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andrade, maria lucinda de sousa

Maria Lucinda de Sousa Andrade nasceu no sítio das Feiteiras de Cima, freguesia e concelho de São Vicente, na costa Norte da Ilha da Madeira a 10 de março de 1903. Filha de João Francisco de Andrade e de Dª. Amélia Carolina de Sousa, foi batizada na igreja matriz desta freguesia a 24 de março do mesmo ano sendo seus padrinhos seu tio materno Carlos João de Sousa e Nossa Senhora, (segundo prática habitual no seio da religião católica em que é possível consagrar uma criança a uma figura do culto católico no momento do batismo ou por falta de um dos padrinhos ou por vontade dos pais). O casal teve outras duas filhas, Maria Pia (n. 22.06.1900) e Teresa (n. 09.02.1908) sendo Lucinda a filha do meio e, segundo relatos, em São Vicente as três irmãs eram conhecidas quando solteiras como “as meninas Andrade”, sendo que Lucinda Andrade nunca viria a contrair matrimónio. Após terminar o ensino básico no ensino particular, rumou à capital madeirense onde completou o sétimo ano do Curso dos Liceus no Liceu Nacional do Funchal e na década de 30, com vista a prosseguir uma carreira no ensino, terá frequentado um curso de Pedagogia em Lisboa no Liceu de Pedro Nunes, segundo uma notícia publicada no Jornal da Madeira aquando da sua morte (Jornal da Madeira, 13.10.2000), embora no decurso desta investigação tenha surgido também a hipótese de haver frequentado a Escola Pedagógica João de Deus, não nos foi possível confirmar nenhuma das hipóteses sendo que certo é que ambas as instituições eram então estruturas vocacionadas para a formação de professores. Mais tarde, de volta ao Funchal, iniciou a sua carreira docente e em 1943 regressou à freguesia de São Vicente, de onde, exceto em viagem, não voltaria a sair, dedicando-se ao ensino – atividade que exerceria durante toda a sua vida. Considerada a “mãe” do ensino secundário no concelho de São Vicente, a vida de Lucinda Andrade está intimamente ligada à evolução do ensino nesta localidade, pois até meados da década de 60, em São Vicente, o ensino era ministrado em regime de ensino particular por professores em suas residências, sendo que Lucinda Andrade ensinava já matérias do nível secundário e chegou a preparar na sua residência uma divisão para o efeito, onde em “mesas estreitas e bancos corridos”, ensinava Inglês, Português, Matemática, Desenho e Físico-química sendo a sua área de eleição o Francês, em que era considerada “excelente”, preparando os alunos ditos “auto-propostos” para os exames de 2º e 5º ano do Liceu. Tendo em conta que os dados estatísticos revelam que na primeira metade do século XX o analfabetismo na RAM ascendia aos 70%, valor que só minguaria para os 33% a partir da década de 60 após a criação do Plano de Educação Popular e da Campanha Nacional de Educação de Adultos em 1952, pode-se associar a crescente alfabetização da população do Norte da ilha da Madeira, e em especial no concelho de São Vicente, à enérgica ação de Lucinda Andrade assumindo esta o papel de grande impulsionadora do ensino neste concelho, que a agraciou por seus méritos em 1983 com a sua Medalha Municipal (Id., Ibid ,.). Em 1964, aquando da criação do Externato São Vicente, no sítio das Casas Novas, fez parte do corpo docente inicial desta instituição de ensino vocacionada para o ensino do 1º e 2º ciclo do ensino Liceal, com capacidade para 80 alunos de ambos os sexos – algo pouco habitual na época – e que se manteria em regime de ensino particular até 1988, ano em que, por se considerar “ser necessário proceder à criação do Ensino preparatório e Secundário oficial nesta Vila [de São Vicente] (…), foi criada a Escola Preparatória e Secundária de São Vicente; que entrou em funcionamento no ano letivo de 1988-1989”. Ainda no ano de 1988, por deliberação do Conselho de Governo e assente no Ofício – Circular nº 189/4.0.1/88, atribuiu-se à nova entidade escolar a denominação de Escola Preparatória e Secundária Dona Lucinda Andrade, como forma de homenagear a professora que “dedicou toda a sua vida ao ensino, com espírito de abnegação invulgar e extraordinária competência e zelo.”, citando o documento supramencionado. As novas instalações da atual Escola Básica e Secundária Dona Lucinda Andrade foram inauguradas no sítio do Passo no dia 04 de outubro de 1993, em cerimónia que contou com a presença do então Presidente do Governo Regional da Madeira, Alberto João Jardim, do Secretário Regional da Educação, Francisco Santos e Gabriel Drummond, Presidente da Câmara Municipal de São Vicente e em que Lucinda Andrade teve a honra de destapar a placa ostentando o seu nome (fig.2). De referir que a atual escola comemora anualmente o Dia da Escola a 10 de março, data de nascimento de Lucinda Andrade. Fig. 2– Inauguração da Escola Básica e Secundária Dona Lucinda Andrade. 04.10.1993. Foto do arquivo pessoal de Teresa Silva Atendendo ao falecimento recente de Lucinda Andrade, bem como à escassez de material consultável onde se pudesse apoiar este texto, ele acabou por ser produzido com recurso, sobretudo, a testemunhos obtidos de antigos alunos, colegas de profissão, amigos e familiares que nos traçaram o perfil de uma mulher de personalidade forte, vivaz e determinada, ainda que reservada e pouco dada a contactos sociais tendo recebido as homenagens que lhe foram prestadas com “aparente modéstia”. Pioneira e empreendedora, terá sido das primeiras mulheres a conduzir um automóvel em São Vicente, era “muito culta”, amante da moda, cultivando um extremo cuidado com a sua imagem, sendo senhora de postura altiva e grande beleza física, “a sua maior relação era com os alunos”, segundo relatos, dizendo-se mesmo que “dava a vida pelos alunos”, atribuindo-se à sua paixão pela Educação o facto de não haver constituído família. Contudo, ainda segundo relatos a própria Lucinda Andrade terá comentado certa vez sobre o tema: “não calhou” [casar]. Faleceu na cidade do Funchal no dia 12 de outubro de 2000, aos 97 anos, vítima de acidente doméstico em sua residência de São Vicente. Isilda Quintal Fernandes     artigos relacionados silva, ângelo augusto da liceu / escola secundária jaime moniz moniz, jaime a obra das mães pela educação nacional na madeira

História da Educação Educação História Económica e Social

meneses, sérvulo drummond de

Advogado, político e jornalista madeirense, com grande influência local durante a época liberal. Nasceu em 1802 no Funchal, tendo perecido no mesmo local em 1862. Palavras-chave: Política; Jornalismo.   Sérvulo Drummond de Meneses nasceu no Funchal, em 23 de dezembro de 1802, sendo filho de João Nepomuceno Correia Drummond e de Maria Isidora de Meneses e Brito. Casou-se com Maria Carlota Arnaut, com quem teve cinco filhos. Concluiu o curso liceal no Funchal e depois iniciou-se como praticante no escritório do tio, o escrivão Inácio Correia Drummond, sendo, mais tarde, nomeado escrivão judicial. Antes de 1820, foi cadete do Corpo de Artilharia Auxiliar, mas, após a Constituição de 1822, tornou-se advogado provisionado, tendo efetuado o concurso de provas junto do Tribunal Superior de Justiça, apesar de não ser formado em Direito, acabando por se destacar como um dos mais distintos advogados do seu tempo e por deixar algumas peças de carácter administrativo e civil, umas inéditas e outras avulsas. Militou no partido cartista, ou liberal, e, mais tarde, no partido cabralista, militância que terá facilitado o seu acesso à carreira política. Foi presidente da Câmara Municipal do Funchal e vereador da mesma Câmara, tendo fundado, a 12 de janeiro de 1838, a Biblioteca Municipal do Funchal, importante estrutura cultural do arquipélago. Entre os cargos públicos que exerceu, relevam-se também o de vogal do Conselho Distrital, o de procurador à Junta Geral, o de secretário-geral do Governo Civil e o de governador civil interino, na ausência do conselheiro José Silvestre Ribeiro (1848-1849). Como jornalista, foi redator e diretor do periódico funchalense A Flor do Oceano, entre 1828 e 1866, tendo colaborado igualmente em outros periódicos, entre os quais O Regedor (1823 e 1828) e A Ordem (1852-1860). Foi autor de várias obras de interesse regional, como Uma Epocha Administrativa da Madeira e Porto Santo, publicado no Funchal (1.º vol., 1849; 2.º vol., 1850; o 3.º vol., de 1852), é de António Jacinto de Freitas); Collecção de Documentos Relativos ao Asylo da Mendicidade do Funchal; Collecção de Documentos Relativos à Construção da Ponte Ribeiro Secco; Collecção de Documentos Relativos á Fome por que Passaram as Ilhas da Madeira e Porto Santo em 1847. Como poeta, publicou, na juventude, poemas que foram incluídos na Collecção d’Algumas Obras Poeticas offerecidas ao Ilmo. e Exmo. Sr. Sebastião Xavier Botelho. Foi agraciado com o grau de cavalaria da Ordem de Nossa Senhora da Conceição, de Vila Viçosa. Faleceu no Funchal, a 13 de janeiro de 1867. Obras de Sérvulo Drummond de Meneses: Collecção de Documentos Relativos ao Asylo da Mendicidade do Funchal (1848); Collecção de Documentos Relativos à Construção da Ponte Ribeiro Secco (1848); Collecção de Documentos Relativos á Fome por que Passaram as Ilhas da Madeira e Porto Santo em 1847 (1848); Uma Epocha Administrativa da Madeira e Porto Santo (1.º vol., 1849; 2.º vol., 1850).   António Manuel de Andrade Moniz (atualizado a 24.02.2018)

Direito e Política História Política e Institucional

melo, antónio júlio de santa marta do vadre de mesquita e

António Júlio de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1833-c. 1900), 3.º visconde de Andaluz, foi para a Madeira como secretário-geral do governador, D. Tomás de Sousa e Holstein, marquês de Sesimbra; porém, o marquês de Sesimbra não estaria um ano no lugar. António Melo foi nomeado para o lugar de governador civil do Funchal em setembro de 1879. Coube ao seu Executivo tentar acalmar a agitação política, que se devia à nomeação de nobres da Corte, o que não se enquadrava já na vida política portuguesa. Palavras-chave: Arranjos familiares; Governo civil; Partidos Políticos; Regeneração; Tumultos populares.   O governador civil do Funchal D. João Frederico da Câmara Leme (1821-1878), do Partido Regenerador, foi exonerado em 1868 pelo Executivo do açoriano conde de Ávila, António José de Ávila (1806-1881), do Partido Reformista ou Partido Popular, então uma cisão do Partido Histórico (Partido Histórico e Partidos políticos). As complexas alianças entre estes partidos levaram o Governo de Lisboa a colocar em S. Lourenço duas figuras da aristocracia da Corte de Lisboa: o marquês de Sesimbra, D. Tomás de Sousa e Holstein (1839-1887), filho do duque de Palmela (1781-1850), como governador civil, e o 3.º visconde de Andaluz, António Júlio de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1833-c. 1900), como secretário-geral. Estas duas escolhas foram alicerçadas em vagas ligações familiares às antigas famílias insulares e foram por certo resultado da pressão dos elementos do Partido Histórico, incapazes de compreender as novas realidades dos meados e da segunda metade do séc. XIX. O marquês de Sesimbra era casado com uma filha dos marqueses da Ribeira Grande, descendentes de Zarco, mas dos Açores, e viria a ser sogro do futuro conselheiro Aires de Ornelas e Vasconcelos (1866-1930); o visconde de Andaluz estaria para se casar com uma filha do barão da Conceição, Fortunato Joaquim Figueira (1809-1885), abastado proprietário que se havia fixado no Funchal nesse mesmo ano de 1868. O marquês de Sesimbra – ou de Cezimbra, como então aparece escrito – foi nomeado por decreto de 9 de setembro e viria a tomar posse a 17 de outubro de 1868, após Te Deum na catedral do Funchal celebrado à uma da tarde; disso nos dá conta o visconde de Andaluz, seu secretário-geral, que o comunicou às autoridades do Funchal, convidando-as para o evento. A administração do marquês ir-se-ia pautar por uma simples gestão administrativa, sendo praticamente toda a correspondência assinada pelo secretário-geral. Realizadas eleições em maio do seguinte ano de 1869, e passado o verão, o marquês de Sesimbra retirou-se, nos primeiros dias de setembro, para o continente, não completando um ano de governo na Madeira. Palácio e Fortaleza de São Lourenço. 1870. Arquivo Rui Carita O visconde de Andaluz tinha sido nomeado governador civil do Funchal por decreto de 4 de setembro, tomando posse a 8 do mesmo mês. Faria então uma proclamação aos “Habitantes do distrito do Funchal! Por decreto de 4 do corrente Houve por Bem Sua Majestade” nomeá-lo governador civil. Apelava então: “Auxiliai-me com o seu conselho e com as suas luzes […] pela prosperidade desta Terra, que eu hei de esforçar-me em promover os interesses dela com solicitude e dedicação” (ABM, Alfândega do Funchal, circular de 9 set. 1869). Era um discurso um pouco ultrapassado para a época, semelhante às proclamações liberais dos anos 30 e 40, conhecidas no Funchal durante a vigência da Junta Governativa de 1847 e o conselheiro José Silvestre Ribeiro (1807-1891) – proclamações que alguns anos depois ainda viriam a surgir, então ainda mais estranhas ao contexto político da época. O novo governador tentou fazer face à situação algo agitada que se vivia, não só política, como geral. No arquipélago, nem sempre se encontrava gente à altura para os vários locais diretivos e, ao mesmo tempo, não se conseguiam definir especificamente estruturas partidárias, daí resultando vagas organizações articuladas em relações pessoais em torno dos membros mais influentes das elites locais. Em maio de 1870, e.g., tendo o visconde de Andaluz suspendido o administrador do concelho de Santana, “não havendo naquela localidade pessoa com os requisitos necessários para, na atual conjetura entrar na referida vagatura”, solicitava à Casa Fiscal da Alfândega do Funchal a disponibilização do funcionário Joaquim Pinto Coelho (1817-1885) para ocupar o lugar (Ibid., Alfândega do Funchal, of. 23 abr. 1870) – uma nomeação acertada, considerando o tempo em que aquele funcionário ocupou o lugar da Alfândega. Nos inícios de 1870, por decreto de 2 de janeiro, procedeu-se à dissolução das Cortes e, a 3 de fevereiro seguinte, à reunião das assembleias eleitorais. Na Madeira, as eleições decorreram a 1 de maio, voltando a sair os nomes de Luís Vicente de Afonseca (1803-1878) e Agostinho de Ornelas e Vasconcelos (1836-1901). Porém, as eleições decorreram muito mal e, especialmente em Machico, ocorreram tumultos graves. Acontece que o governador destacara para os principais centros eleitorais forças de Caçadores 12, nem sempre comandados por elementos capazes de manter o sangue frio. As forças militares acabaram por se refugiar na igreja matriz e, acossadas pela populaça, fizeram fogo sobre a multidão, o que resultou em vários mortos (Tumultos populares). Houve também incidentes em outros locais, inclusivamente no Funchal. O Partido Popular, que se achava na oposição, tinha um certo domínio sobre as massas populares e quando Joaquim Ricardo da Trindade e Vasconcelos (1825-1906), então membro do Partido Fusionista, desembarcou no Funchal, ido precisamente de Machico, foi preso na Pontinha e conduzido à Pr. da Constituição para justiça popular. Evitou o assassinato o jovem Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825-1898), uma das figuras prestigiadas do Partido Popular, que se interpôs entre os populares e Trindade e Vasconcelos. Como o visconde de Andaluz tinha feito vários contactos e estabelecido um pacto de não intervenção nos assuntos do Partido Popular, foi isso que aconteceu em relação a novas alterações da ordem pública em Machico, aquando dos funerais das vítimas do dia 1 de maio. Os acontecimentos de Machico produziram grande sensação na imprensa madeirense e, de imediato, no continente, sendo o visconde violentamente atacado nas Cortes e na imprensa de Lisboa. Em julho ainda apareciam na comunicação social de Lisboa abaixo-assinados respeitantes aos acontecimentos de Machico e à maneira pouco ortodoxa como haviam sido encaminhados juridicamente. Um conjunto de cinco guardas da Alfândega do Funchal, e.g., fora indiciado e preso “pelo crime de cumplicidade nas mortes e ferimentos feitos pela força militar dentro do templo de Machico” (A Revolução de Setembro, n.º 8416, Lisboa, 5 jul. 1870, 1). O despacho fora emitido pelo juiz da comarca oriental do Funchal, Cassiano Sepúlveda Teixeira, e os guardas não entendiam como podiam ser acusados de “crimes eleitorais e políticos” e de “crimes de violência contra membros da assembleia eleitoral” (Ibid.), quando o que estava em causa era uma série de mortes entre a população local, cujos autores tinham sido os soldados de Caçadores 12, como se queixam então os guardas António José Nunes, Jacinto Augusto Ferreira, Januário Esteves de Sousa, Augusto Celestino Lacerda e António Vieira. O visconde de Andaluz foi exonerado em poucos dias, por dec. de 14 de maio de 1870. Foi nomeado como governador do distrito do Funchal Afonso de Castro (1824-1885), que tomou posse a 19 desse mês de maio, mas que não estaria na Madeira senão oito dias, face a mais uma intentona militar do duque de Saldanha (1790-1876) em Lisboa. Poucos meses depois, e face ao insucesso das nomeações, D. João Frederico da Câmara Leme voltava a ocupar o lugar de governador civil. O 3.º visconde de Andaluz era bacharel em Direito e herdou o título de seu pai, Joaquim José dos Mártires de Santa Marta do Vadre de Mesquita e Melo (1806-1863), que o tinha recebido por doação de sua tia materna, Maria Bárbara do Vadre de Almeida Castelo Branco, viúva do 1.º visconde, António Luís Maria de Mariz Sarmento, dado do casamento não ter havido descendência. Embora tenha sido uma situação algo insólita, o 3.º visconde de Andaluz, um ano depois do falecimento do pai, conseguiu a confirmação do título por carta régia do D. Luís (1838-1889), de 17 de dezembro de 1864. Casou-se no Funchal com D. Ana Joaquina Figueira, filha dos barões da Conceição. Desse casamento houve quatro filhas, tendo-se a mais velha casado com o conde de Vila Verde, D. Pedro de Almeida e Noronha Portugal Camões Albuquerque Moniz e Sousa (1865-1908). A 4 dezembro de 1890, o 3.º visconde de Andaluz ainda seria nomeado governador civil de Santarém, lugar que ocupou até 2 de janeiro de 1892. Terá falecido cerca de 10 anos depois.   Rui Carita (atualizado a 01.02.2018)

Direito e Política História Política e Institucional Personalidades

mendes, josé alberto reynolds

O Gen. José Alberto Reynolds Mendes nasceu no Funchal a 9 de abril de 1939, filho de João Gregório Mendes e de Cândida Assunção Reynolds Mendes; casou-se em 1967 com Maria de Fátima F. P. Pereira Reynolds Mendes e teve três filhos, Paulo José (1967) e os gémeos Alexandra Sofia e Alberto Sérgio (1968). Frequentou o Liceu Nacional do Funchal e ingressou na Academia Militar como cadete, em 1957. Em julho de 1960 concluiu na mesma Academia o curso de Infantaria e ficou colocado em Mafra, na Escola Prática deste ramo do Exército. No ano seguinte, frequenta na mesma Escola um curso sobre métodos de instrução, na qualidade de aspirante tirocinante. Ainda em 1961, é promovido a alferes, e, após um tempo de serviço no Regimento de Infantaria 2, em Abrantes, é mobilizado para servir na Região Militar de Angola (RMA). A 20 do mesmo mês parte do Aeroporto Militar de Figo Maduro em direção à Base Aérea 9 de Luanda como comandante do pelotão da Companhia de Caçadores 89. Depois de ter sido promovido a tenente, é colocado no Batalhão de Infantaria 19 no Funchal a 13 de abril de 1963. De 11 de junho a 6 de julho do mesmo ano, no Centro de Instrução de Operações Especiais, de Lamego, frequenta o curso de Instrutores e Monitores de Operações Especiais. A 24 de julho de 1964, mobilizado pelo Batalhão de Caçadores 5 de Campolide, segue de novo para Luanda, onde prestará serviço na Região Militar de Angola. Em 1966, habilita-se com o curso de Instrução de Comandos, é promovido a capitão e agraciado com a medalha de mérito militar de 3.ª classe, sendo louvado como “oficial de excelsas virtudes”, “extremo sentido de disciplina e de missão, elevadas qualidades de iniciativa, decisão, coragem e determinação” (“Nota de óbito”), e passa a comandar a 6.ª Companhia de Comandos até 1 de setembro de 1967, data em que regressa à metrópole. A 5 de Março de 1968, é-lhe conferida a medalha de mérito, que dá origem, a 5 de março de 1968, à condecoração com a Cruz de Guerra de 3.ª classe. De 23 de setembro a 4 de outubro do mesmo ano, conclui o estágio de Ação Psicológica no Instituto de Altos Estudos Militares de Pedrouços. No ano seguinte, a 22 de fevereiro, parte para Luanda e integra as tropas de reforço à Guarda Nacional na RMA. Mantém-se nesta comissão até 1973 e habilita-se com o Curso Geral do Estado-Maior. Nesta data recebe a medalha de prata de comportamento exemplar. Em fevereiro de 1975, é nomeado chefe da 2.ª Repartição do Comando Geral da Polícia de Segurança Pública. Parte para Macau, onde, em 1980, frequenta o curso da Criminal Information Research School/Drug Enforcement Administration/EUA e aqui, no posto de major, desempenha as funções de chefe de Divisão de Operações e Informações do Comando das Forças de Segurança. Depois das campanhas de Angola e das comissões especiais em Macau é condecorado, em 1984, com o grau de cavaleiro da Ordem de Avis (comendador). Frequenta, em 1986, o curso do Colégio de Defesa da NATO, em Roma, onde, após graduação e promoção a coronel, foi Conselheiro de Estudos, entre 1987 e 1990. Uma vez promovido a brigadeiro, exerceu o cargo de subdiretor do Instituto de Defesa Nacional, e foi colocado, em 1996, como comandante da Zona Militar e comandante operacional da Madeira, tendo terminado este desempenho em 1998. Passou à situação de reserva em abril deste mesmo ano, por limite de idade. Em 2003, participa no fórum da Military Review, revista profissional do exército dos EUA, sediada em Fort Leavenworth, Kansas, com um estudo intitulado “Guerra Assimétrica, Riscos Assimétricos”. O estudo consiste numa análise sobre os diversos níveis de terrorismo existentes nos começos do séc. XXI e em previsões sobre os seus efeitos nas organizações de defesa, nas alianças internacionais e nas áreas de informações, operações e logística. Este estudo foi publicado na versão brasileira da mesma revista (vol. LXXXIII, 2.º trim., pp. 46-54. Com a patente de major-general, Reynolds Mendes atinge a reforma em julho de 2004. Foi ainda diretor do Gabinete de Gestão do Litoral do Governo Regional da Madeira. Na sua obra poética, publicada sob o pseudónimo de Marco Reynolds, a escrita revela-se uma necessidade moral de participar no mistério da vida, na intangibilidade dos afetos e no contraditório da existência humana: a sua dupla face, em busca dum estado de ser. Observa a matriz sanguínea e telúrica que define o poeta, amador da vida, do amor e da terra de origem, a “Ilha-Mãe”, onde “vale a pena reencontrar” (-se) (MENDES, 2009, 36). A fusão dos vários espaços onde se move remete para uma situação de duplicidade em que o homem-cívico, imbuído dum espírito de missão, se coliga ao homem-emotivo, sensível aos sortilégios do amor. Há um sentimento de promissão dirigido a uma vontade de resgate da mulher amada e do solo “depredado” que permanece em todos os seus livros, consolidando-se a última vertente em Ilha-Mãe – Ilha-Pátria. Sendo a Ilha a terra do regresso e da esperança, são as memórias do seu tempo em África que o levam a auscultar, em Ofício Prestante, os caminhos imperfeitos, ainda que aliciantes, da pátria: a pátria que refere como “lágrima de Deus” e “ubérrimo ventre”. “Não tomes nas tuas mãos pálidas/o meu esplendor de ébano selvagem/O que digas perder-se-á nas brumas/de África/e assaz tardará o sol a aquecer-nos/Não tomes no peito o amor/antes que chegue o tempo maduro da vinha nas encostas” (MENDES, 2005, 78). José Alberto Reynolds Mendes morreu em Lisboa, em 2016. Outras distinções profissionais recebidas pelo Gen. José Alberto Reynolds Mendes: medalha das expedições das Forças Armadas Portuguesas – Macau, 1976-80; medalha de mérito militar de 2.ª Classe, 1979; medalha de prata de Serviços Distintos, 1985; medalha de ouro de comportamento exemplar, 1988; medalha de mérito militar de 1.ª classe, com distintivo branco do exército espanhol, 1991; medalha de mérito militar de Avis (cavaleiro, oficial, grande oficial), 1995; medalha de ouro de Serviços Distintos, 1998. Vários louvores individuais provenientes de entidades militares e Conselho de Governo da Madeira. Obras de José Alberto Reynolds Mendes: Gestação de Uma Nova Face (1970); “Guerra Assimétrica, Riscos Assimétricos” (2003); Gestação da Face e Outros Poemas (2005); Ofício Prestante (2006); Ilha-Mãe – Ilha-Pátria (2009).   Irene Lucília Andrade (atualizado a 01.02.2018)

História Militar Personalidades

heer, oswald

Oswald Heer (1809-1883), geólogo e botânico suíço, especializou-se no estudo de fósseis. Por motivos de saúde, Heer passou um inverno na Madeira e, como resultado dessa estadia, publicou um artigo onde descreve fósseis das plantas de São Jorge. Heer nasceu na Suíça a 31 de agosto de 1809 e passou a maior parte da sua juventude no cantão de Glarus, onde seu pai era pastor luterano. Em 1828, começou os estudos de Teologia e História Natural na Universidade de Halle e foi ordenado pastor em 1831, embora deixasse esta profissão pouco depois, para se dedicar exclusivamente às ciências. Em 1834, começou a trabalhar como professor de Botânica na recém-fundada Universidade de Zurique e, nesse ano, fundou o herbário dessa instituição. Em 1855, quando o Politécnico de Zurique foi fundado, Heer ocupou o cargo de professor de Botânica, que exerceu até ao fim da sua vida. Em 1845, funda a Sociedade de Agricultura e Horticultura de Zurique e, durante muitos anos, foi membro do Grande Conselho dessa cidade. Os seus primeiros trabalhos científicos foram dedicados à entomologia, embora depois se dedicasse quase exclusivamente ao estudo de fósseis. Publicou numerosos artigos nessa área, mais de 70, entre eles, a descrição da flora fóssil da Suíça, do Ártico, Gronelândia, e de algumas partes de Inglaterra, do Canadá e da Ásia. Heer tinha problemas pulmonares e, por esse motivo, passou o inverno de 1854-1855 na ilha da Madeira. Após esta viagem, publicou alguns artigos sobre os fósseis da ilha: “Über die fossilen pflanzen von St. Jorge in Madeira” e “Contributions à la flore fossile du Portugal”, incluindo uma discussão sobre a origem da flora e fauna da Madeira, dos Açores e das Canárias: “On the probable origin of the organized beings now living in the Azores, Madeira, and the Canaries”. Oswald Heer ganhou a medalha Wollaston em 1874 e a medalha Real em 1877 pela sua contribuição para o conhecimento das plantas fósseis da Europa e do Ártico e pelas suas teorias sobre a relação entre o clima e a origem da flora no período terciário. Morreu em Lausanne, na Suíça, a 27 de setembro de 1883. Obras de Oswald Herr: “On the probable origin of the organized beings now living in the Azores, Madeira, and the Canaries” (1856); “Über die fossilen pflanzen von St. Jorge in Madeira” (1857); “Contributions à la flore fossile du Portugal” (1881).   Pamela Puppo (atualizado a 23.02.2018)

Personalidades Geologia

posturas

Regulamentos provindos dos corpos administrativos locais, as câmaras municipais, no sentido de adaptar a legislação geral às condições específicas do espaço municipal, visando sempre o benefício da conservação da Ilha. A primeira informação que temos sobre a sua existência na Madeira resulta de uma recomendação feita pelo infante D. Fernando ao capitão do Funchal, a 3 de agosto de 1461, com a indicação de que não interferisse nas posturas e de que estas fossem impostas a todos os funchalenses. Palavras-chave: município; legislação; administração. Ocupam o lugar mais baixo da hierarquia da legislação; são regulamentos locais, provindos dos corpos administrativos, as câmaras municipais, que se faziam “na forma da lei”, no sentido de adaptar a legislação geral às condições específicas do espaço municipal e tinham sempre, como princípio fundamental, o “benefício da conservação da Ilha” (PACHECO, 2002, 96), como se afirmava em 1724. Tal como se dizia em 1524, a todos acometia a obrigação de guardar a ordenação régia e as posturas da câmara. A primeira informação que temos sobre a existência de posturas na Madeira resulta de uma recomendação feita pelo infante D. Fernando ao capitão do Funchal, a 3 de agosto de 1461, no sentido de este não interferir nas posturas e de todos os funchalenses as cumprirem. Depois, em 1468, o infante D. Fernando refere as posturas que Dinis Anes de Grãa, ouvidor do duque, dera aos moradores de Câmara de Lobos. Acrescente-se que, em 21 de junho de 1481, foi feita uma postura para apregoar as posturas. As posturas eram aprovadas em vereação, tombadas em livro próprio e depois divulgadas em público, pelo porteiro da Câmara, através de pregão. A 1 de abril de 1598, fez-se reunião da nobreza e do povo para ler as posturas, que foram depois apregoadas em praça pública. Foram também publicitadas através de edital ou na imprensa, a partir do séc. XIX. Até ao regime liberal, as mesmas eram lidas na praça do pelourinho pelo porteiro da câmara, como referimos, fazendo-o este com alguma frequência e por determinação da vereação. A primeira ordem nesse sentido é de 21 de julho de 1481. Esta faculdade manteve-se sempre como uma prerrogativa fundamental do direito e poder municipais. As alterações de regime, nos sécs. XIX e XX, não retiraram ao município esta capacidade de elaborar as suas posturas e regulamentos. A novidade mais significativa prende-se, certamente, com a sua impressão. Com a República, estas passaram a ser destinadas a regulamentar as situações de polícia urbana e rural, atendendo especialmente às medidas de salubridade pública. A Madeira usufruía, no séc. XV, de condições particulares, com o senhorio e as capitanias, que diferenciavam a sua administração da das demais partes do reino. Todavia, as cartas de doação definem a precariedade deste processo e a capacidade de mandar e julgar, e nunca de legislar. Neste último aspeto, deveriam os capitães sujeitar-se aos forais ou regimentos gerais do reino. A capacidade de legislar surgiu apenas com a afirmação do município. As posturas são a materialização desse anseio, sendo os seus capítulos uma tentativa de dar voz às aspirações de uma região, no caso, o município. A ela se reconhece, assim, o caráter autónomo da administração, sendo o poder assente na jurisdição local (foral e posturas) e no exercício dos magistrados eleitos, destes últimos, os juízes com alguma capacidade jurisdicional. As posturas municipais, mercê da sua dupla fundamentação, refletem, no enunciado, as ordenações régias, reescritas de acordo com as particularidades de cada município e os sentimentos comunitários do justo e do conveniente. A par disso, de acordo com as ordenações afonsinas, o legislador deveria atender “ao prol e bom regimento da terra”. Deste modo, o seu articulado era o espelho da vivência quotidiana do município e da adequação das ordenações e regimentos do reino às novas e particulares condições políticas e económicas locais. Tais condicionantes justificam o seu caráter precário e a permanente mudança desse código, o que conduziu a diversas compilações e originou constantes alterações do articulado; a reforma das posturas sucedeu-se com frequência, como se poderá verificar pela leitura das atas das vereações. Talvez, por isso, em muitos municípios, não se fez a necessária compilação em livro, ficando as posturas apenas lavradas nas atas das vereações em que foram aprovadas. Por outro lado, o facto de serem, por vezes, medidas legislativas de ocasião promovia a sua rápida inadequação e a necessidade da sua reformulação ou revogação. Note-se que, em 18 de julho de 1738, o município do Funchal reuniu em sessão para reformar as posturas, “por não se poderem observar em parte as posturas antigas” (Id., Ibid., 66). As posturas são a fonte mais importante para o estudo do direito local. A circunstância de refletirem, no seu enunciado, as preocupações e domínios de intervenção locais leva-nos a valorizá-las fortemente como fonte para o estudo e conhecimento da realidade municipal. Ao surgirem como normas reguladoras dos múltiplos aspetos do quotidiano do município, são o indício mais marcante da mundividência local. De acordo com as ordenações e regimentos concedidos, o município tinha atribuições legislativas particulares resultantes, nomeadamente, da necessidade de adaptação das disposições gerais do reino às condições do espaço a que seriam aplicadas; por um lado, tínhamos as disposições gerais, estabelecidas pela Coroa e, por outro, as normas de conduta institucionalizadas no direito consuetudinário, que impregna e define as particularidades da vivência local. O município português, nos sécs. XVI e XVII, dispunha de uma ampla autonomia e de uma elevada participação das gentes na governança. Todavia, com o decorrer da prática municipal, essa autonomia acabou por revelar alguns atropelos, que levaram a Coroa a limitar a sua alçada por meio da intervenção de funcionários régios como o corregedor. Tendo em consideração essa ambiência, os monarcas filipinos, aquando da união das coroas peninsulares (1580-1640), procuraram cercear os poderes dos municípios portugueses, procedendo a algumas alterações na sua orgânica. A intervenção e alçada dos cargos municipais definidas nas ordenações e regimentos régios não careciam de uma redefinição no código de posturas e, deste modo, o código das posturas apenas estabelecia normas para a intervenção dos funcionários municipais empenhados na sua aplicação: os rendeiros do verde e os almotacés. As normas para serviço destes funcionários municipais eram da exclusiva competência da vereação e homens-bons e surgem nas posturas. Aos almotacés competia a fiscalização do normal cumprimento das posturas. No ato de juramento deste ofício, insistia-se na necessidade de guardar as posturas e proceder a pregões. Por outro lado, os almotacés davam juramento aos jurados dos lugares para as fazerem cumprir. A partir da República, esta função de fiscalização passou para os guardas cívicos. No Antigo Regime, o município, representado através dos vereadores, eleitos de entre os homens-bons, detinha amplos poderes. Através do código de posturas, normas gerais de conduta aplicáveis a toda a jurisdição, o município intervinha na economia, por meio da regulação do abastecimento local, do aproveitamento das terras e das águas, da definição dos locais de compra e venda dos produtos, do controlo do armazenamento, transporte e distribuição de bens essenciais, como os cereais, do controlo dos preços, pesos e medidas. São poucos os registos e códigos de posturas para os municípios madeirenses. Muitos se perderam ou as compilações não aconteceram na forma da lei. De uma maneira geral, estes encontram-se avulsos em atas das vereações, sendo impressos, como referimos antes, apenas a partir da segunda metade do séc. XIX. Eis as posturas que estão disponíveis em compilações: para o Funchal, posturas, contas e taxas para contas, relativas aos anos de 1481, 1512, 1550, 1572, 1587, 1598, 1598, 1599, 1620, 1625, 1627, 1631, 1649, 1675, 1738, 1745, 1746, 1755, 1769, 1780, 1869-1885, 1920; e registo de regimentos e posturas, relativas a 1789-1851; para Câmara de Lobos, as respeitantes aos anos de 1852, 1855, 1859, 1860, 1863, 1864, 1865; para Machico, as posturas de 1598, 1627, 1780; para o Porto Santo, as de 1780, 1791, 1796. Desde o séc. XIX que a sua publicação é obrigatória, porém, só temos conhecimento da impressão das do Funchal (1849, 1856, 1890, 1895, 1912, 1954), Machico (1598, 1627, 1780, 1856), Porto Moniz (1859, 1890), Santana (1837, 1841), Calheta (1842), Porto do Moniz (1890), São Vicente (1897) e Ponta do Sol (1900). Recorde-se que, na República, a lei n.º 88 de 7 de agosto de 1913 (art. 100.º, n.os 3, 4, 5, 6 e 7; art. 104.º, n.os 1, 3 e 4) determina a obrigatoriedade da comissão executiva municipal proceder à sua publicação. O texto das posturas estabelece as normas que regulam o funcionamento dos cargos municipais e da administração da fazenda municipal, como já indicámos, as atividades económicas, desde a mundividência rural, oficinal e mercantil, às condutas de sociabilidade, através da regularização dos costumes e dos comportamentos de alguns grupos marginais, como as meretrizes, escravos e mancebos, e ainda as regras de salubridade dos espaços públicos. As caraterísticas ou vetores das sociedades e economias insulares refletem-se no articulado das posturas, vale a pena referi-lo de novo. Deste modo, a maior ou menor valoração de determinado tópico é, sem dúvida, resultado da sua premência no quotidiano insular. De acordo com a divisão em sectores de atividade económica, constata-se o predomínio do sector terciário. Esta tendência para a terciarização da realidade socioeconómica deverá resultar, por um lado, do facto de o meio urbano gerar um maior número de situações que carecem da intervenção do legislador e, por outro, da expressão plena do seu domínio na vida económica. É necessário ter em consideração que esta realidade varia nos diversos municípios. No Funchal, os sectores secundário e terciário encontram-se numa situação muito próxima, ao contrário do que sucede com Angra, onde o último tem uma posição dominante. O predomínio dos sectores secundário e terciário poderá resultar de diversos fatores. Em primeiro lugar, convém referenciar que as posturas incidem preferencialmente sobre a urbe, espaço privilegiado para a afirmação do sistema de trocas e oferta de serviços, reanimado pelo seu carácter atlântico e europeu. Além disso, a animação oficinal e comercial do burgo, pelo seu ritmo acelerado, implicava uma maior atenção, mercê também do maior número de situações anómalas. A mundividência rural perpetuava técnicas e relações sociais ancestrais, sendo a sua atividade regulada pela rotina e ritmo das colheitas e estações do ano. De facto, no meio rural, pouco ou nada mudava com o decorrer dos anos. Deste modo, o legislador municipal canalizou a sua atenção para o quotidiano do burgo, marcado pela sucessão de mudanças. Para as sociedades em que a faina rural se tornou importante e definidora dos vetores socioeconómicos, esse espaço não poderia ser menosprezado. A ocupação e exploração do espaço insular fez-se de acordo com os componentes da dieta alimentar do íncola (o trigo e o vinho) e dos produtos impostos pelo mercado europeu para satisfação das necessidades das praças europeias (o açúcar e o pastel). Todavia, o primeiro grupo agrícola, pela sua importância na vivência quotidiana das populações insulares, solicitava maior atenção do município, pelo que 58% das posturas relacionadas com a faina rural incidiam sobre esses produtos, enquanto o grupo sobrante merecia atenção de apenas 15%. A distribuição dos referidos produtos obedecia às orientações da política expansionista da Coroa e dos vetores de subsistência e condições climáticas de cada ilha. Tais condicionantes implicaram uma ambiência peculiar dominada pela complementaridade agrícola das ilhas ou arquipélagos. Deste modo, as posturas organizar-se-ão de acordo com essa característica do mundo insular atlântico, refletindo, no seu articulado, a importância desses produtos na vivência de cada burgo. A abundância ou carência do produto em causa definia situações diversas na intervenção do legislador. No primeiro caso, essa intervenção abrangia todos os aspetos da vida económica do produto. No segundo, incidia preferencialmente sobre o abastecimento do mercado interno, definindo aí normas adequadas ao normal funcionamento desses circuitos de distribuição e troca. Assim se justifica a similar importância atribuída às posturas sobre o vinho. A pecuária assumia, em todo o espaço agrícola insular, uma dimensão fundamental, graças à sua tripla valorização económica (faina agrícola, dieta alimentar e indústria do couro). O seu incentivo conduziu a uma valorização da intervenção municipal na venda de carne nos açougues municipais, bem como das indústrias de curtumes e calçado. Note-se que, ao nível da intervenção do legislador local, essa situação é apresentada na inversa, uma vez que a sua carência implicava uma regulamentação mais cuidada e assídua do senado do que a sua abundância. O desenvolvimento da indústria de couro tinha implicações ao nível da salubridade do burgo, pelo que o senado sentiu a necessidade de regulamentar rigorosamente esta atividade, definindo os locais para curtir e lavar os couros e o modo de laboração dos mesteres ligados a essa indústria. A par disso, procurava-se assegurar a disponibilidade desta matéria-prima para a indústria do calçado, proibindo-se a sua exportação. Esta situação, aliada a outras medidas tendentes à defesa da salubridade do burgo, revela que a pecuária tinha uma importância fundamental nestas ilhas; era daí que se extraiam a carne para a alimentação, os couros para a indústria de curtumes e o estrume para fertilizar as terras, além do usufruto da sua força motriz no transporte ou lavra das terras. Na realidade, era uma grande fonte de riqueza. Uma das mais destacadas preocupações dos municípios insulares resultava dos danos quotidianos do gado solto, não apastorado, sobre as culturas, nomeadamente nas vinhas, searas e canaviais. Daí a necessidade de delimitação das áreas de pasto e a obrigatoriedade de cercar as terras cultivadas. Além disso, um conjunto variado de pragas infestava, com frequência, as culturas, o que obrigava a uma participação conjunta de todos os vizinhos. No domínio agrícola, a atenção do município variava segundo as culturas predominantes. Assim, no Funchal, que abarcava uma das mais importantes áreas de produção açucareira da ilha da Madeira, essa preocupação incidiu sobre os canaviais e engenhos, definindo a cada um o complexo processo de cultura e transformação. Os componentes da dieta alimentar insular adquiriram uma posição relevante na intervenção dos municípios madeirenses, o que demonstra as grandes dificuldades no assegurar dessa necessidade vital. Tal preocupação, no entanto, era muito variável no tempo e no espaço, adequando-se à realidade agrícola de cada urbe e à sua conjuntura produtiva. Deste modo, o seu articulado, para além de refletir a dupla dimensão espaciotemporal, evidencia uma das componentes mais destacadas da alimentação das gentes insulares. Tudo isto resultará, certamente, do facto de a dieta alimentar manter a sua ancestral origem mediterrânica, sendo, deste modo, pouco variada, o que colocava inúmeras dificuldades no abastecimento do meio urbano e justificava o consumo reduzido de legumes e peixe, potenciando o consumo abusivo de pão e vinho. Sendo os mares insulares ricos em peixe e marisco, e toda a vivência dessas populações dominada pelo mar e extensa costa, não se percebe bem o desinteresse pelas riquezas alimentares marítimas em favor da carne. Note-se que as posturas referentes à carne são praticamente o dobro das que referem o peixe. Apenas no Funchal o peixe merece a atenção do legislador; aí regulamenta-se não só a sua venda, mas também a pesca. A importância relevante do pão e da carne na alimentação insular implicou uma redobrada atenção das autoridades municipais sobre a circulação e venda destes produtos, pelo que o código de posturas acompanha todo o processo de criação, transformação, transporte e venda dos mesmos. De igual modo, é atribuída particular atenção ao quotidiano que envolve a atividade das azenhas, dos fornos e do açougue municipal. O moleiro deveria ser habilitado e diligente no seu ofício, tornando-se obrigatório o exame e o juramento anual em vereação. Na sua ação diária, atribuía-se particular atenção ao peso do cereal e da farinha, bem como ao ato de maquiar; na Madeira, essa tarefa estava a cargo de um rendeiro dos moinhos. No Funchal, este domínio mereceu uma cuidada atenção nas posturas. A necessidade de precaver danos na farinha e farelo levou o legislador a proibir a existência de pocilgas e capoeiras nas imediações dos moinhos. Além disso, a animação do espaço circundante tornava necessária a intervenção do município na definição de normas de conduta social, no sentido de moralizar e disciplinar o comportamento dos frequentadores habituais do moinho. Deste modo, não era permitido às mulheres casadas ou mancebas permanecerem aí, ao mesmo tempo que lhes era vedada a prestação de qualquer serviço na moenda. Ao moinho sucedia o forno, coletivo ou privado, que assegurava a cozedura do pão consumido no burgo. A afirmação pública deste espaço resultava da existência das condições do ecossistema insular; na Madeira, após uma fase inicial em que estes eram privilégio do senhorio, assistiu-se a uma excessiva proliferação de fornos no burgo e arredores. Todavia, a maior parte do pão aí consumido era oriundo dos fornos públicos. Deste modo, o município procurava exercer um controlo rigoroso sobre o peso e preço do pão; ambos eram fixados em vereação, de acordo com as reservas de cereais existentes nos celeiros locais. Além disso, em momentos de penúria, era a vereação que procedia à distribuição dos cereais pelas padeiras. A preocupação com o abastecimento de pão surgiu apenas no Funchal, onde foi ativa a intervenção dos almotacés sobre o fornecimento dos cereais e farinha, fabrico do pão, verificação do seu peso, e estabelecimento do preço de venda ao público. Tenha-se em consideração que este município foi pautado, desde finais do séc. XV, por uma extrema carência de cereais, o que gerou, como é óbvio, esta especial atenção por parte da vereação. O açúcar, ao invés, afirmou-se na economia insulana como o principal incentivo para a manutenção e desenvolvimento do sistema de trocas. Tal situação, associada ao caráter especializado da safra do açúcar, tornou necessária a sua coordenação pelo código de posturas na Madeira. A intervenção municipal não se resumiu apenas aos canaviais e ao complexo processo de laboração do açúcar, mas também integrou outros domínios que contribuíam, de modo indireto, para o desenvolvimento da indústria em causa. Assim se justifica a extrema atenção concedida às águas e madeiras, elementos imprescindíveis para a cultura e indústria açucareiras. Neste domínio, a intervenção municipal adequou-se às condições mesológicas de cada área produtora, variando as suas iniciativas de acordo com a maior ou menor disponibilidade de ambos os fatores de produção. Na Madeira, desfrutando a Ilha de um vasto parque florestal e de abundantes caudais de água, não houve necessidade de intervir exageradamente neste domínio, reservando-se a atenção para a safra do engenho. As posturas definem os cuidados a ter com a cultura dos canaviais, o transporte da cana e lenha pelos almocreves, bem como a ação dos diversos mesteres no engenho. A esse numeroso grupo de agentes de produção que asseguravam a laboração do engenho era exigido o máximo esforço para que o açúcar branco extraído apresentasse as qualidades solicitadas pelo mercado consumidor europeu. Deste modo, concedeu-se especial atenção à formação dos mestres de açúcar, refinadores e purgadores, ao mesmo tempo, exigiu-se ao senhor uma seleção criteriosa dos seus agentes, que deveriam prestar juramento em vereação, todos os anos. Essa atuação era reforçada com a intervenção do lealdador, um oficial concelhio que tinha por missão fiscalizar a qualidade do açúcar laborado. O uso abusivo, por parte dos seus agentes, levou o município a estipular pesadas coimas para o roubo de cana, socas, mel e bagaço. Além disso, procurava-se evitar a existência de condições que apelassem ao furto, definindo-se a proibição de posse de porcos a qualquer agente que laborasse no engenho ou a impossibilidade do pagamento dos serviços ser feito em espécie. O processo de laboração e transformação de artefactos era um sector destacado de animação do burgo, ocupando um numeroso grupo de mesteres com assento em áreas ou arruamentos estabelecidos pelo município. A necessidade de um apertado sistema de controlo sobre a classe oficinal, no sentido de promover a qualidade dos artefactos produzidos, e de tabelar os produtos e as tarefas, condicionou essa enorme atenção do legislador insular, ocupando cerca de 20 % das posturas em análise. De acordo com as posturas do séc. XVI, podia-se adquirir potes, alguidares, panelas, tigelas, vasos, púcaros, fogareiros, luminárias, canjirões, mealheiros, talhas. As posturas do séc. XVI referem a prática corrente de alagar o linho nas ribeiras da cidade, com muito dano das águas, pelo que se recomendava o uso de poços separados. A sua cultura espalhou-se por toda a Ilha, ganhando uma posição de destaque nas freguesias do norte, como foi o caso de São Jorge e Santana. Os alfaiates localizam-se na cidade do Funchal, o que poderá significar que, no meio rural, o corte do vestuário era caseiro. Aliás, é aqui que encontramos maior informação sobre esta atividade nas posturas municipais. O município não só regulamentava o feitio das diversas peças de vestuário, como também determinava os preços do produto. É necessário ter em consideração que essa expressão da vida oficinal do burgo não é igual em todas as posturas dos municípios estudados. Apenas no Funchal é patente a sua maior incidência e a variedade dos ofícios abrangidos, sendo menor nos municípios açorianos. A maioria dos ofícios referenciados pertence ao sector secundário e terciário, tendo o primário fraca representatividade. Tal situação expressa a importância que ambos os sectores de atividade assumiam nos municípios e resulta do facto de estes domínios serem mais vulneráveis às mudanças do devir histórico e propiciadores da fraude e furto. Os ofícios são o esqueleto em que assenta a vivência do burgo, pois vivificam e animam toda a atividade dos arruamentos e praças. Donde o grande empenhamento demonstrado pelo código de posturas, onde se destaca a atividade transformadora e o sector da alimentação, sendo maior, no primeiro caso, na indústria do calçado e, no segundo, na moenda do cereal e venda de carne. Também nos sécs. XVI e XVII, os ofícios indicados nas posturas incidem sobre os sectores secundário e terciário, com especial destaque para a atividade transformadora e sector alimentar. O facto vai ao encontro da visão geral do articulado das posturas, mantendo-se, aqui, o predomínio do sector terciário. Apenas no Funchal o secundário se aproxima deste, mercê do elevado desenvolvimento da estrutura oficinal, situação contrastante com a exígua referência e sobriedade dos municípios açorianos, por exemplo. A intervenção do legislador municipal na faina oficinal orientava-se no sentido da regularização dessa atividade. Aí se definia, de modo rigoroso, o processo de laboração e a tabela de preços para as tarefas e artefactos. A qualidade do serviço e produto não resultava apenas da concorrência na praça, mas, fundamentalmente, da vigilância das corporações e da exigência do exame ao aprendiz. O juramento anual associado à necessidade de prestação de fiança completava o controlo municipal. Todavia, na Madeira, os ourives e tanoeiros deveriam apresentar, em vereação, a sua marca, para que constasse nos livros da câmara. A oficina dá lugar ao mercado ou praça, espaço privilegiado para a distribuição e escoamento dos artefactos. Aí, o município redobrava a sua atenção, de modo a estabelecer regras regulamentares do sistema de trocas. Esta surge como uma das suas principais preocupações, pois das posturas que consideramos, cerca de 28% incidem sobre o mercado, repartindo-se essa atuação entre o abastecimento de bens alimentares e artefactos. Nesse domínio, é dada particular atenção aos pesos, medidas e preços. A praça domina o espaço urbanizado, estabelecendo uma peculiar compartimentação dessa área, de acordo com as exigências dos vetores internos e externos da vida económica. Aos edifícios da fiscalidade sucedem-se os armazéns e lojas de venda, orientados a partir desse centro. A importância deste espaço no quotidiano está justificada por uma dupla intervenção, primeiro, submetendo os diversos ofícios à prestação anual de juramento e fiança, depois, por meio de uma intervenção permanente dos almotacés. À vereação estava acometida também a tarefa de estabelecer os preços de venda ao público dos diversos géneros de produção local. Todos os anos, entre outubro e janeiro, eram estabelecidos preços para os produtos colhidos no concelho: vinho, cereais, cebolas, feijão, favas, batata, carne, laranjas, limões, inhame, vimes, cana doce. As atas das vereações e as posturas municipais revelam-nos muitos dos problemas resultantes do abastecimento de bens alimentares e artefactos no mercado madeirense. As posturas são a face visível da intervenção reguladora do município no mercado e comércios interno e externo. Para o mercado local, a intervenção assentava num apertado sistema de vigilância, como antes afirmámos, incidindo sobre os preços de venda de mais bens alimentares e artefactos, fixados em vereação. Já para o mercado externo, a intervenção ia no sentido de limitar as trocas com o exterior aos excedentes ou produtos a isso destinados, de forma a evitar situações de rotura com o abastecimento local, mas quase sempre com grande insucesso, pois, num edital da Câmara do Funchal de 1784, refere-se “o abuso inveterado e a extraordinária relaxação que praticam infinitas pessoas em fraude das posturas deste senado, estabelecidas contra os que exportam para fora da terra géneros que a ela são precisos” (ARM, Câmara Municipal..., Editais, lv. 235, fls. 27-28v.). Mas, porque as posturas e regulamentos protecionistas entravam em conflito com os interesses dos comerciantes e até do próprio Estado, as câmaras perderam estas prerrogativas, em 1836. A ação do município delineava-se de acordo com o nível de desenvolvimento socioeconómico de cada cidade. Os espaços de grande animação comercial necessitavam de maior atenção e de uma regulamentação exaustiva do movimento de entrada e saída, orientada de diferentes formas. A defesa da produção interna implicava, necessariamente, condicionamentos no movimento de entrada. Por outro lado, a carência, nomeadamente de bens alimentares, conduziu ao estabelecimento de medidas incentivadoras da sua entrada e de um controlo rigoroso do seu transporte e armazenamento. Estas últimas posturas estavam apoiadas na limitação imposta à sua saída ou reexportação. Estão incluídos neste caso: cereais, vinho, azeite, pescado, gado, carne, biscoito, linho e couro. Todavia, a intervenção dos municípios insulares foi variável, em consequência de uma situação socioeconómica diversa. Pela importância que têm na vivência das populações insulares, os cereais merecem redobrada atenção no código de posturas. Com efeito, as posturas adaptaram-se à conjuntura cerealífera municipal e insular, o que conduziu a uma permanente mobilidade do seu articulado: de facto, foram das poucas posturas que se alteraram com uma periodicidade mensal ou anual. A fragilidade do plano económico insular, associado à sua extrema dependência do mercado europeu e atlântico, condicionou o nível de desenvolvimento do sistema de trocas, marcado por múltiplas dificuldades no abastecimento. Deste modo, as autoridades municipais fizeram incidir a sua ação sobre o sistema de trocas, de maneira a assegurar a subsistência das populações insulares. Como referimos, o articulado das posturas frumentárias ia ao encontro da conjuntura particular de cada município e, no geral, do mundo insular. Aí definiam-se medidas compatíveis com as reservas de cereais existentes nos granéis públicos e privados, dando-se particular atenção ao preço, peso do pão e contingentes para exportação. É de salientar que, em todos os municípios, quanto ao fabrico da farinha e à necessária intervenção do moleiro, era comum a preocupação dos munícipes e governantes. O vinho faz parte do grupo de culturas ou produtos atingidos por este tipo de medidas protecionistas, mercê da sua importância na dieta e sistema de trocas insulares. As posturas estipulavam medidas de proteção da cultura, nomeadamente em face da depredação do gado nos vinhedos e dos furtos de uvas, bem como normas para a venda do vinho atavernado. No primeiro caso, fixaram a proibição da venda de uvas sem indicação ou licença do dono. No segundo, procuraram evitar os processos fraudulentos na sua venda, com a fuga ao pagamento da imposição e à baldeação de vinhos de diferentes qualidades. Assim, cada taberna só podia dispor de duas pipas de vinho (branco e tinto) e ambas varejadas e abertas por um oficial concelhio, o rendeiro do vinho. A época de abertura do vinho novo, que, de acordo com a tradição, se celebrava pelo S. Martinho (patrono dos alcoólicos, em parceria com S. Plácido e S.ta Bebiana), tinha também expressão nas posturas municipais, definindo, desde tempos recuados, a proibição de beber e vender vinho novo antes desta data (11 de novembro). A carne e o peixe, produtos cuja venda e manuseio exigiam especiais cuidados, ocupam também um lugar de destaque nas posturas. Estabeleceram-se normas reguladoras de todo o processo de circulação e venda. Assim, não era permitida a sua venda fora da praça e, mesmo aí, teria que ser feita por agentes habilitados pela vereação. Deste modo, aos proprietários de barcos, arrais ou pescadores estava vedado o comércio a retalho. Ambos os produtos deveriam ser almotaçados e, depois, postos à venda. A carne, para além do seu corte obrigatório no açougue pelo marchante, que arrematava semanalmente o seu fornecimento ao concelho, tinha a venda permanentemente vigiada por um oficial concelhio. A venda por peso ou medida facilitava o dolo dos vendedores pouco honestos que falsificavam os meios de medição. Deste modo, o município era obrigado a redobrar a sua vigilância sobre o retalhista, sendo o seu alvo principal as vendedeiras. Daí o estipular-se o uso obrigatório de pesos e medidas aferidos pelo padrão municipal, em todas as ilhas, sendo a respetiva conferência anual e a cargo do almotacel. A preocupação do legislador insular incidia mais sobre as questões económicas, que, pela sua importância na vivência quotidiana, justificavam redobrada atenção. A sociabilidade, no acanhado espaço insular, não implicava uma intervenção permanente do município. Além disso, a marginalidade não era preocupante, mercê da coação exercida pela limitação espacial, que impossibilitava uma fácil evasão e proliferação. Em certa medida, essa relativa mobilidade das sociedades insulares, abertas às influências do meio exterior, contribuiu para que se desvanecessem as cambiantes típicas. A urbe, espaço compartimentado da realidade insular, era animada com a ação dos diversos agentes económicos nos domínios da produção, transformação, transporte e comércio. Essa múltipla sociabilidade, resultante de uma escala de estratos socioprofissionais, de forasteiros, vizinhos e marginais, implicava a necessária definição de convivência social adequada à normalidade do quotidiano e relacionamento social. A marginalidade, em terras onde a mão de obra detém uma importante componente escrava, resulta deste grupo social ou daqueles que a ele já pertenceram, os libertos. A eles associam-se os vadios, os mancebos de soldada e as meretrizes. Enquanto os escravos estavam relacionados, preferencialmente, à safra do açúcar, as meretrizes abundavam nas cidades portuárias como o Funchal. Os escravos constituíam, todavia, a principal preocupação dos municípios no domínio social. Deste modo, no articulado das posturas, estabeleceram-se minuciosamente os padrões de comportamento do grupo, estipulando-se os limites da sua sociabilidade, além de outras formas de delimitação ou segregação social. Assim, ao escravo era vedado o acesso a casa própria e mesmo a possibilidade de coabitar na urbe: deveria residir nos anexos da fazenda ou quinta do senhor, não podendo ausentar-se sem a anuência do mesmo. Fora do seu apertado circuito de movimentação, o escravo deveria ser identificável pelo sinal e não podia usar arma, nem permanecer fora de portas após o toque para recolher. Em face disto, o seu quotidiano deveria restringir-se ao serviço da casa e terras do senhor. Acresce que ninguém, nem mesmo os libertos, poderia acolher, alimentar ou esconder qualquer escravo foragido. A defesa da moral pública, devidamente regulamentada nas ordenações do reino, mereceu as necessárias adaptações nas sociedades atlânticas, definindo o espaço e as formas de convívio social locais. Com a finalidade de proteger a reputação da mulher casada, delimitou-se a área de intervenção e convívio da mancebia e coagiu-se o sexo oposto a manter um comportamento regrado com as mulheres na fonte, ribeira e via pública. A promoção das necessárias condições de vida do burgo completou-se com a já referida procura de um nível adequado de salubridade do espaço de convívio e de labor social. A premência das doenças, nomeadamente a peste, colocava a obrigação de o município intervir com medidas sanitárias. Estas acentuaram-se em determinadas áreas, de acordo com o nível de salubridade e de ruralidade associado à animação da atividade oficinal predominante. Da intervenção do município nesse domínio, é de destacar o facto de as preocupações sanitárias resultarem, em parte, da presença considerável de animais no burgo e da sua circulação no local, do uso abusivo da água das fontes, poços, levadas e ribeiras para lavar ou beber e para o uso industrial, mais o necessário asseio das ruas e praças públicas. Daí a necessidade de pôr termo a essa tendência exacerbada de ruralização do meio urbano, delimitando a área de circulação e, no caso da Madeira, a construção de abrigos para os animais, conhecidos como palheiros. A água doce, elemento vital do quotidiano e faina agrícola, particularmente nas ilhas, mereceu atenta regulamentação por parte dos municípios, onde se procurou regularizar o uso do bem, de modo a evitar o seu furto e dano com as atividades artesanais, sobretudo, aquelas que trabalhavam com o linho e o couro. A fonte, espaço privilegiado do quotidiano da urbe, teve especial atenção neste contexto, restringindo-se o seu uso como bebedouro para animais ou estendal de roupa. O Funchal era, sem dúvida, de todos os municípios, aquele que desfrutava de melhores condições de salubridade. A sua situação geográfica, talhada por três ribeiras, associada à delimitação do espaço agrícola, assim o permitem afirmar. Note-se que, nas atas das vereações, bem como no código de posturas, a preocupação com o asseio das ruas e praças é pouco relevante. A adesão da população a estas normas de conduta é atestada pelas infrações, prontamente combatidas pela vereação através das coimas. Por um lado, esta fiscalização repressiva e, por outro, a assídua divulgação das regras, através dos pregões do porteiro da câmara, fizeram com que estas medidas fossem do conhecimento dos munícipes. Aos infratores das normas era imposta uma coima, que consistia em açoites, na prisão ou numa pena pecuniária, que revertia como receita para a câmara. O rendeiro e o alcaide tinham o encargo de aplicar as penas. A coima estabelecida no código de posturas reforçava o articulado da postura, mercê da relação existente entre o valor da mesma e a importância atribuída pelo município a cada aspeto regulamentado. Este regime penal municipal estava a cargo dos rendeiros e do alcaide, procedendo o primeiro à cobrança e o segundo à captura do transgressor, com a prisão estipulada. Note-se que a coima não se resumia apenas ao pagamento pecuniário, podendo ser um misto de moeda e prisão, perda do produto em causa ou, ainda, pagamento dos danos. Com o Estado Novo, as multas aplicadas aos transgressores das posturas passaram a ser partilhadas com o Estado, que arrecadava 25 % do seu valor. Ainda ao nível das sanções, no caso das posturas sobre os danos provocados pelo gado, acumulava à pena o pagamento dos danos. A partir do séc. XIX, com o aparecimento da imprensa periódica, a lista dos infratores, como as posturas, passou a ser publicada nos jornais. A intervenção do município, a este nível, era implacável, conforme se poderá verificar, consultando o resumo das receitas municipais e das intervenções assíduas da vereação. O código de penalizações variou com o decorrer dos tempos, de acordo com as áreas em questão, adequando-se à realidade socioeconómica que lhe servia de base. A taxa era estabelecida de acordo com o grau de gravidade e transgressão. As penas assumiam uma forma diversa na sua aplicação, que podia ser, como antes, o pagamento em dinheiro, variando entre 50 a 6000 reis; uma pena de prisão, que podia ir até 30 dias e era complementada pela indemnização pelos danos causados, nomeadamente, pelo gado nas culturas agrícolas, implicando a perda do produto ou artefacto produzido ou transacionado. A primeira reincidência dos infratores podia conduzir à oneração da coima. Usualmente, a primeira vez era punida com pena dobrada e a segunda podia implicar açoites, desterro perpétuo ou temporário. O valor da pena pecuniária, bem como o número de dias de prisão eram estabelecidos pela vereação, segundo uma tabela ou matriz que deveria existir em cada município. Esta oscilava entre os 500 e os 2000 réis, podendo, em situações excecionais, atingir um valor superior a 1500 réis. As penas extraordinárias incidiam preferencialmente sobre os aspetos que assumiam maior importância para a vivência do burgo ou que eram suscetíveis de fácil infração. Assim, os ofícios de moleiro, vendeiro, carniceiro e boieiro situam-se entre os mais onerados pela coima. O mesmo sucedia com a regulamentação do comércio externo, sobretudo, em relação à saída do vinho, cereais, linho e couro. A eficácia da aplicação e arrecadação das coimas dependia, em certa medida, do empenho do denunciante, mercê do usufruto de parte da coima. Em todas as localidades, o denunciante recebia parte significativa da pena, entre 1/3 e 1/2. As frações sobrantes eram aplicadas de modo diverso: quando em três partes, essa quantia era dividida pelo acusador, cativos e concelho; quando em duas, atribuía-se metade ao acusador e a restante ao concelho. A formulação destas posturas não é original, uma vez que tem o seu fundamento na legislação do reino, por um lado, e no código de posturas de Lisboa, por outro, tendo-lhe servido ambos, de certo modo, como matriz. As ordenações régias definiram os parâmetros de atuação do legislador insular. O facto de o modelo institucional do município de Lisboa ter sido a base para a constituição do madeirense e de este ter, por sua vez, influenciado o articulado institucional da nova sociedade madeirense que teve repercussão nos Açores, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Brasil, conduziu a essa influência em cadeia. A partir daqui, conclui-se que o município de Angra foi o que manteve maior fidelidade ao postulado das ordenações do reino, embora se tenha afastado do articulado das posturas de Lisboa, ao invés do que sucedeu nos municípios do Funchal e Ponta Delgada. Tendo em conta a anterioridade do processo de ocupação madeirense e o facto de o código de posturas funchalense ser o mais antigo, é natural que este tenha influenciado, de forma importante, a elaboração das de Angra e Ponta Delgada. Confirma-se assim que a influência do modelo institucional madeirense foi decisiva para a organização da estrutura institucional açoriana e que essa não se limitou aos aspetos formais. É de salientar o número significativo de posturas específicas de cada município que, a par da maior incidência em alguns domínios, se diferenciam dessa realidade. Estas situam-se maioritariamente no domínio da agricultura e da produção artesanal, aspetos típicos do múltiplo processo de desenvolvimento socioeconómico de cada município ou ilha. Um dos seus traços mais peculiares assenta nos sectores da faina açucareira, do pastel, do pascer do gado e do aproveitamento dos recursos do meio. As situações resultantes dessas formas variadas de exploração dos recursos implicavam uma maior atenção do legislador local, até porque não se encontravam situações similares em Lisboa. Nesta última cidade, insistia-se mais no asseio do espaço urbano e na atividade oficinal e de troca do que na faina agrícola. Os códigos de posturas das novas sociedades do Atlântico português resultaram de uma simbiose das ordenações régias com os usos e costumes de cada burgo, como ficou exposto. A influência das posturas do reino ter-se-á verificado nos primórdios da criação destas novas sociedades, mercê da transplantação das normas de sociabilidade continental e dos usos e costumes dos locais de origem dos primeiros povoadores. Naturalmente, o devir do processo histórico condicionou uma evolução peculiar destas sociedades, o que conduziu a uma sistematização original deste direito nas ilhas, algo evidente nas posturas insulares, sobretudo, quinhentistas e seiscentistas. De facto, o código de posturas insulares dos sécs. XV e XVI surge como a expressão mais lídima do direito local do novo mundo. A sua elaboração fez-se, pois, de acordo com as condições subjacentes à criação das novas sociedades insulares e atlânticas. Convém referenciar, ainda, que, se considerarmos as posturas como reflexo das manifestações multiformes da vivência socioeconómica, será lógico admitir uma diversa formulação em relação ao articulado das cidades litorais e interiores do continente. Assim, as cambiantes peculiares da mundividência insular definem, como vimos, o código e articulado das posturas insulares. Confrontadas as posturas das ilhas portuguesas com as das Canárias, neste domínio, surgem algumas diferenças pontuais, pois o direito municipal não se adequa à relativa autonomia definida pelos alvarás e regimentos régios. Deste modo, na Madeira e nos Açores, onde as autoridades locais usufruíam de amplos poderes e a sua capacidade legislativa estava entravada pela insistência das ordenações régias e regimentos, o legislador (açoriano-madeirense) foi forçado a afinar pelo mesmo diapasão peninsular, submetendo-se ao articulado das posturas de Lisboa. Ao invés, nas Canárias, os munícipes beneficiavam de ampla capacidade legislativa, elaborando o código de posturas de acordo com as solicitações da vida local. Esse rasgo de originalidade acentuou-se, em todos os municípios, apenas no domínio socioeconómico.   Alberto Vieira (atualizado a 15.02.2018)

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