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joeiras

Os jogos tradicionais e as brincadeiras constituem formas de estar, formas de sociabilizar e, embora possuam características universais, identificam uma cultura, na medida em que entre os seres humanos é a cultura que determina a forma de jogar. Um dos mais populares jogos ou brincadeiras tradicionais é o lançamento de papagaios de papel. Na Madeira estes artefactos voadores são conhecidos por joeiras. A origem da designação “joeira” pode dever-se ao facto de o desenho da sua estrutura ser semelhante à estrutura de um utensílio, com o mesmo nome, utilizado nas eiras para separar o trigo do joio e utilizado também pelos pescadores. Palavras chave: papagaios de papel, joeiras, brincadeiras tradicionais, barbante, canas-vieiras, cola. No começo do séc. XXI, é normal ver uma criança que, ao mesmo tempo, navega na Internet, folheia uma revista, fala ao telefone e ainda vê televisão. Em períodos anteriores, porém, as crianças disponibilizavam uma parte do seu dia para brincar com carrinhos, jogar ao pião e lançar papagaios. Duas realidades que estão cada vez mais distantes. As brincadeiras infantis mudaram muito. Houve períodos em que a maioria das crianças tinha poucos brinquedos e, por isso, tinha de usar mais a criatividade para os criar. Os brinquedos tradicionais, construídos pelas crianças com os materiais disponíveis no meio envolvente, utilizando a sua imaginação, fazem parte do património lúdico de uma cultura. Assim, os jogos tradicionais e as brincadeiras constituem formas de estar, formas de sociabilizar e, embora possuam características universais, identificam uma cultura, na medida em que, entre os seres humanos, é a cultura que determina a forma de jogar. Um dos mais populares jogos ou brincadeiras é tradicionalmente o lançamento de papagaios de papel. Existem teorias, lendas e suposições que dizem que o primeiro voo de um papagaio de papel ocorreu em tempos diferentes e em várias civilizações. Na versão mais antiga, os papagaios de papel nasceram na China no ano 200 a.C.. Por sua vez, no Egito, existem hieróglifos sobre objetos que voavam controlados por fios, e os fenícios também já conheciam o seu segredo, assim como os africanos, indianos e polinésios. Nos países orientais, sempre foi grande a utilização de papagaios com motivos religiosos e míticos, como atrativos de felicidade, sorte, nascimento, fertilidade e vitória. Por volta de 1250, o Inglês Roger Bacon escreveu um estudo sobre asas acionadas por pedais, tendo como base experiências realizadas com papagaios de papel. Pensa-se que os papagaios de papel foram introduzidos em Portugal durante o séc. XVII, a partir do Oriente. Salvo a utilização militar estes objetos mágicos sempre tiveram o poder de alegrar, ajudar e dar esperança à humanidade. Posteriormente, em 1901, Marconi utiliza papagaios de papel para fazer experiências com transmissão de rádio, que mais tarde Bell utilizaria como testes do seu invento, o telefone. Durante a Segunda Guerra Mundial, os papagaios de papel eram utilizados pelos alemães para observar as movimentações das tropas aliadas ou como alvo móvel para exercícios de tiro. Nos começos do séc XXI, tanto em Portugal como no Brasil (onde os papagaios de papel têm a designação de “pipa”, e uma forma diferente dos papagaios construídos em Portugal) não estão totalmente esquecidos. Podemos ver em algumas cidades destes dois países crianças e adultos a brincar com papagaios, objetos que ocorrem também como material publicitário e em obras de ficção televisiva. É oportuno ainda referir que um artigo publicado pela revista Visão de 30 de julho de 2015, intitulado “Ideias para sobreviver às férias grandes dos miúdos”, sugere a construção destas brincadeiras: “Lançar um papagaio de papel. E façam-no, primeiro. Pode reciclar o que tiver por perto: um saco de lixo ou uma toalha de papel, estacas em bambu ou pauzinhos chineses para o papagaio ficar direito e uma corda de nylon. O essencial é que a estrutura se mantenha leve, de forma ir pelo ar com um pouco de vento. A ver quem consegue mantê-lo a voar mais tempo”. (“Ideias…”, Visão, 9 ago. 2015). Na Madeira, estes artefactos voadores são conhecidos por joeiras. Trata-se de objetos mais pesados que o ar, mas que, uma vez impelidos pelo vento, são manobrados a partir do solo com um barbante (fio de dois ou mais cabos torcidos, possivelmente oriundo da província de Brabante – Holanda), que serve de ligação entre o objeto e o alteador (pessoa que manobra a joeira). A origem da designação (joeira) pode estar no facto de o desenho da sua estrutura ser semelhante à estrutura de um utensílio com o mesmo nome, utilizado nas eiras para separar o trigo do joio e utilizado também pelos pescadores. Como se referiu atrás, os artefactos voadores recebem na Madeira, em geral, a designação de joeiras; contudo, segundo Agostinho Vasconcelos, os objetos de voo à vela podem ser classificados quanto à estrutura (feitos de cana vieira, inteira ou rachada) e quanto ao desenho (executados com linha de coser, no interior da carcaça, ou recortados no papel colorido dos forros). Quanto à sua estrutura, podem ser papagaios, bacalhaus, joeiras, rodas e aviões. De referir que os papagaios não têm qualquer estrutura de suporte preliminar; contudo, excecionalmente poderão ter uma estila (lasca de cana ou de outra planta), que será usada como reforço para lhe dar estabilidade. O bacalhau tem estrutura inicial ou de suporte ao forro (papel de seda ou outro material, como plástico, celofane, tecido fino, entre outros), com duas ou mais canas, dispostas em cruz, parecendo um bacalhau salgado seco. Por sua vez a joeira tem uma armação feita com três canas, as quais são fixadas com um alfinete, ou arame fino, no seu ponto médio; ao passarmos uma linha equidistante nos seus extremos, aparecerá um polígono hexagonal. Semelhante à joeira, temos a roda, construída com quatro ou mais canas, dispostas como no caso anterior, radialmente (ligando todos os extremos ou mais, conforme as canas utilizadas). Por fim temos o avião, estrutura de cinco ou mais canas, dispostas de modo a parecer a forma daquela nave. Quanto ao desenho, a forma de estrela pode ser encontrado em vários artefactos voadores; mas este desenho é mais comum e facilmente reconhecível nas joeiras e nas rodas. Para se construir uma joeira, as crianças usavam o material que tinham ao seu dispor, nomeadamente: pincel (para espalhar cola); alicate (para cortar e torcer os alfinetes); plaina (para preparar as canas rachadas); régua (guia, para cortar em linha reta o papel); agulha (para armar o desenho, com linha); alfinetes (que servem de eixo às canas); lápis (para marcar o papel antes de colar); teco (para auxiliar na colagem); tesoura (para cortar o papel e a linha); afiador (para afiar os instrumentos cortantes); passador (para puxar a linha, para fazer o nó); pinça (para repuxar o papel); canivete (para preparar as canas); faca (para cortar o papel). As matérias-primas eram constituídas essencialmente pelo que a natureza disponibilizava e por alguns materiais reutilizados; são elas: folhas de papel de seda (para o forro das joeiras); papa de milho/semilha (utilizadas como cola); novelos (barbante de joeira ou linho); tubo de linhas (fibra artificial e para fazer a configuração dos desenhos, no interior); fio torcido (algodão) e canas (inteiras ou rachadas) para a estrutura. Contudo, outros materiais poderão ser utilizados, dependendo essencialmente da criatividade do construtor das joeiras. As joeiras estiveram e estão bastante presentes no quotidiano madeirense. Podemos encontrar referência a estas brincadeiras na literatura, e.g. no conto “A beleza das joeiras”, de Graciela Dias da Silva, inserido na obra Rasgos da Minha Infância: – Não foram compradas as joeiras. […] Mas… pergunta o miúdo: – Como as fizeram?!... Pacientemente, elucida-o o professor com palavras tão radiantes de frescura, que o deixam atento ao seu discorrer!... E fala-lhe das diversas fases da elaboração de uma joeira, a saber: – Depois de cortado devidamente o papel de seda e ajustadas as ripas de cana, inventariam o conjunto, segundo o modelo previamente escolhido. – Em segundo plano, é só colar o papel, geralmente com uma massa feita de farinha e água. – Finalmente, após a secagem e, para que seja mantido um certo equilíbrio, apõem ao papagaio um rabo, feto de pano esfrangalhado, a capricho (SILVA, 2011, 49-50). Encontramos também referência às joeiras na obra de Manuel Pita Ferreira, Natal na Madeira – Estudo Folclórico: “Fecham o cortejo, o músico do bombo, o dos pratos e o da caixa, marcando o ritmo da marcha e numeroso bando de rapazitos com as mãos cheias de canas de foguetes e as algibeiras abarrotadas de canudos. Vêm contentíssimos, porque encontraram um tesouro, – canas e barbante para as joeiras” (FERREIRA, 2010, 15) Também na tradição oral é frequente encontrar referências à construção e utilização de joeiras, e.g. numa quadra popular dedicada a S. João: “São João / São João da Ribeira / dá-me vento, / para altear esta joeira”. Por fim, é oportuno ainda verificar que em várias freguesias da ilha da Madeira são feitos concursos de joeiras, com destaque para os concursos organizados pela Junta de Freguesia de S. Roque, pela junta de Freguesia de Machico, pelos Cursos de Educação e Formação de Adultos da Escola Básica dos 2.º e 3.º Ciclos da Torre, em conjunto com a Casa do Povo de Câmara de Lobos; também nos concelhos da Calheta e da Ponta do Sol há concursos deste género. De uma maneira geral, os objetivos destes diferentes concursos são: reavivar a tradição da construção e do lançamento de joeiras; incentivar o gosto pelos jogos tradicionais; estimular a criatividade e a imaginação dos participantes; incentivar o convívio intergeracional; promover atividades ao ar livre; e realizar atividades educativas e culturais que envolvam toda a comunidade. Os critérios de seleção dos vencedores são, em geral: criatividade e inovação; utilização de materiais recicláveis e tempo de voo.  Todos estes concursos têm grande recetividade por parte do público, tanto dos jovens como dos menos jovens, e contribuem para a persistência desta tradição madeirense.     José Xavier Dias (atualizado a 18.12.2017)

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seminário

Uma determinação do concílio de Trento apontava para a necessidade de criação de seminários como instrumento de formação de um clero mais preparado e capaz de contrariar a Reforma Protestante. Pouco depois desse decreto, no século XVI, e ainda que a sua concretização tardasse alguns anos, a Ilha da Madeira viu ser formalmente criado o seminário. Esta escola caracterizou-se, desde a sua fundação, por uma longa itinerância por diversos espaços da cidade e por um esforço continuado de renovação curricular que pudesse ir acompanhando os tempos. Palavras-chave: Concílio de Trento, seminário, currículo, edifício. A preocupação da Igreja com a formação do clero é muito anterior à existência de seminários, que só foram formalmente instituídos com o Concílio de Trento. Assim, nos períodos anteriores ao Concílio, os futuros eclesiásticos recebiam a sua educação em escolas conventuais ou paroquiais, ministrada por frades para isso deputados ou por párocos que acumulavam as funções de assistência espiritual da sua comunidade de fiéis com as da docência possível. Sendo a falta de uma instrução capaz uma das insuficiências mais sentidas no momento em que a dissidência protestante cindiu a cristandade, a ela se atribuiu grande responsabilidade na facilidade com que se disseminaram os ideais reformistas, sendo essa a razão que levou o Concílio tridentino a determinar a abertura de escolas consagradas à educação dos jovens que pretendiam seguir a carreira eclesiástica. De acordo com Pallavicino, historiador do Concílio, a instituição destas escolas foi mesmo a mais importante obra de Trento, “pois é sabido que em todas as repúblicas, os cidadãos não são mais do que o produto da educação recebida” (SILVA, 1964, 1). Neste sentido, a criação dos seminários representava a intenção de travar o progresso da Reforma Protestante, disponibilizando aos fiéis um corpo de sacerdotes doravante bem mais preparado. No caso do bispado do Funchal, a primeira tentativa de fundar um seminário foi prosseguida pelo bispo D. Fr. Jorge de Lemos (1556-1569), que foi também o primeiro que pessoalmente assumiu a condução dos destinos da Diocese criada em 1514. Nomeado ainda antes do fim do Concílio (1563), o prelado, que após cinco anos de governo presencial se retirou para o reino, instou junto do Rei, D. Sebastião, no sentido de se instaurar no bispado um seminário, isto apenas três anos volvidos sobre o decreto que instituía aquela escola. O Rei deliberou, em carta régia com data de 20 de setembro de 1566, a fundação do seminário, o qual, todavia, apenas seria realmente criado no decurso do episcopado de D. Jerónimo Barreto (1574-1585), que foi indigitado bispo do Funchal em 1573 e foi para a Ilha no ano seguinte. Ainda antes de abandonar o reino, D. Jerónimo Barreto voltou a abordar o Soberano para lhe solicitar cópia da carta que instituía o Seminário, dado ter-se perdido o primeiro exemplar do documento, ao que o Rei prontamente acedeu. Chegado à Ilha – e em data indeterminada, que Fernando A. Silva situa entre 1575 e 1585 e que Abel Silva propõe ter sido num momento mais próximo de 1575-1576, com o argumento de que o interesse manifestado pelo prelado não se compadeceria com grandes delongas –, o Seminário do Funchal é finalmente instituído. A urgência da instalação não permitia as necessárias demoras com a construção de um edifício de raiz para abrigar os seminaristas, até porque, na altura, nem o próprio bispo gozava, ainda, do privilégio de habitação construída para paço episcopal, o que só viria a acontecer no virar do século XVI, com D. Luís de Figueiredo Lemos (1586-1608). Assim, o Seminário ficou inicialmente alojado na morada do prelado, situada perto da que foi depois chamada ponte do Torreão, nas cercanias, portanto, do Colégio dos Jesuítas, que, por esse tempo, começava a lecionação de algumas das disciplinas que integravam o currículo dos seminaristas: Teologia, Moral, Latim e Retórica. A cargo do Seminário propriamente dito ficariam o ensino da Gramática e do canto, conforme se pode depreender do documento de fundação da escola, no qual mandava o Rei atribuir à instituição os 45.000 reis que até ao momento se pagavam aos mestres de gramática e de canto que havia na cidade. Em 1590, um relatório de visita ad sacra limina, da autoria de D. Luís Figueiredo de Lemos, dava conta do funcionamento da escola, da renda de que dispunha (850 ducados concedidos pelo Rei) e de um número indeterminado de seminaristas que frequentavam as aulas do colégio, onde eram “instruídos em letras e virtudes, para depois, com honestidade, se desempenharem do cuidado das almas” (SILVA, 1964, 5). Este mesmo prelado deliberou a construção do paço episcopal, que igualmente se situava nas imediações dos Jesuítas, ao qual anexou o Seminário, passando então os jovens alunos a residir numa rua que, a partir do paço, tomou o nome de R. do Bispo. A determinação do número de colegiais que poderiam frequentar o Seminário foi tarefa atribuída pelo Rei ao prelado, que o deveria fazer tendo em conta as rendas disponíveis; e foi assim que D. Jerónimo Barreto se decidiu por 10 estudantes, quantitativo que se manteve até 1789, quando passou a 12, tendo posteriormente sido alargado a 18. Cerca de 100 anos depois da sua instalação no paço episcopal, o Seminário viu-se transferido para umas casas inicialmente destinadas a um convento que nunca se chegou a concretizar. A razão da mudança prende-se com a vontade do bispo de então, D. José de Sousa de Castelo Branco (1698-1721), de alargar os aposentos episcopais, pelo que os seminaristas foram ocupar as instalações devolutas situadas na rua que, a partir daí, ganhou a designação “do Seminário”. Ali se mantiveram os jovens candidatos ao sacerdócio até que, em 1748, um sismo de magnitude considerável abalou a cidade, provocando danos em muitas habitações, nas quais se incluía o prédio do Seminário. Governava, então, a diocese D. Fr. João do Nascimento (1741-1753), que muito se empenhou na reconstrução do edifício, tal como já antes se comprometera com a reforma da instituição, para o que fizera publicar, a 12 de dezembro de 1746, uns estatutos que deveriam regular toda a vida do Seminário. Assim, logo no capítulo I, dispunha o bispo as condições de admissão de colegiais ou porcionistas (que se distinguiam dos primeiros por pagarem parte do seu sustento, enquanto alunos), indicando que deveriam ter no mínimo 12 anos, ser filhos de legítimo matrimónio, não ser suspeitos de raça moura, negra ou judaica ou de “outra nação infeta”, e saber ler e escrever. Acrescentava, o bispo que, apesar de o texto do Concílio dispor que não seria necessária mais ciência para além destes conhecimentos iniciais, lhe parecia conveniente virem já instruídos de alguns princípios de gramática e solfa, pois a ignorância destas bases dilatava excessivamente o tempo de permanência dos alunos na instituição. Nos mesmos estatutos, mas agora no capítulo V, preconizava-se o programa total de estudos que, de uma duração total de sete anos, dedicava os primeiros quatro ao Latim e à Solfa, e os últimos três à Moral e à Filosofia. Ao arruinar o edifício do Mosteiro Novo, o já referido terramoto de 1748 vai obrigar os alunos a abandonarem o prédio e a andarem itinerantes por um período de 12 anos, sendo possível que se tivessem abrigado nas instalações do antigo convento seráfico, nas margens da Ribeira de S. João. Na sequência do abalo, pretendeu o prelado mudar a localização da escola para mais perto da Sé, no local correspondente ao que foi depois o Lg. da Restauração, mas não logrou obter do Rei a necessária autorização, pelo que o estabelecimento se manteve onde estava, sujeito a um processo de deterioração que já tinha obrigado D. José de Sousa Castelo-Branco a agir. A intervenção do prelado não se revestiu, contudo, da profundidade suficiente, o que explica que o bispo seguinte, D. Fr. Manuel Coutinho (1725-1741), constatasse a emergência de obras que orçaram em 300.000 réis, os quais, segundo ele informava em relatório de visita ad sacra limina de 1735, se supririam em parte pelos rendimentos de alguns benefícios vagos, e em parte a expensas do próprio prelado. Apesar da boa vontade de D. João do Nascimento e dos novos estatutos da escola, o prelado seguinte, D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1757-1785), chegou ao Funchal acompanhado por dois missionários lazaristas que, entre as tarefas de pregação e visitações, também vinham incumbidos de proceder às de reorganização do seminário. Contudo, o estado de degradação do edifício continuou a configurar-se como um impedimento que obstou à pretendida intervenção dos lazaristas, conforme afirma Luís Machado de Abreu. Na narrativa da sua estadia na Madeira, os dois missionários referem que trabalharam com os ordinandos, propondo-lhes exercícios espirituais “num hospício fora da cidade com capela dedicada a S. João Batista”, o que permite conjeturar que durante algum tempo o referido hospício pudesse ter alojado os seminaristas (SILVA, 1964, 11-12). A expulsão dos Jesuítas, em 1759, tornou devolutas as instalações do seu colégio, o que levou D. Gaspar Afonso da Costa Brandão a reivindicar aquele espaço para aí alojar o Seminário. Este desiderato, porém, só veio a materializar-se no episcopado seguinte, de D. José da Costa Torres (1786-1796), que obtém de D. Maria I a ansiada autorização, por provisão de 22 de setembro de 1787, onde também se faz eco das queixas do bispo em relação à falta de mestres para ensinar os seminaristas, função que era dos Jesuítas, e ficara a descoberto, por força da sua expulsão. Para suprir esta carência, adianta Fernando Augusto da Silva a possibilidade de os Franciscanos terem assegurado a lecionação, mas a falta de suporte documental inviabiliza a confirmação desta hipótese. Poderá, porém, supor-se que o facto de os seminaristas receberem formação no antigo convento seráfico de S. João da Ribeira possa ter deixado instalar a ideia de que as aulas seriam ministradas por Franciscanos, e não por Lazaristas, como efetivamente aconteceu. A disponibilidade de D. Maria I para ajudar a melhorar a situação do Seminário traduziu-se ainda no aumento de rendas para a instituição, às quais anexou os rendimentos de algumas capelas que, por estarem vagas, tinham passado a integrar o património do Fisco da Real Coroa e que, no seu conjunto, disponibilizaram mais 936.400 réis, que assim se vinham juntar aos anteriores 663.000 réis com que a Alfândega do Funchal já financiava a instituição. O facto de o edifício do Colégio já estar desabitado há cerca de 30 anos obrigava a que também nele houvesse que fazer obras, tarefa que D. José da Costa Torres abraçou, em paralelo com outra intervenção que visava a reorganização do plano de estudos. Essa reorganização encontra-se espelhada num edital, com data de novembro de 1787, que o bispo fez afixar na porta da Sé, onde se determinava que os candidatos à primeira ordem sacra teriam de mostrar suficientes conhecimentos de Latim, Retórica e Filosofia Racional e Moral, o que seria certificado por um exame prévio. A instrução em Ciências Eclesiásticas era também requisito para a prossecução de estudos, sendo, porém, adequada ao grau a que se apresentavam os candidatos. Para o acesso ao sacerdócio exigia-se ainda algum domínio de Direito Canónico, Direito Público Eclesiástico, Dogmática e Teologia Moral, assuntos sobre os quais deveriam ser instruídos “pelo tempo que nos parecer necessário” (SILVA, 1965, 15). O número de seminaristas estava agora fixado em 12, embora o prelado manifestasse vontade de aumentar esse quantitativo logo que a disponibilidade financeira o permitisse. Concluídas as obras de reparação do Colégio, a mudança do Seminário para o novo edifício operou-se a 31 de março de 1788. Mas o facto de a doação das capelas operada pela Rainha não ter sido um processo linear, uma vez que algumas delas já tinham sido atribuídas a pessoas que agora delas não queriam prescindir, levou a que o bispo tivesse de empreender novas diligências no sentido de vir efetivamente a desfrutar dos rendimentos prometidos, sem os quais não seria possível manter o ambicioso projeto de reforma do Seminário. Ultrapassada essa questão, poderia supor-se que a escola eclesiástica pudesse, finalmente, estar disponível para o crescimento que se desejava; mas algumas circunstâncias da política internacional encarregar-se-iam de trazer novos dissabores à instituição. Assim, em 1801, e já em tempo do novo antístite, D. Luís Rodrigues Vilares (1797-1810), a conjuntura política internacional, marcada pela ação de Napoleão Bonaparte, determinou que os Ingleses fossem para a Madeira, a fim de defender a Ilha, e os seus interesses em particular, da cobiça dos Franceses. O desembarque de um contingente de alguns milhares de homens trouxe consigo o problema das acomodações dessa tropa, e, depois de várias reclamações britânicas, entre as quais a de estarem mal instalados os seus homens, o comandante inglês forçou o então governador da Madeira, D. José Manuel da Câmara, a desocupar o edifício do Colégio para aí se aboletarem os soldados britânicos, que viriam a permanecer nesse local até abandonarem a Ilha, em 1802. De novo sem acomodações, o Seminário viu-se, uma vez mais, transferido para o paço episcopal; mas a saída dos Ingleses veio permitir ao prelado a reclamação da cedência do Colégio, agora vago, a fim de aí se reinstalar a escola. Esta pretensão episcopal não encontrou, contudo, eco no governador, que a ignorou, optando por entregar o Colégio a militares portugueses, que o transformaram em quartel. A atitude do governador veio agravar as já tensas relações entre ele e o prelado; a inflexibilidade demonstrada pelas duas partes naquilo que cada uma considerava ser seu direito tornou-se um fator determinante no exílio a que o governador sujeitou o bispo, obrigando-o a um desterro de alguns meses na freguesia de Santo António da Serra. O facto de o governador ter sido posteriormente sancionado pelo reino com a destituição do cargo não veio, contudo, trazer melhorias dignas de registo à situação do Seminário, que continuou abrigado no paço do bispo até 1810, altura em que novamente foi transferido para as antigas instalações no Mosteiro Novo, onde haveria de permanecer até à construção de edifício de raiz, em 1909. Neste período de aproximadamente 100 anos, o plano curricular da escola foi sendo objeto de sucessivas alterações, que procuravam pô-lo a par das transformações que o mundo à sua volta sofria. Assim, se em 1812 apenas se conseguiam ministrar as aulas de Teologia Moral, já no ano seguinte vinham-se juntar a esta disciplina as de Teologia Dogmática e Filosofia Racional, o que era obviamente escasso mas era o possível nos tempos conturbados que então se experimentavam. Em 1814, o vigário capitular, D. Joaquim de Meneses e Ataíde (1811-1819), pretendeu implementar um programa formativo bem mais ambicioso, do qual constavam cadeiras novas como Francês, Inglês, Geografia e Desenho, que surgiam a par das já habituais Teologia Dogmática e Moral, História Eclesiástica, Música, Cantochão e Latim, mas não se conseguiu determinar se este projeto chegou, de facto, a ser experimentado. As notícias do currículo do seminário que se reportam ao ano de 1822 dão conta de um curso onde apenas figuram aulas de Gramática Latina, Latinidade, Francês, Retórica, Filosofia e Teologia. As dificuldades políticas que então sofria a Madeira, que se ressentia de nova ocupação inglesa (entre 1807 e 1714), e a posterior implantação do liberalismo (em 1820) foram trazendo dificuldades acrescidas à vida do seminário. Apesar de uma lei de 1845 determinar que nas escolas eclesiásticas funcionasse “um curso de estudos teológicos e canónicos” que englobasse as matérias de “instrução prática do catecismo, de explicação do evangelho, da forma de administração dos sacramentos, da prática dos ritos e das cerimónias da Igreja, do canto e de todos os mais exercícios espirituais e eclesiásticos”, a verdade é que, dois anos depois, apenas se conseguia assegurar a lecionação de Teologia Moral, estando suspensa a Dogmática, que só veio a ser reintroduzida por ação do bispo D. Manuel Martins Manso (1850-1858), que conseguiu ainda restabelecer o ensino de Escritura Sagrada, em 1858. Esta formação deficitária procurava completar-se com alguns cursos esporádicos sobre assuntos teológicos e morais (SILVA, 1946, 264). Entretanto, a nível nacional, foi promulgada legislação que obrigava à organização de cursos teológicos trienais, compostos por, no mínimo, oito cadeiras. Na Madeira, a implementação desta determinação foi levada a cabo por D. Patrício Xavier de Moura (1859-1872), que a 1 de outubro de 1865 fez publicar um edital do qual constavam as novas regras a aplicar ao ensino religioso. O desenho curricular proposto compreendia a lecionação de História Eclesiástica e Sagrada, Filosofia do Direito e Teologia Dogmática no 1.º ano, a que se seguiam, no 2.º, Teologia Dogmática Especial, Direito Canónico e Teologia Moral. Para o 3.º ano estavam reservadas as disciplinas de Teologia Pastoral, Eloquência Sagrada, Hermenêutica e a prossecução de Teologia Moral, excedendo-se, assim, em uma disciplina, o mínimo preceituado (ACDF, cx. 32-A, doc. 10). A partir da criação do Liceu do Funchal, em 1837, a preparação dos alunos anterior ao ingresso no Seminário era assegurada por aquela instituição, situação que se manteve até 1877 – ano em que a ida para o Funchal do bispo D. Manuel Agostinho Barreto (1877-1911) determinou, mais uma vez, uma profunda alteração na vivência educativa do Seminário. Com efeito, D. Manuel Agostinho Barreto, chegado à Ilha em fevereiro, dedicou-se de imediato ao problema da reforma da escola, onde interveio não só para a dotar de um currículo novo, mas também com o propósito de melhorar o clima interno de convivência dos alunos, segundo ele demasiado desacompanhados, por terem a liderar a instituição um reitor e um prefeito ocupados em diversas tarefas para além das de supervisão do Seminário. Dispondo, no momento, apenas das velhas e degradadas instalações do Mosteiro Novo, o prelado não se deixou amedrontar pelas circunstâncias; e, mesmo nesse edifício decrépito, deu início ao processo de transformação da escola, que passava por recriar os serviços religiosos e disciplinares, bem como pela introdução de um curso preparatório de ensino secundário, anterior à frequência dos três anos finais da formação. Com a transferência do ensino secundário para o interior do Seminário, o prelado pretendia evitar as perturbações que a saída diária para o Liceu provocava nos alunos, que a partir de então se poderiam concentrar de forma mais consistente no programa de estudos que lhes estava destinado. Ignorando o coro de críticas que lhe foi dirigido, quer pela sociedade em geral, quer mesmo por alguns elementos do clero que consideravam o plano de reforma demasiado radical e ambicioso, D. Manuel Agostinho Barreto conseguiu abrir as aulas em outubro do ano em que chegou. Para levar a bom termo este arrojado projeto de inovação, o bispo fez-se rodear de auxiliares preciosos, que o ajudaram a concretizar os seus objetivos. Foi um deles o P.e Ernesto Schmitz, membro da Congregação da Missão que, em 1878, fora para o Funchal para desempenhar a função de capelão do Hospício. Logo no ano seguinte, foi-lhe confiada a tarefa da direção espiritual do Seminário, que acumulava com a de capelão. A partir de 1881, contudo, passou a dedicar-se em exclusivo às atividades escolares, vindo depois a alcançar a posição de vice-reitor do Seminário. Foi sob a direção do P.e Schmitz que a reforma de D. Manuel Agostinho Barreto começou a concretizar-se, quer na vertente da alteração do comportamento dos seminaristas, doravante submetidos a este “disciplinador inflexível”, quer no tocante ao corpo curricular, que passou a integrar o estudo de matérias como a Zoologia, a Física, a Química e até a Sociologia (SILVA, 1946, 273). Foi, sobretudo, na área da Zoologia que o P.e Schmitz se notabilizou, investindo numa investigação que tornou a Madeira parte do mundo culto daquela época, nomeadamente através da produção de importantes coleções de exemplares de fauna terrestre e marinha do arquipélago, que mais tarde deram origem a um Museu de História Natural. Por pertencer a uma congregação religiosa, o P.e Schmitz estava obrigado a uma obediência que o forçou a abandonar a Madeira em 1899, a fim de ir dirigir um colégio na Bélgica. Regressado ao Funchal e ao Seminário em 1902, deixou definitivamente a Ilha em 1908, desta vez rumo a Jerusalém, onde veio a falecer em 1922. A transformação que o prelado pretendia fazer no Seminário contemplava a construção de raiz de um edifício para a instalação da escola que, até então, não desfrutara de tal privilégio. A ocasião veio a proporcionar-se em 1902, altura em que o bispo, por ter recebido vultuosa herança, se achou capaz de meter ombros à tarefa. Na busca de terreno apropriado para erguer o Seminário, o prelado deparou-se com as ruínas do antigo Convento de N.ª Sr.ª da Encarnação, cujas instalações se tinham vindo a degradar consideravelmente depois da morte da última freira, ocorrida em 1890, e que acabou por ser cedido à Diocese pelo Governo do reino em decreto de 11 de julho de 1905. Logo no ano seguinte começaram as obras, que deitaram abaixo tudo o que restava do velho mosteiro, exceto o coro e a capela. Em 1909 estava pronta metade da construção, e D. Manuel Barreto entendeu haver condições para operar a transferência dos alunos, o que se processou em outubro do mesmo ano. Mas, quando esperava poder concluir o empreendimento, foi surpreendido pela Implantação da República, a 5 de outubro de 1910, e pela obrigatoriedade da extinção do Seminário, decretada pela lei da separação da Igreja e do Estado, datada de 20 de abril de 1911. Este conjunto de circunstâncias poderá ter contribuído para apressar a morte deste bispo (que se encontrava com mais de 70 anos), ocorrida apenas dois meses mais tarde. Iniciava-se então novo período no já acidentado percurso daquela escola, que nunca fora possível fixar num espaço. Os antigos seminaristas voltaram ao velho edifício do Mosteiro Novo, onde permaneceram até 1916; no ano letivo seguinte, instalaram-se no paço episcopal e dali passaram, em 1918, para uma quinta no Trapiche, nos arredores do Funchal, rumando em 1919, e mais uma vez, para o Mosteiro Novo. Em 1913, o abandonado edifício da Encarnação foi destinado ao funcionamento de uma escola exclusivamente feminina de Utilidades e Belas Artes, projeto que acabaria por se extinguir em 1919. Nesse mesmo ano, a Junta Geral solicitava ao Governo central licença para instalar no prédio diversas repartições suas, o que lhe foi concedido mediante o pagamento de uma renda. A Igreja madeirense, e designadamente o novo bispo, D. António Manuel Ribeiro (1914-1947), considerou injusta a apropriação do edifício da Encarnação por parte dos poderes civis e foi repetidamente tentando fazer regressar o prédio à sua tutela. Desta insistência, da promulgação de nova legislação que autorizava a existência dos seminários suprimidos e de um estudo que mostrava a ilegalidade cometida pelo Estado na apropriação do edifício da Encarnação acabou por resultar, em 1927, um decreto que previa a restituição do prédio à Igreja. Esta decisão desagradou à Junta Geral, que a ela se opôs, negando-se à devolução e interpondo variados recursos, com que conseguiu protelar a decisão final por mais seis anos. Resolvido, finalmente, o contencioso, em outubro de 1933 os seminaristas regressaram ao edifício, nele se mantendo até 1975. Entre 1933 e 1958, o Seminário da Encarnação era o único que existia na Madeira. Mas como, a partir daquele último ano, as normas de Roma passaram a exigir a presença de dois seminários, um maior e um menor, o bispo que então dirigia a Diocese, D. David de Sousa (1957-1965), diligenciou, com auxílios quer da Igreja quer da sociedade civil, a aquisição do antigo Hotel Bela Vista, situado na R. do Jasmineiro, depois transformado em seminário maior. Quando, em 1974, D. Francisco Santana (1974-1982) se tornou bispo do Funchal, decidiu transformar o edifício da Encarnação em centro pastoral diocesano, para o que o libertou da presença dos alunos a fim de se realizarem algumas obras. Os tempos conturbados que então se viviam, ainda muito próximos da Revolução de 25 de abril, a convicção de que o prédio estaria devoluto e o enorme acréscimo de alunos que então assoberbava a escola pública levaram a que, em outubro desse mesmo ano de 1974, o edifício fosse ocupado por alunos e professores. Perante a consumação daquele facto, a Diocese optou por cobrar uma renda e autorizar a instalação da Escola Básica de 2.º e 3.º Ciclos Bartolomeu Perestrelo, que ali se manteve até ser ela própria dotada de um edifício de raiz, o que veio a acontecer em 2005. Os seminaristas que estudavam no 2.º e 3.º ciclos do ensino básico passaram então a ter aulas numa escola apostólica criada para o efeito, antes de prosseguirem a sua carreira académica fazendo o secundário na R. do Jasmineiro. Com vista a resolver o problema dos jovens que não dispunham de recursos económicos, decidiu-se que eles pernoitariam no seminário e frequentariam o ensino público. Após a morte do prelado, a escola apostólica passou a funcionar no Seminário Menor. A partir dos anos 60 do séc. XX, as funções do Seminário Maior transitaram para Lisboa, passando os jovens a formar-se em variados seminários e na Universidade Católica. Isto deu-se depois de se ter tentado acomodar o Seminário Maior do Funchal nas instalações dos Dehonianos em Alfragide, experiência que não deu os resultados pretendidos, passando os seminaristas a ficar alojados nos seminários maiores de Braga, Porto e Lisboa. No Funchal, no início do séc. XXI, os candidatos à vida sacerdotal mantinham-se na R. do Jasmineiro, fazendo a sua formação escolar até ao 9.º ano em escolas públicas e transitando depois para a Associação Promotora do Ensino Livre, fundada em 1978, onde concluíam o ensino secundário.   Cristina Trindade (atualizado a 30.12.2017)

Religiões

remates de telhado

Uma das originalidades da arquitetura popular madeirense são os remates de telhado, colocados nos extremos dos beirais, que aparecem, por exemplo, com cabeças de menino e de senhora, pombas, bem como outros animais, folhas de acanto, naturalistas e estilizadas, numa diversidade francamente interessante e quase única no contexto nacional. Não temos referências sobre a sua origem, sendo sempre evasivas as respostas dadas pelos mais antigos proprietários, que se refugiam no costume e pouco mais. Nenhum deles conseguiu, pois, explicar por que se optou por este ou aquele modelo e não por outro, não tendo, em princípio, a mínima ideia de qualquer significado que possam ter estes elementos. Cabeça de menino. Foto: BF As construções urbanas e mais abastadas apresentam remates congéneres da arquitetura portuguesa e internacional divulgada nos finais do séc. XIX, com recurso a platibandas rematadas com urnas, algumas de faiança das fábricas do norte de Portugal, provavelmente de Vila Nova de Gaia. Já muito raras são as figuras alegóricas, igualmente em faiança, que proliferaram também a partir dos finais desse século como remates de fachada, sendo quase todas entretanto apeadas, tal como as decorações de algumas fachadas com azulejos arte nova, que vão igualmente rareando. Se alguns remates centrais de telhado em forma de agulha são semelhantes aos vigentes no continente, os figurativos que rematam os beirais na arquitetura popular madeirense afastam-se, no entanto, totalmente dos congéneres continentais, constituindo uma marca e uma presença profundamente originais que teima em sobreviver. A configuração destes remates de telhado que conhecemos na Madeira não é, em princípio, muito antiga, pois que a cobertura por telha com beiral não deve ser anterior aos meados do séc. XVIII. Na pouca iconografia que conhecemos, quase toda de caráter senhorial ou militar, as coberturas de telha são interiores às empenas, fazendo convergir as águas sempre para caleiras igualmente interiores e saindo as mesmas por gárgulas na divisão dos telhados, quase sempre múltiplos. Acresce que, até meados e finais do séc. XIX, a arquitetura popular e tradicional madeirense manteve-se com coberturas de colmo, sendo raras as coberturas de telha. Nas descrições dos muitos viajantes estrangeiros que passaram pela Madeira, em princípio mais sensíveis às especificidades locais que os naturais, não lhes é feita qualquer referência aos remates, pelo que, a existirem, não teriam, por certo, a exuberância que lhes conhecemos hoje. A atenta inglesa Isabella de França (1795-1880), no Journal da sua visita à Madeira, em 1853, dedica duas linhas à arquitetura popular, dizendo apenas que, nas habitações mais modestas, “as telhas estão seguras com pedras, de forma que o vento as não leve, e rematam-se no topo com uma panela de barro invertido” (FRANÇA, 1970, 65). A utilização destas marcas ou sinais, no entanto, tem de ser muito antiga e de se encontrar profundamente enraizada no sentir e viver populares para ter tido, nos inícios do séc. XX, a espantosa e invulgar popularidade com que chegou até nós. Sendo já pontual nos Açores – em alguns casos, por recente importação da Madeira, como na Caloura, na ilha de S. Miguel –, reduz-se, no território continental, a uma outra estilização mais erudita e cosmopolita do que a existente nas áreas periurbanas e rurais madeirenses. Aliás, também na área periurbana do Funchal e nas habitações mais abastadas, a opção vai para a aplicação de elementos mais estilizados e menos figurativos, como folhas de acanto e concheados. Este costume perdeu-se quase por completo nos Açores, sendo, no entanto, referido por vários investigadores, como Luís Bernardo Leite de Ataíde, Alfredo Bensaúde e Ernesto Ferreira, que associam essas antigas representações às festividades do Espírito Santo, embora admitindo o seu cariz arcaico e fálico. Efetivamente, até o termo “pomba” ou mesmo “pombinha” têm em ambos os arquipélagos fortes ressonâncias sexuais, sendo, tanto nos Açores como na Madeira, fortemente inibitórios. De resto, a pombinha do Espírito Santo, tão celebrada pelos foliões, representa sempre a proteção e é celebrada como símbolo da abundância e da fecundidade, não espantando o seu aparecimento emblemático nas habitações, como elemento zelador da família no campo da saúde, bem-estar e alegria do lar. Pombo. Foto: BF A grande diferença dos remates madeirenses é a sua associação às cabeças de menino, mas também a cabeças femininas, mais requintadas e com elementos específicos de abastança, como brincos e colares. Parece, assim, estar-se na presença, não só de símbolos de virilidade, fertilidade e abundância, como seriam as pombas evocativas do Espírito Santo, que a Igreja Católica reservou como instrumento divino de Encarnação da Virgem, como da felicidade imediata do casal, como seriam as cabeças de menino, alusivas aos filhos que geraram. A generalização do costume dos remates de telhado em forma de pomba levou, no entanto, à sua utilização em outras habitações, como na residência paroquial de S. Pedro do Funchal, um dos poucos exemplares verdadeiramente artesanais localizados em plena cidade e obtidos pela modelação de argamassa e telha recortada. A enorme divulgação dos remates de teto figurativos na Madeira parece estar associada ao surto de construção ocorrido entre os finais do séc. XIX e os inícios do XX, que surgiu na sequência da divulgação da telha Marselha e adveio do poder económico dos emigrantes de “torna-viagem” (Emigração), especialmente de Demerara, daí a designação “demeraristas” dada às suas habitações (Arquitetura). Deve datar dessa época a encomenda massiva às antigas olarias madeirenses dos remates e a sua execução em barro então cozido por moldes, embora também apareçam exemplares em fibrocimento. Existem cerca de meia dúzia de variantes das pombinhas, em repouso ou com asas levantadas, sendo inclusivamente utilizadas como remates e decoração das asnas superiores dos tetos, que parecem já apontar, por vezes, para um gosto orientalizante ou orientalista, dito “chinoiserie”. A utilização destes remates é, aliás, muito comum na arquitetura chinesa, tendo influenciado decidamente alguns exemplares madeirenses mais eruditos, como os dragões chineses que ainda subsistem numa habitação abastada do sítio do Trapiche, na freguesia de Santo António do Funchal, onde as telhas de divisão das águas se apresentam decoradas no dorso com elementos lanceolados, e que também existiram numa outra habitação da freguesia do Monte, junto do cemitério, que foi já demolida. A imaginação popular, entretanto, foi criando outras variantes, como papagaios, muito divulgados, alguns tipos de cabeças de cão, gatos em meia figura – que surgem no centro de Machico ligadas às datas de 1924 e 1932 – e galos, sendo estas duas últimas figuras algo raras. Relativamente às figuras de cão, deve registar-se alguma influência inglesa, uma das matrizes de referência da cultura madeirense dos finais do séc. XIX, pois que o modelo que se tipificou foi o do buldogue, e não o dos normais cães de guarda portugueses. As variantes das folhas de acanto também são várias, podendo aparecer colocadas na vertical ou inclinadas e simplificadas para pequenos elementos lanceolados ou pela aplicação de simples pontas obtidas pelo recorte de telhas. Divulgaram-se igualmente elementos inspirados em concheados, conhecidos como “patas de leão”, que, dada a extinção das olarias na RAM, passaram a ser comercializados por olarias continentais. Os novos modelos da arquitetura e da construção civil já não contemplam a aplicação destas antigas marcas ancestrais e o encerramento das olarias madeirenses, na última década do séc. XX, decretou o fim desta ancestral tradição.   Rui Carita (atualizado a 17.12.2017)

Antropologia e Cultura Material Arquitetura Cultura e Tradições Populares

pacheco, antónio aires

António Aires Pacheco Nasceu em São Bartolomeu de Vilarouco, concelho de São João da Pesqueira, distrito de Viseu, a 15 de setembro de 1854. Cursou Teologia no Seminário do Funchal e foi ordenado sacerdote, em agosto de 1880, pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto (1835-1911), que o levou para a Madeira aquando da sua tomada de posse efetiva da Diocese, em 1877. Exerceu as funções de professor e vice-reitor do Seminário Diocesano e foi elevado à dignidade do canonicato em 1888. De 1882 a 1889, foi redator do semanário madeirense A Verdade que, a partir de 14 de abril de 1883, ostenta como subtítulo: “Semanário religioso, polémico e noticioso”. Este órgão da Associação Católica do Funchal não refere no cabeçalho o nome do redator, mas o Elucidário Madeirense afirma-o e o próprio semanário, numa pequena notícia no n.º 524, de 24 de agosto de 1885, à página 3, informando o regresso ao Funchal do P.e António Ayres Pacheco, vindo de Santana, refere-o nessa função; também o n.º 568, de 21 de julho de 1886, ao noticiar, na página 1, a realização de exéquias na Sé do Funchal por alma do Maj. Daniel Simões, professor do Liceu, informa que o pregador será o P.e Ayres Pacheco, “redator principal desta folha”. Exerceu ainda o cargo de diretor espiritual da Associação Católica do Funchal, que fora criada a 21 de junho de 1874, e que passou a publicar o referido semanário a partir de 10 de Fevereiro de 1875. O envolvimento do semanário em muitas polémicas – com a imprensa local, com o alferes César de Freitas e até com o Cón. Filipe José Nunes, em vários artigos não assinados e que portanto deveriam ser da autoria do redator – terá possivelmente ditado a partida do então já cónego da Sé do Funchal para Lisboa. Efetivamente, a 4 de junho de 1897, pediu a demissão das funções de cónego da Diocese do Funchal, passando a estar incardinado no Patriarcado de Lisboa, onde começou a exercer as mesmas funções em outubro de 1901. Foi ainda capelão e mestre-de-cerimónias da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, bem como desembargador da Relação e Cúria Patriarcal. A 19 de janeiro de 1912, é-lhe passada carta de pároco encomendado para a freguesia de Nossa Senhora das Mercês. Entre 1912 e 1923, foi, por diversas vezes, vigário-geral interino e provisor do Patriarcado. Distinguiu-se como orador sagrado, tendo pregado em diversas localidades, nomeadamente Funchal, Lisboa, Porto e Barcelos, merecendo especial destaque as orações fúnebres proferidas nas exéquias do Rei D. Luís, na Sé do Funchal, no dia 29 de novembro de 1889, e nas exéquias do Rei D. Carlos e do príncipe Luís Filipe, a 25 de abril de 1908, no Mosteiro dos Jerónimos. Foi também notável a sua ação como polemista católico, com o opúsculo O Sudário Negro no Banco dos Réus, em resposta ao folheto O Sudário Negro ou Apontamentos para a Biografia de D. Manuel Agostinho Barreto Bispo do Funchal, publicado pelo jornalista Frederico Pinto Coelho (1851-1916) em 1881, e ainda com um opúsculo em defesa de D. António Mendes Belo, no qual apresentou vários documentos relativos à expulsão do patriarca de Lisboa. Para além disso, colaborou nos jornais A Época e Novidades. Foi-lhe atribuída a comenda da Ordem de São Tiago. Faleceu em São João da Pesqueira, a 3 de novembro de 1946. Obras de António Aires Pacheco: O Sudário Negro no Banco dos Réus (1882); El-Rei D. Luís I. Oração Fúnebre (1890); No Templo dos Jerónimos. Oração Fúnebre Proclamada nas Exéquias de El-Rei D. Carlos I e do Príncipe Real D. Luís Filipe, Mandada Celebrar pelo Governo no dia 25 de Abril de 1908 (1908); A Expulsão do Senhor Patriarca D. António I. Documentos para a História da Perseguição Religiosa em Portugal (1912).     Gabriel Pita (atualizado a 19.12.2017)

Religiões

sé do funchal

A Sé do Funchal é o mais importante conjunto patrimonial religioso da Madeira. Construída e sagrada como tal na época áurea da expansão portuguesa e europeia, foi dotada com aquilo que de melhor o rei de Portugal pôde enviar para a Ilha e que, nos anos seguintes, os seus quadros, ou seja, bispo, cabido e demais ministros eclesiásticos, mas também a população, através das confrarias e de ações individuais, preservaram e aumentaram. Contingências várias proporcionaram que conseguisse chegar aos nossos dias com as linhas gerais com que foi construída nos primeiros anos do séc. XVI e com o principal equipamento com que foi inicialmente dotada, por D. Manuel I (1469-1521), o que não aconteceu com as suas congéneres continentais, espelhando interiormente as várias épocas e devoções, bem como a maior parte da história da Madeira. Sé do Funchal. Vista da nave central. Foto: BF A necessidade de construção de uma nova igreja para o Funchal fez-se sentir logo pelos meados do séc. XV, dado o desenvolvimento populacional e económico dessa então vila. A determinação surgiu em 1486, com a subida à administração da Ordem de Cristo do à data duque D. Manuel, escolhendo-se o antigo “chão do duque” seu pai, até então utilizado para experiências de plantio das várias espécies de cana-de-açúcar, para se edificar uma câmara e paço de tabeliães, uma “igreja grande” e uma praça para o pelourinho, denominado “picota” (Urbanismo; Pelourinho). A situação de instabilidade das coroas de Portugal, Castela e Aragão, face à delimitação das áreas de influência ultramarina, protelou as obras da igreja, acontecendo o mesmo localmente, dados os custos que tal empreendimento representava para a população e até porque, pouco tempo depois, também estava em construção o convento de Santa Clara. Os oficiais do concelho insistiam que seria mais fácil e económico construir a “igreja grande” como ampliação da de N.ª Sr.ª do Calhau, ou como ampliação da da Conceição de Cima, onde estaria para se fazer o convento de S.ta Clara. O impasse levou, inclusivamente, a que, nos finais de 1488, na vereação de 28 de dezembro, o capitão do Funchal ameaçasse não participar na reunião camarária se os oficiais não respondessem à carta do duque sobre “o fazimento da sé em baixo” (ARM, Câmara Municipal..., liv. 1299, fl. 53v.); de facto, somente acedeu depois de lhe garantirem que já havia sido dada a resposta afirmativa ao contador do duque. Saliente-se que o capitão do Funchal já utiliza a designação de “sé”, sinal que a instituição da Diocese era assunto assente em 1488, provavelmente com base nas cartas de D. Beatriz e do vigário de Tomar, escritas quase 10 anos antes, quando, em janeiro de 1477, o bispo de Tânger, D. Nuno de Aguiar, pretendeu incluir a Madeira na sua diocese e visitar a Ilha. Nessa data, a infanta escreveu, em nome do “dom” prior de Tomar, e o mesmo fez o secretário da Ordem de Cristo, não autorizando o bispo a entrar na Ilha e exortando a população a que não se “agastasse”, pois “cedo, com o favor divino, esperava el-rei, nosso senhor, criar bispo da mesma Ordem na Ilha” (COSTA, 1995, 36). As cartas foram presentes à vereação camarária de 1 de junho seguinte, realizada em N.ª Sr.ª do Calhau. Nessa data ainda reinava D. Afonso V (1432-1481) e, em 1488, reinava D. João II (1455-1495), existindo já um herdeiro para o trono, o infante D. Afonso (1475-1491). Logo, foram escritas e remetidas numa altura em que o duque D. Manuel não tinha em mente a possibilidade de vir a ser rei. Nesse quadro, só depois da subida ao trono de D. Manuel, em 25 de outubro de 1495, se começou a pressionar decisivamente para a executar as obras da nova igreja e só com a definição concreta da Coroa portuguesa no quadro ibérico se passou a contemplar um projeto mais alargado, de criação de uma diocese, o que se equacionava havia mais de 20 anos. O rei D. Manuel era primo direito da rainha de Castela, Isabel, a Católica (1451-1504), casada com Fernando de Aragão (1479-1516). Com o falecimento do infante D. Afonso, filho de D. João II e legítimo herdeiro da coroa, subiu ao trono D. Manuel, que se casou com a viúva do infante, filha mais velha dos Reis Católicos, pelo que, em 1498, o casal chegou a ser jurado herdeiro dos tronos de Castela e de Aragão. Entretanto, falecendo a rainha de parto e, pouco depois, o jovem príncipe, a sucessão dos senhorios desses reinos ibéricos passou para a outra irmã e para o filho, o futuro imperador Carlos V. Mas, mantendo-se em Roma o papa Alexandre VI (1431-1503), nascido Rodrigo de Bórgia e que fora arcebispo de Valência, especial defensor dos interesses dos Reis Católicos, foi preciso aguardar mais algum tempo para poder negociar a criação de uma diocese ultramarina em Portugal. O rei D. Manuel, a partir de 1500, iniciou um programa de reestruturação administrativa geral da ilha da Madeira, começando por criar, em dezembro de 1501, com o falecimento do segundo capitão-donatário, em março desse ano, a vila da Ponta do Sol e, em julho de 1502, a vila da Calheta, desmembrando, assim, o espaço administrativo do Funchal. No entanto, a 16 de agosto de 1502, cativou as imposições das vilas recém-criadas para fazer face às obras da nova igreja do Funchal. Estando levantadas as paredes desta igreja em 1508, data em foram benzidas por D. João Lobo, bispo de Tânger, elevou o Funchal a cidade, a 21 de agosto do mesmo ano, iniciando os contatos para a criação, na nova cidade, da diocese dos Descobrimentos. As despesas de manutenção do culto religioso eram da responsabilidade geral da Ordem de Cristo, mas a sua definição precisa levou algum tempo a ser determinada. Cobrando a administração da Ordem o dízimo eclesiástico, cabia-lhe o pagamento da manutenção do clero e do culto, mas com o desenvolvimento da comunidade e a diversificação das fontes de rendimento, houve que especificar concretamente as responsabilidades. À Ordem de Cristo e então à coroa passou a corresponder o pagamento das côngruas do clero, o projeto geral das novas igrejas e o acervo e manutenção da capela-mor, ou seja, altar, retábulo e principais alfaias religiosas, tal como o serviço dessa capela e da sacristia. Cabendo à coroa a coordenação geral do projeto, ficando prontas as capelas colaterais da futura sé, em agosto de 1508, o rei determinou a sua venda, para, com o dinheiro das mesmas, continuar as obras. Definia-se assim o modelo de financiamento do culto, com a coroa a pagar, através da Alfândega, as despesas gerais do clero e do culto, mas os habitantes, em nome individual ou através das confrarias, a pagarem o serviço das restantes capelas. Com a instalação de uma fábrica com verbas próprias e responsável pela manutenção geral do edifício, veio a atribuir-se à mesma também os dinheiros obtidos com os enterramentos, situação com a qual, juridicamente, nem todos os analistas estiveram de acordo, dado que fora a população que pagara o corpo da igreja (Cemitérios). Os serviços religiosos começaram a funcionar na nova igreja em 1512, data em que também foi referida a necessidade de cativar verbas para o retábulo, devendo o mesmo estar a ser montado com o cadeiral dois anos depois. Esta informação coloca em causa a longa tradição histórica das “ofertas” do magnânimo rei D. Manuel, pois grande parte das obras acabou por ser paga pelos rendimentos da Ilha e pelos vários impostos criados especialmente para esse efeito. Mais tarde, quando D. João III mandou entregar ao cabido do Funchal, em 1528, o conjunto de alfaias encomendadas pelo pai, do qual faz parte a magnífica cruz processional, as mesmas vieram acompanhadas do peso da prata e da conta “do feitio” de cada peça (ANTT, Cabido..., avulsos, mç. 7), com certeza, para tudo ser descontado nas contas da fábrica da sé. A 12 de junho de 1514 a igreja foi elevada a sé por bula do papa Leão X e a 2 de agosto ainda se trocava correspondência sobre como rematar a torre. O cadeiral para o coro da capela-mor estava a ser montado nos meados ou finais desse ano, pois D. Manuel, em carta de 27 de fevereiro de 1515, a pedido da Câmara, autorizava que o coro se não fizesse na capela-mor, o que acabou por não ter efeito, dado que o mesmo se manteve nesse local, já devendo estar, então, em adiantado estado de montagem. Tudo devia estar concluído a 18 de outubro de 1517, quando o altar-mor foi sagrado por D. Duarte, bispo de Dume, por delegação do bispo do Funchal, D. Diogo Pinheiro, em nome da “Beatíssima Virgem Maria e das Onze Mil Virgens” (APEF, Documentação de sagração...). O projeto da nova igreja deve ter vindo de Lisboa ou de Tomar, sede da Ordem de Cristo, nos meados da déc. de 80, quando o duque D. Manuel começou a cativar as verbas para a futura construção ou, mais provavelmente, por volta de 1492, quando enviou para o Funchal um escrivão para a obra, Marcos Lopes, depois elevado a escudeiro da casa real e mamposteiro-mor dos cativos e que se fez enterrar na sé. Por essa altura, sensivelmente, deve ter ido também para o Funchal um mestre-de-obras, João Gonçalves, embora só tenhamos conhecimento da sua existência em 6 de junho de 1503, quando se deslocou a Lisboa, “por causa da mãe”, provavelmente doente e foi apresentar ao rei D. Manuel o estado da construção da então “igreja nova” (ANTT, Corpo Cronológico, Fragmentos, doc. 7). O mestre João Gonçalves era pago através do capitão do Funchal, superintendente das alfândegas, mas não voltamos a ter informações a seu respeito, pelo que não deve ter voltado à Madeira. A igreja, no entanto, estava sumariamente levantada por volta de 1508, como antes afirmámos, ano em que foi sagrada por D. João Lobo, bispo de Tânger e quando o rei mandou colocar à venda as capelas colaterais, tal como referimos, para com o dinheiro continuar as obras, tudo assuntos que acabaram por ficar ao cuidado do vigário frei Nuno Cão (c. 1460-1530), correndo os pagamentos pela fazenda régia, com uma interferência mínima por parte do capitão do Funchal. Entre 1514 e 1517 voltamos a ter informações da direção geral das obras, encontrando-se as mesmas entregues a Pêro Anes, “mestre das obras de Sua Alteza” e “mestre da carpintaria” da sé e da Alfândega (ANTT, Núcleo Antigo, doc. 764). Temos, assim, nesses anos, uma profunda alteração da situação, com um mestre das obras reais de carpintaria à frente destas empreitadas, como era habitual no continente, passando os mestres pedreiros a seus subordinados. A superintendência de Pêro Anes sobre as obras da sé parece confirmada na assinatura de mestre: um compasso de pontas que aparece nas paredes da antiga capela do Amparo e na porta da antiga sacristia, sob a torre da sé, em tudo semelhante às que constam na documentação dos arquivos camarários do Funchal onde assinou pareceres. Para além de inúmeros carpinteiros, do mestre das obras reais Pêro Anes terá dependido Gil Enes, que mais tarde se fez enterrar na Serra de Água como “mestre pedreiro da sé” (NORONHA, 1996, 135-136). Ao contrário, o mestre das obras reais Pêro Anes seria enterrado na sé, entre 1536 e 1538, data provável do seu falecimento e, muito mais tarde, em 1579, a sua viúva, Isabel Gonçalves, ainda era referida como “mestra da sé” (ARM, Registos Paroquiais, Sé, Óbidos, liv. 5, fls. 83v. e 100), sinal da fama de longa duração que o marido, mestre Pêro Anes, gozara. A Sé do Funchal é uma igreja de três naves com transepto somente definido em planta, com ampla nave central e largo transepto, o mais largo das catedrais portuguesas. De tudo isto resulta uma edificação clara e luminosa, destacando-se também a inteligência e singularidade da aplicação dos materiais locais que caracterizam o modelo corrente português de arquitetura chã, uma arquitetura despojada, repetida e apurada na infinita variação local de igrejas mais ou menos comuns, mas algumas depois instituídas em sés. Teto da capela-mor. Foto BF O aumento da dimensão da nave central e do transepto apontam já o decidido propósito ducal ou real de a tornar, futuramente, sede do bispado dos Descobrimentos. A cobertura das naves e do transepto por um magnífico conjunto de tetos mudéjares (Tetos de alfarge), o mais monumental que chegou aos nossos dias em Portugal, tal como a montagem, na capela-mor, de um aparatoso retábulo e de um cadeiral, evidenciam, decididamente, o intento manuelino de levantar uma igreja primaz das Índias Orientais e Ocidentais. O conjunto da Sé do Funchal assenta numa plataforma nivelada, constituída por um adro gradeado, razoavelmente amplo, com a fachada principal virada a poente, aspeto obrigatório até ao Concílio de Trento, localização onde se veio a colocar a estátua do papa João Paulo II, que aí esteve em 12 de maio de 1991. O pano central é totalmente em cantaria vermelha aparente do cabo Girão, ligeiramente relevado em relação aos laterais, com um pequeno portal de seis arquivoltas, envolvido por arco relevado, rematado superiormente pelo que parece ser uma copa ou uma custódia, encimada pelas armas de D. Manuel com coroa aberta. Superiormente, apresenta uma pequena rosácea com grilhagem radiante centrada numa pequena cruz de Cristo, sendo rematada por cimalha de cantaria e, igualmente, pela cruz de Cristo. Os panos laterais são cegos, caiados e estão rematados, lateralmente, por fortes cunhais de cantaria aparente. As fachadas laterais das naves apresentam quatro janelas em forma de fresta, que se repetem no clerestório, ou seja, na parte superior da nave central, aí com colunelos decorados, de que restam vestígios, e existe um largo janelão quadrangular a iluminar o batistério, a norte, provavelmente, algo posterior. Todas as janelas são da construção inicial, embora as paredes tenham sido reforçadas nas obras de 1790 para a reposição dos altares das confrarias, nessa altura, foram feitos os portais neoclássicos, atribuíveis ao pintor e arquiteto de origem canária António Vila Vicêncio (c. 1730-1796), então mestre das obras reais. O adro serviu também de cemitério, talvez nos meados do séc. XVIII, quando se limitou ao máximo os enterramentos no interior dos templos, aparecendo quase sempre restos de ossadas quando se processam obras nessas áreas. No lajeamento, foram utilizadas algumas pedras tumulares provenientes do interior da sé, mas a maioria das inscrições terão sido bujardadas. Escapou um pequeno fragmento na área norte, com escrita gótica, mas quase impossível de ler, provavelmente, é das mais antigas lápides da sé. Para os degraus da porta sul também foram utilizadas lápides sepulcrais antigas, uma das quais muito curiosa, porque dupla. A inscrição refere ser da sepultura de Manuel Vieira Jardim, mulher e herdeiros, e de Pedro Vaz, mercador e, igualmente, mulher e herdeiros, tudo famílias de cristãos-novos dos meados do séc. XVI. A sua colocação fora do edifício da sé e como degrau da porta parece indiciar que, mesmo nos finais do séc. XVIII, o estigma de cristão-novo se mantinha. O transepto tem um grande impacto visual e apresenta janelões, já de alguma dimensão, nas paredes laterais, tendo o virado a poente, do braço norte, capitéis com esferas armilares; os do braço oposto são mais simples e, um deles, foi aberto em campanha de obras bastante posterior. As fachadas sul e norte têm pequenas rosáceas, semelhantes à da fachada poente. O janelão poente do braço norte do transepto ainda apresenta, interiormente, moldura polilobada de tradição tardo-gótica que deverá ter tido correspondência no braço sul, mas que sucessivas obras de reabilitação terão feito desaparecer. A cabeceira apresenta-se toda em cantaria aparente e é composta por abside de topo facetado, com quatro contrafortes repostos nas campanhas de obras dos meados do séc. XX, altura em que foram também repostas as frestas de arcos apontados, então dotadas de vitrais de Joaquim Rebocho (1912-?), datados de 1959. O absidíolo da atual capela do Santíssimo é igualmente reforçado por contrafortes escalonados, rematado por uma grelha decorada com cruzes de Cristo e encimada por grandes pináculos torsos, sendo o remate da inicial capela de Santiago, a norte, uma reposição conjetural, efetuada na campanha de 1950. A direção das obras gerais de levantamento das paredes da sé e da torre parecem ter sido da responsabilidade do mestre João Gonçalves, entre 1492 e 1503, ano em que se deslocou a Lisboa, como referimos, e parece não ter voltado à Ilha. No entanto, nos anos seguintes, a direção foi assumida por Pêro Anes que, além das obras da sé, se encarregou, a partir de 1514, das da alfândega (Alfândega nova). Destes factos, resultam duas leituras totalmente diferentes da sé: exteriormente, vemos um edifício fechado e marcadamente de uma ordem militar, em especial, na desmesurada torre sineira medieval, coroada com ameias e merlões piramidais, e interiormente, um elegante e luminoso conjunto, sobretudo na articulação das altas colunas de suporte dos magníficos tetos de alfarge. Torre da Sé. Foto BF. A torre, elevando-se a cerca de 55 m de altura, possui quatro pisos com cobertura de abóbadas nervadas e janelas para nascente, sendo o último ocupado pelos sinos, com sete janelas sineiras. O pequeno terraço superior sobre o andar dos sinos encontra-se praticamente rematado ao gosto dos castelos medievais templários, indiciando uma campanha de obras de um mestre diferente daquele que executou o coruchéu quadrangular piramidal, assente sobre oito arcos góticos com capitéis decorados com motivos vegetalistas e revestido de azulejos sevilhanos, por certo, obra da campanha seguinte, de Pêro Anes. O acesso exterior é hoje feito por uma pequena porta de arco apontado, acedida por um lanço de escadas adossadas, reconhecendo-se as estreitas escadas de caracol interiores de acesso aos vários pisos pela sequência das pequenas frestas de iluminação. Esta torre marcou ainda toda a história urbana da cidade pelo seu impacto visual, e a regional, dado ter servido de prisão a inúmeros eclesiásticos nas complicadas questões que opuseram os prelados ao clero local. Na junção superior com o braço do transepto, que corre à mesma face, resiste uma gárgula, em forma de canhão de corpo helicoidal, porventura a única gárgula que resta das campanhas iniciais do edifício. O coruchéu de remate da torre, revestido a azulejos das oficinas de Sevilha, foi mandado levantar em agosto de 1514 pelo rei D. Manuel. O remate superior, no entanto, é uma reposição de outubro de 1601, dado o original ter sido derrubado por um temporal, ocorrido a 28 de dezembro de 1591, tendo a grimpa, na queda, provocado importantes estragos na cobertura da abside. A reposição utilizou já azulejos de produção nacional e a nova grimpa não reaproveitou os pesados materiais da anterior, com quase 100 kg, em ferro e cobre, entretanto vendidos, mas repetiu em linhas gerais, por certo, a sua forma inicial, rematada por esfera armilar e catavento. O acesso principal da sé é feito por um para-vento montado na campanha de obras de 1790 a 1794, altura em que foi construído o coro sobre a entrada. As pesadas portadas da entrada principal da sé não são já as de origem, pois foram remontadas em 1652, pelo carpinteiro Manuel Afonso, com cedro vindo da Ponta do Sol, tendo-se utilizado também antigas madeiras, que pertenciam à fábrica da igreja e que repetem, em desenho inciso, as decorações do teto mudéjar. Face ao desenho de raiz islâmica, podemos afirmar que se trata de um trabalho contemporâneo dos magníficos tetos que cobrem quase toda a igreja, pois, poucos anos mais tarde, com a entrada da Inquisição em Portugal e as diretivas do Concílio de Trento, não era possível executar um trabalho do género. A dificuldade de o observar, dado o contraste da luz interior com a exterior terá possibilitado que chegasse aos nossos dias. A entrada dá acesso ao batistério, a norte, dotado de interessantes arcos de cantaria e abóbada de nervuras manuelina, tendo, no interior, a pia batismal, em calcário-brecha da serra da Arrábida. A Coroa manuelina estabeleceu um quase monopólio sobre as correspondentes pedreiras, pelo que os vários elementos neste tipo de calcário que existem na sé devem ter vindo das oficinas reais da área de Setúbal. Embutido na parede, existe um pequeno armário; nas paredes superiores do batistério, encontram-se pintadas as armas reais e uma esfera armilar; em princípio, tudo contemporâneo das primeiras décadas de vida da sé. No lado sul, encontra-se um compartimento semelhante em dimensões, igualmente com um interessante arco manuelino, rematado superiormente por esfera armilar, que dá acesso às escadas para o coro. O arco parece ser, decididamente, manuelino, embora conste nos cadernos das obras de 1790 como tendo sido levantado apenas então. Deve, assim, ter sido remontado de uma estrutura anterior, pois apresenta todas as características estilísticas e materiais dos inícios do séc. XVI. Na campanha de obras de abril de 1755, para esta área e para a das portas laterais, já no interior, quando a sé foi quase toda assoalhada, a maioria das lápides sepulcrais que existiam dispersas pela igreja foi transferida, referindo-se que se deveriam aproveitar as que se encontravam em melhor estado. Para a entrada foi transferida uma lápide das esculpidas em pedra azul-escura, muito semelhante às chamadas “pedras azuis” de Hainaut, na Bélgica, rematadas por inscrições laterais, que, aqui, infelizmente, se perderam; ainda assim, o grupo de lápides da sé, remontado nas juntas das portas laterais, é o maior que se regista em Portugal (Lápides sepulcrais). O interior da Sé do Funchal é definido por um conjunto de dupla e elegante arcaria de finas colunas góticas decoradas com capitéis esculpidos, delimitando uma alta nave central iluminada por frestas, sendo os tetos elaborados em madeira de cedro insular (juniperus oxycedrus). O conjunto destas complexas armações de carpintaria de alfarge, que referimos atrás, chamados “tetos mudéjares” ou “de alfarge”, é, como notámos antes, o maior existente em território nacional. Esta ampla campanha de obras deve ter ocorrido sob a direção de Pêro Anes, “mestre das obras de Sua Alteza”, tal como indicámos, que, por volta de 1514 e já na direção das obras da Alfândega, estava à frente de uma larga equipa de carpinteiros, onde, a par dos seus três criados – Bartolomeu, Brás e Cosmo –, tinha sob as suas ordens mais de dezena e meia de carpinteiros, serradores, ajudantes e, inclusivamente, escravos. O conjunto da capela-mor da Sé do Funchal é uma “joia da coroa” da Região, dado ser o único conjunto manuelino de altar, retábulo e cadeiral que chegou aos nossos dias no seu local original. A estrutura geral da capela estava pronta em 1508, data da bênção do templo e em que foram colocadas à venda as capelas colaterais, tal como expusemos antes. A capela abre com um arco triunfal polilobado, sendo coberta por uma abóbada de nervuras de três tramos, com as armas de D. Manuel na última chave, cruz de Cristo e esfera armilar nas outras chaves, e os capitéis de arranque dos arcos das abóbadas com decoração zoomórfica e antropomórfica bastante cuidada. Todo o conjunto se apresenta profusamente pintado e dourado, o que será especialmente fruto da campanha de obras dos meados do séc. XVIII, da oficina de António Vila Vicêncio, que parece ter-se deslocado das Canárias para efetuar este trabalho, acabando por se radicar no Funchal.   Este complexo foi sofrendo reabilitações ao longo dos séculos, adaptando-se, inclusivamente, às alterações litúrgicas, mas manteve, no essencial, a articulação geral dos inícios do séc. XVI e, muito especialmente, o mencionado conjunto do primitivo altar manuelino, recuperado nos finais do séc. XX, dado nos finais do XVI, em princípio, ter sido incluído no altar tridentino, tal como o retábulo e o cadeiral manuelinos. Deve datar dos finais do séc. XVI ou dos meados do XVII a construção de uma cripta sob o altar, onde passaram a ser sepultados os prelados que foram falecendo na diocese, embora tivessem sido muito poucos e somente um se encontre identificado no exterior da sepultura: D. Fr. António Teles da Silva, 11.º bispo do Funchal, falecido em 1682. Deve datar de 1512, de quando o serviço religioso do Funchal foi transferido para a nova igreja, a assunção, pela corte de D. Manuel, das responsabilidades da elevação da nova igreja principal a sé, assunto que fora equacionado havia mais de uma dezena de anos, tal como expusemos atrás, e que ficou patente, também nessa data, na cativação de dinheiro para o futuro retábulo. Nestes anos, o retábulo português conheceu uma especial evolução iconográfica, tornando-se num políptico rígido, enquanto na Flandres e mesmo em Castela se mantiveram os painéis articuláveis, adaptando-se à planta do topo das absides. Cadeiral da Sé. Foto: BF                Retábulo-mor. Foto BF O retábulo do Funchal é constituído por cinco corpos, dispostos em três andares e rematado superiormente por um sobrecéu com francas afinidades com o do cadeiral, tendo ao centro as armas de D. Manuel, ladeadas por duas esferas armilares. O corpo central do políptico terá sido ocupado, inicialmente, por três conjuntos escultóricos, dos quais resta, in loco, somente o sacrário, no corpo inferior. O corpo intermédio está ocupado, neste início de milénio, por uma monumental imagem da N.ª Sr.ª da Assunção ou da Conceição, de uma oficina continental do séc. XVIII e o registo superior foi, entretanto, preenchido com um crucifixo, em memória do Calvário desaparecido. O conjunto das 12 pinturas a óleo ao gosto flamengo encontra-se dividido de acordo com as orientações iconográficas religiosas então seguidas: o primeiro registo, com cenas do Antigo Testamento e da Paixão de Cristo; o registo médio, com temática mariana, evocação do orago da Sé do Funchal e de todas as congéneres portuguesas; o registo superior, as representações finais da Paixão, com a Descida da Cruz e a Ressurreição. A oficina régia encarregada desta empreitada continua por esclarecer, sendo a opinião mais corrente, já na passagem para o séc. XXI, a de que houve uma parceria alargada na execução dos vários painéis, mantendo-se a atribuição de ao incógnito Mestre da Lourinhã. Para além dessa oficina, devem ter trabalhado outras duas, não sendo de excluir a hipótese de uma delas ser a de Francisco Henriques (c. 1460-1518), ou alguns elementos que estavam ligados à mesma, tendo sido ela que, por volta de 1500, terá trabalhado na matriz da Ribeira Brava. As pinturas foram executadas no continente, segundo um programa iconográfico certamente proposto pelo grão prior da Ordem de Cristo, em Tomar, o futuro bispo do Funchal, D. Diogo Pinheiro (1437-1525), que cuidava no despacho régio, e aprovado pelo rei D. Manuel. A equipa que se deslocou ao Funchal para a sua montagem na máquina retabular terá sido a mesma que executou o cadeiral, dadas as afinidades do trabalho geral de talha; mas comportaria vários entalhadores, como está patente nos pormenores esculpidos, podendo, um ou outro dos oficiais de talha do retábulo não terem trabalhado no cadeiral e vice-versa. O coro de uma grande igreja era essencialmente definido, ao longo da Idade Média, pelo cadeiral onde os vários clérigos rezavam e celebravam os ofícios em conjunto e era praticamente sempre nos presbitérios ou capelas-mores. Tratava-se de um espaço fechado à igreja e onde decorriam, inclusivamente, as reuniões mais importantes do cabido, tendo o rei D. Manuel, em 1517, proibido os leigos de entrarem na capela e coro da Sé do Funchal. A parede do cadeiral que fechava a capela-mor apresentaria duas portas laterais, pois o centro deveria ser ocupado pela cátedra episcopal. O cadeiral do Funchal foi alterado em 1587 e em 1588, talvez na sequência dos desmandos ocorridos durante o saque corsário de 1566 e, muito especialmente, como consequência da implantação das diretivas de Trento, na vigência do bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos (1544-1608), altura em que foram retiradas “umas cadeiras do coro, que não serviam” (FERREIRA, 1963, 249). Tudo leva a crer que o trabalho da montagem do retábulo e da execução do cadeiral da “igreja nova”, a, em breve, Sé do Funchal, tivesse sido executado pela equipa do mestre Machim Fernandes, dadas as semelhanças existentes com o cadeiral da colegiada de Santa Cruz de Coimbra, onde o mesmo trabalhara entre 1512 e 1513 (Cadeirais). Este mestre, de provável origem alemã e talvez de nome Maximiliano, fora contratado em Toledo, juntamente com o “carpinteiro de Tomar” João de Tojal (Sé do Funchal, 2003, 65-67), e estava naquela cidade em fevereiro de 1513, tendo acabado, ambos, as cadeiras dos cónegos da igreja de S. João Batista, em novembro do mesmo ano. Em fevereiro seguinte, os seus trabalhos foram vistos pelo próprio rei D. Manuel, tendo então sido, provavelmente, contratados para seguirem para o Funchal. O largo transepto da sé é definido somente em planta, como já afirmámos, pois é constituído pelo prolongamento da nave central e, lateralmente, por duas capelas independentes, cobertas por elaborados tetos de alfarge. A cabeceira interior da sé, onde se inscrevem os arcos triunfais da capela-mor e das colaterais, apresenta um pano frontal muito amplo, largamente iluminado pelas grandes janelas do transepto e por um pequeno óculo sobre o arco triunfal da capela-mor. Especialmente na capela do Senhor Jesus, os dois janelões permitem uma visão quase luminosa do teto mudéjar, o que não acontece nos restantes espaços da sé, sendo as capelas colaterais dedicadas ao Santíssimo e a N.ª Sr.ª de Lourdes, mas tiverem inicialmente outras evocações. Na capela que depois foi do Santíssimo começou a funcionar, entre 1508 e 1512, a capela de Pedro Gonçalves de Barros e de sua mulher Branca Fernandes, que haviam adquirido esse espaço, cuja evocação inicial se desconhece. Sabe-se apenas que, nos meados do séc. XVI, estava consagrada ao Santíssimo Sacramento, pois o Santíssimo encontrava-se no sacrário do retábulo da capela-mor. Como para esta capela teria sido encomendado, em Antuérpia, um retábulo do Calvário, atribuído a Pieter Coeck van Aelst (1502-1556), é possível que a mesma tenha tido essa evocação, sendo, em 1566, designada do Sacramento e, em princípio, só após o Concílio de Trento, do Santíssimo Sacramento, já sendo assim referida em 1572. A capela passou depois para Manuel de Barros, casado com Maria de Lemos, que terão encomendado um novo retábulo, pintado a óleo, muito possivelmente um tríptico, mas do qual só resta a tábua central, hoje no Museu de Arte Sacra do Funchal (MASF). A manutenção do altar passou depois à filha, Branca de Barros, falecida em outubro de 1621, casada com Francisco Bettencourt de Atouguia e daí aos Barros Atouguia, como registou Henriques de Noronha, família essa que deveria incluir Gonçalo de Barros, falecido a 3 de janeiro de 1613, como consta na sua pedra tumular, que se encontra na entrada da sé. A confraria do Santíssimo da sé não deve datar de muito antes do episcopado de D. Jerónimo Barreto (1543-1589), iniciado em 1573 e prolongado até 1585, quando se registaram, nas Constituições de 1585, as regras gerais por que se deveriam reger as confrarias, de acordo com as diretivas iniciais do Concílio de Trento (Confrarias). Com este prelado deve ter passado a capela do Santíssimo, pois quando chegou ao Funchal o bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos, foi assim referida, na visita que o mesmo lhe fez, na sua entrada solene. Durante este novo episcopado são várias as indicações da existência da confraria, mas a instituição da mesma, com a aprovação dos respetivos estatutos, data do episcopado de D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), concretamente, de 1638, embora também só o saibamos por documentação posterior. Na transição do séc. XVI para o XVII, a confraria do Santíssimo corporizou especialmente os ideais reformistas de Trento, integrando “os homens principais da terra”, que pertenciam também a outras confrarias, “para melhor serviço de Deus e bem das almas” (ARM, Câmara Municipal..., Registo Geral, tombo 7, fls. 86v.-87). Nos meados do séc. XVII, esta confraria ganhou ascendente sobre as restantes, chegando a pedir para os elementos da sua mesa serem dispensados do serviço de vigias e alardos (Vigias). No quadro das ações gerais de afirmação social da confraria do Santíssimo da sé, em 1648, quando presidia o reitor Jorge de Andrade Correia e era tesoureiro Francisco Gonçalves Figueira, a mesa da confraria encomendou à oficina de Manuel Pereira (c. 1605-1679) a mais monumental obra de talha do seu tempo: o conjunto escultórico do camarim da sé. Os trabalhos decorreram entre 1648 e 1654, envolvendo uma vasta equipa, marcando, a partir de então, com a sua montagem e até aos meados do séc. XIX, as festas da Semana Santa no Funchal. A montagem e remontagem sucessiva dos vários andares dessa estrutura, ao longo dos anos, danificou irremediavelmente o conjunto escultórico do camarim, que chegou aos finais do séc. XVIII em muito mau estado. Foram então encetadas várias tentativas de reformulação, o que veio a ocorrer, sob a direção do mestre Estevão Teixeira de Nóbrega (1746-1833), em 1801. No entanto, nos meados do século, estava de novo impraticável de montar, acabando por serem recolhidas, no MASF, as suas peças principais. Com a exposição do trabalho do camarim, as confrarias do Amparo e do Santíssimo devem ter-se abalançado, por pressão do cabido da sé, certamente, a mandar executar os remates de coroamento dos arcos de acesso às respetivas capelas, entre 1660 e 1670. São dois monumentais trabalhos de talha dourada, com os pendentes com dois anjos apresentando coroas de louro e, por cima, um entablamento maneirista, de inspiração arquitetónica, rematado por um frontão triangular e a enquadrar duas grandes telas de dois metros de largura, provavelmente, de uma oficina local. A rigidez dos anjos, no entanto, aponta mais para um dos mestres que trabalhou na oficina de Manuel Pereira do que para o mestre em questão, embora a obra repita o mesmo esquema maneirista geral usado pela oficina. Por estes anos, também, a confraria do Santíssimo ampliou o conjunto de alfaias de prata do seu serviço, encontrando-se algumas documentadas. A maior parte delas foi reformulada depois, dando origem a outras, dentro do costume de fundir as peças mais antigas e já com defeitos, para, com a sua prata, mandar executar alfaias novas (Ourivesaria e prataria). Em 1661, por exemplo, foram realizados vários trabalhos deste teor pelos ourives Simão Lopes, Manuel Fernandes Chita, Sebastião de Afonseca e António de Araújo. A entrega deste tipo de trabalho a vários prateiros adveio do acidente ocorrido em 1658, quando a confraria confiou ao prateiro José Dias Araújo a prata de “dois anos de esmolas que deram os irmãos da mesa” para fazer um sacrário e o mesmo fugiu com a mesma para o Brasil (Sacrários) (FERREIRA, 1963, 214). Sé do Funchal. Sacrário. Foto: BF Na segunda metade do séc. XVIII, a capela do Santíssimo foi reformada já ao gosto rococó, com um novo retábulo de talha onde figuram as três virtudes teologais: fé, esperança e caridade. O autor do risco destas peças foi o mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), que trabalhou sobre uma proposta do entalhador Julião Francisco Ferreira, pois parte dos mesmos trabalhos foi pago pela fazenda régia. Executaram os labores de escultura os entalhadores António José, António João, Manuel Francisco Gomes, o escultor Agostinho José Marques e o limpador João de Nóbrega, que preparou o trabalho para o dourador José António da Costa, também pintor, natural das Canárias e cunhado de António Vila Vicêncio. Os trabalhos decorreram entre janeiro de 1769 e fevereiro de 1772, custando à confraria a importante verba de mais de oito contos de réis. O conjunto apresenta uma certa harmonia, embora dentro do gosto pesado de começo do rococó, com as virtudes, nas paredes laterais, assentes em largas peanhas entalhadas, ladeadas por colunas salomónicas e encimadas por um baldaquino, do qual pende um dossel, também entalhado. O mesmo esquema foi repetido no retábulo, encimado por uma cimalha contracurvada com baldaquino e com uma grilhagem decorativa, entre o rococó e o neoclássico, no topo. O retábulo foi sobrelevado cerca de 20 anos depois, quando se deu a grande reforma dos altares das confrarias, dentro do gosto de transição do rococó para o neoclássico difundido pela oficina do mestre Estêvão Teixeira de Nóbrega, como é patente na própria estrutura retabular. Nessa altura, ter-se-á voltado a dourar e policromar a parte superior do retábulo, como atestam as assinaturas dos pintores Ambrósio Joaquim de Sousa e Jacinto Januário de Vasconcelos, em 1790. Nos inícios do séc. XIX, ainda para esta capela, foram adquiridos os grandes potes de porcelana chinesa da época Kangxi, datáveis de 1680 a 1720, aproximadamente, que tinham pertencido ao bispo D. Luís Rodrigues Villares (c. 1740-1810), falecido na quinta da Nazaré, em 1810 e que teriam vindo do espólio de um anterior prelado. O complexo da confraria do Santíssimo prolonga-se para as traseiras da sé, envolvendo um pequeno pátio interior e, nos sécs. XVIII e XIX, tinha mesmo instalações fora, pois foi necessário alugar um edifício, nomeadamente, para guardar a grande quantidade de peças que constituíam o camarim. As instalações da confraria possuem uma boa sala de reuniões, reformulada em 1732, data em que foi encomendado, em Lisboa, um bom conjunto de azulejos que chegou nesse ano, por intermédio do comerciante Caetano da Costa, registando-se os preços dos mesmos e dos transportes, mas não da oficina que os executou. Estes painéis apresentam cenas campestres e de caça inspiradas em gravuras da época, provavelmente francesas, como era hábito neste tipo de instalações, mesmo no âmbito de instituições religiosas. A capela colateral norte teve inicialmente a evocação de Santiago Maior e à mesma pertencia a tábua flamenga da oficina de Dieric Bouts, o velho (c. 1415-1475), depois transferida para a nova igreja de Santiago, levantada por voto da cidade, na sequência do surto de peste dos inícios do séc. XVI (Voto da cidade). A tábua flamenga em causa é, inclusivamente, anterior à construção da sé, datando o mais tardar de 1475, ano do falecimento de Bouts. Esta capela veio a ser comprada, em 1628, pela confraria de N.ª Sr.ª do Amparo. Tudo leva a crer que a confraria se havia instituído dois anos antes, em 1626, pois foi essa a data em que foi pintada no retábulo. A pintura em questão, um magnífico retábulo flamengo atribuível à oficina de Jan Gossart (c. 1478-1532), dito o Mabuse, dado ser natural de Maubeuge, em França, contém a inscrição “Ano de 1543”, conforme revelou o restauro efetuado nos meados do séc. XX. Trata-se de uma data posterior, em 11 anos, ao falecimento do mestre, mas a obra mantém muitas das características da pintura do mesmo. Assim, será uma obra que ficou inacabada e foi retomada, nos anos seguintes, por elementos da sua oficina. A capela do Amparo é a única que apresenta revestimento cerâmico de azulejos na Sé do Funchal, pois estes existem apenas na torre, em estilo mudéjar, datando de século e meio antes e no anexo da confraria do Santíssimo, montados no século seguinte (Azulejaria). Assim, as paredes laterais da capela do Amparo encontram-se cobertas com painéis de azulejos pseudoenxaquetados azuis e brancos do séc. XVII, tal como as paredes das escadas, mas de um século depois. São painéis de muito boa qualidade, atribuídos à oficina de Bartolomeu Antunes (1668-1753) e datáveis de cerca de 1732, quando a capela foi alterada para se construir a ligação à nova sacristia. Nos finais do séc. XIX, em data que não conseguimos apurar, a evocação da capela passou a ser de N.ª Sr.ª de Lurdes, devendo estar na origem desta alteração o 25.º bispo do Funchal, D. Aires de Ornelas e Vasconcelos (1837-1880), cuja família possuía ligações e contactos em França. Para a capela foi uma imagem realizada por Raphael Verrebout, um célebre escultor à época, ativo entre 1857 e 1880, fundador da Raffl, Delin Frères, em Paris, casa de artigos religiosos que exportou, nesse final de século, milhares de imagens para todo o mundo. Esta capela dá acesso àquela que se veio a designar como sacristia velha, sob a torre, e que perdeu parcialmente as suas funções com a construção da nova, em 1732. É composta por uma abóbada de nervuras e apresenta ainda o antigo lavabo, cuja posição indica que terá sofrido alterações ao longo dos tempos. Para este local foi transferido, nos inícios da República, o retábulo da antiga capela de N.ª Sr.ª do Monte dos Varadouros (Portão dos Varadouros), capela então demolida e que provocou a primeira crise no seio do partido republicano madeirense (República). Trata-se de um retábulo dos primeiros anos do séc. XIX, dentro da linha geral dos existentes nas naves laterais e proveniente de uma das oficinas locais de filiação neoclássica, ficando, logicamente, muito longe da riqueza dos trabalhos montados nas naves ainda nos finais do séc. XVIII. No braço sul do transepto, foi inicialmente levantada a capela de S.ta Ana, da qual restam apenas as pinturas do retábulo. Tudo leva a crer que estas tenham chegado por interferência de António Rodrigues Mondragão, enviado a Lisboa, pela Câmara do Funchal, à aclamação de Filipe II de Castela, primeiro de Portugal. Trata-se de um conjunto de pinturas da oficina de Michel de Coxcie (1499-1592), pintor da especial estima daquele rei, encontrando-se uma assinada, com a indicação “pictor Regi” e a data de 1581. Poucos anos depois, a capela passou a ter a evocação de Senhor Jesus, sendo referida assim em 1585. No século seguinte, o altar foi novamente todo reformulado, mas manteve os painéis de Coxcie no novo e espetacular retábulo. Não possuímos referências documentais sobre a execução da primeira fase deste retábulo, datado de 1677, embora, face às características formais, deva ser atribuído à oficina de Manuel Pereira, figura dominante no panorama da talha dos meados desse século na Madeira. A avançada idade do mestre à data, indica-nos que terá sido assessorado pelo sobrinho Manuel Pereira de Almeida (c. 1648-c. 1706), que o terá concluído, entre 1683 e 1684, registando a documentação que se tratou de um “acrescentamento” (ANTT, Cabido..., liv. 21, fls. 1 e 6v.-7). No entanto, só 10 anos depois se procedeu ao douramento, provavelmente, por se ter aguardado a chegada, de Lisboa, das três grandes telas pintadas a óleo que preenchem o andar superior e que chegaram apenas em 1691, por ventura, vindas da oficina de um dos colaboradores de Bento Coelho da Silveira (c. 1620-1708), oficina que, aliás, trabalhou para a Madeira (Igreja e recolhimento do Carmo), Essas três telas repetem parte do forte colorido daquele mestre, mas as figuras nelas representadas revelam alguns defeitos anatómicos. Nesta capela, foram montadas as imagens do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria, devoções excecionalmente divulgadas nos primeiros anos do séc. XX. A imagem de Jesus é um modelo do já referido escultor Raphael Verrebout, das oficinas Raffl, Delin Frères, de Paris, dos finais do séc. XIX ou inícios do XX, quando esta casa já havia mudado de proprietário: a do Imaculado é da oficina de Porto de Pereira d’Abreu, Filhos, decididamente, já dos inícios do séc. XX. Anexa a esta capela e à do Santíssimo, existe ainda a capela de N.ª Sr.ª dos Anjos, que teve aprovação eclesiástica em 1689 e foi instituída pelo comerciante Manuel Gonçalves de Freitas, homem de confiança do cabido da sé. Esta capela, que veio a fazer parte da sacristia da do Santíssimo, à época e como refere a petição do instituidor, pertencia à sacristia da capela do Senhor Jesus. O retábulo de N.ª Sr.ª dos Anjos apresenta uma boa pintura, datada de 1688, de uma oficina de Lisboa, tendo um enquadramento simples, mas bem entalhado, que deve ter sido também executado por Manuel Pereira de Almeida ou por algum dos seus colaboradores. No braço norte do transepto foi instituída a capela de S.to António pelo navegador Álvaro de Ornelas e sua mulher Branca Fernandes de Abreu. Álvaro de Ornelas faleceu em 1526 e foi ali sepultado, assinalando-o uma magnífica laje em calcário-brecha da serra da Arrábida que indicia muito bons contatos com as cortes de D. Manuel e D. João III. O instituidor, em testamento de 1517, menciona que a capela se encontra levantada e possui capelão privativo. Portanto, por essa data, haveria um altar, dotado, pelos finais do mesmo século, de pinturas óleo, pois ainda ostenta quatro tábuas muito semelhantes às de Michel de Coxcie que estão no altar fronteiro, sendo, assim, de data próxima a 1581. Com a reformulação do monumental retábulo do Senhor Jesus, a confraria de S.to António iniciou rapidamente os pedidos para reformular também o seu. A solicitação foi feita pelos mordomos da confraria ao rei, a 6 de fevereiro de 1697, alegando que o mesmo estava muito velho e citando, inclusivamente, a recente reforma do altar em frente. Logo na tarde de 20 de fevereiro desse ano de 1697, ainda antes de chegar a resposta de Lisboa, remetida apenas em 1700, a confraria procedeu à montagem de uma grade para suporte do futuro altar. Portanto, já tinha sido desmanchado o anterior e, muito provavelmente, os trabalhos de entalhamento do novo já tinham sido iniciados. No alto da grade estava, então, o pedreiro Teodósio Pestana, que se desequilibrou e caiu, salvando-se por ter conseguido agarrar-se à corta do lampadário que, com os seus 35 kg de prata, lhe amparou a queda. O sucedido foi logo considerado milagroso, embora só tenha vindo a ser registado alguns anos depois, em 1702, por ordem do bispo D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), o que proporcionou que chegasse aos nossos dias a constituição da equipa de entalhadores, carpinteiros e pedreiros. Nos autos, vieram a depor o mestre principal Manuel Pereira de Almeida, “mestre imaginário”, Agostinho de Almeida, oficial imaginário, João de França, oficial de carpinteiro, João Vieira, mestre pedreiro e Teodósio Pestana, o pedreiro que havia caído da grade (ANTT, Cabido..., mç. 4, doc. 20). O retábulo de S.to António repete quase formalmente o retábulo que se encontra em frente, com duas ordens arquitetónicas suportadas por dois pares de colunas, um remate com duplo frontão interrompido e óculo superior entalhado sobre a rosácea do transepto, e anjos idênticos, reclinados sobre as aletas, tudo em talha dourada. O trabalho de talha, no entanto, é muito mais relevado e profundo, especialmente nos entablamentos e nas colunas, já salomónicas e avançadas sobre mísulas, sendo o centro ocupado por um nicho fundo, rematado por par de colunas, que se prolongam em arcos concêntricos de volta perfeita, dentro do chamado barroco nacional ou barroco português, com a imagem monumental do orago, que deve ser de data muito aproximada à da reformulação do retábulo, 1697 a 1699, embora já existisse quando ocorreu a queda do pedreiro Teodósio Pestana e à mesma se atribuiu o milagre. Os meados do séc. XVIII corresponderam, um pouco por toda a Europa, ao recrudescimento da regulação e centralização do poder régio que, de certa forma, tentou ocupar um espaço, até então e em parte, ocupado pela Igreja. Num breve período de uma a duas décadas, a igreja madeirense deu a sua resposta, com a realização de uma reforma da própria imagem, montando uma ampla campanha de obras na sé, determinada pelo bispo D. José da Costa Torres (1741-1813), a partir de 1790, sob coordenação do cónego fabriqueiro João Paulo Berenguer, falecido em 1797, ao qual se seguiu o Cón. João Leandro Afonso e, depois, o Cón. Miguel Caetano Moniz e direção, por certo, do mestre das obras reais natural das Canárias, o já referido António Vila Vicêncio. [ Sé do Funchal. Vista Interior a partir do coro. Foto: BF A campanha envolveu a montagem do coro sobre a entrada, nessa altura, na fachada, foram abertos dois amplos janelões neogóticos e montado um pequeno varandim, e envolveu também a reformulação de parte das paredes laterais, então dotadas de novas portas, com portais exteriores neoclássicos, embora interiormente se tivessem mantido as pias de água benta manuelinas. O reforço das paredes exteriores das naves laterais foi feito para a montagem, no interior, dos altares das confrarias, emoldurados por arcos neogóticos, levantando-se ligeiramente o piso ao longo das naves para o serviço dos altares e limitando-se esse espaço por balaustradas de madeira torneada. Até então, os altares das confrarias encontravam-se todos montados no transepto, numa situação difícil de compreender, no nosso tempo; inclusivamente, dois deles tapavam parcialmente a entrada da capela-mor. O primeiro passo para a reforma do interior da sé foi a provisão episcopal de 18 de abril de 1792, extinguindo as antigas confrarias dos mesteres, incorporando os seus bens e encargos no património da fábrica da sé, acusando-as o bispo D. José da Costa Torres de irregular ou nula administração. A provisão episcopal, a breve trecho, não foi cumprida, pelo menos em algumas confrarias, tendo o prelado, por este e outros motivos, especialmente pela perseguição a prováveis elementos de lojas maçónicas e já estando eleito bispo de Elvas, sido embarcado compulsivamente para o continente. O primeiro altar a ser levantado nas naves laterais foi o da confraria de S. José dos Carpinteiros e Pedreiros do Funchal, que, ao longo do séc. XVII, conseguira parte dos proventos das pedreiras de Câmara de Lobos e, na segunda metade do séc. XVIII, ganhara um protagonismo muito especial, sob a direção da célebre morgada D. Guiomar Madalena de Sá Vasconcelos Bettencourt Machado Vilhena (1705-1798), a grande proprietária da Madeira nos últimos quartéis dessa centúria (Vilhena, D. Guiomar Madalena de Sá). A confraria de S. José, através do seu tesoureiro, o carpinteiro Manuel José de Freitas, a 25 de setembro de 1797, contratou o pintor Filipe Caetano da Trindade e Silva para “pôr um altar completo e acabado de tudo que preciso seja para a mesma obra, segundo o risco que tem em seu poder”, dado “bem entendido que é de carpinteiro, e entalhador, e pintor” (ACSF, Livro de Eleições..., fls. 58-59). O altar era para estar concluído a 1 de março de 1798, dando o tesoureiro a madeira e o ouro necessários; o pagamento devia ser faseado por três prestações, remetendo-se a última para quando o altar estivesse assente. O altar seguinte foi levantado na nave em frente, sendo o contrato de 14 de novembro de 1797 celebrado entre o sargento-mor de milícias do regimento da Calheta, Agostinho Domingos de Gusmão, tesoureiro da confraria de S.ta Ana e S. Joaquim, o pintor Filipe Caetano da Trindade, o entalhador João da Câmara Sá e o carpinteiro José Rodrigues Gonçalves, para construírem o novo altar. O pintor Filipe Caetano ficou responsável por dirigir a obra, fornecer todas as “plantas e riscos” que fossem necessários ao carpinteiro e ao entalhador, ficando obrigado a dourar e pintar o altar no final do trabalho do entalhador, referindo-se o mesmo como idêntico ao “que se está fazendo para o altar de S. José da mesma catedral”, igualmente a cargo deste mesmo pintor e dourador (ARM, Registos Notariais, liv. 1072, fls. 13v.-15v.). Os altares das naves laterais da Sé do Funchal, mais tarde colocados no lado Evangelho, o primeiro dedicado às Almas, o segundo a N.ª Sr.ª da Conceição, S.ta Ana e S. Joaquim, e o terceiro ao Senhor do Milagre, imagem vinda do extinto convento de S. Francisco, apresentam, sensivelmente, um desenho geral similar. O mesmo acontece com os altares do lado da Epístola, onde se evoca N.ª Sr.ª de Fátima, mas que, anteriormente, terá sido de N.ª Sr.ª do Rosário, imagem de pequena dimensão, provavelmente, então transferida para o altar contíguo, de S. José; o mesmo se passou com o de S. Miguel Arcanjo. Para além de algumas variações cromáticas dos efeitos de marmoreados, os altares revelam apenas pequenas diferenças nos pormenores decorativos. No altar de S. José existe um excecional frontal de prata, que seria também da confraria de N.ª Sr.ª do Rosário. A confirmar-se essa hipótese, a peça terá sido mandada fazer pela confraria, em 1724, ao prateiro Faustino de Araújo Feio, estando pronta no início de 1725. No Funchal, terão existido quatro ou cinco frontais de prata, na igreja do colégio dos Jesuítas e na sé, mas terá subsistido apenas este. No entanto, todos os retábulos das naves laterais, tal como os das restantes capelas, ainda apresentam, no começo do séc. XXI, os seus lampadários de prata, sendo os expostos nestas naves dos meados e finais do séc. XVIII. O último altar do lado do Evangelho apresenta a célebre imagem do Senhor do Milagre (milagre feito perante Helena Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, a 26 de dezembro de 1482), proveniente do extinto convento de S. Francisco, de onde veio com o seu diadema e o lampadário de prata, a 11 de março de 1835, por requisição do cabido da sé. Em frente ao retábulo do Senhor do Milagre e adossado à última coluna da nave, encontra-se o púlpito da sé, em calcário brecha da serra da Arrábida, como outras peças já referidas. Apresenta uma interessante caixa cilíndrica decorada com ligeiro relevado helicoidal, assente em coluna de fuste hexagonal, também com decoração helicoidal, sendo a base constituída por seis meias-moedas. Tudo leva a crer que é obra das oficinas régias de Setúbal, existindo, aliás, na igreja de Jesus, um púlpito idêntico, embora de menores dimensões, mas igualmente de grande qualidade formal. O acesso é feito por escada exterior, de cantaria regional, pintada a imitar o calcário-brecha da Arrábida e, na caixa das escadas, encontra-se uma carranca com uma cabeça de homem de cabelos compridos e barrete, tradicionalmente identificado como o mestre das obras reais Pêro Anes e, inferiormente, uma cabeça de Diabo. Os anexos principais da Sé do Funchal foram reformulados nos inícios do séc. XVIII, tendo sido reconstruídas as velhas instalações do cabido e, totalmente de raiz, a sacristia nova da sé. O autor da obra da sacristia nova e do edifício cabido da sé, provavelmente a mais importante da sua época, foi o mestre das obras reais Diogo Filipe Garcês, que servia este ofício desde 1727. O projeto primitivo data de 8 de novembro de 1732, envolvendo, entre outros, as obras de pedreiro da “casa dos lavatórios”; abrir a passagem da capela do Amparo e levantar o altar com balaustradas (ANTT, Provedoria..., liv. 971, fls. 5v.-6). Este projeto foi, depois, francamente ampliado, refazendo-se toda a antiga “casa do capelão” como “casa do cabido” (Id., Ibid., liv. 396, fls. 5v.-6 e 8), sendo assinado por Diogo Filipe Garcês e João António de França, respetivamente, como responsáveis pelas obras de pedreiro e de carpinteiro, tendo a autorização do conselho da Fazenda a data de 16 de março de 1733. A arrematação da obra, com data de 26 de setembro, foi feita por João António de França e João Moniz de Abreu, sucedendo este último a Diogo Filipe Garcês como mestre das obras reais da Madeira; o contrato da mesma data de 26 de outubro de 1734. O edifício do cabido ficou com dois pisos, um de arrecadações e serviços, não só para o cabido, mas também para as confrarias, com janelas gradeadas e, por cima, com uma larga fiada de sete janelas de sacada altas e com varandas de ferro forjado, definindo uma ampla e austera frontaria para as então casas da Câmara. Para o lado do mar, ainda apresenta outra janela de sacada idêntica, mas com uma varanda muito mais larga, que ocupa todo o corpo. As instalações do cabido eram e são no andar superior do edifício, piso constituído, essencialmente, por duas grandes salas, sendo a de reuniões para norte, coberta por um teto em caixotão e, mais tarde, dotada com a coleção de retratos dos bispos do Funchal. A sacristia da sé apresenta cobertura em caixotão, assente em trompas laterais concheadas, tudo, aparentemente, em estuque pintado. As paredes laterais são ocupadas por armários paramenteiros monumentais, com alçados decorados por réguas de talha vazada e remates entalhados com florões, obra da oficina dos entalhadores Manuel Pereira de Almeida e Julião Fernandes Ferreira, dos Açores, que foram pagos ao longo dos dois anos seguintes, ou seja, 1735 e 1736. A parede frontal está ocupada por um altar, dentro da mesma gramática decorativa, com a imagem de S. Gregório pintada a óleo sobre tela que assenta numa moldura que é o prolongamento do alçado dos armários paramenteiros e sendo enquadrado pelos armários de parede dos amitos, vestes utilizadas na liturgia. Para a sacristia veio a ser transferida, no séc. XVIII, a tábua central do retábulo de N.ª Sr.ª do Rosário, quando, nos finais da centúria, se desmancharam os altares das confrarias e os remontaram nas naves laterais. A sacristia era antecedida de uma outra sala, onde estavam os dois lavatórios, que já vinham discriminados no primeiro projeto da autoria do mestre pedreiro Diogo Filipe Garcês, então orçamentados em 50.000 réis cada. No entanto, parece-nos uma verba francamente baixa para a obra existente, ou que existiu, pois estes dois lavatórios foram “restaurados” nos anos 50 do séc. XX, tendo ficado somente um na sé e tendo o outro passado para a igreja matriz de S.ta Luzia. O trabalho que chegou até nós é de uma das boas oficinas de Lisboa da época e, por certo, foi muito mais caro do que a verba prevista. Resta acrescentar que, com a reforma dos meados do séc. XVIII, foram executadas uma série de pinturas, que terão contado com o trabalho em parceria de António Vila Vicêncio e o seu cunhado José António da Costa, devendo datar dessa época os frescos da casa dos lavabos. Com as obras da Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), nos meados do séc. XX, esse compartimento foi demolido, acabando por se perder os frescos, de que só resta um vago apontamento da Expulsão do Paraíso. O conjunto edificado da sé foi alvo de uma importante campanha de obras na déc. de 50 do séc. XX, como já sugerimos. Nessa ocasião, foram eliminadas as enormes janelas neogóticas da fachada e o varandim; gradeou-se de novo o adro e eliminaram-se algumas das construção encostadas à torre, à sacristia nova e, inclusivamente, às absides. Nos finais do século, dentro da mesma linha, recuperou-se a pintura da abóbada da capela-mor, reabilitou-se o retábulo do Bom Jesus e limpou-se a talha da capela do Santíssimo. Entre 1997 e 2003, efetuou-se o estudo do estado de degradação e do tipo de alterações da pedra vulcânica utilizada na sé, numa parceria entre a Direção Regional dos Assuntos Culturais (DRAC), hoje Direção Regional da Cultura (DRC), e a antiga DGEMN, procedendo-se ainda à revisão das estruturas de amarração dos tetos; destes trabalhos resultou um dossiê, publicado na revista Monumentos daquela direção geral, em 2003. Sé do Funchal, 2007. Foto: Wikimedia Commons Nos primeiros anos do séc. XXI, numa ampla parceria entre a Diocese, o Governo Regional e a World Monuments Fund – Portugal, através de um protocolo assinado a 7 de agosto de 2011, iniciaram-se vários trabalhos, visando o restauro e a conservação da sé. Estes envolveram a intervenção no retábulo-mor e no cadeiral, realizada por técnicos do Laboratório de Conservação e Restauro José de Figueiredo e do Departamento de Conservação e Restauro do Instituto dos Museus e da Conservação, em colaboração com o Laboratório HERCULES, da Universidade de Évora. Os resultados foram apresentados em junho de 2014, já tendo sido perante este retábulo restaurado que, a 21 de setembro do mesmo ano, se celebrou a missa comemorativa do encerramento do congresso internacional dos 500 anos da diocese do Funchal, “A primeira diocese global – História, Cultura e Espiritualidade”, como lembra o subtítulo do encontro.   Rui Carita (atualizado a 30.12.2017)

Arquitetura Património História Política e Institucional Religiões

grupo de folclore da casa do povo de gaula

O Grupo de Folclore da Casa do Povo de Gaula foi fundado a 16 de setembro de 1978 e tem por objetivo principal divulgar e preservar as tradições da sua terra, através das danças, dos cantares, dos trajes, da reconstituição de costumes e de atividades culturais. Conta com uma intensa atividade, com atuações diversas em festas tradicionais, arraiais e vários eventos culturais, e com a participação em festivais e encontros de folclore. Dos seus registos musicais fazem parte a edição de dois CD (2009 e 2015) e a participação, com o tema “Chama-Rita de Gaula”, no DVD O Melhor do Folclore da Madeira (2014). Palavras-chave: folclore; trajes; música; dança; tradições populares.   O Grupo de Folclore da Casa do Povo de Gaula foi fundado a 16 de setembro de 1978, por alturas da festa de N.ª Sr.ª da Luz, padroeira da freguesia de Gaula. A iniciativa de formar um grupo de folclore partiu de um conjunto de jovens, com o apoio do P.e Alfredo Aires de Freitas. Chamava-se “Grupo de Folclore de Gaula”. Em 1987, passa a denominar-se “Grupo de Folclore da Casa do Povo de Gaula”, ao integrar a Casa do Povo de Gaula, recentemente constituída. De 1987 até 2013, o Grupo foi dirigido por M.a de Fátima Vieira Quintal, substituída depois por Manuel Sena, que assume a liderança em 2014. Na sua formação inicial, contava com cerca de 25 elementos, número que foi aumentando ao longo dos anos, até chegar a cerca de 40 elementos em fevereiro de 2016. As suas idades variam entre os 4 e os 64 anos, predominando a faixa etária dos 15 aos 30 anos. O Grupo de Folclore da Casa do Povo de Gaula tem como principal objetivo divulgar e preservar as tradições locais, através das danças, dos cantares, dos trajes e da reconstituição de costumes. Gaula é uma freguesia pertencente ao concelho de Santa Cruz e foi fundada a 13 de setembro de 1509. Supõe-se que a origem do seu nome possa estar associada às novelas de cavalaria que têm como protagonista a figura de Amadis de Gaula. Gaula é conhecida por ser a freguesia dos adelos e das amoras. Antigamente, existiam muitos homens, conhecidos por “adelos”, que se dedicavam ao comércio ambulante, vendendo a crédito pelas freguesias da Madeira, e que eram provenientes de Gaula. Os adelos vendiam, principalmente, tecidos (a metro), mercadoria que já se comercializava na Ilha nos princípios do séc. XVII. Eram tidos como homens bem-educados, bem-falantes e bem vestidos. O seu traje típico é constituído por camisa branca, casaco e chapéu escuros e botas chãs. Além da figura do adelo, característica da freguesia, o Grupo Folclórico da Casa do Povo de Gaula procura representar, na sua indumentária, a variedade cultural típica da sua terra, e testemunhar a vivência dos seus antigos habitantes. Assim, apresenta o “traje de trabalho”, o “traje de cote” (quotidiano), o “traje de romaria” e o “traje domingueiro”, em uso desde o séc. XVIII até princípios do séc. XX, algo que resulta de investigações em livros e gravuras e de recolhas orais junto dos residentes mais idosos da localidade. No traje feminino, sobressaem as saias compridas, listadas ou de cor única. As saias listadas apresentam várias cores: fundo vermelho, com listas de cor verde, amarela e azul (o típico padrão madeirense); verde e branca; castanha e laranja; preta e branca; branca e castanha. As saias compridas de cor única apresentam também cores variadas, podendo ser de tonalidade castanha, vermelha, cor de vinho, branca, rosa, amarela ou ainda preta. Algumas saias lisas têm um ornamento de outra cor na roda, como a saia de cor castanha, debruada a vermelho, ou a saia vermelha, com um apontamento branco. As saias compridas, listadas ou de cor única, são acompanhadas por blusas brancas, abotoadas à frente, junto ao pescoço, com botões dourados, e por coletes, vermelhos ou pretos, bordados. Alguns elementos femininos usam uma capa, que pode ser vermelha, preta ou amarela. A indumentária complementa-se com um ornamento para a cabeça, a carapuça feita em lã, de cor azul, forrada a vermelho, ou vermelha, debruada a azul. Algumas mulheres também usam um lenço branco, por baixo da carapuça, designado popularmente por “cobre nuca” ou “toalha de cabeça”, sendo este o acessório que diferenciava as casadas das solteiras. Os trajes femininos mais simples são compostos de saias compridas de cor única, acompanhadas de blusas com motivos florais e um lenço na cabeça. No traje masculino, imperam as cores escuras ou o branco (em fatos de linho ou de seriguilha). Os homens vestem: calças pretas e colete preto; calção e colete preto; calças brancas e colete preto ou casaco preto; e ainda calção branco largo, com franzido sobre o joelho. A indumentária masculina completa-se com camisa branca em todas as variantes do traje. Na cabeça, os homens usam carapuça azul, chapéu preto ou barrete de orelhas feito com lã de ovelha. Homens e mulheres usam a tradicional bota chã, confecionada com pele de cabra e sola em pele de vaca, nos modelos masculino e feminino (com uma tira vermelha à volta do cano, no caso das mulheres). Como adereços, o grupo ostenta um cesto de bordado, uma cesta de almoço, um garrafão de cinco litros, uma banheira da lavadeira, um aguador e uma foice. A atividade do Grupo Folclórico da Casa do Povo de Gaula tem sido profícua e variada. Na Madeira, regista-se a sua presença em arraiais e em festas tradicionais e religiosas, como nos cantares dos Reis, nas visitas do Espírito Santo, nas missas do parto, nos cantares de Natal, nas festas de Santo Amaro, em Santa Cruz, e nas festas de Natal e fim de ano, no Funchal. Tem participado em diversos eventos culturais realizados na Ilha, como a Festa da Castanha e o Arraial da Ginja, no Curral das Freiras, a Feira das Sopas do Campo, em Boaventura, a Festa da Cebola, no Caniço, a Expo Madeira, no Funchal, entre muitas outras comemorações e festas populares. O Grupo conta também com atuações em unidades hoteleiras e em restaurantes madeirenses, onde usa, sobretudo, o traje típico madeirense, mais conhecido pelo turista. A participação em festivais e encontros de folclore, regionais e nacionais, tem sido uma constante na dinâmica do Grupo, proporcionando-se intercâmbios culturais com outros agrupamentos de folclore e etnográficos. Na Madeira, além da presença regular no Festival Regional de Folclore, destaca-se, em agosto de 2004, a atuação na IV Gala Internacional de Etnografia e Folclore Manuel Ferreira Pio, realizada no Monte, Funchal, que contou também com a participação de grupos de fora da Ilha, v.g., o Grupo Amigos de Punta Rasca (Canárias) e o Grupo Dr. Gonçalo Sampaio (Braga). No âmbito nacional, destacam-se as suas representações em intercâmbios culturais, com os seguintes grupos: Grupo Folclórico e Etnográfico de Fermentelos, em Aveiro (1995 e 2001); Rancho Folclórico “Podas e Vindimas”, em Arruda dos Vinhos (1996); Rancho Folclórico “Os Rurais”, de Água Derramada, no concelho de Grândola, distrito de Setúbal (1997); Grupo Folclórico e Etnográfico de Corredoura, em Guimarães (1998); Grupo de Folclore da Relva, em São Miguel, Açores (1999); e Grupo Folclórico de Fajarda, em Santarém (2002). O Grupo Folclórico da Casa do Povo de Gaula, em colaboração com iniciativas da Junta de Freguesia de Gaula, recriou antigas tradições da freguesia, e.g., em 2011, a representação “Levar Comer aos Hômes”, uma tarefa do quotidiano de Gaula, dos anos 50 e 60 do séc. XX, e, em 2013, a “Reconstituição Histórica de Lavar Roupa nos Lavadouros dos Anos 60 do Século XX”, ambas integradas nas festas da freguesia de Gaula. Do seu repertório musical fazem parte bailados e canções recolhidos na localidade – destacando-se o “Chama-Rita de Gaula”, um dos bailados mais antigos da freguesia, executado em roda, e que apresenta características mouriscas –, bem como temas comuns à ilha da Madeira. Os instrumentos musicais do Grupo incluem os cordofones tradicionais madeirenses (viola de arame, braguinha e rajão), tréculas, ferrinhos, brinquinho, bombo, reco-reco, pandeireta, violino e acordeão. Em 2009, contribuíram para o engrandecimento do acervo musical do folclore madeirense, com a edição do seu primeiro CD, composto de 14 peças musicais, nomeadamente “Brinco de Oito”, “ABC do Amor”, “Chama-Rita”, “Pum-pum, Dá-lhe, Dá-lhe”, “Cantiga dos Reis”, “Bate Viradinho ao Chão”, “Mourisca”, “Os Dez Mandamentos”, “Homenagem ao Sr. Marino Marujo (Mourisca)”, “O Paspalhão”, “Dona Alberta”, “Menina Que Sabe Ler”, “Vamos Saltar ao Pau” e “Minha Terra é a Madeira”. Em setembro de 2015, lançaram o segundo CD (no âmbito das comemorações do seu 37.º aniversário e do arraial de N.ª Sr.ª da Luz), composto de 14 temas, alguns dos quais já editados no primeiro. A título coletivo participam, em 2014, com o tema “Chama-Rita de Gaula”, no DVD O Melhor do Folclore da Madeira, um projeto da Secretaria Regional da Cultura, Turismo e Transportes, que juntou 14 grupos folclóricos madeirenses.   Sílvia Gomes (atualizado a 13.12.2017)

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