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bowdich, thomas edward

Thomas Edward Bowdich, escritor e viajante inglês, nasceu em Bristol a 20 de junho de 1791 e faleceu em Banjul, capital da Gâmbia, a 10 de janeiro de 1824. Na sua juventude estudou em escolas públicas em Bristol, demonstrando maior inclinação para as letras do que para as ciências. Inicialmente pensou em seguir advocacia, mas seu pai, fabricante de chapéus e comerciante, colocou-o como sócio na firma. Em 1813 casou-se com Sarah Wallis, com a qual partilhava o interesse pela natureza, as viagens e a aventura. Inscreveu-se ainda em Oxford, mas não concluiu os estudos aí. Em 1814 conseguiu um lugar de escriturário na Royal African Company e partiu para a cidade de Cabo Corso, no Gana. Em 1816 integrou uma missão, que acabou por chefiar, ao Império Asante na Costa do Ouro, tendo obtido um acordo com o Rei no qual se assegurava a paz e se preservavam os interesses ingleses na região. Regressado a Inglaterra em 1818, Bowdich denunciou a corrupção e a ineficiência na Royal African Company. Mudou-se, dois anos depois, para Paris, onde estudou matemática, física e história natural. Aí tornou-se íntimo do barão Georges Cuvier, assim como de Alexander von Humboldt e outros eminentes sábios, que o receberam muito bem e o ajudaram na consolidação da sua cultura científica. Durante a sua estada em Paris publicou diversos trabalhos científicos, incluindo de história natural. Ficou famoso o seu ensaio sobre as superstições, os costumes e as artes comuns aos egípcios, abissínios e asantes, que constitui o primeiro grande estudo da cultura e história da África ocidental. Em 1822 viajou com a mulher para Lisboa, onde esteve pouco mais de um mês, consultando aí arquivos públicos e privados, e escrevendo um trabalho sobre as descobertas dos Portugueses em Angola e Moçambique que viria a ser publicado em 1824. De Lisboa seguiu para o Funchal, onde chegou no dia 14 de outubro de 1822. Permaneceu na Madeira um ano, tendo sido hóspede do comerciante e cônsul inglês Henry Veitch. Efetuou várias viagens pela Ilha visitando também Porto Santo. Durante esta estadia, efetuou observações meteorológicas assim como colheitas de plantas e animais. Observou os costumes da população e anotou as suas impressões sobre a política e a sociedade madeirenses. Todas estas observações ficaram registadas numa obra cuja publicação se deveu à sua mulher, a qual também a ilustrou, sendo editada em 1825, um ano após a sua morte. Este trabalho inclui também listagens, ou simples referências, de plantas, insectos, moluscos, aves e peixes. Neste último caso, incluiu a descrição original do chicharro, Seriola picturata, posteriormente chamado Trachurus picturatus, com a respetiva ilustração, da autoria de sua mulher. Neste trabalho Bowdich denota um grande interesse pelas medições de temperatura, pressão, humidade relativa e altitude durante as suas excursões pela Madeira, uma característica que lhe foi sem dúvida incutida por Humboldt durante a sua estada em Paris. Embora detalhado na descrição e até ilustração de aspetos da geologia da Madeira e do Porto Santo, não soube contudo, interpretá-los e determinar a origem das ilhas, negando a sua origem vulcânica submarina. Contudo, esta e outras incorreções não desmerecem o valor desta obra, pela riqueza e diversidade de observações registadas, não só de âmbito natural, mas também cultural, social e político da Madeira do primeiro quartel do séc. XIX. Bowdich, a mulher e os três filhos deixaram a Madeira no dia 26 de outubro de 1823, num brigue americano, em direção a Cabo Verde, dada a inexistência de navios com destino à Serra Leoa, o objetivo desta sua terceira viagem a África. Em Cabo Verde, onde chegou por volta de 10 de novembro, fez observações idênticas às que tinha feito na Madeira na ilha da Boavista, onde permaneceu algumas semanas. Visitou ainda a ilha de Santiago durante um dia, tendo prosseguido para Banjul, à época Bathurst, na Gâmbia, onde chegou no início de dezembro de 1823. Aí iniciou de imediato um trabalho de colheita de plantas e animais e o levantamento topográfico da foz do rio Gâmbia. Atacado pelo paludismo, morreu no dia 10 de janeiro de 1824. Sarah Bowdich e os três filhos regressaram a Inglaterra e um ano depois da morte do marido foi publicado o livro sobre a sua derradeira viagem a África.     Obras de Thomas Edward Bowdich: Mission from Cape Coast Castle to Ashantee, with a Statistical Account of that Kingdom, and Geographical Notices of Other Parts of the Interior of Africa (1819); Essay on the Superstitions, Customs, and Arts Common to the Ancient Egyptians, Abyssinians, and Ashantees (1821); An Introduction to the Ornithology of Cuvier (1821); Elements of Conchology Including the Fossil Genera and the Animals (1822); An Account of the Discoveries of the Portuguese in the Interior of Angola and Mozambique (1824); Excursions in Madeira and Porto Santo (1825).   Manuel Biscoito (atualizado a 27.10.2017)

Biologia Marinha Ciências do Mar

borges, joão gonçalves

João Borges nasceu a 22 de setembro de 1922, na freguesia do Monte, concelho do Funchal, e faleceu nesta cidade a 26 de novembro de 2008. Empresário, desportista náutico e governante, destacou-se sobretudo nos sectores do turismo e do mar. A sua paixão pelo mar vem de muito novo quando, sendo asmático, encontra no mar alívio para a sua maleita. Ficaram célebres os seus mergulhos no Lido, pelo tempo que permanecia imerso. Foi pioneiro na caça submarina na Madeira, tendo ganho o primeiro lugar no primeiro concurso desta modalidade organizado pelo Clube Naval do Funchal, no Paul do Mar, em 27 de setembro de 1953. Foi também pioneiro no mergulho com escafandro autónomo, tendo acompanhado a equipa do Com. Cousteau (Cousteau, Jacques-Yves) durante a sua visita à Madeira em agosto de 1956. Em julho de 1966, acompanhou também os mergulhos do batiscafo francês Archimède na Madeira, tendo promovido uma conferência proferida no Funchal pelo Com. Georges Houot e pelo Eng. Henri-Germain Delauze, responsáveis pelo batiscafo. No plano associativo, pertenceu aos corpos dirigentes do Clube Naval do Funchal desde 1962 até 1988, tendo sido comodoro, vice-presidente e presidente da respetiva Assembleia-Geral. O entusiasmo pelo mar levou-o a interessar-se pela colónia de lobos marinhos, Monachus monachus, das ilhas Desertas, que nos anos 80 do séc. XX estiveram muito perto da extinção. Fruto deste interesse e das suas observações, participou na 1.ª Conferência Internacional sobre o Lobo Marinho, realizada em Rodes em 1978. Nesta apresentou uma comunicação intitulada “The monk seals of Madeira”, na qual deu conta da situação precária em que estes mamíferos marinhos se encontravam. Efetuou também várias deslocações às ilhas Selvagens, na companhia do seu amigo Paul Alexander Zino, tendo colaborado nos estudos das aves marinhas realizados por este ornitólogo amador. A sua capacidade de comunicação, as suas áreas de interesse e a fluência em línguas estrangeiras fizeram de João Borges um relações-públicas nato, levando-o a contactar com inúmeras personalidades que visitaram a Madeira. Em 1953, o realizador de cinema John Houston deslocou-se à Ilha para realizar algumas cenas do seu filme Moby Dick, tirando partido da existência, nessa época, de atividade baleeira. João Borges participa no filme, vestindo a pele de uma baleia branca. João Borges, na sua qualidade de “homem dos sete ofícios”, foi também um técnico de precisão muito conceituado, tendo fundado a relojoaria Big Ben em 1947, na então recentemente aberta Av. de Zarco. Na sua oficina, reparou muitos equipamentos náuticos de precisão, não só de desportistas locais, como também de iatistas que escalaram a Madeira. Esta sua aptidão levou-o a ser cronometrista de muitas provas náuticas, entre elas a Regata Oceânica Lisboa-Madeira, cuja primeira edição teve lugar em 1950. O seu talento para os contactos pessoais conduziu-o inevitavelmente ao sector do turismo. Assim, em 1969, ingressa na Delegação de Turismo da Madeira, ao lado de José Ribeiro de Andrade e António Bettencourt da Câmara, ficando responsável pelos sectores da promoção e das relações públicas. Torna-se assim o primeiro promotor oficial do turismo da Madeira, cargo que desempenhará por muitos anos, e que o levará aos principais países de onde são originários os turistas que visitam a Madeira. Na sequência da Revolução de 25 de abril de 1974, foi nomeado membro do Gabinete de Informação situado no Palácio de S. Lourenço e encarregado de dar informações aos jornalistas estrangeiros presentes, assessorando a primeira conferência de imprensa dada pelas novas autoridades no Funchal. Já na Direção Regional de Turismo, foi nomeado em 1981 diretor dos serviços de promoção, relações públicas e publicidade, e recebeu nesse ano o Golden Helm, galardão atribuído pela Associação Internacional de Relações Públicas. A 10 de janeiro de 1984, foi nomeado diretor regional de Turismo, cargo que ocupou até à sua aposentação, em 1992. A 18 de maio de 1986, o Governo regional da Madeira atribuiu-lhe a Medalha de Ouro de Mérito Turístico, e em 1987 recebeu a Medalha de Mérito Turístico instituída pela Associação Portuguesa das Agências de Viagem e Turismo, no decurso do seu XIII Congresso, em Marraquexe. Aquando da sua aposentação, os diretores dos centros de turismo de Portugal, reunidos no Funchal, homenagearam João Borges oferecendo-lhe uma placa na qual se lê a seguinte inscrição: “Ao ilustre embaixador da Madeira em todo o mundo, João Gonçalves Borges, como homenagem pelos relevantes serviços prestados ao turismo português”. A 10 de junho de 1993, é agraciado com o grau de comendador da Ordem de Mérito pelo Presidente da República, Mário Soares. João Borges foi casado com Deirdre Mary Isabella Shanks Borges, e teve dois filhos.   Obras de João Gonçalves Borges: “The Monk Seals of Madeira” (1978).   Manuel Biscoito (atualizado a 27.10.2017)

Biologia Marinha História Económica e Social Ciências do Mar

irmãos de s. joão de deus

Os Irmãos de S. João de Deus, fundados por volta de 1538-40, com a primeira aprovação papal em 1572 e a segunda em 1585, instituíram em Portugal e nas suas colónias, de 1606 a 1834, cerca de três dezenas de casas, a maior parte na área da saúde militar. Após 56 anos de ausência, regressaram a Portugal, em 1890, com duas fundações de curta duração, a par da casa de saúde do Telhal, referente à área da psiquiatria, fundada em 1893 por iniciativa de S. Bento Menni. D. Manuel Agostinho Barreto (bispo do Funchal entre 1876 e 1911) fez diligências, no início do séc. XX, para que os irmãos concedessem assistência aos alienados da Madeira, porquanto não havia resposta adequada nessa área. Com efeito, desde o início do séc. XVI até a meados do séc. XIX, não consta nenhum registo acerca de qualquer recurso assistencial para alienados. Só em 1848 o hospital da Misericórdia dispôs de alguns quartos seguros para loucos os quais devem ser separados das outras enfermarias, porém, sem as mínimas condições assistenciais. As diligências deste bispo continuaram mesmo após a criação do manicómio Câmara Pestana (1906), tendo ido ao Funchal, em 1908, os Irs. Cosme Millan, superior do Telhal, e o P.e Augusto Carreto, mestre de noviços, com esperança de receber a doação da Qt. do Trapiche para esse fim. Perante as dificuldades levantadas pelo clima político maçónico, a proprietária desistiu da doação e a fundação desejada por D. Manuel Agostinho Barreto ficou adiada. Em 1920, o presidente da Junta Geral do Funchal, Vasco Gonçalves Marques, visitou, por incumbência da própria Junta, as casas de saúde do Telhal e da Idanha e diligenciou a vinda dos irmãos para administrarem o manicómio Câmara Pestana e remediarem as suas grandes deficiências. No entanto, a fação maçónica, na reunião tumultuosa de 28 de maio de 1920 da Junta Geral, não o permitiu. D. António Manuel Pereira Ribeiro providenciou, então, a vinda dos irmãos propondo que se estabelecessem na Qt. do Trapiche, agora entregue pela proprietária à Diocese. O Ir. Elias de Almeida escreve, a 31 de maio de 1921, do Telhal a sugerir ao bispo que escreva ao provincial em Madrid a manifestar esse desejo, dizendo, igualmente, que a quinta estará à disposição para a fundação de um manicómio. Assim, os superiores maiores teriam conhecimento do pedido do bispo da Diocese. No Arquivo Histórico da Diocese do Funchal (Arquivo dos Bispos, Religiosos de S. João de Deus, D. António Manuel Pereira Ribeiro), existe a minuta da resposta de D. António, datada de 11 de agosto de 1921, relatando a doença e a confusão da dona da Qt. do Trapiche e o seu testamento indefinido em favor de três herdeiros. Por só haver nomeado oralmente um procurador, deixava a quinta à mercê das criadas que já nem a chave de uma das casas quiseram entregar ao bispo, como antes acontecera. Assim, concluía que, logo que as casas do Trapiche estivessem em poder da Diocese, as poria à disposição dos irmãos, dotando-a, desta forma, de tão excelente obra de caridade: o manicómio. A 7 de fevereiro de 1922, o Ir. Manuel Maria Gonçalves e o Ir. António Maria Rodrigues, madeirense, chegaram ao Funchal no vapor português África, para iniciar a obra, vindo sob o pretexto de fazer um peditório para a casa de saúde do Telhal e, assim, não exacerbar as oposições hostis. Esses dois irmãos escrevem e assinam uma longa carta, a segunda datada do dia 26, como dizem no início, com o ponto da situação. Foram cumprimentar o Dr. João de Almada, um dos obreiros da vinda dos irmãos, e este lamentou não perceber por que razão não tinha recebido resposta “às suas cartas” que iam no mesmo sentido. Contam a seguir que a proprietária da Qt. do Trapiche se encontrava muito doente, mas que o Cón. Homem de Gouveia teria a sua procuração oral, e o advogado sugeriu que podiam fazer imediatamente o arrendamento da quinta e tomar conta dela, antes que a proprietária falecesse, sendo preciso fazer outras diligências legais. Tendo-se chegado a um acordo, o arrendamento foi feito no mesmo dia em que escrevem, dia 26. No dia 1 de julho de 1922, já o provincial Fr. Juan de Jesus Adradas pedia, na sua carta, licença ao bispo para o estabelecimento da comunidade canónica na quinta da Diocese. No arquivo da OHSJD da Província (Lisboa) encontra-se a provisão de D. António, datada de 11 de agosto de 1922, concedendo a licença para a edificação canónica da comunidade: “E agradecemos à Providência Divina o grande benefício que por esta forma concede à nossa Diocese, do Céu impetramos sobre a nova Comunidade toda a sorte bençãos” (AOHSJD, Lisboa, mç. Funchal, carta de 11 ago. 1922 de D. António Manuel Pereira Ribeiro). Como remate deste processo, a Santa Sé envia, a 10 de outubro de 1922, o rescrito da edificação canónica. A casa compreendia o estatuto canónico de comunidade, enquanto obra apostólica da Igreja Católica, e inseria-se no país como instituição de beneficência sujeita às leis civis da época. Assim sendo, os Irmãos Hospitaleiros de S. João de Deus surgem como uma comunidade canónica da Província com sede em Ciempozuelos (Madrid), aprovada pelo bispo diocesano, pela Santa Sé e pelo superior geral. Esta iniciativa teve origem na Província da Ordem de Espanha, Portugal e México. Neste período eram ilegais os institutos religiosos, pelo que os irmãos, para cobertura jurídica das atividades de assistência, procederam à criação de duas entidades civis: a associação dos Irmãos de S. João de Deus, com estatutos aprovados pelo Governo Civil a 4 de agosto de 1923, para gerir as atividades, e a sociedade de responsabilidade limitada União Familiar como proprietária da casa. Com efeito, a casa de saúde do Trapiche ia funcionar como instituição legal de beneficência, administrada pela associação dos Irmãos S. João de Deus. A partir de 5 de junho de 1924, inscrevem-se como membros 12 irmãos e 14 leigos, entre os quais o Cón. António Homem de Gouveia e o Dr. João Francisco de Almada. Os estatutos da associação definiam, no art. 2.º, a sua finalidade: “destina-se a prestar a sua caritativa assistência a pessoas do sexo masculino, pobres e pensionistas, atacados de alienação mental ou de qualquer outra enfermidade, sem excluir as contagiosas, assim como a meninos raquíticos, escrofulosos, aleijados, etc. Esta [Qt. do Trapiche] é a única que a associação atualmente administra” (AOHSJD, Lisboa, mç. Funchal, art. 2.º, 30 maio 1928, ou art. 4.º, 9 jun. 1929). O art. 2.º desta revisão diz: “A sua sede é na Quinta que atualmente se denomina do ‘Trapiche’ [...] onde terá em propriedade alheia uma Casa de Saúde cujos fins vão indicados no art. 4”. Esta revisão de novos estatutos consta de nove capítulos e 61 artigos. A aprovação do Governo Civil, datada de 4 setembro de 1929, estabelece que tem de submeter à aprovação os orçamentos e contas. A criação da sociedade União Familiar de responsabilidade limitada como proprietária explica a expressão acima “em propriedade alheia”, a qual corresponde à realidade. Só no capítulo conventual, de 14 de julho de 1929, se decidiu fazer o contrato com o bispo para comprar à Diocese a Qt. da Capela (das Rosas), a pagar no prazo de 15 anos e, posteriormente, com a aplicação de juros de 6 %. Só nessa data a propriedade foi posta no nome da União Familiar, constituída em 26 de agosto de 1924, sendo, na reunião de 6 de novembro de 1924, em assembleia geral, decidida a sua existência por 10 anos, prolongáveis por períodos sucessivos de 10 anos. A União Familiar tornou-se, então, proprietária da casa do Trapiche e da casa de saúde de S. Rafael, em Angra de Heroísmo, sendo as ações da sociedade vendidas a pessoas de confiança para poder funcionar. Em 1940, realizou-se mais uma assembleia geral da União Familiar, com ata de 9 de agosto de 1940, para deliberar sobre a transferência dos bens (S. Rafael em Angra do Heroísmo e Trapiche) para a Província Portuguesa da Ordem Hospitaleira de S. João de Deus (OHSJD), agora reconhecida civilmente em virtude da concordata entre Portugal e a Santa Sé. A escritura de transferência no notário data de 18 de agosto de 1941. Os n.os 1, 2 e 3 elencam os bens de S. Rafael, de Vinha Brava e de Santa Luzia, em Angra do Heroísmo; os n.os 4 e 5 descrevem as propriedades do Trapiche. Completado o processo de transferência da propriedade da casa para a Província, aquela começou a funcionar num novo regime jurídico, que assume, ainda, uma nova configuração a partir do momento em que a Província foi reconhecida como corporação missionária e enviou os primeiros irmãos para as missões de Moçambique, em 1943 e em 1944, para prestar assistência a doentes mentais e leprosos. A casa do Trapiche figurava, então, como casa de repouso dos irmãos missionários quando viessem a Portugal. A Província ficaria agora proprietária das casas de saúde que constituíam o seu património, bem como gestora das que lhe eram confiadas, situação que só viria a ser alterada em 16 de novembro de 1977, com a criação do Instituto S. João de Deus para gerir as casas de saúde situadas no território nacional. Voltava-se, assim, a separar juridicamente a propriedade da sua gestão da ação assistencial. O Ir. Manuel Maria Gonçalves relata, em meados de abril de 1924, o sucesso do tratamento de um passageiro da carreira Lisboa-Funchal-África do Sul, internado na casa, sendo que o utente, antes de seguir viagem, agradeceu a sua cura de um mês num jornal local. Este facto terá facilitado a colaboração entre a casa e as autoridades. Com efeito, apesar da agitação ocorrida na Junta Geral, em maio de 1924, sobre a proposta da transferência dos doentes para o Trapiche, como diz Fernando Augusto da Silva (SILVA, 1929, 203-204), aquela realizou um contrato para a transferência e para a assistência dos alienados do sexo masculino do manicómio Câmara Pestana para a casa de saúde do Trapiche no dia 20 e, no dia 21, já contavam com 38 entradas. As razões ventiladas na Junta Geral eram, diz aquele autor, “a insuficiência da enfermagem, o acanhado das instalações e o tratamento brutal e desumano prestado aos doentes, e ainda os escândalos de toda a ordem que se davam dentro daquela Bastilha” (Ibid.). Segundo Fernando Augusto da Silva, esta decisão foi conseguida por Domingos Reis Costa, apoiado por Vasco Gonçalves Marques, presidente da Junta Geral. O contrato, assinado no dia 20, estipulava como mensalidade a ser paga pela Junta o valor de 200$00. A inauguração oficial da casa realizou-se no dia 10 de agosto de 1924, por ocasião da segunda visita do provincial, Ir. Juan Jesus Adradas, que celebrou a missa festiva, tendo a pregação do evangelho ficado a cargo do bispo, D. António Manuel Pereira Ribeiro. A celebração contou ainda com a presença de numerosos sacerdotes, religiosos, amigos, bem como de toda a comunidade dos irmãos. Da inauguração solene da casa, lavrou-se e assinou-se uma ata. Entre os presentes, estava o maior entusiasta da vinda dos irmãos para a Madeira, o Dr. João Francisco de Almada. Os primeiros tempos foram muito difíceis e só suplantados graças à generosa intervenção da população local, que foi incansável e não poupou esforços para que o serviço de assistência aos doentes mais necessitados da Madeira se tornasse um sucesso, lento, mas continuado. Exemplificando: basta dizer que à quinta não chegava caminho que permitisse transporte de materiais, pelo que foi preciso transportar tudo às costas nos primeiros tempos e até alguns doentes incapazes de andar. Os vizinhos foram generosos em géneros e serviços, ajudando a transportar diversos materiais e a abrir estradas. Os madeirenses desdobraram-se e multiplicaram-se em dons de amor e de dedicação ao ponto de iniciarem as frequentes “romagens” de cortejos de ofertas e donativos e, mais tarde, as visitas aos presépios da casa e as romagens do dia de reis (epifania). Em 1926, a casa, em conjunto com o Telhal, começou a fazer parte da Delegação Geral da Ordem de Portugal, deixando de depender da Província da Ordem de Espanha, Portugal e México. Ao começarem as novas construções nesta casa, a Delegação Geral de Portugal passou a ser Província, integrando as casas de Angra do Heroísmo, de Barcelos e de Ponta Delgada. Em junho de 1928, o Capítulo Provincial elege o Ir. Júlio dos Santos como primeiro provincial. Pelo Livro de Família (AOHSJD, Funchal), em que são registados, entre outros dados, o nome, a filiação, os dias de chegada e de saída da casa, bem como as assinaturas das atas dos capítulos conventuais, podemos seguir as chegadas, as partidas e o aumento dos Irmãos. Os doentes aumentavam rapidamente, sendo, em março de 1927, já 82. Neste mesmo ano, integraram a comunidade os Irs. Salvador Marques, António Francisco P. Gouveia e Francisco Camacho (Diamantino Esteves), e, em 17 de julho, o Ir. José da Natividade (José Gameiro). Tal como noutras casas da Província, observaram-se três factos paralelos também nesta fundação: o acolhimento e a assistência a doentes pobres, na sua maioria; a existência de irmãos que, à maneira de S. João de Deus, se tornaram esmoleiros, entre as populações das cidades e do campo, para recolherem ofertas e promoverem uma assistência de qualidade; por fim, a divulgação, pelas comunidades paroquiais e pelas famílias cristãs, da obra apostólica a favor dos pobres que suscitava candidatos desejosos de se tornarem irmãos. Com efeito, a comunidade do Funchal tornou-se um viveiro de vocações, teve aspirantado para acolhimento, discernimento e formação dos candidatos admitidos, pelo qual passaram numerosos jovens madeirenses até darem entrada no postulantado e no noviciado do Telhal. Registe-se que, em 1907, por ocasião dos primeiros contactos de irmãos esmoleiros na Madeira, o jovem António Maria Rodrigues do Nascimento (Machico, 1881-1947) pediu para ser Irmão de S. João de Deus, tendo, em 1922, participado no arrendamento da Qt. do Trapiche já nessa condição. Nos 90 primeiros anos da casa, contam-se 52 rapazes madeirenses que se iniciariam no discernimento vocacional e na vida consagrada na Qt. do Trapiche. Destes, 20 são do Funchal, 12 de Câmara de Lobos, nove de Santana, quatro de S. Vicente e um de cada um dos concelhos restantes: 38 foram noviços, 31 fizeram a profissão temporária e 16 a solene. Deixamos algumas notas sobre estes 17 membros. Em 1925, entraram na OHSJD Leonardo Ferreira, de Câmara de Lobos, e David Freitas Capelo (1912-1965), de Santo António. Este último foi sacerdote na Ordem e missionário entre os leprosos em Moçambique. Em 1926, entrou o Ir. António Gonçalves de Jesus (1910-1939) de Câmara de Lobos. O Ir. António de Freitas Bárbara do Faial (Santana) entrou em 1927 e foi, durante muitos anos, esmoleiro por Portugal inteiro para que o hospital de S. João de Deus, Montemor-o-Novo, pudesse tratar crianças pobres, oriundas de todo o país, incluindo da Madeira e dos Açores. De Santo António, lembramos ainda: o Ir. José Gonçalves Lucas, que veio a falecer de acidente, em 1985, no hospital de S. João de Deus em Divinópolis (Brasil), com fama de santidade, e Augusto Arnaldo Neves, que entrou em 1935 e foi superior em várias casas. Na déc. de 40, entraram os madeirenses Manuel Joaquim Matos, António Arlindo Fernandes Figueira e Vasco Thiago Nunes Quental. Este último, antes de entrar na Ordem, foi sócio da União Familiar, criada pelos irmãos como proprietária legal de toda a casa. O Ir. Manuel Fernandes Pimenta (Boliqueime), que entrou no aspirantado do Telhal, onde professou, teve ação notável nesta casa como superior/diretor de 1971 a 1977, tendo ficado muito conhecido pelos seus presépios monumentais. Em 2010, faleceu o Ir. José Cipriano Correia (Jamboto, Santo António, 1912), quase centenário. A sua entrada no Trapiche data de 1931, tendo professado em 1933. Em agosto de 2008, depôs no processo diocesano para a beatificação da Ir. M.a Virgínia Brites da Paixão, clarissa, sua conhecida, já com reputação de santidade e de dons místicos, cuja urna foi transportada pelos irmãos até ao cemitério em 1929. Em 2014, os irmãos vivos eram: José Paulo Simões Pereira da paróquia da Encarnação, Estreito de Câmara de Lobos, provincial de 1901 a 1907 e, posteriormente, superior da Missão de S. João de Deus de Nampula, em Moçambique; Paulo Irineu Cortes de Gouveia da Serra de Água, superior em Lisboa, e José Inácio Pacheco da Silva da paróquia de S. Jorge, que entrou na Ordem em 2010 e professou a 2 de fevereiro de 2013 (S. Paulo, Brasil), continuando a formação em Barcelos a 3 de abril desse mesmo ano. A assistência prestada na casa guiou-se sempre por critérios holísticos que incluem as várias dimensões da pessoa e da sua dignidade. Os valores de transcendência e de fé cristã são respeitados ao lado das melhores técnicas de tratamento conhecidas. Além da existência de proximidade entre os irmãos, a casa dispôs sempre de cuidados pastorais da saúde, coordenados por capelães da Ordem ou por sacerdotes diocesanos. A capela da casa chegou a funcionar como igreja paroquial na déc. de 60 do séc. XX, altura em que foi criada a paróquia da Graça. A casa tem podido contar sempre com clínicos competentes e especializados no tratamento de doentes mentais. O Dr. João Francisco de Almada (Santana, 1874-Funchal, 1942) foi o primeiro diretor clínico, desde o início até ao seu falecimento, em 1942. Foi sócio da associação Irmãos de S. João de Deus e presidente da União Familiar, sendo coadjuvado pelo Dr. William Clode (1932-1942). O segundo diretor clínico, o Dr. Aníbal Augusto de Faria (São Vicente, 1901-Funchal, 2/11/1972), formado na UC e licenciado em psiquiatria na UL, manteve-se no cargo de 1942 a 1969, período em que introduziu novas terapêuticas. O terceiro diretor foi o Dr. Armindo Saturnino Pinto Figueira da Silva, exercendo a função de 1969 a 2004, ano em que lhe sucedeu o Dr. José Vieira Nóbrega Fernandes, que, por sua vez, foi sucedido pelo Dr. José Paulo Abreu em 2010. Ao lado dos diretores clínicos, outros médicos exerceram na casa de saúde. Em 2014, contavam-se quatro psiquiatras, um neurologista, um gastroenterologista e um médico de medicina interna. Dos restantes 146 colaboradores que integram o quadro da instituição, contavam-se 37 técnicos: três psicólogos, 28 enfermeiros, um gestor de empresas, um técnico de serviço social, um técnico de recursos humanos, um educador social, um farmacêutico e um nutricionista. Nos diversos serviços, trabalham duas telefonistas, seis administrativos, cinco cozinheiros, dois técnicos de manutenção e três responsáveis de serviços gerais e um cabeleireiro, sendo os restantes empregados auxiliares. O tratamento dos doentes acompanhou sempre as correntes epocais mais atualizadas. Deste modo, encontramos nos inventários da farmácia de 1928, entre outros equipamentos, referências a balanças de precisão, termocautérios, bisturis, pinças, seringas e instrumentos de dentista. Nos inventários de 1931 e de 1937, temos referenciadas algálias, autoclaves e caixas de esterilizações. Nos inventários de 1940 e de 1946, aparecem os otoscópios, os rinoscópios, as sondas esofágicas, entre outros. Os doentes são separados segundo o seu estado de saúde, existindo uma enfermaria para os tuberculosos. Os tratamentos praticados nos anos 20 e 30 incluíam hidroterapia e calmantes, em larga escala, como a morfina, a escopolamina e os brometos. Na déc. de 40, foram introduzidas as terapêuticas convulsivantes: sistocardil, eletrochoque, eletrocardiozol e choque insulínico. Desde a inauguração da casa, o aumento dos doentes foi muito rápido, porquanto falhava resposta assistencial face a doenças mentais específicas. Havia também um grande número de deficientes mentais com perturbações causadas, por exemplo, pelo consumo de álcool durante a gravidez e a amamentação, bem como doentes mentais adultos vítimas do próprio consumo excessivo de álcool. Muitos dos deficientes são, com efeito, vítimas do álcool consumido pelas mães durante a gravidez e dos maus tratos dos pais alcoólicos durante a infância. Este consumo excessivo foi sempre um fator de grandes dimensões na Ilha, como atestam vários autores no Elucidário Madeirense. Alguns dos factores que influenciam o internamento acima das médias internacionais encontram-se relacionados com a perturbação, mesmo ligeira, associada à pobreza e à miséria, bem como com o regresso e a expulsão dos doentes madeirenses dos países de emigração. Seguidamente, vejamos o número de internados por década. A casa de saúde do Trapiche foi inaugurada com cerca de 40 doentes e, no final de 1924, já somava 58. Em 1930, contava com 122; em 1940, com 194; em 1950, atingiu os 361 e, em 1960, subiu para os 405. Nesta década, e na seguinte, atingir-se-iam os picos mais altos da história da casa: em 1970, contava com 492 doentes e, em 1976, acolheu 506. Após esta data, começa o ciclo de decrescimento, atribuído a vários fatores, principalmente às novas metodologias e terapias usadas na psiquiatria, tais como o sistema da porta aberta, a porta giratória, a desinstitucionalização, a psiquiatria comunitária e, no final do séc. XX, a reabilitação psicossocial, sempre coadjuvadas por sucessivas gerações de psicofármacos. Estas mudanças promoveram tempos mais curtos de internamento, repetidas altas e novas readmissões em caso de crise, a manutenção dos laços familiares e mais saídas definitivas. Tudo concorreu para reduzir os doentes internados. O Dr. Saturnino, no tempo em que exerceu a função de diretor clínico, favoreceu significativamente a desinstitucionalização de muitas dezenas de doentes, a par da consequente reinserção na família, sendo que alguns casos foram mais de índole social do que de psiquiatria. Na déc. de 80, o número de internamento desceu para 374 e, 10 anos depois, em 1990, para 274, continuando a descer até ao ano 2000. Nesta década, iniciou-se a reabilitação psicossocial implementada em cerca de 60 pacientes, em cinco unidades de reabilitação. O número de doentes internados estabilizou, rondando, em 2014, os 270-280 doentes. A casa, além das adaptações realizadas nos velhos edifícios da quinta, teve que planear e executar, ao longo da sua história, sucessivos projetos para responder ao aumento dos internamentos e às qualidades hoteleiras de acordo com as exigências do nível de vida. Atentemos, então, no resumo cronológico das principais construções. Nos primeiros seis anos e até 1930, os doentes ficaram alojados em espaços adaptados nas casas das duas quintas. O primeiro edifício construído de raiz foi o pavilhão de S. José, inaugurado com cerca de uma centena de doentes tranquilos em 1930, ficando ainda cerca de 40 deles nas velhas instalações. Entre 1935 e 1936, os irmãos construíram os edifícios da portaria, da administração, da farmácia, da clausura, da cozinha, da padaria, da despensa e, ainda, uma capela nova para a comunidade e para os doentes. Para acolher em melhores condições os restantes doentes, foi erguido, entre 1934 e 1938, o pavilhão da enfermaria S. João de Deus, do lado poente do caminho do Trapiche. Aqui, foram instalados os doentes agudos, um grupo de tuberculosos e outros mais perturbados ou agitados que ainda se encontravam alojados nas casas da quinta. Em 1940, já estavam alojados 123 doentes. Dado o aumento do número dos pacientes, entre 1950 e 1954, planeou-se e construi-se o pavilhão de S.to António, que apresentava três pisos, sendo mais tarde construído um quarto piso que poderia receber mais 120 pessoas. Construiu-se, entre 1960 e 1965, no alto da quinta do lado poente, uma lavandaria e uma rouparia definitivas. Coincidindo com o pico máximo de doentes, foi programado mais um edifício para doentes agudos, construído em 1978-1979. A diminuição do número de pacientes e os problemas relacionados com a atualização das diárias, conduziram à criação, em dois pisos do edifício, do centro de recuperação de alcoólicos S. Ricardo Pampuri, irmão médico italiano. Este centro foi inaugurado a 5 de novembro de 1979, em regime aberto, oferecendo um programa de tratamento com intervenção biológica, psicossocial e espiritual, cuja duração era um mês. Em 1980-1984, o pavilhão de São José, já obsoleto, foi substituído por um grande edifício que alojou doentes agudos, possuindo uma lavandaria nova, um anfiteatro de cinema e encontros e, ainda, um gimnodesportivo. A construção do bar panorâmico e da biblioteca para usufruto dos doentes datam de 1992-1995. Nos anos 2001-2004, o edifício de Santo António foi reestruturado para receber três unidades: a gerontopsiquiatria, a vocacionada para pacientes estabilizados e, ainda, a concernente a doentes autónomos em reabilitação. Foi instalada a unidade de reabilitação psicossocial denominada “Caminho” no local onde se encontrava a escola de ensino recorrente, que foi posteriormente transferida para o edifício do bar. Foram reestruturados os terceiro e quarto pisos devolutos do centro Ricardo Pampuri para abrigar as unidades de reabilitação psicossocial Elvira e Lucena. O quarto piso do pavilhão S. João de Deus acolheu a unidade Coragem. Em 2006, fez-se a transferência dos doentes de São Lucas que se encontravam no primeiro piso de S. João de Deus sem condições para o primeiro piso de Santo António, entretanto remodelado, tendo sido criada a unidade Estrelícia num bairro de Santo António para seis utentes autónomos. Desde o início e até finais de 2014, a casa contou com cerca de 200 irmãos e 30 mandatos de superior, os quais exerceram, até 2001, simultaneamente a função de superiores e diretores. Em 2014, contam-se quatro irmãos: Horácio Martins Monteiro, superior, Aires Gameiro, sacerdote capelão, Amadeu Costa Cabral e Jorge Dias Coelho, enfermeiros, sendo diretor/gestor o leigo João Eduardo Freitas Lemos. Na linha da tradição da OHJSD, a assistência prestada pautou-se sempre pelos valores e normas presentes nas constituições da Ordem, privilegiando os meios mais atualizados de tratamento para cada período. Desde o final do séc. XX, as linhas programáticas foram atualizadas pela Carta de Identidade da Ordem de S. João de Deus, que declara que “um dos valores é o seu carácter integral [...]. Para S. João de Deus, o doente e o necessitado não eram apenas um corpo e uma alma, pecador ou pecadora, mentirosos ou indigno. Todos eram pessoas, seus irmãos e irmãs, todos dignos de serem ajudados e perdoados por ele e pelos seus colaboradores” (alínea 3.1.5, n.º 21) porque o mesmo faz Deus por cada um. Em suma, podemos considerar que os cuidados integrais apenas atingem o patamar da qualidade técnica e humana quando abrangem todas as dimensões e respeitam a dignidade da pessoa humana. Foi pela contínua atualização deste pressuposto que a casa obteve, em 2012, uma credencial de qualidade técnica pela Equass, referencial europeu de certificação. Neste sentido, a casa sempre procurou merecer o reconhecimento de prestação de cuidados holísticos em todas as dimensões, sem descurar as espirituais e as transcendentes.     Aires Gameiro (atualizado a 04.02.2017)  

Religiões

convento de são francisco do funchal

O mais importante e interventivo Convento na vida geral da Madeira sempre foi o de S. Francisco do Funchal, com profundas raízes locais e, ao mesmo tempo, com um especial sentido de liberdade imediatista, que criou inúmeros problemas às autoridades instituídas. Os Franciscanos acompanharam os primeiros povoadores em 1420, e foi-lhes depois entregue a assistência espiritual nos primeiros anos do povoamento. Dez anos depois, por volta de 1430, estava na Madeira Fr. Rogério, então também acompanhado de frades de origem castelhana, galega e biscainha que, segundo Fr. Manuel da Esperança, bem podiam encher de conventos toda a Ilha, se ela tivesse povoações nas quais se sustentassem. Acrescenta ainda o cronista que tal não teria acontecido de imediato, pois “vinham fugidos do mundo e não podiam (ou não queriam) ver gente”. Assim, “encovados pela serra, conversavam só com Deus, pretendendo imitar o rigor da penitência” (ESPERANÇA, 1666, 670-671). Foi com esse espírito que os Franciscanos se instalaram num eremitério com a invocação de S. João Baptista, cerca de 10 anos depois, por volta de 1440, como viria a escrever, mais tarde, Fr. Nuno Cão (c. 1460-1530/1531), vigário do Funchal, em sentença de 1499: “que haveria ora sessenta anos” que ali se tinham fixado (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, avulsos, mç. 11, n.º 1). O eremitério era na margem direita do ribeiro de S. João, no Funchal, e teria quase uma dezena de irmãos leigos, tendo tido como guardião Fr. Pedro das Covas ou Fr. Pedro Mourão, “homem velho e de muita autoridade” (SILVA, 1946, 163). Os Franciscanos da província de Portugal só em 1450 conseguiram autorização, pela bula Iniunctum Nobis, de 28 de abril desse ano, do Papa Nicolau V para manterem um eremitério na Madeira, que já teriam erguido sem qualquer beneplácito. Convento de São Francisco. Arquivo Rui Carita   Convento de São Francisco. (pormenor) Arquivo Rui Carita   A comunidade madeirense foi entregue ao vigário provincial dos observantes portugueses, mas, como haveria de referir o vigário do Funchal, os Franciscanos que à “ilha iam habitar e morar, iam de passada a ver o mundo, cada um por sua arte e não faziam assento” definitivo, correndo “para as outras ilhas de baixo (as Canárias, em princípio), como caminhantes” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 11, n.º 1). Essa situação e a interferência das outras comunidades provinciais ibéricas acabaram por levar os Franciscanos a sair da Madeira, em 1459, então nove elementos, dois padres e sete leigos, vindo a instalar-se, por ordem real, no futuro Convento de Xabregas, em Lisboa, sob o padroado da condessa da Atouguia. No continente, e depois do falecimento do infante D. Henrique, em 1460, os principais das Ordens de S. Francisco e de Cristo procuraram um entendimento e, por certo, uma delimitação de campos de ação. Encontrado esse acordo, regressaram os Franciscanos à Ilha, embora somente quatro do grupo que havia saído em 1459, voltando a ocupar o pequeno Hospício de S. João, por volta de 1464. Os Franciscanos voltaram sob a direção de Fr. Rodrigo de Arruda, homem de certa influência junto do geral da Ordem, em Roma, e que fora já provincial em Portugal, além de manter relações pessoais de amizade com o segundo capitão donatário do Funchal, João Gonçalves da Câmara (1414-1501). Referiu o Cón. Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) e transcreve Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) que, tendo os Franciscanos acompanhado o Cap. João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), este lhes deu agasalho no Funchal, numas casas em lugar ermo, de onde depois se transferiram para o edifício que construíram “em baixo na vila […], nuns chãos e terras defronte de Santa Catarina, além da ribeira” (FRUTUOSO, 1968, 86). Foi, assim, na sua primeira residência, a pequena capela de S. João Batista, ou de S. João da Ribeira, que se vieram a instalar, de novo, em 1464, e que, pouco tempo depois, teria breve de autorização do Papa Sisto IV, de 1476. Entretanto, Fr. Rodrigo de Arruda, logo que chegou ao Funchal, aproveitando as boas disposições dos habitantes e a autorização que já possuía, tratou de levantar um novo convento no centro da povoação. Os Franciscanos achavam o sítio em São João da Ribeira impróprio para a sua instalação, “escondido no meio da ribeira e tão distante do povo para o serviço dele, nas confissões e sermões, e noutros ministérios da alma”, ainda acrescentando as Saudades da Terra que a causa da mudança, para além de que “o lugar era ermo”, era que um frade, “por induzimento do Demónio, que sempre urde semelhantes teias”, se tinha ali enforcado, havendo assim necessidade de encontrar outro sítio (Id., Ibid., 85). O terreno escolhido foi um que pertencera a Clara Esteves, que em testamento o havia vinculado a um seu parente, o então escudeiro João do Porto, cedendo os religiosos, em troca, o Hospício de S. João, menos a capela, tendo tudo sido autorizado pela infanta D. Beatriz, como tutora de seu filho, o duque D. Diogo, grão-mestre da Ordem de Cristo, a quem a Ilha pertencia. A instalação no Funchal deve datar de 1473, como se pode ler na lápide sepulcral dos fundadores, Luís Álvares da Costa e seu filho, Francisco Álvares da Costa, provedor da Fazenda, igualmente o ano do testamento de Clara Esteves, de 1 de janeiro, que já deixava ao Convento, por certo ainda à comunidade de S. João da Ribeira, 2000 réis, uma peça de pardo para vestuário e 30 varas de burel para vestes. Laje sepulcral dos fundadores. 1473. Arquivo Rui Carita As instalações do novo Convento progrediram rapidamente, já tendo guardião em 1476, Fr. Rodrigo Contendas, tendo-se ali registado, em finais de 1482, o célebre milagre com a imagem de um crucifixo. Segundo a tradição, esta imagem, que “falava algumas vezes” com Helena Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, aos pés de cujo altar foi depois sepultada, teria realizado um milagre, a 26 de dezembro de 1482. Nesse dia, pregando então o P.e Fr. Rodrigo, viu D. Helena o “braço direito do dito crucifixo derribado fora da cruz, todo ao lado do corpo”, milagre depois autenticado pelo bispo D. Fr. Loureço de Távora (1566-1629), a 24 de outubro de 1615 (BNP, IGRAPRF, 1775, fls. 85-88). O Convento passou logo a usufruir dos privilégios gerais concedidos por D. Afonso V, em 2 de abril de 1459, em que se isentava os Franciscanos do pagamento de fintas, taxas e tributos, como a sisa e a dízima, a “portagem costumada de peão”, o vinho, a carne e o pescado. O longo documento de isenção refere ainda aquilo que comprassem para seu mantimento, “para seus vestidos e necessidades”, materiais que comprassem para reparação dos mosteiros e casas, tais como pedra, cal, areia, madeira, pregadura, tabuado, cavalgaduras e animais de carga, “com seus aparelhos, que para servidão comprarem”, “posto que os tornem a vender”, etc. O mesmo se passava com as coisas que lhes fossem dadas ou deixadas, “que eles possuir não possam, e quaisquer joias e ornamentos” que comprassem ou lhes vendessem para os serviços divinos, assim como vestimentas, capas, livros, imagens e quaisquer outras coisas “que para isso pertencerem” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, avulsos, mç. 1, n.º 4). As obras da primeira fase do Convento foram, assim, iniciadas em 1474, e o Convento já se encontrava habitado por volta de 1487, numa primeira fase das obras. Gaspar Vaz, que fora para a Madeira em 1539, por ordem de D. João III, em carta de 20 de maio de 1542 dá conta ao Rei das obras que, nessa altura, decorriam no Convento de S. Francisco, ordenadas pelo visitador da Ordem, Fr. Nuno, que, “por o mosteiro de S. Francisco estar mal remediado de dormitório, ordenou uma obra mui formosa e honrada, a saber: dormitório novo e debaixo refeitório com seu peio”, ou seja, uma fonte de água (ANTT, Corpo Cronológico, pt. i, mç. 72, doc. 9). O visitador que ordenara estas obras era também um pregador de grande fama e fora angariar fundos para as obras necessárias ao Convento do Funchal, e reformar igualmente os restantes Conventos franciscanos locais, que, após terem formado uma província autónoma, por bula de Sisto IV, de 1477, tinham voltado a depender da província de Portugal, por bula de Inocêncio VIII, em 1488. O Convento veio a ser sucessivamente ampliado, logo a partir de 1550, quando beneficiou de um legado de D. Maria de Atouguia, filha do provedor Francisco Álvares da Costa, que, falecendo solteira, a 11 de fevereiro desse ano, deixou uma pensão para missas por sua alma e para aquisição da cerca. Nos anos seguintes, era ampliada a igreja, sendo sagrada a 14 de março de 1554 pelo bispo castelhano D. Sancho Trujillo, que, passando pela Ilha vindo das Canárias, ali passou algum tempo. Este bispo castelhano pretendeu depois, inclusivamente, ser titular do bispado do Funchal, quando era bispo de pleno direito D. Fr. Gaspar do Casal (1510-1584), embora o mesmo nunca se tenha deslocado ao Funchal, tendo sido depois, em 1557, bispo de Leiria e, em 1579, de Coimbra. O Convento já possuía importantes adegas em 1566, conforme consta do saque corsário de outubro desse ano, onde alguns dos huguenotes franceses estiveram alojados e se teriam embebedado. Aliás, alguns dos frades do Convento de S. Francisco teriam sido dos poucos habitantes da cidade que afrontaram as forças francesas, por indicação do comissário, Fr. Baltasar Curado, na rua da Carreira, tendo à frente Fr. Álvaro de Miranda, que em Mazagão se havia notabilizado contra os mouros, mas ali foi morto, tal como cinco dos frades que o acompanhavam. No interior do Convento, ainda seria morto o sacristão, o P.e Fr. Rodrigo de Portalegre, que ali tinha ficado a esconder o tesouro com o vigário Fr. João dos Reis. O vigário, entretanto descoberto na sua cela, veio a escapar à morte por ter revelado o esconderijo das pratas do Convento. A cerca e o claustro de S. Francisco serviram depois para o enterramento das cerca de 300 vítimas do saque dos corsários franceses. Henrique Henriques de Noronha (1667-1730), mais tarde, por volta de 1722, escreve que os 10 Franciscanos mortos durante o saque de 3 de outubro foram sepultados no chamado “capítulo velho”, “debaixo de uma só campa”, seguindo as informações de Fr. Manuel da Esperança (ESPERANÇA, 1666, 684). O cronista acha serem muitos corpos para uma só sepultura, embora entenda que ali foi sepultado, pelo menos, Fr. Álvaro de Miranda, por determinação de seu irmão João Mendes de Miranda, porque da família do instituidor da capela daquele capítulo, ou seja, Simão Acciauoli (c. 1480-1544). Os Franciscanos mortos tinham sido, para além de Fr. Álvaro de Miranda e de Fr. Rodrigo de Portalegre, que refere como Rodrigo de Santiago, já mencionados, ainda Fr. Inácio de Leiria, Fr. Pedro de Eça, Fr. Pantaleão, Fr. Manuel da Cruz, Fr. Custódio Corista, Fr. Simão Corista e Fr. Francisco Cartaxo, assim como Fr. Gaspar “Terceiro”, um irmão donato, ou seja, que ainda não havia professado, embora já de alguma idade, por certo, que “pasmou e de pasmo morreu” (NORONHA, 1996, 240).   Planta da cidade 1570. Arquivo Rui Carita   Planta da cidade e Convento 1567. Arquivo Rui Carita Na armada de socorro de uma semana e pouco depois, provavelmente teria vindo o mestre das obras reais Mateus Fernandes (III) (c. 1530-1595), que levantou uma planta da cidade, aproximadamente entre 1567 e 1570, onde se percebem as dimensões e a forma geral do Convento de S. Francisco. O edifício ocupava cerca de metade do posterior jardim municipal, dando sobre a rua dessa evocação nos começos do séc. XXI e ocupando a igreja o limite sul do jardim, com o adro lateral a avançar para a Av. Arriaga. A igreja parece já apresentar planta em cruz latina, com o braço sul do transepto saliente, tal como parece ter tido nártex nessa época, indicado com um ponteado para a colunata, como se encontra marcado para os claustros. O dormitório, sob o qual se encontrava o refeitório, deveria ficar para norte, e a cerca envolvia o Convento pelo norte e poente, prolongando-se até ao que é, nos começos do séc. XXI, a R. Conselheiro José Silvestre Ribeiro e ocupando a Av. Arriga quase até à R. das Fontes, tendo o teatro municipal sido levantado no antigo espaço da cerca do Convento. Registam depois as Saudades da Terra, entre 1585 e 1590, que, naquela altura, estava fundado um Mosteiro de S. Francisco da observância, “de boas oficinas, como um dos mais nobres e graves do reino” que os Franciscanos tinham em Portugal, em que sempre estavam perto de 50 frades (FRUTUOSO, 1968, 114). A grande mobilidade social dos Franciscanos é patente depois no recenseamento de 1598, “tirado pelos róis das confissões”, onde se refere o Mosteiro de S. Francisco, “que geralmente tem quarenta religiosos” (BGUC, cód. 210, fl. 30), o que é perfeitamente indicativo de que, mesmo pelos róis de confissões, era impossível assegurar um número concreto. A igreja era “muito grande e lustrosa”, segundo escreveu Frutuoso, especialmente após a ampliação levada a cabo pelo P.e Fr. Diogo Nabo, “guardião dela e comissário de toda a ilha”. Havia então oito capelas “muito ricas” e dois altares, que pensamos serem os colaterais, para além da capela-mor. Diziam missa “uma hora ante manhã”, onde concorria muito povo, dando muitas esmolas na portaria e tendo o púlpito sempre três a quatro pregadores. A cerca era muito grande, com “água de levadas”, com que regavam muita hortaliça “de couves murcianas, beringelas e cardos”, e tinham pomar com “árvores de espinho”, palmeiras, ciprestes, pereiras, romeiras “e toda a frescura que se pode ter de frutas e ervas cheirosas”, sem se ter necessidade das de fora. Na cerca, também tinham muitas uvas e, como a população era “gente de tanta caridade”, no verão juntavam de esmolas trinta pipas de vinho (Id., Ibid., 114).                     Pormenor de planta da cidade. Arquivo Rui Carita     Pormenor de planta da cidade. Arquivo Rui Carita A cerca do Convento de S. Francisco do Funchal, confrontando para poente com o solar de D. Mécia, como ficou depois conhecido, ficaria no final do século seguinte ligada a uma das mais célebres ocorrências de então. Este solar fora levantado, em princípio, por João de Ornelas de Magalhães, alcaide da fortaleza do Funchal por nomeação de 14 de maio de 1555, pois já figura na planta da cidade, dos anos de 1567 a 1570, e ostenta no portal exterior as armas desta família. O acidente ocorreu a 7 de março de 1695: encontrando-se D. Mécia de Vasconcelos na janela do seu solar, foi atingida por um tiro disparado por um Franciscano na cerca do Convento. Regista o termo de óbito do cura da Sé, o P.e Francisco de Bettencourt e Sá, que certo religioso de S. Francisco, “natural desta ilha”, para matar um francelho que estava pousado em uma árvore, lhe fez um tiro de espingarda e, disparando-a, deu “um perdigoto na testa por cima do olho” de D. Mécia, de tal sorte “que perdeu os sentidos e o juízo”, falecendo pouco depois (ABM, Sé, Óbitos, liv. 9, fl. 24). Certidão do Guardião do Convento de São Francisco. 1619. Arquivo Rui Carita Com a concentração de inúmeras capelas vinculadas às principais famílias insulares, muitas das quais com sepultura no Convento de S. Francisco, a comunidade adquiriu uma notável influência na vida económica e social insular, não deixando o edifício de crescer nos anos seguintes. O primeiro problema foi o dos testamentos e do usufruto dos legados dos mesmos e, depois, o da impossibilidade de, a curto prazo, cumprir muitos desses legados pios, logo nos meados do séc. XVI, especialmente pela enormidade de missas a celebrar “enquanto o mundo for mundo”, como por vezes se registou. A questão do elevado número de missas, estando muitas já em atraso, levou o prelado, nos finais desse século, a ter de solicitar autorização de Roma para o seu perdão (ABM, Juízo da Provedoria de Resíduos e Capelas, t. 3, 608-608v.). Depois, foi a progressiva centralização do poder nos sécs. XVII e XVIII, quer régio quer eclesiástico, aspeto relativamente ao qual os membros desta comunidade, com a sua tradicional liberdade de movimentos e de costumes, e a sua facilidade de palavra, não ofereciam especial vocação de subordinação. Os problemas com os legados testamentários ocorreram logo em meados do séc. XVI, colocando em oposição o cabido da Sé do Funchal e os Franciscanos. Queixaram-se, então, os membros do cabido a D. João III, “por descargo de suas consciências”, em carta de 22 de maio de 1550, das formas fraudulentas dos frades do Convento de S. Francisco “no fazer dos testamentos”. Contam que, tendo falecido um mês antes “um certo doutor físico de uma prosternação”, o mesmo fora visitado e “importunado”, quando acamado, por um padre que então servia de guardião do Convento, de nome Fr. António de Leiria, conseguindo que o mesmo fizesse testamento a favor do Convento. Escrevem os elementos do cabido que o testamento em questão “foi feito de tal maneira, que tendo ele perto de trezentos mil réis de fazenda, sem sua mulher viva e com três filhas para casar, despendeu em legados para o mosteiro, missa e ofícios, sessenta mil réis”. O enfermo ainda recuperou e pediu para ser revisto o testamento, mas tendo perdido a fala (embora acenasse a cabeça), os Franciscanos não aceitaram a alteração. Pedindo para ser enterrado na Sé, dado dali ser freguês, e vindo o corpo, os Franciscanos foram buscar “o defunto com a tumba”, que levaram para S. Francisco, não atendendo a “excomunhões” (ANTT, Corpo Cronológico, pt. i, mç. 84, doc. 59), nem ao provisor, deão e cabido que ali estavam. Os elementos do cabido queixam-se ainda de que os Franciscanos “usurpavam a jurisdição do arcebispado”, utilizando inibitórias do Dr. Luís de Alarcão, “como juiz apostólico com comissão do Núncio”, para mudarem o vigário da vila da Calheta, “desta jurisdição, que servia como ouvidor pedâneo pelo cabido”. Remata a missiva: “E porque isto é em grande prejuízo do Seu padroado, lho fazemos saber”, para se tomarem as devidas providências (Id., Ibid.). Assinam todos os membros do cabido, mas não consta que se tivessem tomado especiais providências contra os Franciscanos. No final do episcopado de D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), a 31 de outubro de 1607, reprovava-se o procedimento de alguns oradores franciscanos, que pregavam “paixões e escândalos esquecidos da obrigação do seu ofício”. Determinou assim o bispo que não fossem admitidos ao púlpito da Sé sem a sua expressa comissão e licença, tendo comunicado inclusivamente à hierarquia da Ordem as atitudes inconvenientes de Fr. António de Pádua, enquanto pregador na Catedral (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 6, n.º 19). Mais tarde, nas Constituições Sinodais do seu sucessor, de 14 de junho de 1615, o assunto voltava a ser recomendado ao comissário do Convento de S. Francisco do Funchal, alertando-o para que recrutasse pregadores experientes e sabedores, que soubessem atrair os fiéis, caso contrário o prelado reservava-se no direito de prover o lugar a pessoas mais competentes. O assunto, no entanto, atravessaria todo o séc. XVII e passaria ao seguinte. As questões com os Franciscanos ocorreram essencialmente por duas ordens de razões. A primeira, ligada à nova custódia de S. Tiago Menor da ilha da Madeira, determinada por patente do geral da Ordem, em 5 de junho de 1683, e confirmada por Inocêncio XI, a 30 de junho de 1683, pela qual os Conventos da Madeira voltaram a ser separados da província de Portugal. A situação foi sancionada por resolução régia de 6 de maio de 1688, ficando a nova custódia sob proteção régia, por alvará de 23 de janeiro de 1689, que colocava o Convento de S.ta Clara na dependência do custódio do Convento de S. Francisco. A situação levou a confrontos entre os frades e as freiras, com interferências dos primeiros nas eleições e na organização interna do Convento das Clarissas, que muito “escandalizavam” a população. O assunto já levara a um alerta do príncipe regente D. Pedro para o Gov. João de Saldanha da Gama, em 1673 (ABM, Câmara Municipal do Funchal, liv. 1215, fl. 63), mas também tocava ao prelado, que envidou esforços no sentido de serenar os ânimos entre as duas comunidades seráficas. A segunda razão dos problemas com os Franciscanos envolvia, periodicamente, as violentas e inoportunas pregações na Sé, cujo púlpito lhes estava atribuído, pelas quais eram inclusivamente pagos, mas que se afastavam por vezes bastante da contenção a que deviam obedecer. O assunto voltaria a agudizar-se poucos anos depois, sendo objeto de acórdão do cabido, de 16 de janeiro de 1684, onde se refere “que o púlpito não era lugar de despiques”, a propósito da contenda pessoal, e perfeitamente privada, entre dois pregadores franciscanos, os padres Fr. Raul de Santo António e Fr. Manuel de Santo Inácio, que aproveitaram os seus sermões para, do púlpito da Sé, fazerem ataques mútuos (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 3, fls. 32ss.). O cabido decidiu a suspensão dos Franciscanos, voltando a advertir o padre comissário do Funchal para, no prazo de 15 dias, enviar à Catedral religiosos de “melhor talento” de outros Conventos. Insistia o cabido que, caso contrário, preencheria o lugar de pregador “em sujeitos, que com mais exemplo e aproveitamento dos ouvintes, pregassem a palavra de Deus” (Ibid., fls. 47ss.). Os avançados anos do prelado e, muito especialmente, o desgaste sofrido com os problemas em que se viu envolvido com os Franciscanos, e outros, como a censura régia pela excomunhão lançada sobre o governador, que prendera, sem sua autorização, o deão da Sé, Pedro Moreira (c. 1600-1674), fizeram com que, depois de uma breve enfermidade, D. Fr. Gabriel de Almeida (c. 1600-1674) falecesse no Funchal, a 13 de julho de 1674, com pouco mais de dois anos de episcopado. Mais tarde, também a tradicional mobilidade da comunidade franciscana era alvo de provisões do Desembargo do Paço, de 24 de setembro de 1718 e de 21 de outubro de 1729, determinando-se que se deveria notificar os capitães dos navios e os respetivos cônsules, para que não levassem “religioso algum” sem expressa licença dos seus prelados, ou seja, dos superiores dos conventos, “sob pena pecuniária e de prisão”. O segundo diploma, dirigido ao custódio provincial, especifica inclusivamente que faltar ao cumprimento daquela provisão implicava a pena de cem mil réis “para os cativos” no Norte de África e um mês de cadeia (BNP, IGRAPRF, 1775, 88v.). Mas os Franciscanos eram “uma força da natureza” e, pouco tempo depois, o governador e capitão-general Francisco Pedro de Mendonça Gorjão, a 21 de junho de 1738, queixava-se para o secretário de Estado, em Lisboa, da fuga da Madeira de Fr. Álvaro de São Luís (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, doc. 45). O Convento de S. Francisco do Funchal, no entanto, ocupou um importante papel na história da Madeira ao longo de todo o Antigo Regime. A igreja do Convento era o verdadeiro panteão de grande parte das mais antigas famílias do arquipélago, e nas suas Confrarias tinham assento não só os principais membros dessas famílias, como os quadros superiores da Ilha, incluindo governador, bispo e provedor da Fazenda, aspeto que persistiu inclusivamente até à extinção do Convento. Em 1722, Henrique Henriques de Noronha descreve o Convento, começando pela cerca e claustro, afirmando que tem um chafariz no meio “e um asseado jardim”, para o qual davam as varandas, sustentadas por colunas “de cantaria fina”. Para o claustro davam a sacristia e as casas da Confraria da Senhora da Soledade e dos Irmãos Terceiros, “ambas custosamente asseadas”, a última, em princípio, dedicada depois a Nossa Senhora da Conceição (NORONHA, 1996, 234). Refere o cronista que o Convento deveria ter, pelos seus estatutos, 50 religiosos, mas tinha então muitos mais. A igreja era de uma só nave, com quatro altares de cada lado da nave, dois colaterais e altar-mor, referindo Noronha que, em tempos, o cadeiral tinha ficado na capela-mor, mas que o removera Fr. Diogo Nabo antes de 1554, ampliando então aquela capela e passando a entrada principal para a fachada sul, devendo o cadeiral do coro ter passado para o fundo da nave, a poente. O altar-mor tinha “nobre retábulo”, já dotado de tribuna, e a mesma estava “coberta por excelente pintura do Santo Patriarca” (Id., Ibid., 236) dos Franciscanos, cuja pintura não sobreviveu. Toda a igreja fora azulejada em 1632, incluindo a capela-mor, onde tinham sepultura os religiosos, como era hábito nas casas franciscanas, tendo as armas dos Costa nas paredes e, ao centro, a sepultura dos fundadores Luís Álvares da Costa e Francisco Álvares da Costa, com a indicação da data de 1473, coberta por laje de brecha calcária da serra da Arrábida, que se encontra no cemitério de S. Martinho. O altar colateral do lado do evangelho era dedicado a St.o António “de Pádua, imagem milagrosa” (Id., Ibid.), como se podia constatar, segundo o cronista, pelos inúmeros votos mandados pintar e colocados na parede junto do mesmo altar. Fora fundado por Rui Gonçalves de Velosa, filho único de Gonçalo Anes Veloso, escudeiro do infante D. Fernando e fundador do Hospital e capela de S. Bartolomeu. O fundador deste altar encontrava-se sepultado aos pés do mesmo, com sua mulher Leonor Dória. No altar colateral do lado da epístola, dedicada às Almas Santas, onde figurava o Senhor do Milagre, “que representando estar morto tem a boca aberta, como quem fala”, encontrava-se sepultada, em frente, D. Helena Gonçalves da Câmara, filha de Zarco, que fora mulher de Martim Mendes de Vasconcelos, o Velho. Ao seu lado, e numa laje flamenga, com “lâminas de bronze” e uma figura feminina a rezar, estava sepultada Joana Valente, “devota das Chagas de Cristo” (Id., Ibid., 236-237), que fora a primeira mulher do terceiro capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (1463-1530). Distribuídas pela nave da igreja, do lado do evangelho, encontrava-se a capela do Espírito Santo, depois também dos mártires de Marrocos, que fora fundada por D. Maria de Bettencourt (c. 1430-1491), mulher de Rui Gonçalves da Câmara (c. 1430-1497), mas cujo marido que não estava ali sepultado, dado ser capitão da ilha de São Miguel, nos Açores. Na parede lateral, estava um brasão com o leão de negro e rampante, armado de vermelho, dos Bettencourt, a “agarrar” uma flor-de-lis, símbolo da ligação desta linhagem à família real de França. Seguia-se a capela de N.a S.ra dos Anjos, mandada edificar por Manuel de Amil (1509-1585), filho do bacharel João Fernandes de Amil (c. 1460-c. 1520), que fora o primeiro provedor da misericórdia do Funchal. A terceira capela do lado do evangelho era dedicada a S. João Batista, tendo sido fundada pela família Mondragão e da qual era então administrador Francisco Luís de Vasconcelos Bettencourt Machado (1644-1717), pai da célebre morgada D. Guiomar Madalena de Vilhena (1705-1789). A última capela era dedicada a S. Diogo, “que antigamente se chamou de Santiago” e fora instituída por Lourenço da Gama Pereira (c. 1521-1604), que ali se encontrava sepultado com a primeira mulher, Águeda Teixeira, e a segunda, Isabel de Mondragão. O instituidor era irmão do célebre António da Gama Pereira (1520-1595), desembargador do Paço na época de Filipe II de Castela, e que “dispôs as ordenações do reino” (NORONHA, 1996, 238-239) as famosas Ordenações Filipinas, terminadas e aprovadas em 1595, embora só editadas em 1603, elaboradas em colaboração com Damião de Aguiar e Jorge Cabedo de Vasconcelos, que Noronha não cita. Rainha Santa Isabel. 1640. Arquivo Rui Carita A primeira capela do lado da epístola devia corresponder ao inicial braço do transepto, sendo citada como “maior que as demais, custosamente ornada e com porta travessa para o adro”. Era dedicada à Rainha S.ta Isabel e encontrava-se entregue aos Irmãos Terceiros de S. Francisco, “e ali têm enterro os que querem” (Id., Ibid.). Desta capela deve restar a magnífica imagem da Rainha Santa, que a tradição dá como proveniente do Convento da Encarnação, mas que tem muito mais probabilidades de ser desta capela, até porque desde os inícios do séc. XX se encontrava no Museu Municipal, onde podia ter chegado pelos Irmãos Terceiros, antes de ter figurado no antigo Museu da Cidade nos inícios da déc. de 80 do séc. XX. Seguia-se a capela de N.a S.ra da Conceição, “imagem de grande devoção”, onde existiam as sepulturas de António da Silva Madeira e de Jerónimo Pires do Canto, que, por se terem extinguido os herdeiros, ficara devoluta para o Convento. A terceira capela era de N.a S.ra da Encarnação, fora instituída por Diogo de Barcelos e passara depois para Jerónimo Vieira da Costa. A quarta capela era de N.a S.ra da Graça e tinha sido edificada por João Gomes da Ilha (c. 1430-1495), o Trovador, pajem do livro do infante D. Henrique, e que passou depois ao seu filho Bárbaro Gomes Ferreira (c. 1460-1544), que fora vedor das obras da Sé. Por baixo desta capela ainda havia outra, mais pequena, “a qual edificaram de moderno” (Id., Ibid.) os irmãos da Confraria de S. Benedito, no dizer do cronista, pelo que seria capela levantada já nos inícios do séc. XVIII. Esta devoção era, em Portugal e no Brasil, geralmente dos escravos forros, havendo uma imagem deste frade na capela do Corpo Santo, mas não se conhecendo qualquer documentação a esse respeito para o Funchal. À volta dos claustros ainda existiam mais capelas, a começar pela levantada no chamado “capítulo velho” por Simão Acciauoli, dedicada a Nossa Senhora da Piedade, “que é de excelente pintura”, no dizer do cronista, que só teve idêntica referência para a pintura do retábulo-mor. No “capítulo novo” ficava a capela da Virgem Santíssima e, anteriormente, dos mártires de Marrocos, que, segundo a tradição, teriam passado depois para a capela do Espírito Santo, instituída por Maria de Bettencourt. Nesta capela tinham os religiosos “a sua aula, decentemente ornada”, e igualmente muitas “sepulturas nobres, cujos donos dizem os seus letreiros”. No andar superior ainda existiam mais capelas, como a de N.a S.ra da Estrela e, com especial destaque, “outra que chamam” de N.a S.ra da Escada, ou do Poço, com “imagem de muita devoção” (Id., Ibid., 241), curiosamente uma imagem, muito provavelmente flamenga, em pedra, o que, até por razões de transporte, não é comum. Na passagem dos claustros para a portaria ainda ficava a capela de N.a S.ra da Piedade, acerca da qual havia crentes que afirmaram “que a viram chorar” e, na sua sequência, a capela de S. Caetano. Na portaria havia a capela do Senhor Crucificado e, da parte de fora, outra capela de S. João Batista, “cuja imagem se tirou do mar, misteriosamente”. Igualmente da porta de fora da portaria e pegada com esta estava a capela de N.a S.ra de Jerusalém, “edificada com as próprias medidas do Santo Sepulcro”, seguindo-se logo outra capela da Virgem da Piedade, “onde concorre a todas as horas muita gente”. O mesmo se passava com a capela das Almas, que lhe ficava contígua, sendo “as suas paredes interiores cobertas artificiosamente de ossos e caveiras organizados” (Id., Ibid.). A capela dos Ossos dos Franciscanos do Funchal resistiu à reconstrução dos finais do séc. XVIII, sendo referida na Viagem à Cochinchina do botânico e pintor sir John Barrow (1764-1848), em 1792 e 1793, sendo inclusivamente representada em litografia colorida na edição de 1806 (BARROW, 1806, 37A). Apresenta retábulo ao gosto dos finais do séc. XVII e inícios do séc. XVIII, com pintura de S. Miguel das Almas e duas grandes imagens sobre a mesa do altar, uma das quais parece ser de S. Sebastião. As paredes e o teto encontravam-se totalmente revestidos de caveiras enquadradas por ossos longos, talvez tíbias ou perónios, sobre lambril pintado ou revestido a azulejos. A vida do Convento de S. Francisco foi de alguma forma contida na vigência do bispo jacobeu D. Fr. Manuel Coutinho (1673-1742), freire da Ordem de Cristo, que chegou ao Funchal a 22 de junho de 1725, não se registando nesse episcopado especiais problemas. Dos poucos livros deste Convento que chegaram aos nossos dias consta o Livro das Patentes, iniciado em 1732 por Fr. Jorge dos Serafins, que fora examinador e definidor das custódias açorianas franciscanas e então custódio provincial da de S. Tiago Menor da ilha da Madeira. Das várias provisões lançadas pelo custódio provincial, a primeira aborda o inteiro cumprimento da celebração das missas a que os Franciscanos se encontravam obrigados, incluindo as do dia de finados, no qual deveriam dizer missa “pelas benditas almas do Purgatório”, assunto que os “reverendos prelados locais, respeitando a indigência dos conventos”, descuravam, inclusivamente deixando que alguns clérigos pobres cobrassem dinheiro pelas mesmas, em nome individual da alma encomendada, o que se proibia terminantemente a partir do dia 1 de novembro seguinte, pois essas missas eram em nome “das almas de todos os finados defuntos” (ANTT, Conventos, Convento de São Francisco do Funchal, liv. 1, fl. 7). A segunda provisão aborda o inveterado costume de muitos Franciscanos divulgarem “fora de portas” o que se passava no Convento, tal como as possíveis culpas de uns e de outros. O assunto já teria ido a capítulo e, em “nome do crédito dos religiosos desta Santa Custódia”, Fr. Jorge dos Serafins ameaçava com “pena de excomunhão maior, ipso facto incurrenda” todo aquele que revelasse a seculares, a religiosos de outra Ordem e a religiosas “defeito algum de seus irmãos” de que se pudesse atribuir culpa grave. Nessa sequência, advertia igualmente os padres pregadores e confessores que deveriam renovar as suas patentes 15 dias antes de as mesmas findarem, ou seja, no final do ano. As patentes deveriam ser entregues ao seu secretário, o P.e Fr. João de Santa Rosa, para serem avaliadas, o mesmo se passando com os novos padres que, no último capítulo, tinham sido instituídos “confessores de seculares”, e que até ao final de dezembro se deveriam pôr “expeditos para fazerem o seu exame”. Tendo tido conhecimento da falta de inúmeros livros nas várias livrarias dos Conventos da custódia, assunto que lembrara aos vários responsáveis e sobre o qual inclusivamente o Santo Padre já se pronunciara, listava vários dos livros em falta e voltava a ameaçar com pena de excomunhão os infratores (Id., Ibid., fol. 8). Com o novo bispo do Funchal, D. Fr. João do Nascimento (c. 1690-1753), que chegou à Ilha a 5 de setembro de 1741, a situação de início ainda teve outra cobertura, pois o prelado era Franciscano e vinha acompanhado de dois padres pregadores, igualmente “frades menores”, para o ajudarem na sua missão: Fr. Lourenço de Santa Maria e Fr. João do Sacramento. O novo bispo e os padres pregadores recolheram-se durante 12 dias no Convento de S. Francisco do Funchal, pelo que D. Fr. João do Nascimento só tomou posse da Diocese a 17 desse mês. De imediato, fez publicar uma carta pastoral, tal como fizera o seu antecessor, especialmente dedicada à “reforma dos costumes, à extirpação de abusos, restauração, perfeição e esplendor do culto divino”, assim como outra, dirigida ao cabido da Sé, introduzindo algumas modificações nos serviços do culto ali realizados (APEF, cx. 122, doc. 3, fls. 21v.-22v.). Ao longo do seu episcopado, no entanto, reacenderam-se alguns problemas, com situações que já vinham do anterior, como a demência do P.e Fr. João de São José Ferraz, cuja interdição foi solicitada pelo procurador-geral da custódia da ilha da Madeira, o P.e Fr. José da Conceição, em 1748, ou os incidentes relacionados com a expulsão da ilha de dois franciscanos, Fr. João de São José e Fr. José do Rosário, em 1755. Por vezes, era ao contrário, como em 1753, quando o custódio provincial, então Fr. José de Santa Maria, solicitou aos visitadores da mesma custódia no continente que obrigassem três religiosos do Funchal, que se encontravam em Lisboa, a regressar ao Convento, dado já ter expirado há muito o prazo da licença que lhes fora concedida. O controlo das instâncias superiores apertou-se ao longo do séc. XVIII, acusando os visitadores quase sempre os Franciscanos de “relaxados”, quer na forma como se comportavam dentro do Convento, quer em relação às eleições, aos seus deveres, etc., como se queixa em carta do Funchal, de 28 de maio de 1753, o visitador Fr. José da Natividade ao ministro Diogo de Mendonça Corte Real, enviando, inclusivamente, uma representação do custódio provincial Fr. José de Santa Maria (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, doc. 13). Os problemas envolviam mesmo a atividade exterior dos Franciscanos, como se queixa depois o Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804), futuro barão de Alverca, em ofício de 21 de novembro de 1768, a respeito de um caso contrabando de tabaco, envolvendo o guardião do Convento, Fr. António de São Guilherme. O Convento de S. Francisco do Funchal, no entanto, ultrapassou sempre os pontuais problemas em que se foram envolvendo alguns dos seus membros, pois manteve-se, até à sua extinção, graças à capacidade de intervenção dos Franciscanos e à força das suas Confrarias, como um dos mais importantes centros de decisão políticos e económicos da Madeira. Assim, embora o gabinete pombalino tenha decretado a restrição de entradas nos conventos, com a subida ao trono de D. Maria I, em março de 1777, e o afastamento do marquês de Pombal, logo se envidaram esforços para ultrapassar a situação, sendo autorizada a entrada de 12 noviços por ano no Convento de S. Francisco do Funchal. Em carta datada do Convento do Funchal, de 8 de junho de 1777, o vigário custódio provincial Fr. Manuel de São José acusava a receção da autorização régia e agradecia. O Convento devia ter por essa data cerca de 100 religiosos, entre padres professos, leigos e noviços. A documentação das suas Confrarias, na maior parte, não chegou aos nossos dias, mas mesmo numa altura de franca recessão desse tipo de atividades, como no consulado pombalino, sucederam-se as iniciativas desse género. Por petição de 23 de março de 1765, e.g., o morgado João José de Bettencourt de Vasconcelos (1715-1766), familiar do Santo Ofício e administrador da capela de S. João Batista da igreja de S. Francisco, encabeçava uma lista dos principais proprietários madeirenses para fundarem uma nova Confraria de Nossa Senhora dos Anjos, Mãe dos Homens, e de S. José, Rei dos Homens. A petição era dirigida a Fr. António da Encarnação, vigário custódio da província, e incluía inúmeros eclesiásticos, como os padres doutores António José de Vasconcelos, João Henriques de Aragão e Manuel José da Rosa, Domingos João Alves da Silva Barreto, o Cap. António Vogado Teles de Meneses e os importantes comerciantes Pedro Jorge Monteiro, José João Veríssimo e José Fayan, entre outros. Os estatutos da Confraria seriam aprovados a 15 de fevereiro de 1767, e, tendo já falecido o promotor, era eleito como prefeito da mesma o então governador e capitão-general José Correia de Sá, enviado à Madeira para a extinção da Companhia de Jesus, que assina juntamente com o secretário António João Spínola de Macedo, para além dos outros membros da mesa. O documento é ainda reconhecido a 5 de março seguinte, pelo tabelião de notas Bartolomeu Fernandes e por Domingos Afonso Barroso, provedor da Fazenda. A aprovação do Rei D. José ocorreu a 27 de outubro seguinte e foi registada no Funchal a 23 de abril de 1769, tendo sido eleito para prefeito o então governador e capitão-general João António de Sá Pereira, servindo de secretário o padre genealogista José Francisco de Carvalhal Esmeraldo e Câmara, filho do morgado Aires de Ornelas de Vasconcelos e depois fidalgo-capelão, por nomeação de 5 de fevereiro de 1782. Armas de Mouzinho de Albuquerque. Arquivo Rui Carita A importância das Confrarias do Convento de S. Francisco está ainda patente na confraria de N.ª S.ra da Soledade, que, nos finais do séc. XVIII, assumiu a tradição de integrar sempre como irmãos o governador da Madeira e a mulher, quando o acompanhava, elaborando artísticas folhas aguareladas com as armas dos mesmos. A tradição manteve-se até à extinção do Convento, sendo a última folha dedicada ao prefeito liberal e governador militar Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque (1792-1846) – e D. Ana de Mascarenhas de Ataíde –, que, a 14 de março de 1835, entrou como “irmão protetor e presidente da confraria”, “prometendo não só guardar as obrigações do Compromisso, mas também promover o aumento Espiritual, e temporal da mesma Confraria” (ARM, Governo Civil, liv. 235, fl. 71). Seria Mouzinho de Albuquerque, no entanto, como prefeito da província, poucos meses depois, em agosto desse ano, a determinar as instruções para a extinção do Convento e, logicamente, da Confraria da Soledade. Os elementos chegados até nós não nos permitem uma avaliação mínima da vida económica dos Franciscanos do Funchal. Os livros das Confrarias são muito escassos e os de “receita e despesa” quase inexistentes. A vida do Convento não se afastava, no entanto, da dos conventos de S. Bernardino de Câmara de Lobos ou da Piedade de Santa Cruz, mas era mais complexa, dado o maior número de frades e, também, dada a sociedade urbana e a classe social que serviam e onde se inseriam. Existem dois livros de sacristia de “Registos de Missa” que dão uma pálida ideia do movimento do Convento, que celebrava semanalmente, nos finais do séc. XVIII, quase 100 missas, enquanto S. Bernardino, na mesma época, e.g., celebrava entre 20 e 30, embora os preços fossem semelhantes: na generalidade, entre $200 e $300 réis a missa. Na primeira semana do mês de agosto de 1797, v.g., celebraram-se 85 missas, sendo 7 pelas obrigações do Convento, 19 pelas obras pias, 34 pelas capelas, 5 pelas Confrarias e 2 pelos frades. Houve ainda uma celebrada na Festa do Ilhéu, provavelmente a festa de Nossa Senhora da Conceição, e que deve ter custado 1$500 réis, dado envolver a deslocação, e 15 missas dos “ofícios de frade e de grade”, que é possível que correspondam às missas em que é dada a comunhão aos fiéis na grade. Somente foram contabilizadas 14 a $200 réis, sendo as restantes das obrigações gerais do Convento, rendendo o conjunto 4$300 réis. Celebraram missa nessa semana 23 religiosos, incluindo o custódio provincial, o guardião, “o mais digno”, etc., tendo o domingo 20 missas, o maior número, rondando as 10 a 12 nos restantes dias da semana (ANTT, Convento de São Francisco do Funchal, liv. 2, fl. 1). Na semana seguinte, a segunda semana de agosto de 1797, os números foram semelhantes, celebrando-se 95 missas, com um “noturno das Almas”, obrigação do Convento, em princípio, porque não contabilizado, rendendo nove missas a $300 réis e outras seis a $200, num montante de 3$900 réis (Ibid., fl. 1v.). Na terceira semana, celebraram-se 79 missas, uma com “com festa na Fortaleza”, que deve ser a de S. Lourenço e que deve ter rendido $800 réis, embora tenha havido outra, não especificada, que rendeu 450, contabilizando-se, com mais cinco missas a $300, duas a $250 e nove a $200, 5$050 réis (Ibid., fl. 2). Nos inícios do séc. XIX, os preços subiram em relação ao século anterior, passando as missas a render entre $300 e $500 réis, pelo que, embora não havendo um significativo decréscimo no número geral das mesmas, deu-se um franco aumento do montante global cobrado. Na quarta semana de julho de 1809, e.g., celebraram-se 87 missas, entre as quais umas de obrigação do Convento e 52 de grade, 1 a 1$000 réis e 51 a $400 réis, somando 21$400 réis, montante muito acima do cobrado semanalmente nos finais do século anterior. Para os anos seguintes, existem informações gerais da vida económica do Convento, entre 1809 e 1832, correspondendo, assim, sensivelmente à fase final da vida do Convento. A descrição do tipo de missas é mais sucinta, deixando de se referir as missas das Confrarias, provavelmente incluídas nas capelas, e aumentando o preço das mesmas, cobrando-se no mínimo 400 réis por missa. Os totais semanais passaram a rondar os 20$000 réis e, por mês, as missas renderam à sacristia quantias acima dos 80$000 réis. Para estes anos, as despesas gerais do Convento não se afastam especialmente, e.g., das do de S. Bernardino de Câmara de Lobos. No mês de julho de 1809, o Convento teve uma receita de 360$800 e uma despesa de 287$720. O Convento já vinha com um saldo positivo do ano anterior, “de alsas”, como se dizia, de 1808$236, ficando então com 1881$316, como certificam o guardião, Fr. Matias de S. Boaventura, o síndico, Pedro de Santa Ana, os discretos Fr. Manuel da Piedade, Fr. Januário das Chagas de São Francisco, Fr. António de São Joaquim e Fr. António de N.ª S.ª das Dores (Ibid., liv. 5, fl. 2). Tal como nos restantes conventos franciscanos masculinos, as principais receitas vinham das missas e cerimónias realizadas fora do Convento e da venda de hábitos de burel e hábitos de saial, com o pormenor de tanto se terem vendido os de saial para enterro de homens, como os de burel para enterro de mulheres, o que até então não se tinha verificado. Os preços também são muito mais altos que os praticados em S. Bernardino nos finais do século anterior: entre 3$000 a 6$000 réis, em S. Francisco, não incluindo, em princípio, acompanhamento. Por “um hábito de burel e três religiosos, a seiscentos réis cada, para Sabina, da freguesia de São Martinho”, e.g., só cobraram 4$800 réis, e por um hábito de saial para João Paulo Medina, sem referir acompanhamento, cobraram 6$000. Os Franciscanos cobraram 9$400 réis “por merecido” dos religiosos que tinham ido à festa da Visitação na misericórdia do Funchal, 18$000 pela novena e procissão do Carmo e mais 10$000 pelas matinas da dita festa. Nas despesas desse mês entrou essencialmente a aquisição de carne de vaca, que custou mais de 100$000 réis, tal como peixe, bacalhau, azeite, manteiga, queijos, toucinho, presunto, azeitonas, sal, milho, semilhas, couves, feijão, chá, açúcar, etc. Algumas aquisições vinham de fora, como as cebolas, compradas no Caniço, que tiveram um acréscimo de 2$000 réis, “pelo frete, carreto e pagamento do moço que tirou as cebolas do Caniço”. Nesse mês também se adquiriu cerveja e sabão, tal como se pagou $400 réis para amolar as navalhas de barba do irmão leigo Fr. José das Mercês. Também se adquiriram umas rodas para o relógio, que custaram 1$000 réis, tal como se pagou $400 pela montagem das mesmas e ao moço António de Aguiar seis meses e 20 dias, a 3$000 réis por mês, o que somou 20$000 (Ibid., liv. 5, fls. 1v.-2). A partir dos inícios do séc. XVIII, com a oficialização da custódia, tinha passado a Fazenda Real a tomar a seu cargo a manutenção destes edifícios e a assumir a reconstrução do Convento de S. Francisco do Funchal, dado o templo primitivo ser considerado acanhado e modesto. As obras do Convento tiveram início por volta de 1750, data do reenvio para o Funchal da planta efetuada pelo mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), já devidamente corrigida, para o que D. João V tinha atribuído a valiosa esmola de 20.000 cruzados (ANTT, Provedoria e Junta…, liv. 973, fl. 112v.). O edifício teria então passado por várias ampliações, até para suportar a população de 100 religiosos, com admissão de 12 noviços em cada ano, autorizada a partir de junho de 1777. Em julho de 1780, deve-se ter inaugurado uma parte da construção, dado ter-se exumado, em 1880, uma inscrição alusiva a D. Maria I, ao Papa Pio VI e ao P.e Fr. Bernardo. A inscrição teria sido depositada no arquivo municipal, mas, segundo os autores do Elucidário, algumas décadas depois tinha desaparecido. No entanto, entre agosto e setembro já não havia dinheiro para continuar as obras, pedindo o principal do Convento a deslocação ao Brasil de dois irmãos leigos, para ali recolherem esmolas, certificando o velho mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins, a 19 de outubro desse ano, para a corte de Lisboa, que as obras ainda continuavam. No ano seguinte, voltou a haver pedidos de subsídios para as obras, requerendo os Franciscanos inclusivamente o edifício do extinto Colégio dos Jesuítas, dadas as obras e os vários cursos que lecionavam então em S. Francisco, motivando a troca de cartas entre o secretário de Estado Martinho de Melo e Castro e o bispo do Funchal D. Gaspar Afonso da Costa Brandão (1710-1784), em 9 de agosto e 6 de novembro de 1781. Nesta sequência, igualmente requereu Fr. Manuel de São Boaventura “as sobras do subsídio literário e do almoxarifado” do Funchal, para se continuar a construção do novo Convento (AHU, Conselho Ultramarino, Madeira, docs. 588 e 599). A 10 de fevereiro de 1782, as obras passaram por novas alterações; o mestre das obras reais José António Vila Vicêncio (c. 1720-1794) refere alterações de custo. Face às dificuldades de obtenção de pedra, as obras e correriam o risco de parar, pois o pedreiro de Câmara de Lobos encarregado de a fornecer faltara ao ajuste. Alvitra-se, então, o trabalho das companhias de ordenança no retirar da pedra da pedreira, entendido como uma esmola das mesmas para os Franciscanos, o que foi autorizado pelo governador a 30 de agosto desse ano (ABM, Governo Civil, liv. 520, fl. 104). O Convento esteve assim em obras durante todo o final do séc. XVIII, possivelmente sob uma desastrosa administração, pelo que nunca chegou a ser acabada a enorme igreja, até à extinção dos conventos nos meados do séc. XIX, o que levou à sua demolição. Em 1834, no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecido como “mata-frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas. A extinção do Convento de S. Francisco do Funchal foi acionada pelo prefeito Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, em agosto de 1835, em articulação com Diogo Teles de Meneses (1788-1872), provedor da Alfândega (ABM, Alfândega do Funchal, liv. 675), tendo decorrido sem especiais dificuldades e quase sem qualquer interferência da autoridade religiosa. O Convento de S. Francisco do Funchal foi desocupado por forças militares a 9 de agosto de 1834 e, pouco mais de 15 dias depois, a 27 de agosto, o prefeito mandava o provedor da Alfândega do Funchal tomar conta do edifício. Dado não terem ocorrido problemas, nesse mesmo dia 27 de agosto, o prefeito enviava para o provedor do concelho do Funchal, Manuel de Santana e Vasconcelos (1798-1851), instruções precisas sobre a execução do decreto de 30 de maio sobre a extinção dos conventos, para que tal se efetuasse nos restantes conventos do concelho do Funchal. As instruções determinavam que se deveria fazer o inventário dos bens do Convento em causa, entregando-se ao representante do cabido da Sé do Funchal as alfaias religiosas, os paramentos, “ornatos dos templos e utensílios de culto”. As imagens e as cruzes, porém, deveriam permanecer onde estivessem. As igrejas deveriam ser fechadas, ficando as chaves à disposição do prefeito, mas na posse do provedor do concelho, que elaboraria, entretanto, uma relação dos religiosos de cada convento. No espaço de um mês, os religiosos deveriam apresentar-se na prefeitura, com uma relação testemunhável, para que se verificasse se teriam direito à pensão anual para a sua sustentação, prevista no artigo 4.º do decreto de 30 de maio anterior. Luís Mouzinho de Albuquerque recomendava que a diligência deveria ser feita com “a mais escrupulosa atenção”, em que tudo fosse praticado com a maior “circunspeção, prudência e urbanidade”, para que de maneira alguma houvesse lugar a “escândalos dos povos ou pretexto à maledicência” (VERÍSSIMO, 2002, 69-77). As imagens e muitas das pinturas, entretanto, foram transferidas para outros locais, como a imagem do Senhor do Milagre do Convento de S. Francisco, que teria falado algumas vezes com Helena Gonçalves da Câmara – razão pela qual recebeu essa designação –, e que foi transferida para a Sé, inclusivamente com o diadema e o lampadário de prata, a 11 de março de 1835, assim como outras alfaias, pelo menos entre 1848 e 1850, na vigência do governador civil José Silvestre Ribeiro (1807-1891), para a igreja do Colégio do Funchal, que nesses anos foi reabilitada e entregue à Diocese. A transferência das pinturas e imagens que ainda restavam nas instalações do Convento para a igreja do antigo Colégio dos Jesuítas deve datar de fevereiro de 1847, tendo sido acordada entre o governador e o bispo D. José Xavier de Cerveira e Sousa (1797-1862), quando se preparou a instalação, em S. Francisco, do Asilo de Mendicidade do Funchal, com cerca de 400 indigentes, cuja administração foi entregue ao prelado e cuja inauguração se fez a 27 de março desse ano (MENESES, 1848, 25-30 e 50-54). Algumas das telas existentes nesta igreja, como parte da coleção mariana da sacristia, senão mesmo toda, a tela dos mártires de Marrocos, a de Nossa Senhora do Pópulo, etc., pertenceram, por certo, ao Convento de S. Francisco, pois não fazem parte dos sucessivos inventários do Colégio, podendo a tela de N.ª S.ra da Porciúncula ter vindo da capela do Hospício da Ribeira Brava ou também de S. Francisco. O mesmo deve ter acontecido com algumas imagens, como a de S. Luís, Rei de França, em barro, aparentemente de produção regional, que se encontra na sacristia do Colégio, e o conjunto de imagens de roca, que se encontram no Museu de Arte Sacra do Funchal. O mesmo se teria passado com o conjunto de bustos relicários dos mártires de Marrocos, que foram descobertos quase emparedados na torre do Colégio e que igualmente transitaram para aquele Museu. Outra parte do espólio do Convento de S. Francisco transitou para o Convento de S.ta Clara, como foi o caso dos dois grandes painéis de azulejos de S. Francisco e de S.ta Clara, de oficinas de Lisboa (1740-1760), posteriormente remontados na portaria daquele Convento. No coro de baixo de S.ta Clara, algumas das pinturas que decoram as paredes laterais, segundo a tradição, terão vindo também de S. Francisco. A maioria das pratas, entretanto, fora arrecadada na Alfândega, e, em 28 de maio de 1836, elas seguiram para a Casa da Moeda de Lisboa, onde o antigo prefeito da Madeira fora provedor. Sem especial explicação, somente em virtude da portaria de 9 de junho de 1886, os livros do Convento de S. Francisco foram entregues à repartição da Fazenda do Funchal, sendo posteriormente incorporados na Torre do Tombo, juntamente com os da Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, mas não os que estavam no Governo Civil, que passaram, depois, ao Arquivo Regional da Madeira, nem a biblioteca, que deve ter recolhido ao paço episcopal e ao Seminário, peregrinando e perdendo-se pelos vários locais por que quer o paço, quer o seminário foram passando, assim se explicando que quase nada da importante documentação bibliográfica ali guardada tenha chegado até nós. O edifício foi logo disputado pelos novos poderes liberais instituídos, como a Câmara Municipal do Funchal, que o requereu e o recebeu por decreto de 7 de novembro de 1844, para construção, nesse espaço, de um amplo edifício destinado à instalação da nova Câmara Municipal e dos tribunais judiciais, mas a situação de instabilidade política retardou o projeto. O concurso público para apresentação de um projeto só se veio a realizar em 1864 e, a 11 de março de 1866, saía da Sé do Funchal “um luzido cortejo” presidido pelo bispo do Funchal, D. Patrício Xavier de Moura (1859-1872), que fora bispo de Cabo Verde, cortejo onde se incorporaram as autoridades superiores do distrito, procedendo ao lançamento da primeira pedra do novo conjunto de edifícios, que não passou da primeira pedra (SILVA e MENESES, 1998, I, 313). [caption id="attachment_14397" align="alignleft" width="199"] Convento de São Francisco. Arquivo Rui Carita.[/caption] [caption id="attachment_14394" align="alignleft" width="226"] Demolição do Convento de São Francisco[/caption] Nos anos seguintes, os edifícios do velho Convento arruinavam-se progressivamente, mas só devem ter sido demolidos nos inícios da déc. de 70, pois restam algumas fotografias do conjunto, ainda parcialmente de pé. Nos anos seguintes, parte da cerca foi dando origem aos novos arruamentos, depois as ruas Hermenegildo Capelo, Serpa Pinto e Conselheiro José Silvestre Ribeiro, e, por volta de 1880, ao jardim municipal e ao teatro municipal. Do conjunto edificado parecem só restar o brasão de armas nacionais e franciscanas, no canto sudeste do jardim, e o chafariz da cerca do Convento, que nos inícios do séc. XIX já estava na vizinha praça da Constituição, então passeio público, servindo de base ao conjunto do largo do Chafariz, cuja pilastra superior parece ter sido encomendada para o monumento à Constituição de 1820 – chegando ao Funchal depois da abolição da mesma, nunca chegou a ser montada no monumento, cuja base também já havia sido demolida.   Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

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convento das mercês

Com a prosperidade de algumas famílias madeirenses na segunda metade do séc. XVII, um certo fervor religioso e as necessidades da época de concentração de propriedades nos morgadios, que colocava a maior parte dos elementos femininos numa situação de resguardo social, também a família Berenguer de Leminhana, herdeira de um importante morgado na Calheta, fundou um pequeno recolhimento, em terreno quase anexo ao Convento de S.ta Clara. Este convento, tal como o da Encarnação destinava-se a “donzelas nobres”, havendo assim necessidade de outro, a que, em princípio, tivessem acesso as filhas das restantes famílias. Acrescia ainda que, com o tempo, a não obediência a algumas regras conventuais nesses conventos levantara algumas críticas e apontava também para a necessidade da fundação de um mosteiro de regras mais rígidas. No entanto, muito provavelmente para além de tudo isso teriam estado questões de prestígio social e de afirmação económica por parte da família dos fundadores. Neste quadro nasceu a fundação do que foi inicialmente recolhimento de N.ª Sr.ª das Mercês, em 1654, por Gaspar Berenguer de Andrada (1603-1691) e sua mulher Isabel de França Andrade (c. 1610-1659), senhores do morgado do Lombo do Doutor, fundado por Pedro Berenguer de Leminhana e ao qual se juntara a terça de Rodrigues Annes, “o coxo”, na Ponta do Sol. A ideia inicial era fundar uma capela e só depois se associou a ideia de um recolhimento religioso, dentro de uma regra mais rígida que a regra urbanista de S.ta Clara, e conseguindo-se, nessa sequência, alvará régio a 25 de agosto de 1661, confirmado em 17 de agosto de 1665 pelo Papa Alexandre VII, que elevou assim esta casa a mosteiro da primeira ordem de S.ta Clara, ou da Regra da Terceira Ordem de S. Francisco, de severa e estrita observância, as Capuchinhas, que deste modo se manteve através dos tempos até ao momento da sua extinção, mas prolongando-se depois nos novos mosteiros da mesma regra: o de S.to António do Lombo dos Aguiares e o da Piedade, na Caldeira de Câmara de Lobos, e inclusivamente para os Açores e para o Brasil. A família Berenguer distinguira-se francamente nas terras do Brasil, onde o fundador do Convento estivera na luta contra os Holandeses, encontrando-se esta família ligada, e.g., a João Fernandes Vieira (c. 1613-1681), que se casara com Maria César, filha de Francisco Berenguer de Andrade, tio do fundador do Convento e distinguindo-se igualmente naquelas terras outros membros, como o P.e Agostinho César e os seus irmãos Francisco Berenguer de Andrade e Luísa Berenguer, que se casou com o capitão-mor de Paraíba Manuel Pires Correia. Os instituidores encontravam-se ligados à família Lira e França e esta, por seu lado, também à família de Diogo Fernandes Branco (1583-1644), um dos mais destacados comerciantes da sua época e que se associou a João Fernandes Vieira. Não teriam sido, em princípio, os interesses económicos a presidirem decididamente à ideia de fundação do Convento das Mercês, pois que face à regra por que se optara, não podia possuir bens de raiz, pautando-se toda a sua vida económica por uma enorme austeridade. No entanto, também teriam pesado outros fatores de prestígio e afirmação social, patentes, e.g., nas dificuldades experimentadas logo nos primeiros tempos, inclusivamente, na legalização, pela autoridade eclesiástica, da capela inicial de N.ª Sr.ª das Mercês. As duas filhas de Gaspar de Berenguer e de Isabel de França, Maria e Margarida, e.g., haviam entrado para o Convento de S.ta Clara, onde haviam de professar e, se houvesse um recolhimento de que os Berenguer fossem patronos e instituidores, tal não só não acarretaria especiais encargos económicos, como configuraria outro protagonismo social. A doação do terreno para a capela teve a data de 4 de setembro de 1655 e, perante o projeto e o espaço da propriedade onde se deveria levantar, teria sido o P.e João Ribeiro da companhia de Jesus, primeiro confessor das freiras da Encarnação, a insistir com a doadora para o levantamento também, anexo à capela, de um recolhimento para “donzelas nobres” (NORONHA, 1996, 283). Os alicerces foram abertos a 12 de outubro de 1655, e a 20 do mesmo mês, com a assistência do governador general, Pedro da Silva da Cunha, do reitor do Colégio do Funchal, P.e Manuel Fernandes e demais nobreza local, foi celebrada missa, na qual pregou o cónego e escritor António Veloso de Lira (1616-1691), parente próximo de Gaspar Berenguer, altura em que se benzeu a primeira pedra e que foi colocada pelo governador, o qual mandou depois festejar o ato com salvas de artilharia da fortaleza de São João do Pico. Num curto espaço de tempo as obras iniciais encontravam-se em condições de receber as primeiras recolhidas, o que ocorreu no dia de Corpus Christi, a 15 de junho de 1656. Entraram “sete donzelas de exemplar virtude” (Id., Ibid.), entre as quais a irmã mais nova do fundador, sob o nome de Inês de Jesus, com Isabel da Cruz, Isabel de Jesus, Madalena do Sacramento, Catarina da Paixão, Maria da Encarnação e Isabel de São Francisco, que depois passou para o recolhimento do Bom Jesus da Ribeira. Nos meses seguintes ainda entrariam outras, perfazendo em pouco tempo o número de dezassete recolhidas. O recolhimento, entretanto, mesmo com o apoio, por certo, do Cón. Veloso de Lira, não tendo solicitado autorização ao vigário e provisor do bispado, o cónego e deão Pedro Moreira (c. 1600-1674), que aliás não havia estado no lançamento da primeira pedra, tal como parece não ter estado nenhum membro da comunidade franciscana, embora tenha estado presente o reitor do Colégio dos Jesuítas do Funchal, o que configurava, em princípio uma situação anómala, pelo que conheceu dificuldades de institucionalização pela autoridade eclesiástica. Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825-1898) descreve, nos seus comentários à obra de Gaspar Frutuoso, as dificuldades de autorização levantadas pelo deão do Funchal na instituição do recolhimento da Mercês e na autorização da igreja ter sacrário, que só teriam sido ultrapassadas após um acidente ocorrido com o deão no Mar da Travessa, a caminho do Porto Santo. Segundo a lenda recolhida, provavelmente, nos escritos de um dos confessores do futuro Convento das Mercês, provavelmente o P.e Neto, a embarcação que transportava o Cón. Pedro Moreira ter-se-ia virado e, temendo o pior, o cónego teria evocado N.ª Sr.ª das Mercês, só então percebendo a reserva que estava a colocar à autorização canónica da capela e do recolhimento dos Berenguer. Regressado ao Funchal e aproveitando uma visita que efetuou à igreja matriz de S. Pedro, onde fora beneficiado, resolveu fazer uma visitação às Mercês, a 12 de fevereiro de 1658, autorizando a existência de sacrário na igreja. O deão e vigário geral Pedro Moreira teria ficado muito bem impressionado com o recolhimento, já organizado internamente com uma regente, auxiliada por uma vigária e uma escrivã, prometendo, inclusivamente, tomar as recolhidas “por filhas e súbditas em seu próprio nome e dos futuros bispos da diocese do Funchal” (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, 268, 5v.), o que, em princípio era prometer demais, desde que se alcançasse licença do rei para se erigirem em mosteiro e com a regra depois determinada pela Santa Sé. Foi pedida licença a Lisboa para a instituição do mosteiro com o apoio do poderoso deão, o qual parece ter passado a uma grande proximidade da família Berenguer, vindo depois um dos irmãos do Cap. Berenguer a ser integrado no cabido da sé do Funchal, o futuro Cón. Bartolomeu César Berenguer. O pedido dos Berenguer, regente e recolhidas foi acompanhado de idêntico pedido do cabido, da câmara do Funchal, como “câmara da Ilha”, do governador e do provedor da fazenda. A partir de 1660, as recolhidas organizavam-se, inclusivamente, como instituídas em convento de capuchas e respeitando a mais rígida clausura, à semelhança do mosteiro da Madre de Deus de Lisboa, dentro das normas da primeira regra reformada de S.ta Clara, embora sem terem ainda compromisso canónico. O nome de capuchinhas, quase de imediato, tornou-se uma referência e ficou como topónimo na travessa que passava a norte do futuro convento. O alvará régio emitido a 25 de agosto de 1661, embora só enviado de Lisboa a 20 de dezembro de 1663, fazendo referência ao pedido da Madeira, “por ser obra tão do serviço de Deus, Nosso Senhor e pia devoção dos moradores da Ilha”, ficando o mosteiro como professo na primeira regra de S.ta Clara, “assim como é o mosteiro da Madre de Deus desta cidade de Lisboa”, que também patrocinara a instituição (NORONHA, 1996, 284). Fica por padroeiro e fundador o Cap. Gaspar Berenguer de Andrade, pois, entretanto, já havia falecido Isabel de França. Ao mesmo padroeiro, para si e seus sucessores no padroado, ficavam “dois lugares de freiras para sempre”, estabelecendo-se um quantitativo de vinte e um membros para a comunidade capuchinha, que seria governada pelos prelados do Funchal e, na sua ausência, pelo deão “que ora é” e pelos vigários gerais que se seguirem e, faltando esses, pelas dignidades que se seguirem (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 268, fls. 5v.-6). Em face da chegada do mesmo alvará, a 5 de julho de 1664, o Cap. Berenguer, a regente e as recolhidas solicitavam ao deão Pedro Moreira nova visita ao futuro mosteiro para autorização canónica. A visitação ocorreu a 21 de julho de 1664, depois de consultado o comissário do Convento de S. Francisco, indo o deão acompanhado pelo vigário de S. Pedro, freguesia de quem o futuro convento dependia, e pelo escrivão eclesiástico e de visitações, P.e Francisco da Fonseca. Entraram na igreja de N.ª Sr.ª das Mercês, “a qual achou muito ornada e decente”, por haver nela sacrário “como há, por sua licença”, onde se encerrava o Santíssimo, e no interior do recolhimento, referindo os dormitórios, o coro superior, o parlatório, o refeitório, a cozinha e a cerca, e “as mais partes altas e concernes à clausura das religiosas”. O experiente deão percebeu de imediato as limitações do local para um futuro convento de estrita observância, assunto que atravessará toda a história da instituição, determinando levantar o muro que corria até ao Convento de S.ta Clara, “seis a oito palmos” (cerca de 1,30 m a 1,75 m) e o que ia até às casas do Cap. Cristóvão de Atouguia da Costa, “oito a dez palmos” (entre 2,00 m 2,20 m), “por razão da rocha que está fronteira à cerca” donde se devassava “o serrado” (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 268, fls. 5v.-6). Na altura da visitação de junho de 1664, eram superioras do recolhimento a regente M.e Maria dos Prazeres, a vigária da casa, M.e Isabel da Cruz, e a escrivã, M.e Madalena do Sacramento. Nessa altura, assentou-se na necessidade de um confessor, um capelão, um feitor e um servente de fora. Os bens do convento foram determinados concretamente para a manutenção do futuro mosteiro, dotando-o o fundador e seus filhos, o ainda P.e Bartolomeu César Berenguer, José de França Berenguer (1638-1719), futuro patrono e o P.e Gaspar Berenguer de Andrade, dado o falecimento dos três filhos mais velhos, a 1 de julho de 1665, feita na nota do tabelião Manuel Fernandes Silva, perante o deão e as recolhidas, com 14 moios de trigo das suas propriedades na Ponta do Sol, Calheta, Estreito da Calheta e Porto do Moniz. Avaliando-se cada moio em 18$000 réis, dava um total de 252$000 réis, o que correspondia a 630 cruzados anuais, soma bastante avultada para a época. Igualmente se assentou que a sustentação de cada freira seria anualmente de 25 cruzados; do sacerdote-confessor, 40; o capelão e feitor, 40 cada; e o servente de fora, 25. A dotação inicial de instituição da capela havia sido de três moios de trigo anuais, no morgado da Ponta do Sol, a que se somaram depois mais onze para o mosteiro em outras propriedades de várias freguesias, importância bastante significativa para a época e o que viria a criar inúmeros problemas aos descendentes. No testamento do herdeiro, José de França Berenguer, aprovado a 29 de março de 1719, refere-se que o dote feito “a que se obrigava todos os nossos bens quanto bastassem para renderem cento e trinta mil réis” (Ibid., Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 85), pelo que se deduz ter havido posterior alteração à inicial dotação de 250$000 réis, do que se haveriam de queixar depois as freiras. Tal não deixou, no entanto, de motivar futuras disputas entre os herdeiros, tal como entre o deão e o cabido pela superintendência sobre o Convento. Com a chegada do breve apostólico de 17 de agosto de 1665 ao Funchal, a 20 de dezembro do seguinte ano de 1666, comunicado às religiosas o seu conteúdo pelo deão, novamente se procedeu a auto de vistoria, então a 6 de junho de 1667, tendo comparecido a madre regente, Inês de Jesus; a vigária do coro, Catarina da Paixão; as M.es Maria do Sacramento e Isabel de Jesus, porteiras; a M.e Isabel da Cruz, vigária da casa; e a M.e Francisca do Espírito Santo, sacristã. O recolhimento tinha na altura 18 freiras e as preocupações dos visitadores foram para a segurança da clausura: se todas as portas tinham “bons ferrolhos e boas fechaduras”, se as várias grades eram de ferro e “bem fortes para a segurança da clausura interior”, etc. Foram vistos os dois dormitórios, com um total de vinte celas e mais três, da enfermaria, consideradas bastantes (Ibid., Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 14). Face à vistoria positiva do deão Pedro Moreira e do escrivão da câmara eclesiástica Francisco da Fonseca, foi dada autorização para a passagem à fundação do convento, tendo sido escolhida pelo deão em S.ta Clara a nova madre do Convento de N.ª Sr.ª das Mercês, a Ir. Branca de Jesus, filha de João Bettencourt de Freitas e de Isabel Moniz, que ali professara em 1636. Para a fundação foi escolhido o dia de S.to António, 13 de julho de 1666. Estando nesse dia a M.e Ana do Evangelista à porta do Convento de S.ta Clara, da parte de dentro inúmeras freiras e, na de fora, o deão e vigário geral, acompanhado de Fr. Domingos da Assunção, comissário do Convento de S. Francisco e do de S.ta Clara, libertada dos seus votos de obediência à abadessa, “fechada numa cadeira (que são as carroças desta Ilha)”, a mesma frase utilizada anteriormente na fundação do Convento da Encarnação, deslocou-se a nova madre “acompanhada de muito povo” para o Convento das Mercês (Ibid., liv. 14). A nova prelada era esperada à porta do mosteiro, na parte de dentro, pela regente M.e Inês de Jesus e demais irmãs, e entrando o deão na clausura, apresentou-lhes a nova madre “eleita e confirmada por ele”. Após algumas exortações retirou-se, sendo fechada a clausura e levando as irmãs a sua prelada para dentro do Convento, entoando o hino Te Deum Laudamus e “dando graças a Nosso Senhor pela grande mercê que lhes fez”, deu-se início à canónica fundação do mosteiro (APE, cx. 26, doc. 1). A fundação e a construção do Convento das Mercês encontram-se ligadas a várias lendas piedosas. A primeira refere o aparecimento de N.ª Sr.ª das Mercês a Isabel de França ou a “certo religioso, grande servo de Deus” (NORONHA, 1996, 283), a ser assediada por um “esquadrão de demónios, disparando flechas contra ela”, prodígio depois representado num medalhão pintado no teto da igreja (FRUTUOSO, 1873, 592-593) e que estaria na base da fundação da primeira capela. A segunda refere as dificuldades económicas da construção do recolhimento, tendo aparecido a Virgem em sonhos a Isabel de França, dizendo-lhe que fosse ao seu jardim, onde estava uma “pedra de moinho e, junto da mesma outra pedra branca” debaixo da qual tiraria o dinheiro, quanto bastasse para acabar a obra. Assim, teria acontecido e voltando segunda vez, foi pressentida pelo marido, que quando chegou junto da mesma, querendo também continuar a retirar dinheiro “achou carvão” (Id., Ibid.). Outra lenda vinculada ao Mosteiro e propagada pelos cronistas religiosos tenta colar as questões que opuseram o Gov. Francisco de Mascarenhas (c. 1632-c. 1695) a vários nobres e religiosos, e que levaram à grave sedição que depôs o governador, ao facto de – entre outras razões - o mesmo ter tentado parar as obras do Convento das Mercês (Sedição de 1668). A sedição ocorreu a 18 de setembro de 1668 e foi planeada, em princípio, pelo deão Pedro Moreira, envolvendo de início os dois padres Agostinho César Berenguer e Bartolomeu César Berenguer, tio e sobrinho, aos quais aderiu de imediato o Cap. Gaspar César Berenguer, que aproveitou o levantamento e a colaboração do padre para libertar o filho José de França Berenguer, que estava preso em São Lourenço. À sedição associaram-se os frades de S. Francisco, mas não os padres do Colégio do Funchal, até porque a prisão do governador ocorrera quando o mesmo ia visitar a quinta do Pico, contando depois para Roma que teriam ficado incomunicáveis vários meses, por não quererem assinar a representação contra o governador. O Cap. Gaspar Berenguer seria o elemento eleito no Funchal para ir a Lisboa apresentar as razões dos revoltosos e, regressado, informou que as mesmas tinham sido aceites, o que não era verdade. Algum tempo depois apresentava-se no Funchal um novo governador e um juiz desembargador para averiguação do sucedido, arrastando-se o processo por anos, mas não havendo qualquer referência às obras do Convento das Mercês e, ao que parece, praticamente ninguém cumpriu as penas por que foi condenado. A situação económica do Convento nunca foi folgada, embora logo em 1661, tenham as freiras conseguido a isenção da contribuição para as despesas de guerra, constituída por uma maquia de cada alqueire de trigo. Nos anos seguintes queixavam-se ao príncipe regente D. Pedro, da grande pobreza em que viviam pela falta de esmolas dos moradores e dado serem os donativos o seu único património. Com essa exposição obtiveram, em 1676, uma esmola anual de dezasseis mil réis, paga pelos sobejos da alfândega do Funchal, tal como alguns anos depois, em 1715, recebiam nova mercê anual de quarenta mil réis para pagamento do confessor “que lhe ministre o pasto espiritual” (BNP, Reservados, fl. 75v.). A Coroa e os devotos financiavam a manutenção da sacristia, tal como os “hábitos e túnicas”, acrescentando o cronista Henrique Henriques de Noronha (1667-1730) que, para além do confessor, a Fazenda real também pagava o capelão “que apresenta o ordinário” (NORONHA, 1996, 284), verba que, contudo, não foi possível detetar nos registos da Alfândega. A coroa concedia: em janeiro de 1752, a mercê anual de uma arroba de cera para a festa de S. José, com vencimento de 3 de novembro do ano anterior ano de 1751 e, em de janeiro de 1784, a de mais duas arrobas de cera, com o mesmo vencimento de 3 de novembro, para a festa do Santíssimo e “outras da dita igreja” (BNP, Reservados, fls. 75v.-76). Nos inícios do séc. xix a coroa continuou a apoiar o serviço da sacristia com donativos, instituídos em 1803 e 1819. A sucessão da administração e padroado do Convento foi regulada pelo fundador, pela anterior escritura de 1 de julho de 1665 e por testamento feito em 21 de dezembro de 1686. No entanto, nos finais do séc. XVII, nos inícios de fevereiro de 1697, com mais uma situação de sé vacante, o cabido extrapolava os seus direitos e apoderava-se do controlo e superintendência sobre o Convento, que taxativamente e, segundo se encontrava estabelecido, era do bispo e, na sua ausência, do vigário geral, ou de quem o substituía, citando-se mesmo, que “não ao dito cabido”, mas ao “vigário geral dariam obediência e aceitariam de suas mãos as leis de seu governo”. O pleito subiu à coroa e, enquanto não havia resposta, o cabido acordou em resolução de 5 de fevereiro desse ano de 1697, que as capuchas reconhecessem “a ele Reverendo Cabido por seu prelado” (ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv. 3, 61v.-62). Nos anos seguintes foi a vez de se desentender a família dos padroeiros. O neto do padroeiro José de França Berenguer (1638-1720) casara-se com Maria de Castelo Branco, da qual tivera seis filhos. Ao falecer, já o seu filho mais velho, João de Andrade Berenguer (1671-1716), havia falecido, pelo que o pai deixou em testamento o segundo filho, Agostinho César Berenguer e Atouguia, como seu herdeiro, acrescentando: “e a quem nomeio na administração do padroado do Convento de Nossa Senhora das Mercês” (ABM, Conventos, Convento de N.ª S.ra das Mercês, liv. 268, fl. 84). Acontece que o irmão mais velho, João de Andrade Berenguer havia casado com Tomásia de França e Andrade, com a qual teve dois filhos, João de Andrade Berenguer, entretanto falecido em 1716 e Antónia Josefa (1697-1743), casada com Jorge Correia Bettencourt, filho do Ten.-Gen. Inácio de Bettencourt de Vasconcelos (c. 1700-1720) (Tenente-general). Antónia Josefa e Jorge Correia Bettencourt disputaram o padroado do Convento das Mercês com o tio e, tomando posse da Diocese o bispo jacobeu D. Fr. Manuel Coutinho (1673-1742), a 22 de julho de 1725, ao ter conhecimento da disputa, dentro do seu estilo pessoal mandou recolher toda a documentação do Convento no paço episcopal, afastando do padroado os vários herdeiros do Cap. Gaspar Berenguer e assumindo o controlo de toda a administração. Todos os herdeiros se queixaram do bispo em Lisboa e em Roma, mas o bispo mostrou-se inflexível. Não foi por acaso que um dos grandes opositores ao episcopado de D. Manuel Coutinho tenha sido o Cón. Bartolomeu César de Andrade, que pagou por isso longos períodos de prisão na torre da sé do Funchal. O assunto percorreu todo o séc. XVIII e ainda em 1788, o bispo D. José da Costa Torres (1741-1813) dava conhecimento ao ministro Martinho de Melo e Castro da situação, que muito afetava a vida das religiosas. O assunto só veio a ter desfecho já nos inícios do séc. XIX, por sentença de 19 de abril de 1807, a favor dos descendentes de Antónia Josefa Correia Bettencourt, então Ana Cândida Berenguer de Atouguia Neto casada com Henrique Correia de Vilhena (1769-c. 1830), representante da casa Torre Bela. Quase 100 anos depois, seriam igualmente os Torre Bela a apoiarem os núcleos das freiras do Convento das Mercês, quando em 1910 tiveram de abandonar o edifício e fixarem-se no Sítio da Palmeira e da Torre em Câmara de Lobos. Nos inícios do séc. XVIII, o cronista Henrique Henriques de Noronha descrevia o Convento, começando por elogiar a primeira madre abadessa, M.e Branca de Jesus, que, tendo professado em S.ta Clara na segunda regra, “instruiu na primeira as novas religiosas, de sorte que parecia a aprendera por muitos anos”, numa “destreza e agilidade” que era de admirar. A primeira abadessa recebera “as instruções do seu governo” do mosteiro da Madre de Deus, “daquela observância”, tendo-se tornado uma insigne prelada e nas suas mãos haviam professado 26 noviças, retirando-se no fim da vida para S.ta Clara “para lograr no fim das ações da sua vida a que merecia eterna pelas suas virtudes” (NORONHA, 1996, 284). O edifício do mosteiro tinha então suficientes “cómodos para capuchas”, com todas as oficinas necessárias e alguma extensão de cerca interior, com uma levada de água. A igreja era bem proporcionada e a capela-mor tinha “comungatório” e era dotada com um “vistoso retábulo” de N.ª Sr.ª das Mercês, “obra de Martim Conrado, insigne pintor estrangeiro”, única informação documental que se possui na Ilha sobre este pintor que executou perto de uma dezena de retábulos para a Madeira. O corpo da igreja tinha ainda dois altares colaterais, dedicados a S.ta Maria Madalena e S.ta Catarina de Alexandria, que o cronista apelida de “Santa Catarina Maior”, pinturas hoje na sacristia da matriz de S. Pedro do Funchal, atribuíveis, provavelmente a última, à oficina de António de Oliveira Bernardes (c. 1650-c. 1732). Havia ainda um altar de N.ª Sr.ª da Conceição, com uma “nobre” confraria de sacerdotes, o que era uma originalidade, pois que se encontravam proibidas as confrarias masculinas em conventos femininos. No pavimento da capela-mor estavam sepultados os padroeiros, referindo o cronista Henrique Henriques de Noronha que Isabel de França “cuja vida foi exemplar de virtudes”, acrescentando que “se afirma que apareceu resplandecente” à madre soror Isabel de Jesus, uma das primeiras recolhidas do futuro Convento, “certificando-a que por essa fundação, a aliviara Deus das penas do Purgatório, reduzindo-as a cinco anos somente”. Refere o cronista que se venerava na igreja uma relíquia do mártir S. Faustino, “uma canobla de um braço” (pedaço oco de osso), que fora enviada em 1725 pelo marquês Otaviano Acciauoli, que pertencera à marquesa sua mulher e que lhe foi dada pelo papa Inocêncio XIII, seu tio. Noronha ocupa ainda vários capítulos do seu trabalho com “as virtudes de algumas religiosas deste mosteiro” (Id., Ibid., 285-299), mas que serão eclipsadas posteriormente com as figuras das madres Brites da Paixão (c. 1632-1733) e Virgínia Brites da Paixão (1870-1929), a última, inclusivamente, foi obreira da resistência, manutenção e renascimento desta instituição religiosa na Madeira, de onde viria a irradiar para os Açores e para o Brasil. A vida interna espiritual do Convento das Mercês era muito rígida e não poucas vezes as candidatas não “passavam” no noviciado. Se alguma candidata entrasse sem vocação, as abadessas não descansavam enquanto a mesma não regressasse à família. Conta Henriques de Noronha que logo nos primeiros anos, sendo abadessa a M.e Inês de Jesus, irmã do fundador, sucedeu que entraram sem vocação “certas moças a quem seus parentes quiseram dar aquele estado” (Id., Ibid., 287). A madre, mesmo incorrendo no desagrado do prelado que facilitara a entrada das jovens, procurou convencê-las a sair do mosteiro, tendo conseguido que o deixassem “por sua vontade”. O bispo, segundo o cronista, acabou por pedir desculpa à abadessa. O cronista, no entanto, escrevia de acordo com o pensamento da sua época e foram muitos, com certeza, os casos de vocação perfeitamente forçada. O caso da M.e Isabel Filipa de Santo António, registado no Tribunal do Santo Ofício de Lisboa de onde dependia o bispado é digno de registo. A freira em questão era filha de uma das mais nobres famílias do Funchal, os Câmara Leme, tendo-se chamado Isabel Filipa Telo de Meneses e Sá e, antes de entrar para o Convento das Mercês, segundo depois declarou ao Cón. Hugo Maguiére, de origem irlandesa, ter-se-ia apaixonado, ainda adolescente, por um indivíduo de condição inferior. Falecidos os pais, a tutela da jovem passou ao irmão mais velho, Jacinto da Câmara Leme que, perante a hipótese de um casamento desigual, negociou com o Convento a sua entrada nas Mercês, onde viria a professar, em princípio obrigada. A M.e Isabel Filipa de Santo António com a revolta que experimentava, praticou os mais desvairados desacatos no Convento, blasfémias, gritos, e até a uma tentativa de homicídio a todas as irmãs em religião, esmagando vidros num almofariz para misturar com a comida, uma sopa de favas, como veio a especificar. Chegadas as coisas a este ponto, entendeu a madre superiora não poder manter a situação nas paredes da instituição, denunciando o caso ao comissário do Santo Oficio, o Cón. Hugo Maguiere, que ouviu a madre em questão que, sem especiais remorsos, se assumiu como responsável pela morte de dois dos seus irmãos, que envenenara. Como, entretanto, na realização do processo tinham disponibilizado à madre os serviços de um advogado, ela decidiu usá-lo para o que verdadeiramente pretendia, e que mais não era que sair do Convento. Nas diligências para satisfazer os desejos da sua cliente, o causídico apelou para o Papa a pedir a dispensa dos votos da M.e Isabel Filipa, alegando que, apesar de já terem decorrido os cinco anos que a lei permitia para a revogação dos votos, a infeliz religiosa nunca dispusera, dentro desse tempo, dos recursos necessários à realização dos trâmites, pelo que tentava, agora, atingir aquele desígnio. Após endosso do papa, o bispo da Diocese, na altura D. Fr. João do Nascimento (c. 1690-1753), viu-se encarregado de encontrar uma solução para o caso e, apesar de já muito doente, ainda decidiu que a anulação dos votos não seria possível, condenando a freira a pedir à comunidade perdão de joelhos e a ser transferida para outra casa religiosa. Consultando os arquivos do Convento das Mercês, a M.e Isabel Filipa não consta. No entanto, consta a entrada de uma sobrinha sua, Vicência Juliana Câmara Leme Meneses Sá e Acciauoli, em 1760, com 13 anos de idade, poucos anos depois deste processo, filha de Francisco Aurélio da Câmara Leme e de Antónia Maria de Meneses Sá e Acciauoli. O mosteiro de N.ª Sr.ª das Mercês sofreu importantes obras de reconstrução nos meados do séc. XVIII, essencialmente a cargo da fazenda régia, dadas as complexas disputas entre os descendentes dos iniciais padroeiros. Por mandado do conselho da fazenda de 20 de julho de 1746 foi feita mercê de oitocentos mil réis, a favor do dito Convento, “por uma só vez” e pelas sobras das dívidas dos almoxarifes, para se efetuar o conserto dos muros da cerca, do dormitório, casa do noviciado e do coro da igreja (ANTT, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, liv. 19, fl. 177 v.), ainda havendo, com data de 9 de agosto de 1752, novo mandado do conselho da fazenda de mais quatrocentos mil réis para se acabarem as obras. No final do séc. XVIII e quando as instituições anteriores se tornavam menos rígidas, continuavam as freiras capuchinhas a lutar pelo seu completo isolamento, tendo sempre como principal preocupação, o muro que cercava o Convento. No início de 1782, e.g., o governador determinou uma rigorosa vistoria à cerca do Convento, “a pedido da madre abadessa e demais religiosas”, pois que as grades e a cerca eram devassadas em vários sítios e, o que era pior, “muitas pessoas têm a temerária ousadia de abrir buracos e encostarem escadas e outros instrumentos aos muros da dita casa; para assim poderem ver as procissões e outros atos religiosos em que as mesmas clausuradas se entretêm”. Ora tudo isso era “diametralmente oposto à modéstia e recolhimento daquela clausura” (ABM, Governo Civil, 535, liv. 11), pelo que o Cap. Eng.º José António Vila Vicêncio (c. 1720-1794) procedeu a uma completa inspeção a toda a cerca do Convento, de que elaborou relatório, procedendo-se, de novo a obras pontuais nos muros. O exemplo mais notável de profundo recolhimento e da total entrega a uma vida interior e espiritual foi, muito provavelmente, o da vida da M.e Brites da Paixão (c. 1632-1733). Filha natural do 6.º morgado do Caniço, Aires de Ornelas e Vasconcelos (1620-1689), foi o pai que lhe ofereceu a célebre imagem do Senhor da Paciência com quem a irmã falava como se fosse viva – segundo a tradição dos mosteiros das Mercês, depois de S.to António do Lombo dos Aguiares, para onde a imagem foi transferida –, que levou consigo para a casa paterna, no Lombo dos Aguiares, ao ser expulsa do mosteiro com as suas irmãs, em 1910. Foram-lhe atribuídas inúmeras graças, quer em vida, quer depois da morte, ocorrida em 1929, dedicando-lhe o povo um certo e especial culto, que levou o P.e Fernando Augusto da Silva (1863-1949) a iniciar o seu processo de beatificação, que abriu oficialmente em 2006 e em 2016 ainda corria. Foi com naturalidade que, algumas décadas depois, entrou para o Convento uma humilde rapariga de 17 anos, natural do Lombo dos Aguiares, que haveria de assumir o nome de Virgínia Brites da Paixão (1870-1929), devido ao facto de ser uma grande admiradora das virtudes da madre que ostentara aquele nome, existindo entre ambas muitos factos em comum. Foi com base na sua devoção e na da sua orientadora espiritual que surgiu depois o Convento de S.to António do Lombo dos Aguiares. Em 1834, com a implantação das diretivas do novo governo liberal e no âmbito da reforma geral eclesiástica empreendida pelo ministro e secretário de Estado, Joaquim António de Aguiar, que ficou conhecida por “mata frades”, executada pela Comissão da Reforma Geral do Clero (1833-1837), pelo decreto de 30 de maio, foram extintos todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e casas de religiosos de todas as ordens religiosas, ficando as de religiosas, sujeitas aos respetivos bispos, até à morte da última freira, data do encerramento definitivo. Se para os conventos urbanistas o controlo das entradas e, inclusivamente, de saídas, fora mais ou menos fácil, para os conventos de capuchinhas, no entanto, tal não era fácil, dada a completa clausura ali praticada. Pelo que, embora proibidas de admitir noviças e, igualmente, de efetuarem profissões de fé pela lei de 5 de agosto de 1833, com a complacência, senão aquiescência das autoridades religiosas, continuaram a fazê-lo. As instruções de 31 de janeiro de 1862 determinaram a altura em que oficialmente o Convento passou à posse do Estado, já vindo a ser feitos inventários desde 1858. As autoridades civis, no entanto, ao longo do liberalismo foram mudando a sua posição inicial e perante o respeito popular de que gozava o Convento das Mercês, o mesmo manteve-se ao longo do séc. XIX. A M.e Ana Joaquina das Mercês morre em 26 de março de 1895 e, com a morte da última religiosa professa à data dos decretos de 28 e 30 de maio de 1834, o Convento foi oficialmente extinto. Os bens foram incorporados nos próprios da Fazenda Nacional, procedendo-se de novo à inventariação do Convento da Mercês, em setembro e outubro 1895, data da única planta do extinto convento que se conhece, levantada e desenhada por Joaquim António de Carvalho (ANTT, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, cx. 2076). Em 2010, Nélson Veríssimo localizou uma aguarela do Convento das Mercês, feita no Funchal, a 18 de setembro de 1877, pelo pintor Edward John Poynter (1836-1919), muito provavelmente da varanda do Reid’s Santa Clara Hotel (Arquitetura do Turismo de Lazer), cujo paradeiro se desconhece. Na data da extinção do Convento, não havia arquivo e somente foi localizada uma pequena caixa de madeira com documentos por classificar. Os arquivos do Convento teriam sido assim já retirados pela Fazenda do Funchal, entre 1858 e 1862, integrando depois o acervo do governo civil e tendo sido, posteriormente, incorporados no arquivo regional. Só depois, a citada caixa, seguiu para Lisboa, para a Torre do Tombo. Dos vários inventários também não consta a célebre imagem do Senhor da Paciência, provavelmente já retirada do Convento pelas irmãs, pois acompanhou a M.e Virgínia da Paixão para o Lombo dos Aguiares e foi entregue ao Convento de S.to António ali instituído. Restavam no Convento da Mercês, à data da morte da M.e Joaquina, 19 professas, todas entradas posteriormente à legislação do primeiro liberalismo, que progressivamente foram requerendo autorização para continuar no Convento, pedido para o qual foram contando com o apoio das autoridades religiosas e civis insulares. A forma mais ou menos legal para a situação foi dada pela lei de 11 de abril de 1901, que autorizou as religiosas a organizarem-se numa Associação de N.ª Sr.ª das Mercês e, embora o Convento se encontrasse extinto, podiam as “associadas” permanecer no antigo edifício. A extinção efetiva do Convento veio a ocorrer com a implantação da República. De forma irrevogável, as pobres freiras foram, na noite de 13 de outubro de 1910, recolhidas em carro fechado e levadas para o andar térreo do Palácio de S. Lourenço, onde “aguardavam ser reclamadas pelas respetivas famílias” como noticiou o Diário de Notícias do dia seguinte (FONTOURA, 2000, 284). A Câmara Municipal do Funchal, logo em novembro desse ano, solicitava a cedência do imóvel para instalação da cadeia civil, sendo elaborado um termo de entrega do mobiliário e da igreja do Convento, algumas alfaias, livros, e outros objetos, ao Mons. João Luís Monteiro (1850-1923), mas os objetos mais valiosos, como eram as pratas da igreja, não fizeram parte da entrega. Parte do espólio de caráter religioso do suprimido Convento foi transferido para o Convento de S.ta Clara, e daí para a igreja matriz de S. Pedro. A transferência da cadeia civil da comarca não se chegou a efetuar e, em 1911, a câmara solicitou a demolição da igreja, sacristia e adro para ampliação da Trav. das Capuchinhas e da R. das Mercês. Em 1915, por pedido do presidente do Instituto de Beneficência Auxílio Maternal do Funchal, Henrique Augusto Rodrigues (1856-1934), coproprietário e fundador do Bazar do Povo e membro destacado do partido republicano, e com a concordância do governador civil, José Vicente de Freitas (1892-1952), foi entregue a este Instituto o que restava do velho e arruinado edifício, pouco depois totalmente demolido. No final do séc. XX, mais precisamente a 8 de setembro de 1998, no seguimento de uma sugestão das irmãs clarissas ao Governo Regional, foi descerrada junto àquela artéria uma pequena peça escultórica, da autoria de Ricardo Velosa, que pretendia evocar o antigo mosteiro de N.ª Sr.ª das Mercês que ali existiu entre 1667 e 1910, com dois baixos-relevos em bronze. Se o edifício do velho Convento das Mercês desapareceu totalmente, o espírito corporizado pelas irmãs manteve-se, mais ou menos recatadamente, como era timbre nestas freiras, que mantiveram, inclusivamente, o hábito nas suas residências de família. Serviu de elo de ligação entre as irmãs a M.e Virgínia Brites da Paixão que, embora residente no Lombo dos Aguiares, passava longos períodos nos vários núcleos residenciais. A madre faleceria em 1929, na residência de família do Lombo dos Aguiares e já não veria renascer o seu convento, desta feita junto da antiga capela de N.ª Sr.ª da Piedade, em Câmara de Lobos, instituído oficialmente em 13 de abril de 1931.     Rui Carita (atualizado a 01.03.2017)

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hinduísmo

O hinduísmo nasceu na Índia, a partir das escrituras sagradas dos Vedas, que também estão na base da antiga ciência e filosofia de vida do yoga, da religião jaina (o jainismo), do budismo e, mais tarde, também do sikhismo (que surge no Norte da Índia, no século XV, a partir do hinduísmo e do sufismo, que é um ramo do islamismo). Têm em comum a procura da libertação humana através do caminho de união com Deus ou com a consciência una e suprema. O hinduísmo afastou-se do yoga, na medida em que se transformou numa religião teísta, com rituais, cultos e superstições, interpretando o conhecimento das escrituras sagradas que são textos ritualísticos por excelência. É uma das religiões mais antigas do mundo, o que está bem patente na universalidade da sua estrutura ética e místico-filosófica e pela amplitude do seu código de união e de tolerância, e oferece aos seus fiéis quatro caminhos, margas ou yogas, para a libertação do ser humano na vida terrena. Estes são denominados karma-yoga (o caminho da ação ou das obras), jnana-yoga (o caminho do conhecimento ou do discernimento), bhakti-yoga (o caminho da devoção ou do amor a Deus) e dhyana-yoga (o caminho da meditação ou da contemplação). Trata-se de quatro métodos individuais de autoaperfeiçoamento, que podem ser associados ao sistema de castas, que que, no passado, tinha uma motivação filosófica relacionada com a educação, a preparação e a integração social: a casta dos brâmanes (os sacerdotes e instrutores), a dos kshatriyas (os militares e estadistas), a dos vaishyas (os comerciantes e agricultores) e a dos rudras (os servidores ou artesãos). Esta divisão subsiste na sociedade indiana, mas sem a rigidez de outrora. Após a compilação dos Vedas, surgiram vários comentários a este texto sagrado, conhecidos como ensinamentos vedantas, que explicavam a sua finalidade e essência. No antigo hinduísmo, ou bramanismo, o conhecimento sagrado dos textos dos Vedas pertencia aos sacerdotes brâmanes, sendo transmitido de pai para filho, dentro da casta. Os ensinamentos dos Vedas, ou vedantas, dizem que, no início, o universo era Brahman (Deus) e que se conhecia apenas a si mesmo como tal. Depois, tornou-se no todo, por isso tudo o que existe é Brahman, ou seja, toda a criação é consciência. Daí o mantra original OM ou AUM, palavra que representa Deus, a unidade inicial da consciência cósmica, semente da criação de tudo o que existe. Por isso, a não-violência, ou ahimsa, é o mais fundamental dos princípios dos hindus, dado que todas as vidas, humanas e não humanas, são sagradas (valor primordial da religião indiana jaina, ou jainismo). Deste modo, os ideais filosóficos-religiosos indianos são: dharma (retitude ou virtude); artha (riqueza); kama (desejos controlados); e moksha (libertação); conduzindo ao estado de sat cit ananda, termo sânscrito que significa existência plena ou autorrealização do ser humano, em que sat está por eternidade, realidade ou existência, cit por consciência infinita e ananda por bem-aventurança ou beatitude, traduzindo o absoluto, o retorno humano à existência una. Esta atitude consciencial pode ser realizada através do estado de buddhi (consciência ou presença que perceciona as verdades subtis), termo que está na origem da denominação de Buda como ser iluminado. Deus é o Atman, supremo, criador, preservador e modificador, que tem vários nomes e várias formas. Deste modo, o Homem, Deus e tudo o que existe são o mesmo Atman. Entende-se, por isso, a meditação como a necessidade de o Homem mergulhar na totalidade da existência cósmica, libertando-se da matéria, porque só o Atman é verdadeiro ou real, dado que a multiplicidade de manifestações na matéria é ilusão (maya). Desta forma, os conceitos fundamentais do conhecimento védico são: a vida eterna da alma e o princípio cíclico do corpo e de tudo o que existe. É a partir do conceito de bhakti-yoga, ou yoga da devoção, entendido como forma de meditação ou contemplação e união com o Uno (um dos quatro caminhos para a libertação enunciados no Bhagavad-Gita), que surge o movimento Hare Krishna. Os devotos deste movimento mundial pertencem à religião que tem origem na Índia, fazendo parte do contexto muito amplo e diversificado do hinduísmo, que é constituído por múltiplas tradições religiosas. O movimento Hare Krishna está inserido na tradição vaishnava (o vaishnavismo corresponde à linha estritamente monoteísta do hinduísmo). O termo “vaishnava” deriva de “Vixnu”, que significa o aspeto imanente de Deus presente na criação material; os devotos desta religião procuram viver em comunidade e sem objetivos terrenos, tendo como único propósito a transcendência da matéria e a união com o Deus uno. O movimento Hare Krishna surgiu do método desenvolvido por Sri Caitanya Mahaprabhu para restabelecer a conexão com Deus através do canto e da meditação, sobretudo com o “Maha-Mantra Hare Krishna”. Os Hare Krishna são considerados transcendentalistas porque procuram elevação espiritual, enquanto os hinduístas são vistos como materialistas porque aspiram a benefícios materiais. A organização Hare Krishna está presente em Portugal, tendo chegado à Madeira no início da déc. de 1990 (na forma de livros expostos na loja do ervanário Bio-Logos) e tendo, em 1998, dado início à venda de livros, de porta em porta, em todo o arquipélago, bem como na rua João Tavira, no Funchal. Na Madeira, tal como nos Açores, um monge devoto faculta o culto e a prática de meditação, para a elevação da consciência individual até ao estado de consciência de Krishna, ou consciência de Deus, e também palestras, cursos e conferências. Vários sacerdotes e monges do movimento em Portugal continental e no resto do mundo foram à Madeira dar ensinamentos espirituais.   Naidea Nunes (atualizado a 01.02.2018)

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