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moda

A abordagem da moda enquanto atividade estética integrada nas dinâmicas sociais e com a sua retórica própria radica, em grande parte, nos escritos de Roland Barthes e de Gillo Dorfles sobre o tema. Um momento marcante para uma reflexão teórica sobre a moda em Portugal, é, sem dúvida, a exposição Depois do Modernismo, em 1983, organizada por Luís Serpa, Cerveira Pinto e Leonel Moura, todos eles ligados às artes. A par da arquitetura, das artes visuais, do teatro, da dança e da música aparece também a moda (VASCONCELOS, 1983, 183-188), A emergência de novas atitudes e criadores de moda potencia o aparecimento de eventos que, ora vocacionados para a descoberta de novos talentos, ora numa vertente mais comercial, procuram a ligação ao mercado e ao mundo empresarial (SANTOS, 2007, 334). Destaca-se pela continuidade e pela repercussão a ModaLisboa, criada em 1991, que se afirma como uma plataforma de comunicação e marketing destinada a desenvolver a moda o contexto das indústrias criativas. Cada vez mais a criação na moda é assumida como uma das variantes do design, tanto no seu modus operandi, como nos seus circuitos de produção e de divulgação. Em 1991 a Europália integrou na exposição “Manufacturas - Criação Portuguesa Contemporânea”, em Bruxelas, comissariada por Delfim Sardo e desenhada por Pedro Silva Dias, com a presença de artistas plásticos e de designers de produto e de moda. Este é também o tipo de convivência que se verificou na exposição “Qualquer Semelhança é Inevitável”, produzida pela Loja da Atalaia e, Lisboa, em 1994 e comissariada pelo designer Filipe Alarcão. O Portugal Fashion, criado em 1995, fomentou a internacionalização da moda portuguesa estreando-se nas passerelles em 1999, com Fátima Lopes, José António Tenente, Maria Gambina, Miguel Vieira e Nuno Gama, apresentando ainda oito marcas. Em 2009, é inaugurado o MUDE - Museu do Design e da Moda onde podemos ver a Colecção Francisco Capelo, cujo núcleo de design de produto tinha sido exposto no Museu do Design no Centro Cultural de Belém, entre 1999 e 2006. A significativa presença da moda neste museu, dá conta do modo como os seus produtos se foram transformando em objetos de coleção, passíveis de institucionalização. Quanto ao contexto regional, os madeirenses, em particular as famílias mais abastadas do arquipélago, sempre receberam com muito interesse as novidades que eram trazidas além-mar, sobretudo dos grandes centros culturais europeus como Paris e Londres. No início do séc. XX, eram publicados no Funchal alguns periódicos que atribuíam grande importância à moda e às tendências da altura. Um deles, o Diário da Madeira, publicava duas a três vezes por semana uma coluna intitulada "Diário Elegante", onde se escreviam textos sobre moda, tecidos e cultura, com algumas opiniões e informações de interesse e curiosidade para a sociedade madeirense. O Comércio da Madeira reservava à mulher funchalense uma coluna intitulada "Jornal da Mulher", onde eram publicadas crónicas sobre moda. O Jornal da Madeira chegou a criar uma página feminina, intitulada "Jornal da Mulher", onde eram tratados os mais variados assuntos. Por volta de 1926, foram editados, por vários periódicos, Suplementos Femininos que retratavam a moda europeia e faziam chegar à sociedade madeirense todas as novidades nesta área. Por esta altura, já existiam algumas lojas de tecidos, que eram assiduamente publicitadas nos periódicos regionais: a Companhia Portuguesa de Bordados (recebia sempre os melhores e mais modernos tecidos); o Salão de Moda, a loja Rachel; a loja Braga; loja Primavera; o Petit Royal, entre muitas outras. Uns anos mais tarde já encontramos outras lojas como Casa Tavares, Dois Amigos, Último Figurino e um pronto-a-vestir de caráter seletivo em estabelecimentos como Maison Blanche, Cayres, Balão Vermelho, etc. Nos anos 80, a Cruz Vermelha Portuguesa - Delegação da Madeira, organizava no Hotel Savoy, durante a tarde, chás acompanhados por desfiles de moda, integrando espaços comerciais e jovens criadores de então para fins de beneficência. Estes eventos eram organizados por equipas de senhoras voluntárias da referida instituição e que tinham como principal dinamizadora a Sr.ª D.ª Branca Melim. Numa tentativa de revitalização do Bordado da Madeira, criou-se em 2000 o Centro de Moda e Design, que se propunha preservar e dar uma nova imagem desta tradição, apoiar os jovens criadores no acesso a contactos com o exterior, seja participando em feiras e exposições, seja na mediação com a indústria têxtil nacional e internacional. O Centro, dirigido pela Eng.ª Isabel Araújo e com equipa própria, funcionava no IBTAM – Instituto do Bordado, Tapeçaria e Artesanato da Madeira, que era então presidido pelo Escultor Ricardo Velosa. Investiu em equipamentos para modelação e impressão, com o intuito de assessorar os industriais de bordado e os designers de moda. Foi na altura do seu funcionamento considerado por muitos como um “novo fôlego para o Bordado” (CASSACA, 17-7-2002, 8, 9) e, embora não tivesse atingido o impacto desejado, o seu encerramento em 2007 causou surpresa (HENRIQUES, 30-7-2007, 15). O Portugal Fashion, importante evento da iniciativa da ANJE-Associação Nacional de Jovens Empresários, APT- Associação Portuguesa de Têxteis e Vestuário e Fundação da Juventude (“Grande Moda”, 18-4-2001, 17) realizou no Madeira Tecnopolo, através do Centro de Moda de Design, uma edição na Madeira em 2001, com coleções para o Outono/Inverno 2001/2002 que, pela sua qualidade e ineditismo, teve grande afluência. Os estilistas madeirenses presentes neste evento foram Fernanda Nóbrega, Hugo Santos, André Correia, Patrícia Pinto, Bela Henke, Zequita, Susana Menezes, Ana Rita Pessanha e Lúcia Sousa. (ORNELAS, 2001, 14-21). No desfile participaram ainda Luís Buchinho, Miguel Vieira, Maria Gambina, Ana Salazar, Anabela Baldaque, Paulo Cravo & Nuno Baltazar, Katty Xiomara, Osvaldo Martins, João Tomé & Francisco Pontes, destacados criadores de moda no panorama nacional, bem como diversas marcas portuguesas. Nesta edição do Portugal Fashion houve a intenção de criar sinergias entre turismo e moda, promovendo assim o destino Madeira. O mesmo objetivo é retomado em 2005, no ModaMadeira, tendo agora como promotora a AJEM - Associação de Jovens Empresários da Madeira, num evento que, entre 21 e 24 de Abril, trouxe à Madeira consagrados criadores de moda do panorama nacional e regional. Esta 1ª edição teve lugar no Centro das Artes - Casa das Mudas, na Calheta com a presença de Louis de Gama, Júlio Torcato, Katty Xiomara Isilda Pelicano, Paula Rola, Lidija Kolovrat, e coleções da Kispo, Lions of Porches e MacModa, para além de quatro dezenas de modelos nacionais e internacionais. A I ModaMadeira incluiu ainda três exposições temáticas: “Gama de Casa”, de têxtil lar de Nuno Gama; “A Modernização do Bordado Madeira” pela D’ART e o Sindicato das Bordadeiras e ainda uma mostra fotográfica “Looking at living style” do fotógrafo de moda Cassiano Ferraz. Participaram nos desfiles criações dos madeirenses Hugo Santos, Lúcia Sousa, Fernanda Nóbrega, Susana Menezes, André Correia e Patrícia Pinto ( “Quatro dias de moda na Calheta, 21-4-2005, 1 “Palco de moda e de glamour”, 21-4-2005, 2-3; ABREU, 22-4-2005, 26; GONÇALVES, 1-5-2005, 10-11). Funchal Fashion Week 2005 teve lugar de 26 a 28 de Maio, numa organização em parceria da Sportsmoods, da Elite Models Portugal e da Câmara Municipal do Funchal, que declarou aspirar a uma futura internacionalização deste evento. Participaram Maria Gambina, Luís Buchinho, José António Tenente, Pedro Waterland, Nuno Baltazar, as lojas Nova Minerva e Ana’s Boutique e os criadores madeirenses André Correia, Hugo Santos e Patrícia Pinto (GOUVEIA, 12-5-2005, 12; GONÇALVES, 27-5-2005, 17). O ModaMadeira regressou em 2007 para mais uma edição no Madeira de 4 a 5 de maio, no Tecnopolo, que se orientou para o mercado madeirense em torno da moda, afastando-se da estratégia promocional da sua génese, mais vocacionada para a internacionalização. Pretendia incrementar a componente comercial, promover o Bordado Madeira, criar e desenvolver mercados e estimular os profissionais do sector. Para tal, estabeleceu um protocolo com a empresa D’Art e realizou ainda um concurso para jovens talentos. Foi promovido pela AJEM com a organização da Controlmedia, ficando a produção dos desfiles a cargo de Isabel Branco. Contou com a presença Alexandra Moura, Story Taylors, Filipe Faísca e Ana Salazar e com os madeirenses Fernanda Nóbrega, André Correia, Patrícia Pinto e Lúcia Sousa (HENRIQUES, 1-5-2007, 15; “Moda”, 28-4-2007, 24-26; PESTANA, 22-4-2014, 25). Ficou então prevista uma 2ª edição neste mesmo ano e duas no ano seguinte. A 3ª edição do Moda Madeira, em 2008, contou com duas galas. A primeira, a 18 e 19 de janeiro no Madeira Tecnopolo recebeu os estilistas madeirenses Hugo Santos, Patrícia Pinto, Lúcia Sousa, Fernanda Nóbrega e os consagrados estilistas nacionais, Nuno Baltazar e José António Tenente. A grande novidade foi a participação de jovens talentos na área da criação — Ana Catarina Freitas, Janett Agrela — e um desfile de marcas promovido pelo centro comercial Dolce Vita. (PESTANA, 05-01-2008, 33 e 18-01-2008, 36). Hugo Santos apresentou uma coleção inserida no contexto “Bordar Madeira”, uma iniciativa promovida pela Associação de Jovens Empresários Madeirenses (AJEM) em parceria com este criador de moda (PESTANA, 08-01-2008, 33). A segunda gala desta 3ª edição foi realizada em Maio, mantendo a participação de Anabela Baldaque, Miguel Vieira e de marcas do Centro Comercial Dolce Vita. Esteve presente também Fernanda Nóbrega e quatro jovens madeirenses, escolhidos por um júri, que mostraram o seu trabalho: Ruben Freitas, André Pereira, Ana Catarina Freitas e Janett Agrela (PESTANA,22-5-2008, 33 e 31-5-2008, 26-27). Esta foi a última edição deste evento, a que se seguiu, em 2012, um novo formato integrado numa marca criada pela AJEM intitulada New Order (http://ajem.pt/marcas-ajem/). No Centro de Congressos do Casino estiveram presentes os Storytailors, dupla constituída por João Branco e Luís Sanchez (este natural da Madeira), e os jovens estilistas selecionados no concurso de talentos Joana Mendonça, Mariana Sousa e Fábio Carvalho. Nos eventos de moda que se seguiram, a vertente de divulgação da criação e produção local para fora da ilha ficou mais focada em iniciativas particulares. Tem mantido continuidade o certame Funchal Noivos, promovido a partir de 2009 pela ACIF, com exposições e desfiles de moda, inicialmente específicos deste tema mas posteriormente alargados a festas e cerimónias em geral (“Funchal Noivos, 14-3-2009, 31). Hugo Santos, Lúcia Sousa, Fernanda Nóbrega, André Correia, Patrícia Pinto, Fábio Carvalho, Emília Luz, André Pereira são alguns dos criadores que participaram ao longo das sucessivas edições. No decorrer dos anos, tivemos alguns criadores madeirenses que se destacaram, como por exemplo Fátima Lopes que deixou para trás a ilha e a sua atividade de guia turística para fixar-se em Lisboa, em 1990, e dedicar-se à moda. Abriu a loja Versus com roupas e acessórios de criadores internacionais e, em 1992, criou a sua própria marca. Em 1995 participa no Portugal Fashion e em feiras de moda francesas e em 1998 abriu um espaço no Bairro Alto com boutique, ateliê, bar e agência de modelos, o que indicia a sua visão integrada de uma atividade que exige um trabalho de equipa coeso e a convicção da necessidade de criar sinergias com a indústria. No ano seguinte integrou a ModaLisboa e passou a ser presença assídua na Paris Fashion Week. A sua persistência e profissionalismo valeram-lhe o reconhecimento internacional e uma Comenda da Ordem do Infante Dom Henrique (2006), pelo seu importante papel na expansão dos valores culturais portugueses. Diversificou a área de atuação da sua marca para a criação de acessórios de moda, peças de joalharia, óculos, cutelaria, tapeçarias, porcelanas, cristais, instrumentos de escrita, calçado e também um perfume. Desenhou ainda o traje oficial da seleção nacional de futebol (2005), a vestuário oficial da equipa do Sporting (2007) e as fardas dos funcionários do prestigiado Hotel Conrad, no Algarve (2012). No início de 2016 mudou do Bairro Alto para um novo espaço perto da Avenida da Liberdade com ateliê, show room e agência Face Models. De entre os criadores que desenvolveram a sua atividade na Madeira podemos destacar vários nomes pela continuidade e qualidade do seu trabalho, como Patrícia Pinto, André Correia. Fernanda Nóbrega, Hugo Santos ou Lúcia Sousa. Patrícia Pinto nasceu em 1976 e concluiu o Curso de Design de Moda no IADE em 1998. Participou no Portugal Fashion na Madeira (2001), no Funchal Fashion Week (2005), no Porto Fashion Week, no Moda Madeira, no Portugal Fashion (2005 e 2006) entre muitos outros. Desde 2010 realiza desfiles individuais onde apresenta as suas coleções marcadas pela multiplicidade de cores, pela justaposição de padrões, tecidos e malhas: Yangu Afrik no Museu Casa da Luz, em 2011; 2011-2012, Dress up, please no Parque de estacionamento Almirante Reis; em 2012 In the market no Mercado dos Lavradores do Funchal; 2013 Orange – Blue e La vie en rose, no 7º Aniversário da sua loja, assinalando 15 anos de carreira; em 2015 Back to the Market, de novo no Mercado dos Lavradores. André Correia começou uma carreira na moda em 1992, em simultâneo com trabalhos de cenografia e figurinos para teatro. Neste mesmo ano abriu o seu ateliê e, em 1999, um novo espaço, já com loja. Iniciou o seu percurso na Escola de Moda Gudi, no Porto, realizando posteriormente um curso de Modelismo no CITEM, em Lisboa. Foi completando e diversificando a sua formação com a licenciatura em Design (2010) e uma pós-graduação em Arte e Design no Espaço Público (2013) ambos pela Universidade da Madeira. Lecionou Plástica do Espetáculo no Curso de Teatro do Conservatório-Escola das Artes, no Funchal (2012 e 2013). Apresentou coleções no Portugal Fashion (Madeira, 2001 e Porto 2005 e 2006), no Funchal Fashion Week (2005), no Moda Madeira (2005 e 2007), no Fashion Week nos Açores (2006) e marcou presença na ExpoNoivos no Porto (1998) e FunchalNoivos (desde 2009). Para além de criações personalizadas em que predominam os materiais nobres e naturais, explora técnicas e materiais que muitas vezes levam a cruzamentos entre traje e escultura, incorporando cordas, fibra de vidro, polímeros, técnicas de capeline, e outras. Nesta linha enquadra-se Bizarria, do espetáculo de moda, na discoteca Vespas e bares anexos Jam e Marginal; a instalação individual Silhuetas Virtuais, Galeria da Secretaria Regional do Turismo e Cultura (Funchal, 2003) e a coleção integrada nas Jornadas Académicas de Arte e Design, Alternativas, bem como os coordenados apresentados no evento Hypnotic Black Ice (discoteca Vespas 2004). Fernanda Nóbrega finalizou o curso de design de moda em 1990 e abriu o seu próprio ateliê em 1995. Define-se como de influência minimalista, que alia frequentemente a pormenores em bordado Madeira. Participou no Moda Madeira, no Portugal Fashion, Funchal 2001 e também em eventos nacionais como o 2000-Porto Capital Europeia da Cultura e da Moda, o Portugal Fashion Figueira 2002, o AdroModa, em Viseu, entre 2008 e 2011 e internacionais, caso do Global Fashion Festival em Berlim, em 2006. Hugo Santos fez uma nova abordagem da aplicação do bordado Madeira no vestuário, aproveitando a sua familiaridade com o bordado, adquirida desde cedo na empresa familiar. Começou por ser desenhador de bordado, tendo feito formação com Leandro Jardim. Apresentou coleções no Moda Madeira em 2005 e 2008, e participa no FunchalNoivos desde 2009, tendo sido presença assídua em diversas feiras internacionais. Lúcia Sousa, nascida na Austrália em 1976, formou-se em Arquitectura de Design de Moda em 2001 pela Faculdade de Arquitectura de Lisboa e estagiou com José António Tenente. Iniciou-se como profissional em 2004 e tem marcado presença em eventos de moda regionais, nomeadamente na ModaMadeira e FunchalNoivos, e nacionais como a ExpoNoivos em Lisboa e a Exponor, no Porto. Nas suas criações para a moda feminina recorre frequentemente a draping e cortes assimétricos, exaltando o colorido e brilho dos tecidos. Atualmente a Madeira conta com jovens criadores como André Pereira, Mariana Sousa, Carolina Teixeira e Fábio Carvalho, que marcam presença nas passerelles madeirenses, que deram os primeiros passos na profissão na sequência do concurso de Jovens Talentos do ModaMadeira.     André Correia Licínia Macedo (atualizado a 05.02.2017)

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genealogias

A genealogia é uma ciência auxiliar da história que estuda a origem, evolução e disseminação das famílias, articulando as várias gerações, os nomes, sobrenomes ou apelidos utilizados, os locais de nascimento e morte, registando casamentos e filhos, tal como, quase sempre, as funções desempenhadas e as instituições criadas, muito especialmente os morgadios e capelas, essenciais à manutenção, antigamente, de determinado estatuto social. Desde os tempos bíblicos que todas as culturas, em todos os continentes possuem genealogias, com pequenas variantes de forma, dado assentarem na constituição e desenvolvimento da família. Sendo um estudo, ou um simples elenco de parentesco, desenvolve-se no âmbito da história da família, sendo assim uma peça fundamental para a grande maioria das ciências sociais e, de forma muito especial, para a grande área da história social, mas não só. Assim, ao elencar os elementos de determinadas famílias, das suas relações e do seu património, a genealogia torna-se também importante para os estudos de economia, de direito, de história da arte e de heráldica, entre outros. A genealogia, no entanto, é também um vasto campo de dúvidas, voluntárias e involuntárias, face ao levantamento dos antepassados, sobretudo, quando se mudavam quase sistematicamente os nomes ao longo do percurso de vida, quando não se respeitavam, muitas vezes, os habituais apelidos de família, recuperando-se os apelidos dos avós e outros, e ainda devido a dificuldades de registo ortográfico e de posterior leitura, p. ex.. Acresce que, nos inícios do povoamento da Madeira, não estava instituído o hábito do apelido de família, optando-se geralmente por utilizar o nome da localidade de origem ou patronímicos, como Fernandes, filho de Fernando ou Gonçalves, filho de Gonçalo, entre outros. Mais tarde, a repetição dos mesmos nomes, quase de geração em geração, nem sempre acompanhados dos elementos “o velho” e “o novo”, gerou também inúmeras dificuldades de identificação da pessoa em questão. Os documentos fundadores da história da Madeira, salvo a Relação de Francisco Alcoforado, que é somente um texto descritivo, nomeadamente, o Descobrimento da Ilha da Madeira e Discurso da Vida e Feitos dos Capitães da Dita Ilha, do cónego Jerónimo Dias Leite (c. 1537- c. 1593), e Saudades da Terra, do doutor Gaspar Frutuoso (1522-1591), a que o texto anterior serviu de base, são também trabalhos, de certa forma, de genealogia, como o próprio título do cónego Dias Leite indica. Baseado nos arquivos da família Câmara, dos capitães-donatários do Funchal, logicamente, ignora quase por completo os capitães de Machico. Mais tarde, na Ribeira Grande da ilha de São Miguel, o doutor Gaspar Frutuoso não deixou de acrescentar às Saudades da Terra dois longos capítulos dedicados às grandes figuras que estavam, na altura, à frente dos destinos da Madeira: o governador Tristão Vaz da Veiga (1537-1604) e o bispo D. Luís Figueiredo de Lemos (1544-1608), sobre os quais teceu os mais altos elogios, demonstrando a parcialidade deste género de trabalhos. O principal problema das genealogias, essenciais para a maioria dos estudos de história, é serem quase sempre um instrumento panegírico das linhas de descendências sobre as quais se debruçam, obrigando a ter para com as mesmas os maiores cuidados. Outras vezes, as genealogias foram feitas para apagar determinadas “nódoas”, como a persistência de sangue judaico, conceito hoje mais do que discutível, em muitas famílias madeirenses, mas perfeitamente compreensível no parco espaço geográfico da Ilha e na época então vivida pela sociedade católica europeia. Os judeus desempenharam um papel relevante nos inícios da economia insular, prosseguido, depois, sob a vaga capa de cristãos-novos, após a forçada conversão dos inícios do séc. XVI. A capacidade por eles demonstrada para o desenvolvimento de diversas atividades económicas cedo criou descontentamento e resistências, patentes nos pedidos insulares para o afastamento dos mesmos e consubstanciada, também, na deslocação à Madeira de quadros da Inquisição, o que veio a acontecer nos finais do século, entre 1591 e 1592, com uma visitação do Santo Ofício que executou diversas prisões e elaborou depois uma listagem dos descendentes dos cristãos-novos, que vieram a ser indexados num célebre rol dos judeus, de que existiram inúmeras cópias. Este rol destinava-se à recolha da finta, o imposto determinado pelo perdão geral concedido pelo papa Clemente VIII, em agosto de 1604, a troco de um donativo de mais de milhão e meio de cruzados que a “gente de nação” se havia proposto pagar à coroa, publicado em janeiro de 1605 (BARROS e GUERRA, 2003, 11). A reputação de cristão-novo ou a afirmação contrária passou a condicionar quase todas as genealogias insulares. Os cristãos-novos não eram somente mercadores, eram também boticários, almoxarifes e escrivães da alfândega, licenciados em leis e mercadores de grosso trato em geral, pelo que, desde muito cedo, estiveram presentes em quase todos os estratos sociais, inclusivamente e como forma de silenciar essa origem, na Igreja. Entre os descendentes, cite-se, p. ex., o licenciado Gaspar Leite (1551-1620) e o seu irmão, o cónego e cronista Jerónimo Dias Leite; os licenciados António Lopes da Fonseca (1571-1636) e Bento de Matos Coutinho (c. 1587-1651); o irmão Lourenço de Matos Coutinho (c. 1590-1654); os médicos Jorge de Castro e Luís Dias Guterres; o mercador e intérprete dos navios estrangeiros, e poeta, Manuel Tomás (1585-1665), tal como o seu sócio Mateus da Gama (1624-1683), contratador do estanco do tabaco, e o pai deste último, João Rodrigues Tavira (fal. 1649), administrador e agente, no Funchal, da Companhia Geral do Comércio do Brasil. Foi, aliás, pela intervenção deste grupo de cristãos-novos que se expandiram as redes comerciais atlânticas, numa triangulação estabelecida entre a Madeira, Angola e o Brasil, depois ampliada, nos meados do séc. XVII, se não o estava já antes, a Amesterdão e às Antilhas, pelo menos. Nesse quadro emergiu o cónego António Lopes de Andrada (1640-1704), representante do cabido da sé para inúmeros negócios em Amesterdão e o irmão Cap. Gaspar de Andrada, filhos do almoxarife Diogo Lopes de Andrada e netos do célebre boticário João Mendes Pereira (c. 1570-c. 1642), para além de muitos outros. A má reputação e conotação associada a ter ascendência cristã-nova atravessou todo o séc. XVII e ainda o XVIII, só perdendo importância, progressivamente, a partir da lei de 2 de maio de 1768, elaborada pelo gabinete pombalino, que eliminou essa distinção. Dessa verdadeira contenda social resultou, e.g., que o original de Saudades da Terra tenha sido recolhido no Colégio dos Jesuítas de Ponta Delgada, segundo registou o P.e Sylvio Mondanio na sua Crónica dos PP. Jesuítas de Portugal, pois arrancavam-lhe folhas quando as referências não convinham a determinados elementos; do mesmo foi acusado, depois, o próprio genealogista Henrique Henriques de Noronha, que abordaremos em seguida. A fama atingia, assim, inúmeras famílias madeirenses, nomeadamente os Andrada, Araújo, Dias, Henriques de Noronha ou os Ornelas e Vasconcelos, daí ser nessas famílias que apareceram, no século seguinte, os principais genealogistas madeirenses. O marquês de Pombal ainda tentou aproveitar a situação, em carta de lei de maio de 1773, acusando os padres da Companhia de serem os autores da “funesta maquinação” que ocasionou a “sediciosa distinção de cristãos-novos e cristãos-velhos” (Id., Ibid., 232). Mas, se consultarmos muitas das genealogias, inclusivamente dos meados do séc. XX e mesmo nos dias de hoje, a distinção está ainda muito presente. Com a emergência do barroco, a partir dos inícios do séc.XVII, o culto das genealogias estendeu-se também à Igreja, como prova a nova voga das árvores de Jessé, em homenagem às tribos de Israel ascendentes da Virgem Maria e de Jesus, de que um dos exemplares, dos meados dessa centúria, subsiste no convento de Santa Clara do Funchal. Conhecem-se outros, em concreto, no retábulo da antiga capela de Santa Isabel, hoje remontado na igreja do Sagrado Coração de Jesus e na tela do camarim do retábulo da matriz de Machico. As representações destas árvores remontam ao românico e o nome de Jessé, pai de David, já aparece citado no Antigo Testamento, depois incorporado na Bíblia, sendo referido pelo profeta Isaías. Inicialmente simples, com quatro a seis figuras, com o advento do protobarroco tornaram-se mais densas, multiplicando-se a presença dos ancestrais, assumindo, inclusivamente os elementos heráldicos das genealogias góticas e renascentistas iluminadas, numa verdadeira colagem entre o sagrado e o profano, numa apropriação pela iconografia sagrada da linguagem então assumida pela genealogia e pela heráldica. Os trabalhos sobre genealogia interessaram, assim, inúmeros elementos da Igreja, como aconteceu entre os madeirenses, pois alguns prelados são referenciados no Funchal como tendo-se dedicado a esse tipo de trabalhos. O bispo D. José de Sousa Castelo Branco (1654-1740), de quem se diz ter sido o “prelado mais amante da nobreza” que veio à Madeira (ARM, Arquivo do Paço Episcopal..., doc. 273, Memorias sobre..., fl. 92v.), dedicou-se a estudos genealógicos e terá deixado algumas obras inéditas, enumeradas na Bibliotheca Lusitana, mas de que desconhecemos o paradeiro e se eram relacionadas com as famílias madeirenses, embora pensemos que não. Este prelado chegou a emitir opiniões muito pouco abonatórias sobre o meio social local e, como ministro e ex-presidente do Tribunal do Santo Ofício, em carta de 11 de novembro de 1707 dirigida ao seu superior em Lisboa, referiu a sociedade madeirense nos seguintes termos: “A assistência de dez anos e o trabalho de sofrer esta gente, me tem dado o conhecimento do seu orgulho e dos seus atrevimentos. Saiba vossa senhoria, que não estou entre gente, senão em um bosque de feras sem nenhum conhecimento, nem obediência da razão, levados somente de suas paixões, como brutos sem temor de Deus, nem da honra, nem previsão de futuros” (ANTT, Inquisição de Lisboa, liv. 922, fls. 264-265v.). Os meados do séc. XVII e os inícios do XVIII marcam um novo interesse pelos trabalhos genealógicos, ainda que não tivessem especialmente esmorecido, mas então dotados de um outro sentido, mais institucional e nacional, se tal se pode escrever. A época foi marcada, depois, a nível nacional e internacional, pela instituição das academias, em Portugal, principalmente pela da história. A Academia Real da História Portuguesa foi criada por D. João V, por decreto de 8 de dezembro de 1720, recebendo o encargo de compor a “história eclesiástica destes reinos e depois tudo o que pertencer à história deles e de suas conquistas”, como se lê no decreto (Collecçam dos Documentos..., 1721). Ao mesmo tempo, no seu seio e através de D. António Caetano de Sousa (1674-1759), foi sendo elaborada a Historia Genealogica da Casa Real Portugueza. Tendo começado pela recolha de dados para uma história eclesiástica de Portugal, face à morosidade do processo em relação à expansão portuguesa, em 1725, comunicou aos membros da academia que tinha passado a ocupar-se, essencialmente, da genealogia da casa real portuguesa, vindo a obra a ser publicada em 19 volumes, entre 1735 e 1749, juntamente com provas e índices. Logo na altura da fundação, foi intenção real e dos seus colaboradores alargar os trabalhos a outras áreas, procedendo ao levantamento e publicação das crónicas dos antigos reis e ao desenvolvimento das ciências auxiliares da história, como a numismática e esfragística. Salvaguardaram-se assim importantes códices, papéis avulsos, inscrições e outros achados arqueológicos, especialmente, com base no alvará de 14 de agosto de 1721. Por este diploma, D. João V determinava a defesa do património cultural, a fim de impedir perdas, que eram “prejuízo tão sensível e tão danoso à reputação e glória da antiga Lusitânia, cujo domínio e soberania foi Deus servido dar-me” (Id., Ibid.). Não se podia assim destruir monumentos, estátuas e mármores, nem estragar moedas e medalhas, ficando as câmaras e vilas do país responsáveis “em conservar e guardar todas as antiguidades sobreditas, já descobertas ou que venham a descobrir-se nos terrenos do seu distrito”, estendendo estas ações à investigação a nível regional, de modo a fazer-se da história o espelho da grandeza do reino (Id., Ibid.). Neste sentido, escreveu o presidente da Academia, o conde de Vilar Maior, Fernando Teles da Silva (1662-1731), à Câmara do Funchal, a 19 de maio de 1722, transmitindo a ordem real para, dentro da brevidade possível, dado dever possuir a Câmara interessantes documentos em arquivo, ser organizada uma “história eclesiástica e secular deste reino e suas conquistas” (ARM, Câmara Municipal do Funchal, avulsos, cx. 2, doc. 319). Saliente-se, mais uma vez, a delimitação de poderes, com a Academia a solicitar a elaboração de uma história eclesiástica à Câmara e não à diocese, ou ao cabido da sé do Funchal. Enviou-se então uma memória para a organização do trabalho, voltando-se a referir que o assunto era muito “do serviço e agrado de Sua Majestade, que Deus guarde” (Id., Ibid.). A Câmara delegou o trabalho a Henrique Henriques de Noronha (1667-1730), que já teria entrado para a Academia como sócio correspondente e que viria a elaborar as Memórias Seculares e Ecclesiásticas para a Composição da Historia da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, com data de 1722, atestando no rosto: “Distribuídas na forma do sistema da Academia Real da História Portuguesa por [....] Académico Provincial” (NORONHA, 1996): trata-se de um estudo ainda hoje de consulta obrigatória para quem trabalhar nessa área. Tal como acontecera em Lisboa com D. António Caetano de Sousa, os trabalhos na Madeira, organizados por Henrique Henriques de Noronha, eram essencialmente genealógicos, conhecendo-se mais algumas das suas produções, como o Nobiliario Genealogico das Famillias que passaram a viver à Ilha da Madeira, datado de 1700, mas com informações até ao ano de falecimento do autor e inclusivamente posteriores, acrescentadas pelos possuidores das cópias seguintes, Horóscopo Genealógico: Árvore da Casa de Henriques, Senhor das Alcáçovas em Portugal, datado de 1710 e Livro da Família Freyes de Andrada, Non plus ultra da Nobreza. Fidalgos da Ilha da Madeira, de 1717, variante dos trabalhos anteriores. Todas estas obras permanecem inéditas, salvo o Nobiliario, que foi editado no Brasil, nos finais dos anos 40 do séc. XX e as Memórias Seculares e Eclesiásticas, nos finais de 90 da mesma centúria. A divulgação dos trabalhos de Henrique Henriques de Noronha foi enorme, conhecendo várias versões, como a do Nobiliário, publicado no Brasil, em 1948, que seguiu o exemplar existente na Biblioteca Municipal do Funchal (BMF). Também há uma versão dessa obra na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa, tal como existe aí o Livro de Arvores das Familias da Ilha da Madeira, “tiradas fielmente dos nobiliários que escreveu Henrique Henriques de Noronha”, datado de 1764 (BNP, res., Livro de Arvores..., 1764, f. I). Para além de outros escritos de Noronha, a BNP possui ainda uma outra versão das Memorias Seculares e Ecclesiásticas, talvez mais fiável do que a editada em 1996, que seguiu o exemplar da BMF, copiado em 1925-26, por João José Maria Rodrigues de Oliveira. A família de Henrique Henriques de Noronha é bem o espelho desta época e da necessidade dos trabalhos genealógicos para cimentar e justificar arranjos familiares e, acrescente-se, consequentes concentrações patrimoniais. Filho de Pedro Bettencourt Henriques (1632-1687), segundo descendente de António Correia Henriques (1601-1670) que, por falecimento do herdeiro, sucedera na casa dos seus avós e de D. Maria de Meneses (1632-1699), irmã da sua cunhada e filha de António Correia Henriques, seu tio, era o terceiro filho do casamento, que registou mais sete filhos e cinco filhas. Henrique Henriques estudou cânones na Universidade de Coimbra, entre 1682 e 1684, o que lhe abriu caminho para uma formação clássica e religiosa, patente nas suas obras. Casou a 26 de junho de 1692, na sé do Funchal, com sua prima D. Francisca de Vasconcelos, da qual teve uma filha, D. Antónia Joana Francisca Henriques de Noronha (1693-1746), que também veio a casar com um primo, António Correia Bettencourt Henriques (1690-1763). Figura de destaque da sociedade madeirense da época, membro e mordomo de várias confrarias, foi eleito provedor da misericórdia do Funchal, função que desempenhou entre 1706 e 1707, e foi ainda administrador do recolhimento do Carmo, cujo morgadio herdara pelo falecimento do seu tio Inácio Bettencourt da Câmara, tendo sido sepultado na capela-mor daquela igreja, no túmulo dos Brandão, fundadores daquele recolhimento (Igreja e recolhimento do Carmo). Todos os restantes filhos seguiram a carreira religiosa: António Correia Bettencourt (1664-1725), o segundo, foi um célebre deão da sé do Funchal; Fr. Pedro de Noronha (1670-?), foi religioso de São Jerónimo e depois reitor do colégio de Coimbra; Fr. Francisco de Bettencourt (1671-?), religioso da mesma ordem, em Belém; Gaspar de Bettencourt (gémeo do anterior), que professou na Companhia de Jesus, mudando o nome para Leão Henriques, em homenagem ao seu avô, foi principal dos Jesuítas em Portugal nos finais do séc. XVI (c. 1520-1589); Lucas de Bettencourt (c. 1673-1704), que professou na ordem de S. Francisco, mudando o nome para Fr. Henrique dos Serafins, foi aluno da Universidade de Coimbra, em teologia, entre 1728 e 1729, mas surge referido como padre religioso jerónimo, o que não confere com os dados fornecidos pelo irmão Henrique Henriques de Noronha, e depois pregador do convento do Funchal; e Tomás de Bettencourt Henriques (1675-c. 1720), o mais novo, mas que também chegou a cónego da sé do Funchal e tesoureiro-mor do cabido. Ao longo do séc. XVIII, o lugar de tesoureiro-mor da Sé do Funchal, esteve quase sempre ocupado por membros desta família, pois, em 1749, foi provido como mestre-escola da sé o cónego Francisco Cândido Correia Henriques que, em 1758, foi igualmente provido como tesoureiro-mor. Houve ainda as seguintes filhas: D. Mariana de Meneses (1668-1759), a mais velha, que casou com um dos netos do Ten.-Gen. Inácio de Câmara Leme (1630-1694) (Tenente-general), Pedro Júlio da Câmara Leme (1678-1742), irmão de D. Isabel de Castelo Branco, que tinha contraído matrimónio com o irmão mais velho dos Henriques de Noronha; e D. Maria, D. Teresa, D. Antónia, D. Filipa e D. Rosa, todas Meneses e freiras no convento de Santa Clara, posição bem sintomática da necessidade de concentração dos morgadios. Aliás, o mesmo acontecia nas casas continentais com as filhas que não era possível enquadrar na concentração dos morgadios. O governador da Madeira na época, Duarte Sodré Pereira, fidalgo e mercador, em carta de dezembro de 1711, escrita para o P.e Fr. Vicente Tavares, em Lisboa, para tratar, essencialmente, do resgate do seu irmão Fr. Francisco de Meneses, capturado por piratas argelinos, referiu: “É verdade que eu me tenho achado bem neste governo e, graças a Deus, não tenho queixa, nem da gente, nem da terra. Tenho dois filhos e cinco filhas, os mais deles ilhéus. Paguei as dívidas de meu pai e fica-me com que fazer minhas filhas freiras” (SILVA, 1992, 76). O já referido Nobiliario Genealogico das Famillias que Passaram a Viver à Ilha da Madeira, de Henrique Henriques de Noronha, foi a base de praticamente todas as genealogias seguintes, embora não se encontre isento de críticas, muitas delas hoje fundamentadas. Noronha encontrava-se muito bem informado, possuindo, inclusivamente na sua biblioteca, cópias dos principais trabalhos sobre a história da Madeira e mesmo outros, como o Nobiliário de Segredos Genealógicos, atribuído a Manuel de Carvalho e Ataíde (c. 1676-1720), uma obra que anotou diligentemente. Mas verifica-se que acabou por utilizar apenas o que lhe convinha. Foi assim acusado de ocultar, p. ex., a origem de um dos seus ascendentes, João Afonso, que se fixara na Madeira por volta de 1466, casado com Inês Lopes e que aponta como sendo João Afonso Correia, “dos primeiros e principais povoadores que passaram a viver nesta ilha no seu descobrimento; e entre os companheiros nobres de João Gonçalves Zarco” (NORONHA, 1948, 151-152), tendo sido tronco dos Correias e depois dos Torre Bela. Ora se João Afonso se fixou na Madeira em 1466, ainda poderá ter conhecido Zarco, falecido por volta de 1471, mas não foi, por certo, um dos seus companheiros de 1420. Uma carta divulgada pelo investigador Jorge Guerra, enviada pelo vigário da Fajã da Ovelha, Manuel Sulpício Pimentel da Area, natural do Funchal, a seu irmão, António Xavier Pimentel, é particularmente demolidora dos descendentes dos Correia de Câmara de Lobos. Em causa estava a nomeação de um bisneto de Henrique Henriques de Noronha, António João Correia Brandão Henriques e a eleição, provavelmente fraudulenta, em que este havia sido preferido, entre outros nomes, para a mesa da misericórdia do Funchal. O vigário da Fajã da Ovelha, que deveria ter queixas antigas dos Henriques, acusou-os então de serem descendentes de Inês Lopes, logo, de serem todos “tidos e havidos por cristãos-novos”, para além de não poupar o genealogista, que era também “descendente de uma negra” (BARROS e GUERRA, 2003, 218-219). Henrique Henriques de Noronha “para ofuscar as notas que padecia no sangue e na qualidade, destruiu e aniquilou com água-forte dois livros, um de casados, outro de batizados da freguesia da Sé”, para depois “fingir justificações e brasões perfumando-os com fumos de tabaco para lhes dar cor de antiguidade”, que introduziu “nos cartórios desta cidade, para ao depois tirar por certidão, enobrecendo desta sorte e falsamente aos seus avoengos” (Id., Ibid., 218-219). Jorge Guerra confirmou, efetivamente, as dificuldades dos citados livros de casamentos e batizados e que tinham sido arrancadas as folhas correspondentes às cartas de vizinhança de João Afonso, mercador e ainda o pormenor, mais estranho, de existirem cópias das mesmas nos arquivos da família Torre Bela, transladados pelo punho de Henrique Henriques de Noronha. Um desses documentos menciona um agravo efetuado pelo mercador João Afonso, em janeiro de 1477, afirmando-se “que havia dez anos, pouco mais ou menos, que ele vivia na dita ilha” (ARM, Arquivos particulares, Família Torre Bela), o que invalida a afirmação de Noronha sobre o seu remoto avô ter partido para a Madeira com Zarco, tal como a dele ter sido servidor da casa do infante D. Henrique. Por essas e outras razões, o investigador Dr. Ernesto Gonçalves (1898-1982), dentro da sua excecional e habitual polidez, haveria de o rotular de “rigoroso zelador da boa fama da nobreza instalada” (VAZ, 1964, 223). Idêntica situação se coloca com a família dos Ornelas de Vasconcelos, justificando dois volumes de genealogias do P.e José Francisco de Carvalhal Esmeraldo e Câmara (1728-1798), filho do 8.º morgado do Caniço, Aires de Ornelas e Vasconcelos (1677-1736) e de Cecília de Aguiar França: Noticia Breve mas Verdadeira das Illmas. Familias dos Ornellas, Cabrais, Carvalhaes e Esmeraldos, e Outras a Ellas Unidas, de 1766, onde o autor se intitula comissário do Santo Ofício. Mais uma vez, abundam os equívocos, logo no título dos volumes das genealogias, pois o clérigo em causa foi sendo preterido na nomeação como notário do Santo Ofício e só o foi após a abolição dos róis do finto, outorgada em 1768, tendo tido despacho favorável a 26 de setembro de 1769. O padre genealogista era filho de Aires de Ornelas e Vasconcelos (1677-1736), neto de Agostinho de Ornelas de Moura ou Agostinho de Ornelas de Vasconcelos (1650-1718) e de D. Beatriz de Mariz, filha do mercador Gaspar Fernandes Gondim, fundador da capela de N.ª S.ª dos Anjos da sé do Funchal e bisneto de Aires de Ornelas de Vasconcelos (1620-1689) e de D. Maria de Sande, com quem casara na Baía, filha do célebre Francisco Fernandes da Ilha ou Francisco Fernandes de Oucim (1591-1664). O Cap. Francisco Fernandes da Ilha, cedo saiu da Madeira. Esteve em Angola e fixou-se depois na Baía. Considerável produtor de açúcar, granjeou avultada fortuna, sendo cavaleiro da Ordem Militar de S. Tiago, dado ter combatido os holandeses em Angola e na Baía; foi também provedor da misericórdia da Baía, em 1656, ainda existindo o seu retrato a óleo e a corpo inteiro na sala de reuniões da confraria. Era filho de Simão Fernandes, fanqueiro, que casara em 1584, com Maria Dias, sendo todas as testemunhas do casamento “gente de nação” e então mercadores do Funchal. Os descendentes vieram a trocar as profissões do avô, passando fanqueiro a sirgueiro e a calceteiro, mas a marca de cristão-novo, numa sociedade limitada como a da Madeira, não era fácil de apagar. E isto para não falar já de outras linhas, como a dos Ornelas Rolim de Moura, pois eram descendentes do mercador João de Caus (m. c. 1622), de origem francesa, que chegou a ser cônsul de França no Funchal e casara com D. Maria de Moura, filha de Mem de Ornelas de Vasconcelos e de D. Antónia de Vasconcelos. Um dos filhos, João de Moura Rolim (m. 1640), mandou levantar a capela do Santíssimo da igreja matriz de São Pedro do Funchal, mas os livros de óbitos da Sé encontram-se cheios de acusações de que, para além de outros, “todos os Mouras Rolins eram cristãos-novos” (BARROS e GUERRA, 2003, 216-217). A partir dos finais do séc. XVIII, as genealogias entram um pouco em declínio, remetendo-se para uma ciência fechada sobre si própria, algo hermética e pouco acessível, muitas vezes reduzida a “árvores de costados” como as Genealogias Madeirenses de António Bettencourt Perestrelo de Noronha. Ao longo do séc. XIX, estes trabalhos conheceram, inclusivamente, reserva por parte de alguns historiadores, dada a repetição exaustiva e não referenciada dos sujeitos, dos casamentos e da descendência, não sendo fácil encontrar sequências, pessoas, funções ou outros. Pontualmente, no entanto, encontram-se referências a trabalhos mais desenvolvidos neste âmbito, como os colecionados pelo Dr. João Pedro de Freitas Drumond (1760-1825), conhecido como “Dr. Piolho”, dada a sua fraca estatura, “constitucional exaltadíssimo, advogado distinto e homem bastante erudito” (SILVA e MENESES, I, 1998, 381), mas de que pouco chegou até nós. Porém, ao longo do séc. XIX, continuaram os trabalhos genealógicos, devendo-se a Felisberto Bettencourt de Miranda (1816-1889), amanuense da Câmara do Funchal, o manuscrito Apontamentos para a Genealogia de Diversas Famílias da Madeira, Coleccionados de 1887 a 1888, hoje na BMF, por ventura o trabalho mais completo. Entre os finais do séc. XIX e os inícios do XX, os trabalhos de genealogia anteriores conheceram, inclusivamente, alguma rejeição por parte de determinados investigadores, que os acusavam de ser obras fascinadas “por vãs e ingénuas ficções com que se ornamentam origens familiares”, como referiu o Dr. Ernesto Gonçalves (VAZ, 1964, 9). No entanto, nos meados do séc. XX, este género de investigação disparou exponencialmente com a constituição do Arquivo Regional da Madeira e o trabalho do seu primeiro diretor, João Cabral do Nascimento (1897-1978), em especial, através da revista Arquivo Histórico da Madeira, cujo primeiro número saiu em 1931, no próprio ano da fundação da instituição, tendo aquele diretor contado com a colaboração do conservador Álvaro Manso de Sousa (1896-1953). Nos anos seguintes, as genealogias contariam ainda com o apoio de Luiz Peter Clode (1904-1990), um dos elementos fundadores da Sociedade de Concertos da Madeira, também através de uma revista, Das Artes e Da História da Madeira, cujo primeiro número saiu como suplemento semanal de O Jornal, nos anos de 1948-1949, passando depois a folheto colecionável e durando até 1971. A época do Estado Novo conheceu um alargado interesse por este tipo de trabalhos, destacando-se, entre outros e para além dos autores citados, os trabalhos de Eugénio de Andrea da Cunha e Freitas (1912-2000), que, embora não residente na Madeira, nutria pela Ilha uma muito especial admiração e interesse. O autor mais produtivo foi, sem dúvida, Luiz Peter Clode, que, progressivamente, coligiu e editou os seus trabalhos, inicialmente saídos na citada revista, entre eles Registo Genealógico de Famílias que passaram à Madeira, Andradas do Arco, Cabrais e Pontes de Gouveia, Genealogia da Família Clode, Genealogia da Família Andrade ou Andrada, Genealogia da Família Drummond e Descendência de D. Gonçalo Afonso D’Avis Trastâmara Fernandes, O Máscara de Ferro Madeirense. Estes trabalhos, no entanto, repetem-se exaustivamente e nem sempre tiveram boa aceitação por parte de alguns genealogistas, e, salvo o colossal trabalho de Fernando de Meneses Vaz (1884-1954) Famílias da Madeira e Porto Santo, de que, infelizmente, só foi publicado o primeiro volume, anotado por Luiz Peter Clode e por Ernesto Gonçalves, acrescentam muito pouca novidade à investigação genealógica, embora se mantenham como obras de referência. Entre os finais do séc. XX e os inícios do XXI, continuaram a aparecer trabalhos deste âmbito, tanto sobre determinadas famílias, como os Espinoza Martel ou os Perestrelo, como alargados a determinadas áreas locais, e.g. os trabalhos de Luís Francisco de Sousa Melo em relação a Machico e de Lourenço de Freitas em relação a Gaula. A partir dos finais do séc. XX, as genealogias democratizaram-se graças aos meios tecnológicos e à informática, ganhando outro tipo de base de apoio à investigação, e também se personalizaram e comercializaram, representando outra forma de ocupação e de lazer. No entanto, se, por um lado, disparou consideravelmente a divulgação das sequências genealógicas, por outro, também baixou de forma exponencial a fiabilidade geral dos trabalhos disponibilizados, muitas vezes sem indicações de fontes e com o recurso a dados pouco criteriosos.   Rui Carita (atualizado a 01.02.2017)

História Económica e Social Sociedade e Comunicação Social

festividades

A Madeira é um lugar em que se articulam bem as festividades tradicionais, aquelas que o povo celebra há centenas de anos, com as mais modernas, as que se ligam ao fluxo turístico, que busca coisas novas, diferentes, atrativas. As festividades começam, na Madeira, com a festa do panelo, um festival gastronómico que tem lugar no Seixal, nos finais de janeiro. Segue-se, por alturas de fevereiro, a festa dos compadres que começa dois domingos antes do Carnaval. Dura cerca de duas semanas e é essencialmente uma festa humorística em que se brinca com as mulheres (as comadres) e com os homens (os compadres), terminando com um julgamento, em que normalmente vence a comadre. Para os madeirenses, é uma oportunidade de anteciparem o calendário oficial e começarem os folguedos e as brincadeiras da quadra, a que os gigantones dão um toque burlesco. Há música tocada por instrumentos tradicionais, cantigas e danças populares, bailes, cortejos típicos com trajes regionais e um concorrido arraial onde se comem espetadas, bolos do caco, sonhos, etc.. O Carnaval do Funchal insere-se na antiga tradição de se celebrarem na folia os últimos dias antes do começo da Quaresma. É uma época em que se multiplicam os cortejos alegóricos e os desfiles de máscaras, aproveitados muitas vezes para se exprimirem críticas à atualidade ou a personalidades conhecidas. O cortejo principal é no sábado à noite, mas o desfile de terça-feira, o “Carnaval Trapalhão”, é um momento sempre bem vivido; como o nome indica, as máscaras são mais “trapalhonas” o que parece agradar a quem participa no cortejo e a quem a ele assiste. Em março, os eventos em torno da Semana da Árvore e da Floresta, celebrados maioritariamente no Parque Ecológico do Funchal, proporcionam um contacto e conhecimento próximos do meio ambiente, assim como aprendizagem de práticas para melhor o defender e preservar. Também durante o mês de março decorre, no Faial, a festa da anona. Como se revelará mais adiante outros produtos da terra e do mar justificam a realização de festas populares, um pouco por toda a parte. O Festival Literário da Madeira realiza-se no início da primavera. É essencialmente um conjunto de debates que têm lugar no Teatro Municipal Baltazar Dias, e reúne alguns dos melhores escritores de origem madeirense (e não só) com críticos e estudiosos de Literatura. Não se confina a um certame para eruditos, pois envolve a população em geral. Uma homenagem pública a um vulto relevante do panorama literário madeirense é sistematicamente incluída no programa. Em abril, realiza-se a festa da cana do açúcar na Ponta do Sol. Esta festa recorda que o açúcar foi uma das maiores riquezas da Ilha desde os primórdios do povoamento: o alfenim (massa de açúcar e óleo de amêndoa doce) era presente de elevado valor e chegou a ser moeda de troca para a aquisição de obras de arte. Na feira da cana do açúcar, é possível aprender como se recolhe e trabalha a matéria-prima, como se fabrica a aguardente, o melaço e os rebuçados, para além de se poder visitar exposições e participar em atividades de vária ordem. Além das festas típicas da gente madeirense e que, com mais ou menos alterações, se têm mantido ao longo dos tempos, outras há que, embora envolvam e entusiasmem as populações locais, nasceram como consequência da força de atração turística. Esta é uma realidade a que os madeirenses se foram habituando (há registos muito antigos de visitantes ilustres nestas paragens), e ocorreu de forma fulgurante a partir da segunda metade do séc. XX. Destas festividades, o lugar de honra vai para a famosa Festa da Flor. Na Madeira florescem flores raras e variadas, como as orquídeas, as estrelícias e os antúrios, as poinsétias, os lilases, os jasmins, os hibiscos, as hortênsias e os agapantos; e há as árvores carregadas de flores: os jacarandás, as mimosas, as árvores de fogo. Tudo isto se celebra na Festa da Flor que todos os anos, em abril, enche as ruas do Funchal e possibilita o contacto direto com tão grande e diversificada beleza. Nesta ocasião, as ruas encontram-se engalanadas, tal como o chão, os arcos e as paredes das casas; podem ver-se exposições temáticas; sucessivos cortejos; carros enfeitados; e trajes alegóricos. Do programa anual consta sempre a construção do “Muro da Esperança” pelas crianças do Funchal. Quase em simultâneo com a Festa da Flor realiza-se o Festival dos Jardins do Funchal, concurso de jardineiros encartados, mas também de particulares, comerciantes e artistas amantes de flores, que apresentam minijardins para serem apreciados e classificados pela população. No final, são atribuídos prémios às melhores e mais originais produções. As paisagens naturais da Ilha favorecem propostas de contacto com a natureza, através de caminhadas que se organizam ao longo das levadas e das veredas das montanhas. Assim, em abril, tem ainda lugar uma prova de trilho pedestre que atravessa toda a Ilha, proporcionando aos participantes uma passagem por paisagens e ambientes muitos diversos até no que respeita às condições atmosféricas. Em maio, realiza-se nova prova pedestre, com percursos mais curtos e exigindo competências de orientação. O apóstolo S. Tiago Menor é o padroeiro principal da cidade do Funchal, que o celebra no dia 1.º de maio e a cada ano lhe agradece o tê-la salvo da peste que, no séc. XVI, causou grande mortandade entre a população. As festas, que duram vários dias de música e folguedo, integram uma procissão com a imagem do santo e muitos fiéis enfeitados com cordões feitos de flores amarelas, os “maios”. Neste mês de maio, há também várias festas agrícolas: a festa da cebola, no Caniço, com cortejo de tratores e carroças enfeitadas e leilões do produto em destaque; e a festa do limão (na paróquia da Ilha), marcada pela mostra de doçaria e outros pratos feitos a partir do referido citrino, bem como pelo célebre despique de quadras populares criadas a partir dos mais variados temas e cantadas à desgarrada nos ritmos típicos da região. A Ribeira Brava assiste uma vez por ano, ainda em maio, ao encontro das bandas de música, um acontecimento cultural que permite defender e valorizar as antigas tradições musicais da Ilha e que se transforma num animado despique em que cada um quer mostrar o seu melhor, para alegria dos executantes e orgulho dos que, às vezes de longe, os vêm apoiar. É também nesta vila que se realiza, por ocasião das festas de S. Pedro, uma exibição de fogo de artifício. Acrescenta-se a esta lista de eventos a exposição de automóveis, motos e scooters antigos que se organiza em maio ao longo da estrada Monumental. Apresentam-se máquinas extraordinárias e bem tratadas, que cruzavam as estradas da Ilha nos tempos passados, quando a maioria das pessoas se deslocava a pé ou, quando muito, em carros puxados a bois. Também em junho, é possível ver muitas dessas máquinas afoitarem-se pelas estradas da Ilha numa corrida sui generis de curtas etapas, o chamado Classic Rally. O mês de maio termina com as festas da Sé, que por vezes se prolongam até ao início de junho. São festas de rua mais do que celebrações religiosas, que se realizam à volta da Sé mais do que no seu interior. De toda a cidade, “desaguam” na baixa centenas de pessoas que enchem os bares, que dançam na rua, que provam carne de vinha de alhos, sarapatel, bolo do caco ou bolo de mel, que sugam rebuçados de funcho, que bebericam malvasia e grogue, poncha e jaqué, quando não um dos licores feitos a partir do maracujá, do araçá ou da goiaba, etc. As ruas estão enfeitadas com flores e com luzes que, quer de dia quer de noite, transformam aquele espaço num cenário de festa que os grupos musicais e os ranchos folclóricos se encarregam de animar num rodopio contagiante. Em junho, realiza-se a festa da cereja, no Jardim da Serra, à qual se associa a ginjinha. Ainda neste mês, mas na Câmara de Lobos, terra de pescadores que entusiasmou Churchill pelo seu pitoresco, bem junto ao mar, festeja-se um produto deste rico manancial madeirense: o peixe-espada preto. Esta festa constitui simultaneamente um tributo a quantos labutam na pesca e, assim, aumentam a fama do arquipélago. No Funchal, os santos populares também são celebrados com pirotecnia. As celebrações de S.to António, S. João e S. Pedro animam as noites e os dias da Madeira durante o mês de junho, um dos mais animados do ano. Os bailinhos, as barracas de vinhos e petiscos, as exibições de música folclórica pelas ruas, largos e jardins e ainda o fogo de artifício que ilumina as noites do Festival do Atlântico envolvem quantos por ali se encontram. Em julho, na Madalena do Mar, faz-se a festa da banana; a abundante produção local explica que neste lugar se organize há muito tempo tal evento, famoso em toda a Ilha. Também em julho festeja-se outro produto, outra vez do mar e não da terra: as lapas, no Paul do Mar, servidas na grelha, temperadas com manteiga, alho e limão. Ainda neste mês tem lugar em vários pontos do mar da Madeira o campeonato de pesca grossa; entre as diversas provas do campeonato, conta-se a pesca do espadim azul, que ocorre simultaneamente em vários locais do Oceano Atlântico. É igualmente em julho que se realiza a Semana do Mar, em Porto Moniz, na costa Norte, com atividades e jogos variados, passeios de barco, regatas e exibições de folclore, provas desportivas, e outros acontecimentos culturais. Também em julho, vivem-se em simultâneo o festival de folclore e a festa da maçaroca. O primeiro atrai a Santana grupos folclóricos de toda a Ilha (e de Porto Santo), que se apresentam com um desfile nos seus coloridos trajes; estes variam conforme a localidade de onde são provenientes e do estatuto social que representam. O conjunto de exibições inclui, frequentemente, a de um grupo estrangeiro, vindo de um dos países que acolhe mais emigrantes madeirenses. O desafio que é feito é o de se passarem 48 horas a bailar – e há resistentes que o conseguem. A outra festa acima referida pretende apresentar o artesanato confecionado a partir das folhas do milho e da própria maçaroca, que abunda nas freguesias de Santana e São Jorge. A cidade de Machico tem festas enraizadas na cultura popular. A enseada desta urbe é considerada o local do primeiro desembarque dos Portugueses na região, em julho de 1419. A povoação de Machico é tão antiga como a do Funchal e as duas cresceram lado a lado, repartindo entre si a missão de colonizar a Ilha. Foi sede de uma das três capitanias em que o arquipélago foi dividido no tempo do infante D. Henrique (a terceira é Porto Santo), e ali se realiza o mais típico mercado medieval de toda a região. Dura uma semana e inclui diversões e entretenimentos que se considera já existirem na Idade Média: cortejos, teatros de rua, exibições de acrobatas e malabaristas, jogos pirotécnicos, entre outras atividades. Os participantes usam trajes da época e as barracas proporcionam comidas e bebidas de cariz medieval, bem como artesanato local. As ruas, à volta da igreja dos inícios do manuelino, são engalanadas com bandeiras e colgaduras. No Funchal, o festival de jazz, que se realiza ao ar livre, no parque de Santa Catarina, durante o mês de julho, congrega melómanos que se juntam para ouvir os melhores grupos nacionais e muitos estrangeiros. Também em julho, no parque de Santa Catarina, tem lugar a abertura oficial das festas de verão, com bandas e grupos instrumentais, cantores e intérpretes de várias origens. Realiza-se ainda o Festival Raízes do Atlântico, provavelmente uma das mais antigas apresentações de músicas do mundo em território nacional, que coloca frente a frente grupos tradicionais de distintos países. A romaria da Sr.ª do Monte realiza-se no dia 15 de agosto, perto do Terreiro da Luta, um dos miradouros sobre o Funchal. O motivo da romaria é a veneração de uma imagem muito antiga, alegadamente encontrada por uma pastorinha ainda nos finais do séc. XV, i.e., pouco tempo depois de iniciado o povoamento. A festa é uma das mais famosas da ilha da Madeira e atrai gente vinda de todo o mundo, designadamente das paragens por onde se encontra a diáspora madeirense, sobretudo desde que, em 1803, o bispo do Funchal colocou a cidade e a Ilha sob a proteção da Senhora. A igreja, que data do séc. XVIII e substitui a do séc. XVI, que era demasiado acanhada para tão grande devoção, é ricamente adornada e a procissão conduz multidões de fiéis por ruas engalanadas e caminhos cobertos de flores. Entre as festas citadinas destaca-se o Dia da Cidade do Funchal, instituído para celebrar as memórias daquela que é a mais antiga cidade europeia fora do continente e a sede da outrora maior Diocese do mundo inteiro. Ainda em agosto realiza-se a semana gastronómica de Machico, que junta cozinheiros de toda a Ilha, os quais apresentam os seus pratos mais emblemáticos à apreciação (e julgamento) dos muitos turistas que ali acorrem. Nova mostra gastronómica ocorre por ocasião da festa do Senhor dos Milagres, uma festa essencialmente religiosa com missa e procissão de velas. A capela do Senhor dos Milagres encontra-se na localização provável dos túmulos de Robert Machim e Anne d’Arfet, os jovens ingleses que, fugindo de quem perseguia os seus amores proibidos, ali teriam sido desembarcados no séc. XIV, i.e., antes da chegada dos Portugueses. A capela primitiva foi destruída pela força das águas no início do séc. XIX, e posteriormente reconstruída; no entanto, a imagem de Cristo é a original, uma vez que foi recuperada no mar uns dias depois por um navio americano. O facto foi considerado milagroso e a festa realiza-se em memória do dia em que a imagem foi retirada das águas. Outro núcleo temático festivo liga-se ao mar, que exerce um poderoso fascínio sobre quem vive ou visita a Madeira. Um dos eventos relacionados com este tema é a volta à Ilha de canoa, que ocorre habitualmente em agosto, e que propõe uma ida do Funchal ao Funchal, seguindo a costa. Neste mês realiza-se ainda, no Paul do Mar, uma prova de desporto radical, misto de ciclismo e mergulho. A Camacha é rica em artesanato e nela se realiza, normalmente em agosto, o Festival de Arte que, além de mostrar o que se produz na vila, em vime e giesta, constitui uma exibição de produtos tradicionais de toda a Ilha, designadamente bordados. Esta festa é acompanhada pelas atividades do rancho folclórico local. O tema “Vinho da Madeira” é celebrado nos inícios de agosto com o rally que leva esse nome e que, desde meados do séc. XX, atraiu à Ilha famosos pilotos europeus, para quem o traçado das estradas e a incerteza das condições atmosféricas constituem um verdadeiro desafio, bem como numerosos aficionados do desporto automóvel. Também nos finais de agosto, mas em Porto Santo, realiza-se a festa das vindimas que, sem o fulgor e a divulgação da do Funchal, permite celebrar um vinho diferente, generoso, produzido nas encostas quentes do sul da ilha a partir de uvas grandes, ricas em açúcar. O evento inclui manifestações culturais, provas de vinho de diversas castas e bailes populares. O Instituto do Vinho da Madeira criou o Festival do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira, em fevereiro, em ordem a divulgar estas e outras manifestações da cultura popular. Trata-se de um festival urbano, com um programa multifacetado que inclui oficinas de experimentação artesanal (tapeçaria, pintura de azulejo, etc.), manifestações culturais e propostas de divertimento. A festa do Vinho da Madeira tem lugar normalmente nos últimos dias de agosto e prolonga-se por setembro. A festa do vinho é um acontecimento de grande relevo, com programas diversificados que vão desde a participação em atividades rurais, como a vindima, a pisa da uva à volta da cidade de Câmara de Lobos e o respetivo cortejo dos vindimadores, até às visitas guiadas organizadas pelas adegas regionais, as provas de vinho das diferentes castas, propostas um pouco por toda a cidade do Funchal, e às manifestações folclóricas, espetáculos de luz e som, cortejos, bailes e petiscos tradicionais. Setembro é um mês muito fértil em celebrações populares. Neste mês celebram-se três das mais concorridas romarias da ilha da Madeira: a do Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada; a de N.ª Sr.ª do Loreto, no Arco da Calheta; e a de N.ª Sr.ª da Piedade, no Caniçal. Ponta Delgada nasceu à volta de uma pequena capela do séc. XV que o fogo destruiu no início do séc. XX. A romaria é uma das mais frequentadas do norte da Ilha, por peregrinos vindos de muito longe, por vezes a pé. A festa tem lugar nos primeiros dias de setembro, mas desde meados de agosto que começam os preparativos, cobrindo-se as ruas com flores coloridas, fazendo-se os bolos tradicionais, construindo-se barracas de louro, montando-se arcos de buxo, etc. A terra enche-se de vendedores ambulantes que se preparam para expor os seus produtos regionais, nomeadamente os colares de peras passadas. As últimas horas são dedicadas a atapetar de flores e folhagens o percurso por onde há de passar no dia maior a procissão do Bom Jesus, na sua volta pela localidade. A capela do Loreto fica perto do Arco da Calheta, terra que foi rica em açúcar e onde morou Gonçalo Fernandes, grande senhor de sesmaria, muito provavelmente filho do Rei D. Afonso V, ali exilado por razões de Estado. O pequeno templo, dos inícios do séc. XVI, foi restaurado mas guarda traços manuelinos de razoável interesse. À sua volta, realiza-se todos os anos, a 8 e 9 de setembro, uma romaria muito animada e concorrida, preparada com devoção e cuidado pelos habitantes da terra, que também cobrem as ruas com dosséis floridos em honra da Mãe de Jesus, na sua invocação da Casa Santa. Quando o calendário permite, a proximidade das duas festas faz que os romeiros do Bom Jesus vão diretamente para o Loreto. O Caniçal é terra de pescadores, típica nas suas casas garridas, situada no extremo leste da Ilha. Bem perto do cabo de São Lourenço, no alto de uma escarpa elevada, fica a capela de N.ª Sr.ª da Piedade, padroeira dos homens do mar, edificada como preito de gratidão de marinheiros aflitos. A festa consta essencialmente de duas grandes procissões de barcos, uma que vai buscar a imagem da Senhora e a leva até à igreja matriz, dedicada a S. Sebastião; a outra procissão devolve-a à sua capela. As embarcações são festivamente engalanadas, destacando-se a que transporta o andor, escolhida por sorteio uns dias antes. Nos percursos a pé, no Caniçal, entre o cais e a igreja, a Virgem é acompanhada pelos fiéis, com cânticos e bandas filarmónicas. Na festa profana não faltam naturalmente os petiscos nem as bebidas tradicionais. A cidade de Vila Baleira inspira-se nos tempos antigos do povoamento para a temática das suas celebrações. De facto, foi ali que os Portugueses primeiro chegaram, em 1418, e tudo leva a crer que Cristóvão Colombo, casado com Filipa Moniz, filha do primeiro capitão donatário da ilha, Bartolomeu Perestrelo, terá vivido no Porto Santo, onde nasceu seu filho Diogo, nos finais do séc. XV. É esta presença do grande navegador de renome mundial em terras madeirenses que a cidade comemora alegremente no mês de setembro, com cortejo histórico, eventos culturais e uma reconstituição cénica da chegada de Colombo à ilha. O pero e a maçã têm as suas festas em setembro, o primeiro na Ponta do Pargo e a maçã, sob a forma de cidra, no Santo da Serra. Por toda a parte, há cortejos, degustações de produtos locais, tendas de artesanato e festa. Outra forma de contactar com a natureza é proposta pelo festival de todo-o-terreno que também se realiza em setembro, no qual pode participar qualquer pessoa que queira aprofundar a sua descoberta da Madeira. Neste conjunto de realizações, podemos ainda incluir o torneio de golfe, disputado no Santo da Serra e no Porto Santo, pelo que esta prática desportiva tem de relação estreita com os espaços naturais em que se realiza. As iniciativas incluídas no Madeira Nature Festival, tais como passeios, caminhadas, voos em parapente, experiências de vela em mar aberto, são outras tantas possibilidades de se conhecer a Madeira no mês de outubro. Na vila da Camacha, a festa da maçã ocorre igualmente em outubro, com possibilidade de se assistir ao fabrico da cidra a partir de frutos acabados de colher. Neste mês, ainda o Festival de Órgão da Madeira, que atrai organistas de todo o mundo para executarem, a solo ou acompanhados por coros locais, peças dos mais variados compositores. As peças são executadas nos órgãos de origem portuguesa, italiana e inglesa e nos muitos locais que a isso se propiciam – desde o Colégio de S. João Evangelista à igreja de S. Pedro, do convento de S.ta Clara à Sr.ª de Guadalupe. Novembro é o mês da castanha, e o Curral das Freiras e o Campanário da Ribeira Brava fazem questão de mostrar as suas especialidades com provas não só dos frutos em si, como também dos doces e licores que eles proporcionam. A Madeira tem uma sólida tradição de fotografia; as paisagens da Região inspiraram gente como os Vicentes, que as fixaram em verdadeiras obras de arte. As mostras de cinema da Madeira são por muitos consideradas uma homenagem àqueles percursores da arte da imagem. No Funchal há dois festivais de cinema: o Festival Internacional, em novembro, que apresenta no Teatro Municipal Baltazar Dias longas e curtas-metragens do mundo inteiro, dando particular relevo ao cinema independente e às produções madeirenses; e o Madeira Film Festival, em abril, que é menos divulgado mas envolve muitas outras atividades para além da simples mostra de novos filmes. Em abril tem também lugar a feira do livro que, para além da venda, tem associadas uma série de celebrações relacionadas com a leitura. Entre as festividades, o Natal tem um lugar de honra. Para o madeirense, a Festa é o Natal; é mesmo a única que é assim chamada – a “Festa” – sem precisar de mais especificações. A cidade do Funchal começa a engalanar-se logo em novembro. No campo, no entanto, perduram as velhas tradições, é por volta do dia 15 de dezembro que os preparativos têm lugar, envolvendo toda a população. Colocam-se mastros e bandeiras nas ruas, enfeitam-se as paredes das igrejas com folhagens, ornamentam-se os altares e, principalmente, começa a montar-se o presépio na igreja, repetindo hábitos de avós e bisavós. A Festa é normalmente anunciada com foguetes que convidam os fiéis para o início das “missas do parto”. A primeira é no dia 16 e, até ao dia 24, todas as madrugadas se celebra a iminente chegada do grande dia. E canta-se: “Virgem do Parto, oh Maria,/Senhora da Conceição,/Dai-nos as festas felizes,/A paz e a salvação”. Há costumes ligados a estes dias (cantos, danças, trajes, etc.), dos quais a matança do porco é, sem dúvida, um dos mais respeitados, juntando, em quase todas as freguesias, homens, mulheres e crianças numa celebração onde não falta a aguardente de uva ou de cana, nem os petiscos cozinhados no local. É também a altura de, por toda a parte, se amassar e cozer o “pão da Festa”, bem como de, em cada casa, se montar a “lapinha”, que é uma espécie de trono ao Menino Jesus, instalado em cima de uma mesa, normalmente com armações em escada de três degraus, enfeitadas com flores, ramagens, searinhas de lentilhas, trigo ou centeio, frutos coloridos, bolas e fitas, em que o Menino se representa em pé. O dia de Natal é vivido em família, demorando as celebrações populares até meados do mês de janeiro, pontuadas pelos cantos das janeiras, pelas tradições de dia de Reis (no Funchal, na Ribeira Brava, em Câmara de Lobos, entre outras localidades), pelas atividades típicas do fim da Festa: desmontar as lapinhas e “varrer os armários” (ritual que consiste em arrumar os locais onde se guardam os objetos ligados à festa de um ano para o outro), servindo estas ocasiões como novas oportunidades de folguedos e brincadeiras. Entretanto, a 28 de dezembro, realiza-se a corrida de S. Silvestre, uma das mais antigas da Europa, e, na noite do dia 31, aquele que é talvez o mais conhecido evento madeirense: a passagem do ano, festa que regularmente atrai ao Funchal largos milhares de turistas desejosos de ver o esplendoroso fogo de artifício, que ilumina toda a baía e que se derrama desde a montanha até ao mar, cobrindo a capital da Madeira com um manto de luz e de cor. No momento da passagem do ano, tocam os sinos e as sirenes dos paquetes estacionados no porto, e não são raras as famílias que lançam os seus foguetes ou acendem os fósforos coloridos na varanda ou no terraço, participando assim, à sua maneira, na grande celebração.     José Victor Adragão (atualizado a 31.01.2017)

Antropologia e Cultura Material Cultura e Tradições Populares História Económica e Social

ferreira, antónio aurélio da costa

António Aurélio da Costa Ferreira nasceu no Funchal a 18 de janeiro de 1879. Era filho de Francisco Joaquim da Costa Ferreira, natural do Porto, e de Teolinda Augusta de Freitas, natural do Funchal. Médico, antropólogo, pedagogo e político, licenciou-se, pela Universidade de Coimbra, em Filosofia (1899) e em Medicina (1905), tendo recebido vários prémios nas duas faculdades. Estagiou em Paris, na Clínica de Tarnier e na Maternidade Lariboisière, e, mais tarde, numa clínica de doenças de crianças, especializando-se em pediatria. Nesta área, publicou Algumas Lições de Psicologia e de Pedologia em 1920 e História natural da criança em 1922. Foi professor no Liceu Camões e em outras instituições de ensino, vereador da Câmara de Lisboa (1908-1911) na altura em que era presidente A. Braancamp Freire, deputado por Setúbal (1910), primeiro-provedor da Assistência Pública (1911-1912) e ministro do Fomento (1912-1913) no Governo presidido por Duarte Leite. No ano de 1913, abandonou, quase por completo, a política. Tendo levado a cabo uma ação notável como educador na Casa Pia de Lisboa, de que foi diretor, criou, na mesma casa, em 1914, o Instituto Médico-Pedagógico, obra pioneira no atendimento e ensino de crianças com dificuldades de aprendizagem escolar. O Instituto António Aurélio da Costa Ferreira, criado em 1941 por influência de Vítor Fontes, era o continuador do Instituto Médico-Pedagógico. Mobilizado durante a Primeira Guerra Mundial, organizou o serviço de assistência aos mutilados portugueses, constituindo uma secção de seleção e orientação profissional no Instituto Médico-Pedagógico e uma secção de reeducação, fisioterapia e prótese no Instituto de Reeducação dos Mutilados de Guerra, em Arroios. Foi promovido a major em 1920. Por sua influência, foi criada, em 1915, na Escola Normal Primária feminina, a cadeira de Pedologia, de que foi professor até 1918 e que regeu juntamente com a de Psicologia Experimental. Foi assistente voluntário de Anatomia na Faculdade de Medicina de Lisboa (desde 1917), segundo assistente (1919) e professor livre de Anatomia Antropológica (1921), mediante concurso, de cujas provas públicas foi dispensado após ter-lhe sido atribuída a nota de 20 valores pelo conjunto de publicações de que era autor. Também exerceu a função especializada de naturalista no Museu Bocage, em 1919. Foi sócio fundador da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia e sócio de diferentes sociedades científicas e de imprensa nacionais e internacionais e de reputados institutos, como o Instituto Geral Psicológico de Paris, de que era sócio titular, a Sociedade de Antropologia de Paris, o Real Instituto da Grã-Bretanha e Irlanda, e da Reunião Biológica de Lisboa como efetivo. Foi vice-presidente da secção antropológica da Sociedade de Geografia de Lisboa, vice-presidente do comité permanente interaliado para o estudo das questões relativas aos inválidos de guerra e delegado do governo nas conferências interaliadas para o estudo dessas questões, tendo trabalhado em várias cidades, entre as quais Paris, Bruxelas, Londres e Roma. Notabilizou-se especialmente pelos seus estudos antropológicos, um dos quais, Crânios Portugueses, publicou em 1899. Na Sociedade de Antropologia de Paris, apresentou outro estudo, que foi bem recebido pelos cientistas estrangeiros: “La Capacité du Crane et la Composition Ethnique Probable du Peuple Portugais”. Em 6 de março de 1909, fez, na Sociedade de Geografia de Lisboa, uma conferência que foi depois publicada com o título O Povo Português sob o Ponto de Vista Antropológico. Foi vastíssima a colaboração de Costa Ferreira em publicações da sua especialidade, tanto em Portugal como no estrangeiro. Dirigiu o Anuário da Casa Pia de Lisboa desde o volume de 1912-1913 até ao de 1920-1921, as Publicações do Instituto Médico-Pedagógico da mesma casa (1918-1919), bem como o boletim da mesma instituição (1921-1922). Também foi o responsável máximo da revista Esculápio (1913-1914). Relevam-se, para além dos já referidos, os seguintes títulos da sua autoria: Sobre a Psicologia, Estética e Pedagogia do Gesto; Algumas Lições de Psicologia e Pedagogia; “A Agudeza Visual e Auditiva, Debaixo do Ponto de Vista Pedagógico”; “A Visão das Cores”. António Aurélio da Costa Ferreira também era comendador da Ordem de Santiago, cavaleiro da Legião de Honra e tinha a medalha de ouro da Société Académique d’Histoire Internacional (Paris). Sob a influência de uma grave depressão nervosa, a 15 de julho de 1922 suicidou-se em Lourenço Marques (Moçambique), onde se encontrava no desempenho de uma missão de estudos antropológicos a convite de Brito Camacho. Obras de António Aurélio da Costa Ferreira: Crânios Portugueses (1899); “La Capacité du Crane et la Composition Ethnique Probable du Peuple Portugais” (1904); O Povo Português sob o Ponto de Vista Antropológico (1909); Sobre a Psicologia, Estética e Pedagogia do Gesto (1909); “A Agudeza Visual e Auditiva, debaixo do Ponto de Vista Pedagógico” (1916); “A Visão das Cores” (1917); Algumas Lições de Psicologia e Pedagogia (1920); História Natural da Criança (1922).     António José Borges (atualizado a 31.01.2017)

Antropologia e Cultura Material Cultura e Tradições Populares

comércio do funchal

O Comércio do Funchal teve a sua 1.ª edição em 1866 sob a direção do Cón. Abel Martins Ferreira, mantendo-se a sua publicação até ao n.° 13, em 1867. Reaparece em 15 de maio de 1910 e é suspenso a 15 de agosto do mesmo ano. No ano de 1966, um grupo de democratas madeirenses, que tinham atividade profissional ligada à agência de publicidade Foco, uma das duas primeiras agências de publicidade da Madeira, pretendendo fazer ouvir a sua voz através de um jornal autónomo e sem dependência editorial de terceiros, decidiu abalançar-se à publicação de um semanário. Na impossibilidade política e prática, devido à ditadura de Salazar, de criar um título novo, optou por “refundar” o CF, semanário já existente, arrendando-o ao seu proprietário, João Carlos da Veiga Pestana, e criando a sigla CF, para retirar significado ao nome original. Além de ser o proprietário, João Carlos da Veiga Pestana, embora sem exercer o cargo, figurava como diretor do jornal pois, face à legislação vigente, não era possível substituí-lo, aparecendo Vicente Jorge Silva como diretor interino, situação que se manteve até ao 25 de Abril. No grupo inicial de fundadores, que transcendeu os provenientes da Foco, contavam-se Artur Andrade (pai), António Aragão Mendes Correia, José Manuel Barroso, Vítor Rosado, Luís Manuel Angélica, Ricardo França Jardim, José Manuel Coelho, Duarte Sales Caldeira, entre outros. Alguns destes fundadores, apesar de já terem colaborado com outros periódicos regionais, Diário da Madeira, Jornal da Madeira e Eco do Funchal, não possuíam, no entanto, a experiência da publicação autónoma, o que não impediu que o grafismo adotado fosse inovador para a época, bem como a singularidade na escolha da cor (cor-de-rosa), que se ficou a dever ao facto de o preço deste papel ser o mais barato. Apesar da inexperiência e de todos os condicionamentos económicos e políticos, o grupo partilhava, para além da oposição ao regime salazarista, uma decidida vontade de inovar no jornalismo madeirense, rompendo, com esta proposta, o marasmo e a apatia reinantes, levando a liberdade de expressão o mais longe que a censura permitisse. Todos esses constrangimentos obrigavam a que, além de quatro funcionários administrativos, só dois elementos da redação, com dedicação exclusiva, auferissem ordenado. O CF existia graças ao apoio duma certa intelectualidade madeirense e nacional, tendo-se afirmado no panorama da imprensa nacional, com particular incidência junto da juventude universitária e dos milicianos que lutavam nas colónias, leitores fiéis, que constituíam quase exclusivamente o sustentáculo económico do jornal. Esta projeção valeu-lhe, no entanto, fortes dissabores com a censura e, posteriormente, com o exame prévio de Marcelo Caetano. Eram feitos, sistematicamente, cortes parciais e integrais em artigos, que tinham de ser substituídos em cima da hora de fecho da edição, tornando a saída de cada número uma odisseia. O periódico foi, inclusivamente, suspenso pela censura entre maio e outubro de 1968. O CF era paginado às quartas-feiras na Tipografia Minerva, situada na R. dos Netos, onde também era paginado o semanário Voz da Madeira, no qual colaborava Alberto João Jardim. Posteriormente, o jornal era dobrado manualmente e expedido, de modo a estar nas bancas no fim de semana. O jornal Voz da Madeira, da responsabilidade de Agostinho Cardoso, tio e figura tutelar de Alberto João Jardim, defendia e veiculava as ideias e posições da União Nacional e do regime salazarista. Todo o trabalho de dobragem e expedição do CF era realizado com recurso a trabalho voluntário predominantemente por pessoas ligadas à Juventude Operária Católica (JOC). A JOC, caso inédito a nível nacional, apesar de ser um movimento ligado à Igreja Católica, defendia e tinha na Madeira uma militância de esquerda. O CF chegou a atingir tiragens de 15.000 exemplares, a maioria dos quais expedidos para fora da Madeira. As receitas mal chegavam para cobrir os custos de edição e expedição para o continente e para as colónias, sendo o preço de venda do jornal nas colónias inclusivamente inferior ao preço dos portes. Ao longo da sua existência, o jornal ocupou várias sedes, respetivamente na R. dos Aranhas, na Av. do Mar, na R. do Seminário, na R. dos Netos, sendo a sua última fase na R. do Carmo (cedida gratuitamente pelo seu maior mecenas, o médico França Jardim). Paralelamente à sua atividade editorial, o CF apoiava e divulgava nas suas páginas toda uma série de iniciativas de âmbito cultural, fomentando um debate aberto e plural na sociedade madeirense. De entre essas iniciativas inéditas destacam-se debates sobre temas pertinentes tais como: a situação do turismo, a cultura na Madeira e o plano de urbanização do Funchal, da autoria de José Rafael Botelho, prestigiado arquiteto de esquerda, por encomenda do então presidente da Câmara do Funchal, Fernando Couto, plano esse que dividiu profundamente a sociedade madeirense. Outro dos assuntos debatidos versava o tema Portugal perante a Europa, participando nesses debates figuras regionais, algumas com ligações ao regime, e personalidades nacionais de relevo como Francisco Balsemão, António Barreto e João Martins Pereira. Desde os primeiros tempos interiorizou e assumiu o CF o desejo de autonomia como um dos seus traços mais característicos, não só a nível político e administrativo, face à centralização paternalista, asfixiante e castradora do salazarismo, mas um desejo de autonomia das próprias pessoas, no que se refere à sua dignidade de cidadãos. Quando começou a aventura do CF encarava-se a autonomia enquanto conceito libertador da secular dependência e do subdesenvolvimento da Madeira, sendo esse sentimento partilhado por um leque de pessoas dos mais variados quadrantes sociais e políticos, incluindo até responsáveis da União Nacional salazarista, como Agostinho Cardoso.   O CF e a censura do regime salazarista As contradições da época, o isolamento e a quietude social e política da Madeira permitiram que o CF tivesse beneficiado de um ambiente menos hostil à sua difusão local e ao seu posterior crescimento a nível nacional. Ao contrário do que se passava no resto do país, onde os censores eram numerosos e anónimos, na Madeira os censores não possuíam enquadramento ideológico seguro, tendo por vezes de aceitar essas funções, para as quais não estavam vocacionados, por arrasto doutras profissões que exerciam. Graças à proximidade e às boas relações pessoais existentes, era possível estabelecer um diálogo civilizado com os censores, sendo a censura na Madeira de certo modo mais benigna e sendo possível negociar cortes e proibições. Tinham os jornalistas e redatores uma luta constante para “escrever nas entrelinhas” de modo a que os censores não se apercebessem da verdadeira mensagem que estava a ser veiculada de forma sub-reptícia. Contudo, essa situação não se manteve eternamente e, a partir de uma edição sobre o Maio de 68 em França, arrancada quase a ferros ao censor, veio uma ordem do poder central para o CF ser censurado em Lisboa. Considerou o CF que, se obedecesse a essa ordem, estaria a criar um precedente gravíssimo e definitivo. A estratégia adotada foi a de interceder junto dos deputados madeirenses à Assembleia Nacional, invocando, por um lado, precisamente o (alegado e formal) regime de autonomia atribuído às chamadas ilhas adjacentes (distrito autónomo) e, por outro lado, argumentando que todo o material publicado na edição em questão tinha sido previamente visado pela censura local e que deste modo “não havia infringido nenhuma regra ou publicado material interdito […] e que se os textos dessa edição tinham sido carimbados e aprovados pela censura local e, além disso, se existia esse regime autonómico (apesar de formal), então o CF estava a ser alvo de uma medida claramente discricionária e até de uma flagrante ilegalidade” (SILVA, 2006, 19). No entanto, teve de se esperar que Salazar fosse substituído por Marcelo Caetano, iniciando-se a chamada “primavera marcelista” (fictícia primavera política), para que a coação exercida de forma continuada junto dos deputados madeirenses à Assembleia Nacional produzisse resultados. Apesar de ter nascido e ser editado na Madeira, o CF implementou-se em Portugal continental, junto dum público fidelizado, o que, até então, nenhum órgão de comunicação madeirense alcançara. Progressivamente, o CF foi-se afirmando a nível nacional, assumindo o papel de ponto de encontro, de plataforma nacional que espelhava debates ideológicos que as esquerdas, em especial as esquerdas universitárias, vinham travando. Essa abertura alterou, contudo, o “centro de gravidade” do jornal, que de algum modo, e pouco a pouco, começou a refletir as posições políticas e ideológicas dos seus colaboradores. Apesar de debater e refletir os grandes temas de discussão nacional, o CF nunca perdeu de vista nem descurou as suas raízes, dedicando, de forma continuada e permanente, atenção aos temas regionais, tendo inclusivamente uma secção específica para o efeito, a secção “Aqui e Agora”. Os tempos eram contudo de tempestade política que prenunciava, aliás, o fim do Estado Novo. Ninguém escapou a esse movimento que exacerbou as divergências entre as várias tendências da esquerda mais radical, acentuando clivagens ideológicas e o sectarismo das correntes maoistas, neoestalinistas e trotskistas, tanto por parte dos leitores como dos colaboradores. A descontinuidade geográfica em relação ao continente e a circunstância de se encontrar longe do epicentro das lutas que se travavam permitiu uma providencial distanciação física e ideológica insular ou, se se quiser, provinciana, filtrando e atenuando as mais exuberantes manifestações, preservando e possibilitando a existência dum resguardo. Por outro lado, a linha não engajada, que era a linha do socialismo libertário, da autogestão, da social-democracia norte europeia, prosseguida por Vicente Jorge Silva, principal responsável editorial do jornal, conseguiu durante algum tempo exercer uma arbitragem eficaz, mesmo que quixotesca, junto às posições opostas e cada vez mais extremadas dos colaboradores do CF.   O CF e o 25 de Abril Citando o próprio Vicente Jorge Silva, “quando acontece o 25 de Abril, o Comércio do Funchal constituía o núcleo central da oposição visível à ditadura na Madeira. Tinha sido a partir do Comércio do Funchal que se tinha tomado a iniciativa da chamada Carta ao Governador (que era então o coronel Braamcamp Sobral, um homem de grande estreiteza mental e que fazia pressões sistemáticas junto da censura para criar dificuldades crescentes ao jornal). Tinha sido também a partir do CF que se organizou a lista da oposição às eleições de 1969. Nessas iniciativas é justo destacar o papel de José Manuel Barroso e António Loja. Entretanto, tinham afluído ao jornal pessoas de novas proveniências, nomeadamente, a nível local, do militantismo católico e que em grande parte acabariam por converter-se, mais tarde, ao marxismo-leninismo. Foi-se verificando, assim, um choque de tendências entre a chamada oposição moderada e a oposição mais esquerdista que se refletiu também no interior do Comércio do Funchal, onde a influência do esquerdismo predominava (e a que não eram estranhos a maioria dos colaboradores radicados no continente)” (SILVA, 2006, 21). À medida que as posições ideológicas se extremavam, tornava-se cada vez mais difícil a situação de Vicente Jorge Silva, emparedado entre essas tendências, porque, por um lado, considerava a chamada oposição moderada e republicana, protagonizada pelos que mais tarde viriam a fundar o Partido Socialista, demasiado branda, mas, por outro lado, não se identificava “nem com o comunismo soviético (o Comércio do Funchal era, aliás, muito crítico em relação à URSS e aos regimes de Leste), nem com as correntes maoistas dominantes na juventude universitária onde o jornal tinha forte implantação” (SILVA, 2006, 22). O 25 de Abril tomou a todos de surpresa. Nas primeiras horas, a falta de informação e a informação contraditória não permitia descortinar quem eram os reais autores do golpe e a sua verdadeira dimensão, correndo inclusivamente, nessa altura, o boato de que se poderia tratar de um golpe de extrema-direita protagonizado por Kaúlza de Arriaga. Nos dias seguintes, à medida que ia chegando informação de que se tratava da queda do regime, a assimilação das suas verdadeiras implicações por parte dos madeirenses, incluindo as autoridades civis e militares, não foi imediata, pelo que se viveu “na Madeira um tempo de confusão verdadeiramente surreal, em que as autoridades locais fingiam comportar-se como se nada se tivesse passado (apesar de Tomás e Caetano terem sido enviados sob prisão para o Funchal) e em que alguns agentes da PIDE apareciam nos cafés falando em voz alta para serem ouvidos nas mesas vizinhas, alegando que nunca tinham feito mal a ninguém. Sentia-se que era preciso reagir, fazer qualquer coisa, mostrar que o 25 de Abril também tinha chegado à Madeira, apesar de não ter havido na ilha nenhuma movimentação militar. Ora, as comemorações do primeiro 1º de Maio em liberdade constituíam uma ocasião particularmente propícia para isso. E foi a partir das instalações do Comércio do Funchal, transformadas em quartel-general, que se organizou a manifestação do 1.º de Maio que juntou dezenas de milhares de pessoas ao longo das ruas do Funchal, passando pelo palácio de S. Lourenço onde estavam detidos Tomás, Caetano e ministros da ditadura como Moreira Baptista e Silva Cunha, até terminar no largo do Colégio. Os discursos foram feitos a partir da varanda da Câmara Municipal (alguns elementos do MFA destacados na Madeira tinham colaborado na parte logística) que decidimos ocupar simbolicamente, até para exigir a demissão dos responsáveis do antigo regime que se mantinham placidamente nos seus postos, fingindo ignorar o que acontecera no país” (SILVA, 2006, 22). Com a Revolução de 25 de abril, o tradicional papel histórico do CF, sem ninguém disso se aperceber, estava paulatinamente a chegar ao fim. Na primeira edição do período depois do 25 de Abril, dada a indefinição existente, nem se sabia ao certo se seria ou não necessário submete-lo à censura. Nos dias, seguintes, multiplicavam-se as edições, à medida que surgiam novos desenvolvimentos. Foram dias de frenesim e excitação revolucionária, com novos desenvolvimentos hora a hora, minuto a minuto. A excitação e a euforia revolucionária desses dias forneciam a energia para ultrapassar o cansaço. Para além de assegurar as múltiplas tarefas inerentes às sucessivas edições, o núcleo de pessoas pertencentes ao CF teve de conciliar essa ação com as atividades emergentes da militância política. Rapidamente se colocou a questão de saber qual o papel que o jornal deveria assumir futuramente. Adquirido era apenas o facto de que continuaria a ser de esquerda, porém estava em questão se deveria continuar a ser uma publicação politicamente autónoma e independente ou se, pelo contrário, deveria tornar-se o porta-voz de um movimento político e partidário. Vicente Jorge Silva e o núcleo duro dos fundadores moderados defendiam a primeira alternativa, mas estavam claramente em minoria face à vontade dominante, que acabaria por prevalecer. Entretanto, fora criado um movimento político, a União do Povo da Madeira (UPM), que juntou a oposição mais à esquerda, e ao qual aderiram também muitos recém-chegados à democracia. A certa altura, chegou-se a verificar um mimetismo entre a redação do CF e os órgãos de cúpula da UPM, cujos membros eram oriundos em parte dos movimentos cristãos da juventude, embora incluíssem também outros militantes, nomeadamente Liberato Fernandes, Milton Morais Sarmento e Paulo Martins, que formaram uma tendência claramente maoista no interior do CF. A oposição mais tradicional ao regime lançou o Movimento Democrático da Madeira (MDM). “Apesar de algumas tentativas para aproximar os dois movimentos, o corte consumou-se, em larga medida devido à irredutibilidade do chefe do MDM, Fernando Rebelo. O MDM chegou rapidamente ao poder transitório da época, mas acabou também rapidamente por consumir-se no fogo-fátuo do PREC madeirense. Quanto à UPM, tornou-se progressivamente uma sucursal da UDP e ganhou um cariz cada vez mais radical e populista, propagando as teses da revolução operária e camponesa numa terra sociologicamente muito conservadora e marcada pelo caciquismo político-religioso. Um caciquismo a que o novo bispo do Funchal, Francisco Santana, não deixou de recorrer em força: foi ele, aliás, quem escolheu Alberto João Jardim para diretor do jornal da Diocese, o Jornal da Madeira, dando-lhe a notoriedade e a cobertura para lançar a carreira política que se conhece” (SILVA, 2006, 24) Com a fragmentação e clivagem que se verificou, bem como com a consequente radicalização das diferentes fações ideológicas no interior do CF, assumiu preponderância a linha ligada à UPM, com as suas teses marxistas-leninistas-maoistas. Uma das suas exigências era a da fixação dum salário mínimo regional igual ao do continente, sem se considerar a exiguidade e sustentabilidade económica dessa medida, i.e., a possível falência das empresas e o consequente desemprego que poderia provocar. A UPM estava interessada predominantemente na luta de classes e nas teses que dela decorriam, pelo que não olhava com bons olhos os editoriais – do seu ponto de vista pouco ortodoxos –assinados por Vicente Jorge Silva nem o facto de este não estar engajado em qualquer das correntes dominantes e se encontrar preocupado com questões de outra ordem, como as relacionadas com autonomia da Madeira, que não eram consideradas como tendo valia suficientemente revolucionária e que representavam, no entender dos seus delatores, graves desvios em relação à “linha correta” por eles prosseguida. Essas críticas, partilhadas por parte significativa dos colaboradores regulares de Lisboa, foram aumentando de tom até se tornarem insustentáveis e conduzirem ao pedido de demissão de Vicente Jorge Silva, que posteriormente prosseguiu uma carreira profissional a nível da imprensa nacional, desempenhando cargos de chefia no Público e no Expresso. Com a liberdade trazida pelo 25 de Abril, deixou de sociologicamente fazer sentido uma plataforma de encontro entre as várias tendências da esquerda portuguesa, que até aí tinham conseguido coexistir de forma relativamente pacífica e que eram a base de sustentabilidade do CF. As diferentes tendências ou partidos criaram os seus próprios órgãos de comunicação social. Com a saída de Vicente Jorge Silva, chegou ao fim a linha editorial que o CF prosseguira, tendo a tendência ligada à UPM (futuramente União Democrática Popular e Bloco de Esquerda) feito dele o seu órgão de comunicação. Mais tarde, a comissão de trabalhadores, liderada por Vasco Sousa, saneou os elementos maoistas da UPM e assumiu a direção do jornal, tendo-se, por razões táticas que se prenderam sobretudo com a sustentabilidade do periódico, aliado ao Partido Comunista Português. Contudo, tal aliança não foi suficiente para garantir a sustentabilidade do jornal, o qual veio a encerrar algum tempo depois, tendo perdido toda a importância e o prestígio que a oposição ao regime de Salazar e Caetano lhe tinham granjeado.   Helder Melim (atualizado a 28.01.2017)

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gabinetes de leitura

Cidade aberta à presença de estrangeiros, nomeadamente Ingleses, o Funchal do séc. XIX nem sempre respondia às solicitações culturais de quem visitava a cidade. O madeirense era pouco letrado e os estrangeiros queixavam-se do facto de não haver livrarias na cidade. Referiam-se, porém, à existência de gabinetes de leitura, lugares onde podiam conviver, ler jornais e revistas ingleses, em clubes onde pagavam quotas. Estes gabinetes eram, então, de acesso privado. Alguns dos estrangeiros que falam da ilha da Madeira referem-se-lhes. Em 1840, Fitch Taylor regista a sua existência no relato que faz da sua viagem à volta do mundo. O mesmo acontece no texto A Winter in Madeira, de 1850. Estes gabinetes revelam-se uma necessidade dos Ingleses e são referenciados nos guias de viagem. O Clube Inglês disponibilizava aos seus membros, para além dos jornais e das revistas, livros de tipologia diversa – desde ensaios e trabalhos científicos até “literatura ligeira da época” (DIX, 1850, 90). Nos começos do séc. XIX, a biblioteca deste clube detinha cerca de 2000 títulos – afirma-o um guia para viajantes e para “inválidos”. Este Clube Inglês, fundado em 1832, também conhecido como “english rooms”, situava-se na R. da Alfândega, entre as duas entradas do Blandy Brothers (Banqueiros Lda.), segundo consta do guia para o visitante assinado por Gordon Brown, o que evidencia a clara importância que esta estrutura teria para suprir as necessidades dos visitantes. Mediante uma quota semestral de 15 dólares, os estrangeiros poderiam conviver, jogar cartas ou bilhar, assim como consultar os mais recentes jornais, periódicos e livros ingleses. O gabinete de leitura do Clube Português não tinha livros, mas apenas jornais e revistas, em português. Não obstante verificar-se um maior interesse e uma maior divulgação dos gabinetes de leitura que servem os turistas que descobrem a Ilha, a verdade é que há referências a associações mais abrangentes, onde a preocupação com a leitura começa a fazer-se sentir. Numa nota a “Instrução pública”, relativa ao período monárquico-liberal, Álvaro Rodrigues de Azevedo remete para dois clubes recreativos, criados por associações particulares, com gabinetes de leitura: o União, criado a 10 de março de 1836, na Pr. da Constituição; e o Funchalense, estabelecido “ao Carmo, mas desde muitos anos também, no palácio da rua do Peru”. Este autor, nas notas que apõe a Saudades da Terra, faz menção de outro gabinete, inserido na Associação Comercial, que se situava à entrada da cidade, assim como “o princípio de uma biblioteca no Grémio Recreativo dos Artistas” (FRUTUOSO, 1873, 804-805). Na realidade, os estatutos de 1836 da Associação Comercial do Funchal já permitiam o acesso a periódicos, mapas, folhetos, livros e notícias, abrindo caminho para a instalação de um gabinete de leitura que, tal como o seu congénere do Clube Inglês, funcionava como um centro de encontro e convívio entre os sócios e os visitantes. No inventário de 1884 desta Associação consta a existência do mobiliário do gabinete de leitura, não havendo referência a qualquer armário, móvel ou estante para arrumação de livros e jornais, que estariam guardados fora do alcance dos utilizadores, na sala de sessões. Em 1897, é aprovado o projeto de regulamento da biblioteca e do gabinete de leitura desta Associação, clarificando as funções de cada um: o gabinete de leitura teria apenas o catálogo das obras existentes na biblioteca, e jornais, que um amanuense distribuía e recolhia diariamente e que eram facultados, mediante bilhetes de requisição, quer a sócios da Associação, quer a assinantes do gabinete. Nesse espaço, não era permitido fazer barulho, fumar, “levar para fora […], extraviar, mutilar ou danificar os jornais ali expostos” (MELLO e CARITA, 2002, 164), cabendo ao diretor da biblioteca zelar pelo bom funcionamento do gabinete. O gabinete, cujo horário era das 06.00 h às 21.00 h, permanecia aberto até mais tarde nos dias da chegada dos navios de Lisboa e dos paquetes ingleses que traziam notícias do mundo. Não temos conhecimento se as outras Associações que, entretanto, se formaram na cidade do Funchal teriam serviço semelhante. Na realidade, os gabinetes de leitura abriam as portas para a criação das bibliotecas públicas. No Funchal, à semelhança do que acontecia em outras cidades – sobretudo nas capitais dos distritos –, a Câmara fundou uma biblioteca pública, no dia 12 de janeiro de 1838, com um acervo constituído pelos 193 volumes da Encyclopedia Methodica, comprada aos herdeiros do conde de Canavial, e, em 1844, o município do Funchal solicita alguns livros do depósito das bibliotecas dos conventos extintos, tendo recebido, em 1863, 3060 volumes, em latim, português, francês, italiano e inglês. Um relatório americano dá conta dessa Biblioteca Municipal, em 1893. No começo do séc. XXI, as bibliotecas públicas oferecem serviços similares, agora gratuitos, apesar da necessidade de aquisição de um cartão de leitor/utilizador, que permite o acesso aos espaços das bibliotecas e dos centros de documentação, bem como à leitura, empréstimo e reserva de obras, à utilização de computadores e acesso à Internet, à visualização de conteúdos audiovisuais, entre outros serviços.     Graça Alves (atualizado a 01.02.2017)

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