchal. Estando levantadas as paredes desta igreja em 1508, data em foram benzidas por D. João Lobo, bispo de Tânger, elevou o Funchal a cidade, a 21 de agosto do mesmo ano, iniciando os contatos para a criação, na nova cidade, da diocese dos Descobrimentos. As despesas de manutenção do culto religioso eram da responsabilidade geral da Ordem de Cristo, mas a sua definição precisa levou algum tempo a ser determinada. Cobrando a administração da Ordem o dízimo eclesiástico, cabia-lhe o pagamento da manutenção do clero e do culto, mas com o desenvolvimento da comunidade e a diversificação das fontes de rendimento, houve que especificar concretamente as responsabilidades. À Ordem de Cristo e então à coroa passou a corresponder o pagamento das côngruas do clero, o projeto geral das novas igrejas e o acervo e manutenção da capela-mor, ou seja, altar, retábulo e principais alfaias religiosas, tal como o serviço dessa capela e da sacristia. Cabendo à coroa a coordenação geral do projeto, ficando prontas as capelas colaterais da futura sé, em agosto de 1508, o rei determinou a sua venda, para, com o dinheiro das mesmas, continuar as obras. Definia-se assim o modelo de financiamento do culto, com a coroa a pagar, através da Alfândega, as despesas gerais do clero e do culto, mas os habitantes, em nome individual ou através das confrarias, a pagarem o serviço das restantes capelas. Com a instalação de uma fábrica com verbas próprias e responsável pela manutenção geral do edifício, veio a atribuir-se à mesma também os dinheiros obtidos com os enterramentos, situação com a qual, juridicamente, nem todos os analistas estiveram de acordo, dado que fora a população que pagara o corpo da igreja (Cemitérios). Os serviços religiosos começaram a funcionar na nova igreja em 1512, data em que também foi referida a necessidade de cativar verbas para o retábulo, devendo o mesmo estar a ser montado com o cadeiral dois anos depois. Esta informação coloca em causa a longa tradição histórica das “ofertas” do magnânimo rei D. Manuel, pois grande parte das obras acabou por ser paga pelos rendimentos da Ilha e pelos vários impostos criados especialmente para esse efeito. Mais tarde, quando D. João III mandou entregar ao cabido do Funchal, em 1528, o conjunto de alfaias encomendadas pelo pai, do qual faz parte a magnífica cruz processional, as mesmas vieram acompanhadas do peso da prata e da conta “do feitio” de cada peça (ANTT, Cabido..., avulsos, mç. 7), com certeza, para tudo ser descontado nas contas da fábrica da sé. A 12 de junho de 1514 a igreja foi elevada a sé por bula do papa Leão X e a 2 de agosto ainda se trocava correspondência sobre como rematar a torre. O cadeiral para o coro da capela-mor estava a ser montado nos meados ou finais desse ano, pois D. Manuel, em carta de 27 de fevereiro de 1515, a pedido da Câmara, autorizava que o coro se não fizesse na capela-mor, o que acabou por não ter efeito, dado que o mesmo se manteve nesse local, já devendo estar, então, em adiantado estado de montagem. Tudo devia estar concluído a 18 de outubro de 1517, quando o altar-mor foi sagrado por D. Duarte, bispo de Dume, por delegação do bispo do Funchal, D. Diogo Pinheiro, em nome da “Beatíssima Virgem Maria e das Onze Mil Virgens” (APEF, Documentação de sagração...). O projeto da nova igreja deve ter vindo de Lisboa ou de Tomar, sede da Ordem de Cristo, nos meados da déc. de 80, quando o duque D. Manuel começou a cativar as verbas para a futura construção ou, mais provavelmente, por volta de 1492, quando enviou para o Funchal um escrivão para a obra, Marcos Lopes, depois elevado a escudeiro da casa real e mamposteiro-mor dos cativos e que se fez enterrar na sé. Por essa altura, sensivelmente, deve ter ido também para o Funchal um mestre-de-obras, João Gonçalves, embora só tenhamos conhecimento da sua existência em 6 de junho de 1503, quando se deslocou a Lisboa, “por causa da mãe”, provavelmente doente e foi apresentar ao rei D. Manuel o estado da construção da então “igreja nova” (ANTT, Corpo Cronológico, Fragmentos, doc. 7). O mestre João Gonçalves era pago através do capitão do Funchal, superintendente das alfândegas, mas não voltamos a ter informações a seu respeito, pelo que não deve ter voltado à Madeira. A igreja, no entanto, estava sumariamente levantada por volta de 1508, como antes afirmámos, ano em que foi sagrada por D. João Lobo, bispo de Tânger e quando o rei mandou colocar à venda as capelas colaterais, tal como referimos, para com o dinheiro continuar as obras, tudo assuntos que acabaram por ficar ao cuidado do vigário frei Nuno Cão (c. 1460-1530), correndo os pagamentos pela fazenda régia, com uma interferência mínima por parte do capitão do Funchal. Entre 1514 e 1517 voltamos a ter informações da direção geral das obras, encontrando-se as mesmas entregues a Pêro Anes, “mestre das obras de Sua Alteza” e “mestre da carpintaria” da sé e da Alfândega (ANTT, Núcleo Antigo, doc. 764). Temos, assim, nesses anos, uma profunda alteração da situação, com um mestre das obras reais de carpintaria à frente destas empreitadas, como era habitual no continente, passando os mestres pedreiros a seus subordinados. A superintendência de Pêro Anes sobre as obras da sé parece confirmada na assinatura de mestre: um compasso de pontas que aparece nas paredes da antiga capela do Amparo e na porta da antiga sacristia, sob a torre da sé, em tudo semelhante às que constam na documentação dos arquivos camarários do Funchal onde assinou pareceres. Para além de inúmeros carpinteiros, do mestre das obras reais Pêro Anes terá dependido Gil Enes, que mais tarde se fez enterrar na Serra de Água como “mestre pedreiro da sé” (NORONHA, 1996, 135-136). Ao contrário, o mestre das obras reais Pêro Anes seria enterrado na sé, entre 1536 e 1538, data provável do seu falecimento e, muito mais tarde, em 1579, a sua viúva, Isabel Gonçalves, ainda era referida como “mestra da sé” (ARM, Registos Paroquiais, Sé, Óbidos, liv. 5, fls. 83v. e 100), sinal da fama de longa duração que o marido, mestre Pêro Anes, gozara. A Sé do Funchal é uma igreja de três naves com transepto somente definido em planta, com ampla nave central e largo transepto, o mais largo das catedrais portuguesas. De tudo isto resulta uma edificação clara e luminosa, destacando-se também a inteligência e singularidade da aplicação dos materiais locais que caracterizam o modelo corrente português de arquitetura chã, uma arquitetura despojada, repetida e apurada na infinita variação local de igrejas mais ou menos comuns, mas algumas depois instituídas em sés. Teto da capela-mor. Foto BF O aumento da dimensão da nave central e do transepto apontam já o decidido propósito ducal ou real de a tornar, futuramente, sede do bispado dos Descobrimentos. A cobertura das naves e do transepto por um magnífico conjunto de tetos mudéjares (Tetos de alfarge), o mais monumental que chegou aos nossos dias em Portugal, tal como a montagem, na capela-mor, de um aparatoso retábulo e de um cadeiral, evidenciam, decididamente, o intento manuelino de levantar uma igreja primaz das Índias Orientais e Ocidentais. O conjunto da Sé do Funchal assenta numa plataforma nivelada, constituída por um adro gradeado, razoavelmente amplo, com a fachada principal virada a poente, aspeto obrigatório até ao Concílio de Trento, localização onde se veio a colocar a estátua do papa João Paulo II, que aí esteve em 12 de maio de 1991. O pano central é totalmente em cantaria vermelha aparente do cabo Girão, ligeiramente relevado em relação aos laterais, com um pequeno portal de seis arquivoltas, envolvido por arco relevado, rematado superiormente pelo que parece ser uma copa ou uma custódia, encimada pelas armas de D. Manuel com coroa aberta. Superiormente, apresenta uma pequena rosácea com grilhagem radiante centrada numa pequena cruz de Cristo, sendo rematada por cimalha de cantaria e, igualmente, pela cruz de Cristo. Os panos laterais são cegos, caiados e estão rematados, lateralmente, por fortes cunhais de cantaria aparente. As fachadas laterais das naves apresentam quatro janelas em forma de fresta, que se repetem no clerestório, ou seja, na parte superior da nave central, aí com colunelos decorados, de que restam vestígios, e existe um largo janelão quadrangular a iluminar o batistério, a norte, provavelmente, algo posterior. Todas as janelas são da construção inicial, embora as paredes tenham sido reforçadas nas obras de 1790 para a reposição dos altares das confrarias, nessa altura, foram feitos os portais neoclássicos, atribuíveis ao pintor e arquiteto de origem canária António Vila Vicêncio (c. 1730-1796), então mestre das obras reais. O adro serviu também de cemitério, talvez nos meados do séc. XVIII, quando se limitou ao máximo os enterramentos no interior dos templos, aparecendo quase sempre restos de ossadas quando se processam obras nessas áreas. No lajeamento, foram utilizadas algumas pedras tumulares provenientes do interior da sé, mas a maioria das inscrições terão sido bujardadas. Escapou um pequeno fragmento na área norte, com escrita gótica, mas quase impossível de ler, provavelmente, é das mais antigas lápides da sé. Para os degraus da porta sul também foram utilizadas lápides sepulcrais antigas, uma das quais muito curiosa, porque dupla. A inscrição refere ser da sepultura de Manuel Vieira Jardim, mulher e herdeiros, e de Pedro Vaz, mercador e, igualmente, mulher e herdeiros, tudo famílias de cristãos-novos dos meados do séc. XVI. A sua colocação fora do edifício da sé e como degrau da porta parece indiciar que, mesmo nos finais do séc. XVIII, o estigma de cristão-novo se mantinha. O transepto tem um grande impacto visual e apresenta janelões, já de alguma dimensão, nas paredes laterais, tendo o virado a poente, do braço norte, capitéis com esferas armilares; os do braço oposto são mais simples e, um deles, foi aberto em campanha de obras bastante posterior. As fachadas sul e norte têm pequenas rosáceas, semelhantes à da fachada poente. O janelão poente do braço norte do transepto ainda apresenta, interiormente, moldura polilobada de tradição tardo-gótica que deverá ter tido correspondência no braço sul, mas que sucessivas obras de reabilitação terão feito desaparecer. A cabeceira apresenta-se toda em cantaria aparente e é composta por abside de topo facetado, com quatro contrafortes repostos nas campanhas de obras dos meados do séc. XX, altura em que foram também repostas as frestas de arcos apontados, então dotadas de vitrais de Joaquim Rebocho (1912-?), datados de 1959. O absidíolo da atual capela do Santíssimo é igualmente reforçado por contrafortes escalonados, rematado por uma grelha decorada com cruzes de Cristo e encimada por grandes pináculos torsos, sendo o remate da inicial capela de Santiago, a norte, uma reposição conjetural, efetuada na campanha de 1950. A direção das obras gerais de levantamento das paredes da sé e da torre parecem ter sido da responsabilidade do mestre João Gonçalves, entre 1492 e 1503, ano em que se deslocou a Lisboa, como referimos, e parece não ter voltado à Ilha. No entanto, nos anos seguintes, a direção foi assumida por Pêro Anes que, além das obras da sé, se encarregou, a partir de 1514, das da alfândega (Alfândega nova). Destes factos, resultam duas leituras totalmente diferentes da sé: exteriormente, vemos um edifício fechado e marcadamente de uma ordem militar, em especial, na desmesurada torre sineira medieval, coroada com ameias e merlões piramidais, e interiormente, um elegante e luminoso conjunto, sobretudo na articulação das altas colunas de suporte dos magníficos tetos de alfarge. Torre da Sé. Foto BF. A torre, elevando-se a cerca de 55 m de altura, possui quatro pisos com cobertura de abóbadas nervadas e janelas para nascente, sendo o último ocupado pelos sinos, com sete janelas sineiras. O pequeno terraço superior sobre o andar dos sinos encontra-se praticamente rematado ao gosto dos castelos medievais templários, indiciando uma campanha de obras de um mestre diferente daquele que executou o coruchéu quadrangular piramidal, assente sobre oito arcos góticos com capitéis decorados com motivos vegetalistas e revestido de azulejos sevilhanos, por certo, obra da campanha seguinte, de Pêro Anes. O acesso exterior é hoje feito por uma pequena porta de arco apontado, acedida por um lanço de escadas adossadas, reconhecendo-se as estreitas escadas de caracol interiores de acesso aos vários pisos pela sequência das pequenas frestas de iluminação. Esta torre marcou ainda toda a história urbana da cidade pelo seu impacto visual, e a regional, dado ter servido de prisão a inúmeros eclesiásticos nas complicadas questões que opuseram os prelados ao clero local. Na junção superior com o braço do transepto, que corre à mesma face, resiste uma gárgula, em forma de canhão de corpo helicoidal, porventura a única gárgula que resta das campanhas iniciais do edifício. O coruchéu de remate da torre, revestido a azulejos das oficinas de Sevilha, foi mandado levantar em agosto de 1514 pelo rei D. Manuel. O remate superior, no entanto, é uma reposição de outubro de 1601, dado o original ter sido derrubado por um temporal, ocorrido a 28 de dezembro de 1591, tendo a grimpa, na queda, provocado importantes estragos na cobertura da abside. A reposição utilizou já azulejos de produção nacional e a nova grimpa não reaproveitou os pesados materiais da anterior, com quase 100 kg, em ferro e cobre, entretanto vendidos, mas repetiu em linhas gerais, por certo, a sua forma inicial, rematada por esfera armilar e catavento. O acesso principal da sé é feito por um para-vento montado na campanha de obras de 1790 a 1794, altura em que foi construído o coro sobre a entrada. As pesadas portadas da entrada principal da sé não são já as de origem, pois foram remontadas em 1652, pelo carpinteiro Manuel Afonso, com cedro vindo da Ponta do Sol, tendo-se utilizado também antigas madeiras, que pertenciam à fábrica da igreja e que repetem, em desenho inciso, as decorações do teto mudéjar. Face ao desenho de raiz islâmica, podemos afirmar que se trata de um trabalho contemporâneo dos magníficos tetos que cobrem quase toda a igreja, pois, poucos anos mais tarde, com a entrada da Inquisição em Portugal e as diretivas do Concílio de Trento, não era possível executar um trabalho do género. A dificuldade de o observar, dado o contraste da luz interior com a exterior terá possibilitado que chegasse aos nossos dias. A entrada dá acesso ao batistério, a norte, dotado de interessantes arcos de cantaria e abóbada de nervuras manuelina, tendo, no interior, a pia batismal, em calcário-brecha da serra da Arrábida. A Coroa manuelina estabeleceu um quase monopólio sobre as correspondentes pedreiras, pelo que os vários elementos neste tipo de calcário que existem na sé devem ter vindo das oficinas reais da área de Setúbal. Embutido na parede, existe um pequeno armário; nas paredes superiores do batistério, encontram-se pintadas as armas reais e uma esfera armilar; em princípio, tudo contemporâneo das primeiras décadas de vida da sé. No lado sul, encontra-se um compartimento semelhante em dimensões, igualmente com um interessante arco manuelino, rematado superiormente por esfera armilar, que dá acesso às escadas para o coro. O arco parece ser, decididamente, manuelino, embora conste nos cadernos das obras de 1790 como tendo sido levantado apenas então. Deve, assim, ter sido remontado de uma estrutura anterior, pois apresenta todas as características estilísticas e materiais dos inícios do séc. XVI. Na campanha de obras de abril de 1755, para esta área e para a das portas laterais, já no interior, quando a sé foi quase toda assoalhada, a maioria das lápides sepulcrais que existiam dispersas pela igreja foi transferida, referindo-se que se deveriam aproveitar as que se encontravam em melhor estado. Para a entrada foi transferida uma lápide das esculpidas em pedra azul-escura, muito semelhante às chamadas “pedras azuis” de Hainaut, na Bélgica, rematadas por inscrições laterais, que, aqui, infelizmente, se perderam; ainda assim, o grupo de lápides da sé, remontado nas juntas das portas laterais, é o maior que se regista em Portugal (Lápides sepulcrais). O interior da Sé do Funchal é definido por um conjunto de dupla e elegante arcaria de finas colunas góticas decoradas com capitéis esculpidos, delimitando uma alta nave central iluminada por frestas, sendo os tetos elaborados em madeira de cedro insular (juniperus oxycedrus). O conjunto destas complexas armações de carpintaria de alfarge, que referimos atrás, chamados “tetos mudéjares” ou “de alfarge”, é, como notámos antes, o maior existente em território nacional. Esta ampla campanha de obras deve ter ocorrido sob a direção de Pêro Anes, “mestre das obras de Sua Alteza”, tal como indicámos, que, por volta de 1514 e já na direção das obras da Alfândega, estava à frente de uma larga equipa de carpinteiros, onde, a par dos seus três criados – Bartolomeu, Brás e Cosmo –, tinha sob as suas ordens mais de dezena e meia de carpinteiros, serradores, ajudantes e, inclusivamente, escravos. O conjunto da capela-mor da Sé do Funchal é uma “joia da coroa” da Região, dado ser o único conjunto manuelino de altar, retábulo e cadeiral que chegou aos nossos dias no seu local original. A estrutura geral da capela estava pronta em 1508, data da bênção do templo e em que foram colocadas à venda as capelas colaterais, tal como expusemos antes. A capela abre com um arco triunfal polilobado, sendo coberta por uma abóbada de nervuras de três tramos, com as armas de D. Manuel na última chave, cruz de Cristo e esfera armilar nas outras chaves, e os capitéis de arranque dos arcos das abóbadas com decoração zoomórfica e antropomórfica bastante cuidada. Todo o conjunto se apresenta profusamente pintado e dourado, o que será especialmente fruto da campanha de obras dos meados do séc. XVIII, da oficina de António Vila Vicêncio, que parece ter-se deslocado das Canárias para efetuar este trabalho, acabando por se radicar no Funchal.   Este complexo foi sofrendo reabilitações ao longo dos séculos, adaptando-se, inclusivamente, às alterações litúrgicas, mas manteve, no essencial, a articulação geral dos inícios do séc. XVI e, muito especialmente, o mencionado conjunto do primitivo altar manuelino, recuperado nos finais do séc. XX, dado nos finais do XVI, em princípio, ter sido incluído no altar tridentino, tal como o retábulo e o cadeiral manuelinos. Deve datar dos finais do séc. XVI ou dos meados do XVII a construção de uma cripta sob o altar, onde passaram a ser sepultados os prelados que foram falecendo na diocese, embora tivessem sido muito poucos e somente um se encontre identificado no exterior da sepultura: D. Fr. António Teles da Silva, 11.º bispo do Funchal, falecido em 1682. Deve datar de 1512, de quando o serviço religioso do Funchal foi transferido para a nova igreja, a assunção, pela corte de D. Manuel, das responsabilidades da elevação da nova igreja principal a sé, assunto que fora equacionado havia mais de uma dezena de anos, tal como expusemos atrás, e que ficou patente, também nessa data, na cativação de dinheiro para o futuro retábulo. Nestes anos, o retábulo português conheceu uma especial evolução iconográfica, tornando-se num políptico rígido, enquanto na Flandres e mesmo em Castela se mantiveram os painéis articuláveis, adaptando-se à planta do topo das absides. Cadeiral da Sé. Foto: BF                Retábulo-mor. Foto BF O retábulo do Funchal é constituído por cinco corpos, dispostos em três andares e rematado superiormente por um sobrecéu com francas afinidades com o do cadeiral, tendo ao centro as armas de D. Manuel, ladeadas por duas esferas armilares. O corpo central do políptico terá sido ocupado, inicialmente, por três conjuntos escultóricos, dos quais resta, in loco, somente o sacrário, no corpo inferior. O corpo intermédio está ocupado, neste início de milénio, por uma monumental imagem da N.ª Sr.ª da Assunção ou da Conceição, de uma oficina continental do séc. XVIII e o registo superior foi, entretanto, preenchido com um crucifixo, em memória do Calvário desaparecido. O conjunto das 12 pinturas a óleo ao gosto flamengo encontra-se dividido de acordo com as orientações iconográficas religiosas então seguidas: o primeiro registo, com cenas do Antigo Testamento e da Paixão de Cristo; o registo médio, com temática mariana, evocação do orago da Sé do Funchal e de todas as congéneres portuguesas; o registo superior, as representações finais da Paixão, com a Descida da Cruz e a Ressurreição. A oficina régia encarregada desta empreitada continua por esclarecer, sendo a opinião mais corrente, já na passagem para o séc. XXI, a de que houve uma parceria alargada na execução dos vários painéis, mantendo-se a atribuição de ao incógnito Mestre da Lourinhã. Para além dessa oficina, devem ter trabalhado outras duas, não sendo de excluir a hipótese de uma delas ser a de Francisco Henriques (c. 1460-1518), ou alguns elementos que estavam ligados à mesma, tendo sido ela que, por volta de 1500, terá trabalhado na matriz da Ribeira Brava. As pinturas foram executadas no continente, segundo um programa iconográfico certamente proposto pelo grão prior da Ordem de Cristo, em Tomar, o futuro bispo do Funchal, D. Diogo Pinheiro (1437-1525), que cuidava no despacho régio, e aprovado pelo rei D. Manuel. A equipa que se deslocou ao Funchal para a sua montagem na máquina retabular terá sido a mesma que executou o cadeiral, dadas as afinidades do trabalho geral de talha; mas comportaria vários entalhadores, como está patente nos pormenores esculpidos, podendo, um ou outro dos oficiais de talha do retábulo não terem trabalhado no cadeiral e vice-versa. O coro de uma grande igreja era essencialmente definido, ao longo da Idade Média, pelo cadeiral onde os vários clérigos rezavam e celebravam os ofícios em conjunto e era praticamente sempre nos presbitérios ou capelas-mores. Tratava-se de um espaço fechado à igreja e onde decorriam, inclusivamente, as reuniões mais importantes do cabido, tendo o rei D. Manuel, em 1517, proibido os leigos de entrarem na capela e coro da Sé do Funchal. A parede do cadeiral que fechava a capela-mor apresentaria duas portas laterais, pois o centro deveria ser ocupado pela cátedra episcopal. O cadeiral do Funchal foi alterado em 1587 e em 1588, talvez na sequência dos desmandos ocorridos durante o saque corsário de 1566 e, muito especialmente, como consequência da implantação das diretivas de Trento, na vigência do bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos (1544-1608), altura em que foram retiradas “umas cadeiras do coro, que não serviam” (FERREIRA, 1963, 249). Tudo leva a crer que o trabalho da montagem do retábulo e da execução do cadeiral da “igreja nova”, a, em breve, Sé do Funchal, tivesse sido executado pela equipa do mestre Machim Fernandes, dadas as semelhanças existentes com o cadeiral da colegiada de Santa Cruz de Coimbra, onde o mesmo trabalhara entre 1512 e 1513 (Cadeirais). Este mestre, de provável origem alemã e talvez de nome Maximiliano, fora contratado em Toledo, juntamente com o “carpinteiro de Tomar” João de Tojal (Sé do Funchal, 2003, 65-67), e estava naquela cidade em fevereiro de 1513, tendo acabado, ambos, as cadeiras dos cónegos da igreja de S. João Batista, em novembro do mesmo ano. Em fevereiro seguinte, os seus trabalhos foram vistos pelo próprio rei D. Manuel, tendo então sido, provavelmente, contratados para seguirem para o Funchal. O largo transepto da sé é definido somente em planta, como já afirmámos, pois é constituído pelo prolongamento da nave central e, lateralmente, por duas capelas independentes, cobertas por elaborados tetos de alfarge. A cabeceira interior da sé, onde se inscrevem os arcos triunfais da capela-mor e das colaterais, apresenta um pano frontal muito amplo, largamente iluminado pelas grandes janelas do transepto e por um pequeno óculo sobre o arco triunfal da capela-mor. Especialmente na capela do Senhor Jesus, os dois janelões permitem uma visão quase luminosa do teto mudéjar, o que não acontece nos restantes espaços da sé, sendo as capelas colaterais dedicadas ao Santíssimo e a N.ª Sr.ª de Lourdes, mas tiverem inicialmente outras evocações. Na capela que depois foi do Santíssimo começou a funcionar, entre 1508 e 1512, a capela de Pedro Gonçalves de Barros e de sua mulher Branca Fernandes, que haviam adquirido esse espaço, cuja evocação inicial se desconhece. Sabe-se apenas que, nos meados do séc. XVI, estava consagrada ao Santíssimo Sacramento, pois o Santíssimo encontrava-se no sacrário do retábulo da capela-mor. Como para esta capela teria sido encomendado, em Antuérpia, um retábulo do Calvário, atribuído a Pieter Coeck van Aelst (1502-1556), é possível que a mesma tenha tido essa evocação, sendo, em 1566, designada do Sacramento e, em princípio, só após o Concílio de Trento, do Santíssimo Sacramento, já sendo assim referida em 1572. A capela passou depois para Manuel de Barros, casado com Maria de Lemos, que terão encomendado um novo retábulo, pintado a óleo, muito possivelmente um tríptico, mas do qual só resta a tábua central, hoje no Museu de Arte Sacra do Funchal (MASF). A manutenção do altar passou depois à filha, Branca de Barros, falecida em outubro de 1621, casada com Francisco Bettencourt de Atouguia e daí aos Barros Atouguia, como registou Henriques de Noronha, família essa que deveria incluir Gonçalo de Barros, falecido a 3 de janeiro de 1613, como consta na sua pedra tumular, que se encontra na entrada da sé. A confraria do Santíssimo da sé não deve datar de muito antes do episcopado de D. Jerónimo Barreto (1543-1589), iniciado em 1573 e prolongado até 1585, quando se registaram, nas Constituições de 1585, as regras gerais por que se deveriam reger as confrarias, de acordo com as diretivas iniciais do Concílio de Trento (Confrarias). Com este prelado deve ter passado a capela do Santíssimo, pois quando chegou ao Funchal o bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos, foi assim referida, na visita que o mesmo lhe fez, na sua entrada solene. Durante este novo episcopado são várias as indicações da existência da confraria, mas a instituição da mesma, com a aprovação dos respetivos estatutos, data do episcopado de D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), concretamente, de 1638, embora também só o saibamos por documentação posterior. Na transição do séc. XVI para o XVII, a confraria do Santíssimo corporizou especialmente os ideais reformistas de Trento, integrando “os homens principais da terra”, que pertenciam também a outras confrarias, “para melhor serviço de Deus e bem das almas” (ARM, Câmara Municipal..., Registo Geral, tombo 7, fls. 86v.-87). Nos meados do séc. XVII, esta confraria ganhou ascendente sobre as restantes, chegando a pedir para os elementos da sua mesa serem dispensados do serviço de vigias e alardos (Vigias). No quadro das ações gerais de afirmação social da confraria do Santíssimo da sé, em 1648, quando presidia o reitor Jorge de Andrade Correia e era tesoureiro Francisco Gonçalves Figueira, a mesa da confraria encomendou à oficina de Manuel Pereira (c. 1605-1679) a mais monumental obra de talha do seu tempo: o conjunto escultórico do camarim da sé. Os trabalhos decorreram entre 1648 e 1654, envolvendo uma vasta equipa, marcando, a partir de então, com a sua montagem e até aos meados do séc. XIX, as festas da Semana Santa no Funchal. A montagem e remontagem sucessiva dos vários andares dessa estrutura, ao longo dos anos, danificou irremediavelmente o conjunto escultórico do camarim, que chegou aos finais do séc. XVIII em muito mau estado. Foram então encetadas várias tentativas de reformulação, o que veio a ocorrer, sob a direção do mestre Estevão Teixeira de Nóbrega (1746-1833), em 1801. No entanto, nos meados do século, estava de novo impraticável de montar, acabando por serem recolhidas, no MASF, as suas peças principais. Com a exposição do trabalho do camarim, as confrarias do Amparo e do Santíssimo devem ter-se abalançado, por pressão do cabido da sé, certamente, a mandar executar os remates de coroamento dos arcos de acesso às respetivas capelas, entre 1660 e 1670. São dois monumentais trabalhos de talha dourada, com os pendentes com dois anjos apresentando coroas de louro e, por cima, um entablamento maneirista, de inspiração arquitetónica, rematado por um frontão triangular e a enquadrar duas grandes telas de dois metros de largura, provavelmente, de uma oficina local. A rigidez dos anjos, no entanto, aponta mais para um dos mestres que trabalhou na oficina de Manuel Pereira do que para o mestre em questão, embora a obra repita o mesmo esquema maneirista geral usado pela oficina. Por estes anos, também, a confraria do Santíssimo ampliou o conjunto de alfaias de prata do seu serviço, encontrando-se algumas documentadas. A maior parte delas foi reformulada depois, dando origem a outras, dentro do costume de fundir as peças mais antigas e já com defeitos, para, com a sua prata, mandar executar alfaias novas (Ourivesaria e prataria). Em 1661, por exemplo, foram realizados vários trabalhos deste teor pelos ourives Simão Lopes, Manuel Fernandes Chita, Sebastião de Afonseca e António de Araújo. A entrega deste tipo de trabalho a vários prateiros adveio do acidente ocorrido em 1658, quando a confraria confiou ao prateiro José Dias Araújo a prata de “dois anos de esmolas que deram os irmãos da mesa” para fazer um sacrário e o mesmo fugiu com a mesma para o Brasil (Sacrários) (FERREIRA, 1963, 214). Sé do Funchal. Sacrário. Foto: BF Na segunda metade do séc. XVIII, a capela do Santíssimo foi reformada já ao gosto rococó, com um novo retábulo de talha onde figuram as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. O autor do risco destas peças foi o mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), que trabalhou sobre uma proposta do entalhador Julião Francisco Ferreira, pois parte dos mesmos trabalhos foi pago pela fazenda régia. Executaram os labores de escultura os entalhadores António José, António João, Manuel Francisco Gomes, o escultor Agostinho José Marques e o limpador João de Nóbrega, que preparou o trabalho para o dourador José António da Costa, também pintor, natural das Canárias e cunhado de António Vila Vicêncio. Os trabalhos decorreram entre janeiro de 1769 e fevereiro de 1772, custando à confraria a importante verba de mais de oito contos de réis. O conjunto apresenta uma certa harmonia, embora dentro do gosto pesado de começo do rococó, com as virtudes, nas paredes laterais, assentes em largas peanhas entalhadas, ladeadas por colunas salomónicas e encimadas por um baldaquino, do qual pende um dossel, também entalhado. O mesmo esquema foi repetido no retábulo, encimado por uma cimalha contracurvada com baldaquino e com uma grilhagem decorativa, entre o rococó e o neoclássico, no topo. O retábulo foi sobrelevado cerca de 20 anos depois, quando se deu a grande reforma dos altares das confrarias, dentro do gosto de transição do rococó para o neoclássico difundido pela oficina do mestre Estêvão Teixeira de Nóbrega, como é patente na própria estrutura retabular. Nessa altura, ter-se-á voltado a dourar e policromar a parte superior do retábulo, como atestam as assinaturas dos pintores Ambrósio Joaquim de Sousa e Jacinto Januário de Vasconcelos, em 1790. Nos inícios do séc. XIX, ainda para esta capela, foram adquiridos os grandes potes de porcelana chinesa da época Kangxi, datáveis de 1680 a 1720, aproximadamente, que tinham pertencido ao bispo D. Luís Rodrigues Villares (c. 1740-1810), falecido na quinta da Nazaré, em 1810 e que teriam vindo do espólio de um anterior prelado. O complexo da confraria do Santíssimo prolonga-se para as traseiras da sé, envolvendo um pequeno pátio interior e, nos sécs. XVIII e XIX, tinha mesmo instalações fora, pois foi necessário alugar um edifício, nomeadamente, para guardar a grande quantidade de peças que constituíam o camarim. As instalações da confraria possuem uma boa sala de reuniões, reformulada em 1732, data em que foi encomendado, em Lisboa, um bom conjunto de azulejos que chegou nesse ano, por intermédio do comerciante Caetano da Costa, registando-se os preços dos mesmos e dos transportes, mas não da oficina que os executou. Estes painéis apresentam cenas campestres e de caça inspiradas em gravuras da época, provavelmente francesas, como era hábito neste tipo de instalações, mesmo no âmbito de instituições religiosas. A capela colateral norte teve inicialmente a evocação de Santiago Maior e à mesma pertencia a tábua flamenga da oficina de Dieric Bouts, o velho (c. 1415-1475), depois transferida para a nova igreja de Santiago, levantada por voto da cidade, na sequência do surto de peste dos inícios do séc. XVI (Voto da cidade). A tábua flamenga em causa é, inclusivamente, anterior à construção da sé, datando o mais tardar de 1475, ano do falecimento de Bouts. Esta capela veio a ser comprada, em 1628, pela confraria de N.ª Sr.ª do Amparo. Tudo leva a crer que a confraria se havia instituído dois anos antes, em 1626, pois foi essa a data em que foi pintada no retábulo. A pintura em questão, um magnífico retábulo flamengo atribuível à oficina de Jan Gossart (c. 1478-1532), dito o Mabuse, dado ser natural de Maubeuge, em França, contém a inscrição “Ano de 1543”, conforme revelou o restauro efetuado nos meados do séc. XX. Trata-se de uma data posterior, em 11 anos, ao falecimento do mestre, mas a obra mantém muitas das características da pintura do mesmo. Assim, será uma obra que ficou inacabada e foi retomada, nos anos seguintes, por elementos da sua oficina. A capela do Amparo é a única que apresenta revestimento cerâmico de azulejos na Sé do Funchal, pois estes existem apenas na torre, em estilo mudéjar, datando de século e meio antes e no anexo da confraria do Santíssimo, montados no século seguinte (Azulejaria). Assim, as paredes laterais da capela do Amparo encontram-se cobertas com painéis de azulejos pseudoenxaquetados azuis e brancos do séc. XVII, tal como as paredes das escadas, mas de um século depois. São painéis de muito boa qualidade, atribuídos à oficina de Bartolomeu Antunes (1668-1753) e datáveis de cerca de 1732, quando a capela foi alterada para se construir a ligação à nova sacristia. Nos finais do séc. XIX, em data que não conseguimos apurar, a evocação da capela passou a ser de N.ª Sr.ª de Lurdes, devendo estar na origem desta alteração o 25.º bispo do Funchal, D. Aires de Ornelas e Vasconcelos (1837-1880), cuja família possuía ligações e contactos em França. Para a capela foi uma imagem realizada por Raphael Verrebout, um célebre escultor à época, ativo entre 1857 e 1880, fundador da Raffl, Delin Frères, em Paris, casa de artigos religiosos que exportou, nesse final de século, milhares de imagens para todo o mundo. Esta capela dá acesso àquela que se veio a designar como sacristia velha, sob a torre, e que perdeu parcialmente as suas funções com a construção da nova, em 1732. É composta por uma abóbada de nervuras e apresenta ainda o antigo lavabo, cuja posição indica que terá sofrido alterações ao longo dos tempos. Para este local foi transferido, nos inícios da República, o retábulo da antiga capela de N.ª Sr.ª do Monte dos Varadouros (Portão dos Varadouros), capela então demolida e que provocou a primeira crise no seio do partido republicano madeirense (República). Trata-se de um retábulo dos primeiros anos do séc. XIX, dentro da linha geral dos existentes nas naves laterais e proveniente de uma das oficinas locais de filiação neoclássica, ficando, logicamente, muito longe da riqueza dos trabalhos montados nas naves ainda nos finais do séc. XVIII. No braço sul do transepto, foi inicialmente levantada a capela de S.ta Ana, da qual restam apenas as pinturas do retábulo. Tudo leva a crer que estas tenham chegado por interferência de António Rodrigues Mondragão, enviado a Lisboa, pela Câmara do Funchal, à aclamação de Filipe II de Castela, primeiro de Portugal. Trata-se de um conjunto de pinturas da oficina de Michel de Coxcie (1499-1592), pintor da especial estima daquele rei, encontrando-se uma assinada, com a indicação “pictor Regi” e a data de 1581. Poucos anos depois, a capela passou a ter a evocação de Senhor Jesus, sendo referida assim em 1585. No século seguinte, o altar foi novamente todo reformulado, mas manteve os painéis de Coxcie no novo e espetacular retábulo. Não possuímos referências documentais sobre a execução da primeira fase deste retábulo, datado de 1677, embora, face às características formais, deva ser atribuído à oficina de Manuel Pereira, figura dominante no panorama da talha dos meados desse século na Madeira. A avançada idade do mestre à data, indica-nos que terá sido assessorado pelo sobrinho Manuel Pereira de Almeida (c. 1648-c. 1706), que o terá concluído, entre 1683 e 1684, registando a documentação que se tratou de um “acrescentamento” (ANTT, Cabido..., liv. 21, fls. 1 e 6v.-7). No entanto, só 10 anos depois se procedeu ao douramento, provavelmente, por se ter aguardado a chegada, de Lisboa, das três grandes telas pintadas a óleo que preenchem o andar superior e que chegaram apenas em 1691, por ventura, vindas da oficina de um dos colaboradores de Bento Coelho da Silveira (c. 1620-1708), oficina que, aliás, trabalhou para a Madeira (Igreja e recolhimento do Carmo), Essas três telas repetem parte do forte colorido daquele mestre, mas as figuras nelas representadas revelam alguns defeitos anatómicos. Nesta capela, foram montadas as imagens do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, devoções excecionalmente divulgadas nos primeiros anos do séc. XX. A imagem de Jesus é um modelo do já referido escultor Raphael Verrebout, das oficinas Raffl, Delin Frères, de Paris, dos finais do séc. XIX ou inícios do XX, quando esta casa já havia mudado de proprietário: a do Imaculado é da oficina de Porto de Pereira d’Abreu, Filhos, decididamente, já dos inícios do séc. XX. Anexa a esta capela e à do Santíssimo, existe ainda a capela de N.ª Sr.ª dos Anjos, que teve aprovação eclesiástica em 1689 e foi instituída pelo comerciante Manuel Gonçalves de Freitas, homem de confiança do cabido da sé. Esta capela, que veio a fazer parte da sacristia da do Santíssimo, à época e como refere a petição do instituidor, pertencia à sacristia da capela do Senhor Jesus. O retábulo de N.ª Sr.ª dos Anjos apresenta uma boa pintura, datada de 1688, de uma oficina de Lisboa, tendo um enquadramento simples, mas bem entalhado, que deve ter sido também executado por Manuel Pereira de Almeida ou por algum dos seus colaboradores. No braço norte do transepto foi instituída a capela de S.to António pelo navegador Álvaro de Ornelas e sua mulher Branca Fernandes de Abreu. Álvaro de Ornelas faleceu em 1526 e foi ali sepultado, assinalando-o uma magnífica laje em calcário-brecha da serra da Arrábida que indicia muito bons contatos com as cortes de D. Manuel e D. João III. O instituidor, em testamento de 1517, menciona que a capela se encontra levantada e possui capelão privativo. Portanto, por essa data, haveria um altar, dotado, pelos finais do mesmo século, de pinturas óleo, pois ainda ostenta quatro tábuas muito semelhantes às de Michel de Coxcie que estão no altar fronteiro, sendo, assim, de data próxima a 1581. Com a reformulação do monumental retábulo do Senhor Jesus, a confraria de S.to António iniciou rapidamente os pedidos para reformular também o seu. A solicitação foi feita pelos mordomos da confraria ao rei, a 6 de fevereiro de 1697, alegando que o mesmo estava muito velho e citando, inclusivamente, a recente reforma do altar em frente. Logo na tarde de 20 de fevereiro desse ano de 1697, ainda antes de chegar a resposta de Lisboa, remetida apenas em 1700, a confraria procedeu à montagem de uma grade para suporte do futuro altar. Portanto, já tinha sido desmanchado o anterior e, muito provavelmente, os trabalhos de entalhamento do novo já tinham sido iniciados. No alto da grade estava, então, o pedreiro Teodósio Pestana, que se desequilibrou e caiu, salvando-se por ter conseguido agarrar-se à corta do lampadário que, com os seus 35 kg de prata, lhe amparou a queda. O sucedido foi logo considerado milagroso, embora só tenha vindo a ser registado alguns anos depois, em 1702, por ordem do bispo D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), o que proporcionou que chegasse aos nossos dias a constituição da equipa de entalhadores, carpinteiros e pedreiros. Nos autos, vieram a depor o mestre principal Manuel Pereira de Almeida, “mestre imaginário”, Agostinho de Almeida, oficial imaginário, João de França, oficial de carpinteiro, João Vieira, mestre pedreiro e Teodósio Pestana, o pedreiro que havia caído da grade (ANTT, Cabido..., mç. 4, doc. 20). O retábulo de S.to António repete quase formalmente o retábulo que se encontra em frente, com duas ordens arquitetónicas suportadas por dois pares de colunas, um remate com duplo frontão interrompido e óculo superior entalhado sobre a rosácea do transepto, e anjos idênticos, reclinados sobre as aletas, tudo em talha dourada. O trabalho de talha, no entanto, é muito mais relevado e profundo, especialmente nos entablamentos e nas colunas, já salomónicas e avançadas sobre mísulas, sendo o centro ocupado por um nicho fundo, rematado por par de colunas, que se prolongam em arcos concêntricos de volta perfeita, dentro do chamado barroco nacional ou barroco português, com a imagem monumental do orago, que deve ser de data muito aproximada à da reformulação do retábulo, 1697 a 1699, embora já existisse quando ocorreu a queda do pedreiro Teodósio Pestana e à mesma se atribuiu o milagre. Os meados do séc. XVIII corresponderam, um pouco por toda a Europa, ao recrudescimento da regulação e centralização do poder régio que, de certa forma, tentou ocupar um espaço, até então e em parte, ocupado pela Igreja. Num breve período de uma a duas décadas, a igreja madeirense deu a sua resposta, com a realização de uma reforma da própria imagem, montando uma ampla campanha de obras na sé, determinada pelo bispo D. José da Costa Torres (1741-1813), a partir de 1790, sob coordenação do cónego fabriqueiro João Paulo Berenguer, falecido em 1797, ao qual se seguiu o Cón. João Leandro Afonso e, depois, o Cón. Miguel Caetano Moniz e direção, por certo, do mestre das obras reais natural das Canárias, o já referido António Vila Vicêncio. [ Sé do Funchal. Vista Interior a partir do coro. Foto: BF A campanha envolveu a montagem do coro sobre a entrada, nessa altura, na fachada, foram abertos dois amplos janelões neogóticos e montado um pequeno varandim, e envolveu também a reformulação de parte das paredes laterais, então dotadas de novas portas, com portais exteriores neoclássicos, embora interiormente se tivessem mantido as pias de água benta manuelinas. O reforço das paredes exteriores das naves laterais foi feito para a montagem, no interior, dos altares das confrarias, emoldurados por arcos neogóticos, levantando-se ligeiramente o piso ao longo das naves para o serviço dos altares e limitando-se esse espaço por balaustradas de madeira torneada. Até então, os altares das confrarias encontravam-se todos montados no transepto, numa situação difícil de compreender, no nosso tempo; inclusivamente, dois deles tapavam parcialmente a entrada da capela-mor. O primeiro passo para a reforma do interior da sé foi a provisão episcopal de 18 de abril de 1792, extinguindo as antigas confrarias dos mesteres, incorporando os seus bens e encargos no património da fábrica da sé, acusando-as o bispo D. José da Costa Torres de irregular ou nula administração. A provisão episcopal, a breve trecho, não foi cumprida, pelo menos em algumas confrarias, tendo o prelado, por este e outros motivos, especialmente pela perseguição a prováveis elementos de lojas maçónicas e já estando eleito bispo de Elvas, sido embarcado compulsivamente para o continente. O primeiro altar a ser levantado nas naves laterais foi o da confraria de S. José dos Carpinteiros e Pedreiros do Funchal, que, ao longo do séc. XVII, conseguira parte dos proventos das pedreiras de Câmara de Lobos e, na segunda metade do séc. XVIII, ganhara um protagonismo muito especial, sob a direção da célebre morgada D. Guiomar Madalena de Sá Vasconcelos Bettencourt Machado Vilhena (1705-1798), a grande proprietária da Madeira nos últimos quartéis dessa centúria (Vilhena, D. Guiomar Madalena de Sá). A confraria de S. José, através do seu tesoureiro, o carpinteiro Manuel José de Freitas, a 25 de setembro de 1797, contratou o pintor Filipe Caetano da Trindade e Silva para “pôr um altar completo e acabado de tudo que preciso seja para a mesma obra, segundo o risco que tem em seu poder”, dado “bem entendido que é de carpinteiro, e entalhador, e pintor” (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 58-59). O altar era para estar concluído a 1 de março de 1798, dando o tesoureiro a madeira e o ouro necessários; o pagamento devia ser faseado por três prestações, remetendo-se a última para quando o altar estivesse assente. O altar seguinte foi levantado na nave em frente, sendo o contrato de 14 de novembro de 1797 celebrado entre o sargento-mor de milícias do regimento da Calheta, Agostinho Domingos de Gusmão, tesoureiro da confraria de S.ta Ana e S. Joaquim, o pintor Filipe Caetano da Trindade, o entalhador João da Câmara Sá e o carpinteiro José Rodrigues Gonçalves, para construírem o novo altar. O pintor Filipe Caetano ficou responsável por dirigir a obra, fornecer todas as “plantas e riscos” que fossem necessários ao carpinteiro e ao entalhador, ficando obrigado a dourar e pintar o altar no final do trabalho do entalhador, referindo-se o mesmo como idêntico ao “que se está fazendo para o altar de S. José da mesma catedral”, igualmente a cargo deste mesmo pintor e dourador (ARM, Registos Notariais, liv. 1072, fls. 13v.-15v.). Os altares das naves laterais da Sé do Funchal, mais tarde colocados no lado Evangelho, o primeiro dedicado às Almas, o segundo a N.ª Sr.ª da Conceição, S.ta Ana e S. Joaquim, e o terceiro ao Senhor do Milagre, imagem vinda do extinto convento de S. Francisco, apresentam, sensivelmente, um desenho geral similar. O mesmo acontece com os altares do lado da Epístola, onde se evoca N.ª Sr.ª de Fátima, mas que, anteriormente, terá sido de N.ª Sr.ª do Rosário, imagem de pequena dimensão, provavelmente, então transferida para o altar contíguo, de S. José; o mesmo se passou com o de S. Miguel Arcanjo. Para além de algumas variações cromáticas dos efeitos de marmoreados, os altares revelam apenas pequenas diferenças nos pormenores decorativos. No altar de S. José existe um excecional frontal de prata, que seria também da confraria de N.ª Sr.ª do Rosário. A confirmar-se essa hipótese, a peça terá sido mandada fazer pela confraria, em 1724, ao prateiro Faustino de Araújo Feio, estando pronta no início de 1725. No Funchal, terão existido quatro ou cinco frontais de prata, na igreja do colégio dos Jesuítas e na sé, mas terá subsistido apenas este. No entanto, todos os retábulos das naves laterais, tal como os das restantes capelas, ainda apresentam, no começo do séc. XXI, os seus lampadários de prata, sendo os expostos nestas naves dos meados e finais do séc. XVIII. O último altar do lado do Evangelho apresenta a célebre imagem do Senhor do Milagre (milagre feito perante Helena Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, a 26 de dezembro de 1482), proveniente do extinto convento de S. Francisco, de onde veio com o seu diadema e o lampadário de prata, a 11 de março de 1835, por requisição do cabido da sé. Em frente ao retábulo do Senhor do Milagre e adossado à última coluna da nave, encontra-se o púlpito da sé, em calcário brecha da serra da Arrábida, como outras peças já referidas. Apresenta uma interessante caixa cilíndrica decorada com ligeiro relevado helicoidal, assente em coluna de fuste hexagonal, também com decoração helicoidal, sendo a base constituída por seis meias-moedas. Tudo leva a crer que é obra das oficinas régias de Setúbal, existindo, aliás, na igreja de Jesus, um púlpito idêntico, embora de menores dimensões, mas igualmente de grande qualidade formal. O acesso é feito por escada exterior, de cantaria regional, pintada a imitar o calcário-brecha da Arrábida e, na caixa das escadas, encontra-se uma carranca com uma cabeça de homem de cabelos compridos e barrete, tradicionalmente identificado como o mestre das obras reais Pêro Anes e, inferiormente, uma cabeça de Diabo. Os anexos principais da Sé do Funchal foram reformulados nos inícios do séc. XVIII, tendo sido reconstruídas as velhas instalações do cabido e, totalmente de raiz, a sacristia nova da sé. O autor da obra da sacristia nova e do edifício cabido da sé, provavelmente a mais importante da sua época, foi o mestre das obras reais Diogo Filipe Garcês, que servia este ofício desde 1727. O projeto primitivo data de 8 de novembro de 1732, envolvendo, entre outros, as obras de pedreiro da “casa dos lavatórios”; abrir a passagem da capela do Amparo e levantar o altar com balaustradas (ANTT, Provedoria..., liv. 971, fls. 5v.-6). Este projeto foi, depois, francamente ampliado, refazendo-se toda a antiga “casa do capelão” como “casa do cabido” (Id., Ibid., liv. 396, fls. 5v.-6 e 8), sendo assinado por Diogo Filipe Garcês e João António de França, respetivamente, como responsáveis pelas obras de pedreiro e de carpinteiro, tendo a autorização do conselho da Fazenda a data de 16 de março de 1733. A arrematação da obra, com data de 26 de setembro, foi feita por João António de França e João Moniz de Abreu, sucedendo este último a Diogo Filipe Garcês como mestre das obras reais da Madeira; o contrato da mesma data de 26 de outubro de 1734. O edifício do cabido ficou com dois pisos, um de arrecadações e serviços, não só para o cabido, mas também para as confrarias, com janelas gradeadas e, por cima, com uma larga fiada de sete janelas de sacada altas e com varandas de ferro forjado, definindo uma ampla e austera frontaria para as então casas da Câmara. Para o lado do mar, ainda apresenta outra janela de sacada idêntica, mas com uma varanda muito mais larga, que ocupa todo o corpo. As instalações do cabido eram e são no andar superior do edifício, piso constituído, essencialmente, por duas grandes salas, sendo a de reuniões para norte, coberta por um teto em caixotão e, mais tarde, dotada com a coleção de retratos dos bispos do Funchal. A sacristia da sé apresenta cobertura em caixotão, assente em trompas laterais concheadas, tudo, aparentemente, em estuque pintado. As paredes laterais são ocupadas por armários paramenteiros monumentais, com alçados decorados por réguas de talha vazada e remates entalhados com florões, obra da oficina dos entalhadores Manuel Pereira de Almeida e Julião Fernandes Ferreira, dos Açores, que foram pagos ao longo dos dois anos seguintes, ou seja, 1735 e 1736. A parede frontal está ocupada por um altar, dentro da mesma gramática decorativa, com a imagem de S. Gregório pintada a óleo sobre tela que assenta numa moldura que é o prolongamento do alçado dos armários paramenteiros e sendo enquadrado pelos armários de parede dos amitos, vestes utilizadas na liturgia. Para a sacristia veio a ser transferida, no séc. XVIII, a tábua central do retábulo de N.ª Sr.ª do Rosário, quando, nos finais da centúria, se desmancharam os altares das confrarias e os remontaram nas naves laterais. A sacristia era antecedida de uma outra sala, onde estavam os dois lavatórios, que já vinham discriminados no primeiro projeto da autoria do mestre pedreiro Diogo Filipe Garcês, então orçamentados em 50.000 réis cada. No entanto, parece-nos uma verba francamente baixa para a obra existente, ou que existiu, pois estes dois lavatórios foram “restaurados” nos anos 50 do séc. XX, tendo ficado somente um na sé e tendo o outro passado para a igreja matriz de S.ta Luzia. O trabalho que chegou até nós é de uma das boas oficinas de Lisboa da época e, por certo, foi muito mais caro do que a verba prevista. Resta acrescentar que, com a reforma dos meados do séc. XVIII, foram executadas uma série de pinturas, que terão contado com o trabalho em parceria de António Vila Vicêncio e o seu cunhado José António da Costa, devendo datar dessa época os frescos da casa dos lavabos. Com as obras da Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), nos meados do séc. XX, esse compartimento foi demolido, acabando por se perder os frescos, de que só resta um vago apontamento da Expulsão do Paraíso. O conjunto edificado da sé foi alvo de uma importante campanha de obras na déc. de 50 do séc. XX, como já sugerimos. Nessa ocasião, foram eliminadas as enormes janelas neogóticas da fachada e o varandim; gradeou-se de novo o adro e eliminaram-se algumas das construção encostadas à torre, à sacristia nova e, inclusivamente, às absides. Nos finais do século, dentro da mesma linha, recuperou-se a pintura da abóbada da capela-mor, reabilitou-se o retábulo do Bom Jesus e limpou-se a talha da capela do Santíssimo. Entre 1997 e 2003, efetuou-se o estudo do estado de degradação e do tipo de alterações da pedra vulcânica utilizada na sé, numa parceria entre a Direção Regional dos Assuntos Culturais (DRAC), hoje Direção Regional da Cultura (DRC), e a antiga DGEMN, procedendo-se ainda à revisão das estruturas de amarração dos tetos; destes trabalhos resultou um dossiê, publicado na revista Monumentos daquela direção geral, em 2003. Sé do Funchal, 2007. Foto: Wikimedia Commons Nos primeiros anos do séc. XXI, numa ampla parceria entre a Diocese, o Governo Regional e a World Monuments Fund – Portugal, através de um protocolo assinado a 7 de agosto de 2011, iniciaram-se vários trabalhos, visando o restauro e a conservação da sé. Estes envolveram a intervenção no retábulo-mor e no cadeiral, realizada por técnicos do Laboratório de Conservação e Restauro José de Figueiredo e do Departamento de Conservação e Restauro do Instituto dos Museus e da Conservação, em colaboração com o Laboratório HERCULES, da Universidade de Évora. Os resultados foram apresentados em junho de 2014, já tendo sido perante este retábulo restaurado que, a 21 de setembro do mesmo ano, se celebrou a missa comemorativa do encerramento do congresso internacional dos 500 anos da diocese do Funchal, “A primeira diocese global – História, Cultura e Espiritualidade”, como lembra o subtítulo do encontro.   Rui Carita (atualizado a 30.12.2017)

Arquitetura Património História Política e Institucional Religiões

governo militar

Carlos de Azeredo Ornelas Camacho Ribeiro de Andrade. 20.02.1976. Arquivo Rui Carita. A designação específica de governo militar foi aplicada na Madeira para o topo da estrutura militar entre 1926 e 1973. Ao longo da história da Madeira, o governo militar foi inicialmente da responsabilidade dos capitães do donatário, dos capitães-donatários e, depois, dos governadores e capitães-generais (Governadores e capitães-generais), até à instalação do governo liberal (Governo civil). Já se havia, inclusivamente, ensaiado a constituição de gabinetes e órgãos para o governo militar, com postos e funções ligados ao governador para o assessorar nessa área, como tinham sido os sargentos-mores (Sargento-mor), o tenente-general (Tenente-general), os engenheiros militares, etc. Uma das preocupações dos políticos liberais era a perfeita separação dos poderes, subordinando o poder militar ao político. No entanto, a instabilidade vivida durante as primeiras décadas não deixou muita margem de manobra para tal separação. O facto de que se recrutava, a maior parte das vezes, o quadro superior político do arquipélago dentro do grupo dos militares liberais, e a experiência sofrida pelo primeiro governo liberal sediado nos Açores, que não tinha conseguido submeter a Madeira, também não favoreceu a separação dos poderes. Assim sucedeu com o primeiro prefeito, o coronel de engenharia Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1847), e viria depois a acontecer com outros governadores civis, igualmente militares, chegando a ser objeto de pedido de parecer do então marquês de Saldanha ao antigo prefeito da Madeira, situação que se manteve ao longo de quase todo o séc. XIX e mesmo do séc. XX, inclusivamente após o pronunciamento militar de 25 de abril de 1974 e até o país constituir uma democracia parlamentar. A imposição de uma nova ordem institucional no território nacional foi, desde o início do liberalismo, como nos governos seguintes, acompanhada por profundas contradições dentro do Exército, herdeiro de um antigo papel nacional, que participara ativamente, embora nem sempre de forma consciente, na transformação da situação política do país. Na transição do séc. XVIII para o séc. XIX, tentara-se evoluir de uma estrutura senhorial militar para uma efetiva institucionalização de forças armadas nacionais, o que um certo caciquismo regional nem sempre acompanhou e que a corte de Lisboa, a braços com outras dificuldades políticas, também não foi capaz de impor. Com a instalação do liberalismo, institucionalizou-se uma figura complexa de militar-político, herdada da guerra civil, que veio a desempenhar um papel político nacional de excecional importância, embora depois sem especial recorte na instituição castrense propriamente dita. [caption id="attachment_15051" align="aligncenter" width="717"] Parecer pedido por Saldanha a Mouzinho de Albuquerque. 1835. Arquivo Rui Carita.[/caption] A instituição militar passou, ao longo do séc. XIX, por várias reformas, tentando enquadrá-la e adaptá-la aos novos processos e métodos internacionais de combate. A primeira reestruturação data de 1836 e 1837, quando decretos sucessivos dividiram o território em 10 divisões militares, sediando a 9.ª divisão no Funchal, estabelecendo um novo plano de divisão regimental das diversas armas, regularizando o uso de uniformes e diferenciando apenas as armas em causa. Nessa reforma, decretaram-se, ainda, novas regras, mais claras, de progressão na carreira, por antiguidade nas armas de infantaria e de cavalaria, e através de provas de exame nas armas científicas, como a de artilharia e a de engenharia, assim como se criou a Escola do Exército em Lisboa e se lançou, novamente, a instalação de escolas regimentais para a aprendizagem das primeiras letras, estrutura que voltou a funcionar no Funchal, no velho aquartelamento do Colégio dos Jesuítas. Os marechais das campanhas liberais, como os duques de Saldanha (1790-1876), Terceira (1792-1860) e Sá da Bandeira (1795-1876), nunca entregaram verdadeiramente a política aos políticos e, quando tal aconteceu, por absolutos imperativos da idade e com a Regeneração, seriam substituídos por um outro militar, o Gen. Eng. António Maria Fontes Pereira de Melo (1819-1887). As Forças Armadas, através dos seus quadros de engenharia militar, teriam ainda um papel decisivo na organização das Obras Públicas durante todo o liberalismo (Azevedo, António Pedro de e Blanc, Tibério Augusto) e, muito especialmente, na época da Regeneração, quando foi encontrado um certo equilíbrio nas contas públicas, que possibilitou a construção de uma série de acessibilidades, entre outras obras de fomento público. Oriundos os seus quadros superiores dos vários estratos sociais que igualmente forneciam as altas esferas dos quadros políticos, participariam ambos, logicamente, na mesma luta. Assim, vamos encontrar militares no ativo em todas as frentes políticas, inclusivamente na formação dos altos quadros que deram origem ao Partido Republicano (Partido RepublicanoRepública). Voltariam depois a encabeçar os sentimentos e paixões nacionais nas campanhas coloniais de pacificação em África, onde participaram ativamente na tentativa de construção de um outro império colonial, que o trauma da perda do Brasil ainda não invalidara. O Exército representou, ainda, durante quase todo o período liberal, uma certa “reserva patriótica nacional” contra os caminhos sinuosos da política, embora configurasse, ao mesmo tempo, também uma forma romântica de participação na vida coletiva, que entraria depois pelo séc. XX. Poderemos, nessa sequência, estender a sua participação, embora num outro enquadramento, à subida ao poder do Maj. Sidónio Pais e, na Madeira, com a nomeação do Cor. Vicente José de Freitas (1869-1952) para governador civil, à implantação do Estado Novo, e ainda, num quadro mais internacional, aos finais do séc. XX e ao pronunciamento militar de abril de 1974, só então sendo definitivamente excluídos os militares da cena política portuguesa, configurando-se assim nas figuras de um comandante militar e um comandante-chefe, que até 2015 eram a mesma pessoa, assessorada por quartéis-generais diferenciados. Não foi por acaso que uma larga percentagem dos governadores civis da Madeira do séc. XIX foi recrutada nos quadros militares nacionais e mesmo regionais, embora, e progressivamente, se tentasse que as Forças Armadas tivessem cada vez mais um verdadeiro enquadramento nacional.     Rui Carita (atualizado a 13.12.2017)

História Militar História Política e Institucional

paço episcopal

Os primeiros bispos do Funchal, ligados à administração régia, não se deslocaram à Madeira, tendo sido D. frei Jorge de Lemos (c. 1510-1574) o primeiro a fazê-lo. Desembarcou na Ilha dois anos após a sua nomeação, em 1558, tendo-se instalado em casas particulares, pertencentes a Tristão Gomes de Castro (1539-1611), neto de Bárbaro Gomes Ferreira (c. 1475-1544), que fora vedor das obras da sé do Funchal e depois alferes-mor da Ilha (Sargento-mor), casas na então Rua Direita, atual Rua dos Ferreiros, onde se levantou depois o palácio Torre Bela (Palácios). Após uma breve estadia de apenas cinco anos, num episcopado que durou na totalidade treze, D. frei Jorge de Lemos retirou-se para Lisboa, em 1563, e nas mesmas casas veio a residir depois D. Jerónimo Barreto (1543- 1589). Este bispo começou por se instalar após a sua chegada, a 31 de outubro de 1574, na inicial residência da Companhia de Jesus, na albergaria da capela de São Sebastião, e só após o conselho dos jesuítas escolheu residência, nas casas um pouco acima, onde residira D. frei Jorge de Lemos, dado que o proprietário nunca ali residiu. D. Jerónimo Barreto ainda permaneceria 10 anos na sua diocese, mas em 1584 foi colocado na do Algarve, para onde saiu, a 3 de junho de 1585. A substituição foi rápida para a época e, a 4 de agosto de 1586, desembarcava no Funchal D. Luís de Figueiredo de Lemos (1544-1608). Após as complexas cerimónias da tomada de posse da diocese, primeiro na praia do Funchal e depois na sé, o novo bispo retirou-se “às suas pousadas, que tomadas estavam na Rua das Pretas” (FRUTUOSO, 1968, 316-317). A referência à residência na Rua das Pretas parece ser um lapso do cronista açoriano, pois que D. Jerónimo Barreto residiu na Rua Direita, hoje Rua dos Ferreiros, e todas as informações seguintes dão as mesmas casas como também residência de D. Luís Figueiredo de Lemos. Em carta de Lisboa, o prelado tinha solicitado “umas casas acomodadas” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, avulsos, mç. 9, doc. 9), onde se pudesse instalar aquando da sua chegada, pelo que se pode ter optado, de imediato, pelas casas da Rua das Pretas, mas depois voltou-se às da Rua Direita, anteriormente ocupadas por D. Jerónimo Barreto. O bispo D. Luís Figueiredo de Lemos deixou estas casas em meados de 1594, ocupando, em princípio, as casas negociadas pelo seu antecessor para instalação do seminário, na atual Rua do Bispo. Escreve depois o cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) que nas referidas casas da Rua Direita se iniciou um enorme incêndio, no dia 26 de julho de 1594, “em dia da gloriosa Santa Ana”, dizendo que havia pouco tempo desde que foram despejadas pelo prelado, incêndio que queimou 104 casas de morada, “das melhores e mais principais de toda a cidade” no centro do Funchal. Refere ainda o cronista a estranheza do ocorrido, tanto porque nessas casas tinham residido os anteriores prelados, “por cuja causa as devíamos supor santificadas”, como pela razão de terem sido hospício dos “gloriosos mártires”, do padre Inácio de Azevedo e seus companheiros (NORONHA, 1996, 367). Esta referência, contudo, não é verdadeira, uma vez que esses jesuítas pernoitaram muito pontualmente no Funchal, e mais abaixo, na albergaria de São Sebastião, dado que quase todos pernoitaram a bordo da nau em que pensavam chegar ao Brasil. Desse incêndio ficaram os topónimos das Ruas da Queimada de Baixo e de Cima. Foi o prelado D. Luís Figueiredo de Lemos que mandou construir os primeiros paços episcopais. O paço foi levantado segundo desenho executado pelo mestre das obras reais Jerónimo Jorge (c. 1570-1618) e à custa do erário régio, como ainda hoje se pode constatar pelas armas reais existentes no edifício. Desse paço primitivo ficou a loja maneirista e a capela de São Luís de Tolosa, datada, na fachada, de 1600, ano que corresponde possivelmente à data de intenção e não de construção, pois o pagamento feito ao mestre das obras reais Jerónimo Jorge, por umas traças e diligências que fez no sítio do “Seminário, tocantes às casa episcopais”, tem a data de janeiro de 1604 (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 6, fls. 279-279v.). Do edifício maneirista dos inícios do séc. XVII resta a fachada simples virada para a Rua do Bispo, com o brasão real de Portugal com coroa aberta, que os Filipes usaram em todas as obras no país e a interessante loggia de sabor renascentista, virada a Norte, onde funciona hoje o Café do Museu. Compõe-se de uma galeria aberta e alpendrada, com balcão cego e pilastras muito elegantes, assente em arcos de volta perfeita, que se articula com a pequena capela de São Luís de Tolosa, onde o prelado se fez sepultar e cuja lápide se encontra hoje na entrada da sé do Funchal. A lápide, em mármore branco continental, com as suas armas e cartela maneirista, lembra, decididamente, a de D. Manuel de Noronha, bispo de Lamego, que se fez sepultar como arcebispo, mas existem no continente e na Ilha outras lápides semelhantes. O portal da capela é de muito bom desenho, com entablamento decorado com pontas-de-diamante, a inscrição “Ludovicus Epus Funchalensis 1600” e as armas do prelado, ladeadas e encimadas pelo que parecem ser esferas armilares simplificadas, conjunto ainda rematado pela cruz da Ordem de Cristo. A fachada da capela é encimada por óculo simples e rematada a norte por campanário de gosto tardo-gótico. O prelado mandou representar nas suas armas as dos Figueiredo, mas não as dos Lemos, com rosetas de quarto crescente. Nas armas da capela aparece uma merleta, pequena ave semelhante à andorinha, mas sem patas aparentes, que foi atribuída aos Leme, família que se fixou na Madeira ainda no séc. XV, cujos elementos heráldicos o bispo carregou nas suas armas, bem como as cinco folhas de figueira, utilizadas pela família Figueiredo. Para norte, a capela articula-se com uma escadaria de acesso à antiga entrada do paço, com arco de volta perfeita e acesso ao alpendre da loggia, numa composição que terá sido reposta pelas obras de 1940/50. Estas casas ainda tiveram obras ao longo do séc. XVII, pelo menos na vigência do prelado D. frei António Teles da Silva (1675-1682), homem de gosto refinado, que deixou um importante espólio de que faziam parte móveis orientais, entre outras peças, e, muito provavelmente, também duas grandes talhas chinesas, adquiridas após a morte de D. Luís Rodrigues Villares (c. 1740-1810) para a capela do Santíssimo da sé. Da vigência de D. António Teles da Silva no Funchal sobrevive a Relação do Sínodo Diocesano de 9 de junho de 1680, com a descrição das decorações feitas no paço episcopal (BNP, Arquivo da Casa de Tarouca, doc. 150), das mais interessantes descrições do que foi a época barroca na Madeira. Nos inícios do séc. XVIII, na vigência de D. José de Sousa Castelo Branco, de quem se diz ter sido o “prelado mais amante da nobreza” que veio à Madeira, o paço conheceu nova ampliação (ARM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. 273). Incorporou então as instalações do seminário, ao tempo denominado como “colégio de São Luís”, e os estudantes foram realojados no chamado “mosteiro novo”, onde hoje existe o laboratório regional de análises, na rua ainda desta evocação: Seminário. O “mosteiro novo”, que nunca o chegou a ser, era até então “recolhimento de mulheres honestas” e dos descendentes da família do fundador, o cónego António Spranger (SILVA e MENESES, II, 1998, 398-399). A oportunidade de ampliar francamente as instalações ocorreu com o tremor de terra de 1748. O paço episcopal teria sido bastante abalado e o bispo podia ocupar a residência da fortaleza de São Lourenço, pois desde maio do ano anterior desempenhava as funções de governador, dada a saída para o Brasil, diretamente da Madeira, de Francisco Pedro de Meneses Gorjão, nomeado para o governo do Maranhão. Assim, após o tremor de terra, o bispo e a família transferiram-se para São Lourenço. O pedido para aumentar o “palácio episcopal”, que “já antes era muito pequeno, pelo que se tinha ocupado o Colégio de S. Luís, [até então] seminário da Diocese” (ANTT, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, liv. 973, fls. 155v-156), seguiu logo no mesmo ano de 1748, havendo diligências em 1749, altura em que o mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1779), efetuou o projeto e se orçamentaram as obras. A autorização do conselho da fazenda chegou com data de 24 de janeiro de 1750, foi registada a 18 do mês seguinte e logo no dia 24 próximo se procedeu à arrematação, feita pelo mestre carpinteiro Francisco Gomes, morador aos Arrifes, no Funchal, por mais de cinco contos de réis. O auto de arrematação foi lavrado com data de 19 de março, figurando como fiadores do mestre carpinteiro Bernardo Fernandes de Freitas, que também tinha feito um lanço sobre as obras, no valor de sete contos de réis, António Gonçalves e Francisco Fernandes Antunes e Silva. O bispo D. frei João do Nascimento, no entanto, percebeu de imediato que o lanço efetuado pelo mestre Francisco Gomes não cobria as obras que pretendia, pelo que conseguiu, por mandado do conselho da fazenda de agosto de 1751, que se revertessem os ordenados de governador, que se encontrava a acumular desde quase os inícios de 1747, para a reedificação do paço. Com base nesse dinheiro e no seu próprio, o bispo assumiu a direção final das obras. O prelado tinha acumulado até então uma série de ordenados para além do seu, como sejam os de provisor e de vigário-geral, cargos que, entretanto providos, tinham sido comutados para o prelado por mais 200.000 réis anuais, passando tudo os 10.000 cruzados de renda. Por novo mandado do conselho da fazenda, do final desse ano de 1751, as obras foram pagas no estado em que se encontravam ao mestre carpinteiro Francisco Gomes, assumindo o prelado a direção e os encargos do restante. O paço já devia estar, no entanto, minimamente habitável nos meados de 1751, pois em agosto desse ano, o prelado entregou o governo e o palácio de São Lourenço ao novo governador, D. Álvaro José Xavier Botelho e Távora (1708-1789), conde de São Miguel. Contudo, as obras do paço devem-se ter arrastado ainda por algum tempo, pois o magnífico painel de azulejos das fábricas de Lisboa, que decora a enorme varanda superior da torre de ver o mar, deve ser um pouco posterior a 1760. Todo o acompanhamento dos trabalhos, entretanto, foi efetuado pelo mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins. A direção deste, aliada à austeridade franciscana de D. frei João do Nascimento, explica o total despojamento da arquitetura exterior do paço episcopal assim como, por outro lado, a sua escala verdadeiramente monumental para a cidade do Funchal dos meados séc. XVIII. O enorme bloco quadrangular do paço episcopal, rematado por ampla varanda superior, em torre e ao gosto funchalense, aberta para o mar, articulava-se (como ainda se articula) com o corpo construído por Jerónimo Jorge em 1604/1609, rematado pela pequena capela de São Luís de Tolosa. A nascente é muito possível que possuísse mais alguma construção, de serviços, e de que teria ficado o prédio contíguo, com fachada para a Rua do Bispo. Trata-se de um prédio de grande dignidade e anterior à construção do monobloco de 1748/1751, que possui no primeiro piso e no piso térreo vestígios vários de arcos e nichos, ainda mais antigos, assim como cantarias boleadas nos pisos superiores. Todo este conjunto possuía uma cerca ampla para Norte com jardim, ainda utilizada pelo então Liceu do Funchal, que ali funcionou a partir de janeiro de 1914, e que foi depois parcialmente atulhada para nivelamento e utilizada para a construção do largo do Município. Paço Episcopal A fachada para a rua do Bispo apresenta portal central de moldura de remate relevado em cantaria, datado no lintel do início da construção (1750), encimado por cornija relevada e ligeiramente ondulada, ladeado por grandes janelões gradeados de idêntica moldura. As entradas laterais de serviço, de molduras mais simples, são ladeadas por óculos quadrilobados e gradeados. O andar intermédio, correspondendo ao andar de serviços, apresenta oito janelas, que usam como cornija de balanço as sacadas das varandas do andar nobre, aí com grade de ferro com bolachas. As molduras das janelas das varandas do andar nobre são rematadas por frontão curvo e a fachada rematada superiormente por cornija de cantaria relevada com duas gárgulas em forma de meia cana. A fachada norte, dantes virada para os jardins do bispo e depois para o campo de jogos do Liceu do Funchal, apresenta a marcação dos três pisos da fachada com um bloco central de mais dois pisos correspondentes à torre monumental, não visível da Rua do Bispo, sendo o andar inferior, correspondente às antigas arrecadações do paço, dotado de gradeamento à face. O andar nobre é excecionalmente alto, com varandas de sacada a servirem de balanço às janelas do andar de serviços, criando as molduras de cantaria espelhos superiores vazados e possuindo estas janelas grades de ferro, ditas “de barriga”, que permitiam a quem se debruçasse continuar protegido por detrás das mesmas. A fachada poente deste enorme bloco apresenta uma janela decorada com as chaves de São Pedro esculpidas no lintel e uma porta inferior com lintel com cartela maneirista esculpida com a emblemática dos jesuítas. O trigrama cristológico IHS é a abreviatura do nome de Jesus em grego ou em latim medieval: Ihesus. Ora, embora propagado no séc. XIV pelo pregador São Bernardino de Sena e utilizado pelos franciscanos a partir do séc. XVI, foi retomado por Santo Inácio de Loyola com a significação de “Jesum habemus socium”, em português “Temos Jesus como companheiro”, e passou a ser o emblema da Companhia, pelo que o lintel desta porta do paço episcopal deve ter vindo do edifício do Colégio ou de uma das suas quintas. O paço episcopal é rematado superiormente por larga torre de ver o mar, de mais dois pisos, colocada na parte central do conjunto, ligeiramente recuada em relação à fachada, com uma elegante balaustrada de pedra com grade de ferro, que é das poucas que ainda se mantêm abertas no centro da cidade. O alpendre assenta em seis barras de ferro que partem dos balaústres de cantaria, tenda duas portas de moldura de cantaria com lintel de balanço, definindo três panos totalmente ocupados por um painel contínuo de azulejos com as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade, de uma das oficinas dos grandes mestres de Lisboa, datáveis de 1760 a 1765 e de uma grande qualidade de execução. O átrio de entrada do antigo paço episcopal encontra-se empedrado ao gosto madeirense dos sécs. XVIII/XIX, mas num desenho conjetural das grandes obras de reabilitação de 1950 a 1954 para instalação do Museu Diocesano de Arte Sacra. Mantém ainda as argolas de parede para prisão das cavalgaduras, que sobreviveram, assim, a inúmeras campanhas de obras. Apresenta ao centro uma escadaria de grande impacto visual, com corrimão de cantaria e de planta em voluta, terminado nas pilastras com enrolamento das guardas e remate por pelouro, o que lhe dá uma sensação especial de profundidade. A porta superior é rematada por arco abatido e ladeada por dois enormes óculos ovais com moldura de cantaria, de eixo ligeiramente inclinado para iluminação das escadas, ao gosto das encenações barrocas. Assim, os óculos parecem iluminar uma grande escadaria interior, mas esta, interiormente, só corresponde a um lanço de escadas. Armas do Paço Episcopal Nem sempre os prelados funchalenses ocuparam este edifício, optando alguns por se recolherem em outros locais mais recatados, embora ali se mantivessem os seus serviços e os órgãos da diocese. D. José da Costa Torres (1741-1813), 18.º bispo do Funchal, por exemplo, vivia habitualmente na residência da quinta da Penha de França, de onde, aliás, foi embarcado à força em julho de 1796, na escuna Andorinha, do futuro conde de Carvalhal (1778-1837), dado já ter sido eleito bispo de Elvas, e o bispo seguinte, D. Luís Rodrigues Vilares (c. 1740-1810), faleceu na quinta da Nazaré. Os prelados administradores apostólicos, como D. Francisco Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828), bispo de Meliapor, depois eleito bispo de Elvas, também ali não viviam, mas, ao contrário, o cardeal D. Lorenzo Caleppi (1741-1813), arcebispo de Nibisi e núncio apostólico em Portugal, passando pelo Funchal a caminho do Rio de Janeiro em julho de 1808, ficou a residir no paço episcopal.     Arcadas do Paço Episcopal O paço episcopal do Funchal seria confiscado pela fazenda da República em 1910, por ter sido construído com verbas da anterior fazenda régia e aí foi instalado o Liceu do Funchal, em janeiro de 1914. Com a nova consciencialização patrimonial do Estado Novo e a campanha desenvolvida por várias entidades locais em prol da criação de um Museu de Arte Sacra, assim como com a construção de um novo edifício para o Liceu, veio a ser ali instalado esse Museu, após a saída dos alunos em 1942 e as obras de reabilitação, cuja inauguração decorreu em 1 de junho de 1955, cerimónia que contou com a presença do general Francisco Higino Craveiro Lopes, presidente da República, então em visita ao arquipélago, do bispo do Funchal D. António Manuel Pereira Ribeiro (1879-1957) e das demais entidades regionais.   Arcadas do Paço Episcopal Em 1915, com a tomada de posse de D. António Manuel Pereira Ribeiro, depois de ter sido sagrado em Viana do Castelo, o cabido e um grupo de católicos alugaram uma residência na Rua dos Netos, na esquina da Rua dos Ferreiros, em frente ao antigo Ateneu do Funchal. No entanto, ainda nesse ano, por aquisição da diocese e com apoio de uma doação e uma herança, o prelado passou a residir na quinta senhorial do Largo do Ribeiro Real, que passou a paço episcopal, onde ainda se encontra. O atual paço episcopal foi objeto de obras de reabilitação na época em que assumiu o lugar de bispo auxiliar do Funchal D. Manuel de Jesus Pereira (1911-1978) e que os serviços gerais da diocese conheceram um novo dinamismo, entre 1948 e 1953. Data dessa época a reforma do portal de acesso aos jardins e do alinhamento do muro, ficando o portal encimado pelas armas do bispo D. António Manuel Pereira Ribeiro e a data de 1951. No início da década de 90, construiu-se o novo bloco da Câmara Eclesiástica, sob projeto do arquiteto João Francisco Caires.   Rui Carita (atualizado a 19.12.2017)

Religiões

fortes

A defesa e a fortificação da Madeira foram várias vezes revistas ao longo da sua história, tendo ficado, das inúmeras edificações levantadas, grande parte do sistema construído na área do Funchal, com várias fortalezas e com pequenos apontamentos das muralhas e fortes de apoio, tanto para nascente como para poente. Do vasto conjunto de fortes, fortins ou redutos levantados ao longo das costas, dependentes das estruturas militares ali levantadas, como eram as companhias de ordenanças, também subsistem muitas construções. Palavras-chave: arquitetura militar; defesa; ordenanças; património edificado.   Fortaleza do Ilhéu A defesa e a fortificação da Madeira foram várias vezes revistas ao longo da história (Defesa), tendo ficado, das inúmeras edificações levantadas, grande parte do sistema construído na área do Funchal, com várias fortalezas – i.e., sistemas defensivos quase autónomos –, tal como pequenos apontamentos das muralhas e fortes de apoio às mesmas e à defesa geral da cidade, tanto para nascente como para poente, nem todos guarnecidos em permanência. Do vasto conjunto de fortes, fortins ou redutos levantados ao longo da costa, dependentes das estruturas militares ali levantadas (Guarnição Militar) (Ordenanças), subsistem muitas construções. De uma forma geral, o sistema defensivo fixo ao longo da costa da Madeira, representado pela rede de fortes e fortins, nasceu do “Regimento de vigias”, emitido a 22 de abril de 1567 e enviado na sequência do ataque corsário francês de 1566. Este regimento mandava montar vigias em todos os portos, “calhetas, praias ou pedras, em que parecesse que os inimigos poderiam desembarcar” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 3, f. 142v.), avançando ainda com outras diretivas que diziam respeito à montagem de artilharia nesses locais em caso de perigo, tendo assim sido a base de muitos, senão de quase todos os pequenos fortes ou fortins levantados pela Ilha (Arquitetura Militar).   A defesa do Funchal envolvia, para além das fortalezas, que tinham autonomia própria, alguns fortes de apoio ao conjunto das muralhas do Funchal, como os pequenos fortes de S.ta Catarina ou de S. Lázaro, que deram depois lugar à bateria das Fontes (Muralhas do Funchal), articulando-se ainda com a defesa das praias e desembarcadouros para poente e para nascente. Com o prolongamento da muralha para nascente, surgiram ainda fortificações no remate da mesma e depois um pequeno forte na foz da ribeira de Gonçalo Aires, o forte dos Louros, tal como, mais tarde, ao meio da praia do calhau de Santa Maria Maior, o forte Novo de S. Pedro. Desde os primeiros anos do povoamento, quando Zarco se abrigou nos dois ilhéus da baía, ao executar o primeiro grande reconhecimento à volta da Ilha, que se reconheceu o interesse desses ilhéus para a defesa do porto do Funchal (Fortaleza do Ilhéu). Com o desenvolvimento do porto e, principalmente, depois da passagem do Funchal a cidade (20 de agosto de 1508), esse interesse terá sido ainda mais notório, estendendo-se aos arrifes fronteiros. A primeira fortificação a surgir fora do perímetro da cidade, quase contemporânea da nova fortaleza de S. Lourenço, senão mesmo anterior a ela, terá sido levantada nestes arrifes, sendo depois devotada a N.ª Sr.ª da Penha de França, e articulando-se depois com outra levantada no chamado ilhéu Pequeno, quando nos meados do séc. XVIII se fez o molhe da Pontinha, o forte de S. José. As praias e desembarcadouros da área do Funchal também vieram a ser dotados de pequenos fortes, muitas vezes de iniciativa particular, como o referido forte dos Louros, na foz da ribeira de Gonçalo Aires, mas já antes tinha sido levantado o forte do Gorgulho e fortificada a praia Formosa, que chegou a ter uma rede de 5 fortes (Fortes da Praia Formosa), o mesmo vindo a acontecer com a foz da ribeira dos Socorridos (Fortes da Ribeira dos Socorridos). Com o desenvolvimento das vilas da capitania do Funchal, também as mesmas vieram a construir pequenos fortes, como Câmara de Lobos (Fortes de Câmara de Lobos), Ribeira Brava (Fortes da Ribeira Brava), Ponta do Sol (Fortes da Ponta do Sol) e Calheta (Fortes da Calheta). Escavações da Fortaleza de São Filipe do Pelourinho Idêntica situação se passou na capitania de Machico, cuja vila, tal como o Funchal, chegou a possuir uma muralha ao longo da praia e também a ser dotada de um conjunto de fortes (Fortes de Machico), à semelhança da vila de Santa Cruz (Fortes de Santa Cruz), embora somente um deles tenha chegado até nós. Os portos e ancoradouros entre Santa Cruz e o Funchal também tiveram pequenos fortes, como os que subsistem nas praias e arribas dos Reis Magos, no Caniço, e na foz da ribeira do Porto Novo (Fortes do Porto Novo e Caniço), o mesmo acontecendo pontualmente na costa norte da Madeira, como na baía do Porto da Cruz, no calhau de S. Jorge e na praia do Porto Moniz. Como mirante romântico, ainda será de referir o forte do Faial (Fortes do Norte da Ilha), que, embora não tenha sido uma construção militar, veio a ser dotado de um largo conjunto de bocas-de-fogo de ferro inglesas, entretanto abandonadas nas praias do Funchal (Artilharia), que tradicionalmente salvam nas festas religiosas locais. A situação do Porto Santo foi mais complexa, dado o abandono a que a ilha foi votada pelos seus capitães-donatários e o isolamento a que sempre esteve sujeita, chegando a sofrer vários assédios corsários, alguns de graves consequências. Esta ilha não deixou, no entanto, de ter os seus fortes (Fortes do Porto Santo), mas estes não obstaram aos assédios sofridos. A definição da superintendência sobre a capitania arrastou-se ao longo do séc. XVIII, pelo que somente com a vigência do gabinete pombalino a situação foi ultrapassada e se pôde organizar a defesa e construir uma fortificação moderna. Se, ao longo do séc. XVIII, se assistiu ao aumento quase exponencial destas pequenas construções defensivas, o interesse militar da maior parte dessas construções, algumas muito precárias, decaiu francamente ao longo de todo o séc. XIX. Acresce que a importância do antigo património militar foi logo reconhecida por parte das câmaras municipais no início do liberalismo, como forma de ampliação das suas áreas de interesse, de expansão do tecido edificado e de reformulação das acessibilidades, sendo então muito do mesmo património militar edificado demolido na Ilha, o que igualmente aconteceu nos grandes centros urbanos continentais. Situação diferente voltou a ocorrer na Madeira com o advento da autonomia, mas já num quadro mais informado, sendo a arquitetura militar objeto de várias exposições, como a de 10 de junho de 1981 – ano em que o Dia de Portugal foi comemorado no Funchal –, exposição remontada em Lisboa, na Fundação Calouste Gulbenkian, em 1982, bem como no Porto e em Vila Viçosa. Foi depois solicitada a sua passagem à tutela da Região Autónoma da Madeira, com vista à instalação de instituições culturais e de apoio às atividades do turismo, nomeadamente os fortes do Ilhéu, de S. Tiago e do Pico, no Funchal, e o Amparo de S. João, no Machico (Arquitetura militar).   Rui Carita (atualizado a 07.12.2017)

Arquitetura História Militar Património

forte dos louros

Deve datar da primeira metade do séc. XVII a construção da pequena fortificação particular que o comerciante Diogo Fernandes Branco mandou levantar nas suas propriedades dos Louros e que o capitão Diogo Fernandes Branco, seu filho homónimo, ampliou ao longo da segunda metade do século. Para proteger o desembarcadouro particular das propriedades dos Louros, construiu-se uma pequena fortaleza retangular com uma esplanada capaz de cinco peças de artilharia ligeiras. A construção deve ter tido a direção do mestre das obras reais Bartolomeu João. Palavras-chave: fortes; arquitetura militar; comércio internacional; defesa.   Mateus Fernandes (c. 1520-1597), de acordo com apontamentos que deixou em Lisboa, ainda nos finais do séc. XVI realizara obras na foz da Ribeira Gonçalo Aires. As primeiras obras nesse local, que Mateus Fernandes refere terem sido feitas no governo do conde de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas (1537-1598), eram para “levante”, constando de uma série de trincheiras e traveses, nas quais se fazia “vigia todas as noites” e que “têm casa”. O mestre Mateus Fernandes pedia, então, que fossem reforçados, dada a força da ribeira no inverno, com “um espigão”, ou seja, um baluarte, rebocado a cal por dentro e por fora (ANTT, Antigo Regime, Arquivo da Casa da Coroa, Cartas Missivas, mç. 2, n.º 53). A opção tomada para o que que ficaria com o nome de forte dos Louros, cerca de 50 anos depois, foi no sentido da construção, na margem oposta, de uma nova estrutura muito mais elevada, composta por um baluarte quadrangular, rematado nos cunhais por elegantes guaritas e com casa da guarda e paiol para norte. A construção deve datar da primeira metade do séc. XVII e talvez tenha continuado ainda durante o período filipino na encosta que domina a pequena praia de desembarque, mandada levantar por Diogo Fernandes Branco (c. 1600-1652), pai, como uma pequena fortificação particular. Este comerciante e armador construiu um pequeno empório comercial ao longo da primeira metade do século, que o Cap. Diogo Fernandes Branco, seu filho homónimo, ampliou ao longo da segunda metade, com a montagem de armadas para comércio geral e, especificamente, de escravos, que circulavam entre as costas de África, os arquipélagos atlânticos e o Brasil (Pernambuco). Esta família tornou-se uma das mais poderosas casas comerciais da Madeira da segunda metade do séc. XVII. Para proteger o desembarcadouro particular nas suas propriedades dos Louros, cruzando fogos com a fortaleza de S. Tiago, construiu-se, então, uma pequena fortaleza retangular, com uma esplanada capaz de 5 peças de artilharia ligeiras, em que, por carta de 9 de dezembro de 1649, afirma, para um dos seus correspondentes, ter de gastar mais 2$000 cruzados, “além de 1$580 que nele estão gastos” (VIEIRA, 1996, 133-134). Com a construção da bateria da Alfândega (Reduto da Alfândega) e as medidas de controlo do contrabando determinadas por D. João IV, a família Fernandes Branco oficializou a situação da sua fortaleza, colocando-a sob as ordens do Rei, mas pedindo a sua capitania. O Rei, por portaria de 4 de setembro de 1647, concedeu a capitania do forte dos Louros a Diogo Fernandes Branco, pai, enquanto fosse vivo, e determinou que, por sua morte, nela sucederia o seu filho (ANTT, Chancelaria de D. João IV, Portarias do Reino, liv. 2, fl. 245). Não temos informações sobre a construção do forte dos Louros, por certo sob direção do então mestre das obras reais Bartolomeu João (c. 1590-1658), pois, embora muito simples como construção de defesa, possui as mais bonitas e elegantes guaritas que existem na Ilha. Perto dos finais do séc. XVII e falecido o Cap. Diogo Fernandes Branco sem herdeiros diretos, o controlo passou para o governador e a sua guarnição foi constituída com base em reservistas, assim sendo os seus artilheiros. Temos informações de artilheiros na situação de reserva, se assim se pode dizer, a transitarem dos fortes de primeira linha, como o do ilhéu, nos finais do séc. XVII a fortaleza mais importante, para o então denominado fortim dos Louros. Aconteceu assim, em 1690, com o velho tanoeiro Manuel Martins, que chegou depois a ser condestável do ilhéu, honorário, com certeza, pelo falecimento do seu irmão Simão Fernandes Forte, em 1698. A nomeação de 1690 de Manuel Martins para o fortim dos Louros especifica que havia servido mais de 20 anos na fortaleza de N.ª Sr.ª da Conceição do Ilhéu, pelo que se lhe dava mais uma pipa de vinho por ano. Atendia-se ainda ao facto de “se dar incapaz”, “já velho”, com “falta de vista” (ANTT, Provedoria e Junta…, liv. 966, fls. 139v. e 284). A capitania do forte dos Louros, no entanto, deve ter continuado na família, e a sua propriedade efetiva também, pois tanto os tenentes-coronéis Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), em 1817, como António Pedro de Azevedo (1812-1889), entre 1841 e 1860, nas suas “descrições”, quase não referem este forte. No final do séc. XIX, o procurador-geral da Fazenda pública do Funchal, António Leite Monteiro, no tombo deste forte, datado de 7 de outubro de 1892, cita a sua construção pelo morgado e capitão Nicolau Geraldo de Atouguia Freitas Barreto, “que o ofereceu para poder obter a patente de capitão da sua guarnição auxiliar” (ABM, Arquivos Particulares, Tombo Militar n.º 11, n.º 109), o que não é verdade, pois a construção é anterior. O Cap. Nicolau Geraldo de Freitas Barreto foi escudeiro e fidalgo da Casa Real, com mercê do hábito da Ordem de Cristo, e foi capitão do forte de N.ª Sr.ª da Encarnação dos Louros, por nomeação de 28 de maio de 1715, tendo tido armas concedidas em 1731, registadas na Câmara do Funchal (VERÍSSIMO, 1992, 152), que mandou pintar nas suas casas à rua do Esmeraldo, palacete onde se encontra instalado o Tribunal de Contas do Funchal (Arquitetura Senhorial). Nos inícios do séc. XVIII, segundo o Livro de Carga da Fortificação, era condestável deste forte António de Freitas, que recebeu, em 1724, cinco peças de artilharia de ferro montadas, de pequeno calibre, uma teria até oito libras, e alguns apetrechos de artilharia. Em 1729, era condestável do forte Bernardo de Sousa e, em 1730, Paulo Pereira de Lordelo. No final do século, o Gov. Diogo Pereira de Forjaz Coutinho, reconhecendo o pouco valor militar do forte dos Louros, pretendeu ali instalar uma fábrica de seda, mas a ideia não passou da documentação oficial. No entanto, todos os documentos seguintes são unânimes na necessidade da sua alienação, a tal ponto que Paulo Dias de Almeida já não o refere na sua descrição de 1817. No já citado Tombo Militar, onde o forte dos Louros tem o n.º 109, não consta a descrição de 1862, quando foi levantado pelo Ten.-Cor. António Pedro de Azevedo, que desenhou o forte e a área envolvente; e, em 1892, o forte é descrito como “insignificante”, situado a 1 km da cidade, para leste, junto à estrada geral de Santa Cruz e Machico. Encontrava-se levantado sobre a escarpa da ribeira de Gonçalo Aires, a 61 m de altura sobre o nível do mar e o Lazareto do Funchal. Havia então duas casas à carga do forte: uma dentro, com quatro quartos ladrilhados, um assoalhado e uma cozinha; outra fora, encostada ao muro do forte, mas totalmente em ruínas, e de que nada restou. São interessantes as confrontações do forte: pelo norte, com terras das freiras de S.ta Clara, “benfeitorizadas” por M.ª Rosa e Manuel de Gouveia; pelo sul, com a rocha sobranceira ao Lazareto; a leste e oeste, outra vez com terras das freiras de S.ta Clara. Saliente-se que os conventos haviam sido extintos em 1834; no entanto, as propriedades em causa não eram do convento, mas das freiras de S.ta Clara. António Leite Monteiro refere, em nota à descrição do tombo, que o forte dos Louros não tinha qualquer valor como defesa militar e, em face da sua má situação, já tinha sido proposta a sua venda, de que se poderia obter 200$000 réis, calculados pelo aluguer que a casa poderia alcançar. A sua alta localização não permitia bater-lhe o mar, o que aumentava o seu valor comercial e, dado que se encontrava dominado por toda a parte, quer de oriente, ocidente, ou norte, o seu valor militar era quase nulo, pelo que o melhor era vendê-lo. Por outro lado, com a situação do Lazareto na sua parte baixa, se se quisesse mantê-lo “naquela mal escolhida localidade”, teria o governo de despender algum dinheiro com o forte, pois não poderia, para o policiamento interno do Lazareto, deixar-se de incluir nele o mesmo forte. Haveria, então, que se estudar a localização da estrada para Santa Cruz e Machico, que teria de passar acima do forte e assim construir-se a nova ponte. A estrada passou efetivamente para cima da escarpa e o Lazareto fechou-se com um portão de ferro ao largo, encimado com as armas reais, hoje no jardim da Q.ta das Cruzes. Mas o forte acabou por ser entregue pelo Exército ao Ministério das Finanças, embora com inquilinos descendentes do antigo guarda-fiscal Henrique Marcelino de Nóbrega, de família ali residente há quase 100 anos e que somente dali saiu em 2014. O tombo seguinte, com o n.º 110, corresponde à “Casa da guarda da foz da ribeira de Gonçalo Aires” e é assinado por António Pedro de Azevedo, a 17 de setembro de 1862, data em que procedeu ao levantamento da área. A casa é descrita como ocupando uma superfície de 29 ca, com 7 x 4 m, tendo porta e janelas com grades. António Pedro de Azevedo cita que foi “primitivamente destinada a alojar a guarda noturna encarregada de vigiar o contrabando neste porto”. Acrescenta que confrontava em todos os lados com terrenos do Lazareto do Funchal e o seu valor seria de 1000 réis, em virtude de a sua proximidade com o mar tornar insegura a sua situação. Em 1892, António Leite Monteiro reitera que o prédio “devia ser vendido”, parecendo que a venda se processou a 31 de janeiro de 1896, mas parte do documento encontra-se ilegível (ABM, Arquivos Particulares, Tombo Militar n.º 11, n.º 110). A localização alcantilada do forte dos Louros inspirou inúmeros artistas, desde Andrew Picken (1815-1845), Funchal from the East, em 1840 e 1842, a William Gore Ouseley (1766-1866), por volta de 1850, Isabella de França (1795-1880), em 1853, etc., assim como o lazareto depois instalado no porto, por debaixo do forte, e onde era a antiga casa da guarda da foz da ribeira, que foi utilizado também como prisão militar, v.g., dos monárquicos da Revolta de Monsanto, em 1918, e dos elementos envolvidos na Revolta da Madeira, em 1931. Vista do Funchal com Forte dos Louros. Andrew Picken. 1840.   Imagens Arquivo Rui Carita. Rui Carita (atualizado a 07.12.2017)

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