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aclamação de d. joão iv

A notícia da aclamação de D. João IV chegou à Madeira pela altura do Natal de 1640, numa vaga informação veiculada por um navio inglês proveniente de Sevilha. A confirmação oficial chegou a 10 de janeiro seguinte, procedendo-se à aclamação nas câmaras do Funchal, Machico, Porto Santo, etc. No entanto, a 25 de janeiro, um tumulto popular leva à invasão da Câmara do Funchal e à expulsão do juiz Luís Fernandes de Oliveira, que tinha sido contador do presídio castelhano, elegendo-se uma nova vereação e, nessa sequência, também um novo provedor da Fazenda. D. João IV enviou depois um novo governador, acompanhado de uma alçada, para investigar as alterações, mas também as dívidas, à Fazenda, vindo o corregedor a ser assassinado às portas da Câmara. Palavras-chave: alçadas; ordem pública; defesa; Fazenda régia. A notícia da aclamação de D. João IV (1604-1656), dos inícios de dezembro de 1640, chegou à Madeira por alturas do Natal desse ano. Um navio inglês proveniente de Sevilha e com destino às Canárias aportou ao Funchal a 26 desse mês e deixou um vago alerta de que algo de anormal se teria passado em Lisboa. A confirmação oficial chegou a 10 de janeiro seguinte, através das cartas, datadas de 19 de dezembro, enviadas por D. João IV ao governador e ao bispo, e levadas por Cap. Diogo Monteiro na sua caravela, tal como se fez para as ilhas de Cabo Verde (Cabo Verde) e para Angola (África), dando conta de “como aprouve a Deus Nosso Senhor restituir-lhe a coroa destes Reinos” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações, liv. 1328, fls. 7-8) e da maneira como “fora alevantado com muito alvoroço e devida satisfação” (Ibid.). As cartas foram lidas na Câmara no dia seguinte, procedendo-se à aclamação e marcando-se para o domingo seguinte, dia 13 de janeiro, a procissão solene e as festas “como dispõe o regimento” (Ibid.). A sessão camarária registou a presença de todas as autoridades da Ilha: o Gov. Luís de Miranda Henriques (c. 1600-1648) (Henriques, Luís de Miranda), o bispo do Funchal, D. Jerónimo Fernando (c. 1590-1650), (Fernando, D. Jerónimo) e sobrinhos, D. António Fernando de Melo e D. José de Melo Fernando, os vereadores, o procurador do concelho, então o castelhano D. António de Herrera y Rojas, filho do falecido marquês de Lançarote (1537-1598) (Lançarote, conde de), o ouvidor e o provedor, incluindo o comandante do presídio castelhano, Cap. Tomás Velasquez Sarmiento, e de tudo foi lavrado auto (Ibid., fls. 8-9v). A 11 de janeiro, o governador escreveu ao Cap. Manuel de Vasconcelos da Câmara de Machico a contar o que se passara em Lisboa e no Funchal. A aclamação em Machico processou-se no dia 13, elaborando-se o Auto do Levantamento do Muito Alto e Poderoso Rei Dom João, o Quarto, Nosso Senhor, a que se seguiu o juramento, no dia 28, “estando presentes os Oficiais da Câmara, de Guerra, e a Nobreza e o Povo dela” (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Regimento Geral, t. 2, fls. 44-45v.). Na sequência de Machico, igualmente se escreveu ao Gov. Martim Mendes de Vasconcelos da ilha do Porto Santo. Nesse mês de janeiro, o Porto Santo encontrava-se bloqueado por uma armada turca de 12 de navios de Argel. A missão foi entregue ao filho do governador, Matias de Mendonça e Vasconcelos, juiz ordinário da Câmara de Machico. Conhecedor da costa do Porto Santo, conseguiu, durante a noite, furar o bloqueio da esquadra corsária e levar a notícia ao pai. Recebida a notícia no Porto Santo, logo foi celebrada à maneira da época, com salvas de artilharia e descargas de mosquetes e arcabuzes. A esquadra turca, não estando habituada àqueles ruídos na ilha, pensou tratar-se dum forte reforço e levantou o bloqueio. O sucesso foi logo dado como milagroso, atribuído a um favor divino que não só livrara a terra portuguesa do Rei estrangeiro, como o Porto Santo da esquadra turca, tendo por isso Martim Mendes de Vasconcelos foro de fidalgo um ano depois, a 9 de setembro de 1642, com “hábito da ordem de Cristo para um filho que ele nomear, com 200$000 réis” (Inventários dos Livros das Portarias..., 1909, I, 9v.). No entanto, nem tudo terá corrido a favor, surgindo também dificuldades. As primeiras notícias negativas que aparecem referem a colocação de panfletos contrários à aclamação de D. João IV, “pasquins malsonantes pelas portas das igrejas, contra o respeito e decoro devido ao dito Senhor”, que foram retirados pelo P.e Lourenço Barradas Ferreira (FREITAS, 1973, 173). A informação, no entanto, é vinculada pelo próprio através da sua habilitação de genere, atestada pelo bispo do Funchal, pelo que, a ter ocorrido tal episódio, não teria passado de uma ocorrência pontual. A primeira alteração a processar-se no Funchal foi a extinção do presídio castelhano, levada a cabo pelo governador, que cumpriu assim um desejo antigo da população do Funchal. A guarnição foi inicialmente dispersa pelas vilas da Ilha, no sentido de a afastar do Funchal, e foi depois embarcada para as Canárias, tendo alguns militares optado por ficar nas fileiras da dinastia de Bragança. O mesmo se passou com o presídio do castelo de S. Jorge, em Lisboa, mas não com o de Angra, nos Açores, que resistiu cercado durante um ano, com vários mortos de uma parte e outra nos recontros efetuados. Registe-se, no entanto, que, embora a 25 de janeiro a Câmara do Funchal tenha determinado enviar para Lisboa as cartas a notificar a aclamação na Madeira, só a 26 de fevereiro estas foram assinadas. Saliente-se que a ordem dada ao mestre da caravela Francisco Belo para não sair do Funchal sem levar as cartas para D. João IV foi sob pena de 200 cruzados e quatro anos de degredo, o que parece indicativo da vontade de as enviar. No entanto, os problemas logo surgidos, acarretando distúrbios mais graves, devem ter colocado tudo em causa. Nesse dia 25 de janeiro, o povo acudiu à Câmara em tumulto, expulsando o juiz Luís Fernandes de Oliveira, que tinha sido contador do presídio castelhano, e elegendo novos juiz, procurador do concelho, vereadores e almotacel. Não contente com isso, passou à casa do escrivão da Câmara e fortificações, Paio Rodrigues Pais da Cunha, que estava suspenso e que, mais tarde, seria mesmo enviado sob prisão para Lisboa, e fizeram-no voltar à Câmara, expulsando o Cap. Manuel Teixeira Pereira, que fazia então de escrivão. Em tumulto cada vez maior, lançou-se a multidão contra o escrivão da Fazenda Manuel de Ceia e um seu sobrinho, por se ter falado de tributos, “e os matariam, sem dúvida” (ANTT, PJRFF, liv. 965, fls. 202ss.), caso não interviessem o governador, o bispo e elementos do cabido da Sé. A multidão foi então à Alfândega, expulsando o provedor Manuel Vieira Cardoso e obrigando João Rodrigues de Teive a servir nesse lugar. O provedor escapou ao furor da multidão escondendo-se em casa do bispo, mas os populares ocuparam a sua casa e mataram-lhe as aves de estimação. Todas estas ações foram de imediato confirmadas por autos lavrados na Câmara e na Alfândega, sinal de não serem só por imposição popular, mas de terem por detrás gente informada que sabia o que estava a fazer. No dia seguinte, o bispo foi à Câmara e voltou a fazer a aclamação com a nova vereação. No entanto, não reconhecendo o Gov. Luís de Miranda Henriques a nova vereação, a 28 de fevereiro elegeu-se outra e lavrou-se novamente o auto. A notícia chegou a Lisboa e, a 2 de agosto, D. João IV escreveu à Câmara mandando proceder-se contra os culpados das alterações de 25 de janeiro e nomeando depois um novo governador para a Madeira. Entretanto, a 25 de outubro, voltou a escrever “mandando que enquanto não viesse o Governador e o Corregedor para a Madeira, se não alterasse nada do que se tinha feito sobre as alterações e motins que na Ilha houve” (ARM, CMF, avulsos, cx. 2, doc. 262). No entanto, o novo Gov. Nuno Pereira Freire (c. 1595-c. 1660) (Freire, Nuno Pereira), com a instalação do novo Governo em Lisboa, só se apresentou na Ilha mais de um ano depois, a 19 de agosto de 1642, tomando posse no dia seguinte. Com o novo governador, chegou uma alçada constituída pelo juiz corregedor Gaspar Mouzinho Barba e o oficial de diligências Amaro Godinho Borges, que haveriam de ter um fim triste na Ilha. Este corregedor ia investigar os tumultos de 25 de janeiro do ano anterior, sendo também indicado para tomar conta da Fazenda, dada a pouca ou nenhuma confiança que suscitara em Lisboa a nomeação popular do provedor naquela altura. Acresce que o novo provedor chegava igualmente encarregado da contramarcação da moeda e da revisão dos complicados processos de dívidas em atraso à Fazenda Real, o que causou um ainda maior mal-estar no Funchal. No final do mês de dezembro de 1643, o trabalho do corregedor deve ter estado na origem de um sedição ou um motim contra o governador, que envolveu uma série de morgados, para além de outras figuras menores. Nesse quadro, o governador tinha mandado proceder a alterações no elenco camarário, onde havia alguns elementos indiciados como tendo dívidas em atraso à Fazenda, em princípio, os vereadores Manuel Homem e Luís Manuel Leme da Câmara. Dada a não apresentação na Alfândega dos últimos implicados, o juiz deslocou-se à Câmara para prender os vereadores, a 29 de dezembro de 1643. Interpôs-se então Pedro Bettencourt de Atouguia, que, após breves palavras, assassinou o corregedor com uma estocada de espada. O assassino ainda foi preso, mas, evadindo-se, foi acolher-se ao Convento de S. Bernardino, em Câmara de Lobos, de que a sua família era padroeira, acabando os seus dias no então oratório de S. Sebastião da Calheta como leigo e ao abrigo da justiça. D. João IV condescendeu com a situação, em princípio por não ter ainda a informação do assassinato do corregedor, e, em carta ao governador, recomenda-lhe que “se evitassem os efeitos das inimizades e ódios, ordenando-se às justiças que não procedam contra pessoa alguma por coisas que sucedessem no tempo da sua aclamação” (ABM, CMF, RG, t. 6, fl. 53). No entanto, em poucos meses estava na Madeira um juiz desembargador, desta vez da Relação do Porto, Jorge de Castro Osório, com indicações para investigar a morte do corregedor anterior (Ibid., fl. 65). O novo juiz recebeu na Madeira o apoio do oficial Amado Godinho Borges, que por uns tempos serviu de provedor da Fazenda. Em breve trecho, foram ambos envenenados, “mortos com peçonha”, como refere a mercê régia para a viúva do oficial da justiça e da Fazenda (Inventário dos Livros..., 1909, 411). Na Ilha, os documentos oficiais são sempre lacónicos: “faleceu, não se confessou” (ARM, RP, Sé, Óbitos, liv. 73, fls. 169-170). O velho e experiente bispo do Funchal retirou-se entretanto para Lisboa, ficando a Diocese em sede vacante várias dezenas de anos. O Rei enviou para a Madeira novo governador, Manuel de Sousa Mascarenhas (c. 1595-c. 1660) (Mascarenhas, Manuel de Sousa), com fortes ligações familiares à Ilha e até aqui com propriedades. Esperava assim acalmar os ânimos, o que não veio a acontecer, essencialmente pelos desmandos do governador. Com a subida ao trono de D. João IV e as alterações políticas daí advindas, logo aumentou o movimento do porto do Funchal. Aliás, as primeiras medidas militares de D. João IV em relação à Madeira visaram precisamente o movimento do porto. Para o controlo das principais medidas militares, constituiu-se o Conselho da Guerra, sendo uma das suas primeiras medidas para a Madeira a cativação dos bens, existentes no porto do Funchal, que pertenciam a Pedro de Baessa Diogo Rodrigues, natural de Lisboa, e a Jorge Gomez Alemo, e que era preciso acautelar. Foram expedidas a 20 e 23 de agosto de 1641 e assinadas pelo conde almirante Rodrigo Botelho. Neste quadro, processaram-se diversos melhoramentos no calhau da cidade, como a montagem do cabrestante da praia e, depois, a fortificação do cais da Alfândega (Reduto da Alfândega) e até de cais particulares, como o da família Fernandes Branco, na foz da ribeira de Gonçalo Aires (Forte dos Louros). Com o alvará de franqueamento do comércio e da navegação para Oriente, de 12 de dezembro de 1642, logo vários madeirenses com interesses comerciais entre Lisboa e o Brasil, como Francisco Fernandes Furna, ampliam as suas atividades até à Índia e à China. No mesmo sentido, estabeleceram-se outros contactos com portos europeus, sendo desta altura os contratos comerciais de navios marselheses com a Ilha da Madeira.   Rui Carita (atualizado a 25.11.2016)

História Política e Institucional

quercus-madeira

A Quercus-Madeira, fundada a 28 de janeiro de 1995, é o Núcleo Regional da Associação Nacional de Conservação da Natureza (Quercus), uma das principais organizações não-governamentais de ambiente em Portugal, e é constituída pelos sócios residentes no Arquipélago da Madeira. O Núcleo Regional da Quercus na Madeira, tal como os restantes núcleos desta Associação, organiza-se internamente numa Assembleia de Núcleo, que reúne pelo menos uma vez por ano os associados residentes, e numa Direção de Núcleo, eleita em Assembleia de Núcleo e composta, no mínimo, por presidente, tesoureiro e secretário. A Quercus-Madeira tem como objetivos os que decorrem dos Estatutos da organização em que se insere, destacando-se os de alertar e apoiar os cidadãos em relação às disfunções ambientais, fomentar e promover a educação cívica e ambiental, defender e promover a conservação dos valores naturais, e desenvolver estudos que contribuam para o conhecimento e a defesa dos valores do património natural e cultural. Decorrente da sua Declaração de Princípios, a Quercus norteia a sua intervenção cívica e política pelos valores da independência e da autonomia, sendo uma organização apartidária, liberta de qualquer tutela económica, religiosa ou racial, e consubstanciando a sua ação no lema “Pensar Globalmente, Agir Localmente”. A Quercus-Madeira, como toda a estrutura nacional da Associação, aborda as mais variadas áreas essenciais à sustentabilidade ambiental, tendo dado particular atenção à educação ambiental, à gestão dos resíduos, à escassez e qualidade da água, à conservação da natureza, ao ordenamento do território, à poluição, à eficiência energética e à energias renováveis. A origem do Núcleo Regional da Quercus na Madeira está diretamente associada à vontade de um grupo alargado de alunos que, no ano letivo de 1994/1995, frequentava o 3.º ano do curso de Biologia na Universidade da Madeira. Estes jovens, que tinham vontade de se organizar e constituir uma associação de defesa do ambiente, fizeram-se sócios da Quercus e constituíram o Núcleo Regional. A reunião preparatória que resultou no pedido formal à Direção Nacional da Quercus para a constituição de uma estrutura regional na Madeira ocorreu a 27 de outubro de 1994. Face à vontade subscrita por 15 alunos da licenciatura em Biologia e ao apoio do professor Jorge Paiva, a Direção Nacional autorizou a constituição do Núcleo Regional da Madeira a 28 de janeiro de 1995. A primeira Direção da Quercus-Madeira foi eleita a 15 de fevereiro de 1995 numa Assembleia de Sócios do Núcleo que decorreu no Colégio dos Jesuítas, Universidade da Madeira, tendo Hélder Spínola sido eleito Presidente, Maria Cristina de Matos Niza Secretária, Dília Maria Góis Gouveia Menezes tesoureira, e Odília Maria Freitas Garcês e Irene Gomez Câmara vogais. A apresentação pública da constituição da Quercus-Madeira ocorreu a 12 de abril de 1995, numa sala do Ateneu Comercial do Funchal, tendo suscitado uma forte curiosidade por parte da comunicação social regional. A Quercus-Madeira, sem sede, abriu um apartado na estação de correios e começou por usufruir de algum apoio logístico da própria Universidade da Madeira: dispunha de um armário para o seu arquivo, utilizava as salas para reuniões e fazia uso dos serviços de telecópia da instituição para contatos com a comunicação social. Em maio de 1996, com a eleição do primeiro Reitor da Universidade da Madeira, foi perdendo este apoio, passando a manter o seu arquivo em casa dos dirigentes e estabelecendo contactos com a comunicação social via serviço de telecópia dos Correios de Portugal. À medida que a Quercus na Madeira vincava a sua discordância com as opções que considerava desviadas da sustentabilidade – nomeadamente o atraso na aprovação dos Planos Diretores Municipais e outros instrumentos de ordenamento do território, a gestão da Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos Urbanos, que estava a criar problemas de contaminação das águas subterrâneas, os despejos de terras para dentro das ribeiras e diretamente para o mar e a falta de medidas para evitar os efeitos sobre a saúde pública da aplicação de materiais contendo amianto –, foi dando a conhecer o seu trabalho e atraindo novos sócios. Passado o primeiro ano desde a sua fundação, este Núcleo Regional deixou de ser um projeto de um grupo de estudantes de Biologia para passar a integrar elementos de outras proveniências da sociedade madeirense. Efetivamente, aquando da constituição de uma nova direção, a 27 de fevereiro de 1997, a maioria dos dirigentes eleitos já não pertencia ao grupo inicial de fundadores. No início de 1997, a Quercus-Madeira, ainda sem sede própria, passou a contar com um espaço na Escola da APEL para manter o seu arquivo e fazer as suas reuniões de trabalho. A utilização deste novo espaço resultou dos contactos estabelecidos entre a nova Secretária da Direção da Quercus-Madeira, Carina Martins Nunes, e o diretor da escola, Mário Casagrande (1930-2009). Um ano depois, também este espaço ficou indisponível e até ao ano 2000 a Quercus-Madeira funcionou sem sede, fazendo as suas reuniões em cafés, na casa dos dirigentes ou em espaços solicitados à Câmara Municipal de Machico. No ano 2000, fruto de uma colaboração que vinha a ser mantida com a Câmara Municipal de Machico, foi estabelecido um protocolo para a constituição de um centro de educação ambiental que passou a ser também a sede da Associação. A Quercus-Madeira passou assim a ter sede fixa num antigo quiosque, onde iniciou também a dinamização do novo Centro de Educação Ambiental de Machico. Em 2004, o Centro de Educação Ambiental e a sede da Quercus-Madeira passaram a funcionar no Mercado Municipal de Machico. A partir de 2011, por indisponibilidade da autarquia local, o Centro de Educação Ambiental de Machico cessou funções, mas a sede da Quercus-Madeira manteve-se no local. A Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza é uma Organização Não Governamental de Ambiente que se formalizou a 31 de outubro de 1985, mas que já desenvolvia atividade desde finais de 1984. A sua constituição resultou da união de esforços entre vários ativistas e associações ambientalistas, que sentiram a necessidade de uma organização mais forte e de âmbito nacional dedicada à conservação da natureza. A base da sua fundação foi determinante na definição do tipo de estrutura interna que adotou, a qual, além dos órgãos nacionais, é marcada pelas existência de Núcleos Regionais espalhados de norte a sul do país, incluindo os arquipélagos dos Açores e da Madeira. Os primeiros Núcleos Regionais da Quercus foram constituídos a partir da integração de associações locais de defesa do ambiente previamente existentes, algumas que participaram na fundação da Associação e outras que se juntaram mais tarde. Numa segunda fase, já na década de 90 do século XX, e à semelhança do que aconteceu na Madeira, a organização local dos sócios deu origem a Núcleos Regionais nascidos dentro da própria Quercus. O facto de os Núcleos Regionais da Quercus constituírem estruturas democráticas, com dirigentes eleitos pelos seus sócios, e possuírem autonomia de funcionamento, proporcionou a esta Associação uma grande agilidade de atuação que é, em grande medida, responsável pela forte implantação e influência em todo o território português. Apesar de estes Núcleos Regionais possuírem autonomia estatutária para definir a sua estrutura organizativa, nomeadamente criando delegações na sua área geográfica, são muito raros os exemplos de concretização dessa faculdade. O Núcleo Regional da Madeira chegou a aprovar, em outubro de 1995, a criação de uma Delegação no Concelho de Santana, mas, à semelhança de tentativas para o Estreito de Câmara de Lobos e para o Porto Santo, essas estruturas acabaram por não vingar. A Quercus possui como órgãos sociais a Assembleia-Geral, a Mesa da Assembleia-Geral, a Direção Nacional, o Conselho Fiscal e a Comissão Arbitral, possuindo ainda um Conselho de Representantes que reúne os membros da Direção Nacional e os presidentes dos Núcleos Regionais. Se os Núcleos Regionais permitem à Quercus uma forte implantação geográfica, os órgãos nacionais, em particular a Direção Nacional, apoiados em estruturas como os grupos de trabalho e os projetos nacionais, garantem uma atuação global coerente e sólida. Ambas as estruturas, nacionais e regionais, na sua ação concertada, completam um modelo de organização que consubstancia de forma eficaz o lema: “Pensar Globalmente, Agir Localmente”. Apesar de a Quercus ter atualmente uma intervenção muito diversificada, abrangendo áreas temáticas como a gestão dos resíduos, a qualidade do ar, a eficiência energética, as energias renováveis, a qualidade e escassez dos recursos hídricos, entre muitas outras, a preocupação predominante dos seus fundadores centrou-se essencialmente nas questões associadas à conservação da natureza. Esse foi justamente o motivo para a adoção do nome Quercus, o nome científico do género a que pertencem os carvalhos, sobreiros e azinheiras, que são as árvores predominantes do coberto vegetal primitivo do território continental português, e do símbolo da organização, uma folha e uma bolota de carvalho-negral (Quercus pyrenaica). Os dirigentes da Quercus são eleitos para mandatos de dois anos de entre os sócios da Associação e exercem os seus cargos de forma não remunerada. Tendo em conta as estruturas nacionais e regionais definidas estatutariamente, o número de dirigentes necessários para completar todos os cargos é superior a 80. Além dos dirigentes, o funcionamento da Associação requer também a ocupação de outros cargos, nomeadamente na coordenação de grupos de trabalho e de projetos. Entre 1995 e 2000, 0 presidente do Núcleo Regional da Quercus na Madeira foi Hélder Spínola, biólogo e um dos fundadores deste núcleo, que mais tarde, entre 2003 e 2009, foi também presidente da Direção Nacional desta Associação. A segunda Direção do Núcleo foi eleita a 27 de fevereiro de 1997, tendo Hélder Spínola sido acompanhado por uma equipa maioritariamente constituída por sócios não pertencentes ao núcleo de fundadores: Carina Martins Nunes, como Secretária, Élvio Duarte Martins de Sousa, como Tesoureiro, e Élia Maria Basílio Rodrigues, Idalina Perestrelo Luís, Joselino Humberto Henriques Silva, Maria Conceição Andrade Silva, Odília Maria Freitas Garcês e Ysabel Margarita Amaro Gonçalves, como vogais. Idalina Perestrelo Luís foi a segunda presidente da Quercus-Madeira, tendo iniciado funções a 5 de agosto de 2000, por nomeação da própria Direção do Núcleo, e sido eleita para o cargo a 28 de outubro de 2000. Desde 2000, e ao longo dos sete mandatos sucessivos para os quais foi eleita, Idalina Perestrelo Luís foi sempre acompanhada na Direção do Núcleo por Elsa Maria Freitas Araújo, como vice-Presidente. A partir de outubro de 2013, Elsa Araújo passou a ser a Presidente do Núcleo Regional da Quercus na Madeira. Desde 1995, o Núcleo Regional da Quercus na Madeira envolveu-se em inúmeras atividades com o objetivo de contribuir para a melhoria da qualidade ambiental e para uma mudança de paradigma na sociedade madeirense. À semelhança da matriz que caracteriza a ação nacional da Quercus, toda a atividade do Núcleo Regional foi marcada por duas formas principais de atuação, os projetos e a intervenção pública, em ambas abrangendo os mais diversos temas ambientais. A mudança de atitudes e comportamentos para com os valores ambientais foi um dos objetivos em que a Quercus-Madeira apostou desde início, tendo desenvolvido várias iniciativas e projetos com esse fim. Nesse âmbito, destaca-se uma parceria com a Câmara Municipal de Machico e a criação do Centro de Educação Ambiental de Machico (CEAM), cuja abertura oficial, em julho de 2000, contou com a presença do Presidente da Direção Nacional da Quercus. Ao longo dos seus 13 anos de funcionamento, o Centro de Educação Ambiental dinamizado pelo Núcleo Regional da Quercus desenvolveu largas centenas de ações de sensibilização, em particular nas escolas da Madeira, tendo abordado temáticas tão diversas como a defesa do património natural, os incêndios florestais, o ordenamento do território, a redução, reutilização e reciclagem de resíduos, a gestão sustentável dos recursos hídricos, e a eficiência energética, entre muitos outros. Além de palestras e debates, a Quercus-Madeira dinamizou, através do CEAM, atividades de reflorestação e manutenção no Parque Ecológico do Funchal, editou publicações, preparou exposições e promoveu passeios a pé. De entre os vários recursos de divulgação e educação ambiental publicados pela Quercus-Madeira é de particular realce a revista Raízes, uma publicação periódica que lançou o seu primeiro número em outubro de 2001. Ao longo de sete anos e de 34 números, a revista Raízes apresentou em capa uma grande variedade de temas, como o património malacológico do Porto Santo e dos seus ilhéus, a fauna cavernícola de Machico, a avifauna da lagoa do Lugar de Baixo, as florestas da ilha da Madeira, a qualidade ambiental das ribeiras e o problema dos incêndios florestais. Associados a estes e outros temas, muitos foram os cidadãos que deram o seu contributo voluntário na preparação de conteúdos, em particular profissionais da área da biologia, mas também juristas, professores e estudantes, entre outros. Um dos temas a que o Núcleo Regional da Quercus na Madeira tem dedicado especial atenção tem sido a gestão de resíduos, não só ao nível da educação e sensibilização ambiental, nomeadamente com o projeto Ponta de Sol Mais Brilhante em 2004 e 2005, mas também através da implementação de projetos iminentemente práticos. Exemplo disso foi a recolha de pilhas usadas, um projeto nacional da Quercus que o Núcleo Regional estendeu à Madeira logo no início de 1995, reunindo mais de 10 quilos de pilhas, as quais se juntaram, em 1998, às 11 toneladas recolhidas em todos os Núcleos da Associação para serem encaminhadas para reciclagem em França. Ainda em 1998, com a ajuda de algumas dezenas de jovens voluntários, esta estrutura regional da Quercus fez um levantamento exaustivo da quantidade e do tipo de resíduos existentes nas praias e calhaus da Madeira, tendo encontrado um litoral pejado de lixo com origem na própria ilha. A disponibilidade de bebidas em embalagens retornáveis, como forma de prevenir a produção de lixo, foi um assunto constante nas preocupações da Quercus-Madeira, que insistiu sempre na fiscalização e cumprimento da Lei. Em fevereiro de 2009, a Quercus trouxe à Madeira mais um projeto pioneiro, tendo, primeiro em parceria com o centro comercial Dolce Vita e depois com os hipermercados Continente, iniciado a recolha seletiva de rolhas de cortiça para posterior reciclagem no âmbito do projeto Green Cork, cujos lucros são utilizados para a reflorestação. Nos primeiros dois meses, o projeto Green Cork conseguiu reunir na Madeira mais de meia tonelada de rolhas de cortiça. Ainda na mesma área, uma das batalhas em que a Quercus-Madeira mais investiu foi a oposição à opção pela incineração como destino final dos resíduos sólidos urbanos produzidos no Arquipélago da Madeira. Em 1998, assim que o governo regional anunciou a intenção de construir uma central de incineração, a Quercus-Madeira promoveu uma petição para que o projeto não fosse concretizado, tendo recolhido mais de 700 assinaturas, que foram entregues na Assembleia Legislativa da Madeira. Quando, em janeiro de 1999, o Governo Regional da Madeira iniciou a discussão pública do estudo de impacte ambiental da obra de Ampliação e Remodelação da Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos da Meia Serra, o Núcleo Regional da Quercus foi a única organização que se opôs a este projeto. A 22 de Agosto de 1999, a Quercus-Madeira organizou a iniciativa Ar Puro que, junto à igreja do Rochão, na Camacha, reuniu cidadãos e representantes de partidos na sensibilização para os perigos decorrentes das emissões de uma central de incineração. A 7 de dezembro de 1999, ao início da noite, devido à queda de um muro que ameaçava ruir já há algum tempo, ocorreu uma derrocada de resíduos do aterro sanitário da Estação da Meia Serra para o interior da lagoa de arejamento dos lixiviados, provocando uma enxurrada que desceu ao longo da ribeira da Cerejeira, destruiu por completo uma habitação e danificou três viaturas no sítio do Ribeiro Serrão. O sobressalto causado por esta calamidade terá estado na origem do ataque cardíaco que vitimou, no decorrer dessa mesma noite, um residente, o senhor José Arnaldo das Neves Vieira, com 39 anos, que, ao longo desse ano, vinha colaborando abertamente com a Quercus-Madeira por uma solução diferente para a gestão dos resíduos. Este facto levou a um envolvimento maior da população da Camacha, em particular dos moradores dos sítios do Ribeiro Serrão e Rochão, que, juntando-se à Quercus, se manifestaram contra o projeto à entrada da Estação a 27 de dezembro de 1999, reunindo perto de uma centena de pessoas. A manifestação repetiu-se a 2 de janeiro de 2000, envolvendo cerca de 300 pessoas. Nesse dia, as barreiras metálicas e a Brigada de Intervenção Rápida da Polícia de Segurança Pública, liderada no local pelo próprio comandante regional da PSP, não foram suficientes para demover a população de entrar na Estação para constatar in loco a estabilidade dos resíduos depositados no aterro e o que estava a ser feito para garantir a sua segurança. Apesar destas iniciativas, o projeto foi avante e a incineradora foi inaugurada em 2004. Possuindo o Arquipélago da Madeira um património biológico extraordinariamente importante, a conservação da natureza foi outra área onde o Núcleo Regional da Quercus mais interveio. Além dos contributos que deu na divulgação do património natural insular, a Quercus-Madeira agiu inúmeras vezes na tentativa de alterar o curso de algumas ações que entendia serem lesivas à biodiversidade. Desde a sua fundação, insistiu na retirada do gado ovino, caprino e bovino que pastoreava em regime livre nas serras da Madeira e impedia a regeneração da vegetação, deixando as serras escalvadas e à mercê dos processos erosivos, pondo em causa a biodiversidade e a segurança das populações pelo risco de aluvião. Também por insistência do então Vereador do Ambiente da Câmara Municipal do Funchal, Raimundo Quintal, mentor da criação do Parque Ecológico do Funchal, onde implementou essa medida, o Governo Regional da Madeira acabou por aceitar a retirada do gado das serras, tendo dado por concluído esse processo em 2003. Outra ameaça à biodiversidade que a Quercus-Madeira sempre combateu foi o flagelo dos incêndios florestais, tendo desenvolvido o projeto Vigilância Contra Fogos Florestais em 1997 e 1998 e, nos anos seguintes, criado uma rede informal de vigilância com mais de 100 voluntários no âmbito do projeto De Olhos na Floresta. Para minimizar o problema dos incêndios florestais, esta Associação insistiu constantemente numa estratégia para a Madeira apostada na prevenção, na vigilância e numa primeira intervenção rápida e eficaz. Em 1999, em colaboração com a Câmara Municipal de Machico, a Quercus-Madeira elaborou a candidatura do projeto Recuperação da Floresta Laurissilva das Funduras ao programa LIFE Natureza, projeto que foi submetido em nome da Direção Regional de Florestas e obteve um financiamento europeu superior a meio milhão de euros. A execução do projeto teve início em janeiro de 2000 e decorreu até ao fim de 2003, tendo a Quercus-Madeira assegurado a implementação das medidas de educação ambiental que ficaram à responsabilidade da Câmara Municipal de Machico. A Quercus-Madeira também se mobilizou várias vezes para tentar evitar a concretização de alguns projetos no coração da floresta Laurissilva. Por exemplo, no início do século XXI, quando o Governo Regional avançou com a asfaltagem da estrada do Fanal, entre a Ribeira da Janela e o Paul da Serra, a Quercus, além das intervenções públicas, procurou, sem sucesso, que a UNESCO, que em 1999 reconheceu o estatuto de Património Natural Mundial à floresta Laurissilva, negasse essa pretensão. Ainda assim, a contestação à asfaltagem levou a que, a partir do Fanal e até ao Paul da Serra, a largura da estrada fosse reduzida. Já em 2008, unindo esforços com a Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal e com um conjunto alargado de cidadãos, a luta foi contra a pretensão do Governo Regional da Madeira de viabilizar a construção de um teleférico no Rabaçal, na cabeceira da ribeira da Janela, em plena floresta Laurissilva, tendo pedido a intervenção da UNESCO e da Comissão Europeia, às quais enviou uma petição com mais de 5000 assinaturas. Adicionalmente, em Março de 1999, estas duas associações de defesa do ambiente interpuseram em Tribunal uma ação judicial a pedir a nulidade da Declaração de Impacte Ambiental favorável assinada pelo Secretário Regional do Ambiente. Devido a esta forte contestação, a construção do teleférico não avançou e a Declaração de Impacte Ambiental acabou por caducar por ter sido ultrapassado o prazo da sua validade, situação que levou o Tribunal Administrativo e Judicial do Funchal, em setembro de 2011, a encerrar o processo. Ao longo do tempo, a Quercus-Madeira alertou para inúmeras situações e opções que constituíam ameaças ao ambiente: Contestou as ações de abate ao Pombo Trocaz (Columba trocaz), espécie protegida e exclusiva da Madeira, , iniciadas pelo Governo Regional em 2004; opôs-se, a partir de 2002, à construção de um Radar Militar no Pico do Areeiro, em Sítio da Rede Natura 2000, junto ao único local no mundo onde nidifica a Freira da Madeira (Pterodroma madeira), uma ave marinha fortemente ameaçada; alertou insistentemente para as consequências negativas sobre os ecossistemas marinhos costeiros decorrentes dos despejos de terras provenientes de obras públicas e privadas; colocou na ordem do dia os perigos para a saúde pública decorrentes da inalação de fibras de amianto, presentes em materiais utilizados na construção de inúmeros edifícios no Arquipélago da Madeira; insistiu na necessidade de melhorar os transportes públicos de modo a garantir uma alternativa válida ao transporte individual e reduzir a poluição dentro da cidade do Funchal; defendeu uma maior aposta na eficiência energética e nas energias renováveis; pressionou inúmeras vezes para o cumprimento da Lei no que diz respeito à realização de análises e divulgação dos resultados relativos à água para consumo humano; insistiu na necessidade de serem adotados e respeitados os instrumentos de ordenamento do território previstos na legislação portuguesa, em particular os Planos Diretores Municipais, os Planos de Ordenamento da Orla Costeira e a Reserva Ecológica Nacional; cooperou com a organização internacional Save the Waves na contestação contra a destruição das ondas para a prática de surf no Jardim do Mar; cooperou com a Sociedade de Desenvolvimento Ponta Oeste numa solução para a preservação da Lagoa do Lugar de Baixo na Ponta do Sol; e, entre muitas outras iniciativas, tentou impedir o avanço de projetos turístico-imobiliários sobre o litoral.   Hélder Spínola (atualizado a 11.10.2016)

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freire, ascenso de sequeira

"Ascenso de Sequeira Freire do conselho de SAR Governador Capitão-General dessa Ilha, tomou posse a 8 de dezembro de 1803 Gov. até 5 de agosto de 1807"   O governo de Ascenso de Sequeira Freire (c. 1760-c. 1825) decorreu no complexo período da neutralidade da corte portuguesa de 1804 a 1807 (Guerras Napoleónicas), no qual a Madeira se viu envolvida na guerra de corso entre os navios de Inglaterra, França, Espanha e, também já, dos Estados Unidos da América, que, não sendo novidade, atingiu níveis muito altos e criou problemas administrativos com a entrega e abandono na Ilha de inúmeros elementos dos navios apresados pelos corsários. Ascenso de Sequeira Freire foi o primeiro governador a ir para a Ilha com carta patente de governador da Madeira e do Porto Santo, e já estaria indigitado nos meados de abril de 1803, pois que a 30 desse mês foi-lhe entregue um aviso com as anteriores instruções enviadas a D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho (1726-1799) e a D. José Manuel da Câmara (c. 1760-c. 1825), embora as novas instruções só tenham sido formalizadas a 28 de novembro. O atraso da sua nomeação oficial enquadra-se na complexa situação política internacional das guerras europeias, envolvendo então a movimentação das forças francesas. Na Madeira, entretanto, haviam ocorrido graves confrontos entre o Gov. D. José Manuel da Câmara e o bispo D. Luís Rodrigues Vilares (c. 1740-1810), que levariam ao afastamento de ambos para Lisboa, acrescidos da aluvião de 9 de outubro de 1803, porventura uma das mais graves catástrofes ocorridas na Madeira e que se calcula ter feito cerca de 600 mortos (Aluvião de 1803). O novo Gov. Ascenso de Sequeira Freire chegou à Madeira na fragata Carlota Joaquina, a 5 de dezembro, e tomou posse a 8 desse mês, “pela devoção e piedade que lhe inspirava, por ser (dia) consagrado à Conceição da Virgem Nossa Senhora”, como ainda informou José Manuel da Câmara (ARM, Governo Civil, liv. 197). Os primeiros meses devem ter sido complicados, pois que só entrou para a confraria de N.ª Sr.ª da Soledade, no convento de S. Francisco, como era tradição dos governadores desde os meados do séc. XVIII, a 20 de março do seguinte ano de 1804. Na mesma fragata em que veio o governador, veio também o juiz desembargador Joaquim António de Araújo, para proceder a uma “sindicância” sobre as atitudes do anterior governador e do bispo, aliás com carta régia também datada de 15 de outubro (Ibid., liv. 199, fl. 5), tendo ambos regressado ao continente nos dias 10 e 11 do mesmo mês, mas em navios diferentes, para que na Ilha não interferissem no trabalho do desembargador. O governador, logo nesses dias, pelo seu gabinete no palácio de S. Lourenço, despachava ordens para o Corr. José Pedro de Lemos, para a Câmara do Funchal e mesmo para o deão, ordenando que se disponibilizassem para tudo o que o desembargador necessitasse para o seu trabalho. Não temos referência ao tempo que o desembargador Joaquim de Araújo levou a concluir o seu processo, mas deve ter passado alguns meses a ouvir os vários intervenientes e com certeza a fazer acareações, pois as relações entre as duas entidades extremaram-se muito para além do razoável. A acusação do bispo e do governador veio a ser feita pelo desembargo do paço, em meados de 1805, altura em que “foi tomado em madura consideração” todo o material recolhido, concluindo-se que ambos não se haviam portado bem. No entanto, o príncipe regente veio a perdoar a ambos, autorizando o bispo a regressar à sua diocese, o que só viria a fazer mais tarde e concedendo ao governador “a honra e mercê” de ir beijar a “Minha Real Mão”. Futuramente, sobre este assunto deveria ser “guardado perpétuo silêncio” (Ibid., liv. 199, fls. 24v.-25v.). No longo despacho, no entanto, não se deixa de imediatamente ordenar a regulamentação minuciosa do cerimonial e etiqueta entre o governador e os bispos das ilhas adjacentes, com os locais onde se deveriam acompanhar um ao outro, até onde e quem os acompanharia depois, que lugares deveriam ocupar e onde, mesmo em relação às restantes autoridades insulares, como a Câmara, até para evitar situações como a da procissão do Corpus Christi, que parece ter sido um dos motivos para os confrontos destas entidades. A articulação do cerimonial acompanhou logo o despacho de acusação. Ainda se refere no despacho do processo que o Colégio, posto que doado à mitra por D. Maria I, em 1787, “se conserve para aquartelamento de tropa e também como celeiro público”, como fora destinado na carta régia de 24 de junho de 1800, assim como que a nova praça do Mercado, estabelecida nos terrenos da antiga capela de S. Sebastião e casas contíguas, cuja demolição tinha sido aprovada por carta régia de 5 de março de 1803, também se deveria manter. Por último, era suspenso o escrivão Manuel do Nascimento da Silva, “pela facilidade que praticou nas acusações” ao prelado, e determinava-se a “repreensão em câmara” do escrivão João Francisco da Câmara Leme, “por se queixar sem motivo do governador” (Ibid.). Em julho de 1805, o Gov. Ascenso de Sequeira Freire acusava a receção do aviso régio “acerca dos conflitos havidos” entre o bispo e anterior governador. Informava então ter “ordenado a repreensão” e suspensão dos escrivães envolvidos no processo em causa, assim como agradecia “a definitiva resolução de ser aplicado o ex-convento dos jesuítas ao aquartelamento da tropa e a celeiro público”, como já havia sido determinado pela anterior carta régia de 24 de junho de 1800 (Ibid., liv. 203, fls. 42-43). O governador vinha para uma comissão de três anos, que já sabia vir a ser um trabalho difícil. A 9 de outubro, a Ilha fora assolada por uma terrível aluvião que destruíra parcialmente a parte baixa da cidade, assim como as áreas ribeirinhas das restantes vilas e povoações, sendo necessário proceder a profundas obras de reconstrução, principalmente dos paredões das ribeiras, cujas ordens passaram inclusivamente a ser escrituradas num livro independente. Acrescia que nestes finais de 1803 também uma série de pestes assolava vários portos do Mediterrâneo, obrigando a redobrar as medidas de segurança e de saúde nos portos portugueses, medidas que no Funchal assumiam especial relevância, dada a fama de que a Ilha já começava a gozar como estância de turismo terapêutico. Os seguintes cuidados do gabinete do Gov. Ascenso de Sequeira Freire foram para a segurança do porto, no aspecto das visitas aos navios, ordens que imediatamente se comunicaram ao oficial das visitas José Francisco Esmeraldo, para o comandante da artilharia e para o Sarg.-mor Francisco Martins Pestana, tendo-se transmitido também para o Porto Santo. O registo do porto estava a cargo da fortaleza do Ilhéu, à qual competia manter em ordem principalmente os navios mercantes, fazendo inclusivamente fogo real com dois tiros sobre os navios que não cumprissem os requisitos estabelecidos. Dentro desses aspectos, deve ter sido pressionado também o meirinho da então praça de S. Sebastião, Manuel de Sousa Drummond, que de imediato pediu a demissão. Aliás, este seria um elemento que depois levantaria outros problemas, entrando várias vezes em conflito com os elementos da Casa dos Vinte e Quatro e, em abril de 1804, especificamente por causa da venda de carne no açougue de forma ilegal, pelo que o governador não hesitou em o mandar prender. Algumas das principais preocupações do Gov. Ascenso de Sequeira Freire foram, assim, para a defesa geral da Ilha, não só em relação às intempéries, que nestes primeiros meses do seu governo continuavam a assolar a Madeira, como também para a defesa militar, que igualmente se adivinhava absolutamente necessária. Na noite de 8 para 9 de janeiro de 1804, uma enorme tempestade de “muita chuva e trovões” fez naufragar na baía do Funchal duas galeras inglesas, uma das quais apresada aos espanhóis, lançando-as sobre a praia frente à fortaleza e palácio de S. Lourenço e tendo perecido afogados dois ingleses da guarnição de uma delas. Nos inícios de abril voltava a haver problemas, embora sem especiais estragos (Ib., liv. 203, fls. 3v-4 e 9). O Gov. Ascenso de Sequeira Freire tinha tomado posse do Governo a 8 de dezembro e logo a 10 da presidência da Junta da Fazenda, e os primeiros assuntos que ali despachou foram os pendentes em relação à secretaria do Governo e à Fazenda, que, no entanto, se limitou a enviar para Lisboa, sem especial informação. Nessa sequência, em fevereiro, tratava das nomeações militares, voltando a insistir para Lisboa sobre a situação do Colégio, imprescindível para aquartelamento militar, resposta que só recebeu em 1805, com o despacho do processo sobre o seu antecessor e o bispo. Por essa altura, também se inteirou da situação das várias fortificações do Funchal, com especial atenção para a fortaleza do Ilhéu, principal defesa e registo do porto. Os cuidados sobre a situação militar de Ascenso de Sequeira Freire em breve seriam colocados à prova. Nos inícios de março, uma esquadra inglesa, numa atitude algo insólita, tentou desembarcar no Funchal 2000 homens, com a desculpa de se avizinhar um confronto com navios franceses. No dia 10 desse mês, chegara ao Funchal uma unidade naval britânica, formada por seis naus comboiadas pela fragata Egyptienne. A fragata ficou ao largo e as embarcações tentaram ancorar na baía, no que foram impedidas pela fortaleza do Ilhéu, dado já ser noite e, conforme as normas em vigor, só o poderem fazer à luz do dia. No dia seguinte, ficaram à vela, em parte devido ao mau tempo, mas em linha, o que não deixou de alertar o governador, tendo sido assim que receberam refrescos de terra. O então Cap. Charles Elphinstone Fleeming (1774-1840), comandante da Egyptienne e que já estivera no Funchal, mandou apresentar cumprimentos ao governador. Avistaram-se entretanto outros navios ao largo, que os ingleses identificaram como sendo franceses, o que não seria novidade, pois se sabia que alguns navios dessa nacionalidade cruzavam também por vezes os mares da Madeira. No entanto, o que espantou o governador, e que relatou depois para Lisboa, foi o pedido dos ingleses para desembarcarem 2000 soldados em terra, com o argumento de que, dado o combate naval que se adivinhava, não seriam necessários a bordo, pois poderiam mesmo prejudicar a manobra da esquadra. Cauteloso, Ascenso Sequeira Freire resguardou-se na neutralidade portuguesa, não autorizando o desembarque, pois a Ilha já havia sido ocupada pelos britânicos dois anos antes. Os navios ingleses afastaram-se e, perante o alvoroço na cidade, verificou-se que eram todos britânicos, trocando sinais entre si e logicamente não tendo havido confronto. Tratava-se de uma esquadra de naus de linha, sob o comando do Alm. sir Thomas Cochrane (1775-1860), futuro lord Dundonald, que depois haveria de comandar as esquadras do Chile e do Brasil, chegando a perseguir e combater navios portugueses depois da independência da antiga colónia, e estava então no encalço de uma outra esquadra francesa que saíra de Rochefort. A 12 desse mês, efetivamente, as naus dessa esquadra inglesa paravam na baía do Funchal, uma das quais era a célebre Nothumberland, de 74 peças, para carregarem vinho e refrescos, saindo na tarde desse mesmo dia. A situação foi tão estranha que o governador colocou a hipótese de se tratar de uma brincadeira. No entanto, face à possibilidade de um desembarque, colocou de prevenção e reforçou as forças armadas locais durante as duas noites seguintes. Quem reagiu de imediato a este incidente foi o cônsul espanhol, que informou o governador de ter instruções para no caso de desembarque inglês na Ilha se retirar imediatamente, pois o Governo em Madrid era então francês. Ascenso de Sequeira Freire desdramatizou a situação perante o cônsul espanhol, informando-o encontrarem-se numa situação de paz e que as ações desencadeadas se limitavam a “sustentar o lugar” (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 1476). Teria sido na sequência destes acontecimentos que o Governo de Lisboa enviara ordem para a Madeira, proibindo rigorosamente o desembarque de tropas estrangeiras e até a permanência demorada das esquadras nos portos da Ilha. Estava-se, por um lado, a tentar que se respeitasse a neutralidade assinada por Portugal e, por outro, a evitar casos semelhantes a este num futuro próximo. A importância da minuta desse ofício, igualmente enviada para a Madeira, fez com que o governador nunca se separasse da mesma, tendo assim permanecido nos arquivos da família durante muito tempo (ARM, Arquivos Particulares, Docs. Ascenso Sequeira Freire). Começa o ofício por historiar que, “Tendo Sua Majestade Britânica mandado na penúltima guerra um Corpo de Tropas Inglesas Auxiliares a essa Ilha, em consequência da íntima Aliança que então ligava as duas potências”, esse “auxílio” tinha chegado ao Funchal sem o governador de então ter recebido quaisquer instruções “com o modo de se haver naquele caso inopinado”. No entanto, “quis a Providência que o referido governador em circunstâncias tão delicadas e imprevistas se antecipasse pela resolução que tomou” ao que depois lhe foi determinado. “Sendo porém a atual situação política de Portugal diversa daquela em que então se achava, pela paz que o nosso Augusto Soberano conseguiu para os seus reinos”, era preciso “conservar pelo meio da mais exata e imparcial neutralidade” a mesma paz, “que se achará violada pela livre entrada e voluntária receção de tropas estrangeiras armadas no território dos seus reinos e domínios” (Ibid.). Com a ratificação, entretanto, do acordo entre Portugal e França, a 19 de março de 1804, em que mais uma vez se insistia na neutralidade portuguesa, a corte de Londres alarmava-se. Em breve, por exemplo, insistia-se junto do embaixador português nas razões que teriam levado ao aumento das medidas de defesa no porto do Funchal, referindo-se certamente à situação supracitada com a fragata Egyptienne, assim como se protestava contra a nomeação do Brig. Reinaldo Oudinot (1747-1807) para o Funchal, dada a sua origem francesa. O embaixador português em Londres, Domingos de Sousa Coutinho (1760-1833), chegou mesmo a alvitrar para Lisboa a necessidade de colocar em alerta máximo as defesas da Madeira, o que levou à convocação extraordinária das milícias. Estes anos continuaram a ser marcados pela presença de grandes comboios britânicos nos mares da Madeira, recorrendo ao porto do Funchal para aguada e carregamento de vinhos, que juntaram também corsários franceses e espanhóis, tal como navios norte-americanos. Todo este movimento veio a criar inúmeros problemas de segurança geral na Ilha, incluindo de saúde, com a presença de presas de várias proveniências e prisioneiros de guerra, levando à necessidade de se efetuarem visitas de fiscalização rigorosa a esses navios, a que o governador tentou de várias formas acorrer e disciplinar. A estes problemas juntavam-se ainda as dificuldades de ligação da Madeira a Lisboa, dado rarearem as embarcações portuguesas neste contexto de guerra, tendo o correio oficial que circular, por vezes, pelo arquipélago açoriano, com as demoras daí advindas. Acresciam ainda as questões levantadas pelos vários comerciantes estrangeiros e pelos respetivos cônsules insulares, em defesa dos interesses das nações que representavam. As questões ultrapassaram então os habituais problemas económicos e envolveram muitas vezes provocações graves com elementos da população do Funchal e mesmo oficiais da guarnição, chegando inclusivamente ao confronto físico. O conflito que ofereceu mais complicações ocorreu na praia do Calhau na noite de 15 de julho de 1804, com um desacato entre alguns marinheiros ingleses e populares do Funchal. Os ingleses pertenciam a mais um comboio de 45 navios que levava lord Seaforth, sir Francis Mackenzie (1754-1815), para Barbados. A 19 desse mês, o governador oficiava ao juiz de fora do Funchal: “por que me constou que alguns oficiais e marinheiros britânicos das naus e navios que se acham ancorados neste porto têm feito nesta cidade algumas desordens”, pedia a sua intervenção (ARM, Governo Civil, liv. 713, fls. 33v.-34). Em breve o governador compreendia a extensão do caso e envolvia no assunto também o corregedor e o comandante da artilharia, António Francisco Martins Pestana, dado um dos envolvidos ser um tenente de artilharia. Entre os ingleses, encontrava-se inclusivamente o próprio cônsul-geral José Pringle, que tomara posse em março de 1800, e, entre os funchalenses, o Ten. António de Carvalhal Esmeraldo, tendo este esbofeteado e ferido o cônsul inglês. O tenente foi preso quase de imediato, seguindo sob prisão para Lisboa na charrua Príncipe da Beira, embora regressasse algum tempo depois. Seguiram igualmente para Lisboa os marinheiros ingleses que haviam praticado insultos no convento de Santa Clara, tal como os que tinham açoitado um religioso franciscano, Fr. Luís de Santa Helena, inclusivamente sob escolta militar. Face à proteção tentada pelo cônsul britânico, o mesmo veio a ter também ordem de prisão, embora tal se não tenha depois consumado. O assunto teria sido tão complicado que ainda em meados de 1807 era objeto de correspondência do governador para o visconde de Anadia. Para se imaginar o movimento inglês nos mares da Madeira, a 5 de junho de 1804, por exemplo, chegava ao Funchal um comboio britânico com 48 navios mercantes e duas fragatas de guerra, que se dirigiam para as Índias Ocidentais inglesas. Também nos inícios de janeiro de 1805 eram avistadas ao largo do Porto Santo, pelo bergantim Senhora Carlota, comandado pelo Cor. Philip Lanylois, cerca de 180 embarcações que mais tarde se veio a confirmar tratarem-se de uma divisão francesa saída de Rocheford, com destino à Dominica e que ali desembarcaria depois cerca de 3000 homens. Nos mesmos inícios de 1805 ainda passavam pelos mares da Madeira seis naus inglesas, novamente sob o comando do Alm. Thomas Cochrane, e em setembro a nau Raisonable, comandada por Josias Rowley (1765-1842). Esta nau havia travado combate com outras francesas e conseguira “escapar, por ser muito veleira”, embora viesse “com feridos e algum destroço” (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 1484 e 1556). Nos finais do mesmo mês de setembro de 1805, passariam pelo Funchal as forças comandadas por sir David Baird (1757-1829), que aproveitariam a passagem para carregarem mais de 4000 pipas de vinho. Ainda nos finais do ano de 1805, passariam um comboio de 19 navios, comandado pelo brigue de guerra Wolverene, do Cap. Smith, e a escuna inglesa Quail, comandada por Patrício Lowes, que trazia um navio americano como presa, no qual se encontravam seis marinheiros espanhóis. Um ano depois, passava novo comboio, com destino às Índias Ocidentais, do qual fazia parte a fragata Orpheus, do Com. Briggs. Com toda essa movimentação, um dos problemas que continuavam a preocupar o governador do Funchal era a situação dos prisioneiros provenientes das presas corsárias. A 6 de janeiro de 1805, por exemplo, chegava novamente ao Funchal a fragata Egyptienne, comandada por Charles Elphinstone Fleming, mas então citado como “G. L. Flameng”, com quatro dias de viagem desde Lisboa, conduzindo uma galera espanhola proveniente das Canárias que apresara no mar alto, assim como uma outra presa feita por essa galera. Saiu no dia seguinte levando a presa, mas deixando a galera com 118 soldados e toda a equipagem. A galera ficara consignada ao cônsul inglês no Funchal, com a indicação de a carga de bacalhau e peixe salgado ser vendida na Ilha, o que, apesar de proibido, veio a acontecer no mês seguinte (Ibid., liv. 713, fls. 50-50v.). O movimento de corsários ingleses e americanos nos mares da Madeira era intenso, tal como das consequentes presas francesas e espanholas, onde, por vezes, se encontravam marinheiros portugueses. Em março, o cônsul José Pringle solicitava que o corsário Especulação, do Com. Matheus Valpy, pudesse ficar amarrado à fortaleza do Ilhéu para reparações, assim como o Dart, do Com. Duarte Torvel. No final desse mês, idêntico pedido era feito para o corsário Tartar, de Diogo Laine, dentro dos “dez dias aprazados”, e no início do mês seguinte, também o Rose, de que era capitão João Turse. Mas o movimento não era só de corsários ingleses, pois a 14 de abril o cônsul inglês pedia ao governador, em nome dos acordos que existiam com Portugal, que mandasse “levantar do porto” dois corsários americanos que ali estavam ancorados (Ibid., fls. 56v.-57v. e 59-59v.). No final de abril, ainda ancorou no Funchal a nau inglesa L’Immortalité, que já tinha sido francesa e que apresara a 17 de março o corsário espanhol El Intrepid Corunes, do mestre D. Patrício Farto. A bordo do corsário espanhol, foram encontrados cinco marinheiros de uma escuna portuguesa, que fora apresada pelo mesmo e que entretanto o corsário despachara para a Corunha. Os marinheiros portugueses acabaram por seguir para Lisboa na galera Raguzana. Em maio, ocorreram mais dois casos semelhantes, entrando no porto no início do mês um pequeno falucho espanhol proveniente das Canárias, muito mal tratado, sem água nem mantimentos, depois de ter sido atacado por um corsário inglês, que identificaram como Lord Nelson. No entanto, não foi autorizado a ancorar, embora viesse com um carregamento de trigo, com a desculpa de que não trazia carta de saúde. Dado o estado em que vinha, acabou por naufragar em frente à praia Formosa, espalhando a carga pela praia. A 28 desse mês, entrou no porto do Funchal a fragata britânica Cerberus, comandada por J. Selly, trazendo uma presa francesa. Depois de conversações com o cônsul francês Nicolau de La Tuellièrie (c. 1750-1820) (Quinta Vigia), os oficiais e a equipagem acabaram por seguir para Lisboa na polaca Penha de França. Nos finais de 1805, ainda o cônsul inglês dava conhecimento da entrada, de novo, da fragata britânica Tartar, então do Cap. Hawker, tendo a bordo a tripulação de um bergantim espanhol que fora apresado no mar alto, composta pelo capitão e por 13 marinheiros que ficaram no Funchal. Os prisioneiros foram instalados no forte Novo de São Pedro, que ficava no atual campo Almirante Reis, e o governador optou por coloca-los nas obras das muralhas das ribeiras da cidade, para assim obter da fazenda dinheiro para o seu sustento. Estes homens seguiram para Lisboa em janeiro do ano seguinte, na escuna Piedade e Almas. A 6 de maio desse ano de 1806, o brigue inglês Saracen ancorava no Funchal em situação semelhante, com um navio espanhol como presa e descarregando igualmente a sua tripulação no Funchal. Entre janeiro e fevereiro de 1806, ocorreu outro caso no Funchal, bem ilustrativo da situação então vivida. Nos inícios de fevereiro, o cônsul francês pedia ao governador proteção especial para o Cap. francês De Larné Greardiere, que desde janeiro se encontrava no Funchal aguardando um navio. O capitão francês teria vindo na escuna Piedade e Almas, proveniente de S. Miguel, nos Açores, em cujos mares havia perdido em combate o seu navio. No entanto, tendo sido do conhecimento dos ingleses a sua presença no Funchal e existindo um navio inglês surto no porto, o brigue Raven temia que, saindo do porto da cidade, viesse a ser preso. O governador intercedeu junto do cônsul inglês, pelo que à noite veio o agente consular francês “em grande uniforme” agradecer-lhe a intervenção (AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 1698, 1719 e 1720). Como se não bastassem os problemas de corso que envolviam portugueses, ingleses, franceses e espanhóis, por vezes ainda se infiltravam nos mares da Madeira os piratas argelinos. Uma declaração de João McAuley, capitão da galera inglesa Three Brothers, apresentada ao vice-cônsul inglês Archibald Brown, em julho de 1807, dava conta da perseguição que lhe moveram dois navios argelinos bem armados, os quais, segundo soubera pelo Cap, Sanford, da galera americana South Caroline, andariam à caça de navios portugueses e espanhóis. Aliás, essa informação foi depois confirmada pelo comandante da esquadra portuguesa do Estreito, Luís da Motta Feio Torres (1732-1813), que os teria avistado da nau Rainha de Portugal, pelo que também alertou os habitantes do Porto Santo e do Algarve para o facto, e, inclusivamente, deixou na área do Estreito uma nau, uma fragata e um bergantim. Nos inícios de março de 1807, passava pelo Funchal a fragata inglesa La Modeste, que também já fora francesa e que transportava para a Índia o seu novo governador, Gilbert Elliot, lord Minto (1751-1814). A fragata ficou oito dias no Funchal para arranjar um mastro que se desconjuntara na viagem e também para dar assistência ao filho do futuro governador da Índia, que vinha doente. Alguns dias depois, passaria pelo Funchal para fazer aguada uma outra divisão naval inglesa, constituída por quatro naus de linha, uma fragata e vários brigues, “não se sabendo ao certo o destino que levavam”, como refere o governador (Ibid., doc. 1718). Em meados de maio, a divisão comandada pelo Alm. Samuel Hood (1724-1816), que andava a patrulhar os mares da Madeira, também aportou ao Funchal, com cinco naus de linha e duas fragatas. A divisão ancorou entre 17 e 19 de maio, juntando-se-lhe depois a fragata Comus, que aprisionara um pequeno caiaque espanhol perto das Canárias. Nos inícios do mês de julho de 1807, passaria pelo Funchal a nau de guerra inglesa Malabar, comandada por J. Temple, a acompanhar nove transportes com tropas e munições de guerra com destino a Montevideu, sendo as tropas comandadas pelo Gen. Turner e pelo Brig.-Gen. Clavering. Pelo Funchal passaram ainda a galera inglesa Three Brothers e o bergantim português Flor de Lisboa, que foram perseguidos pelos corsários argelinos, a fragata Tiveed, comandada por J. Symonds, e o brigue Júlia, por R. Yarker, comboiando 32 navios mercantes, que carregaram vinhos na Madeira. Em abril de 1806, a Câmara do Funchal pedia a recondução do Gov. Ascenso de Sequeira Freire. Na sessão de 2 desse mês, foi decidido escrever a Sua Alteza expondo “o bem que tem servido o atual governador [...] na administração da justiça às partes, pedindo ao mesmo soberano que haja por bem de o conservar no seu governo” (ARM, Câmara Municipal do Funchal, liv. 1366, fls. 31v.-32). No entanto, não era essa a posição do governador, que em dezembro lembrava ao visconde de Anadia, João Rodrigues de Sá e Melo (1755-1809), sobrinho do anterior governador da Madeira, João António de Sá Pereira (1719-1804), barão de Alverca, “que a 8 do corrente fez três anos que tive a honra de tomar posse deste governo, em que tenho desejado cumprir com os meus deveres, auxiliado pelas luzes e muito favor de V. Ex.ª”. O governador solicitava assim o seu regresso ao continente, até “pelo desarranjo da minha família e casa, e pela falta de minha Mãe que tão sensível me tem sido” (ARM, Arquivos Particulares, docs. Ascenso Sequeira Freire). O visconde de Anadia escreveria em 7 de janeiro seguinte, “respondendo à carta que tive o gosto de receber”, onde informa que “Sua Alteza Real condescendendo benignamente com os desejos de V. Ex.ª” tinha nomeado já um novo governador para a Madeira, “recaindo essa escolha em meu primo” Pedro Fagundes Bacelar Antas e Meneses, “cujas qualidades me afiançam que saberão seguir o prudente e bem dirigido sistema de governo que V. Ex.ª adotou com tanto proveito desses povos”. Deve ter sido com essa carta que o visconde de Anadia enviou um desenho de uma condecoração de cavaleiro da Ordem de Malta, com que fora agraciado, e um cartão do ourives que a fazia em Lisboa (Ibid.). No mês seguinte, o governador respondia à carta congratulando-se com a nomeação do novo governador, a que troca os apelidos, o que era normal, referindo Pedro Fagundes de Antas Bacelar e Meneses, “que virá fazer pelas suas boas qualidades a fortuna destes madeirenses”. Como era hábito, o governador guardou as cópias das suas cartas e o original da missiva do visconde de Anadia nos seus arquivos pessoais, encontrando-se parte deles no ARM, aguardando a chegada breve do seu substituto, que ocorreria no seguinte mês de agosto desse ano de 1807.     Parece que a transmissão de governo foi muito rápida e Ascenso de Sequeira Freire não deu conta ao seu sucessor de uma série de preocupações que tinha, com base em notícias que recebera de Londres, de que se preparava nova ocupação britânica da Ilha. No espaço de poucos meses, o novo governador, Pedro Fagundes Bacelar Antas e Meneses, era confrontado com a saída da família real de Lisboa para o Brasil, a ocupação do território continental por forças francesas e a ocupação da Madeira por tropas britânicas. Ascenso de Sequeira Freire seria colocado em Lisboa como chefe da Legião Nacional do Campo de Santa Clara, onde estava em setembro de 1811 e parece ter falecido por 1825.   Rui Carita (atualizado a 10.04.2016)  

História Política e Institucional Personalidades

atouguia, antónio aloísio jervis de

Nascido no Funchal, o visconde de Atougia desempenhou um papel importante na guerra civil que opôs liberais e absolutistas, combatendo ao lado dos primeiros, e teve uma carreira brilhante no território continental, como deputado, par do Reino e ministro. Recebeu várias comendas e foi agraciado com o título de visconde. Palavras-chave: guerra civil; deputado; par do Reino; ministro.   António Aloísio Jervis de Atougia nasceu no Funchal, a 7 de julho de 1797, filho do morgado Manuel de Atouguia Jervis e de Antónia Joana de Carvalhal Esmeraldo. Em 1811, iniciou os estudos secundários no colégio inglês Old Hall Green, nos arredores de Londres, matriculando-se depois em Matemática, na Universidade de Coimbra. Terminado o curso, em 1822, foi nomeado lente substituto da Academia da Marinha, mais tarde denominada Escola Naval, tornando-se professor catedrático em 1834. Fig. 1 – Retrato a óleo de António de Atouguia, de 1852.Fonte: CHAGAS, 1895, X.   Fugindo à perseguição contra os liberais, emigrou para Inglaterra, em junho de 1828, mas logo em agosto regressou ao Funchal para se juntar ao governador da Madeira, Cap.-Gen. José Lúcio Travassos Valdez, na luta contra as tropas absolutistas de D. Miguel. Perante a vitória destas, refugiou-se no navio inglês Alligator, com outros madeirenses, e rumou novamente a Inglaterra, daqui partindo, em 1831, para a ilha Terceira, nos Açores, onde foi organizada a resistência dos liberais. Em 1832, participou na tentativa falhada de conquista da Madeira, dominada pelas forças absolutistas, regressando de seguida aos Açores e indo finalmente juntar-se às tropas de D. Pedro IV, no Porto. Com a vitória liberal, em 1834, foi nomeado governador civil do Porto e condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada. De 25 de julho a 25 de novembro de 1835, fez parte do Governo presidido pelo duque de Saldanha, como ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. Foi deputado pela Madeira, em 1834-1836, 1837-1838, 1838-1840, 1840-1842, e, mais tarde, por Oliveira de Azeméis, em 1851-1852, tendo feito parte das comissões da Marinha, Ultramar e Guerra. Em 1841, presidiu à Câmara de Deputados e, entre 1858 e 1861, presidiu algumas vezes, interinamente, à Câmara dos Pares. Em 1842, foi nomeado ministro da Marinha e Ultramar, no Governo presidido pelo duque de Palmela, de 7 a 9 de fevereiro de 1842, num ministério conhecido como Governo do Entrudo. Fez parte do ministério presidido pelo duque de Saldanha (22/05/1851-06/06/1856), como ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar, de 4 de março de 1852 a 6 de junho de 1856, acumulando com a pasta de ministro e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, a partir de 31 de dezembro de 1852. Foi ainda diretor da Escola Politécnica de Lisboa e conselheiro do Tribunal de Contas. Foi nomeado par do Reino a 5 de janeiro de 1853 e agraciado com o título de visconde de Atouguia, por duas vidas, a 15 de março de 1853, tendo também recebido várias comendas nacionais e estrangeiras. Em 1832, iniciou-se na maçonaria, em Angra do Heroísmo. Faleceu em Lisboa, a 17 de maio de 1861.     Gabriel Pita (atualizado a 07.10.2016)

História Política e Institucional Personalidades

associações católicas

O direito de associação é um direito próprio do ser humano, reconhecido desde sempre. O facto de o homem se poder associar com outros para alcançar determinados objetivos ou finalidades em vista da sua realização pessoal e comunitária é algo inalienável, que não pode ser eliminado por nenhuma entidade humana. Tanto os filósofos como os teólogos e os juristas têm defendido esse direito da pessoa humana. O magistério pontifício sempre reivindicou para o cidadão o direito de fundar e pertencer a associações no campo civil, social, profissional e religioso. Assim o fizeram Leão XIII (na Rerum Novarum, de 15/05/1891), Pio XI, Pio XII, João XXIII, Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI, e Francisco. Na Exortação Apostólica Christifideles Laici, o Papa João Paulo II refere-se “às formas agregativas de participação”, falando de “uma nova era agregativa” dos fiéis leigos: “ao lado do associativismo tradicional e, por vezes, nas suas próprias raízes, brotaram movimentos e sodalícios novos, com fisionomia e finalidade específicas: tão grande é a riqueza e versatilidade de recursos que o Espírito infunde no tecido eclesial e tamanha é a capacidade de iniciativa e a generosidade do nosso laicado” (n.º 29). Muitas outras intervenções deste Papa (em particular no congresso mundial dos movimentos eclesiais, em 1998) demonstram o seu interesse pela promoção da vocação laical e das associações de fiéis. O Papa Francisco, ao receber os participantes de um congresso, afirmou: “Caros irmãos e irmãs, vós trouxestes já muitos frutos à Igreja e ao mundo inteiro, mas trareis outros ainda maiores com a ajuda do Espírito Santo, que sempre suscita e renova dons e carismas, e com a intercessão de Maria, que não cessa de socorrer e acompanhar os seus filhos. Ide para a frente: sempre em movimento. […] Não pareis! Sempre em movimento!” (FRANCISCO, 2014). A formulação jurídica do direito de associação como fundamental não existe no Catecismo da Igreja Católica (CIC) de 1917. Só a encontramos no Código de Direito Canónico (CDC) de 1983, por influência da doutrina e do Concílio Vaticano II, com o contributo anterior de numerosos estudiosos canonistas e teólogos. A limitação do primeiro Código não é tanto a falta de reconhecimento do direito de associação, mas sobretudo a sua não explícita afirmação e o não encorajamento do fenómeno associativo. A nível eclesial, sempre houve movimentos e associações, como comprova a vida e a evangelização da Igreja. Na Constituição da República Portuguesa encontramos vários artigos que caracterizam o fenómeno associativo como um direito fundamental do cidadão português: 46.º, 51.º, 247.º, 253.º, 270.º. O n.º 1 do artigo 46.º é explícito na proteção e defesa do direito de associação: “Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respetivos fins não sejam contrários à lei penal”. Depois dos cânones sobre as associações de fiéis em geral (cc. 684-699), o título ´XIX do CDC de 1917 regulamenta as associações de fiéis em particular (cc. 700-725) com estes tipos: Ordens Terceiras Seculares (cc. 702-706), que são associações approbatae; Confrarias (cc. 707-719), que podem ser constituídas só por formal ereção de decreto (can. 708); Pias Uniões, para as quais é suficiente a aprovação e que também podem ser eretas (can. 708); e ainda Arquiconfrarias e Uniões Primárias. (cc. 720-725). Quanto à aprovação, o CDC de 1917 prevê dois tipos de associações: as associações eclesiásticas, eretas e dirigidas pela autoridade eclesiástica e que adquirem personalidade jurídica; e as associações laicais, dirigidas por leigos, as quais podem ser probatae ou laudatae pela autoridade eclesiástica. Estas não têm o seu ser da autoridade eclesiástica, não são governadas por ela, e portanto não podem chamar-se erectae com personalidade jurídica. Nem sequer têm os seus estatutos e a sua organização interna aprovados por tal autoridade. São dirigidas por leigos, segundo os estatutos; são laicais, não eclesiásticas. Assim, ser associação “laical” não significava que os seus membros fossem só leigos, mas sim que a mesma não tinha sido ereta pela autoridade eclesiástica ou que não tinha sido aprovada juridicamente por esta. Tratava-se de associações constituídas por fiéis por sua própria iniciativa, e por eles governadas para fins espirituais ou caritativos. Mas estas associações não estavam fora da vigilância do Bispo: embora ele não as pudesse governar, olhava pela fé e bons costumes das mesmas. O CDC de 1917 considerava só as associações eclesiásticas, enquanto sujeito típico de direitos e de deveres no ordenamento jurídico eclesiástico, não se ocupando das associações laicais enquanto tal. Eram elas: as associações louvadas, de natureza privada (a autoridade eclesiástica limitava-se a louvar o fim da associação); as associações aprovadas, que entravam na estrutura organizativa da Igreja, mas sem possuir a personalidade jurídica; e as associações eretas, que entravam na estrutura organizativa da Igreja com a atribuição da personalidade jurídica depois da ereção formal. O fenómeno associativo na Igreja foi referido em alguns documentos do Concílio Vaticano II. Veja-se, por exemplo Apostolicam Actuositatem para o direito de associação dos leigos, e Presbyterorum ordinis para o direito de associação dos presbíteros. “A liberdade associativa dos fiéis não é uma espécie de concessão da autoridade, mas brota do Batismo, sacramento que convoca os fiéis leigos à comunhão e missão na Igreja” (Lumen Gentium, n.º 37). O Vaticano II delineou o contexto onde se deve situar o fenómeno associativo e apresentou o seu fundamento eclesiológico: o direito de associação dos fiéis, como modalidade típica de participação na única missão da Igreja. “Na Igreja, a diversidade de ministérios, mas unidade de missão” (Apostolicam ctuositatem, n.º 2); a distinção de ministérios, na única missão, em razão da sua condição ontológico-sacramental. O Concílio não emite uma qualificação jurídica das associações, pois essa não era a sua intenção e função. Descrevendo as várias relações das associações com a hierarquia, oferece uma interessante catalogação das associações nascidas da livre iniciativa dos fiéis: associações simplesmente constituídas por leigos, associações louvadas ou recomendadas, associações explicitamente reconhecidas, associações electas et particulari modo promotae. No fenómeno associativo e nas suas várias manifestações (grupos, agregações, movimentos, comunidades, pias uniões, confrarias, ordens terceiras, institutos, etc.), manifesta-se uma peculiar realização da comunhão eclesial: “Portanto, o apostolado em associação responde com fidelidade à exigência humana e cristã dos fiéis e é, ao mesmo tempo, sinal da comunhão e da unidade da Igreja em Cristo. [...] O apostolado associativo é de grande importância também porque, nas comunidades eclesiais e nos vários meios, o apostolado exige com frequência ser realizado mediante a ação comum. As associações criadas para a ação apostólica comum fortalecem os seus membros e formam-nos para o apostolado. [...] É absolutamente necessário que se robusteça a forma associada e organizada do apostolado no campo de atividades dos leigos” (Apostolicam Actuositatem, n.º 18). Analisando esta problemática à luz do CDC de 1983, pode-se concluir que o can. 215 é fundamental para a formulação jurídica do direito de associação e do direito de reunião na Igreja. Este cânon, que provém do esquema da Lex Ecclesiae Fundamentalis, entretanto não promulgado, configura este direito e confere-lhe uma grande relevância. “Os fiéis podem livremente fundar e dirigir associações para fins de caridade ou de piedade, ou para fomentar a vocação cristã no mundo, e reunir-se para prosseguirem em comum esses mesmos fins” (can. 215). O texto latino não emprega o termo “ius”, mas a expressão “integrum est” (SISTACH, 2012, 509). A liberdade dos fiéis no governo das associações privadas é muito ampla, enquanto nas associações públicas é mais limitada. O can. 299 estabelece que os fiéis têm direito, mediante um acordo privado entre eles, de constituir associações privadas. A causa eficiente desta realidade associativa é a vontade dos fiéis que se associam. O legislador começa por ressalvar que os institutos de vida consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica são de outro género, não sendo consideradas associações. Estes Institutos e Sociedades têm normas próprias (cc. 573-746). As normas consagradas às Associações estão legisladas nos cc. 298-329, na seguinte ordem: can. 298, §1 – associações no interior da Igreja para promoverem finalidades próprias da Igreja; cc. 298-312 – normas comuns para todos os tipos de associações; cc. 312-320: normas sobre as associações públicas de fiéis; cc. 321-326 – normas sobre as associações privadas; cc. 327-329 – normas para as associações de leigos. As finalidades das associações são: fomentar uma vida mais perfeita, promover o culto público ou a doutrina cristã, ou outras obras de apostolado, promover o trabalho da evangelização, exercício de obras de piedade ou de caridade, informar a ordem temporal com o espírito cristão. Podem ser membros destas associações todos os fiéis, clérigos, ou leigos, ou clérigos e leigos. Consoante o tipo dos seus membros, podem ser distinguidas: as associações clericais que, sob a direção de clérigos, assumem o exercício da ordem sagrada e são reconhecidas como tais pela autoridade competente (can. 302); as associações religiosas, que vivem a espiritualidade de um Instituto Religioso e tendem à perfeição cristã, tomando o nome de Ordens Terceiras ou de Associações (can. 303; e ainda as associações laicais, que são formadas por leigos, com as finalidades do can. 298. Devem cooperar com outras associações de fiéis na pastoral, e preparar devidamente os leigos (cc. 327-329). As associações não clericais podem ser presididas por leigos (can. 317, §3). Quando o Bispo dá o seu consentimento por escrito para a ereção de uma casa religiosa, o mesmo vale para a ereção, na mesma casa ou na igreja a esta anexa, de uma associação própria do Instituto (cc. 317, §2; 312, §2). As associações que foram constituídas por privilégio apostólico podem entrar numa Diocese, desde que recebam o consentimento escrito do Bispo diocesano (can.312 §2). Estas associações devem cooperar com as obras de apostolado existentes na diocese, sob a vigilância Ordinário do Lugar (can. 311). Qualquer associação pública ou privada tem de possuir os seus estatutos (can. 94) nos quais se determinam: o nome da associação; o fim ou objetivo da associação; a sede; o governo; o património; as condições de ingresso e pertença; o modo de agir, tendo em conta o meio em que trabalham (can. 304). Todas estas associações devem ser acompanhadas espiritualmente por um Assistente, normalmente presbítero, nomeado pela autoridade eclesiástica competente (cc. 317, §§1-3; 324, §2). A capacidade jurídica das associações está definida no CDC, nos respetivos Estatutos, e nas normas de direito particular e direito próprio. Elas podem intervir eclesial e socialmente, e administrar bens (cc. 319; 325). A supressão das associações deve realizar-se de acordo com o CDC (cc. 320, 326), os Estatutos, e as normas de direito particular e direito próprio. O CDC usa a distinção entre associações públicas e associações privadas, embora na linguagem corrente tenhamos outras denominações: confraria, irmandade, ordem terceira, fraternidade, grupo, movimento, etc. As associações públicas são eretas pela autoridade eclesiástica, para conseguir alguns fins reservados natura sua à hierarquia e outros fins que não tenham sido conseguidos pela iniciativa privada; são constituídas ipso iure pessoas jurídicas públicas e agem nomine Ecclesiae, sob a superior direção da autoridade eclesiástica (can. 116). Todas as suas ações abrangem a autoridade eclesiástica, supondo uma relação de quase identificação com ela. Uma associação não é pública porque tem um fim geral eclesial, porque teve um reconhecimento da autoridade eclesiástica, porque tem um carácter de internacionalidade, mas porque entra a fazer parte da estrutura Hierárquica da Igreja, conseguindo fins propriamente institucionais, como estabelece o can. 301, §1. As relações com a hierarquia – Santa Sé, conferência episcopal, bispo diocesano –estão definidas nos cc. 322 e 312, §1. As associações privadas são constituídas por fiéis mediante acordos privados para conseguir fins espirituais, e no can. 298 prevê-se que a sua atividade se desenvolva sob a sua direção e moderação; podem adquirir personalidade jurídica privada. O conceito “privado” não significa, portanto, “sem importância eclesial”. O critério que distingue associações públicas e associações privadas é dado pelo concurso do critério subjetivo e do critério objetivo: o sujeito da constituição das associações e a sua finalidade específica. As associações e os movimentos não podem descurar a comunhão eclesial: “É sempre na perspetival da comunhão e da missão da Igreja e não em contraste com a liberdade associativa, que se compreende a necessidade de claros e precisos critérios de discernimento e de reconhecimento das associações laicais, também chamados ‘critérios de eclesialidade’” (JOÃO PAULO II, 1988, n.º 30). Os movimentos e associações devem assim seguir critérios de eclesialidade que os introduzam na esfera da comunhão eclesial. Devem ter, pois, a responsabilidade em professar a fé católica. Com efeito, uma clara adesão à doutrina da fé católica e ao magistério da Igreja, que a interpreta e a proclama, é sem dúvida condição indispensável para que uma realidade possa existir como tal na Igreja. Também é necessário encontrar um equilíbrio entre dimensão pessoal e comunitária, entre a pertença à Igreja e a pertença ao grupo, entre empenho de oração e coerência de vida, entre valorização da vocação específica dos leigos e reconhecimento da função eclesial da hierarquia, entre autonomia de vida e atividade de grupo. Outro ponto a ter em conta é a conformidade com as finalidades da Igreja. De facto, desempenham atividades conforme à finalidade da Igreja – ou seja à evangelização – todas aquelas associações que se propõem fins espirituais, religiosos, formativos, pastorais, obras de piedade, de caridade, de misericórdia. A comunhão com os Pastores também é importante. A vontade de uma plena comunhão com o Papa, centro perpétuo e visível da unidade da Igreja universal, e com o bispo, “princípio visível e fundamento da unidade da Igreja particular” (Lumen Gentium 22) traduz-se concretamente na disponibilidade em acolher: os princípios doutrinais e orientações pastorais do bispo da diocese; a sua ação de coordenação pastoral que tem em vista harmonizar a atividade dos fiéis e a conjugá-la com o bem comum da Igreja; a sua presença através de um presbítero; o reconhecimento da legítima pluralidade das formas associativas na Igreja. Pede-se de cada associação uma atitude de respeito, de estima e de abertura em relação aos outros grupos e movimentos; e tal atitude demonstra-se verdadeira se se traduz numa disponibilidade real, no respeito pelos outros, sem constituir uma “capelinha” ou um grupo fechado, e na disponibilidade em colaborar com outras associações. Por último refira-se que o direito canónico de 1983 também prevê os “frutos espirituais” como objetivo a atingir pelas associações e os movimentos. Frutos espirituais são aqueles elementos de relevo sobrenatural que acompanham, a uma certa distância de tempo, a obra de uma associação, movimento, grupo, etc. e representam, em certo sentido, a contraprova dos autênticos dinamismos espirituais que neles e através deles se exprimem: a oração, o estilo de pobreza, a caridade, o florescimento de vocações, a coragem da evangelização (catequese, programas de pastoral) e a identificação com o carisma instituto de vida consagrada. De acordo com o can. 312, as associações eclesiais em Portugal são eretas e/ou aprovadas pelo bispo diocesano ou pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), de acordo com a sua natureza. Isto não impede que associações portuguesas possam pedir à Santa Sé a sua aprovação como internacionais e/ou mundiais. Nesse caso, terá de haver documentação e pareceres que apoiem a solicitação. A CEP publicou alguns decretos sobre as normas gerais das associações de fiéis e sobre o estatuto canónico das Misericórdias. A Comissão Episcopal do Laicado e da Família assume responsabilidades pastorais na promoção e coordenação do apostolado das associações e movimentos. A nível diocesano, há também os secretariados e/ou comissões, conforme a decisão do respetivo Bispo.  A nível nacional existe uma estrutura de comunhão e de unidade das diversas associações de fiéis, movimentos eclesiais e novas comunidades de apostolado dos leigos, com a designação de Conferência Nacional das Associações de Apostolado dos Leigos. Trata-se de uma pessoa coletiva privada canónica, com estatutos próprios, aprovados pela CEP a 5 de maio de 2011. As suas finalidades principais são: comunhão entre os seus membros, discernimento cristão das realidades contemporâneas, maior unidade de espírito e de ação. Uma lista pormenorizada das associações existentes em cada Diocese encontra-se no Anuário Católico de Portugal. Focando a atenção na Diocese do Funchal, pode dizer-se que, ao longo da sua história de 500 anos, há inúmeras páginas recheadas de labor apostólico das suas associações: confrarias, irmandades, associações de diverso tipo e movimentos. Sobretudo após o Concílio Vaticano II, os Bispos diocesanos incentivaram o apostolado laical organizado, de modo que os leigos pudessem corresponder à sua vocação e missão. Neste contexto, serão feitas algumas notas sobre o pontificado de D. Francisco Santana, Bispo diocesano de 1974 a 1982, cuja ação foi muito relevante no incentivo e na promoção das associações de fiéis leigos na Madeira, destacando os principais momentos e acontecimentos deste processo. Poucos meses depois da sua entrada solene na Diocese, D. Francisco convocou o Conselho Diocesano do Apostolado dos Leigos, “constituído por quantos, acedendo ao Decreto conciliar sobre o apostolado dos leigos (v. nº 26) e aos apelos do Santo Padre Paulo VI (v. motu proprio de 6 janeiro 1967) receberam e aceitem o convite para colaborarem por esta forma, na dinamização e trabalho pastoral da Igreja diocesana” (CDAL, 1.ª reunião). Seguiu-se o decreto de criação do Conselho Diocesano do Apostolado dos Leigos. As três primeiras páginas contêm uma reflexão sobre o mistério da Igreja, em que o bispo discorre sobre os carismas: “O apostolado dos leigos é participação na própria missão salvadora da Igreja e são especialmente chamados a torná-la presente e ativa, para que seja o ‘sal da terra’. Deste modo, todo e qualquer leigo é, ao mesmo tempo, testemunha e instrumento vivo da missão própria da Igreja” (CDAL, 1.ª reunião, dec., p. 2). E prossegue: “Os leigos da Igreja devem ter consciência, da função utópica (cf. Ernst Bloch) da fé cristã que nada tem de alienante do homem e da atividade humana, mesmo quando intimamente e conscientemente unidos à hierarquia estabelecida pelos Apóstolos segundo a vontade de Cristo e seguindo as práticas religiosas por Cristo instituídas” (Id., Ibid., p. 3). Considera o prelado diocesano que, após vários meses de estudo da comissão preparatória dos documentos conciliares e da situação real da Igreja diocesana, e com base no motu proprio de Paulo VI de 6 de janeiro de 1967 (I e III, 9), e na carta enviada à Diocese pelo Santo Padre em 14 de junho de 1974, é altura de declarar instituído o Conselho Diocesano do Apostolado dos Leigos. Determina ainda “nomear para este Conselho, e por um período de dois anos, se antes nada for determinado em contrário, os leigos adultos e jovens, apresentados pelas diversas Associações e Movimentos católicos e ainda pelas Paróquias, cujos nomes constam de um elenco anexo a este decreto” […] e entende “Determinar que todas as Obras, Movimentos, Associações ou Grupos de leigos, quer sejam de âmbito diocesano, ou mesmo nacional ou internacional enquanto atuarem na Diocese, ou regional, paroquial ou de área menor, reconheçam o Conselho Diocesano do Apostolado dos Leigos como superior na escala hierárquica e como elo de ligação entre si e com o Conselho de Pastoral (a instituir-se), com o Conselho Presbiteral e com o Bispo da Diocese”, bem como “recomendar a urgência de serem convenientemente instituídos, em todas as Paróquias da Diocese, com a colaboração dos respetivos Vigários, os Conselhos paroquiais (CoPar), cujo financiamento se deve articular com este Conselho Diocesano do Apostolado dos Leigos” (Id., Ibid., p. 4). A 24 novembro 1974, tem lugar uma reunião com vários pontos de relevo, como: o decreto de criação do Conselho, apresentação dos membros do Conselho, comentário à alocução do Santo Padre de 02/10/1974, relativa ao papel dos leigos, discussão sobre o funcionamento do Conselho, escolha dos membros do Secretariado, síntese e discussão das respostas ao questionário enviado. Nos apontamentos redigidos à mão por D. Francisco Santana, podemos ler: “Não é uma simples reunião de alguns leigos, não é uma organização ou uma associação que se pretende criar, mas é um Conselho diocesano. Chamo a atenção, desde já, para esta palavra ‘Conselho’ que deve orientar todos os nossos pontos de vista e todo o nosso trabalho. É um Conselho da Diocese” (CDAL, 1.ª reunião, s.p.). A documentação da Comissão Preparatória do Conselho Diocesano do Apostolado dos Leigos, cuja primeira reunião teve lugar nos dias 15 e 16 de junho de 1974, menciona que os seus membros são sete. “Foi uma Assembleia de cristãos da Diocese, no Seminário Maior, que teve como tema de reflexão: ‘As carências de apostolado e a oportunidade de ereção do Conselho diocesano do apostolado dos leigos’. Estiveram presentes cerca de 180 católicos responsáveis, integrados ou não em organizações e movimentos católicos. Concluiu ser oportuna e necessária a criação do ‘Conselho’, tendo eleito uma Comissão preparatória de 7 pessoas. Neste encontro, o médico Dr. Luciano Castanheira fez uma intervenção sobre o decreto Apostolicam Actuositatem do Concílio Vaticano II.” Esta Comissão passou a reunir-se mensalmente. A 8 de agosto de 1974, fez circular o primeiro documento, contendo as bases para a constituição do Conselho diocesano do apostolado dos leigos e pedindo sugestões. O segundo documento é escrito com base nessas críticas e sugestões, que não foram tantas como se esperava (reunião da C.P., 24 novembro 1974, CDAL, 1.ª reunião). Os leigos são envolvidos na organização da Jornada Eucarística Diocesana de 17 junho 1976, com procissão desde o Estádio dos Barreiros até à Sé. Nos anos seguintes repete-se esta efeméride, assim como outras iniciativas do apostolado dos leigos. Destaque-se ainda o documento-base sobre os CoPar, que representou outro impulso para o envolvimento dos leigos na vida eclesial. “Os Conselhos paroquiais são um órgão de pastoral, ordenado para despertar o espírito missionário da Paróquia, por forma a que todos se sintam membros corresponsáveis na comunidade paroquial». Possíveis atividades para estes Conselhos: liturgia, catequese, cultura religiosa, recoleções e retiros, formação humana e cristã da família, entreajuda fraterna, emigrantes, sentido do trabalho humano e condições da sua prestação, formação política social, meios de comunicação social, atividades recreativas e culturais, execução de trabalhos burocráticos” (CDAL, 1.ª reunião). A 22 de junho de 1975, tem lugar uma reunião do CDAL, destinada à análise do documento-base dos CoPar. Na ocasião, o bispo profere uma alocução acerca da missão da Igreja e do papel dos leigos. Entre 1975 e 1978, realizaram-se várias reuniões e assembleias do CDAL, que manifestam o dinamismo do apostolado laical; destaque-se a assembleia realizada em 1978, em que foram abordados os temas evangelização das paróquias madeirenses e a doutrina social da Igreja no contexto madeirense. De notar que, em várias ocasiões, houve jornadas de formação com oradores vindos de Lisboa, que discursaram sobre o papel dos leigos: Mário Pinto, Luís Marinho Antunes, outros (in CDAL, 1ª reunião). De 6 a 8 de dezembro de 1975, o CDAL organizou um Curso de preparação para os monitores dos CoPar. Daqui por diante irão suceder-se diversos encontros em vários lugares da Diocese, a fim de lançar os CoPar. Arciprestado do Porto Moniz (março e abril de 1976); Arciprestado do Funchal-suburbano (julho de 1976); Arciprestado do Funchal-centro e do Funchal-suburbano (julho de 1976; Paróquia da Nazaré (abril de 1976). Os novos CoPar foram constituídos, com aprovação dos nomes, sob proposta dos Párocos (anos 1976, 1977, ss). Existem atas das reuniões dos padres dos Arciprestados acerca do documento “Conselhos Paroquiais”. Para concluir esta nota sobre o papel de D. Francisco Santana na promoção do associativismo laical, refira-se a criação do Movimento Jovens Cristãos da Madeira, que dará um grande impulso à pastoral juvenil, orientando os jovens para a vida cristã, no meio de uma sociedade em grande alvoroço social e político, pouco tempo depois da revolução de 25 de Abril de 1974. No pontificado de D. Teodoro de Faria, o empenhamento dos leigos em vida associativa prosseguiu, pautando-se por caraterísticas próprias. Saliente-se, por exemplo, o congresso de pastoral juvenil de 1986. Um texto de D. Teodoro de Faria, “Os jovens e o futuro da nossa terra” (s.d.), analisa as diversas gerações de fiéis, a fé, a Igreja, a família, a escola, o ensino na UCP, afirmando o primado dos valores espirituais. O congresso foi preparado em diversas fases; a terceira realização foi de 17 a 20 de julho, estando os primeiros dias reservados aos delegados e o último aberto à participação de todos os jovens e familiares. António Carrilho, Bispo diocesano desde 2007, procurou fomentar o apostolado laical, na continuidade dos seus predecessores, com as suas visitas pastorais, agendamento de jornadas diocesanas do apostolado dos leigos, apoio a diversas atividades. As associações na Igreja não se justificam só pela inúmeras vantagens que comporta a ação associada pelo apostolado, mas porque sublinham uma exigência conatural à Igreja e ao ser cristão, a de ser comunhão a todos os níveis e aproveitar todas as oportunidades para construir comunidade. O fenómeno associativo na Igreja só tem sentido quando, consciente dos seus carismas, contribui para o anúncio do Evangelho, incrementa a unidade e a reconciliação e é capaz de ver a Igreja numa perspetiva católica. Os movimentos e associações eclesiais são formas privilegiadas de realizar uma vocação na Igreja, revitalizando a consciência batismal, aprofundando o apelo à santidade que a todos é dirigido e ajudando a configurar caminhos de vida e espiritualidades ao serviço de uma identidade cristã e do crescimento do Reino de Deus. Mas não são a única forma de concretizar a vocação cristã. Por outro lado, há aspetos negativos da experiência das associações e dos movimentos. Os movimentos colhem geralmente um aspeto do Evangelho com a sua espiritualidade. O risco reside nas leituras parciais do Evangelho, na fixação numa mentalidade teológica fechada, na não aceitação dos membros da hierarquia consoante as sensibilidades, na absolutização da própria experiência, entre outros. Evolução histórica das associações e movimentos da Diocese do Funchal (1989-2015): - 1989 (PEREIRA, 1989, II, 412): Ação Católica, Jovens Cristãos da Madeira, Movimento dos Estudantes Católicos Madeirenses, Corpo Nacional de Escutas, Movimento Esperança e Vida, Movimento de Educadores Católicos, Associação Católica Internacional a serviço da Juventude Feminina, Legião de Maria, Associação Católica de Enfermagem e Profissionais de Saúde, Cursos de Cristandade, Obra de Santa Zita, Equipas de Casais de Nossa Senhora, Centro de Preparação para o Matrimónio, Escola de Pais, Movimento de Defesa da Vida, Congregação de Nossa Senhora e Filhas de Santa Maria, Ordem Terceira de S. Francisco de Assis, Conferências de S. Vicente de Paulo, Obra de S. Francisco de Sales, Damas da Caridade, Lactário de Assistência a Crianças fracas, Escola-Creche de Santa Clara, Patronato de Nossa Senhora das Dores, Abrigo de Nossa Senhora de Fátima, Casa do Gaiato do Padre Américo, Associação dos Cooperadores Salesianos. - 2007 (elenco da Agência Ecclesia): Ação Católica dos Meios Independentes (ACI); Ação Católica Rural; Ação Católica dos Enfermeiros e Profissionais de Saúde; Associação dos Cooperadores Salesianos; Associação Portuguesa dos Centros de Preparação para o Matrimónio; Associação de Professores Católicos; Convívios Fraternos; Corpo Nacional de Escutas; Cursos de Cristandade; Equipas de Nossa Senhora; Legião de Maria; Liga Eucarística; Liga Operária Católica; Movimento de Apoio à Grávida; Movimento de Apostolado das Crianças (MAC); Movimento dos Jovens Cristãos da Madeira; Movimento dos Estudantes Católicos Madeirenses; Movimento da Mensagem de Fátima; Movimento dos Educadores Católicos; Movimento Esperança e Vida (MEV); Caminho Neocatecumenal; Obra de Santa Zita; Renovamento Carismático; Sociedade de São Vicente de Paulo; Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude Feminina; Equipas Jovens de Nossa Senhora; Filhas de Maria; Movimento de Defesa da Vida; Movimento dos Trabalhadores Cristãos; Oficinas de Oração e Vida; Movimento dos Focolares e Movimento Apostólico de Schoenstatt. Há ainda os Institutos Seculares, a Companhia Missionária do Coração de Jesus, os Cooperadoras da Família (Obra de Santa Zita) e as Servas do Apostolado. - 2015 (informação facultada pela Diocese do Funchal): Movimentos ligados à vida consagrada: Maria Rivier (Irmãs da Apresentação de Maria), Amigos da Irmã Wilson (Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias), Associação dos Cooperadores Salesianos, Damas da Caridade de S. Vicente de Paulo, Associação de São Vicente de Paulo, Ordem Franciscana Secular, Ordem Terceira do Carmo, Movimento por um Lar cristão (Obra de Santa Zita), Movimento de Apoio à Grávida, Juventude Dehoniana, Juventude Hospitaleira, Juventude Mariana Vicentina, Juventude Salesiana, Casais da Verbum Dei. Movimentos de Leigos: Associação Católica Independente, Ação Católica Rural, Associação Católica Internacional ao Serviço da Juventude Feminina, Equipas Jovens de Nossa Senhora, Equipas de Nossa Senhora, Legião de Maria, Liga Operária Católica, Filhas de Maria, Movimento Esperança e Vida, Cursos de Cristandade, Renovamento carismático, Oficinas de Oração, Jovens Cristãos da Madeira, Convívios fraternos, Corpo Nacional de Escutas (CNE), Movimento de Estudantes Católicos Madeirenses (MECM), Movimento Apostólico de de Schoenstat, Movimento Mensagem de Fátima.    M. Saturino da Costa Gomes (atualizado a 04.10.2016)

Religiões Sociedade e Comunicação Social

antilhas / índias ocidentais

O mais importante da ligação da Madeira com as Antilhas, a partir do séc. XVII, prende-se com as ilhas subordinadas ao império britânico. A partir de meados do séc. XIX, acontece uma importante vaga migratória diretamente da Ilha para as Antilhas inglesas para substituir os escravos nas plantações, onde se definira uma política de abolição do trabalho escravo. Esta rota emigratória manteve-se entre a Madeira e Antigua, Demerara, Guiana, Grenada, Jamaica, Nevis, Saint Kitts, Saint Vincents e Trinidad. Para o vinho, teremos as ilhas de Antigua, Barbados, Berbice, Bermudas, Dominica, Curazau, Dominicana, Honduras, Jamaica, Martinica, Montserrat, Nevis, Saint Thomas, Saint Christopher, Anguilla, Saint Vincent e Trinidad. Palavras-chave: comércio; emigração; vinho; Caribe; Antilhas. Por esta designação se entende todas as ilhas da América Central que, a partir do séc. XVII, entram na esfera de domínio e controlo do império britânico, com quem a Madeira teve fortes laços comerciais, baseados, de forma especial, no vinho e na emigração de populações para suprir a falta de mão-de-obra ou por força da perseguição aos seguidores do Rev. Robert Kalley. Esta mobilidade humana e comercial concretiza-se pelo facto de a Madeira manter uma relação direta com todo o mundo atlântico, desde o séc. XV, por ter sido o primeiro espaço de ocupação europeia, o ponto de partida em termos da ocupação de novos espaços e ilhas, e, por fim, pela sua situação geográfica como base de apoio e de afirmação do império colonial britânico. Aliás, a Ilha serviu de modelo para Portugueses e Castelhanos neste afã povoador dos espaços insulares atlânticos e das Antilhas. Assim, os Castelhanos viram na Ilha a resposta para as dificuldades da sua ação institucional nas pequenas ilhas do Atlântico, como se depreende do desejo manifestado, em 1518, pelas autoridades das Antilhas em resolver a difícil situação das ilhas de Curaçao, Aruba e Isla Margarita, com o recurso ao modelo madeirense de povoamento. Há uma ligação direta da Ilha às Antilhas, que se perpetua no tempo, por diversas razões. A primeira situação de proximidade é provocada pela expansão da cultura da cana-de-açúcar. Os madeirenses intervêm na sua expansão em Santo Domingo, Cuba e Jamaica. Em 1647, encontramos referência a um capitão francês que pretendia contratar um mestre de açúcar madeirense para a ilha de Saint Kitts. Esta desusada intervenção da Madeira, a partir do séc. XVII, resulta ainda do facto de a sua posição geográfica o permitir, sendo considerada a última etapa antes da chegada às Antilhas. A Madeira estava às portas deste novo mundo e abria-as aos europeus desta rota, o que implicava e facilitava também uma intervenção ativa neste processo, estabelecendo-se pontos entre a Ilha e as Antilhas, em termos comerciais e de movimentos emigratórios. As Antilhas serão, a partir de meados do séc. XIX, a solução fácil para os excedentes populacionais da Ilha que, a partir de então, atuam como emigrantes, muitas vezes com a função de substituir a mão de obra negra, quando, no passado, haviam assumido a posição de negreiros, de lavradores e de técnicos experimentados nas indústrias ligadas à atividade agrícola. Estes madeirenses que partem na última vaga do séc. XIX são obreiros da situação das Antilhas nos sécs. XX e XXI, tornando-se a sua presença notória em muitas ilhas, expressa através de múltiplas manifestações culturais, donde se destaca a terminologia e a culinária. Por outro lado, parece existir, na maioria destes madeirenses que partem neste século, uma forte consciência da identidade ilhoa, que os mesmos pretendem seja diferenciadora dos demais Portugueses, afirmando-se como madeirenses e não gostando de ser considerados Portugueses. As Antilhas: séculos XVII-XIX São diversas as designações deste grupo de ilhas da América Central. Primeiro, por equívoco de Colombo, ficaram conhecidas por Índias Ocidentais (West Indies); depois, atribuiu-se-lhes a designação indígena, daí Antilhas. Este grupo insular é composto por várias ilhas. O processo europeu de reconhecimento e ocupação destas ilhas começou em 1492, com as três viagens organizadas por Cristóvão Colombo, entre 1492-1493, 1493-1496 e 1496-1500, com o reconhecimento das Baaamas, Cuba e Haiti, Jamaica, Trindade e Porto Rico. Todas estas ilhas começaram por ser, em 1492, de domínio espanhol, daí a designação de Antilhas Espanholas, permanecendo algumas nesta situação até à sua independência, a partir de 1865: República Dominicana (1865), Cuba (1898) e Porto Rico (1898). A partir dos princípios do séc. XVII, começou a disputa pela sua posse, sendo partilhadas com os Franceses, Holandeses e Ingleses. As Antilhas Francesas compreendem Martinica, Guadalupe (arquipélago composto por Grande-Terre e Bassse-Terre, La Désirade, Marie-Galante e as Îles Les Saintes), Saint-Barthélemy e São Martinho (lado francês). As Antilhas Neerlandesas, ou Holandesas, que surgem a partir de 1634, são formadas por dois grupos de ilhas, ficando um a norte das Pequenas Antilhas (Saba, Santo Eustáquio e São Martinho) e o outro ao largo da costa da Venezuela (Aruba, Bonaire e Curaçau). A presença britânica regista-se aqui a partir de 1612 e afirma-se na segunda metade da centúria. A ocupação das ilhas obedece a interesses estratégicos, comerciais e agrícolas, pois são estes que dão um novo impulso à produção açucareira. Quanto às Antilhas Britânicas, estas incluem: Bermudas, Saint Kitts, Barbados, Jamaica, Baamas, British Virgin Islands, Montserrat, Nevis, Angula, Tortola, Saint Croix, São Vicente, Saint Thomas, Dominica, Cartagena, Honduras, Trindade. Neste conjunto de Antilhas pequenas e grandes, regista-se, desde o séc. XVI, o estabelecimento de relações comerciais, relacionadas com o vinho e a emigração, que se processam em duas etapas: no decurso dos sécs.XVI e XVII, onde se destacam técnicos açucareiros para Cuba e Santo Domingo, bem como judeus, vindos da Ilha ou a partir de Pernambuco, e a partir de meados do séc. XIX, período em que se regista outra vaga migratória diretamente da Ilha para as Antilhas Inglesas, com o intuito de substituir os escravos nas plantações, onde se definira uma política de abolição do trabalho escravo, numa forma especial conhecida como indentured labour. Esta rota migratória manteve-se entre a Madeira e Antígua, Demerara, Guiana, Granada, Jamaica, Nevis, Saint Kitts, São Vicente e Trindade. Para o vinho, as ilhas de Antígua, Barbados, Berbice, Bermudas, Dominica, Curaçau, Dominicana, Honduras, Jamaica, Martinica, Montserrat, Nevis, Saint Thomas, Saint Kitts, São Vicente e Trindade. Na costa atlântica da América do Sul, temos ainda a considerar a Guiana, partilhada por Ingleses, Franceses e Holandeses, que se enquadra neste grupo das Antilhas. Originalmente, a Guiana Holandesa consistia em três colónias: Essequibo, Demerara e Berbice. Em 1814, os Holandeses entregaram esta região aos Ingleses, que, a partir de 1831, lhe atribuíram a designação de Guiana Inglesa. Entretanto, os Holandeses mantiveram o Curaçau e Suriname. Esta última área, também conhecida como Guiana Holandesa, ficou subordinada aos Neerlandeses desde 1667, com o chamado Tratado de Breda, realizado entre a República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos e o Reino da Grã-Bretanha, a 31 de julho de 1667, o qual pôs fim à Segunda Guerra Anglo-Holandesa através do controlo de rotas marítimas e do comércio, que decorreu entre março de 1665 e julho de 1667. Relativamente à Guiana Francesa, esta começou por ser um centro de negócios de comerciantes franceses, criado em Sinnamary (1624) e Caiena (1637). Esta última cidade foi ocupada por duas vezes pelos Holandeses (1664 e 1676), sendo legitimada a posse francesa pelo já referido Tratado de Breda. O comércio do vinho com as Antilhas deve-se a vários fatores. Primeiro, pelo facto de, a partir de meados do séc. XVII, os Ingleses terem escolhido a Madeira como base avançada para os seus interesses expansionistas no Atlântico, funcionando a Ilha como base de apoio e de reorganização das frotas militares e comerciais. Depois, pelo facto de ser um dos poucos vinhos europeus a suportar muito bem as mudanças de temperatura, atuando o efeito do calor como meio de envelhecimento do mesmo. Não deverá ser esquecido que um dos principais problemas da dieta de bordo das tripulações era a falta de vitamina C, que provocava o escorbuto, sendo o vinho um dos antídotos utilizados. Em relação às Antilhas, diz-se que o nome de Curaçau está relacionado com este facto, pois foi aqui que os Portugueses encontraram a cura do escorbuto, dando o nome à ilha. Comércio Uma das primeiras intervenções comerciais dos madeirenses nas Antilhas está relacionada com o comércio de escravos. Alguns ilhéus usufruíram de uma posição destacada nos entrepostos do tráfico negreiro em Santiago, São Tomé ou Angola, gozando mesmo, desde 1562, de privilégios especiais na captura de escravos para as suas fazendas ou para venda aos compatrícios que as possuíam. Outros procuravam intervir no rendoso contrabando, alargando os seus negócios até ao Brasil ou às Antilhas. Fascinados pela aventura destas paragens, muitos decidiram-se por uma intervenção direta, fixando-se em Santiago ou na costa da Guiné, pois que a situação de vizinho era condição obrigatória para participar neste tráfico negreiro. A comunidade madeirense residente em Santiago deveria ser numerosa, a avaliar pelos testamentos que chegaram às nossas mãos. Destes, merece especial referência o de Francisco Dias, morador na Ribeira Grande, que, pelo testamento de 1599, é apresentando como sendo um dos mais importantes mercadores de escravos empenhados no tráfico com a Madeira e as Antilhas. A permuta baseava-se, pelo lado africano, em escravos, a que se vieram juntar os produtos da terra, como o algodão, milho, cuscuz, chacinas, courama e sal, recebidos a troco de vinho, cereais e artefactos. Francisco Dias foi um, de entre muitos, dos que se lançaram na aventura, fixando morada na Ribeira Grande. Aí, foi escrivão do almoxarifado e memposteiro-mor da rendição dos cativos, atuando como um ativo agente do tráfico negreiro da costa africana próxima. Todo o empenho de Francisco Dias estava no tráfico com a vizinha costa da Guiné, sendo os cargos de memposteiro-mor dos cativos e de escrivão do almoxarife mais um meio para reforçar a sua posição. Era mercador e armador com uma rede de negócios, tendo como principais eixos as ilhas (Açores, Cabo Verde e Madeira), a costa da Guiné e as Antilhas Espanholas. Aqui, estávamos perante uma empresa de tipo familiar, onde atuavam, por exemplo, Álvaro, Diogo, João, Jorge e Lopo Fernandes. Este João Fernandes, filho de Álvaro Fernandes, morreu, ainda jovem, quando se encontrava em missão comercial na costa da Guiné, deixando os seus negócios entregues ao tio. Do outro lado do Atlântico, nos contactos com os mercados negreiros das Antilhas, representavam-no Manuel Diogo Cavalheiro, Álvaro Dias, Mariscal e Diogo Cavalheiro das Honduras. A partir da Madeira, o estreitamento das relações comerciais com as Antilhas inicia-se na segunda metade do séc. XVII, mas com a intervenção dos Ingleses. A política mercantilista inglesa definiu a hegemonia da burguesia comercial britânica, consolidada, na Madeira, com frequentes tratados luso-britânicos. A par disso, a afirmação do império colonial britânico nas Antilhas, com a ocupação da Jamaica (1654) e das demais ilhas, veio a valorizar a posição da Madeira como porto de escala e fornecedor de vinho e, mais tarde, de emigrantes. Com Oliver Cromwell, definiu-se um mercado de monopólio para a burguesia comercial inglesa, no qual a Madeira será um das pedras-base do processo. As leis inglesas de navegação de 1651, 1660, 1663 e 1665 definiram os contornos desta política mercantilista ao estabelecerem que todos os produtos entrados nos portos das colónias britânicas deveriam ser feitos sob pavilhão inglês. Assim, de acordo com a ordenança de 1663, as ilhas dos arquipélagos da Madeira e dos Açores detinham o exclusivo do fornecimento de vinho às colónias inglesas na América, África e Ásia. Foi assim que Barbados suplantou os portos brasileiros e angolanos no consumo do vinho Madeira, ainda no séc. XVII. Os dados da exportação para o ano de 1699 são esclarecedores desta mudança. Num total de 4987 pipas, temos as Antilhas em primeiro lugar, com 1303. Aqui, o protagonista deste tráfico é o comerciante inglês, sendo William Bolton o primeiro a definir os contornos desta realidade. Note-se que, de acordo com os registos de saída da Alfândega do Funchal entre 1650 e 1699, as embarcações inglesas dominam, de uma forma esmagadora, o comércio. A correspondência comercial de William Bolton para o período de 1696 a 171 é o testemunho do porto do Funchal como entreposto nas ligações e atividade com as Antilhas Inglesas. Ao vinho que seguia para Lisboa, junta-se outro, de embarque direto no Funchal pelos navios ou armadas. Em 1664, uma armada francesa com destino às Antilhas foi provida de 40 pipas. O vinho era conhecido como de beberagem, pelo que, segundo a tradição, estava isento de direitos. Ao longo do séc. XVIII, vários comboios que se dirigiam às Antilhas passavam pela Madeira, onde tomavam grandes quantidades de vinho, destacando-se o de dezembro de 1744, com 33 navios, e o de 1788, com 70 navios, que carregou 2000 pipas de vinho, a que se juntou outro, em outubro de 1799, com 60 navios, que carregou 3041 pipas. Em 1788, um comboio de 70 navios carregou 2000 pipas e outro, no ano seguinte, saído de Portsmouth com destino às Índias Ocidentais, comandado por Roger Curtis, com 96 navios, carregou 3041 pipas e meia pipa. Entre 16 e 21 de setembro de 1805, a frota das Antilhas, composta por 52 navios, lançou âncora. Depois, de 29 de setembro a 3 de outubro, atracaram no porto do Funchal as 60 embarcações da frota das Índias (17 navios mercantes e numerosos transportes). Os registos de saída da Alfândega do Funchal no séc. XIX assinalam a saída de vinho para gasto de embarcações estrangeiras. As colónias inglesas das Antilhas e da América do Norte foram o objetivo e o vinho o principal negócio. O vinho, que até então tinha como destino exclusivo o Brasil, passou também a ser conduzido para os novos mercados, que assumiram um lugar dominante a partir de finais da centúria. Aos portos de Pernambuco, Rio de Janeiro e Baía vieram juntar-se os de Nova Inglaterra, Nova Iorque, Pensilvânia, Virgínia, Maryland, Bermudas, Barbados, Jamaica, Antígua e Curaçau. No período de 1686 a 1688, das 688 pipas entradas em Boston, registam-se 266 da Madeira e 421 do Pico. Esta situação espelha uma realidade que marcará o comércio nas centúrias seguintes: os açorianos abasteciam, preferencialmente, os portos da América do Norte, levados pelo rumo dos baleeiros, enquanto os madeirenses faziam incidir os seus contactos nas Antilhas Inglesas e Francesas. Para a Madeira, a já referida correspondência comercial de William Bolton para o período de 1696 a 1714 permite reconstituir parte desse circuito comercial que dominou no séc. XVIII. Aqui, é evidente a definição de um circuito comercial hegemónico, delimitado pelos portos ingleses e das colónias da América Central e do Norte. As Antilhas (Curaçau, Barbados, Antígua, Nevis, Jamaica e Bermudas) surgem com uma posição destacada na importação de vinho, com 5005 pipas. William Bolton é o primeiro mercador inglês a enquadrar-se neste espírito, podendo a sua atividade comercial ser acompanhada através das cartas que nos deixou. Para as colónias inglesas das Antilhas, o vinho era o seu objetivo e principal negócio. O inglês John Ovington, que visitou a Madeira em 1689, afirma que “num cálculo modesto, a produção anual de vinho pode ser calculada em vinte mil pipas, sendo este número totalmente gasto. Pensa-se que oito mil serão bebidas na ilha, três ou quatro despendidas no tratamento ou melhoramento (através de aguardente destilada) e o restante exportado, principalmente para as Índias Ocidentais, especialmente Barbados, onde tem mais aceitação que os outros vinhos europeus” (ARAGÃO, 1981, 198). Um dos primeiros intervenientes neste negócio foi precisamente William Bolton. Sabemos da sua ação comercial com estas Índias através das já referidas cartas comerciais disponíveis, para o período de 1696 a 1714. Os navios saíam de Bristol, Dublin e Londres e, após escala no Funchal, seguiam para Antígua e Barbados. [table id=68 /] Para o período de 1780 a 1801, destaca-se a Jamaica como centro de redistribuição nas Antilhas: [table id=69 /] O momento de apogeu da exportação do vinho da Madeira para estes mercados situa-se entre finais do séc. XVIII e princípios do séc. XIX, altura em que a saída atingiu a média de 20.000 pipas. Mais de dois terços do vinho exportado destinavam-se ao mercado colonial americano, de que se destacam as Antilhas. Para o período de 1780-1799, a Ilha exportou 210.057 pipas, sendo 103.703 para as Antilhas. Duarte Sodré Pereira, governador e capitão da Madeira, comprometido com o comércio atlântico, dá-nos conta da situação do mercado no séc. XVIII. De acordo com o copista da sua correspondência, aquele esteve envolvido no comércio com Inglaterra, Lisboa, Estados Unidos da América, América Central (Barbados, Jamaica e Curaçau) e Brasil. As várias casas de vinhos inglesas mantinham laços estreitos com estas ilhas. Assim, por exemplo, a casa Phelps Page & Co. tinha uma rede de agentes, com especial incidência na Jamaica. Do mesmo modo, D. Guiomar de Sá de Vilhena troca vinho por cereais na Jamaica, Suriname e Santo Eustáquio. A firma Cossart Gordon & Co. manteve igualmente um comércio ativo com estas ilhas, de forma que, entre 1823 e 1834, regista-se: [table id=70 /] Muitas vezes, o retorno destas ilhas resumia-se a pipas vazias da Jamaica ou a carne de vaca, manteiga e farinha de Barbados. Entre 1831 e 1850, estas ilhas continuaram a receber importantes quantidades de vinho Madeira, o que significa igualmente que funcionariam como centros de redistribuição no Caribe. Só assim se justificam as 3464 pipas da Jamaica e as 2179 de Trindade. [table id=71 /] Para o séc. XIX, continuam a afirmar-se esta posição e interesse pelo vinho Madeira, no vasto universo insular das Antilhas. Assim, para o ano de 1843, temos: [table id=72 /] É evidente a afirmação do mercado das Caraíbas, dominado pelas colónias inglesas, com especial destaque para a Jamaica e Barbados. O centro de consumo estava nas Antilhas: o vinho Madeira era a bebida alcoolizada mais difundida. Bebia-se geralmente no sangaree, mistura de vinho, água e sumo de limão. Para os Ingleses, se o Porto é o vinho da metrópole, o Madeira é o vinho das Antilhas, mas também o das Índias. Este vinho corria nos serões de quase todas as ilhas, mas, em especial, na Jamaica, Barbados, Martinica, Santa Cruz, Santo Eustáquio e São Vicente. Emigração Desde o séc. XVI que notamos a presença de madeirenses nestas ilhas, seja como técnicos açucareiros, seja como agentes do tráfico negreiro. Contudo, a sua presença torna-se mais evidente numa segunda fase, quando a emigração madeirense atingiu o seu auge, na déc. de 40 do séc. XIX, tendo, para isso, em muito contribuído a perseguição aos protestantes (1844-1846), a crise do comércio do vinho Madeira, principal sustento das populações, a partir de 1830, e a fome que alastrou a toda a Ilha, em 1847. Entre 1834 e 1872, saíram da Ilha mais de 30.000 madeirenses, com destino ao Brasil e às Antilhas. Só a ilha de Demerara recebeu, entre 1841 e 1889, cerca de 40.000, enquanto o Havai, entre 1878 e 1913, atraiu mais de 20.000, na primeira grande leva da emigração madeirense para este destino, sendo, na centúria oitocentista, o principal motivo a questão religiosa em torno do Rev. Robert Kalley, pastor protestante e distinto médico que se fixara na Madeira em 1838, com o intuito de encontrar cura para a tuberculose da sua mulher, e que se tornou no principal chefe do movimento anglicano, arrastando consigo as gentes de Santa Cruz e Machico. As hostilidades, originadas pelo clero tradicional do Funchal, levaram à sua saída forçada em 1846, acompanhado de perto de 3000 madeirenses: 945 em navios portugueses e 2054 em ingleses. A 23 de agosto, 200 embarcaram no navio William. Primeiro, dirigiram-se às Antilhas menores (Trindade, Antígua e Saint Kitts) e daqui alguns passaram a Illinois, na América do Norte. Esta situação ia ao encontro dos interesses britânicos, uma vez que a abolição da escravatura tornava imprescindível o recrutamento de mão-de-obra livre. A segunda fase desta diáspora, mais importante do que a primeira, surge a partir de 1847, como resultado da grave crise vitivinícola. Perdidas as esperanças de uma imediata recuperação do mercado do vinho, o colono ou lavrador deixou-se aliciar pelas propostas enganosas de trabalho e bem-estar nas colónias britânicas. Um facto interessante, nesta conjuntura de fuga à fome, é que o movimento se retrai na época das vindimas, entre agosto e outubro, isto é, no momento em que era maior a procura de mão-de-obra na Ilha. Na déc. de 50, irremediavelmente perdida esta única fonte geradora de trabalho, o madeirense só tinha uma saída: a emigração. As gentes do norte abandonaram as terras e os seus miseráveis casebres, dirigindo-se à cidade, onde esperavam uma oportunidade para o salto até às promissoras Antilhas. Em 1854, dá-se uma paragem no movimento, nomeadamente de clandestinos, mercê de uma melhoria das condições da Ilha, propiciada pela iniciativa dos governadores civis. O fim do tráfico negreiro obrigava à procura de novas soluções e esta era uma delas, certamente a mais eficaz. Na déc. de 70, o fenómeno emigratório ganha novo vigor. Para isso, contribuíram o acelerar da crise económica e o reforço das promessas aliciadoras. Também as doenças que atacaram a cultura da vinha (o oídio, em 1852, e a filoxera, em 1872) deitaram por terra a única esperança económica dos madeirenses. Desta vez, o rumo é diferente: as Kanaka Islands (Sandwich ou Havai). Entre 1841 e 1889, Demerara manteve uma posição dominante enquanto destino da emigração madeirense, tendo recebido 36.724 emigrantes. Tais números dão conta de dois momentos da emigração para Demerara, a déc. de 40 e as de 70 e 80, coincidindo o último com o aparecimento de um novo destino, o Havai. Uma relação dos navios saídos com os emigrantes, no período de 11 de maio de 1854 a 11 de janeiro de 1855, reforça, mais uma vez, a posição dominante de Demerara, registando-se 88 navios para Antígua e 376 para Demerara. Devemos aqui realçar a iniciativa de alguns proprietários e consignatários de navios, como Diogo Taylor e João de Freitas Martins, este último proprietário de três embarcações: Christina, Divina Providência e Funchal. Demerara é, com efeito, nas décs. de 40 e 50, o “Eldorado do madeirense”, disputando esta posição nas décs. de 70 e 80 com o então recém-descoberto paraíso havaiano. Assim, só em 1841 terão partido mais de 4000 madeirenses para Demerara, chegando a comunidade portuguesa a representar mais de 30.000 residentes, maioritariamente da Madeira. A emigração clandestina é um fator determinante neste movimento para as Américas, dominadas pelas Antilhas e pelo Brasil, que assumem uma posição ímpar. Deste modo, torna-se difícil abalizar o valor numérico desta sangria na população da Ilha. Os números apontados pela imprensa madeirense da época são assaz elucidativos. Assim, de setembro de 1834 a junho de 1852, apontava-se que as saídas clandestinas correspondiam ao dobro das legais, que representavam 18.346 emigrantes. Depois, em 1845-1846, são referenciados 6000 clandestinos. Ainda na Ponta do Sol, no período compreendido entre abril de 1841 e outubro de 1852, outros 500. Note-se que, entre 1851 e 1853, regista-se apenas a saída de 1593 madeirenses com passaporte, quando os dados apontam a chegada de 2299 a Demerara, 281 a Antígua e 16 com a designação Índias Ocidentais, o que prova a importância da emigração clandestina. Para o período de 1843 a 1866, é possível acompanhar os destinos destes migrantes. Temos, portanto: [table id=73 /] Noutro registo de informação de 1846 a 1847, época de forte emigração madeirense, os destinos são parecidos. [table id=74 /] Mais uma vez, Demerara mantém-se como o principal destino desta emigração legal e clandestina. Em outubro de 1846, dos 16.297 emigrados, 5548 (54%) viajaram sem passaporte. No mesmo ano, aportaram em Demerara três embarcações com 547 passageiros clandestinos: a embarcação inglesa Palmira conduziu 160, enquanto o brigue português Visconde de Bruges, que saíra do Funchal com 25 passageiros, desembarcou 410 e outro bergantim português, Duas Anas, 171, quando, no Funchal, nele haviam embarcado apenas 71 com passaporte. Esta última embarcação, sete anos mais tarde, rumou ao mesmo destino, levando a bordo 173 passageiros clandestinos. Tais números são suficientemente elucidativos para demarcar a importância que assumiu na Madeira a emigração clandestina, ao mesmo tempo que demonstram a ineficácia da intervenção das autoridades locais no seu controlo. A disponibilidade de passaportes entre 1872 e 1915 permite acompanhar o movimento para estas ilhas, de forma legal, e, ao mesmo tempo, documentar a sua incidência geográfica. Apenas encontramos dados para as ilhas de Demerara, Antígua, Barbados, Trindade, Granada e São Vicente, sendo a maior incidência em Demerara, com 3732 pedidos de emigração. Pelo contrário, a ilha de Trindade regista apenas 539. A maior incidência registou-se no último quartel do séc. XIX, com 3312 pedidos. Por alvará de 4 de julho de 1758, fica estabelecida a obrigatoriedade do uso do passaporte, como forma de coibir a saída anómala de gentes da Ilha. Todavia, estavam longe os tempos da grande emigração e de afirmação desta forma de êxodo. Com o alvorecer da emigração para as colónias britânicas, o Governo Civil reclama esta medida moderadora do movimento emigratório. Em 1841, o governador civil chama a atenção ao oficial de visitas do porto para que não permitisse a saída de qualquer embarcação para Demerara, sem antes verificar se os seus passageiros eram portadores do passaporte e da licença respetiva da freguesia que os isentava de qualquer serviço ou encargo. Contudo, só em outubro de 1845 surge o primeiro caso, com o aprisionamento de 31 indivíduos no Porto Moniz, quando estes se preparavam para embarcar no iate Glória de Portugal, com destino a Demerara. Perante esta situação, o governador civil mandou publicar um edital sobre a emigração clandestina, alertando os intervenientes e cúmplices para as penas em que incorriam, de acordo com a portaria de 19 de agosto de 1842. Pela lei de 25 de maio de 1825, o capitão do navio incorria na pena de 400.000 réis, enquanto os passageiros, de acordo com a lei de 9 de janeiro de 1792, sujeitavam-se a 100.000 réis de multa. Estas medidas não alteraram em nada os planos da emigração clandestina, apenas aumentaram o risco dos seus intervenientes. Um exemplo disso é testemunhado em janeiro de 1846, quando o oficial do registo da Alfândega encontrou, a bordo do bergantim Claudine, com destino a Demerara, cinco passageiros sem passaporte. Passados dois meses, também o administrador do concelho do Funchal surpreendeu, nos Piornais, 88 pessoas que pretendiam embarcar clandestinamente para a barca inglesa Newilla. Até 1866, são frequentes as referências à intervenção de embarcações de cabotagem no apoio a este tráfico clandestino. A costa do Caniço, à Ponta do Pargo, oferecia enseadas adequadas a tal tipo de abordagem. O contacto com as embarcações de saída fazia-se, habitualmente, a partir do Caniço, Praia Formosa, Paul do Mar e Ponta do Pargo. Na última localidade, foram apresadas, por diversas vezes, embarcações saídas do Funchal com destino a Demerara. Destas, destaca-se, em 1847, o bergantim português Mariana, que, após 15 dias de saída do Funchal, ainda se encontrava na Ponta do Pargo, com o pretexto de fazer aguada. Numa inspeção a bordo, foram encontrados 187 passageiros, dos quais apenas 34 apresentavam passaporte. As Desertas surgem também como local de apoio a este tráfico clandestino. Aí foram encontrados, por diversas vezes, barcos costeiros a aguardar a passagem dos navios para Demerara. Entre fevereiro de 1845 e abril de 1847, foram aí apresadas duas embarcações que conduziam clandestinos do Caniço para a escuna portuguesa Eugénia. O recurso às Desertas e à Ponta do Pargo como locais de receção de clandestinos foi resultado da acentuada vigilância estabelecida para o porto do Funchal e para as áreas circunvizinhas. No início, este serviço de recrutamento de clandestinos para embarque era realizado no Funchal, sendo os emigrantes reunidos num armazém, à R. do Sabão, e, depois, embarcados, pela noite, para bordo das embarcações, porém, a apertada vigilância da Alfândega e a administração do concelho condicionaram a sua dispersão pela costa sul da Ilha. A intervenção das autoridades desdobrava-se entre um apertado controlo às embarcações que saíam do porto do Funchal e o estabelecimento de um sistema de vigilância de toda a costa e ilhas Desertas. Primeiro, usou-se o barco do contrato do tabaco, depois, estabeleceu-se um serviço de barcos para rondar a costa nas datas próximas da saída de qualquer embarcação. Por outro lado, o administrador do concelho tinha ao seu dispor 12 baionetas para a ronda noturna do litoral da cidade e, em toda a costa da Ilha, contava com o apoio dos cabos da polícia e artilheiros. Em julho de 1846, a saída dum bergantim elucida-nos sobre a forma como era ativado este plano de vigilância. O administrador do concelho montava, por seis dias, um serviço de vigilância em toda a costa, contando com o apoio dos regedores, cabos da polícia e de duas embarcações de ronda. A cabal intervenção das autoridades dependia do apoio de uma embarcação de guerra, daí a solicitação, em 1847, de uma escuna de guerra, o que veio a suceder com o envio do brigue de guerra Douro. Porém, a falta de dinheiro levou à sua substituição por uma escuna, retomando, em 1853, o anterior tipo de embarcações. A permanência e a insistência da prática clandestina da emigração atestam a pouca eficácia das medidas proibitivas ou de vigilância e a grande determinação do madeirense, bem como o empenho dos engajadores e seus acólitos. Deste modo, a quebra acentuada do movimento, a partir de 1863, deverá ser apontada não como uma consequência da intervenção repressiva, mas sim como resultado da diminuição da procura de mão-de-obra nos tradicionais destinos. Daí que, em 1885, estas medidas se tornem necessárias, uma vez que a emigração clandestina começa a fazer-se notar. Fator determinante no surto da emigração clandestina foi a ação destes engajadores, os principais sustentáculos do movimento. Desde o séc. XVIII que estes atuam na Ilha, pelo que, em 1779, o governador intervém junto do corregedor do Funchal, no sentido de se estabelecer medidas punitivas, sendo preso Álvaro de Ornelas Sisneiro, um desses engajadores. Todavia, só a partir da déc. de 30 do século seguinte, a ação destes agentes se torna preocupante, uma vez que atacam em todas as frentes, com particular incidência na vertente norte. Para dissimular a sua real intervenção, surgem como adelos ou compradores de vinho. Por meio de cartazes afixados na porta das igrejas, e com a conivência de algumas figuras importantes dos sítios, conseguem aliciar muitos lavradores com a promessa de enriquecimento no Brasil, Antilhas ou Havai. O transporte era, muitas vezes, gratuito e o ilhéu deveria desembolsar apenas 5000 réis para os custos do passaporte, quando, na realidade, a lei previa 4000 réis. Nas décs. de 40 e 50, surgem documentados 15 aliciadores no Funchal, Caniço, São Vicente, Ribeira da Janela, Arco de São Jorge e Ribeira Brava. Para coibir a sua ação, o Governo Civil adotara medidas repressivas, como a prisão e o julgamento, podendo a pena ir até quatro meses de cadeia. Em 1846, por exemplo, foi preso em São Vicente Manuel José Moniz, que aliciava emigrantes para Demerara. Nesta freguesia, sabemos que atuavam outros, como João Teixeira, Jorge Oliveira e Perpétua de Jesus. A ação dos aliciadores assumia, por vezes, situações rocambolescas: em julho de 1851, João Pestana, sapateiro, movera um auto contra Francisco, o poeta, por induzir e aliciar a mulher e o filho a emigrarem para Demerara; em agosto do mesmo ano, João Vieira ignora a mulher e filhos e entrega-se às promessas aliciadoras de Demerara; em 1853, uma mãe abandona duas crianças em São Jorge, enquanto uma rapariga de Boaventura foge para o Funchal, aliciada por Joaquim A. dos Reis. A política de emigração das autoridades locais define-se por duas formas de intervenção: o combate à emigração clandestina e a ação perniciosa dos engajadores, com medidas severas aplicadas a todos os infratores. Neste caso, incluía-se, ainda, o reforço de vigilância da costa madeirense. Depois, foi a procura de soluções conjunturais, capazes de travar o movimento de fuga, com a fixação das gentes à terra ou com a tentativa de desvio para regiões do Reino e colónias em vias de colonização. Estas medidas não foram suficientes para frenar o movimento emigratório, tanto legal como clandestino. A situação da Ilha continuava a ser difícil, pelo que ninguém estava capacitado para resistir às propostas risonhas dos aliciadores. Deste modo, houve necessidade de declarar guerra a este movimento, procurando atacá-lo em todas as frentes. Desde 1758, ficara estabelecido que nenhum madeirense poderia sair da Ilha sem o respetivo passaporte. Havia uma tradição de medidas limitativas, raramente recordadas e postas em prática. A elas recorria a Câmara do Funchal, em 1847, respondendo a uma circular de José Silvestre Ribeiro. Aí se recorda que a melhor providência estava na vinculação do povo à terra que o viu nascer. Na verdade, foi com este governador que se estabeleceu uma política pragmática de combate à emigração. O seu aspeto mais interessante não é o apelo a medidas punitivas à saída dos emigrantes, como reclamava o município funchalense, mas sim a definição de medidas capazes de inibir as gentes a esta fuga desesperada. Era preciso encontrar soluções para debelar a fome e empregar o máximo de força de trabalho inativa. Neste último caso, tivemos o plano de obras de construção civil, de acordo com o novo plano viário. A ação psicológica foi outra das armas utilizadas pelo governador para convencer os madeirenses a permanecerem na Ilha. Através de manifestos, divulgados pelos administradores do concelho e afixados nas portas das igrejas ou impressos em folhas volantes nos jornais, o governador fazia uso dos seus dotes literários para apelar ao sentimento dos seus súbditos. Num manifesto distribuído em agosto de 1852 pelo Clamor Público, é bastante evidente este apelo heroico: “Moradores das freguesias rurais! Não abandonais a vossa terra! Não fujais desses campos que vossos pais regaram com o seu suor! Não deixeis o teto das vossas moradas, onde nasceram vossos filhos! Não volteis as costas à vossa risonha ilha! Lembrai-vos que perdeis Pátria! Trazei à lembrança que muitas vezes tendes recolhido abundantes frutos, em recompensa às Vossas fadigas! E que não convém ceder aos primeiros golpes de adversidade” (VIEIRA, 1993, 122). Foram poucos os que entenderam a oratória do governador, secundados pelos incessantes apelos dos administradores do concelho ou pelos vigários das freguesias no sermão dominical. Aliás, é o mesmo governador o primeiro a reconhecer a necessidade de medidas práticas e eficazes: “A fatal tendência dos madeirenses para a emigração deve ser atalhada, principalmente por meios indiretos. Se os proprietários se lembrarem um dia de ir residir entre os seus caseiros, para os guiarem com ilustrados conselhos [...] a infeliz sorte dos habitantes dos campos melhorará consideravelmente, e eles ganharão afeição à terra do seu país, repetindo indignados as pérfidas sugestões de impios e desalmados embusteiros que os arrasta hoje para países longínquos” (Ibid.). Uma das suas grandes preocupações era o combate à política de engajamento feito por estranhos. O combate aos engajadores é antigo, sendo documentado desde 1780, altura em que foi processado o comandante de um navio inglês que havia levado clandestinamente a bordo 12 portugueses. Esta política implacável contra os engajadores continuou na centúria seguinte. Assim, em 1842, face à saída massiva de madeirenses, ficou estabelecido, por portarias de 19 de agosto e de dezembro de 1842, avançar com medidas de vigilância e de penalização dos mestres de navios. Ainda de acordo com a lei de 20 de julho de 1855 e a portaria de 27 de julho de 1857, o comandante do navio era obrigado a prestar uma fiança de 400 réis e a apresentar, no prazo de seis meses, um documento das autoridades ou do cônsul do porto de destino, tendo igualmente de indicar o número de passageiros desembarcados. O passaporte era uma das exigências obrigatórias para todos os que desejassem sair, contudo, nem todos tinham direito a ele, sendo negado a menores e mancebos. Desde 25 de setembro de 1841, deveria juntar-se a este um documento de freguesia referindo que o possuidor estava livre de encargos e serviços. É dentro desta opção que deverá ser entendida a guerra, sem tréguas, das autoridades aos agentes da emigração e aos seus colaboradores, como sejam os mestres de navio e barqueiros. A saída de qualquer emigrante só podia ser feita com passaporte, concedido a todos de maior idade, ficando excluídos os de 13 a 25 anos, abrangidos pela lei do recrutamento militar, e os mancebos. Todavia, era grande a apetência para o recurso à emigração clandestina, sujeitando-se os interessados a inúmeras privações para alcançarem o barco que os levaria a promissoras terras do outro lado do Atlântico. A grande preocupação das autoridades centrava-se no combate à emigração clandestina, que se desenvolvia em duas frentes: por um lado, a condenação dos engajadores e seus colaboradores e, por outro, a definição de um plano de vigilância em toda a costa da Ilha, procurando evitar-se a fuga dos clandestinos. O grande movimento de combate ficou reservado para as décs. de 40 e 50 do séc. XIX. Os casos sucedem-se com frequência e a atenção das autoridades foi reforçada, no sentido de evitar a fuga generalizada das gentes. Durante estas duas décadas, sucederam-se medidas repressivas, bem como o aprisionamento dos intervenientes, fossem engajadores ou mestres de navios. O cerco aos navios que entravam e saíam no porto do Funchal era permanente. Assim, para além do constante patrulhamento do mar madeirense e do alerta passado a todas as freguesias costeiras, as embarcações sujeitavam-se a um controlo apertado. Deste modo, estava proibido o contacto com qualquer navio mercante ou de guerra fora do porto. Além disso, em 1879, recomendava-se às embarcações com emigrantes que saíssem do porto durante o dia. As embarcações inglesas, que tocavam, com assiduidade, o porto do Funchal com destino aos locais de emigração, eram os alvos preferenciais para a saída dos clandestinos. Por essa razão, em 1845, o governador civil deu conhecimento ao cônsul inglês de tais medidas proibitivas. Todavia, em 1848, foi apresado na Ponta do Pargo o bergantim inglês Rowlay, com 16 clandestinos a bordo, correndo, por isso, um litígio entre o Governo Civil e o Consulado. O primeiro, através da administração do concelho e com o apoio dos cabos de polícia, regedores e forças militares, estabelecera um plano de vigilância da costa e do mar circunvizinho, até às Desertas, a ser ativado no momento de embarque no Funchal, através de uma visita a bordo, sendo depois reforçado a partir do momento da saída da embarcação do porto. Entre março e julho de 1846, foram gastos 86$695 réis com os barcos de ronda da costa. Por todo o ano de 1847, os barcos mantiveram-se em ação, tendo-se afirmado como um freio à emigração clandestina, o que levou a solicitar-se a presença de nova embarcação, não se sabendo, porém, ao certo se veio a concretizar-se. Não obstante estas medidas, a emigração clandestina continuava a ser uma realidade, não se esgotando aqui as oportunidades para controlar a saída dos madeirenses. Assim, a uma propaganda aliciadora por parte dos agentes, nomeadamente os cônsules brasileiro e inglês, contrapunha-se outra de alguns jornais e das autoridades que desmitificavam as esperanças do Eldorado. O debate teve início em 1841, resultado de uma proclamação do administrador geral, Domingos Olavo Correia de Azevedo, que, a determinado passo, referia que “Demerara [...] é uma possessão inglesa, cujo clima por extremo ardente e doentio, terminara em pouco tempo, com a existência da maior parte dos emigrantes que para ali vão, e onde estes infelizes, reduzidos, durante sua vida, a uma situação desesperada, vendo-se em total desamparo, e privados de meios de regressarem, se sujeitam a uma sorte tão cruel como a que em outro tempo ali experimentavam escravos negros” (Ibid., 126). A isto juntaram-se cartas de alguns emigrantes nas quais estes testemunham a ilusão das promessas feitas, apontando as condições difíceis em que viviam os madeirenses em Demerara. A todos responde Diogo Taylor, cônsul inglês e agente da emigração para estes destinos. À campanha, associaram-se outros jornais, sendo de realçar o Echo da Revolução, o Correio da Madeira e o Progressista, onde este movimento emigratório surge sob o epíteto de “escravatura branca”. De acordo com o cônsul português em Demerara, os emigrantes “são tratados como verdadeiros escravos, e mesmo pior do que são os negros da costa d’África” (Ibid.). A resposta a esta carta não se fez esperar pela voz do cônsul inglês Diogo Taylor, que realça os mútuos benefícios da emigração. A isso adicionava-se o testemunho abonatório de um grupo de portugueses residentes na Guiana Inglesa. Em oposição a este último testemunho, há registos de cartas de Demerara a dar conta da dura realidade da vida dos emigrantes. No primeiro destino, muitos madeirenses sucumbiram com febre-amarela. Para combater esta campanha contra a emigração, os agentes do Brasil e as colónias inglesas travaram uma luta sem tréguas. Para além dos desmentidos constantes, não se cansavam de anunciar os seus projetos aliciantes, devendo-se incluir, neste caso, a propaganda feita n’O Imparcial e na Revista Semanal. A esta situação, acresciam ainda os folhetos de promoção da emigração. Na segunda metade do séc. XIX, a imprensa insular deu desmesurado realce às consequências do surto emigratório. Sob a forma de notícia ou de trabalho de opinião, esta é uma preocupação central nas suas colunas, que se situa a dois níveis distintos: de um lado, os anúncios e descrições ou testemunhos laudatórios dos principais destinos de emigração; do outro, a opinião e os testemunhos reprovativos, apelando a uma intervenção das autoridades. Adensa-se o número de colunas dos periódicos O Progressista (1852-1854) e A Ordem (1852-1856). Neste contexto, a problemática da emigração para as terras ocidentais, no período de 1833 a 1873, marcou acesa discussão pública nos jornais que então se publicavam, ou nas Cortes, pela voz dos madeirenses aí representados. O Progressista, porta-voz do Partido Regenerador, é o periódico que dedica maior atenção à problemática da emigração, considerando Demerara e o Brasil como matadouros. Para os seus editores, o importante era travar o movimento emigratório, pelo que são frequentes os trabalhos de opinião, sob pseudónimo, a apelar a uma intervenção eficaz das autoridades locais, usando como ponto de referência a intervenção de 1847. Na déc. de 50, testemunhos de vária índole atestam a ineficácia das autoridades locais em coibir essa prática de emigração clandestina, acusando quer o administrador do concelho, quer o juiz eleito da Ribeira Brava, por não corresponderem ao estipulado nas leis de 1839, 1842, 1843 e 1849. O julgamento de 29 de fevereiro de 1852 de alguns aliciadores e barqueiros, comprometidos com a emigração clandestina, é motivo de regozijo no jornal. O ano de 1854 terá sido terrível para os madeirenses, permanentemente ameaçados pelo espectro da fome, pelo que a emigração, de acordo com o mesmo periódico, não resulta de ambição, mas da miséria dos colonos e da ineficácia do Governo. Em 1855, por iniciativa de três madeirenses, a embarcação Charles Keen conduziu 300 colonos a Demerara. Entre 1841 e 1846, O Defensor faz eco da intervenção do administrador geral do Funchal, Domingos Olavo Correia Azevedo. A reação dos principais interessados neste movimento promotor da emigração não se faz esperar. Assim, intervém Diogo Taylor, agente de emigração para a Guiana Inglesa. O primeiro refere, a propósito, que “Parece que a cidade do Funchal se converteu de repente numa grande feira de escravos brancos, destinados a irem perecer no clima mais infecto dos domínios britânicos – Demerara” (Ibid., 129), alertando mais adiante que “A emigração para Demerara é uma infame lotaria cujos bilhetes contendo raríssimas sortes em preto são comprados com as vidas dos nossos concidadãos” (Ibid.). Um dos aspetos que podemos assinalar com a emigração para Demerara, certamente o principal destino nesta época, é a questão do retorno, com forte impacto na sociedade local. O madeirense retornado deste destino passava a ficar conhecido como “o demerarista”, porque emigrante em visita ou regressado de Demerara. Assim, em 1853-1854, Isabella de França registava alguns casos de sucesso nessa vaga migratória. Numa das suas visitas à freguesia do Monte, descreve, a certa altura, ter visto “uma bela casa construída por um vilão que havia emigrado para Demerara e voltou rico, como tantos: deixam a terra natal sem outra coisa mais que uma camisa e calças, e carapuça na cabeça, e descalços, e regressam com seu colete de cetim e corrente de ouro, chapéu alto e botas de verniz” (FRANÇA, 1970, 9). Também o médico inglês Dr. Dennis Embleton, que visitou e testemunhou a Madeira entre 1880 e 1881, afirma que “Many country people have been abroad, made money, and returning, have bought land and settled” (EMBLETON, 1882, 31). Por fim, registe-se que os madeirenses levaram para estas ilhas muitas das suas tradições e hábitos alimentares. O facto de a Madeira exportar cebolas, por exemplo, deve-se ao facto de estas serem solicitadas pelos madeirenses para a sua dieta alimentar, que, segundo os registos de alguns observadores ingleses, se baseava em semilhas e cebola. Em 1843 e 1845, sabemos da chegada a Demerara de 162 caixas de batata comum e de 1000 arrobas de cebola, contando-se já 100 milheiros em 1851. Esta situação persiste em 1904 e 1910, com novo envio de cebola para Barbados. Não podemos igualmente esquecer as relações que se estabeleceram em torno da cana-de-açúcar. Em 1855, a Madeira recebeu, de Antígua, 294 barris de açúcar. Demerara, em finais do séc. XIX, e Barbados, de 1902 a 1905, abastecem com melaço o engenho do Hinton, no Funchal, acompanhando as diversas variedades de cana, quando se pretende restabelecer a cultura na Ilha. Em 1847, temos a variedade Bourbon de Caiena e, em 1903, outras variedades de cana (B208 e B147) de Barbados e a cristalina do Haiti.   Alberto Vieira (atualizado a 28.09.2016)

História Económica e Social Madeira Global