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Como resultado da rutura de relações entre Portugal e a Santa Sé provocada pela implantação definitiva do liberalismo em Portugal, em 1834, as dioceses do reino sofreram um processo de vacatura. No Funchal, durante o período de 10 anos que durou essa situação, o governo do bispado esteve entregue a um franciscano egresso, António Alfredo de Santa Catarina Braga (c. 1795-c.1845), entre 1834 e 1840, e, depois, ao cabido. Só quando se repôs a normalidade nas relações entre o reino e Roma teve lugar a indigitação de novo prelado, tendo a escolha recaído na pessoa de D. José Xavier de Cerveira e Sousa, natural de Mogofores, onde nascera a 27 de novembro de 1797. Filho de um magistrado, o Dr. José Xavier Cerveira, e de D. Rosa Joaquina Cerveira de Sousa, estudou teologia em Coimbra, em cuja universidade se doutorou e foi docente até ser escolhido para o desempenho de funções episcopais na Madeira. Confirmado bispo em 14 de junho de 1843, foi sagrado a 2 de junho de 1844, e chegou à Madeira a 8 de julho do mesmo ano. Ao tomar, presencialmente, contacto com a diocese, deparou com um território perturbado pela presença e ação prosélita do reverendo Robert Reid Kalley (1809-1888), que, como membro da igreja presbiteriana escocesa e grande pregador, tinha conseguido arregimentar um considerável número de madeirenses, os quais, com alguma facilidade, trocavam o seu catolicismo tradicional pelas novas ideias protestantes. Robert Kalley era um médico e pastor escocês que, em 1838, se fixara na Madeira acompanhado pela mulher, Margaret Crawford. Para poder exercer medicina em Portugal, fora a Lisboa, em 1839, matricular-se na faculdade de Medicina, a qual, nesse mesmo ano, o declarou apto para exercer em território nacional. Regressado à Madeira, o reverendo Robert Kalley abriu então um consultório tendo primeiramente em vista atender pacientes ingleses da já grande colónia britânica fixada na Ilha, mas logo depois estendeu a sua ação aos madeirenses pobres, que atendia gratuitamente. Ajudado pelos fundos disponibilizados pelos comerciantes ingleses, pôde abrir um pequeno hospital de 12 camas, onde atendia e tratava os madeirenses de menos recursos, alargando, depois, a sua ação à difusão do ensino primário, para o qual abriu várias escolas espalhadas pela parte oriental da Madeira, nas zonas de Santa Cruz, Santo da Serra, Machico e Porto da Cruz, onde ele próprio assumiu funções de alfabetização. Atendendo a que as autoridades portuguesas pouca atenção dedicavam, na altura, quer à generalização da educação, quer à prestação de cuidados de saúde aos mais desfavorecidos, cedo a fama de benemérito do reverendo Kalley se consolidou, valendo-lhe os maiores elogios de todos os quadrantes sociais da Madeira e até da própria câmara municipal do Funchal, que, em maio de 1841, publicamente o louvou pela atividade filantrópica. Aproveitando a onda de simpatia gerada à sua volta, o reverendo Kalley iniciou, então, uma campanha de conversão ao protestantismo que, graças às suas qualidades oratórias e ao reconhecimento do seu trabalho meritório na assistência social, rapidamente conquistou um inusitado número de adeptos, começando a preocupar as autoridades. As notícias destas conversões terão chegado a Lisboa em 1841, vindo de lá ordens para o deão da sé, Dr. Januário Vicente Camacho, no sentido de travar a campanha evangelizadora. Apesar destas determinações, o Dr. Januário Camacho, amigo pessoal do reverendo Kalley e antigo exilado em Inglaterra por razões políticas, não agiu com a assertividade que o momento requeria, pelo que, em vez do pretendido esmorecimento do proselitismo protestante, assistiu-se, pelo contrário, a um aumento da sua atividade, patente, por exemplo, na adoção da Bíblia protestante como fonte de textos usados nas escolas fundadas por Kalley. A agravar esta conjuntura, já de si complexa, a Madeira sofreu, em 1842, uma grande aluvião que veio maximizar os efeitos da crise económica que já se sentia como reflexo das alterações do contexto político, fazendo grassar a fome por todo o arquipélago. A degradação das condições de vida na Madeira teria, também, contribuído para o engrossar das fileiras dos seguidores de Kalley, fenómeno que, em 1843, começou a gerar grande apreensão por parte das autoridades insulares. Essa preocupação revelou-se, por exemplo, em advertências do administrador do concelho do Funchal ao pastor, no sentido de não falar de religião aos madeirenses, e em alertas do governador, Domingos Olavo Correia de Azevedo, à população, salientando a ilegalidade do culto protestante. Por outro lado, a Igreja também reagia, e instaurava processos por heresia a dois convertidos. A imprensa juntou-se ao coro das críticas, chegando o periódico católico O Imparcial a recomendar o chicote, a forca e a fogueira como únicos meios capazes de travar a progressão das ideias calvinistas. O governador, por seu turno, continuava a oficiar para Lisboa, informando da marcha dos acontecimentos, que se sentia incapaz de travar, e pedindo auxílio à rainha, a quem solicitava que as notícias fossem comunicadas. A 23 de maio de 1843, o governador chegou a um entendimento com o reverendo, que garantiu não voltar a receber madeirenses nas suas práticas, compromisso que violou logo um dia depois. Em julho do mesmo ano, instaurou-se a Kalley um processo-crime no tribunal do Funchal, do qual resultou a prisão do pastor e de 26 seguidores. Encarcerado durante seis meses, o reverendo foi, depois, libertado por diligências da comunidade inglesa, de novo retomando as suas atividades, para as quais tinha conseguido mais financiamento no decurso de uma viagem que efetuou a Inglaterra. Foi este o conturbado contexto com que deparou o novo bispo do Funchal, que, ao desembarcar na Ilha em 8 de julho de 1844, logo meteu mãos à complicada obra que o aguardava, publicando uma pastoral com data de 13 do mesmo mês, na qual, depois de declarar que por várias vezes declinara a mitra, passava a louvar o clero diocesano que reputava de respeitável, conspícuo e benemérito, para além de muito competente para dirigir o rebanho, numa alusão, ainda que velada, à ausência de necessidade de recurso a outros pastores. Mais abertamente, logo depois referia-se aos dias de tribulação por que passava a Ilha, sujeita ao cisma e à heresia, contra os quais apontava a firmeza na fé como solução, exortando os fiéis a permanecerem constantes na crença dos antepassados. Depois deste, e antes de o ano findar, saíram à luz outros três textos, mais ásperos, e todos voltados para o combate à heresia. Aproveitando os recursos que a época disponibilizava, D. José Cerveira e Sousa fazia igualmente publicar na imprensa, dois dias depois, uma exortação pastoral consonante com o texto referido, pretendendo assim alcançar um público o mais vasto possível, o mesmo acontecendo com outras determinações episcopais que também serão anunciadas em periódicos. Ciente dos efeitos que a crise económica tinha sobre a população, o bispo alertava também contra o impacto que as fingidas ações de beneficência traduzidas “num capcioso bocado de pão” produziam no povo, falando da importância de se não cair nas garras do “lobo” (ARM, Arquivo Paroquial do Episcopado do Funchal, doc. 411, fl. 17). A produção de tantas pastorais num tão curto espaço de tempo dá bem a medida da inquietação do bispo, que se começava a ver impotente para deter o avanço das conversões de Kalley, e explica que, logo em janeiro de 1845, o prelado tenha continuado o seu labor com mais um documento em que, desta feita, aplicava à Madeira o resultado de uma súplica para que se diminuíssem os dias santos, por se considerar que eram sério obstáculo ao trabalho necessário à sobrevivência em tempos tão difíceis. O mesmo texto dava, ainda, conta da ausência de Kalley para Inglaterra, apelando à população para que aproveitasse o momento para se purificar do “mortífero veneno” que a atingira (Ibid., fl. 18). Perante o regresso do pastor protestante, D. José Cerveira e Sousa, desiludido com a falta de resposta positiva às suas repetidas exortações, decidiu trocar a Ilha pelo reino, invocando, a 12 de fevereiro de 1846, um débil estado de saúde, o cansaço da administração e a necessidade de pessoalmente resolver alguns negócios, deixando, por algum tempo, o governo da diocese ao provisor do bispado. Sem conseguir prever o rumo dos acontecimentos, despedia-se, considerando que aquela exortação pudesse ser “talvez, Deos o sabe, […] a ultima que vos dirigimos” (Ibid., fl. 21). A 2 de agosto de 1846, contudo, deu-se um volta-face na situação do reverendo Kalley, que viu alguns seguidores perseguidos pela população. Travado o processo pela polícia, reacendeu-se poucos dias depois, quando, a 8 e 9 do mesmo mês, se registaram novos incidentes em que foram visados habitantes “calvinistas” de Santo António da Serra e do Lombo das Faias, expulsos das suas residências, as quais acabaram pasto das chamas. No mesmo dia 9 também a casa do próprio reverendo foi objeto da fúria popular, que a invadiu na esperança de encontrar o pastor. Este, contudo, avisado a tempo, tinha conseguido refugiar-se, embarcando no dia seguinte, disfarçado de mulher, num barco inglês que o levou para não mais voltar. Este ponto final na questão Kalley na Ilha não pôde deixar de agradar ao prelado, que graças a ele e em resposta à chamada do novo governador, José Silvestre Pereira, se aprestou a regressar, congratulando-se, a 30 de outubro de 1846, pela devolução do seu rebanho que, depois de dilacerado por “esse lobo da Escócia”, era exortado a retornar ao redil do catolicismo (Ibid., fl. 32). José Silvestre Ribeiro, empossado como governador a 7 de outubro de 1846, ficara, à sua chegada ao Funchal, consternado com dois aspetos da vida na Ilha: um enorme fluxo migratório para Demerara e outros pontos da América do Sul e a devastadora miséria que assolava os residentes. Para fazer face a esse cenário desolador, o governador encetou, de imediato, contactos com diversas personalidades locais, nomeadamente com autoridades eclesiásticas, e a 13 de outubro enviava para o reino um pedido de urgente regresso de D. José Cerveira e Sousa, o qual foi, como se viu, prontamente correspondido. Na procura de soluções incluiu o governador a reativação de uma Comissão Central de Auxílio que então se passou a designar Comissão de Socorros Públicos, de cuja presidência encarregou o prelado. Este foi apenas um dos sinais do apreço que Silvestre Ribeiro tinha pelo bispo, mas outros se podem encontrar no período de tempo em que coexistiram na Madeira. Um deles foi a nova indigitação do prelado para presidir ao Asilo de Mendicidade, que o governador fez acompanhar de sentido agradecimento da “inestimável fineza” de que dera provas D. José Cerveira de Sousa ao aceitar aquele encargo (CARITA, 2008, 115). Outro prende-se com a colaboração do governador com a Igreja insular demonstrada na campanha de obras levadas a cabo para recuperar igrejas degradadas, nomeadamente a do Santo da Serra, a matriz de S. Jorge e a igreja do Colégio que, depois de reabilitada, foi entregue à diocese. Podendo, agora, depois de desaparecida a ameaça Kalley, dedicar-se a outros aspetos da vida diocesana, D. José Cerveira e Sousa apelava, em fevereiro, à caridade dos fiéis, exortando-os a ajudar os necessitados, e, a 11 de março de 1847, à realização de novenas de preces para se acabar a fome. A 10 de agosto, o bispo dirigia-se aos madeirenses para que se mantivessem em paz, evitando replicar na Ilha o clima de agitação social que se vivia no reino. Já em julho de 1848, e graças a cartas régias enviadas por D. Maria II, se ficava a saber que o bispo tinha procedido a diligências anteriores que visavam um aumento das côngruas eclesiásticas e a uma nova divisão paroquial que reformulava quatro paróquias anteriores: Água de Pena, Achadas da Cruz, Quinta Grande e Faial, cuja área se pretendia aumentar. No tocante às remunerações do clero, a carta régia refere ter emitido, em maio de 1845, ordens no sentido de se proceder a averiguações sobre o verdadeiro estado económico dos eclesiásticos, das quais ficaram encarregados o bispo e o governador. A essas pesquisas se ficarão, talvez, a dever os comentários que José Silvestre Ribeiro produziu sobre a situação, quando declarava que os membros do clero, apesar de muito necessários, eram “contra toda a razão, os mais mal recompensados” (CARITA, 2008, 116). A ação conjunta das duas personalidades permitiu, pois, que se remediasse o estatuto financeiro de párocos, curas e beneficiados. Assim, quando em 1849 D. José Cerveira de Sousa trocou o bispado da Madeira pelo de Beja, levava a consciência de ter realizado um trabalho meritório na diocese, que tinha deixado mais serena e apetrechada do que quando a recebera. D. José de Cerveira e Sousa acabou por, depois de Beja, ser bispo de Viseu, cargo a que resignou, retirando-se para a sua terra natal, Mogofores, onde veio a falecer a 15 de março de 1862.       Ana Cristina Trindade Rui Carita (10.02.2017)                        

História Económica e Social História da Educação Religiões

sousa, david de

Nasceu a 25 de outubro de 1911, em São João de Alpendurada, Marco de Canaveses, sendo filho de Manuel de Sousa e Maria de Jesus de Sousa. Aos 14 anos entrou no Colégio Seráfico de Santo António, em Tui, Espanha, vindo a completar os estudos de humanidades no Colégio de Montariol, em Braga, em 1931. Neste mesmo ano foi aceite como noviço na Primeira Ordem de S. Francisco, tendo professado a 26 de novembro de 1935. Em 1932, regressou a Tui para cursar filosofia e aí permaneceu até 1934, altura em que se transferiu para Roma, onde terminou os estudos com doutoramento em Sagrada Escritura obtido no Pontifício Ateneu Antoniano, organismo pertencente à Ordem dos Frades Menores (OFM). Findo o percurso curricular em 1940, tornou-se professor e reitor do seminário do convento da Luz, em Lisboa, a que se seguiu o desempenho de funções como provincial e visitador dos conventos da OFM, tanto no continente português como nas antigas colónias. Bom orador, viu os seus dotes reconhecidos em diversas intervenções que realizou no estrangeiro, em semanas bíblicas e congressos internacionais. De entre as suas intervenções, destacam-se as comunicações que apresentou ao Congresso Mariológico Luso-Espanhol, realizado em Fátima, de 12 e 16 de julho de 1944, ao Congresso Mariano Assuncionístico, decorrido em Lisboa e Fátima, entre 9 e 13 de outubro de 1947, e, finalmente, ao Congresso da União Missionária do Clero, efetuado em Fátima, de 10 e 13 de agosto de 1948. Além desta atividade, foi, ainda, participante em cursos anuais destinados a homens e mulheres da Liga Católica de Lisboa que tiveram lugar nos anos de 1946 a 1949. A 24 de setembro de 1957, foi indicado por Pio XII para a diocese do Funchal, em substituição do falecido D. António Manuel Pereira Ribeiro, tendo sido a sua eleição saudada pelos diocesanos que, segundo Eduardo Pereira, veriam com bons olhos um franciscano na mitra do Funchal, atendendo à longa tradição franciscana da Madeira. O seu episcopado ficou assinalado, sobretudo, pela profunda transformação que operou no território paroquial da Ilha, que subdividiu, fazendo-o passar de 52 paróquias para 102, embora nem todas tenham vingado; hoje, o número de circunscrições paroquiais cifra-se em 96 (Paróquias). Com efeito, a 24 de novembro de 1960, D. frei David fez publicar o Decreto sobre a Atualização das Paróquias da diocese do Funchal que remodelava o território, tendo entrado em vigor a 1 de janeiro de 1961. De acordo com palavras do próprio, a reorganização ocorria num contexto de grande estudo e diálogo com diversas instâncias, civis e religiosas, relativamente às “condições topográficas, as distâncias e a dispersão da população”, bem como a melhoria das acessibilidades à igreja por parte das populações (Jornal da Madeira, 15 fev. 1958). A complementar esta iniciativa, decidiu D. David de Sousa criar, igualmente, o arciprestado de Câmara de Lobos, que englobava as paróquias dos concelhos de Câmara de Lobos e Ribeira Brava. A reforma territorial, que deixou intactas 16 das 52 paróquias existentes, mas transformou 36 em 50, trouxe, como seria quase inevitável, alguns dissabores, mas deixou também, em D. frei David, a satisfação de um desígnio que para ele, que considerava que na “paróquia-comunidade” estava o futuro da Igreja, era importante. Outra das iniciativas de D. frei David de Sousa passou pela aquisição de um edifício onde, até então, funcionava o hotel Bela Vista, e que o prelado destinou ao acolhimento do seminário maior da diocese, intitulado Nossa Senhora de Fátima. Segundo o prelado, o bispado precisava de “moderno e desafogado seminário maior para os estudos superiores de filosofia e teologia”, embora também necessitasse de manter em funcionamento o seminário menor (SOUSA, 2015, 13). O contexto da época fazia dos seminários escolas muito procuradas, o que se comprova pelo facto de, entre 1915 e 1963, terem frequentado esses estudos 1313 alunos, explicando estes números a necessidade sentida pelo prelado de dotar a diocese de maiores e melhores espaços para o cumprimento daquela função educativa (SEMINÁRIOS). A intervenção de D. frei David de Sousa também se fez sentir nas estruturas administrativas do bispado, com a criação do cargo de vice-vigário geral da diocese, para o qual foi nomeado, a 1 de agosto de 1964, o cónego Dr. Manuel Ferreira Cabral, futuro bispo da Beira, em Moçambique. Para além deste lugar, criou novos patamares na hierarquia da igreja regional, designadamente os de secretário diocesano dos cursos de cristandade, atividade que também se iniciou no seu episcopado e que se destinava a promover a evangelização dos fiéis. O prelado dotou, ainda, a diocese de um capelão militar e de um assistente do Apostolado do Mar. Em 1962, aquando da visita do presidente Américo Tomás à Madeira, em homilia proferida na sé, D. David, depois de manifestar o seu agrado pelo facto de Portugal ter dado Cristo ao mundo, referiu o seu contributo pessoal para a melhoria das condições da igreja no arquipélago, com a subdivisão paroquial a que procedera havia pouco tempo. Terminou a prédica a referir que “Alguns dos que andam nos bastidores da ONU inscreveram o arquipélago da Madeira como território a autodeterminar-se”, acrescentando que “Felizmente, nem um só madeirense existe a quem o aceno da autodeterminação feito na ONU não lhe causasse a maior náusea. A Madeira é de pleno direito Portugal” (FUNCHAL, 1962, 192), o que, apesar da introdução de um assunto polémico, o não impedia de se manifestar em sintonia com o regime. D. frei David de Sousa participou, também, no Concílio Vaticano II, realizado entre 1962 e 1965, regressando então à diocese, tendo sido, em seguida, nomeado arcebispo de Évora, funções em que foi empossado a 15 de setembro de 1965. Permaneceu em Évora pelo espaço de 16 anos, até 1981, altura em que resignou ao cargo por motivos de saúde. Veio a falecer a 5 de fevereiro de 2006, no seminário franciscano da Luz para onde se retirara. Hoje, o seu corpo encontra-se sepultado em Évora, na igreja do Espírito Santo, para onde foi tresladado a 10 de novembro de 2012.     Ana Cristina Machado Trindade Rui Carita (atualizado a 10.02.2017)

Religiões

sínodos diocesanos do funchal

O Sínodo Diocesano é uma reunião ou assembleia consultiva, convocada e dirigida pelo Bispo, à qual são chamados, segundo as prescrições canónicas, sacerdotes e outros fiéis da Igreja particular, para o ajudarem na sua função de guia da comunidade diocesana. No Sínodo e através dele, o Bispo exerce de forma solene o ofício e o ministério de apascentar o seu rebanho. Na sua dupla dimensão de ato de governo episcopal e evento de comunhão, o Sínodo é meio idóneo para aplicar e adaptar as leis e as normas da Igreja universal à situação particular da Diocese, indicando os métodos que importa adotar no trabalho apostólico diocesano, superando as dificuldades inerentes ao apostolado e ao governo, animando obras e iniciativas de carácter geral, propondo a reta doutrina e corrigindo, se existirem, os erros acerca da fé e da moral. Deve-se celebrar quando as circunstâncias o aconselharem, a juízo do Bispo diocesano e ouvido o conselho presbiteral. No passado, os sínodos diocesanos eram assembleias que congregavam o clero de uma diocese, convocado pelos bispos diocesanos, com o objetivo de avaliar o estado da vida religiosa e a situação clerical, e de propor medidas de atuação nesses domínios. São uma forma de reunir o clero e de criar comunhão e meio eficaz para transmitir informações e normas oriundas dos diversos níveis de poder da Igreja (Concílios, concílios nacionais e provinciais e provisões episcopais). As primeiras notícias de sínodos diocesanos, como manifestação da unidade do presbitério, reunido em volta do seu bispo, remontam, no Oriente, ao século IV e, no Ocidente, ao século VI. O Decreto de Graciano, em meados do século XII, já salientava a utilidade da celebração anual dos sínodos. O Concílio de Latrão IV (1215) estabeleceu, na sua constituição 6, que os sínodos diocesanos deviam ser celebrados todos os anos e que os respetivos decretos deviam ser publicados. O Concílio de Trento voltou a regulamentar sobre os sínodos (Sessão XXIV, em 11 de novembro de 1563, Decretum de Reformatione, cap. 2), reiterando a disposição que obrigava à realização de sínodos diocesanos anuais. Acolhidas em Portugal, em 1564, as resoluções do Concílio de Trento (1545-1563) determinavam que competia às autoridades episcopais a adaptação do vasto projeto reformador às condições de cada localidade e que, para tanto, deveriam ser realizados sínodos diocesanos nos bispados ou arcebispados, reunindo bispos das dioceses próximas, dos quais resultasse a elaboração de constituições. De acordo com a determinação definida na 24.ª sessão do Concílio de Trento, os sínodos provinciais deveriam ser convocados trienalmente e os diocesanos anualmente. Todavia, esta medida nunca foi levada a sério e ninguém foi capaz de a pôr em prática. Apenas se poderá referenciar uma maior preocupação por parte dos prelados na sua realização, que nunca conseguirá atingir os prazos estipulados. Segundo o elenco cronológico dos sínodos diocesanos publicado no Dicionário da História Religiosa de Portugal (PAIVA, 2001), foram celebrados na Diocese do Funchal 10 sínodos diocesanos: em 1578, por D. Jerónimo Barreto; em 1597 e 1602, por D. Luís de Figueiredo de Lemos; em 1615, por D. Frei Lourenço de Távora, em 1622, 1626, 1629 e 1634, por D. Jerónimo Fernandes; em 1680, por D. Frei António Teles da Silva; e em 1695, por D. Frei José de Santa Maria. Dos vários sínodos diocesanos apenas chegaram às nossas mãos as constituições promulgadas em 1578 e 1597. As últimas, da iniciativa de D. Luís de Figueiredo de Lemos, fizeram-se a exemplo das de Lisboa, aprovadas em 1566 com o mesmo título de "Constituições Extravagantes". Estas constituições foram impressas em 1601, juntamente com as constituições do sínodo de D. Jerónimo Barreto, sendo formadas por 34 títulos sobre matérias muito variadas: 1. Constituição única; 2. Dos sacramentos em geral; 3. Do Batismo; 4. Do Sacramento da Confirmação; 5. Do Sacramento da Confissão; 6. Do Santíssimo Sacramento da Comunhão; 7. Do Santíssimo Sacramento da Extrema-unção; 8. Dos Santos óleos; 9.Do Sacramento da Ordem; 10. Do Sacramento do Matrimónio; 11. Das festas de guarda; 12. dos Vigários, Curas e Beneficiados; 13. Da vida e honestidade dos clérigos; 14. Do serviço nas igrejas e de como se hão de fazer os ofícios divinos; 15. Das procissões; 16. Dos enterramentos, capelas e missas de defuntos; 17. Da imunidade das igrejas e isenção das pessoas eclesiásticas; 18. Dos ornamentos do altar e como se há-de prover e concertar os altares e igrejas; 19. Da prata, bens e propriedades das igrejas; 20. Dos dízimos, aforamentos e alienamentos dos bens das igrejas; 21. Dos testamentos; 22. Dos testamenteiros e execução dos testamentos; 23. Dos que pedem, pregam e celebram sem licença, ou sem ela comem carne nos dias proibidos; 24. Dos sacrilégios; 25. Das cartas de excomunhão e do que se deixam andar excomungados; 26. Dos feiticeiros e benzedeiros; 27. Dos que testemunham falso; 28. Dos onzeneiros; 29. Dos barregueiros e que os Vigários saibam dos pecados públicos de sua freguesia; 30. Das querelas e denunciações feitas à justiça e dos seguros; 31. Dos oficiais de nossa justiça; 32. Das injúrias feitas aos oficiais de justiça; 33. Quem será obrigado a ter estas constituições; 34. Das penas. Cada um destes títulos é composto por várias constituições. Tomemos, por exemplo, o n,º 13, sobre a Vida dos Clérigos. É formado por 18 constituições sobre diversos temas relativos à vida dos sacerdotes: 1. Dos vestidos e trajos das pessoas eclesiásticas; 2. Da barba e da tonsura – os clérigos devem fazer a barba e a tonsura ao menos de 15, até 20 dias; 3. Que tenham sobrepeliz quando rezarem no coro ou quando ministrarem algum sacramento; 4. Que os clérigos não tragam armas e como pedirão licença quando lhes forem necessárias; 5. Que os clérigos não joguem cartas, ou dados, nem outros jogos semelhantes; 6. Que não tenham mesa de jogo; 7. Que os clérigos não procurem nem jurem perante juiz secular; 8. Que os clérigos não sejam rendeiros, nem regatões, nem cacem para vender; 9. Que os clérigos não andem de noite; 10. Que os clérigos não sejam jograis, nem acompanhem mulheres; 11. Que nenhum clérigo coma ou beba em tabernas; 12. Da pena que auferirão os clérigos que tem mancebas, ou mulheres suspeitosas; 13. Como devem ser amoestados os clérigos que forem conhecidos ter mancebas; 14. Que os clérigos não tenham em casa mulheres de idade de cinquenta anos para baixo; 15. Que maneira se terá no proceder contra os clérigos que cometerem adultério; 16. Que os clérigos não tenham os filhos em casa; 17. Que os clérigos não façam doação, nem deixem legado a mulheres com que foram infamados, ou tenham por mancebas; 18. Que nenhuma pessoa blasfeme, pondo a boca em Deus, em Nossa Senhora ou em seus Santos. E a pena que auferirão as pessoas eclesiásticas e seculares que o fizerem. Por seu lado as “Extravagantes” de D. Luís de Figueiredo de Lemos são constituídas por 20 títulos: 1. Do Sacramento do Batismo; 2. Do Sacramento da Confissão; 3. Do Santíssimo Sacramento da Eucaristia; 4. Do Sacramento da Extrema-unção; 5. Do Sacramento da Ordem; 6. Da veneração da Santa Cruz, festas, Relíquias e imagens dos Santos; 7. Da vida e honestidade dos clérigos; 8. Dos vigários, curas e beneficiados; 9. Do serviço das Igrejas; 10. Das procissões; 11. Dos ornamentos dos altares e igrejas; 12. Das eleições dos mordomos das confrarias e como hão de dar sua conta; 13. Do pagamento das ordinárias; 14. Dos sacrilégios; 15. Das querelas e denunciações feitas à justiça e dos seguros; 16. Dos Ouvidores e sua jurisdição e em que casos apelarão por parte da justiça; 17. Das injúrias feitas aos Ouvidores e como cumprirão os seus mandatos; 18. Das suspeições aos nossos oficiais da justiça; 19. Dos oficiais da justiça; 20. Das penas. Sobre a vida dos clérigos, as “Extravagantes” contêm apenas três constituições: 1. Que os clérigos e beneficiados não desafiem nem ameacem pessoa alguma; 2. Que não levem cães à igreja, nem aves na mão, nem sejam caçadores; 3. Que os sacerdotes e clérigos de ordens sacras extravagantes venham à Sé aos ofícios diurnos e pregações. D. Lourenço de Távora convocou o quarto sínodo diocesano ocorrido no Funchal em 1615, e foram promulgadas constituições. Estas são em número de 15, referindo-se a 1.ª, 2.ª e 3.ª ao perigo dos estrangeiros cismáticos, que devido ao comércio passavam e habitavam na Ilha; a 4.ª constituição é sobre as festas e os excessos do povo, a ornamentação das igrejas e o encerramento das portas das igrejas antes de anoitecer; a 5.ª refere as festas dos santos e padroeiros; a 6.ª e a 7.ª regulam o pagamento aos eclesiásticos e a arrecadação das rendas; a 8.ª trata dos estatutos que os capitulares pediam ao apontador; a 11.ª refere-se ao vestuário dos eclesiásticos; a 12.ª é sobre os cantores; a 13.ª ordena que se faça um novo regimento do cerimonial; a 14.ª regula os enterros fora das respetivas freguesias e a 15.ª trata da redução de encargos pios das capelas. As constituições do sínodo de 1695, de D. Frei José de Santa Maria, dominicano, não chegaram a ser impressas, em razão da transferência do bispo para a Diocese do Porto. Os manuscritos dessas constituições foram publicados por José Pereira da Costa nas atas do II encontro sobre história dominicana (COSTA, 1987). Gaspar Frutuoso afirma, nas Saudades da Terra (FRUTUOSO, 2007, 221-222), que D. Martinho de Portugal já teria umas constituições. Todavia, Alberto Vieira contrapõe que, não havendo notícia de outros sínodos no Funchal, tais constituições seriam uma adaptação das de Lisboa. A composição do sínodo diocesano foi mudando ao largo da história, até à exclusão dos leigos. De acordo com o Código de Direito Canónico de 1917, no seu cânone 356, §1, os sínodos deviam ser celebrados pelo menos de 10 em 10 anos. No seu Decreto Christus Dominus, Sobre o múnus pastoral dos bispos (n.º 36), o Concílio Vaticano II afirma desejar que as «veneradas instituições dos Sínodos [...] entrem de novo em vigor, para que melhor e eficazmente se atenda ao incremento da fé e à conservação da disciplina nas várias igrejas». A linguagem conciliar foi expressa, mais tarde, nos cânones 460-468 do Código de Direito Canónico de 1983.     P. Marcos Gonçalves (atualizado a 03.02.2017)  

Religiões

protestantismo

O termo “protestante” (do latim protestari) tornou-se comum como referência aos opositores da Igreja Católica Romana que surgiram na sequência da declaração pública (protesto) exarada pelos príncipes que apoiavam Martinho Lutero (1483-1546), em resposta à deliberação da Dieta de Espira (1529), que reafirmou a condenação das 95 Teses de Lutero (1517). O vocábulo “evangélico” foi o preferido pelos reformadores, designadamente Lutero e João Calvino (1509-1564), que o aplicaram desde cedo à sua expressão de fé e às comunidades que se foram formando. O termo “reformado”, embora de aplicação mais estrita aos seguidores de Calvino, decorre do movimento comummente conhecido como Reforma protestante que, encetado no séc. XVI tem antecedentes que remontam ao período medieval O protestantismo é uma confissão cristã que se reclama herdeira dos ensinamentos de Jesus Cristo e dos seus apóstolos, e que tem como base os escritos preservados na Bíblia. As suas raízes encontram-se estruturadas em torno da discussão de temas nucleares da fé católica, como o da centralidade e autoridade das Escrituras, o dos sacramentos, o da liturgia e o das mediações, em grande medida postas em causa como meios legítimos na prossecução do acesso à graça e à salvação. As múltiplas denominações surgidas e desenvolvidas depois da Reforma têm um fundamento unitário – sola gratia, sola fide, sola scriptura [só a graça, só a fé, só as Escrituras] –, mas a partir deste formularam-se diferentes conceções eclesiológicas e cristológicas. A mundividência protestante, muito influenciada pela ênfase dada ao indivíduo e à sua relação pessoal com Deus, obriga a um reposicionamento do crente perante Deus que vai para além da sua relação com a igreja. Este é o pressuposto básico do pensamento protestante, que ultrapassa em muito a contestação doutrinária e a refutação do sistema sacramental e hierárquico católico (centrados na figura e autoridade do Papa). Os princípios do sacerdócio universal de todos os crentes e da livre interpretação das Escrituras repercutem-se nos valores da igualdade e da liberdade. A diferença é inata ao protestantismo, tanto na diversidade de pensamento, como na pluralidade de vozes. Esta permanente atitude, não só promove a crítica e a liberdade de pensamento, como influencia a forma como o indivíduo atua na sociedade. Pode dizer-se que o protestantismo vive uma dupla dinâmica: a experiência da fé como iluminação interior do crente individual e a busca da comunidade perfeita como realização social da santidade. O cristianismo protestante tem na Bíblia o seu único compêndio de literatura sagrada. Esta é constituída pelo Antigo Testamento, que corresponde ao cânone curto dos judeus, que não tem todos os livros contidos no Antigo Testamento dos católicos e ortodoxos, e pelo Novo Testamento, que é comum a todas as confissões cristãs. As datas mais festejadas são as que correspondem à celebração do nascimento de Jesus (Natal) e à celebração da sua ressurreição (Páscoa). Algumas denominações também assinalam o início histórico da Igreja (Pentecostes). Embora o uso, mais particularmente a veneração, de imagens de escultura e outros elementos iconográficos de culto não sejam aceites, a imagem da cruz é o símbolo mais associado ao protestantismo. Todavia, alguns sectores utilizam representações do peixe, em alusão ao uso que dele faziam as comunidades paleocristãs. Acrescente-se que em alguns sectores, em particular grupos adventistas, existem restrições alimentares decorrentes da aplicação literal da Lei de Moisés sobre os interditos. Foi sobretudo a partir da segunda metade do séc. XIX que a Península Ibérica passou a ser perspetivada como espaço de missionação pelas denominações evangélicas, em particular pelas sociedades missionárias britânicas. Mas os pioneiros portugueses do cristianismo reformado encontraram na história do país as raízes de um protestantismo nacional, pelo que procuraram legitimar e valorizar o percurso histórico das comunidades reformadas do país. Surgidas de um movimento amplo e abrangente, as comunidades evangélicas de Portugal viram a sua uniformidade reforçada pelo seu carácter minoritário e pela afirmação de princípios de fé fundamentais, que os diferenciavam do catolicismo. O cristianismo evangélico expandiu-se através de um processo de desmultiplicação, numa verdadeira dinâmica sociológica. Esse percurso deu origem a uma multiplicidade de igrejas que se podem organizar em três correntes principais: a corrente sinodal, que congrega no seu interior a Igreja Lusitana, o metodismo e o presbiterianismo, representada pelo Conselho Português de Igrejas Cristãs, estabelecido em 1971; a corrente não hierárquica, que comporta as comunidades de regime congregacionalista, como os Irmãos Darbistas, as sensibilidades batistas e as expressões pentecostais, neopentecostais e carismáticas, representada institucionalmente pela Aliança Evangélica Portuguesa, organizada em 1921; e, por último, a corrente que dá lugar ao protestantismo de novas fronteiras, que inclui denominações tão distintas como a Igreja Adventista do Sétimo Dia, as Testemunhas de Jeová, a Igreja de Jesus Cristo dos Últimos Dias, cujos membros são conhecidos por mórmons, e ainda algumas comunidades neopentecostais não integradas na Aliança Evangélica, como a Maná-Igreja Cristã e a Igreja Universal do Reino de Deus, entre outras. Em 2016, o protestantismo lato sensu era a maior minoria religiosa em Portugal, representando cerca de 4 % da população. A análise aos movimentos pioneiros do protestantismo insular, deve partir, por um lado, das Igrejas Britânicas e, por outro lado, da importância do pioneirismo da Sociedade Bíblica, cujo trabalho na distribuição de Bíblias na Ilha precedeu a organização das primeiras igrejas na Madeira. São também relevantes a Igreja Evangélica Alemã (1761) e a Igreja Presbiteriana (1845). E não se pode esquecer o desenvolvimento do ecumenismo na Madeira, onde se inclui a participação do movimento metodista, bem como a fundação da Igreja Evangélica de Portugal. Concomitante à implantação destes grupos religiosos, é de salientar o papel de alguns dos seus fundadores: Robert Reid Kalley, António de Matos e Arsénio Nicos da Silva. No séc. XX apareceu na Ilha um segundo grupo de igrejas cristãs não católicas que, apesar das divergências com as tradições cristãs reformadas, se reclamaram herdeiras da herança evangélica e que também são percecionadas como protestantes. Esta geração é representada pela Igreja Adventistas do Sétimo Dia (1932), pela Igreja Evangélica Assembleias de Deus (1972) e pela Igreja Evangélica Batista (1974). Considerando a relevância que teve o fluxo de imigração que ocorreu no arquipélago no final do séc. XX, tanto na profusão de novas comunidades de origem brasileira, como no impulso que estas deram à emergência de novos e renovados grupos de carácter nacional, não se pode deixar de assinalar o desenvolvimento de novas expressões pentecostais, as já referidas igrejas neopentecostais; entre elas estão a Igreja Maná e a Igreja Universal do Reino de Deus. Cabe ainda enunciar dois momentos relevantes. Em primeiro lugar, a diáspora protestante madeirense, que levou os protestantes a refugiarem-se nos Estados Unidos da América e na ilha da Trindade, entre outros lugares, experiência da qual se destaca a vida e a obra de Alfred Hubert Mendes e de João José Vieira Júnior. Em segundo lugar, a intolerância religiosa por parte da imprensa local e do Estado português perante instituições como as Testemunhas de Jeová e a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Outras realidades religiosas que, não obstante terem sido identificadas, ficaram por analisar, são a Congregação Cristã em Portugal, a Igreja Mundial do Poder de Deus, a Igreja Evangélica Assembleia de Deus Pentecostal, a Igreja Comunidade Evangélica da Ilha da Madeira, a Igreja Cristãos Do Evangelho Pleno e a Igreja Nova Apostólica. E ainda as comunidades de carácter nacional, tais como a Catedral de Vida e a Igreja Cristã do Renovo. A imprensa protestante também teve um papel importante no âmbito da história do protestantismo, para além de ter sido uma fonte a partir da qual se podem compreender certos aspetos da história insular. Simão Daniel Cristóvão Fonseca (atualizado a 03.02.2017)

Religiões

moda

A abordagem da moda enquanto atividade estética integrada nas dinâmicas sociais e com a sua retórica própria radica, em grande parte, nos escritos de Roland Barthes e de Gillo Dorfles sobre o tema. Um momento marcante para uma reflexão teórica sobre a moda em Portugal, é, sem dúvida, a exposição Depois do Modernismo, em 1983, organizada por Luís Serpa, Cerveira Pinto e Leonel Moura, todos eles ligados às artes. A par da arquitetura, das artes visuais, do teatro, da dança e da música aparece também a moda (VASCONCELOS, 1983, 183-188), A emergência de novas atitudes e criadores de moda potencia o aparecimento de eventos que, ora vocacionados para a descoberta de novos talentos, ora numa vertente mais comercial, procuram a ligação ao mercado e ao mundo empresarial (SANTOS, 2007, 334). Destaca-se pela continuidade e pela repercussão a ModaLisboa, criada em 1991, que se afirma como uma plataforma de comunicação e marketing destinada a desenvolver a moda o contexto das indústrias criativas. Cada vez mais a criação na moda é assumida como uma das variantes do design, tanto no seu modus operandi, como nos seus circuitos de produção e de divulgação. Em 1991 a Europália integrou na exposição “Manufacturas - Criação Portuguesa Contemporânea”, em Bruxelas, comissariada por Delfim Sardo e desenhada por Pedro Silva Dias, com a presença de artistas plásticos e de designers de produto e de moda. Este é também o tipo de convivência que se verificou na exposição “Qualquer Semelhança é Inevitável”, produzida pela Loja da Atalaia e, Lisboa, em 1994 e comissariada pelo designer Filipe Alarcão. O Portugal Fashion, criado em 1995, fomentou a internacionalização da moda portuguesa estreando-se nas passerelles em 1999, com Fátima Lopes, José António Tenente, Maria Gambina, Miguel Vieira e Nuno Gama, apresentando ainda oito marcas. Em 2009, é inaugurado o MUDE - Museu do Design e da Moda onde podemos ver a Colecção Francisco Capelo, cujo núcleo de design de produto tinha sido exposto no Museu do Design no Centro Cultural de Belém, entre 1999 e 2006. A significativa presença da moda neste museu, dá conta do modo como os seus produtos se foram transformando em objetos de coleção, passíveis de institucionalização. Quanto ao contexto regional, os madeirenses, em particular as famílias mais abastadas do arquipélago, sempre receberam com muito interesse as novidades que eram trazidas além-mar, sobretudo dos grandes centros culturais europeus como Paris e Londres. No início do séc. XX, eram publicados no Funchal alguns periódicos que atribuíam grande importância à moda e às tendências da altura. Um deles, o Diário da Madeira, publicava duas a três vezes por semana uma coluna intitulada "Diário Elegante", onde se escreviam textos sobre moda, tecidos e cultura, com algumas opiniões e informações de interesse e curiosidade para a sociedade madeirense. O Comércio da Madeira reservava à mulher funchalense uma coluna intitulada "Jornal da Mulher", onde eram publicadas crónicas sobre moda. O Jornal da Madeira chegou a criar uma página feminina, intitulada "Jornal da Mulher", onde eram tratados os mais variados assuntos. Por volta de 1926, foram editados, por vários periódicos, Suplementos Femininos que retratavam a moda europeia e faziam chegar à sociedade madeirense todas as novidades nesta área. Por esta altura, já existiam algumas lojas de tecidos, que eram assiduamente publicitadas nos periódicos regionais: a Companhia Portuguesa de Bordados (recebia sempre os melhores e mais modernos tecidos); o Salão de Moda, a loja Rachel; a loja Braga; loja Primavera; o Petit Royal, entre muitas outras. Uns anos mais tarde já encontramos outras lojas como Casa Tavares, Dois Amigos, Último Figurino e um pronto-a-vestir de caráter seletivo em estabelecimentos como Maison Blanche, Cayres, Balão Vermelho, etc. Nos anos 80, a Cruz Vermelha Portuguesa - Delegação da Madeira, organizava no Hotel Savoy, durante a tarde, chás acompanhados por desfiles de moda, integrando espaços comerciais e jovens criadores de então para fins de beneficência. Estes eventos eram organizados por equipas de senhoras voluntárias da referida instituição e que tinham como principal dinamizadora a Sr.ª D.ª Branca Melim. Numa tentativa de revitalização do Bordado da Madeira, criou-se em 2000 o Centro de Moda e Design, que se propunha preservar e dar uma nova imagem desta tradição, apoiar os jovens criadores no acesso a contactos com o exterior, seja participando em feiras e exposições, seja na mediação com a indústria têxtil nacional e internacional. O Centro, dirigido pela Eng.ª Isabel Araújo e com equipa própria, funcionava no IBTAM – Instituto do Bordado, Tapeçaria e Artesanato da Madeira, que era então presidido pelo Escultor Ricardo Velosa. Investiu em equipamentos para modelação e impressão, com o intuito de assessorar os industriais de bordado e os designers de moda. Foi na altura do seu funcionamento considerado por muitos como um “novo fôlego para o Bordado” (CASSACA, 17-7-2002, 8, 9) e, embora não tivesse atingido o impacto desejado, o seu encerramento em 2007 causou surpresa (HENRIQUES, 30-7-2007, 15). O Portugal Fashion, importante evento da iniciativa da ANJE-Associação Nacional de Jovens Empresários, APT- Associação Portuguesa de Têxteis e Vestuário e Fundação da Juventude (“Grande Moda”, 18-4-2001, 17) realizou no Madeira Tecnopolo, através do Centro de Moda de Design, uma edição na Madeira em 2001, com coleções para o Outono/Inverno 2001/2002 que, pela sua qualidade e ineditismo, teve grande afluência. Os estilistas madeirenses presentes neste evento foram Fernanda Nóbrega, Hugo Santos, André Correia, Patrícia Pinto, Bela Henke, Zequita, Susana Menezes, Ana Rita Pessanha e Lúcia Sousa. (ORNELAS, 2001, 14-21). No desfile participaram ainda Luís Buchinho, Miguel Vieira, Maria Gambina, Ana Salazar, Anabela Baldaque, Paulo Cravo & Nuno Baltazar, Katty Xiomara, Osvaldo Martins, João Tomé & Francisco Pontes, destacados criadores de moda no panorama nacional, bem como diversas marcas portuguesas. Nesta edição do Portugal Fashion houve a intenção de criar sinergias entre turismo e moda, promovendo assim o destino Madeira. O mesmo objetivo é retomado em 2005, no ModaMadeira, tendo agora como promotora a AJEM - Associação de Jovens Empresários da Madeira, num evento que, entre 21 e 24 de Abril, trouxe à Madeira consagrados criadores de moda do panorama nacional e regional. Esta 1ª edição teve lugar no Centro das Artes - Casa das Mudas, na Calheta com a presença de Louis de Gama, Júlio Torcato, Katty Xiomara Isilda Pelicano, Paula Rola, Lidija Kolovrat, e coleções da Kispo, Lions of Porches e MacModa, para além de quatro dezenas de modelos nacionais e internacionais. A I ModaMadeira incluiu ainda três exposições temáticas: “Gama de Casa”, de têxtil lar de Nuno Gama; “A Modernização do Bordado Madeira” pela D’ART e o Sindicato das Bordadeiras e ainda uma mostra fotográfica “Looking at living style” do fotógrafo de moda Cassiano Ferraz. Participaram nos desfiles criações dos madeirenses Hugo Santos, Lúcia Sousa, Fernanda Nóbrega, Susana Menezes, André Correia e Patrícia Pinto ( “Quatro dias de moda na Calheta, 21-4-2005, 1 “Palco de moda e de glamour”, 21-4-2005, 2-3; ABREU, 22-4-2005, 26; GONÇALVES, 1-5-2005, 10-11). Funchal Fashion Week 2005 teve lugar de 26 a 28 de Maio, numa organização em parceria da Sportsmoods, da Elite Models Portugal e da Câmara Municipal do Funchal, que declarou aspirar a uma futura internacionalização deste evento. Participaram Maria Gambina, Luís Buchinho, José António Tenente, Pedro Waterland, Nuno Baltazar, as lojas Nova Minerva e Ana’s Boutique e os criadores madeirenses André Correia, Hugo Santos e Patrícia Pinto (GOUVEIA, 12-5-2005, 12; GONÇALVES, 27-5-2005, 17). O ModaMadeira regressou em 2007 para mais uma edição no Madeira de 4 a 5 de maio, no Tecnopolo, que se orientou para o mercado madeirense em torno da moda, afastando-se da estratégia promocional da sua génese, mais vocacionada para a internacionalização. Pretendia incrementar a componente comercial, promover o Bordado Madeira, criar e desenvolver mercados e estimular os profissionais do sector. Para tal, estabeleceu um protocolo com a empresa D’Art e realizou ainda um concurso para jovens talentos. Foi promovido pela AJEM com a organização da Controlmedia, ficando a produção dos desfiles a cargo de Isabel Branco. Contou com a presença Alexandra Moura, Story Taylors, Filipe Faísca e Ana Salazar e com os madeirenses Fernanda Nóbrega, André Correia, Patrícia Pinto e Lúcia Sousa (HENRIQUES, 1-5-2007, 15; “Moda”, 28-4-2007, 24-26; PESTANA, 22-4-2014, 25). Ficou então prevista uma 2ª edição neste mesmo ano e duas no ano seguinte. A 3ª edição do Moda Madeira, em 2008, contou com duas galas. A primeira, a 18 e 19 de janeiro no Madeira Tecnopolo recebeu os estilistas madeirenses Hugo Santos, Patrícia Pinto, Lúcia Sousa, Fernanda Nóbrega e os consagrados estilistas nacionais, Nuno Baltazar e José António Tenente. A grande novidade foi a participação de jovens talentos na área da criação — Ana Catarina Freitas, Janett Agrela — e um desfile de marcas promovido pelo centro comercial Dolce Vita. (PESTANA, 05-01-2008, 33 e 18-01-2008, 36). Hugo Santos apresentou uma coleção inserida no contexto “Bordar Madeira”, uma iniciativa promovida pela Associação de Jovens Empresários Madeirenses (AJEM) em parceria com este criador de moda (PESTANA, 08-01-2008, 33). A segunda gala desta 3ª edição foi realizada em Maio, mantendo a participação de Anabela Baldaque, Miguel Vieira e de marcas do Centro Comercial Dolce Vita. Esteve presente também Fernanda Nóbrega e quatro jovens madeirenses, escolhidos por um júri, que mostraram o seu trabalho: Ruben Freitas, André Pereira, Ana Catarina Freitas e Janett Agrela (PESTANA,22-5-2008, 33 e 31-5-2008, 26-27). Esta foi a última edição deste evento, a que se seguiu, em 2012, um novo formato integrado numa marca criada pela AJEM intitulada New Order (http://ajem.pt/marcas-ajem/). No Centro de Congressos do Casino estiveram presentes os Storytailors, dupla constituída por João Branco e Luís Sanchez (este natural da Madeira), e os jovens estilistas selecionados no concurso de talentos Joana Mendonça, Mariana Sousa e Fábio Carvalho. Nos eventos de moda que se seguiram, a vertente de divulgação da criação e produção local para fora da ilha ficou mais focada em iniciativas particulares. Tem mantido continuidade o certame Funchal Noivos, promovido a partir de 2009 pela ACIF, com exposições e desfiles de moda, inicialmente específicos deste tema mas posteriormente alargados a festas e cerimónias em geral (“Funchal Noivos, 14-3-2009, 31). Hugo Santos, Lúcia Sousa, Fernanda Nóbrega, André Correia, Patrícia Pinto, Fábio Carvalho, Emília Luz, André Pereira são alguns dos criadores que participaram ao longo das sucessivas edições. No decorrer dos anos, tivemos alguns criadores madeirenses que se destacaram, como por exemplo Fátima Lopes que deixou para trás a ilha e a sua atividade de guia turística para fixar-se em Lisboa, em 1990, e dedicar-se à moda. Abriu a loja Versus com roupas e acessórios de criadores internacionais e, em 1992, criou a sua própria marca. Em 1995 participa no Portugal Fashion e em feiras de moda francesas e em 1998 abriu um espaço no Bairro Alto com boutique, ateliê, bar e agência de modelos, o que indicia a sua visão integrada de uma atividade que exige um trabalho de equipa coeso e a convicção da necessidade de criar sinergias com a indústria. No ano seguinte integrou a ModaLisboa e passou a ser presença assídua na Paris Fashion Week. A sua persistência e profissionalismo valeram-lhe o reconhecimento internacional e uma Comenda da Ordem do Infante Dom Henrique (2006), pelo seu importante papel na expansão dos valores culturais portugueses. Diversificou a área de atuação da sua marca para a criação de acessórios de moda, peças de joalharia, óculos, cutelaria, tapeçarias, porcelanas, cristais, instrumentos de escrita, calçado e também um perfume. Desenhou ainda o traje oficial da seleção nacional de futebol (2005), a vestuário oficial da equipa do Sporting (2007) e as fardas dos funcionários do prestigiado Hotel Conrad, no Algarve (2012). No início de 2016 mudou do Bairro Alto para um novo espaço perto da Avenida da Liberdade com ateliê, show room e agência Face Models. De entre os criadores que desenvolveram a sua atividade na Madeira podemos destacar vários nomes pela continuidade e qualidade do seu trabalho, como Patrícia Pinto, André Correia. Fernanda Nóbrega, Hugo Santos ou Lúcia Sousa. Patrícia Pinto nasceu em 1976 e concluiu o Curso de Design de Moda no IADE em 1998. Participou no Portugal Fashion na Madeira (2001), no Funchal Fashion Week (2005), no Porto Fashion Week, no Moda Madeira, no Portugal Fashion (2005 e 2006) entre muitos outros. Desde 2010 realiza desfiles individuais onde apresenta as suas coleções marcadas pela multiplicidade de cores, pela justaposição de padrões, tecidos e malhas: Yangu Afrik no Museu Casa da Luz, em 2011; 2011-2012, Dress up, please no Parque de estacionamento Almirante Reis; em 2012 In the market no Mercado dos Lavradores do Funchal; 2013 Orange – Blue e La vie en rose, no 7º Aniversário da sua loja, assinalando 15 anos de carreira; em 2015 Back to the Market, de novo no Mercado dos Lavradores. André Correia começou uma carreira na moda em 1992, em simultâneo com trabalhos de cenografia e figurinos para teatro. Neste mesmo ano abriu o seu ateliê e, em 1999, um novo espaço, já com loja. Iniciou o seu percurso na Escola de Moda Gudi, no Porto, realizando posteriormente um curso de Modelismo no CITEM, em Lisboa. Foi completando e diversificando a sua formação com a licenciatura em Design (2010) e uma pós-graduação em Arte e Design no Espaço Público (2013) ambos pela Universidade da Madeira. Lecionou Plástica do Espetáculo no Curso de Teatro do Conservatório-Escola das Artes, no Funchal (2012 e 2013). Apresentou coleções no Portugal Fashion (Madeira, 2001 e Porto 2005 e 2006), no Funchal Fashion Week (2005), no Moda Madeira (2005 e 2007), no Fashion Week nos Açores (2006) e marcou presença na ExpoNoivos no Porto (1998) e FunchalNoivos (desde 2009). Para além de criações personalizadas em que predominam os materiais nobres e naturais, explora técnicas e materiais que muitas vezes levam a cruzamentos entre traje e escultura, incorporando cordas, fibra de vidro, polímeros, técnicas de capeline, e outras. Nesta linha enquadra-se Bizarria, do espetáculo de moda, na discoteca Vespas e bares anexos Jam e Marginal; a instalação individual Silhuetas Virtuais, Galeria da Secretaria Regional do Turismo e Cultura (Funchal, 2003) e a coleção integrada nas Jornadas Académicas de Arte e Design, Alternativas, bem como os coordenados apresentados no evento Hypnotic Black Ice (discoteca Vespas 2004). Fernanda Nóbrega finalizou o curso de design de moda em 1990 e abriu o seu próprio ateliê em 1995. Define-se como de influência minimalista, que alia frequentemente a pormenores em bordado Madeira. Participou no Moda Madeira, no Portugal Fashion, Funchal 2001 e também em eventos nacionais como o 2000-Porto Capital Europeia da Cultura e da Moda, o Portugal Fashion Figueira 2002, o AdroModa, em Viseu, entre 2008 e 2011 e internacionais, caso do Global Fashion Festival em Berlim, em 2006. Hugo Santos fez uma nova abordagem da aplicação do bordado Madeira no vestuário, aproveitando a sua familiaridade com o bordado, adquirida desde cedo na empresa familiar. Começou por ser desenhador de bordado, tendo feito formação com Leandro Jardim. Apresentou coleções no Moda Madeira em 2005 e 2008, e participa no FunchalNoivos desde 2009, tendo sido presença assídua em diversas feiras internacionais. Lúcia Sousa, nascida na Austrália em 1976, formou-se em Arquitectura de Design de Moda em 2001 pela Faculdade de Arquitectura de Lisboa e estagiou com José António Tenente. Iniciou-se como profissional em 2004 e tem marcado presença em eventos de moda regionais, nomeadamente na ModaMadeira e FunchalNoivos, e nacionais como a ExpoNoivos em Lisboa e a Exponor, no Porto. Nas suas criações para a moda feminina recorre frequentemente a draping e cortes assimétricos, exaltando o colorido e brilho dos tecidos. Atualmente a Madeira conta com jovens criadores como André Pereira, Mariana Sousa, Carolina Teixeira e Fábio Carvalho, que marcam presença nas passerelles madeirenses, que deram os primeiros passos na profissão na sequência do concurso de Jovens Talentos do ModaMadeira.     André Correia Licínia Macedo (atualizado a 05.02.2017)

Artes e Design Sociedade e Comunicação Social Madeira Cultural

genealogias

A genealogia é uma ciência auxiliar da história que estuda a origem, evolução e disseminação das famílias, articulando as várias gerações, os nomes, sobrenomes ou apelidos utilizados, os locais de nascimento e morte, registando casamentos e filhos, tal como, quase sempre, as funções desempenhadas e as instituições criadas, muito especialmente os morgadios e capelas, essenciais à manutenção, antigamente, de determinado estatuto social. Desde os tempos bíblicos que todas as culturas, em todos os continentes possuem genealogias, com pequenas variantes de forma, dado assentarem na constituição e desenvolvimento da família. Sendo um estudo, ou um simples elenco de parentesco, desenvolve-se no âmbito da história da família, sendo assim uma peça fundamental para a grande maioria das ciências sociais e, de forma muito especial, para a grande área da história social, mas não só. Assim, ao elencar os elementos de determinadas famílias, das suas relações e do seu património, a genealogia torna-se também importante para os estudos de economia, de direito, de história da arte e de heráldica, entre outros. A genealogia, no entanto, é também um vasto campo de dúvidas, voluntárias e involuntárias, face ao levantamento dos antepassados, sobretudo, quando se mudavam quase sistematicamente os nomes ao longo do percurso de vida, quando não se respeitavam, muitas vezes, os habituais apelidos de família, recuperando-se os apelidos dos avós e outros, e ainda devido a dificuldades de registo ortográfico e de posterior leitura, p. ex.. Acresce que, nos inícios do povoamento da Madeira, não estava instituído o hábito do apelido de família, optando-se geralmente por utilizar o nome da localidade de origem ou patronímicos, como Fernandes, filho de Fernando ou Gonçalves, filho de Gonçalo, entre outros. Mais tarde, a repetição dos mesmos nomes, quase de geração em geração, nem sempre acompanhados dos elementos “o velho” e “o novo”, gerou também inúmeras dificuldades de identificação da pessoa em questão. Os documentos fundadores da história da Madeira, salvo a Relação de Francisco Alcoforado, que é somente um texto descritivo, nomeadamente, o Descobrimento da Ilha da Madeira e Discurso da Vida e Feitos dos Capitães da Dita Ilha, do cónego Jerónimo Dias Leite (c. 1537- c. 1593), e Saudades da Terra, do doutor Gaspar Frutuoso (1522-1591), a que o texto anterior serviu de base, são também trabalhos, de certa forma, de genealogia, como o próprio título do cónego Dias Leite indica. Baseado nos arquivos da família Câmara, dos capitães-donatários do Funchal, logicamente, ignora quase por completo os capitães de Machico. Mais tarde, na Ribeira Grande da ilha de São Miguel, o doutor Gaspar Frutuoso não deixou de acrescentar às Saudades da Terra dois longos capítulos dedicados às grandes figuras que estavam, na altura, à frente dos destinos da Madeira: o governador Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) e o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), sobre os quais teceu os mais altos elogios, demonstrando a parcialidade deste género de trabalhos. O principal problema das genealogias, essenciais para a maioria dos estudos de história, é serem quase sempre um instrumento panegírico das linhas de descendências sobre as quais se debruçam, obrigando a ter para com as mesmas os maiores cuidados. Outras vezes, as genealogias foram feitas para apagar determinadas “nódoas”, como a persistência de sangue judaico, conceito hoje mais do que discutível, em muitas famílias madeirenses, mas perfeitamente compreensível no parco espaço geográfico da Ilha e na época então vivida pela sociedade católica europeia. Os judeus desempenharam um papel relevante nos inícios da economia insular, prosseguido, depois, sob a vaga capa de cristãos-novos, após a forçada conversão dos inícios do séc. XVI. A capacidade por eles demonstrada para o desenvolvimento de diversas atividades económicas cedo criou descontentamento e resistências, patentes nos pedidos insulares para o afastamento dos mesmos e consubstanciada, também, na deslocação à Madeira de quadros da Inquisição, o que veio a acontecer nos finais do século, entre 1591 e 1592, com uma visitação do Santo Ofício que executou diversas prisões e elaborou depois uma listagem dos descendentes dos cristãos-novos, que vieram a ser indexados num célebre rol dos judeus, de que existiram inúmeras cópias. Este rol destinava-se à recolha da finta, o imposto determinado pelo perdão geral concedido pelo papa Clemente VIII, em agosto de 1604, a troco de um donativo de mais de milhão e meio de cruzados que a “gente de nação” se havia proposto pagar à coroa, publicado em janeiro de 1605 (BARROS e GUERRA, 2003, 11). A reputação de cristão-novo ou a afirmação contrária passou a condicionar quase todas as genealogias insulares. Os cristãos-novos não eram somente mercadores, eram também boticários, almoxarifes e escrivães da alfândega, licenciados em leis e mercadores de grosso trato em geral, pelo que, desde muito cedo, estiveram presentes em quase todos os estratos sociais, inclusivamente e como forma de silenciar essa origem, na Igreja. Entre os descendentes, cite-se, p. ex., o licenciado Gaspar Leite (1551-1620) e o seu irmão, o cónego e cronista Jerónimo Dias Leite; os licenciados António Lopes da Fonseca (1571-1636) e Bento de Matos Coutinho (c. 1587-1651); o irmão Lourenço de Matos Coutinho (c. 1590-1654); os médicos Jorge de Castro e Luís Dias Guterres; o mercador e intérprete dos navios estrangeiros, e poeta, Manuel Tomás (1585-1665), tal como o seu sócio Mateus da Gama (1624-1683), contratador do estanco do tabaco, e o pai deste último, João Rodrigues Tavira (fal. 1649), administrador e agente, no Funchal, da Companhia Geral do Comércio do Brasil. Foi, aliás, pela intervenção deste grupo de cristãos-novos que se expandiram as redes comerciais atlânticas, numa triangulação estabelecida entre a Madeira, Angola e o Brasil, depois ampliada, nos meados do séc. XVII, se não o estava já antes, a Amesterdão e às Antilhas, pelo menos. Nesse quadro emergiu o cónego António Lopes de Andrada (1640-1704), representante do cabido da sé para inúmeros negócios em Amesterdão e o irmão Cap. Gaspar de Andrada, filhos do almoxarife Diogo Lopes de Andrada e netos do célebre boticário João Mendes Pereira (c. 1570-c. 1642), para além de muitos outros. A má reputação e conotação associada a ter ascendência cristã-nova atravessou todo o séc. XVII e ainda o XVIII, só perdendo importância, progressivamente, a partir da lei de 2 de maio de 1768, elaborada pelo gabinete pombalino, que eliminou essa distinção. Dessa verdadeira contenda social resultou, e.g., que o original de Saudades da Terra tenha sido recolhido no Colégio dos Jesuítas de Ponta Delgada, segundo registou o P.e Sylvio Mondanio na sua Crónica dos PP. Jesuítas de Portugal, pois arrancavam-lhe folhas quando as referências não convinham a determinados elementos; do mesmo foi acusado, depois, o próprio genealogista Henrique Henriques de Noronha, que abordaremos em seguida. A fama atingia, assim, inúmeras famílias madeirenses, nomeadamente os Andrada, Araújo, Dias, Henriques de Noronha ou os Ornelas e Vasconcelos, daí ser nessas famílias que apareceram, no século seguinte, os principais genealogistas madeirenses. O marquês de Pombal ainda tentou aproveitar a situação, em carta de lei de maio de 1773, acusando os padres da Companhia de serem os autores da “funesta maquinação” que ocasionou a “sediciosa distinção de cristãos-novos e cristãos-velhos” (Id., Ibid., 232). Mas, se consultarmos muitas das genealogias, inclusivamente dos meados do séc. XX e mesmo nos dias de hoje, a distinção está ainda muito presente. Com a emergência do barroco, a partir dos inícios do séc.XVII, o culto das genealogias estendeu-se também à Igreja, como prova a nova voga das árvores de Jessé, em homenagem às tribos de Israel ascendentes da Virgem Maria e de Jesus, de que um dos exemplares, dos meados dessa centúria, subsiste no convento de Santa Clara do Funchal. Conhecem-se outros, em concreto, no retábulo da antiga capela de Santa Isabel, hoje remontado na igreja do Sagrado Coração de Jesus e na tela do camarim do retábulo da matriz de Machico. As representações destas árvores remontam ao românico e o nome de Jessé, pai de David, já aparece citado no Antigo Testamento, depois incorporado na Bíblia, sendo referido pelo profeta Isaías. Inicialmente simples, com quatro a seis figuras, com o advento do protobarroco tornaram-se mais densas, multiplicando-se a presença dos ancestrais, assumindo, inclusivamente os elementos heráldicos das genealogias góticas e renascentistas iluminadas, numa verdadeira colagem entre o sagrado e o profano, numa apropriação pela iconografia sagrada da linguagem então assumida pela genealogia e pela heráldica. Os trabalhos sobre genealogia interessaram, assim, inúmeros elementos da Igreja, como aconteceu entre os madeirenses, pois alguns prelados são referenciados no Funchal como tendo-se dedicado a esse tipo de trabalhos. O bispo D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), de quem se diz ter sido o “prelado mais amante da nobreza” que veio à Madeira (ARM, Arquivo do Paço Episcopal..., doc. 273, Memorias sobre..., fl. 92v.), dedicou-se a estudos genealógicos e terá deixado algumas obras inéditas, enumeradas na Bibliotheca Lusitana, mas de que desconhecemos o paradeiro e se eram relacionadas com as famílias madeirenses, embora pensemos que não. Este prelado chegou a emitir opiniões muito pouco abonatórias sobre o meio social local e, como ministro e ex-presidente do Tribunal do Santo Ofício, em carta de 11 de novembro de 1707 dirigida ao seu superior em Lisboa, referiu a sociedade madeirense nos seguintes termos: “A assistência de dez anos e o trabalho de sofrer esta gente, me tem dado o conhecimento do seu orgulho e dos seus atrevimentos. Saiba vossa senhoria, que não estou entre gente, senão em um bosque de feras sem nenhum conhecimento, nem obediência da razão, levados somente de suas paixões, como brutos sem temor de Deus, nem da honra, nem previsão de futuros” (ANTT, Inquisição de Lisboa, liv. 922, fls. 264-265v.). Os meados do séc. XVII e os inícios do XVIII marcam um novo interesse pelos trabalhos genealógicos, ainda que não tivessem especialmente esmorecido, mas então dotados de um outro sentido, mais institucional e nacional, se tal se pode escrever. A época foi marcada, depois, a nível nacional e internacional, pela instituição das academias, em Portugal, principalmente pela da história. A Academia Real da História Portuguesa foi criada por D. João V, por decreto de 8 de dezembro de 1720, recebendo o encargo de compor a “história eclesiástica destes reinos e depois tudo o que pertencer à história deles e de suas conquistas”, como se lê no decreto (Collecçam dos Documentos..., 1721). Ao mesmo tempo, no seu seio e através de D. António Caetano de Sousa (1674-1759), foi sendo elaborada a Historia Genealogica da Casa Real Portugueza. Tendo começado pela recolha de dados para uma história eclesiástica de Portugal, face à morosidade do processo em relação à expansão portuguesa, em 1725, comunicou aos membros da academia que tinha passado a ocupar-se, essencialmente, da genealogia da casa real portuguesa, vindo a obra a ser publicada em 19 volumes, entre 1735 e 1749, juntamente com provas e índices. Logo na altura da fundação, foi intenção real e dos seus colaboradores alargar os trabalhos a outras áreas, procedendo ao levantamento e publicação das crónicas dos antigos reis e ao desenvolvimento das ciências auxiliares da história, como a numismática e esfragística. Salvaguardaram-se assim importantes códices, papéis avulsos, inscrições e outros achados arqueológicos, especialmente, com base no alvará de 14 de agosto de 1721. Por este diploma, D. João V determinava a defesa do património cultural, a fim de impedir perdas, que eram “prejuízo tão sensível e tão danoso à reputação e glória da antiga Lusitânia, cujo domínio e soberania foi Deus servido dar-me” (Id., Ibid.). Não se podia assim destruir monumentos, estátuas e mármores, nem estragar moedas e medalhas, ficando as câmaras e vilas do país responsáveis “em conservar e guardar todas as antiguidades sobreditas, já descobertas ou que venham a descobrir-se nos terrenos do seu distrito”, estendendo estas ações à investigação a nível regional, de modo a fazer-se da história o espelho da grandeza do reino (Id., Ibid.). Neste sentido, escreveu o presidente da Academia, o conde de Vilar Maior, Fernando Teles da Silva (1662-1731), à Câmara do Funchal, a 19 de maio de 1722, transmitindo a ordem real para, dentro da brevidade possível, dado dever possuir a Câmara interessantes documentos em arquivo, ser organizada uma “história eclesiástica e secular deste reino e suas conquistas” (ARM, Câmara Municipal do Funchal, avulsos, cx. 2, doc. 319). Saliente-se, mais uma vez, a delimitação de poderes, com a Academia a solicitar a elaboração de uma história eclesiástica à Câmara e não à diocese, ou ao cabido da sé do Funchal. Enviou-se então uma memória para a organização do trabalho, voltando-se a referir que o assunto era muito “do serviço e agrado de Sua Majestade, que Deus guarde” (Id., Ibid.). A Câmara delegou o trabalho a Henrique Henriques de Noronha (1667-1730), que já teria entrado para a Academia como sócio correspondente e que viria a elaborar as Memórias Seculares e Ecclesiásticas para a Composição da Historia da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, com data de 1722, atestando no rosto: “Distribuídas na forma do sistema da Academia Real da História Portuguesa por [....] Académico Provincial” (NORONHA, 1996): trata-se de um estudo ainda hoje de consulta obrigatória para quem trabalhar nessa área. Tal como acontecera em Lisboa com D. António Caetano de Sousa, os trabalhos na Madeira, organizados por Henrique Henriques de Noronha, eram essencialmente genealógicos, conhecendo-se mais algumas das suas produções, como o Nobiliario Genealogico das Famillias que passaram a viver à Ilha da Madeira, datado de 1700, mas com informações até ao ano de falecimento do autor e inclusivamente posteriores, acrescentadas pelos possuidores das cópias seguintes, Horóscopo Genealógico: Árvore da Casa de Henriques, Senhor das Alcáçovas em Portugal, datado de 1710 e Livro da Família Freyes de Andrada, Non plus ultra da Nobreza. Fidalgos da Ilha da Madeira, de 1717, variante dos trabalhos anteriores. Todas estas obras permanecem inéditas, salvo o Nobiliario, que foi editado no Brasil, nos finais dos anos 40 do séc. XX e as Memórias Seculares e Eclesiásticas, nos finais de 90 da mesma centúria. A divulgação dos trabalhos de Henrique Henriques de Noronha foi enorme, conhecendo várias versões, como a do Nobiliário, publicado no Brasil, em 1948, que seguiu o exemplar existente na Biblioteca Municipal do Funchal (BMF). Também há uma versão dessa obra na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa, tal como existe aí o Livro de Arvores das Familias da Ilha da Madeira, “tiradas fielmente dos nobiliários que escreveu Henrique Henriques de Noronha”, datado de 1764 (BNP, res., Livro de Arvores..., 1764, f. I). Para além de outros escritos de Noronha, a BNP possui ainda uma outra versão das Memorias Seculares e Ecclesiásticas, talvez mais fiável do que a editada em 1996, que seguiu o exemplar da BMF, copiado em 1925-26, por João José Maria Rodrigues de Oliveira. A família de Henrique Henriques de Noronha é bem o espelho desta época e da necessidade dos trabalhos genealógicos para cimentar e justificar arranjos familiares e, acrescente-se, consequentes concentrações patrimoniais. Filho de Pedro Bettencourt Henriques (1632-1687), segundo descendente de António Correia Henriques (1601-1670) que, por falecimento do herdeiro, sucedera na casa dos seus avós e de D. Maria de Meneses (1632-1699), irmã da sua cunhada e filha de António Correia Henriques, seu tio, era o terceiro filho do casamento, que registou mais sete filhos e cinco filhas. Henrique Henriques estudou cânones na Universidade de Coimbra, entre 1682 e 1684, o que lhe abriu caminho para uma formação clássica e religiosa, patente nas suas obras. Casou a 26 de junho de 1692, na sé do Funchal, com sua prima D. Francisca de Vasconcelos, da qual teve uma filha, D. Antónia Joana Francisca Henriques de Noronha (1693-1746), que também veio a casar com um primo, António Correia Bettencourt Henriques (1690-1763). Figura de destaque da sociedade madeirense da época, membro e mordomo de várias confrarias, foi eleito provedor da misericórdia do Funchal, função que desempenhou entre 1706 e 1707, e foi ainda administrador do recolhimento do Carmo, cujo morgadio herdara pelo falecimento do seu tio Inácio Bettencourt da Câmara, tendo sido sepultado na capela-mor daquela igreja, no túmulo dos Brandão, fundadores daquele recolhimento (Igreja e recolhimento do Carmo). Todos os restantes filhos seguiram a carreira religiosa: António Correia Bettencourt (1664-1725), o segundo, foi um célebre deão da sé do Funchal; Fr. Pedro de Noronha (1670-?), foi religioso de São Jerónimo e depois reitor do colégio de Coimbra; Fr. Francisco de Bettencourt (1671-?), religioso da mesma ordem, em Belém; Gaspar de Bettencourt (gémeo do anterior), que professou na Companhia de Jesus, mudando o nome para Leão Henriques, em homenagem ao seu avô, foi principal dos Jesuítas em Portugal nos finais do séc. XVI (c. 1520-1589); Lucas de Bettencourt (c. 1673-1704), que professou na ordem de S. Francisco, mudando o nome para Fr. Henrique dos Serafins, foi aluno da Universidade de Coimbra, em teologia, entre 1728 e 1729, mas surge referido como padre religioso jerónimo, o que não confere com os dados fornecidos pelo irmão Henrique Henriques de Noronha, e depois pregador do convento do Funchal; e Tomás de Bettencourt Henriques (1675-c. 1720), o mais novo, mas que também chegou a cónego da sé do Funchal e tesoureiro-mor do cabido. Ao longo do séc. XVIII, o lugar de tesoureiro-mor da Sé do Funchal, esteve quase sempre ocupado por membros desta família, pois, em 1749, foi provido como mestre-escola da sé o cónego Francisco Cândido Correia Henriques que, em 1758, foi igualmente provido como tesoureiro-mor. Houve ainda as seguintes filhas: D. Mariana de Meneses (1668-1759), a mais velha, que casou com um dos netos do Ten.-Gen. Inácio de Câmara Leme (1630-1694) (Tenente-general), Pedro Júlio da Câmara Leme (1678-1742), irmão de D. Isabel de Castelo Branco, que tinha contraído matrimónio com o irmão mais velho dos Henriques de Noronha; e D. Maria, D. Teresa, D. Antónia, D. Filipa e D. Rosa, todas Meneses e freiras no convento de Santa Clara, posição bem sintomática da necessidade de concentração dos morgadios. Aliás, o mesmo acontecia nas casas continentais com as filhas que não era possível enquadrar na concentração dos morgadios. O governador da Madeira na época, Duarte Sodré Pereira, fidalgo e mercador, em carta de dezembro de 1711, escrita para o P.e Fr. Vicente Tavares, em Lisboa, para tratar, essencialmente, do resgate do seu irmão Fr. Francisco de Meneses, capturado por piratas argelinos, referiu: “É verdade que eu me tenho achado bem neste governo e, graças a Deus, não tenho queixa, nem da gente, nem da terra. Tenho dois filhos e cinco filhas, os mais deles ilhéus. Paguei as dívidas de meu pai e fica-me com que fazer minhas filhas freiras” (SILVA, 1992, 76). O já referido Nobiliario Genealogico das Famillias que Passaram a Viver à Ilha da Madeira, de Henrique Henriques de Noronha, foi a base de praticamente todas as genealogias seguintes, embora não se encontre isento de críticas, muitas delas hoje fundamentadas. Noronha encontrava-se muito bem informado, possuindo, inclusivamente na sua biblioteca, cópias dos principais trabalhos sobre a história da Madeira e mesmo outros, como o Nobiliário de Segredos Genealógicos, atribuído a Manuel de Carvalho e Ataíde (c. 1676-1720), uma obra que anotou diligentemente. Mas verifica-se que acabou por utilizar apenas o que lhe convinha. Foi assim acusado de ocultar, p. ex., a origem de um dos seus ascendentes, João Afonso, que se fixara na Madeira por volta de 1466, casado com Inês Lopes e que aponta como sendo João Afonso Correia, “dos primeiros e principais povoadores que passaram a viver nesta ilha no seu descobrimento; e entre os companheiros nobres de João Gonçalves Zarco” (NORONHA, 1948, 151-152), tendo sido tronco dos Correias e depois dos Torre Bela. Ora se João Afonso se fixou na Madeira em 1466, ainda poderá ter conhecido Zarco, falecido por volta de 1471, mas não foi, por certo, um dos seus companheiros de 1420. Uma carta divulgada pelo investigador Jorge Guerra, enviada pelo vigário da Fajã da Ovelha, Manuel Sulpício Pimentel da Area, natural do Funchal, a seu irmão, António Xavier Pimentel, é particularmente demolidora dos descendentes dos Correia de Câmara de Lobos. Em causa estava a nomeação de um bisneto de Henrique Henriques de Noronha, António João Correia Brandão Henriques e a eleição, provavelmente fraudulenta, em que este havia sido preferido, entre outros nomes, para a mesa da misericórdia do Funchal. O vigário da Fajã da Ovelha, que deveria ter queixas antigas dos Henriques, acusou-os então de serem descendentes de Inês Lopes, logo, de serem todos “tidos e havidos por cristãos-novos”, para além de não poupar o genealogista, que era também “descendente de uma negra” (BARROS e GUERRA, 2003, 218-219). Henrique Henriques de Noronha “para ofuscar as notas que padecia no sangue e na qualidade, destruiu e aniquilou com água-forte dois livros, um de casados, outro de batizados da freguesia da Sé”, para depois “fingir justificações e brasões perfumando-os com fumos de tabaco para lhes dar cor de antiguidade”, que introduziu “nos cartórios desta cidade, para ao depois tirar por certidão, enobrecendo desta sorte e falsamente aos seus avoengos” (Id., Ibid., 218-219). Jorge Guerra confirmou, efetivamente, as dificuldades dos citados livros de casamentos e batizados e que tinham sido arrancadas as folhas correspondentes às cartas de vizinhança de João Afonso, mercador e ainda o pormenor, mais estranho, de existirem cópias das mesmas nos arquivos da família Torre Bela, transladados pelo punho de Henrique Henriques de Noronha. Um desses documentos menciona um agravo efetuado pelo mercador João Afonso, em janeiro de 1477, afirmando-se “que havia dez anos, pouco mais ou menos, que ele vivia na dita ilha” (ARM, Arquivos particulares, Família Torre Bela), o que invalida a afirmação de Noronha sobre o seu remoto avô ter partido para a Madeira com Zarco, tal como a dele ter sido servidor da casa do infante D. Henrique. Por essas e outras razões, o investigador Dr. Ernesto Gonçalves (1898-1982), dentro da sua excecional e habitual polidez, haveria de o rotular de “rigoroso zelador da boa fama da nobreza instalada” (VAZ, 1964, 223). Idêntica situação se coloca com a família dos Ornelas de Vasconcelos, justificando dois volumes de genealogias do P.e José Francisco de Carvalhal Esmeraldo e Câmara (1728-1798), filho do 8.º morgado do Caniço, Aires de Ornelas e Vasconcelos (1677-1736) e de Cecília de Aguiar França: Noticia Breve mas Verdadeira das Illmas. Familias dos Ornellas, Cabrais, Carvalhaes e Esmeraldos, e Outras a Ellas Unidas, de 1766, onde o autor se intitula comissário do Santo Ofício. Mais uma vez, abundam os equívocos, logo no título dos volumes das genealogias, pois o clérigo em causa foi sendo preterido na nomeação como notário do Santo Ofício e só o foi após a abolição dos róis do finto, outorgada em 1768, tendo tido despacho favorável a 26 de setembro de 1769. O padre genealogista era filho de Aires de Ornelas e Vasconcelos (1677-1736), neto de Agostinho de Ornelas de Moura ou Agostinho de Ornelas de Vasconcelos (1650-1718) e de D. Beatriz de Mariz, filha do mercador Gaspar Fernandes Gondim, fundador da capela de N.ª S.ª dos Anjos da sé do Funchal e bisneto de Aires de Ornelas de Vasconcelos (1620-1689) e de D. Maria de Sande, com quem casara na Baía, filha do célebre Francisco Fernandes da Ilha ou Francisco Fernandes de Oucim (1591-1664). O Cap. Francisco Fernandes da Ilha, cedo saiu da Madeira. Esteve em Angola e fixou-se depois na Baía. Considerável produtor de açúcar, granjeou avultada fortuna, sendo cavaleiro da Ordem Militar de S. Tiago, dado ter combatido os holandeses em Angola e na Baía; foi também provedor da misericórdia da Baía, em 1656, ainda existindo o seu retrato a óleo e a corpo inteiro na sala de reuniões da confraria. Era filho de Simão Fernandes, fanqueiro, que casara em 1584, com Maria Dias, sendo todas as testemunhas do casamento “gente de nação” e então mercadores do Funchal. Os descendentes vieram a trocar as profissões do avô, passando fanqueiro a sirgueiro e a calceteiro, mas a marca de cristão-novo, numa sociedade limitada como a da Madeira, não era fácil de apagar. E isto para não falar já de outras linhas, como a dos Ornelas Rolim de Moura, pois eram descendentes do mercador João de Caus (m. c. 1622), de origem francesa, que chegou a ser cônsul de França no Funchal e casara com D. Maria de Moura, filha de Mem de Ornelas de Vasconcelos e de D. Antónia de Vasconcelos. Um dos filhos, João de Moura Rolim (m. 1640), mandou levantar a capela do Santíssimo da igreja matriz de São Pedro do Funchal, mas os livros de óbitos da Sé encontram-se cheios de acusações de que, para além de outros, “todos os Mouras Rolins eram cristãos-novos” (BARROS e GUERRA, 2003, 216-217). A partir dos finais do séc. XVIII, as genealogias entram um pouco em declínio, remetendo-se para uma ciência fechada sobre si própria, algo hermética e pouco acessível, muitas vezes reduzida a “árvores de costados” como as Genealogias Madeirenses de António Bettencourt Perestrelo de Noronha. Ao longo do séc. XIX, estes trabalhos conheceram, inclusivamente, reserva por parte de alguns historiadores, dada a repetição exaustiva e não referenciada dos sujeitos, dos casamentos e da descendência, não sendo fácil encontrar sequências, pessoas, funções ou outros. Pontualmente, no entanto, encontram-se referências a trabalhos mais desenvolvidos neste âmbito, como os colecionados pelo Dr. João Pedro de Freitas Drumond (1760-1825), conhecido como “Dr. Piolho”, dada a sua fraca estatura, “constitucional exaltadíssimo, advogado distinto e homem bastante erudito” (SILVA e MENESES, I, 1998, 381), mas de que pouco chegou até nós. Porém, ao longo do séc. XIX, continuaram os trabalhos genealógicos, devendo-se a Felisberto Bettencourt de Miranda (1816-1889), amanuense da Câmara do Funchal, o manuscrito Apontamentos para a Genealogia de Diversas Famílias da Madeira, Coleccionados de 1887 a 1888, hoje na BMF, por ventura o trabalho mais completo. Entre os finais do séc. XIX e os inícios do XX, os trabalhos de genealogia anteriores conheceram, inclusivamente, alguma rejeição por parte de determinados investigadores, que os acusavam de ser obras fascinadas “por vãs e ingénuas ficções com que se ornamentam origens familiares”, como referiu o Dr. Ernesto Gonçalves (VAZ, 1964, 9). No entanto, nos meados do séc. XX, este género de investigação disparou exponencialmente com a constituição do Arquivo Regional da Madeira e o trabalho do seu primeiro diretor, João Cabral do Nascimento (1897-1978), em especial, através da revista Arquivo Histórico da Madeira, cujo primeiro número saiu em 1931, no próprio ano da fundação da instituição, tendo aquele diretor contado com a colaboração do conservador Álvaro Manso de Sousa (1896-1953). Nos anos seguintes, as genealogias contariam ainda com o apoio de Luiz Peter Clode (1904-1990), um dos elementos fundadores da Sociedade de Concertos da Madeira, também através de uma revista, Das Artes e Da História da Madeira, cujo primeiro número saiu como suplemento semanal de O Jornal, nos anos de 1948-1949, passando depois a folheto colecionável e durando até 1971. A época do Estado Novo conheceu um alargado interesse por este tipo de trabalhos, destacando-se, entre outros e para além dos autores citados, os trabalhos de Eugénio de Andrea da Cunha e Freitas (1912-2000), que, embora não residente na Madeira, nutria pela Ilha uma muito especial admiração e interesse. O autor mais produtivo foi, sem dúvida, Luiz Peter Clode, que, progressivamente, coligiu e editou os seus trabalhos, inicialmente saídos na citada revista, entre eles Registo Genealógico de Famílias que passaram à Madeira, Andradas do Arco, Cabrais e Pontes de Gouveia, Genealogia da Família Clode, Genealogia da Família Andrade ou Andrada, Genealogia da Família Drummond e Descendência de D. Gonçalo Afonso D’Avis Trastâmara Fernandes, O Máscara de Ferro Madeirense. Estes trabalhos, no entanto, repetem-se exaustivamente e nem sempre tiveram boa aceitação por parte de alguns genealogistas, e, salvo o colossal trabalho de Fernando de Meneses Vaz (1884-1954) Famílias da Madeira e Porto Santo, de que, infelizmente, só foi publicado o primeiro volume, anotado por Luiz Peter Clode e por Ernesto Gonçalves, acrescentam muito pouca novidade à investigação genealógica, embora se mantenham como obras de referência. Entre os finais do séc. XX e os inícios do XXI, continuaram a aparecer trabalhos deste âmbito, tanto sobre determinadas famílias, como os Espinoza Martel ou os Perestrelo, como alargados a determinadas áreas locais, e.g. os trabalhos de Luís Francisco de Sousa Melo em relação a Machico e de Lourenço de Freitas em relação a Gaula. A partir dos finais do séc. XX, as genealogias democratizaram-se graças aos meios tecnológicos e à informática, ganhando outro tipo de base de apoio à investigação, e também se personalizaram e comercializaram, representando outra forma de ocupação e de lazer. No entanto, se, por um lado, disparou consideravelmente a divulgação das sequências genealógicas, por outro, também baixou de forma exponencial a fiabilidade geral dos trabalhos disponibilizados, muitas vezes sem indicações de fontes e com o recurso a dados pouco criteriosos.   Rui Carita (atualizado a 01.02.2017)

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