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ferraz, joão higino

Filho de João Higino Ferraz e neto de Severiano Alberto Ferraz, foi um destacado técnico e cientista do engenho Hinton entre 1888 a 1946, tendo sido o responsável por muitas das inovações introduzidas nos processos de produção de açúcar e de vinho. Palavras-chave: açúcar; vinho; engenhos; Hinton. Nascido no Funchal em 1863, é filho de João Higino Ferraz e neto de Severiano Alberto Ferraz (1792-1856), o primeiro a construir um engenho a vapor na ilha da Madeira, em 1856. Terá também sido o seu avô quem estabeleceu, entre 1848 e 1856, uma fábrica da família na Ponte Nova, onde João Higino começou a trabalhar e cuja direção assume em 1882. Era um jovem de 18 anos que se tornava responsável pela fábrica e que se manteve no cargo de direção até 1886, altura em que a família foi forçada a vender o edifício e os equipamentos em praça pública. Liquidada a fábrica, esteve dois anos sem emprego até que, em 1888, arrendou, em sociedade com o tio, João César de Carvalho, a fábrica de destilação da Ponte Deão, de Severiano Cristóvão de Sousa. No ano imediato, entrou para a fábrica do Torreão, da firma William Hinton & Sons, como técnico de fabrico de açúcar e álcool, assumindo a gerência industrial e técnica. Num manuscrito lavrado pela mão do próprio, João Higino Ferraz diz que, em 1900, assinou contrato com a fábrica do amigo Harry Hinton, a que ficou vinculado até à morte, em 1946. Todavia, e de acordo com o primeiro copiador de cartas, sabemos que estava ao serviço da firma desde 18 de outubro de 1898, como se pode confirmar pela carta enviada ao amigo e patrão Harry Hinton, solicitando a sua presença no engenho em construção para poder decidir sobre a forma de disposição das máquinas. No sentido de dar continuidade ao processo de modernização da fábrica do Torreão, esteve de visita aos complexos industriais franceses que laboravam a beterraba para o fabrico de açúcar. A visita foi proveitosa, refletindo-se nas modernizações do sistema do engenho de Hinton. Esta experiência terá sido importante para a saída que fez, em 1930, a Ponta Delgada (São Miguel), para dar alguns ensinamentos sobre o processo de fabrico de açúcar, nomeadamente a fermentação do melaço. Em julho de 1927, embarcou para o Lobito com Charles Henry Marsden (1872-1938), um engenheiro natural de Essex responsável pela modernização do engenho da casa Hinton, para montar uma estrutura mais moderna no engenho Cassequel, propriedade da casa Hinton. Aí permaneceu 103 dias, regressando ao Funchal a 13 de dezembro de 1928. O diário da saída, compilado numa agenda, documenta o processo de montagem da fábrica e as dificuldades de adaptação das peças ao conjunto da estrutura. Em 1945, lamentava-se: “sou pois técnico em fabricar açúcar e álcool, desde 1884 a 1945 = 61 anos. Não tenho direito a ter o título de técnico de fabricar açúcar e álcool oficialmente em Portugal? […] Desejava pois obter o título oficial de técnico de fabricar açúcar e álcool ou como técnico prático de fabricar açúcar e álcool” (FERRAZ, 2005b, 44). Mas acabou por morrer sem que fosse reconhecido o seu gigantesco trabalho como técnico, tendo sido a principal alma da permanente atualização tecnológica e química da fábrica do Hinton, que foi na época uma das mais avançadas tecnologicamente. A ideia está presente também no testemunho do próprio: “Nestes longos (60) anos assisti a variados sistemas de fabrico, desde quase do início de maneiras antigas no fabrico do açúcar de cana, destilação, etc., etc., acompanhando sempre os progressos nestas indústrias até hoje, principalmente desde 1900 a 1944, na fábrica do Torreão, onde pusemos em trabalho consecutivamente os sistemas os mais aperfeiçoados e mais modernos no fabrico de açúcar e álcool” (Id., 2005a, 39). Na correspondência com Harry Hinton, transparece uma perfeita sintonia entre os dois, que favoreceu o processo de permanente atualização tecnológica e química; partilhavam a mesma paixão pela indústria e desenvolvimento do engenho do Torreão. João Higino Ferraz não receia manifestar, diversas vezes, a amizade que o prende ao patrão. Em 1917, confessa: “Harry Hinton é um dos meus melhores amigos”. Passados 10 anos, confessa que a viagem a África sucedeu apenas “para ser agradável ao senhor Hinton a quem devo amizade e reconhecimento” (Id., Ibid., 40). João Higino Ferraz era o superintendente, mas acima de tudo um cientista que procurava aperfeiçoar os conhecimentos de química e tecnologia, através do confronto entre a literatura estrangeira e a sua capacidade inventiva. Manteve-se, assim, atualizado através da leitura de publicações, fundamentalmente francesas. Nos estudos, manifesta-se um cientista arguto que não detém a atenção apenas na cana sacarina, pois estuda e opina sobre o uso de outros produtos no fabrico de açúcar e álcool, como é o caso da batata e da aguardente.   Se confrontarmos a literatura científica mais significativa dessa altura, de finais do séc. XIX até à Segunda Guerra Mundial, verificamos que os conhecimentos e as técnicas mobilizados no engenho de Hinton são permanentemente atualizados e que se pautam por padrões de qualidade, integrando informações sobre os métodos mais avançados, como os estudos dos engenheiros químicos e industriais que marcaram o processo tecnológico do momento. Aliás, mantém contacto com inúmeras associações científicas europeias, como era o caso da Association des Chimistes de Sucrerie et de Distillerie. Na correspondência, surgem assiduamente nomes de cientistas europeus, como Barbet e Naudet. É de João Higino Ferraz o invento de um aparelho de difusão cujos direitos cedeu, em 19 de novembro de 1898, à firma William Hinton & Sons. Naquilo que resta da sua biblioteca, encontra-se um conjunto valioso de tratados de química e tecnologia relacionados com o açúcar. Sob a sua orientação, foram feitas várias experiências e adaptações dos sistemas tecnológicos importados. Em 1929, em carta ao amigo Avelino Cabral, que estava no Lobito, refere: “Como tenho tido tempo estou em estudos e experiências com o fermento Possehl’s no laboratório, e tenho obtido coisas bastante curiosas nas culturas feitas”. Ainda em carta ao mesmo refere a utilidade das inovações e experiências: “para que a parte comercial de uma indústria dê o resultado, é necessário ver também a parte industrial ou técnica” (Id., Ibid.). Apenas em 1922 temos informação de quanto auferia João Higino Ferraz pelos serviços prestados à fábrica Hinton. Para o novo contrato a celebrar reclamava 63 libras mensais, sendo o câmbio realizado mensalmente, ficando “com pulso livre para fazer e dirigir as minhas pequenas indústrias fora de açúcar, álcool e aguardente, não prejudicando por estes meus trabalhos a direcção técnica da fábrica de açúcar e álcool do Torreão” (Id., Ibid.). João Higino Ferraz fica para a história como um dos principais obreiros da modernização do engenho do Hinton ocorrida na primeira metade do séc. XX. Enquanto esteve à frente dos destinos da fábrica, de 1898 a 1946, foi imparável na sua adequação aos novos processos e inventos que iam sendo divulgados, não se coibindo mesmo de fazer algumas experiências com o equipamento e os produtos químicos. Opina sobre agronomia, bem como sobre mecânica e química, mantendo-se sempre atualizado sobre as inovações e experiências na Europa, nomeadamente em França. Da sua lista de contactos e conhecimentos fazem parte personalidades destacadas do mundo da química e da mecânica. Assim, para além dos contactos assíduos com Naudet, refere-nos com frequência os estudos de Maxime Buisson, M. E. Barbet, M. Saillard, F. Dobler, M. D. Sidersky, Luiz de Castilho, M. H. Bochet, M. Effort e M. Gaulet. À frente do engenho, a sintonia e empenho de Ferraz e Hinton fizeram com que a Ilha apresentasse, entre finais da centúria de oitocentos e inícios da seguinte, uma posição destacada no sector, atraindo as atenções a nível mundial. O Hinton acolhe especialistas de todo o mundo, na condição de visitantes ou como contratados para a execução dos trabalhos especializados. O Eng.º Charles Henry Marsden foi um deles, tendo aí trabalhado entre 1902 e 1937, altura em que saiu doente para Londres, onde faleceu no ano seguinte. A sua presença está documentada pelo menos em 1918, 1929 e 1931. Destaca-se também o Eng.º químico agrícola Maxime Buisson, que, em 1902, trabalhava no laboratório. Para o fabrico de açúcar, contratavam-se os afamados cuiseurs em França, de forma a seguir-se à risca as orientações de Naudet. O empenho de João Higino Ferraz não ficou por aqui, pois apostou também no processo de vinificação, âmbito no qual protagonizou algumas inovações que marcaram as primeiras décadas do séc. XX. A documentação disponível refere o seu empenho no processo de fabrico de vinho, aguardentes e outras bebidas, como a cidra, a cerveja e o vinho espumoso. A partir de 1905, J. H. Ferraz, a exemplo do que sucedeu com o fabrico do açúcar, manteve-se permanente atualizado sobre a tecnologia francesa de fabrico de todo o tipo de bebidas fermentadas e destiladas. São frequentes as referências a equipamentos franceses, bem como a um conjunto de títulos sobre o tema, de que era possuidor de alguns exemplares. Na déc. de 20, construiu uma vinharia onde foi possível montar o aparelho de evaporação Barbet e um moderno sistema de refrigeração. Ao nível da destilaria, devemos assinalar a sua presença em Almeirim, em 1916, para montar um aparelho francês. As experiências levaram-no a produzir cidra, cerveja e malte, e, com vinho branco, xarope de uva, vinho de mesa e espumoso – que chamava de “fantasia” para não se confundir com o francês –, vinagre, vinho cidre maltine, licores finos, anis escarchado e genebra, que vendia localmente e exportava para alguns mercados como a Alemanha. Por outro lado, tentou imitar os vinhos franceses, o sauterre e o champagne. Da sua lista de experiências, constam ainda as que fez para o fabrico de geleia de pêro, marmelada de bagaço de pero e fermento puro de uva para uso medicinal. Ferraz apostou, pois, no aperfeiçoamento do processo de vinificação, sendo a sua vinharia um exemplo disso. Neste contexto, fez diversas demonstrações sobre o uso dos processos Barbet e Sémichon, sendo defensor da necessidade da compra da uva ao agricultor, medida que contribuía para um maior aproveitamento das massas vínicas e para um maior cuidado no acompanhamento do processo de vinificação que defendia. Numa época em que o vinho jaquet, casta americana, dominava a produção, fez ensaios para o seu uso com o vinho Madeira e com o vinho de mesa para consumo local. Além disso, apresentou um vinho de mesa ligeiramente gasoso, pelo processo de M. Mercey, que, no seu entender, deveria competir com a cerveja. Sucede que, nas experiências de 1914, o vinho posto à venda não teve grande aceitação, porque as garrafas haviam perdido parte do gás carbono por causa da má qualidade da rolha. Mesmo assim, retoma essas experiências em 1927. J. H. Ferraz, a exemplo do que sucedeu com o conde de Canavial, bateu-se por mudanças radicais no processo de fabrico do vinho, apelando ao abandono das técnicas tradicionais a favor das vantagens das descobertas entretanto ocorridas na centúria de oitocentos no processo de vinificação, com os sistemas Barbet e Sémichon. Todas as experiências e ensaios eram sempre fundamentados com estudos científicos de carácter químico, nomeadamente franceses, e com a apresentação de equipamentos, maioritariamente com origem na tecnologia açucareira, que o mesmo adaptava, pelas suas próprias mãos, ao fabrico do vinho. A tudo juntava estudos minuciosos de viabilidade económica do novo produto, no sentido de convencer a Casa Hinton ou outros parceiros, mas o gosto madeirense não se mostrou favorável à novidade. Os conhecimentos adquiridos com o fabrico de açúcar no engenho do Hinton foram fundamentais para estes ensaios, mas o sucesso da iniciativa não foi coroado de êxito, pelo que acabará por abandonar esta atividade em 1942. O arquivo do engenho do Hinton é, por força das circunstâncias atrás descritas, fundamental para o conhecimento da história contemporânea da agricultura madeirense. Todavia, a forma conturbada como sucedeu o processo de desmantelamento da estrutura para a construção de um jardim público conduziu a que toda esta memória desaparecesse. Felizmente, tivemos a possibilidade de encontrar alguns testemunhos avulsos no arquivo particular de João Higino Ferraz. A documentação disponível, copiadores de cartas, livros de notas e apontamentos, constitui um acervo raro na história da técnica e da indústria. Não se conhecem casos idênticos de livros de apontamentos em que o técnico documenta, quase minuto a minuto, o que sucede na fábrica, desde os percalços do quotidiano às questões técnicas e laboratoriais. Para além disso, se tivermos em conta que a mesma documentação abrange um período nevrálgico da história de indústria açucareira, marcada por permanentes inovações no domínio da metalomecânica e da química, compreendemos claramente a importância deste tipo de espólio, que mais se valoriza pelo facto de ser, até aos começos do séc. XXI, o único divulgado e conhecido. O conjunto de nove livros referentes às cartas abarca um período crucial da vida do engenho do Hinton (1898-1937), marcado por profundas alterações na estrutura industrial, por força das inovações que iam acontecendo. A partir deste acervo de cartas, é possível conhecer tudo isso, mas também deduzir algo mais sobre o funcionamento desta estrutura. Ao mesmo tempo, ficamos a saber que João Higino Ferraz era, em Portugal, uma autoridade na matéria, prestando informações a todos os que pretendessem montar uma infraestrutura semelhante. Assim, em 1928, acompanhou a montagem do engenho Cassequel, no Lobito, onde a família Hinton tinha interesses, e esteve, em junho de 1930, em Ponta Delgada, nos Açores, a ensinar a fermentar melaço de açúcar de beterraba, na Fábrica de Santa Clara. Harry Hinton surge, em quase toda a documentação, como um interveniente ativo no processo, conhecedor das inovações tecnológicas e preocupado com o funcionamento diário do engenho, nomeadamente com a sua rentabilidade. J. H. Ferraz informava-o, de forma quase diária, de tudo o que se passava. A proximidade do Funchal aos grandes centros de decisão e inovação tecnológica da produção de açúcar a partir de beterraba, na França e Alemanha, associados aos contactos de H. Hinton e ao seu espírito empreendedor fizeram com que a Madeira estivesse na primeira linha da utilização da nova tecnologia. Em 1911, documentam-se diversas experiências com equipamento. Além disso, funcionava como espaço de adaptação da tecnologia de fabrico de açúcar a partir da beterraba para a cana sacarina. Daí as diversas deslocações de J. H. Ferraz a França (1904 e 1909) e os permanentes contactos com alguns estudiosos e fábricas. Tenha-se em conta que o mesmo era sócio da Association des Chimistes em França, sendo por isso leitor assíduo do seu Bulletin. Por outro lado, alguns inventores, como Naudet e engenheiros de diversas unidades na América (Brasil e Tucuman), Austrália e África do Sul, estavam em contacto com a realidade madeirense, fazendo, por vezes, deslocações para estudar o caso do engenho madeirense. A erudição de J. H. Ferraz era vasta, dominando toda a informação que surgia sobre aspetos relacionados com o processo industrial e químico do fabrico do açúcar. Para além da leitura do Bulletin de l’Association des Chimistes, temos referências à leitura do Journal de Fabricants de Sucre, e podemos documentar na sua biblioteca a existência de diversas obras da especialidade, muitas delas referenciadas nos livros de notas ou cartas. Aliás, nas cartas que manda a Harry Hinton quando este se encontra no estrangeiro, pede-lhe frequentemente publicações recentes. O corpo documental provém do arquivo privado de João Higino Ferraz e pode ser seccionado em três partes fundamentais: uma primeira constituída por nove copiadores de cartas; uma segunda formada por vários volumes de livros de notas; e, por fim, documentação avulsa. Esta organização do arquivo pessoal de J. Higino Ferraz é, de certa forma, artificial, dado que não foi feita pelo autor; trata-se de uma elaboração arquivística, que decorre da análise do conteúdo e da tipologia dos vários documentos que o compõem. A primeira parte, composta por nove livros onde Higino Ferraz conservou, em cópia, muita da correspondência por si remetida, e não só, cobre o período de 1898 até 1937, com um hiato temporal provavelmente entre finais de 1913 e inícios de 1917, e outro possivelmente de janeiro a outubro de 1919. Julgamos que estas lacunas estariam contempladas em dois volumes autónomos; contudo, se existiram, esses livros não ficaram para a posteridade. A designação “copiador de cartas” foi adotada devido ao facto de os dois primeiros livros, que cobrem o período de 1898 a 1913, terem esse título na capa – não aposto por João Higino Ferraz, mas como denominação da finalidade dos volumes. Entendeu-se por bem atribuir a mesma designação a todos os livros, seguida da referência aos lapsos de tempo que abarcam. Cumpre ainda acrescentar que nem toda a correspondência remetida por João Higino Ferraz está presente nestes livros e que nem toda a documentação neles inserida é composta por epístolas. Ver-se-á que de algumas cartas enviadas, sobretudo as datilografadas, guardou o autor cópia sob a forma avulsa, estando as mesmas – aquelas a que tivemos acesso – transcritas na secção da documentação avulsa. Fizemos preceder cada carta transcrita de uma informação sumária concernente à data, ao destinatário e ao local, quando possível, para permitir uma mais rápida perceção por parte do leitor. Ao longo da transcrição, demo-nos conta de que alguma informação exarada nos copiadores não era, com efeito, composta por epistolografia, mas sim por relatórios, cálculos, estimativas de produção, lucros e despesas, etc. Antepusemos a cada um dos informes deste teor a menção à sua data e ao se destinatário, se conhecido fosse, e uma breve caracterização. Uma segunda secção deste espólio documental transcrito é constituída por anotações e apontamentos vários – inscritos em livros autónomos –, versando sobre produtos, processos, aparelhos e técnicas industriais de produção, bem como sobre a transformação de açúcar, álcool e aguardente; quase todos estes volumes têm título atribuído por João Higino Ferraz, que é respeitado e aceite por nós. Ainda que algo artificial, a denominação dada a este conjunto, “livros de notas”, advém dos próprios títulos atribuídos pelo autor. A última secção é constituída por documentação avulsa, abarcando: documentos epistolares, saídos do punho de Higino Ferraz (particularmente cópias de cartas) ou tendo-o como destinatário (sendo seus autores, por exemplo, Harry Hinton, Marinho de Nóbrega ou Antoine Germain); documentos referentes a aparelhos, processos e técnicas de fabrico e transformação de açúcar, álcool e aguardente (à imagem da informação exarada nos livros de notas); anotações manuscritas que João Higino Ferraz lançou nos forros da capa ou folhas de guarda de alguns livros ou manuais por si usados, que versavam sobre a cultura e produção de cana sacarina e seus derivados; e, ainda, apontamentos autobiográficos. Dividimos esta documentação em duas subsecções: a primeira, composta por todos os documentos que têm por autor Higino Ferraz; a segunda, por todas as fontes que foram produzidas por outros indivíduos. O arquivo privado deste técnico açucareiro, que morre em 1946, permite-nos, pois, ter acesso a informações que ilustram vários aspetos da sua vida pessoal e familiar, nomeadamente as suas condições de vida, relações de amizade e conceções políticas, sociais e económicas. Ao mesmo tempo, esta documentação reveste-se de especial interesse para a história da Madeira da primeira metade do séc. XX, sobretudo no que respeita à história da indústria açucareira nas suas vertentes económica, social e técnica, mas também nos seus meandros e implicações políticas.   Alberto Vieira (aualizado a 06.01.2017)

Física, Química e Engenharia História Económica e Social Personalidades

coper, kurt

Professor de química alemão de origem judaica que trabalhou no Laboratório de Química da Universidade de Coimbra no período entre 1929 e 1938. Nessa altura mudou-se para o Funchal, onde trabalhou na indústria vinícola antes de emigrar para os EUA. Fez parte de um grupo de sábios judeus que muito poderia ter contribuído para o desenvolvimento do país, não fosse Portugal não os ter sabido fixar durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda que não se conheça bem a sua biografia, sabe-se que nasceu em Berlim em 1903 e que estudou na Universidade de Berlim onde se doutorou. Nos anos 20, trabalhou em colaboração com um eminente químico alemão da área dos coloides, o Professor Herbert Freundlich (1880-1941), no Kaiser Wilhelm Institute para Química-Física e Eletroquímica, em Berlin-Dahlem, no âmbito da química dos coloides. Em 1929, Coper candidatou-se ao lugar de professor no Laboratório Químico da Universidade de Coimbra. Nessa cidade, foi colega de um outro alemão que trabalhava ao lado, no Laboratório de Física, Walter Wessel. Em Coimbra, ensinou como professor, primeiro contratado e depois auxiliar, Noções Gerais de Química Física (1931-1933 e 1937-1938), Química (1933-1937) e Química Orgânica (1937-1938). Até 1938, Coper continuou em Coimbra a sua investigação em coloides, em particular sois e géis, tendo publicado três artigos científicos, um deles resultante da colaboração com Freundlich: “The Formation of Tactoids in Iron Oxide Sols”, Transactions of the Faraday Society (1937) (o endereço do primeiro era o Laboratório Químico de Coimbra e o do segundo The Sir William Ramsay Laboratories of Inorganic and Physical Chemistry, University College, em Londres, uma vez que Freundlich tinha abandonado a Alemanha em 1933 como muitos outros cientistas). Foi na Lusa Atenas que Coper encontrou a sueca Ruth Hildur Bugner, com quem casou em 1935. Um tanto ou quanto inesperadamente, talvez receando medidas discriminatórias contra judeus, Coper demitiu-se, a 10 de março de 1938, do seu lugar na Universidade de Coimbra para embarcar para a ilha da Madeira com a sua esposa. Aí permaneceu até ao final da Segunda Guerra Mundial, trabalhando numa empresa de vinhos de proprietários judaicos, a Leacock’s (posteriormente associada com a Blandy na Madeira Wine Company). Foi também na Madeira que nasceu o seu filho Gunnar. Aparentemente, não desenvolveu atividade científica na Ilha, o que aliás seria difícil naquela época. No fim da guerra, emigrou para Filadélfia, nos EUA, tendo morrido com 62 anos num hospital de Livingston, New Jersey, em 1966. Trabalhou como engenheiro químico para a empresa Hepco Inc., embora não se conheça bem a atividade que desenvolveu nos EUA. Gunnar Coper deixou, em 2011, num boletim de uma igreja presbiteriana norte-americana (Collenbrook United Church, em Filadélfia), um depoimento onde faz um resumo da história do seu pai: “Em 1 de setembro, deflagrou a Segunda Guerra Mundial. Nos próximos seis anos, ficámos retidos na ilha da Madeira; Meu pai, sem cidadania, minha mãe, fora da Suécia, e eu num limbo. Não era nem sueco, nem alemão, nem reconhecido como português. [...] Os meus pais estavam preparados para morrer, mas para me salvarem fizeram um acordo com uma família portuguesa segundo o qual ela me aceitava como membro. A guerra finalmente acabou e os meus pais decidiram que era hora de partir. Para onde? Para os Estados Unidos” (COPER, 2011, 4).   Carlos Fiolhais (atualizado a 31.12.2016)

Física, Química e Engenharia Personalidades

cultura popular urbana

A cultura popular – associada ao povo, às camadas dominadas – resulta de um conhecimento usual, do senso comum, de uma convivialidade mais ou menos voluntária e de práticas sociais coletivas que configuram uma construção identitária. É uma cultura conservadora, porque depende da tradição, mas simultaneamente inovadora, porque incorpora elementos culturais novos, o que permite a sua preservação ao longo dos anos. A inspiração da cultura popular decorre dos acontecimentos locais rotineiros, o que a torna uma arte regional. Na déc. de 30 do séc. XX, a polarização antagónica que considerava “urbano” e “rural” como áreas contrapostas, espaços com características próprias e isoladas, foi substituída por uma diferente modalização espacial. Foi, então, proposta uma perspetiva de “continuum rural-urbano”. Não há espaços rurais e espaços urbanos, há ruralidades e urbanidades. No campo e na cidade existem urbanidades e ruralidades (heranças, origens, hábitos, relações, conjuntos de ações) que se combinam e geram as territorialidades particulares de cada localidade, município ou recorte regional (BIAZZO, 2008, 135 e 145). Para Edgar Morin, “a cultura na nossa sociedade é um sistema simbiótico – antagonista de múltiplas culturas, nenhuma delas homogénea” (SANTOS, 1988, 690). Assim, não podemos fazer uma distinção rígida entre cultura urbana e cultura rural. Passamos de comunidades rurais dispersas com cultura tradicional para uma sociedade predominantemente urbana, onde se encontra uma oferta simbólica, heterogénea e renovada por uma constante interação do local com as redes nacionais e transnacionais de comunicação. As mudanças de pensamento e de gostos da vida urbana passaram a coincidir com os do meio rural. Nesta medida, a sociedade urbana e a rural não se opõem totalmente. Na Madeira, é facilmente visível uma íntima relação entre algumas manifestações de cultura popular urbana e o meio natural – em particular plantas, flores e frutos –, bem como entre tal cultura e os fenómenos culturais populares mais remotos, especialmente o bordado e os tapetes de flores em contextos populares de cariz religioso. Podemos apontar como exemplos a Festa da Flor e as decorações natalícias. Em 1920, a Festa da Flor aliava a caridade e o desporto. São exemplos disso as festas náuticas preparadas pela comissão organizadora com o objetivo de angariar donativos para a fundação da já projetada Escola de Artes e Ofícios. A Festa da Flor de 1955 foi organizada, pela primeira vez, pelo Ateneu Comercial do Funchal. Esta Festa foi precedida por outras, que lhe terão dado origem, com a mesma temática e organizadas pela mesma instituição: a Festa da Primavera (1942 e 1952) e a Festa da Rosa (1954). Desde os finais do séc. XIX que o Carnaval era apreciado por toda a sociedade, quer nas expressões mais populares de rua, quer nos exemplos mais recatados. No dia de Entrudo, popularmente conhecido por Dia dos Mascarados, o disfarce, usado maioritariamente por crianças, revelava alguma simplicidade: os fatos baseavam-se no folclore regional ou nas profissões. Havia alguns disfarces coletivos e temáticos, como as caixas de bonecas e a caixa do mágico. As primeiras manifestações carnavalescas terão sido de rua, ocupando a R. da Carreira um lugar de destaque. Aí se desenrolavam renhidas batalhas de serpentinas e confetti, mas também de tomates, ovos ou farinha. No final do dia de Carnaval, a R. da Carreira ficava completamente suja e os mais pobres recolhiam o milho deixado entre tanta bagunça. Outro local de batalha situava-se a norte da Pr. da Constituição, onde ficava a Casa da Linha, frequentada pelos funcionários britânicos e pelas suas famílias, que assistiam, a partir daí, ao Carnaval. À noite, a praça da Constituição e o jardim municipal transbordavam de pessoas que procuravam divertir-se nas batalhas de confetti e perfumes. No final da déc. de 40 do séc. XX esta tradição desapareceu. Havia, também, o cortejo de mascarados em calhambeques sem capota com depósitos de água e mangueiras. O povo assistia nos passeios, varandas e janelas. As bandas de música saíam à rua, na tarde do dia de Entrudo, com divertidas e maliciosas indumentárias em tom de crítica social: “Em 1907 […] uma das filarmónicas locais percorreu as ruas do Funchal, envergando ‘camisas de noite’, em alusão a um facto passado nessa altura […] [naquele] meio” (CALDEIRA, 2007, 76). Em meados do séc. XX, o Carnaval passou a ser vivido dentro de grandes salões. Ficaram famosas as festas organizadas pelo Ateneu Comercial da Madeira (rua dos Netos), pelo Solar D. Mécia (junto ao jardim municipal), pela Associação dos Estudantes Pobres (atrás do jardim municipal), pelas sedes das bandas filarmónicas – como a dos Guerrilhas (R. da Queimada) ou dos Artistas (R. 31 de Janeiro) – e pelo Colégio Lisbonense (R. das Mercês). A proximidade dos locais permitia que os mais foliões frequentassem as várias festas ao longo da mesma noite. Embora o acesso a estes bailes fosse relativamente restrito, não era tão seletivo como o que acontecia nos hotéis. Chegando a ser frequentado pela elite funchalense, o Ateneu Comercial promovia um dos bailes mais apreciados na época, apenas suplantado, mais tarde, pelas festas dos hotéis. Nos anos 60 e 70, estes bailes eram animados por grupos musicais como os Demónios Negros (conjunto de João Paulo) e Ritmo 5 (de Luís Félix). Esta instituição organizava, também, festejos carnavalescos infantis. Na Associação dos Estudantes Pobres, as festas eram bem mais modestas. Na déc. de 70, as instalações hoteleiras aderem aos festejos de Carnaval, passando a ser os locais preferidos de certos grupos carnavalescos. Estes faziam o “roteiro dos hotéis”: começavam pelo Savoy, na sexta-feira; seguiam para o Vila Ramos e o Girassol, no sábado; o Sheraton, no domingo; o Atlantis, na segunda-feira; e o Casino Park, na terça-feira. No fim de semana seguinte, o Enterro do Osso era celebrado no Inter-Atlas (no Garajau) e/ou no Dom Pedro (em Machico). As suas máscaras baseavam-se nas tradições madeirenses e havia grande rivalidade e concorrência entre os grupos. Aos melhores disfarces, sujeitos a concurso, eram atribuídos prémios. No final dos anos 70 e início dos 80, a Direção Regional do Turismo começou a organizar o corso carnavalesco com o objetivo de trazer, novamente, o Carnaval às ruas do Funchal. Os grupos das décadas anteriores são substituídos pelas trupes, que desfilam sob um tema previamente definido e não com uma temática individual como no passado. Em 2013, participaram no Cortejo dez trupes e escolas de samba madeirenses: João Egídio, Caneca Furada, Geringonça, Fura Samba, Os Cariocas, Fábrica de Sonhos, Trupe de José Orlando Fernandes Vieira, Sorrisos de Fantasia, Associação Desportiva, Cultural e Recreativa Bairro da Argentina e Turma do Funil. O Cortejo Alegórico, organizado pela Secretaria do Turismo, desenrola-se na principal avenida da cidade e é o ponto alto do cartaz turístico. O Cortejo Trapalhão, surgido aproximadamente na mesma altura, é a institucionalização da expressão mais popular e genuína da tradição carnavalesca. Individualmente ou em grupos, os participantes vão brincando com personalidades e/ou temáticas atuais. O cinema e o teatro, na sua génese, serão, talvez, das mais populares manifestações artísticas. Dos locais de representação teatral, no Funchal, podemos destacar: o Teatro Grande (construído em 1780 e demolido em 1833), o Teatro do Bom Gosto (contemporâneo do primeiro), o Teatro Concórdia (1843), o Teatro Esperança (1858) e o Circo Funchalense, localizado a sul do convento de S. Francisco e que dará origem ao Teatro Municipal. Porém, se os espaços eram bons, o mesmo não acontecia com a representação, atividade desempenhada por amadores, tal como descreve Lyall, o autor de Rambles in Madeira: “À noite, o teatro. O edifício em si é bastante bom. A interpretação deplorável, excedendo as piores expectativas. Penso que a companhia, como a de Peter Quince, é constituída na sua maioria por homens de ofícios da cidade […]. O que mais me divertiu foi o facto dos assistentes terem tomado partido quanto às personagens e emoções da peça” (SILVA, 1994, 135). As representações ocorridas na ilha eram de mais baixa qualidade quando comparadas com as de Lisboa. Só no início do séc. XX começaram a chegar à Madeira as boas companhias e os grandes atores, que atuavam no Teatro D. Maria Pia. À semelhança do que acontecerá nas sessões cinematográficas, o público revelava, frequentemente, um mau comportamento. Havia “disputas no teatro por motivos políticos ou pelas preferências por atrizes, cantoras líricas ou bailarinas”, o que provocava “as pateadas e as desordens entre militares” (SILVA, 1994, 137). Outro aspecto criticado pelos periódicos da época eram os problemas morais levantados pelas peças apresentadas. A população pedia mais rigor às autoridades na verificação dos textos: “Tem de haver censura a algumas peças! […] um filho rasga o Thema na cara do ‘pay’, chora de raiva e promete queimar os livros, não sendo sequer castigado por esta insubordinação!” (SILVA, 1994, 168). Em Lisboa, as feiras, onde era exibido cinema em barracas, tinham grande procura por parte das camadas populares. São exemplos a feira do Campo Grande, a feira da Avenida e a feira de Alcântara. As barracas de feira, que concorriam com as salas da cidade, foram, no início do séc. XX, definitivamente substituídas por estas. A forte afluência registada nestas salas é demonstrativa da adesão da população ao cinema. Outro aspecto denunciador do carácter popular do cinema foi o surgimento, nos finais da déc. de 20 do séc. XX, dos cinemas de bairro. Estes cinemas, situados em zonas densamente povoadas e pouco modernizadas, fundiam-se com a vivência do bairro, ou dos bairros, que serviam, permitindo a imaginação e a fantasia num tempo em que o país se fechara. No texto “O Filme dos Cinemas de Bairro”, publicado na revista Imagem e escrito por Guedes de Amorim, em 1931, era retratada a população que assistia aos filmes projetados nestas salas: “Fatos de ganga, bonés, mulheres de xaile, engraxadores, cortesãs, carroceiros, gente que sobe dificilmente a ladeira da vida, chorando e cantando, vêm aqui passar um pedaço de noite, vêm aqui comprar umas migalhas de alegria. […] Lá mais para a frente, nos lugares baratos, nos lugares que custam só um escudo, vai uma alegria desenfreada! Ouvem-se gritos, assobios, aplausos, e, de quando em quando, exclamações arrojadas dominam o bulício” (ACCIAIUOLI, 2013, 119). Na capital, os cinemas promoviam sessões contínuas de 12 h, do meio-dia à meia-noite. As famílias levavam grandes cestos e pacotes com o farnel, falavam alto, davam opiniões e provavam as iguarias trazidas. Na província, também era uma aventura ir ao cinema: as salas pareciam barracas, eram frias e húmidas e tinham um cheiro incómodo. Exibido pela primeira vez no Funchal ainda no séc. XIX, o cinema depressa começou a fazer parte do quotidiano dos habitantes da cidade, ricos e pobres. O interesse dos funchalenses pelo cinema era evidente, o que se demonstra pelas várias salas inauguradas nas primeiras décadas do séc. XX. A primeira sala de espetáculos foi o Pavilhão Grande, na Praça da Rainha, ainda do séc. XIX. Seguiram-se o Teatro Águia D’ Ouro (1907, Pr. da Rainha), o Pavilhão Paris (1909, R. João Tavira), o Salão Ideal (1910, R. da Princesa), o Salão Central (1910, R. da Queimada de Baixo), o Salão Variedades (1910, R. de S. Francisco), o Teatro-Circo (1911, Pr. Marquês de Pombal) e o Salão Ideal (1923, R. de Santa Maria). Além destas salas, havia projeção de filmes em espaços menos convencionais, dos quais se destacavam a praia de São Tiago, o Jardim Municipal (Cine-Jardim), o jardim do Hotel Monte Palace, o Parque das Cruzes, na Quinta das Cruzes (Cine-Cruzes), o Patronato de S. Pedro (beco Paulo Dias, nas Angústias), o Casino Victória (R. Alexandre Herculano), o Colégio Lisbonense, o Salão Teatro dos Álamos, a Banda Distrital do Funchal, entre outros. A abundância de locais provocou a concorrência entre eles. Assistiu-se ao aumento da publicidade, redução dos preços dos bilhetes, oferta de melhores filmes e equipamento, exibição de espetáculos de variedades (bailados, cançonetas, duetos e múltiplos números de palco), distribuição de brindes, como bengalas, pentes, relógios e bombons. A Vida de Christo, exibido pela primeira vez em 1907, foi o filme mais popular e com maior audiência da época. A enorme afluência levou mesmo ao esgotar das bilheteiras, provocando grande descontentamento por parte do público. O sucesso do filme fomentou excursões de espectadores provenientes de toda a ilha, tendo estado em exibição durante vários meses. Ainda nesta década, em setembro de 1910, a população menos citadina pôde ter contacto com o cinema. José Maurício Gomes e José Procópio de Gouveia divulgaram o cinematógrafo ambulante com uma projeção realizada fora da urbe, em S. Gonçalo. Os diversos locais, ao longo de todos estes anos, estavam vocacionados para diferentes tipos de filmes: enquanto alguns espaços exibiam cinema de cariz popular e de aventura, outros, como o Teatro Municipal, pendiam para as fitas de maior qualidade, e outros ainda, como o Hotel Monte Palace, promoviam sessões de cinema exclusivamente dedicadas à elite funchalense. Embora o Cine-Jardim, no jardim municipal, tivesse espetáculos dedicados aos diferentes grupos sociais – as récitas da moda e as récitas populares –, comemoravam-se neste espaço efemérides com a projeção de películas do agrado do público em geral. Em outubro de 1923, o filme comemorativo do V Centenário da Descoberta da Madeira, produzido pela Madeira Film e há muito tempo desejado pelo público funchalense, foi exibido no jardim municipal. No dia 17, os funchalenses foram ver-se no ecrã, porque o Correio da Madeira, que iniciou a notícia com a pergunta “V. Exa. já viu a sua figura n’ um ecrã de cinematógrafo?”, explicou que o filme “contém sem dúvida a fotografia de todos os moradores do Funchal, pelo menos de todos que saíram à rua por ocasião dos festejos comemorativos do V Centenário da Descoberta da Madeira” (Correio da Madeira, 17 out. 1923, 2). Certamente o Cine-Jardim superlotou; os habitantes da cidade, aliciados com a divulgação do jornal, acorreram à bilheteira. Demonstrando algumas preocupações sociais, a empresa que explorava o Pavilhão Paris decidiu que aos sábados haveria sessões a metade do preço, de modo a proporcionar às classes operárias umas horas de distração. A função benemérita era uma das vertentes do cinematógrafo, valorizada na época por vários empresários. Com alguma frequência, o produto da exibição revertia a favor de uma família desfavorecida, de vítimas de uma catástrofe, de uma associação profissional ou cultural, entre outras. O comportamento do público nem sempre era o desejável, como já referido. A desorganização na compra dos bilhetes e na entrada para as salas levou a que os responsáveis pelos espaços apelassem à compra antecipada das entradas e a que os jornais comunicassem a importância da supervisão do guarda de serviço na área. Em situações mais extremas e quando o espetáculo não agradava, ouviam-se insultos, chegando mesmo alguns objetos a serem arremessados. Tais episódios eram descritos e censurados pelo jornalismo da época. Em 1907, a Câmara Municipal do Funchal, a fim de impedir a má educação dos espectadores, decretou a “proibição de clamores e gritos”, colocando um polícia em todas as sessões (MARQUES, 1997, 11-13). A partir da déc. de 50, a exibição cinematográfica foi monopolizada por dois espaços: o Cine Parque (de João Firmino Caldeira) e o Cine Jardim (de João Jardim). A concorrência entre estas duas salas era feroz e visível através da publicidade e promoções constantes. Nos anos 60, assistiu-se a uma modernização das salas e ao aparecimento do cineclubismo, com o Cine Fórum. A inauguração do Cinema João Jardim (1966) – com a distribuição da sala, os tipos de cadeira e o preço dos bilhetes – fomentou uma distinção social semelhante à do início do século. Transformou-se, contudo, na sala de maior sucesso do Funchal até ao aparecimento do Cinema Santa Maria e do Cine Casino, funcionando até 1982. A déc. de 80, assistiu ao encerramento de várias salas de cinema, como o Cinema João Jardim e o Cine Parque. Na década seguinte, deu-se a remodelação de algumas salas, como o Cinema Santa Maria, e a abertura de outras, como o Cine Deck, o Cine Max e o Cinema D. João, que tiveram uma curta duração, situação provocada pela quebra de público devido à concorrência do vídeo. No início do séc. XXI, verificou-se a abertura de cinemas multi-salas, associados a grandes distribuidoras. Nestas salas, os filmes exibidos são, geralmente, de cariz comercial e facilmente percetíveis pelos grupos menos letrados. O cinema alternativo, mais analítico – festivais e mostras de cinema –, está particularmente associado ao Teatro Baltazar Dias. Ao longo do séc. XX, com exceção do Estado Novo, o desporto teve um cariz popular, desempenhando um importante papel na cultura popular urbana. As atividades físicas eram, inicialmente, praticadas nas escolas, logo típicas das elites. Esta situação foi alterada com o romper dos limites da escola, chegando às camadas populares. Segundo Pierre Bourdieu, o desporto, oriundo dos jogos populares, regressa ao povo sob a forma de espetáculo produzido para este grupo social que se encontra sedento de distração. O bilhar foi, provavelmente, o mais antigo desporto praticado na Madeira, nos clubes madeirenses e estrangeiros. Nos locais de diversão, o jogo popularizou-se e mais tarde torna-se uma prática de competição. Curiosamente, o madeirense Alfredo Ferraz (n. Madalena do Mar, 08/11/1901) foi um dos maiores bilharistas portugueses, representando Portugal, em 1932, no III Campeonato do Mundo de Bilhar Livre, realizado em Espinho. Sagrou-se campeão do mundo em 1939, no campeonato que teve lugar em Lausanne, Suíça. Contando com uma associação, a Associação Madeirense de Bilhar, esta modalidade está ainda muito presente na sociedade madeirense. Durante a Primeira República, surgiram condições para a formação de associações desportivas, sociais e culturais relacionadas, principalmente, com o desenvolvimento da prática do futebol. Há notícia do aparecimento e inauguração de várias dezenas de clubes que desapareceram da mesma forma súbita com que surgiram: “E é neste fervilhar de tudo, que nascem e crescem o Club Sport Marítimo, o Clube Desportivo Nacional e o Clube Futebol União” (NASCIMENTO, 2011, 45). Emergiram, ainda, 14 núcleos desportivos, sem carácter associativo, servindo para a ocupação dos tempos livres e prática do futebol. Estes clubes procuravam incentivar a prática de vários desportos e atividades além do futebol, como o ciclismo (praticado desde os finais do séc. XIX e com provas entre o Funchal e Câmara de Lobos), a natação, a esgrima, o boxe, a luta romana, a ginástica, o ténis, a vela, a corrida, as provas automobilísticas e as corridas de cavalos, que se realizavam na estrada entre o Funchal e Câmara de Lobos, como descreve John Driver, cônsul da Grécia na Madeira, já em 1838. Refere, ainda, o ambiente festivo que caracterizava estas provas (SILVA, 1994, 191). Apesar dos esforços para implementar e desenvolver as atividades náuticas – nomeadamente a natação e o polo aquático – e a ginástica, o futebol passou, após a Implantação da República, a ocupar um lugar central na sociedade funchalense. A fundação de alguns clubes – Grupo Desportivo do Ateneu Comercial, Grémio dos Empregados do Comércio, Operário Funchalense, entre outros – é demonstrativa do carácter popular do futebol. A partir da déc. de 20 do séc. XX, o futebol tem já um modus operandi e características que hoje identificamos como fenómenos de massas. Este desporto passa, assim, a fazer parte do quotidiano funchalense. Os periódicos da época relatavam os jogos realizados ao domingo no adro da igreja de Santa Maria Maior, impedindo o normal movimento das pessoas que se dirigiam ao templo, o que resultava em queixas apresentadas à polícia. O Diário da Madeira de 21 de novembro de 1912 dava conta que “era raro o dia em que não houvesse futebol no Antigo Campo do Campo da Barca”. Apesar de haver alguma iniciativa individual, eram os clubes os principais impulsionadores das atividades desportivas, havendo, entre a sua maioria, um denominador comum: a Rua de Santa Maria. Foi nesta zona, coração da cidade por excelência, que surgiu o primeiro espaço oficial destinado a jogos de futebol, provas de atletismo e hipismo, bem como muitas sedes dos clubes funchalenses. Temos, assim, uma clara associação entre o desporto e a zona mais popular e característica da cidade. O futebol, nomeadamente o Club Sport Marítimo, foi referido na obra Lágrimas Correndo Mundo de Horácio Bento de Gouveia. Em 1926, este clube sagrou-se campeão nacional. Neste episódio percebe-se, com facilidade, o carácter popular da modalidade: “Ao sair a porta, um vivório enchia a Rua de Santa Maria. Grupos de populares, à frente dos quais se erguia um estandarte, gritavam, esbracejando num delírio resvés da demência: Viva o Marítimo! Viva o campeão de Portugal. […] E seguiu a ranchada para a sede do Clube, no Campo de D. Carlos. […] Celebrava-se o aniversário do Marítimo, campeão de Portugal” (GOUVEIA, 1959, 153-154). Mas havia, também, clubes mais elitistas. O escritor João França, no seu romance Uma Família Madeirense, descreve a relação existente entre clubes e grupos sociais: “o Alfredo Meireles devia deixar o Madeira e filiar-se no Marítimo, isso para estar de acordo consigo mesmo, pelo menos quanto às cores das bandeiras e nível social. […] As cores do Madeira, o clube da elite funchalense, eram o azul e branco, a exemplo da bandeira da Monarquia, e as do Marítimo, clube popular, o rubro e o verde, tal o estandarte da República portuguesa” (FRANÇA, 2005, 34-35). Embora o principal objetivo dos clubes fosse fomentar o desenvolvimento físico dos seus sócios através de atividades desportivas, também promoviam excursões de recreio, convívios e atividades culturais. Os clubes comemoravam, assim, datas importantes, efemérides, e homenageavam individualidades de relevo para a causa desportiva. São exemplos disto as comemorações do V Centenário da Descoberta da Madeira, a extinção da cólera na ilha e os aniversários da Implantação da República. As excursões instituídas pelos clubes tinham como objetivo promover o convívio entre os adeptos, os jogadores e a imprensa, assim como fomentar a troca de experiências com outras equipas. Os adeptos dos clubes e a imprensa eram convidados para estas viagens, normalmente marítimas, que saíam do Funchal para o exterior, e não no sentido inverso. Era hábito haver o acompanhamento por parte de uma banda filarmónica. Os clubes tinham preocupações sociais, servindo as excursões para angariar fundos para doar a algumas instituições de caridade e causas públicas, sendo a construção do sanatório para tratamento da tuberculose um bom exemplo. Além das excursões, as associações desportivas dinamizavam bailes de Carnaval e de Páscoa, saraus literários, musicais e dançantes. Estes encontros, que se realizavam na sede do clube ou num teatro da cidade, serviam, também, para a entrega de prémios àqueles que tinham participado nas atividades desportivas. Com a instauração do Estado Novo, o desporto foi usado com o intuito de regeneração da raça, ficando o carácter lúdico e de sociabilidade para outros planos mais secundários. A intervenção estatal no campo do desporto foi notória com a criação de várias instituições: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (1935), Mocidade Portuguesa (1936), Instituto Nacional de Educação Física (1940) e Direção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (1942). Estas instituições, aliadas “à construção de campos de jogos, de ginásios e de estádios e aos subsídios anuais de milhares de contos para o desporto vão fazer da caminhada da atividade desportiva em Portugal, um trajeto constantemente acompanhado, vigiado e controlado, sem grande margem de manobra e autonomia” (NASCIMENTO, 2011, 96). A ideia que o Estado Novo tinha do futebol, e do desporto em geral, era que deveria ser amador, ao serviço da nação, da educação física, para o cultivo do corpo. O desporto de espetáculo, de massas, era amplamente condenável pelo regime. Embora o Estado Novo nunca quisesse potenciar o futebol, assistiu-se a uma propagação desta modalidade. O futebol tornou-se um desporto de massas, urbano, popular, económico e democrático. Este era “um dos pilares da sociedade portuguesa da época por ação do povo que, através da prática e acompanhamento semanal da modalidade, usufruía de um intenso entretenimento e euforia, contrariando a ideia de que seria um agente de corrupção moral” (Id., Ibid., 113). As enchentes tornaram-se uma realidade, possibilitando a riqueza de bilheteira, fonte de receita fundamental para os clubes. Segundo o DN da Madeira (29 jul. 1945, 1), o orçamento de 1946 do Ministério das Obras Públicas na Ilha previa o arranjo do campo de jogos do Liceu Jaime Moniz, a primeira fase de arranjos do campo dos Barreiros e do Parque de Santa Catarina e a terraplanagem de campos de jogos locais. Entre 1940 e 1957, houve na Ilha várias obras de melhoramento e inaugurações de campos de futebol (Funchal, Câmara de Lobos, Machico, S. Jorge, Santana e Santa Cruz). No entanto, “o que marca este período na Madeira em termos de infraestruturas é, indubitavelmente, a inauguração do Estádio dos Barreiros”, em 1957 (NASCIMENTO, 2011, 103). À semelhança das décadas anteriores, nos anos 60 os clubes foram dinamizadores de grandes eventos culturais, como as Feiras Populares do Marítimo e as Quermesses do Nacional. Com estas festas, a população, sequiosa de distrações, podia, durante o verão, ter contacto com individualidades da televisão, da rádio e do teatro, que de outra forma não seria possível. Marcaram presença nas Feiras e Quermesses artistas nacionais como Simone de Oliveira, Madalena Iglesias, Conjunto Académico João Paulo, António Calvário, Paula Ribas, Elsa Vilar, Raúl Solnado, Badaró, Maria de Lourdes Resende, Duo Ouro Negro, Max, Anita Guerreiro, Mimi Gaspar, Mena Matos (imitador), Humberto Madeira e Helena Tavares; e nomes internacionais: Alberto Cortez, Vicky Lagos, Marisol e António Prieto. Estes eventos, que ocorriam em pontos agradáveis da cidade, tinham, além dos momentos musicais, teatro, bazares, exposições, casas de chá, barracas de “comes e bebes” e várias distrações. Enquanto as Quermesses se destinavam à elite funchalense, acontecendo em locais mais sofisticados e com artistas mais afamados, as Feiras do Marítimo congregavam as camadas populares da urbe. Porém, embora o sucesso fosse grande, estes eventos terminaram em 1964, dada a exiguidade territorial, a pouca população e a elevada qualidade exigida pelos seus promotores. Com o 25 de Abril, o desporto deixa o seu cariz elitista, como pretendia o Estado Novo, e passa a ser massificado, revelando-se a raiz popular do mesmo. A política desportiva da RAM fez surgir e consolidou os clubes desportivos regionais: “Em 1976 eram vinte e sete, em 1980 eram quarenta e cinco e em 1988 passariam para cinquenta e cinco, os clubes legalmente constituídos e inscritos em competições nacionais e regionais” (Id., Ibid., 120). Com a crescente adesão da população às práticas desportivas, novas modalidades vão alcançar êxito fora da ilha – como o voleibol, a natação e o hóquei –, levando ao surgimento de 20 novos núcleos desportivos e várias associações, nomeadamente o Clube dos Amigos do Basquete, o Clube Futebol Andorinha e a Associação Hípica da Madeira. O primeiro dia de maio – dia de S. Tiago Menor, padroeiro da cidade do Funchal, das antigas comemorações das Festas dos Maios e, mais tarde, Dia do Trabalhador – era um dos momentos mais esperados do ano pela população do Funchal. Provavelmente, a maior parte das pessoas ignorava o significado deste dia, como descreve João França: “Talvez nem soubessem daquele 1.º de Maio de 1538, em que Santiago Menor operou o milagre do fim da peste no Funchal, isso após vinte anos de medo, sofrimento e luto” (FRANÇA, 1990, 23). Este dia levava centenas de pessoas à Quinta do Palheiro Ferreiro, onde a família Blandy permitia, às classes trabalhadoras urbanas, a entrada. Daqui “todos traziam os colares de flores, as ‘maias’ – e os folguedos, os jogos, as brincadeiras, os encontros, as brejeirices preenchiam os relvados da propriedade. Ia-se a pé, como também à Festa do Livramento, no Caniço. […] Os grupos de forasteiros animavam-se com o rajão e com o harmónio e a gaita de boca… Havia bailinhos, comiam-se espetadas e bolos do caco” (PINTO-CORREIA, s.d., 16). Uma grande parte da população que não se deslocava à Quinta do Palheiro Ferreiro dava passeios pelo campo, às vezes só até ao limite da cidade, onde, em família, faziam o seu piquenique. Ao fim do dia, as famílias regressavam a casa felizes e com ramos de flores, tradição que se manteve. Entendendo-se a cultura como um conjunto de informações não hereditárias, acumuladas, conservadas e transmitidas pelas diversas coletividades humanas, as festas serão um ato cultural. Transmitidas pela tradição, as festas são, na sua peculiaridade, próprias de uma comunidade, de um espaço e de um tempo. As festas tradicionais desde sempre estiveram associadas ao elemento religioso. Sendo os limites entre religião e cultura ambíguos, Durkheim aponta a estreita relação entre religião e festas, importantes manifestações da vida quotidiana para o povo. Estas teriam surgido da necessidade de separar o tempo em dias sagrados e profanos. As festas de cariz religioso, algumas com duração de diversos dias, permitem interromper a rotina, várias vezes ao longo do ano, para a sua organização e participação popular. As festas de carácter popular, incluindo as religiosas, espelham sempre o espírito tradicional e a psicologia de uma região. As festas mais típicas, populares e antigas da Madeira são as religiosas. Estas “refletem o esplendor e entusiasmo das províncias portuguesas do Norte; a tristeza e saudosismo das províncias do Sul; ressentem-se da influência dos povos que, desde o descobrimento, as povoaram e viveram em contacto connosco” (PEREIRA, 1989, II, 486-487). Na Ilha, são vários os exemplos de festas religiosas e procissões. Como descreve um autor anónimo, em 1819, “as maiores alegrias proporcionadas aos naturais são os festivais religiosos e as procissões; a sua ânsia por estes espetáculos é tanta que vêm de todas as partes das ilhas [sic] para as observar, ficando as ruas extremamente povoadas e as janelas cheias de senhoras envergando as melhores vestes, para observar o cortejo” (SILVA, 1994, 95). Isabella de França, em meados do séc. XIX, após assistir à chegada de uma romaria do Santo da Serra, chocou-se com a falta de gosto do triste cortejo, no qual as pessoas simples pareciam divertir-se. Com opinião contrária, Michael Graham, autor de The Climate and Resources of Madeira (1870), assinala o notável “trabalho do povo, em mútua colaboração e o seu bom gosto na decoração das ruas e a extraordinária beleza dos altares, devido à cuidada ornamentação floral” (Id., Ibid., 95), tradição que permaneceu até à atualidade. Desde longa data se festejaram os santos populares no Funchal. Era na véspera, principalmente à noite, que as festas atingiam o auge. Os adros das igrejas, com as suas fachadas decoradas com iluminações (balões venezianos e lanternas coloridas), eram palco dos divertimentos populares. O fogo de artifício que se seguia à cerimónia religiosa da noite ocupou, desde o séc. XIX, um lugar de destaque nestes festejos e tornou-se indispensável ao programa da festa. Na véspera da festa, o fogo, que ficava, às vezes, exposto ao público no largo da feira, era levado, num cortejo acompanhado por bandas filarmónicas, para o local da exibição. A queima de fogo preso, intervalado por música, foi descrita por João dos Reis Gomes: “rodas num redemoinhar vertiginoso, baterias lançando balas luminosas, árvores de fronde colorida e chamejante, bonecos em jatos de fogo simulam incontinências fisiológicas, tudo quanto o gosto inculto dos pirotécnicos locais pôde encontrar de mais divertido e atraente, convergindo num último esforço para a girândola final, farta de cor e luz, a pôr gritos de espanto na boca ingénua dos romeiros das freguesias afastadas” (PEREIRA, 1989, II, 490). Nas romarias, a primeira obrigação do romeiro é a visita ao templo para cumprir a promessa feita, beijar a imagem do Santo e deixar esmola para a festa. No dia da festa, após as cerimónias da missa cantada, há um cortejo religioso, onde a imagem do Patrono e as confrarias da Paróquia têm um lugar de destaque. Crianças vestidas de anjos ou com trajes tradicionais da Região espalham pétalas de flores ao longo do percurso. O povo assiste com uma postura recatada e religiosa. Longinquamente, estes cortejos religiosos revestiam-se de um carácter profano, o que foi reprimido pela Igreja, que considerava um abuso e um excesso. A festa de S. João era a mais popular na Madeira. No bairro de Santa Maria elaboravam-se tronos em honra de Santo António e S. João e praticavam-se cerimónias religiosas em homenagem aos santos. Grupos de populares divertiam-se, até de madrugada, tocando e cantando. As casas eram decoradas com balões venezianos e “tradicionais bentas de Louro, murta e alecrim” (CALDEIRA, 2007, 94), adquiridas na rua do mercado e largo da praça. Juntamente com as festividades do S. João, a romaria do Monte era a mais concorrida das festas tradicionais funchalenses. Sendo Nossa Senhora do Monte Padroeira da Madeira, desde 1804, por ação do Papa Pio VII, o seu culto, que se vinha intensificando desde meados do séc. XVIII, provocou as maiores romagens ao templo de maior afluência de crentes e a mais concorrida romaria da Ilha, procurada por milhares de fiéis. Os romeiros, que chegavam à cidade dois dias antes da festa, animavam as ruas da Alfândega, Tanoeiros, Praia e largo dos Varadouros, onde comiam o seu farnel, deslocando-se, em seguida, para o Monte, cantando e dançando ao som de machetes e violas. No dia da festa, ao amanhecer, os romeiros começavam a descer para a urbe, onde apanhariam os vapores costeiros que os levariam às suas localidades. Segundo Abel Caldeira, nos anos 60 do séc. XX, a romaria do Monte estava desvirtuada com a falta de romeiros, verificando-se apenas a frequência de curiosos que se deixavam aniquilar pela especulação exercida com a venda de bugigangas, frutas e comes e bebes. O dia de S. Pedro era celebrado com demorados passeios pela baía do burgo, em pequenos botes. Neste dia, a praia, o cais e imediações enchiam-se de pessoas que vinham dos arredores da cidade. Na zona marítima do Funchal, decorada com bandeiras, as famílias passavam a tarde e parte da noite num convívio animado por grupos de tocadores e cantores. A procissão com a imagem do Apóstolo saía da igreja de S. Pedro e passava à beira-mar. A noite de S. Martinho era outra das festividades populares do Funchal. A ceia tradicional, realizada na maioria das casas, era composta por castanhas cozidas, nozes, pimpinelas, bacalhau cru ou assado e vinho seco: “Os proprietários do vinho novo aproveitavam-se dessa noite para passar o vinho e convidar os parentes e amigos para assistirem a essa operação” (Id., Ibid., 95). Havia cortejos, iluminados com “tochas” feitas de bananeiras e velas, que percorriam diversos sítios. A época natalícia, festa por excelência da população madeirense, é comemorada no arquipélago entre o dia do nascimento de Jesus até ao dia de Reis, desde longa data. Segundo Horácio Bento de Gouveia, “a Festa é a principal coluna da memória para assinalar o tempo” (VERÍSSIMO, 2007, 79). A Festa, forma pela qual se designa o Natal, é precedida por um novenário conhecido por Missas do Parto, celebradas antemanhã com loas ao Menino. Ocorrendo entre 16 e 24 de dezembro, as Missas do Parto são as primeiras manifestações de júbilo e entusiasmo pela proximidade da quadra festiva. É uma devoção mariana e comemora os nove meses de gravidez da Virgem Maria ou Nossa Senhora do Ó, designada, na Madeira, por Senhora ou Virgem do Parto. Por essa razão, as Missas começam nove dias antes do Natal e culminam com a Missa do Galo. Estas Missas, onde sagrado e profano se misturam, após conhecerem um certo declínio, voltaram a ser muito participadas e apreciadas. Durante a noite da véspera de Natal, a população da ilha formigava no Funchal para comprar fruta, flores, verduras, figurantes de barro e enfeites para os presépios. Nesta noite, uma multidão de vendedores ambulantes improvisava uma feira nas várias artérias da cidade. O movimento de carros e peões entre o Funchal e as povoações rurais era constante. A ida ao mercado também proporcionava momentos de diversão, com cantigas e despiques dentro do mercado e nas suas ruas limítrofes durante a noite. As tascas da zona eram, e continuaram a ser, muito frequentadas pelas iguarias de Natal. Nesta época, os preparativos domésticos azafamavam toda a população. Como descreve Cabral do Nascimento, em 1950, “Nas casas, a limpeza a que se procede não exclui a própria caiação das paredes, nos diversos arranjos que se seguem está implícita a substituição das cortinas das janelas e até a modernização dos estofos da mobília. Depois, passando das salas e dos quartos para a despensa e cozinha, vêm em primeiro lugar a amassadura dos bolos de mel e a preparação dos licores, em especial de tangerina e amêndoa” (NASCIMENTO, 1950, 26). As mesas, mesmo as das famílias mais carenciadas, eram guarnecidas com iguarias típicas da época e raras durante o resto do ano; e as casas eram decoradas com presépios e lapinhas. As igrejas enchiam-se de pessoas para a Missa do Galo, à meia-noite. Aqui, observava-se uma representação tradicional, misto de religioso e profano, o “pensar o Menino”, seguida da “entrada de pastores” que o vão adorar. O auto de “pensar o Menino”, proibido pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto, simulava o nascimento do Salvador com bastante realismo. Esta cerimónia foi simplificada e era feita por uma criança vestida de anjo, que entoava uma melodia privativa desse ato. Embora proibida, a “Pensação do Menino” sobreviveu em algumas localidades, como a freguesia da Boaventura, na costa norte da Ilha. Nesta cerimónia, os crentes beijavam a imagem do Deus-Menino, assistiam ao vestir do Menino e ao canto do Anjo, bem como à entrada dos pastores. Estas práticas, comuns ao meio rural e ao meio urbano, tinham já desaparecido do Funchal em meados do séc. XX. O vestir do Menino consistia em trajar a imagem do Deus-Menino na noite de Natal, num estrado colocado dentro da igreja. Este serviço, juntamente com o canto do Anjo, para o qual uma voz infantil era ensaiada durante o ano, era ministrado por raparigas. A entrada dos pastores, auto vulgar na península Ibérica desde o séc. XIII, consistia em oferecer ao Deus-Menino, na mesma noite, os vários produtos da terra, animais vivos, ovos, géneros alimentícios e dinheiro. Um dos presentes mais característicos desta noite costumava ser o comum pão de açúcar em forma de cone troncado. As oferendas eram feitas por raparigas e rapazes, vestidos com trajes antigos, que as conduziam ao altar, anunciando com cantares a quem se destinavam: “As cerimónias de Pensar o Menino e presenteá-Lo com dádivas e promessas, agradecimentos e invocações, prolongam-se pela noite dentro até 2 e 3 horas da madrugada. Sai depois o povo da igreja e reúne-se no Largo do Município onde os ranchos folclóricos de pastores se exibem em bailados e cantares até romper a manhã […]. Na primeira oitava, de tarde, começam as romagens às Lapinhas de todos os sítios” (PEREIRA, 1989, II, 512). Ideia bem diferente tem Cabral do Nascimento sobre esta noite: “Fechou-se tudo, após a missa do galo. O silêncio pesa. O céu é cor de cinza. O ar está imóvel. […] Só, de quando em quando, um estampido seco, uma bomba de clorato que rebentou no chão ou um morteiro que se ergueu na atmosfera pasmada” (NASCIMENTO, 1950, 27). O termo “lapinha” – também usado em certas regiões do Brasil, com o mesmo significado – deverá ser o diminutivo de “lapa” e significará furna ou gruta, criando uma analogia com o local do nascimento de Jesus. O presépio, criação de S. Francisco de Assis, foi introduzido em Portugal pelas freiras do Salvador, em finais do séc. XIV, e trazido para a Madeira pelos primeiros povoadores. A típica composição do presépio reflete a história da natureza, da vida social e da psicologia de cada época. A orografia acidentada da ilha era “representada com a ingenuidade da arte popular”. Assim, “Dos presépios mais antigos existentes na Madeira alguns honram brilhantemente a arte do barro do séc. XVIII. […] Conservam-se em casas particulares, encerrados dentro de nichos onde foram primitivamente armados, sendo alguns desdobráveis em trípticos” (PEREIRA, 1989, II, 506-509). Embora fossem de carácter privado, algumas lapinhas eram admiradas e visitadas por parte da população funchalense, nomeadamente: a lapinha do Afasta… Afasta, a lapinha do Asilo, a lapinha do Bertoldo, a lapinha do Joaquinzinho, o presépio de São Filipe, a lapinha do mestre Antonico, o presépio do Rodolfo, a lapinha do Caseiro. Francisco Ferreira, o Caseiro, antigo colono das freiras de Santa Clara e familiar de Herberto Helder, foi um dos presepistas mais destacados. O que tornava estas lapinhas e presépios tão apreciados era a sua antiguidade, o número de figuras e o precioso trabalho que estas revelavam. De entre as figuras expostas, apareciam algumas articuladas, bem como o busto do proprietário, algumas vezes autor das peças. Algumas destas lapinhas eram emprestadas às igrejas para as cerimónias natalícias. Com a ironia que lhe é muito própria, e criticando a forma como se vivia o Natal em meados do séc. XX na Madeira, Cabral do Nascimento caracteriza os presépios de forma distinta: “No interior das casas, como nas capelas das igrejas, o presépio está armado e é mais ou menos igual ao dos anos anteriores: reforçam-no apenas alguns novos pastores de barro policromo ou uma ou outra inovação do progresso: automóveis que se dirijem para Belém, ao lado de camelos, locomotivas que projetam, pelas chaminés, fumo compacto de algodão branco [...]. O Menino Jesus tem um ar do século xviii, veste comprida túnica de seda orlada de rendas e, erguendo a mãozita gordalhufa, toca com o dedo num cacho de bananas de loiça, que está na rocha, e que, a despenhar-se, poderia esmagar a um tempo todos os três Reis Magos” (NASCIMENTO, 1950, 27). Após o dia de Reis, as lapinhas são desmontadas, mantendo-se algumas até 15 de janeiro, dia de Santo Amaro, momento em que são dadas como findas as tão apreciadas festividades do Natal na Madeira.   Ana Paula Almeida (atualizado a 01.03.2017)

Antropologia e Cultura Material Cultura e Tradições Populares Madeira Cultural

centro de química da madeira

O Centro de Química da Madeira (CQM) foi criado em 2004, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Este projeto nasceu da vontade de um punhado de investigadores que aceitaram o desafio de criar, na Universidade da Madeira e para a Região, um centro de investigação de qualidade internacional nas áreas da química e da bioquímica. O CQM foi, desde a sua criação, o CQM auditado regularmente por painéis internacionais de avaliação, sendo os seus relatórios de atividades públicos e os resultados mensuráveis através de critérios internacionalmente aceites. Os órgãos de governo emanam da vontade dos investigadores que constituem o Centro, sendo o respetivo coordenador eleito por voto secreto dos seus membros seniores, e os resultados do domínio público. Para além disso, o Centro cumpre as regras de contratação pública e as leis em vigor. O financiamento do CQM, que tem sido obtido através de concursos altamente competitivos, provém, fundamentalmente, da FCT e de fundos europeus. Graças ao trabalho efetuado nas vertentes de investigação, desenvolvimento, inovação, formação de recursos humanos, e apoio e serviços às empresas, bem como na divulgação da ciência, o CQM é, no início do séc. XXI, uma referência para a Madeira e para o país. Tendo por base a experiência e o conhecimento do pequeno grupo de investigadores doutorados que estiveram na sua génese, o CQM cedo definiu como estratégia de desenvolvimento uma forte ligação às necessidades científicas e de formação da Região, procurando sempre, nas parcerias e na internacionalização, a janela de oportunidade para o reconhecimento e para a complementaridade do trabalho produzido. Assentando em dois grupos de investigação interdisciplinares: “Produtos Naturais” e “Materiais”, o CQM é o elemento central de promoção e dinamização da investigação, do desenvolvimento e da inovação em química e bioquímica na Região Autónoma da Madeira, desenvolvendo a sua atividade nas seguintes áreas: Química Analítica, Química Alimentar, Saúde, Materiais, Modelação Molecular, Nanoquímica e Fitoquímica. No final de 2014, o CQM era constituído por 57 investigadores, 15 dos quais eram doutorados; outros 15 investigadores tinham o mestrado, 11 eram estudantes de doutoramento e 14 estudantes de mestrado; do total, 22 % eram investigadores estrangeiros e 54 % do sexo feminino. De acordo com o estudo bibliométrico realizado pela FCT a todas as unidades de investigação nacionais, no período de 2008-2012, a produtividade do CQM foi uma das mais altas do país; além disso, nos critérios: número de citações por investigador a tempo inteiro (full-time equivalent researcher), impacto, e publicações mais citadas, o CQM destaca-se entre todos os centros de investigação portugueses. Nos seus primeiros 10 anos de existência, o CQM estabeleceu e fortaleceu parcerias, não só no espaço português e da Macaronésia, como na China, Índia e Brasil, destacando-se a constituição de protocolos ou colaborações com várias instituições científicas e laboratórios. Tendo por unidade de acolhimento o CQM, foi criada na Universidade da Madeira a primeira cátedra em Nanotecnologia do país. Em resultado deste projeto, a Universidade da Madeira assinou o primeiro protocolo com uma Universidade Chinesa (Universidade de Donghua – Xangai), começou a receber alunos chineses de doutoramento e mestrado para realizarem estágios no CQM, e os investigadores do CQM passaram a visitar regularmente a China para desenvolverem trabalho de investigação. Desta intensa atividade científica conjunta resultou a publicação de vários trabalhos em revistas de elevado fator de impacto, e ainda um aumento do número de alunos estrangeiros, quer no Mestrado em Nanoquímica e Nanomateriais, quer no Doutoramento em Química da Universidade da Madeira. A localização específica do Centro de Química da Madeira na Região é uma característica inerente de apresentação do próprio Centro. A investigação desenvolvida no CQM está, por isso, prioritariamente ligada à comunidade que integra. Desta forma, há uma forte relação entre o CQM e as entidades regionais, como o hospital, o governo e várias empresas locais. As atividades educativas, como o “Ciência Viva nas Férias”, “A Química é Divertida” e os “Estágios de Verão”, têm sido ao longo de vários anos um importante ponto de contacto com as escolas da região e com a população, a que se juntou em 2015 o projeto “Bridging the Gap”. As atividades do CQM permitiram a formação de vários jovens investigadores madeirenses, tendo muitos deles permanecido a trabalhar em empresas da Região. As atividades de investigação e de inovação, além da participação em projetos internacionais, contribuíram para colocar a Madeira e o Porto Santo numa posição de destaque, seja pela divulgação e valorização dos produtos da região, seja pela atração de investigadores e estudantes internacionais, seja ainda pela obtenção de fundos nacionais e internacionais que fomentam a economia regional. No que concerne à internacionalização, o Centro de Química da Madeira tem procurado a excelência e o profissionalismo em todos os domínios da sua atuação, captando conhecimento externo e dinamizando atividades que levam ao enriquecimento dos seus investigadores. O estabelecimento de protocolos e intercâmbios com diferentes universidades – como a Universidade de Nova Delhi (Índia) e a já referida Universidade de Donghua (China) –, a existência da Cátedra em Nanotecnologia, a visita frequente de conferencistas e professores estrangeiros (com a consequente troca de experiências com os investigadores do Centro), a captação de estudantes e investigadores de outros países, e a possibilidade de o Centro oferecer condições para que os investigadores nacionais tenham experiências noutros países e conheçam outra realidade, são pontos fortes que apoiam a contínua internacionalização do trabalho realizado no CQM. A possibilidade de desenvolver colaborações cada vez mais estreitas com entidades internacionais enriquece e revitaliza a investigação no Centro, permitindo aconselhamento científico externo, e fazendo com que a oferta formativa que o CQM disponibiliza seja mais abrangente e a investigação mais competitiva. Após os primeiros 10 anos de existência e passada a fase da criação, o CQM foi colocado perante o desafio de crescer e se sustentar, reforçando o forte compromisso social através da investigação e dos programas educacionais, aumentando a massa crítica do Centro com um maior número de investigadores seniores, dando continuidade ao programa de internacionalização com colaborações capazes de exponenciar o impacto do CQM. No domínio educacional, o objetivo é garantir um ambiente inovador, preparando os estudantes para se tornarem investigadores e empreendedores de excelência, proporcionando-lhes as melhores condições para poderem ter sucesso no mundo empresarial e académico. Ao nível da investigação, o plano estratégico do CQM para o período de consolidação assentou no desenvolvimento de novas abordagens analíticas para aplicação no ramo alimentar e no controlo de qualidade, na identificação precoce de biomarcadores característicos de diferentes doenças, na identificação de compostos moleculares com potencial atividade biológica, no desenvolvimento de novos nanomateriais e sensores para aplicações biomédicas, com especial relevo para as doenças emergentes e para as doenças ressurgentes (malária e dengue). O Centro de Química da Madeira tem a missão de servir a comunidade investigando, desenvolvendo a Região e o país, formando e criando emprego para o mundo e, por isso mesmo, o conhecimento acumulado no CQM destina-se a todos e encontra-se ao serviço de todos.   João Rodrigues (atualizado a 29.12.2016)

Física, Química e Engenharia Educação

azevedo, álvaro rodrigues de

Álvaro Rodrigues de Azevedo foi um advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador, que viveu na Madeira durante cerca de 26 anos e que contribuiu para a valorização do panorama literário e cultural da Ilha. É autor de uma bibliografia diversificada e, do seu legado, destaca-se a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), de Gaspar Frutuoso, que inclui 30 extensas notas da sua autoria, que complementam e esclarecem alguns pontos acerca da história da Madeira. Palavras-chave: Madeira; literatura; jornalismo; história; historiografia; cultura. Álvaro Rodrigues de Azevedo foi advogado, professor, político, jornalista, escritor e historiador. Nasceu em Vila Franca de Xira, a 20 de março de 1825, e faleceu em Lisboa, a 6 de janeiro de 1898, dois meses antes de completar 73 anos. Apesar de ter nascido no continente, viveu na Madeira durante muitos anos e considerava a Ilha a sua pátria adotiva. Chamava-se José Rodrigues de Azevedo, mas terá mudado de nome quando ingressou na universidade. Era filho de António Plácido de Azevedo, natural de Benavente, e de Maria Amélia Ribeiro de Azevedo. Casou-se com Maria Justina, de quem teve geração. Concluiu o curso de Direito, em 1849, na Universidade de Coimbra, e foi para Lisboa, onde residiu durante cerca de seis anos. Seguiu posteriormente para a ilha da Madeira, onde exerceu funções de professor, ocupando uma vaga através de concurso público. Anteriormente, tinha tentado um lugar na magistratura judicial, mas não teve sucesso. Alguns anos mais tarde, na introdução do livro Esboço Crítico-Litterário (1866), explicava a razão pela qual não tinha conseguido aquele emprego e se considerava injustiçado. No Liceu do Funchal, teve a seu cargo a cadeira de Oratória, Poética e Literatura, que regeu durante 26 anos. Também no mesmo Liceu, foi professor de Português e Recitação e fez parte, como sócio e secretário, da Associação de Conferências, inaugurada a 9 de maio de 1856, com a finalidade de promover o desenvolvimento dos princípios da educação popular e de elaborar uma discussão com vista à escolha dos melhores métodos de ensino. A Associação de Conferências era composta por professores do ensino público e particular da capital do distrito da Madeira. Em 1856, por ocasião da epidemia de cólera (cólera-mórbus), que se propagou na Ilha, causando uma elevada taxa mortalidade, prestou relevantes serviços no desempenho do cargo de administrador do concelho do Funchal. A 24 de julho de 1856, escrevia no periódico A Discussão, revelando as medidas tomadas pela Câmara Municipal que, no sentido de tentar combater a epidemia, concedeu 150$000 reis mensais para que o administrador do concelho estabelecesse uma sopa económica, a ser distribuída, uma vez por dia, aos mais necessitados. Referia ainda que medidas idênticas tinham extinguido a cólera em algumas regiões continentais. Mencionando nomes de personalidades e respetivos donativos para a causa, reforçava a ideia da importância da alimentação no combate daquele flagelo e considerava que os mais afetados pela doença eram geralmente pobres, pois a principal causa do seu desenvolvimento era a fome e a miséria. Foi procurador à Junta Geral e membro do conselho de distrito e da comissão administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, tendo recusado, em 1870, o cargo de secretário-geral do distrito e a comenda da Conceição. Foi ainda membro do Partido Reformista, participando ativamente na política madeirense e revelando aspirações liberais, sobretudo num período agitado da vida local, iniciado em 1868. Como jornalista, Álvaro Rodrigues de Azevedo colaborou na imprensa periódica madeirense, sendo redator nos jornais A Discussão, A Madeira, A Madeira Liberal, O Oriente do Funchal e Revista Judicial, e tendo redigido também alguns artigos no Diário de Notícias da Madeira. Publicou ainda o Almanak para a Ilha da Madeira para os anos de 1867 e de 1868. Os artigos publicados na imprensa foram de natureza variada, desde folhetins e artigos de crítica literária até assuntos de interesse social, relacionados com a vida no arquipélago e com o quotidiano dos madeirenses. Em janeiro de 1856, no periódico A Discussão, inicia a publicação de um artigo de crítica literária, sob o título “Bosquejo Histórico da Literatura Clássica Grega, Latina e Portuguesa, por A. Cardoso B. de Figueiredo”. Este texto saiu, naquele jornal, nos n.os 50, 51, 53 e 55, entre janeiro e março de 1856. Em 1866, edita um estudo em volume, intitulado Esboço Crítico-Litterário (do Bosquejo Histórico da Literatura Clássica, Grega, Latina e Portuguesa do Sr. A. Cardoso Borges de Figueiredo), no qual menciona o seu primeiro artigo crítico à obra daquele autor. No Diário de Notícias da Madeira, em 1877, nos n.os 181 a 183, publicou, como folhetim, um estudo histórico intitulado “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira”, identificando e descrevendo a casa de Cristóvão Colombo no Funchal. Álvaro Rodrigues de Azevedo é autor de uma vasta obra, de temas diversos. Ainda na juventude, escreveu um drama sob o título Miguel de Vasconcelos, que não chegou a ser editado. No entanto, este texto originou uma polémica na imprensa, em 1852, nos n.os 2924, 2927 e 2942 da Revolução de Setembro, com o bibliógrafo e publicista, Inocêncio Francisco da Silva, autor do Diccionario Bibliográphico Portuguez (1858). Na nota bibliográfica elaborada a Álvaro Rodrigues de Azevedo no referido Dicionário, Inocêncio Francisco da Silva afirma que terá confundido uma crítica desfavorável a outro texto com o mesmo título de Miguel de Vasconcelos, mas de outro autor, que terá lido nas Memórias do Conservatório Real de Lisboa, tomo II, 1843, p. 114. Tendo conhecimento do texto escrito por Azevedo, que este lhe havia dado a ler, anos antes, julgou tratar-se do mesmo texto, pois tinham o título idêntico, mas apenas um foi publicado nas Memórias do Conservatório, tendo outro ficado em arquivo. Este equívoco terá desencadeando a referida controvérsia, suscitando uma troca de correspondência entre ambos, através da imprensa periódica. Nas suas produções literárias encontram-se, entre outros, A Familia do Demerarista. Drama em um Acto (1859), uma crítica de costumes madeirenses, e Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869), no qual pretende desenvolver competências de produção linguística. Como escritor e historiador, produziu importantes trabalhos sobre o arquipélago da Madeira. O seu legado mais importante para a historiografia madeirense foi a publicação do manuscrito As Saudades da Terra (1873), redigido por Gaspar Frutuoso, em 1590, na ilha de S. Miguel, Açores. Álvaro Rodrigues de Azevedo redigiu 30 notas que acrescentou ao manuscrito, na parte que diz respeito à Madeira, com o intuito de esclarecer alguns pontos da história do arquipélago. O trabalho de investigação, de pesquisas e de consultas em livros, manuscritos ou outras fontes, que empreendeu para a elaboração das anotações presentes na edição de As Saudades da Terra (1873) contribuiu para o desenvolvimento do seu gosto pelo estudo da história da Madeira. Segundo Alberto Vieira, Álvaro Rodrigues de Azevedo “poderá ser considerado o pioneiro da historiografia hodierna na ilha. O seu trabalho publicado em anotação a As Saudades da Terra, em 1873, é modelar e surge como uma peça-chave para todos os que se debruçam sobre a história da ilha” (VIEIRA, 2007, 13). Álvaro Rodrigues de Azevedo confessou que teve muitas dificuldades na elaboração destas notas, que foi um processo moroso, fruto de muito trabalho de investigação, de dia, e de escrita, à noite, acumulado com a sua profissão. A obra, encetada em meados de 1870, demorou cerca de três anos a completar. Os trabalhos de investigação foram feitos nos arquivos da Ilha, nas Câmaras do Funchal, de Santa Cruz e de Machico, na Câmara Eclesiástica, na Câmara Militar e no cabido da Sé. Também foram relevantes os textos que reuniu de cronistas como Zurara, João de Barros e Damião de Góis, e os manuscritos do P.e Netto. Teófilo Braga, seu amigo, com quem se correspondia, teve uma grande influência no seu pensamento e na sua escrita, sendo através deste que tomou contacto com a teoria da história positivista, em voga na época. Contou ainda com a colaboração de João Joaquim de Freitas, bibliotecário da Câmara do Funchal, que o ajudou nos trabalhos de revisão textual. Apesar de todas as dificuldades que teve de ultrapassar, e da obra inédita que deu à estampa, em 1873, não obteve o devido valor e reconhecimento por parte dos seus coevos. Só muitos anos mais tarde é que o seu trabalho foi valorizado pelos eruditos madeirenses. Na verdade, esta obra pioneira na historiografia insular abriu caminho para que outros madeirenses começassem a interessar-se pelo estudo da sua história, do seu passado e das suas raízes. As suas anotações constituíram uma fonte importante para outros estudiosos, sobretudo para os intelectuais da primeira metade do séc. XX e para os homens da chamada Geração do Cenáculo, que recorreram com frequência às investigações do seu antecessor. Antes do trabalho feito nas anotações de Álvaro Rodrigues de Azevedo, os estudos relativos à história do arquipélago eram muito vagos, circunscrevendo-se a breves notas e estudos. A sua obra teve, assim, um grande impacto em estudiosos como, entre outros, Alberto Artur Sarmento, Fernando Augusto da Silva, Eduardo Pereira, Visconde do Porto da Cruz, sendo mesmo uma base de referência para a elaboração de obras como o Elucidário Madeirense (1921). De facto, são muitas as referências aos apontamentos e ao nome de Álvaro Rodrigues de Azevedo nos três volumes que compõem o Elucidário, tendo os seus autores confessado que “são as Saudades da Terra, e sobretudo as suas valiosas e abundantes notas, o mais rico, copioso e seguro repositório de elementos que possuímos para a história do nosso arquipélago” (SILVA e MENESES, vol. II, 1998, 126). Neste sentido, também outros autores terão consultado e referenciado as notas a Saudades da Terra, entre os quais o Visconde do Porto da Cruz, na elaboração dos três volumes de Notas e Comentários para a História Literária da Madeira (1949-1953). Ainda relativamente à história da Madeira, Álvaro Rodrigues de Azevedo foi o autor de uma série de artigos, nomeadamente, “Machico”, “Machim”, “Madeira” e “Maçonaria na Madeira”, publicados em 1882 no Dicionário Universal Português Ilustrado, dirigido por Fernandes Costa. Em 1880, trouxe à luz da publicidade o Romanceiro do Arquipélago da Madeira, um volume de 514 páginas, resultado das suas recolhas da tradição oral em diversas freguesias da Madeira e do Porto Santo, para o qual terão contribuído as influências de Teófilo Braga. As composições foram classificadas por géneros, a saber, “Histórias”, “Contos” e “Jogos”, os quais, por sua vez, foram divididos em espécies. Nas “Histórias”, Álvaro Rodrigues de Azevedo incluiu as seguintes espécies: “Romances ao divino”; “Romances profanos”; “Xácaras” e “Casos”. No género “Contos”, incluiu as seguintes espécies: “Contos de fadas”; “Contos alegóricos”; “Contos de meninos”; “Lengas-lengas” e “Perlengas infantis”. Finalmente, no género “Jogos”, contemplou os “Jogos pueris” e os “Jogos de adultos”. Terá coligido, igualmente, elementos para a elaboração do cancioneiro, que, porém, não chegou a publicar. No ano seguinte à publicação do Romanceiro, em janeiro de 1881, já jubilado, mas desiludido com a ingratidão dos madeirenses pelo seu trabalho dedicado à cultura e ao progresso da Ilha, acabou por retirar-se para Lisboa, onde fixou residência até ao fim da sua vida. Deixou uma coleção de apontamentos avulsos sobre a história, o romanceiro e o cancioneiro da Madeira, que foi coligindo ao longo do tempo que ali passou, os quais foram adquiridos pela Biblioteca Nacional de Lisboa, após a sua morte. No distrito de Lisboa, concelho de Oeiras e freguesia de Paço de Arcos, existe uma rua com o seu nome, a “Rua Álvaro Rodrigues de Azevedo”. Na Madeira, além da reedição das suas notas, em 2007, não houve, até 2016, qualquer homenagem a este homem que se empenhou pelo progresso da Ilha. Obras de Álvaro Rodrigues de Azevedo: O Comunismo. Discurso proferido na Aula de Practica Forense da Univ. de Coimbra, em Que Se Expõe e Combate esta Doutrina (1848); O Livro d’Um Democrata (1848); A Familia do Demerarista. Drama em Um Acto (1859); Esboço Crítico-Litterário (1866); Curso Elementar de Recitação, Philologia e Redacçao (1869); As Saudades da Terra. Pelo Doutor Gaspar Fructuoso. História das Ilhas do Porto-Sancto, Madeira, Desertas e Selvagens. Manuscripto do Século XVI Annotado por Alvaro Rodrigues de Azevedo (1873); Corografia do Arquipélago da Madeira (1873); “A Casa em que Christovão Colombo Habitou na Ilha da Madeira” (1877); Romanceiro do Archipelago da Madeira (1880); Benavente: Estudo Histórico-Descritivo, Obra Póstuma, Continuada e Editada por Ruy d'Azevedo (1926).   Sílvia Gomes (atualizado a 14.12.2016)

Antropologia e Cultura Material História Económica e Social Literatura Personalidades

aluviões

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, o termo “aluvião” pode significar inundação muito grande, grande cheia ou enxurrada. Este é o significado atribuído na ilha da Madeira. A rede hidrográfica da Madeira, composta por ribeiras que se desenvolvem da cordilheira montanhosa central para a costa, em vales profundos, estreitos e de declive acentuado, com regime de escoamento intermitente e torrencial, quando associada a eventos de precipitação intensa dá origem a inundações repentinas designadas por aluviões, correntes de detritos ou debris flow. Estas cheias caracterizam-se por concentrações elevadas de material sólido, incluindo blocos de grandes dimensões, que conferem ao escoamento um enorme poder destrutivo. As características geológicas e geomorfológicas das bacias hidrográficas, e das respetivas ribeiras, potenciam a ocorrência de fluxos muito significativos de materiais sólidos, os quais constituem o componente mais perigoso das aluviões. Esta produção de sedimentos é desencadeada pela ação da precipitação e da consequente ocorrência de escoamentos líquidos que mobilizam grandes quantidades de material sólido com elevado potencial geomórfico. A produção dos fluxos de material sólido resulta de diferentes processos, tais como a erosão distribuída nas vertentes, a erosão em sulco e ravinamento, movimentos de massa, e a erosão fluvial nos fundos e margens dos leitos das ribeiras. Segundo a bibliografia, ocorreram no arquipélago da Madeira, desde o início do séc. XVII até 2013, 42 aluviões de intensidade significativa, constituídas por cheias rápidas e violentas com transporte de concentrações elevadas de material sólido. É de destacar, neste contexto, o ano de 1803, no qual se verificaram inundações catastróficas em toda a Ilha, particularmente na região sudeste, entre o Funchal e Machico, tendo perecido cerca de 1000 pessoas. Em consequência desta aluvião, as ribeiras da cidade do Funchal foram canalizadas, sob a direção do Brig. Reinaldo Oudinot, entre 1804 e 1806, continuando uma considerável extensão desta obra a cumprir, no início do séc. XXI, a sua função de canalização dos cursos de água. Já no séc. XXI, merece destaque o dia 20 de fevereiro de 2010, em que, na sequência de um prolongado período chuvoso na ilha da Madeira, aliado a um cenário meteorológico adverso, se gerou uma aluvião excepcional que atingiu, com elevada intensidade, alguns concelhos da vertente Sul da Ilha, em particular o Funchal e a Ribeira Brava. São de lamentar 51 vítimas mortais, bem como os elevados danos materiais e a destruição de muitas infraestruturas públicas e privadas. O quadro que apresentamos (fig. 1) compila os registos históricos de aluviões ocorridas no arquipélago da Madeira entre o início do séc. XVII e o ano de 2013, e as suas principais consequências. [table id=75 /] Sucessivos eventos da mesma natureza têm ocorrido por toda a ilha da Madeira desde o início da sua história geológica, há cerca de sete milhões de anos, até a atualidade. Testemunhos de fluxos concentrados ou torrentes de escoamento bifásico com uma fase sólida muito abundante são visíveis em todos os complexos vulcânicos que constituem a Ilha. Como diz Susana Nascimento, “trata-se de espessos depósitos de enxurrada, bastante compactados e cimentados que se encontram intercalados nos complexos vulcânicos. [...] Formado em clima caracterizado por abundantes e concentradas chuvadas, estes depósitos conglomerático-brechóides, são constituídos por, aproximadamente, 95 % de clastos, em geral mal calibrados, com dimensões que vão, desde escassos milímetros, até cerca de 2 metros” (NASCIMENTO, 1990, 36). O fenómeno das aluviões na Madeira tem sido referenciado em vários trabalhos de carácter mais ou menos científico. Ao abordar os cursos de água da ilha da Madeira, Eduardo Pereira, em Ilhas de Zargo, sublinha a quase ausência de caudal das ribeiras na estação do verão, sendo que no inverno “crescem torrencialmente, transbordam das margens e arrastam das montanhas toneladas de penedos, rolando-os e batendo uns contra os outros num ruído sinistro e aterrador, ao mesmo tempo que arrebatam terrenos de cultura, derrubam pontes e chegam por vezes a causar enormes prejuízos em habitações, pessoas, terras e animais” (PEREIRA, 1989, I, 283) Orlando Ribeiro, ao comentar o regime das águas na ilha da Madeira, refere algumas “inundações catastróficas” que assolaram a Ilha. Tais calamidades estão associadas a “chuvas excepcionais [...] frequentemente desastrosas, que enchem as ribeiras, arrastam blocos com algumas centenas de quilos, destroem pontes, danificam casas, inundando a parte baixa das aglomerações situadas à beira-mar, e pondo em perigo bens e pessoas” (RIBEIRO, 1985, 33). Merece ainda destaque a descrição feita por Cecílio Silva de um cenário de aluvião num texto intitulado “Eu Tive Um Sonho”, publicado no Diário de Notícias da Madeira. Traumatizado pelo estado de desertificação das serras do interior da ilha da Madeira, nomeadamente da região a norte do Funchal, que constitui a cabeceira das bacias hidrográficas das três ribeiras que confluem para a capital, aliado a recordações da infância passada junto à margem de uma dessas ribeiras (Santa Luzia), o mundo dos seus sonhos, frequentemente tomado por pesadelos sempre ligados às enxurradas invernais e infernais dessa ribeira, descreve: “Tive um sonho […], subia a escadaria do Pico das Pedras, sobranceiro ao Funchal. Nuvens negras apareceram a Sudoeste da cidade, fazendo desaparecer o largo e profundo horizonte, ligando o mar ao céu… […] De repente, tudo escureceu. Cordas de água desabaram sobre toda a paisagem que desaparecia rapidamente à nossa volta. […] Repentinamente, como começou, tudo parou; as nuvens dissiparam-se, o vento amainou e a luz voltou. Só o ruído continuava cada vez mais cavo e assustador. Olhei para o Sul e qualquer coisa de terrível, dantesco e caótico se me deparou. A Ribeira de Santa Luzia, a Ribeira de S. João e a Ribeira de João Gomes eram três grandes rios, monstruosamente caudalosos e arrasadores. […] As águas efervescentes, engrossando cada vez mais em montanhas de vagas espessas, tudo cobriram até à Sé – único edifício de pé. Toda a velha baixa tinha desaparecido debaixo de um fervedouro de água e lama. [...] Acordei encharcado. Não era água, mas suor. Não consegui voltar a adormecer…” (SILVA, DN, 13 jan. 1985). O impacto que as aluviões têm no imaginário coletivo dos madeirenses é por demais evidente, ou não fossem estas um dos principais perigos naturais que os habitantes da Ilha enfrentam, sendo responsáveis pela maioria dos prejuízos, humanos e materiais, provocados por catástrofes desde o início da ocupação humana.   Susana Prada Celso Figueira (atualizado a 14.12.2016)

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