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Os estudos sobre a música na Madeira parecem manifestar a forte ligação da Ilha à cultura europeia, com especial ênfase numa identidade marcadamente portuguesa, com traços de outras culturas, tais como a holandesa, a italiana, a espanhola, a inglesa, a alemã, a francesa, a brasileira e de outras nações que tiveram fortes relacionamentos económicos e culturais com Portugal e com a Madeira. Na verdade, a procura de uma identidade própria não se tem mostrado profícua, sendo consensual que muitos dos seus elementos considerados diferenciadores estão igualmente presentes noutros espaços portugueses ou europeus. É possível encontrar exemplos de elementos considerados até há pouco tempo como característicos de uma cultura própria da Madeira – instrumentos tradicionais, trajes, géneros musicais, entre outros –, que, de acordo com os conhecimentos posteriores, se conclui terem ido de outras regiões para a Madeira (ou terem sido inventados há menos de 100 anos, com o propósito de criar uma identidade regional). Entre o início do povoamento, no séc. XV, e o séc. XVIII, é pouco conhecida a história da música na Madeira, embora os escassos dados existentes pareçam indiciar que, tal como em Lisboa, a música foi principalmente relevante em atividades religiosas e palacianas. Foi o período do cantochão do Rito de Salisbury (e, posteriormente, do Rito Romano), da polifonia vocal renascentista e da música barroca de influência italiana. A criação de um teatro público terá acontecido no final do séc. XVIII e a sua atividade foi aparentemente muito intermitente. O início do séc. XIX foi marcado pela revolução liberal e pelo consequente declínio da música sacra. O ideário liberal incentivou o espírito associativista, consubstanciado na fundação de dezenas de clubes e de sociedades que organizavam concertos, executados por virtuosos, e bailes com as novas danças de salão influenciadas pelas modas dos salões dos centros europeus (valsas, quadrilhas, cotilhões, polcas e mazurcas, entre outras). Na transição do séc. XIX para o séc. XX, dá-se um novo movimento de difusão musical, tendo surgido um significativo número de grupos musicais amadores, tais como bandas filarmónicas, tunas e orfeões, que tornaram a prática musical uma atividade comum, inclusivamente nas classes sociais mais desfavorecidas. Esta fase de popularização da prática musical começou a decair na déc. de 1930, embora muitos dos grupos fundados neste período ainda existissem no séc. XXI. Nesta época, também se assistiu a uma importante reforma na música sacra, com o Motu Proprio de Pio X (1903), o qual deixou vestígios durante mais de 60 anos. O período do Estado Novo foi marcado pelas consequências da introdução dos fonogramas, da telefonia e do cinema, que vieram difundir a cultura americana. Foi a era das jazz bands e dos conjuntos, que passaram a constituir as novas formas de modernidade musical. Uma reação a este fenómeno foi a fundação de várias instituições que procuraram promover música “de qualidade”, tais como a Sociedade de Concertos da Madeira, a Academia de Música da Madeira, o Posto Emissor do Funchal e a Orquestra de Câmara da Madeira – antecessora da Orquestra Clássica da Madeira. Foi igualmente o tempo da fundação dos grupos de folclore e da promoção da cultura popular com propósitos turísticos e identitários. No período pós-revolução de abril de 1974, assistiu-se à reforma de várias estruturas culturais e educativas ligadas à música, sendo de destacar a adoção de importantes medidas que vieram facilitar a fundação de associações culturais de índole musical, bem como o rejuvenescimento de antigas coletividades, tais como bandas filarmónicas, coros, grupos de folclore e grupos de bandolins. Instituições como o Conservatório–Escola Profissional das Artes da Madeira e o então Gabinete Coordenador de Educação Artística funcionaram como os dois pilares educativos que permitiram o aumento do número de praticantes, bem como o desenvolvimento das competências musicais de todos os envolvidos na cultura musical madeirense. Do início do povoamento ao fim do Antigo Regime A música fez parte de várias atividades religiosas e palacianas desde o início do povoamento da Madeira. No domínio religioso, é plausível que, no seio de algumas festas litúrgicas – como as festividades respeitantes aos ciclos do nascimento e da morte de Cristo ou dedicadas à Virgem Maria –, se realizassem manifestações musicais ligadas a representações teatrais. Como refere o historiador Rui Carita, permaneceram reminiscências desses antigos autos, nomeadamente das “representações de Natal, com as recitações do Pensar o Menino e as entradas e cantares dos pastores com as ofertas” (CARITA, 2008, 13). Além de menções de atuações teatrais com música, existem igualmente referências documentais a missas cantadas na Madeira. Nos testamentos de Gil Eanes (1479) e de Rodrigo Anes (1486), e.g., alude-se à obrigação de celebração de missas cantadas. No testamento de Gil Eanes fala-se de uma missa cantada na igreja de Machico e no de Rodrigo Anes diz-se que no “dia do enterro lhe dirão oito missas, uma cantada com todo o ofício de ladainhas” (NASCIMENTO, 1933, III, 154-155). Embora não tenha sobrevivido repertório religioso desta época, o aristocrata russo Platon de Waxel, a primeira personalidade a escrever um esboço de uma história da música na Madeira, salienta que o rito seguido nas primeiras igrejas e conventos da Madeira deveria ser o mesmo que em Lisboa: o Rito de Salisbury. Este rito ter-se-á mantido na Madeira até ao início do séc. XVII, não tendo a Madeira acompanhado o sucedido em Lisboa, onde o rito havia sido abandonado em 1536 (WAXEL, 1948, 33). A música religiosa era também executada fora das igrejas, durante procissões religiosas, as quais foram regulamentadas por D. João II em 1483. Nas festas do Corpus Christi, nomeadamente, as confrarias de ofícios desfilavam em carros alegóricos onde se bailavam danças como a “mourisca”, levando o historiador Rui Carita a concluir que estes eventos deviam assemelhar-se mais a cortejos carnavalescos do que a procissões religiosas; entre os exemplos que sobreviveram ao tempo, encontra-se a “dança das espadas” da confraria dos ferreiros (CARITA, 2008, 13). No domínio da música palaciana, apesar da inexistência de partituras e de provas documentais com referência à prática musical, há indícios de que existiria no Funchal uma atividade musical deste género desde os primeiros povoadores. De facto, conhece-se poesia trovadoresca de personalidades madeirenses do séc. XV. Além disso, no Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende (1516), é possível encontrar poemas de personalidades como João Gomes (?-1495), pajem e escudeiro do infante D. Henrique, que se fixou no Funchal e que viria a dar nome a uma das ribeiras da cidade; a sua produção poética foi de tal modo apreciada que lhe valeu a inclusão de poemas no cancioneiro de Resende e o cognome de “O Trovador”. Outros poetas madeirenses que constam do cancioneiro são Tristão Vaz Teixeira, identificado como filho do 1.º capitão de Machico, e João Gonçalves da Câmara, que terá sido o 2.º capitão donatário do Funchal. Segundo Rui Carita, o trovador mais importante da época viria a ser, no entanto, Duarte Pestana de Brito, quer pela quantidade, quer pela qualidade da sua produção poética. No início do séc. XVI, a música palaciana continuou a ter um papel preponderante no Funchal, principalmente pela ação de Simão Gonçalves de Câmara (?-1530), 3.º capitão donatário do Funchal, que governou a partir de 1508. Sendo músico e detentor de uma fortuna considerável à época, promoveu uma capela com cantores e tangedores, da qual Gaspar Frutuoso diz fazer “grandes partidos” (FRUTUOSO, 2008, II, 106). A qualidade da capela deveria ser de tal ordem que “competia com a de el-rei”, tendo como “mestre da capela Diogo de Cabreira, castelhano, mui destro na arte de canto de órgão e tal, que o próprio rei lho pediu para cantor para sua capela” (Id., Ibid., 103). Acompanhando o crescimento económico da Ilha, a situação musical religiosa melhorou no início do séc. XVI. O facto de o Funchal ter sido elevado à qualidade de diocese, em 1514, levou a que a atividade musical tivesse acompanhado esse novo estatuto. Assim, em 1518, os cantores da capela da Sé do Funchal, que seriam, até então, apenas quatro, passaram a oito por ordem do rei D. Manuel I, que mandou “criar mais quatro moços do coro”. Dois anos depois, D. Manuel I escreve uma carta, ordenando agora ao deão da Sé do Funchal, o mestre Nuno Cão, “que os cónegos e moços do coro saibam canto do organo [canto do órgão] para os domingos e festas se oficiar as missas com canto de organo [canto de órgão]” (WAXEL, Ibid.). Tendo em consideração esta fonte, é plausível concluir, tal como fez Platon de Waxel, que, no Funchal, a música religiosa era até então composta do mais simples cantochão, passando a partir dessa data a ser, numa base regular, de cariz polifónico. Em data incerta, talvez ainda durante a déc. de 1520, foi criado o cargo de organista na Ilha. A substituição do Cón. Gaspar Coelho (possivelmente o primeiro a ocupar esta função na Madeira) por Luís Mendes (?-1598), em 1554, é prova da existência desse cargo. O ordenado seria de 10.000 réis anuais, tendo o organista sido aumentado posteriormente com mais “dois mil réis em dinheiro, um moio de trigo e uma pipa de vinho” (Id., Ibid.). Entretanto, as normas, mais rígidas, advindas do Concílio de Trento (1543-1554) não foram totalmente aplicadas: de facto, as interpretações teatrais dentro e junto das igrejas madeirenses não foram erradicadas. Em 1565, a chancelaria régia difundiu um alvará para todo o país, onde se proibia a utilização de máscaras na procissão do Corpus Christi e nas igrejas, parecendo corroborar as determinações do Concílio. Apesar disso, sabe-se que no último quartel do séc. XVI ainda se realizavam, “de dia e de noite”, atuações nas igrejas e ermidas, as quais causavam “muitos inconvenientes e escândalos”, segundo a opinião expressa nas Constituições do bispado do Funchal, aprovadas em 1578 pelo Bispo D. Jerónimo Barreto. No mesmo documento, exigia-se que as representações só fossem organizadas com “especial licença do prelado” (CARITA, 2008, 14). Este tipo de atuações seria frequente e estaria relacionado com atividades religiosas de cariz popular, tais como romarias. Gaspar Frutuoso descreve, por exemplo, a romaria de Nossa Senhora do Faial, na qual participavam cerca de “oito mil almas” e onde os peregrinos, vindos de outras zonas da Ilha, descansavam durante dois ou três dias. Neste período, os romeiros faziam “muitas festas de comédias, danças e músicas de muitos instrumentos de violas, guitarras, frautas, rabis e gaitas de fole” (FRUTUOSO, 2008, II, 52). Sendo estas manifestações religiosas de cariz mais popular, é plausível deduzir que se terá gerado algum conflito entre o bispado, que procurava seguir as orientações do Concílio de Trento, e as tradições religiosas já enraizadas na vida do povo. Em meados do séc. XVI, a fixação do bispo Jorge de Lemos, 4.º bispo do Funchal, na Madeira, onde foi o primeiro bispo a residir, coincidiu com um dos momentos mais marcantes da vida musical do séc. XVI. D. Jorge de Lemos era músico e, por isso, terá favorecido a prática musical, tendo inclusivamente levado para o Funchal um mestre de capela; este cargo foi oficialmente criado a 20 de setembro de 1556 por carta régia, tendo o mestre de capela a “obrigação de ensinar canto aos 12 colegiais do seminário, com o ordenado de 25 mil rs”. Na mesma data, também por carta régia, foi criado o seminário do Funchal, estando previsto o pagamento anual de 345 mil réis, sendo “45 mil réis para os mestres de gramática e do canto da cidade do Funchal” (WAXEL, Ibid., 34). Foi durante este período que se criou a primeira instituição dedicada ao ensino de música sacra na Madeira. No séc. XVII, houve alterações importantes no domínio religioso. A principal delas foi a introdução do Rito Romano na Madeira, por alvará datado de 1 de junho de 1629, substituindo-se, assim, o Rito de Salisbury. D. Filipe III de Portugal ordenou que se praticasse “o Ritual Romano no que toca no governo do coro, dignidades, cónegos e capitulares, e nos particulares que não for possível se deve conformar com o que se pratica na Sé de Lisboa” (WAXEL, Ibid., 33). Nesta altura, a Sé do Funchal recebeu dois órgãos: em 1613, Filipe II ofereceu um órgão à Sé do Funchal e, poucos anos depois, um “grande órgão”, que terá sido construído em Córdova, foi dado à mesma Sé (WAXEL, Ibid., 34; SILVA E MENESES, 1978, II, 416). Entre os organistas que sucederam, no séc. XVII, aos músicos Gaspar Coelho e Luís Mendes, conhecem-se o P.e Francisco da Cruz – que em 1664 tinha um ordenado de valor igual ao de Mendes (2000 réis em dinheiro, um moio de trigo e uma pipa de vinho) – e o P.e Pascoal Ferreira que, em 1681, recebia 7000 réis em dinheiro, um moio e 20 alqueires de trigo e duas pipas de vinho. O repertório executado na Sé do Funchal incluía música polifónica de qualidade, referindo Platon de Waxel que “devia ser a melhor que então havia no reino”. Como prova da sua afirmação, o aristocrata russo argumenta que na Sé existia um livro de missas de um dos mais relevantes compositores portugueses da primeira metade do séc. XVII, Duarte Lobo, impresso em Antuérpia em 1639 (WAXEL, Ibid., 36) – trata-se, provavelmente, do Liber Missarum II. São também do séc. XVII as duas primeiras fontes musicais de obras polifónicas da Madeira de que se tem conhecimento. A primeira é pertença do Convento de S.ta Clara: trata-se de uma peça polifónica a quatro vozes (tiple, alta, tenor e baxa) que se encontra transcrita na frente de uma folha em branco de um livro de cantochão, provavelmente escrito na primeira metade do séc. XVII; a composição é anónima e tem como título Jesu Redemtor, sendo a obra polifónica mais antiga de que há registo na ilha da Madeira. A segunda fonte é propriedade da Sé do Funchal e contém partes de missas, salmos e hinos; é um fragmento de um livro de coro (ofícios e missas) copiado no séc. XVIII, cujo repertório é constituído, sobretudo, por polifonia seiscentista, ainda que algumas obras possam ser do final do séc. XVI. Os autores também não estão identificados; Manuel Morais comparou as composições da coleção com obras congéneres de autores portugueses não madeirenses, ativos entre a segunda metade do séc. XVI e finais do XVII, e não encontrou qualquer correspondência (MORAIS, 1998, 50-51). Pouco se sabe sobre os músicos ativos no Funchal neste período, para além do seu nome e cargo. Entre os mestres de capela da Sé do Funchal, conhecem-se os nomes do P.e Manuel de Almeida (em funções a partir de 1618) e do P.e Miguel Pereira (falecido em 1682); sabe-se, ainda, do Cón. Manuel Fernandes, professor de música no Funchal, e de Francisco de Valhadolid, músico madeirense que chegou a ser mestre no seminário arquiepiscopal em Lisboa, citado na Bibliotheca Lusitana e em Os Musicos Portuguezes de Joaquim de Vasconcelos. Francisco de Valhadolid foi o primeiro músico natural da Madeira que se sabe ter ocupado um lugar de destaque a nível nacional. Natural do Funchal, onde nasceu em 1640, foi discípulo do Cón. Manuel Fernandes em composição e, posteriormente, de João Alvares Frovo, em contraponto, em Lisboa. Aquando da sua morte, a 16 de julho de 1700, estaria a trabalhar na publicação de um livro sobre os Mysterios da Musica, assim Pratica como Especulativa, o qual ficou incompleto. Valhadolid deixou uma vasta obra, principalmente composta de missas polifónicas (a 6, 8, 14 e 16 vozes), salmos, responsórios, lamentações, um Miserere, uma ladainha e vários motetes a 3, 4, 7 e 8 vozes. No séc. XVII, as festividades religiosas madeirenses assumiram grande relevância artística. Em 1622, nomeadamente, realizaram-se importantes festas em honra de S.to Inácio de Loiola, de S. Francisco Xavier e do B.º Luís Gonzaga, as quais envolveram as principais formas de arte na Madeira à época: poesia, teatro, dança, música e artes figurativas. No documento, de autor anónimo, denominado Relaçam Geral da Festas que fez a Companhia de Jesús na Provincia de Portugal, na Canonização dos Gloriosos Sancto Ignacio, & S. Francisco Xavier Apostolo da India Oriental no Anno de 1622, existe um capítulo dedicado às cerimónias da Madeira, onde são narrados os acontecimentos festivos ocorridos entre 20 de junho e 31 de julho de 1622. Estes eventos, segundo Manuel Morais, não eram indignos, em fausto e diversidade, das “cerimónias que se representaram na capital do nosso largo Império seiscentista” (MORAIS, 2008, 29). Pela descrição das festas, é possível ter noção da grande diversidade de instrumentos e de danças que então existia – no que concerne a estas, o cronista refere danças com “oito salvagens, vestidos à inteiriça, todos cobertos de musgo”, “danças de marinheiros de barretes, e coletes vermelhos, e ceroulas até baixo”, uma “grave, e aparatosa dança, que em parte alguma do reino pudera sair melhor”, dança da mourisca, “dança de segadores”, “dança de moços pequenos feitos soldados”, danças de “ciganas”, de romeiros e de “meninos à mourisca” e “dança dos rios ou ribeiras de mais nome nesta ilha”. No que diz respeito aos instrumentos musicais, é de ressaltar a sua variedade, salientando o autor a realização de eventos musicais ao som de “frauta, e tamboril”, “trombeta bastarda”, “violas e rabequinha ao som dos quais cantavam algumas letras com muita melodia”, “pandeiro” e “alaúdes”, “castanholas” e “charamelas de cana”, “concertada música”, em que “13 moços […] tangiam todos instrumentos, violas, rabequinhas, pandeiros, cestos, e ginebra, e em quanto se ocupavam os de uma parte em cantar, dançavam os da outra ao redor do tambor, que no meio fazia com ele mil voltas”. Nestas festas participaram os melhores músicos sacros da altura, mencionando o cronista que se organizaram “solenes vésperas com o melhor da capela, e música da Sé, que também ao domingo cantaram a missa” (Id., Ibid., 25-29). O compositor António Pereira da Costa (1697?-1770), cónego e mestre de capela da Sé do Funchal, é o primeiro residente na Madeira a publicar peças musicais; fê-lo em Londres, em 1741, publicando Concertos Grossos, cujo título imita o da coleção de Arcangelo Corelli (1653-1713), 12 Concerti Grossi. O nome completo da obra do compositor português é Concertos Grossos com Doys Violins, e Violão de Concertinho Obrigados, e Outros Doys Violins, Viola e Orgão, e constitui um conjunto análogo ao de Corelli. Por volta de 1755, é impressa em Londres uma nova coletânea de composições de Pereira da Costa para guitarra, desta vez com o título em inglês: XII Serenatas for the Guitar. Estas serenatas parecem trair também a influência de Corelli, que agrupou as suas composições em conjuntos de 12 obras: 12 Sonatas a Tre, 12 Sonatas da Camera a Tre, 12 Concerti Grossi, etc. Segundo Rui Carita, ambas as composições são dedicadas ao morgado João José de Vasconcelos Bettencourt (1703-1766), irmão mais velho da mercadora D. Guiomar Madalena de Sá Vilhena (1705-1789). As composições de António Pereira da Costa são, na Madeira, os primeiros exemplos conhecidos de um novo período marcado por modelos musicais italianos, à semelhança do que aconteceu em Lisboa na primeira metade do séc. XVIII, por intervenção de D. João V. Neste reinado, por volta de 1720, contratou-se o mestre da Cappella Giulia do Vaticano, Domenico Scarlatti, para mestre da Capela Real, bem como um conjunto de outros músicos italianos, que contribuíram para uma progressiva italianização da música portuguesa. De facto, em 1728, a orquestra da Capela Real era constituída principalmente por estrangeiros, sendo quase metade deles italianos: entre os 13 músicos que constituíam a orquestra – sete violinistas, dois violetistas de arco, dois violoncelistas e um contrabaixista – havia seis italianos (um genovês, dois florentinos e três romanos), um francês, dois boémios, três catalães e um português. Para garantir o ensino adequado dos jovens músicos portugueses, D. João V criou, em 1713, um seminário especificamente destinado a esse efeito, o qual viria a ser o seminário patriarcal, instituição que formaria a maior parte dos músicos de Setecentos e que seria decisiva para a replicação dos modelos italianos em Portugal. Além das serenatas e dos Concertos Grossos, Pereira da Costa dedicou-se a cantatas e sonatas, sendo esse facto indício da existência de um repertório marcadamente barroco, de carácter instrumental, em contraste com a polifonia vocal renascentista, de cariz contrapontístico. A Gazeta de Lisboa de 2 de junho de 1750 faz menção do cultivo de cantatas e de sonatas, referindo a participação do compositor nas festividades de N.a S.ra do Monte no Funchal. Existem registos dos vencimentos dos músicos participantes nas festividades de N.a S.ra do Monte. Num livro de receitas e despesas do Convento da Encarnação dos anos de 1767 e 1768 faz-se referência ao salário dos “pretos das xaramelas” por tocarem nas festas de domingo do Senhor, de N.a S.ra do Monte e de S.ta Clara (PEREIRA, 1989, II, 590). No Convento de S.ta Clara, existem também assentamentos de pagamentos, respeitantes ao mesmo período, “aos moleques que tocaram caixa e charamela”, ou simplesmente a “moleques da charamela” (CARITA, 2008, 16). Os gastos com os músicos de capela da Sé do Funchal encontram-se assinalados em documentos de despesa da Provedoria e da Junta da Real Fazenda do Funchal. Tal como acontecia noutras catedrais católicas, a Sé do Funchal tinha uma capela em que os cargos eram os de subchantre, de capelão cantor ou de moço do coro, de mestre de capela e de organista, e os pagamentos realizavam-se em função dos cargos musicais ocupados, como o comprova a folha de pagamentos referente à despesa de 1775 (ver Quadro 1). [table id=107 /] O subchantre dirigiria, provavelmente, o coro de cantochão dos moços de coro, sendo acompanhado pelo organista. O mestre de capela deveria ser responsável pela música polifónica, com vozes e instrumentos. Com base nas despesas registadas no Livro de Assentamento da Capitania, supõe-se que o número de moços de coro, em 1775, seria menor do que em 1518, quando D. Manuel aumentou o número de moços de coro de quatro para oito; de qualquer modo, este número chegaria para cumprir com as funções musicais. Segundo o musicólogo Manuel Morais, na Sé do Funchal encontravam-se 11 livros de cantochão do séc. XVIII e de inícios do séc. XIX, manuscritos e impressos. No âmbito das festividades religiosas, é de mencionar que no séc. XVIII se mantiveram as representações teatrais junto das igrejas. Segundo Rui Carita, existem referências a que estas atuações terão continuado a decorrer até meados do séc. XVIII, inclusivamente dentro de igrejas e de conventos. Em 1751, uma edição no campo dos estudos sobre a tísica viria a influenciar os tempos posteriores na Madeira, tendo consequências também no domínio da música. Neste ano, é publicado um artigo de Thomas Heberden (1703-1769), em Philosophical Transactions, que descreve o clima da Madeira como propício à cura de doenças infectorrespiratórias (a saber, a tuberculose). Influenciados por esta “descoberta” da medicina, centenas de indivíduos da aristocracia europeia começam a passar longas temporadas na Madeira, de modo a procurarem uma cura para si ou para algum familiar próximo. Surge, assim, o turismo terapêutico e são construídas unidades hospitalares e estabelecimentos hoteleiros. Por conseguinte, a influência da alta aristocracia europeia começará a sentir-se na Madeira de forma mais intensa ao longo de mais de um século, estendendo-se ao plano musical, o que virá a contribuir para o estabelecimento de um Funchal de cariz mais cosmopolita do ponto de vista cultural. A literatura estrangeira, principalmente os relatos de viagens, fica muito em voga a partir de meados do séc. XVIII. Grande parte do conhecimento que existe sobre a atividade musical madeirense, tanto erudita como popular, advém das descrições de estrangeiros, sobretudo inglesas. A título de exemplo, em 1777 é publicado em Londres um livro de George Foster – um alemão educado em Inglaterra que acompanhou o capitão James Cook na sua segunda viagem aos “mares do sul”, tendo passado no Funchal em 1772 –, onde se refere que, na Madeira, “o camponês […] é geralmente aliviado com canções, e ao serão reúnem-se vindos de várias cabanas para dançarem ao som da música sonolenta de uma viola”. Em 1792, a visitante Maria Riddel publica, em Edimburgo, um texto referente ao ano de 1788, no qual menciona que os madeirenses “são muito musicais e extremamente galantes. Raramente se passa uma noite na Madeira sem se ouvir serenatas de violas e bandolins em qualquer parte da rua” (MORAIS, 2008, 32). Ainda assim, as narrações de estrangeiros sobre a Madeira são raras no séc. XVIII, começando a ser mais frequentes no séc. XIX. O maior acontecimento musical da segunda metade do séc. XVIII foi a fundação do Teatro Grande ou Casa da Ópera. Como refere o historiador Valdemar Guerra, “Casa da Ópera”, “Casa da Comédia”, “Teatro Grande” ou “Teatro Funchalense” são diferentes designações para o mesmo edifício. Este foi o primeiro espaço de atuações públicas de relevo do Funchal; construído em 1777, foi considerado alguns anos mais tarde como a maior casa de espetáculos de Portugal depois do teatro nacional de São Carlos, tendo sido demolido em 1833 por razões militares, sob as ordens do governador Álvaro de Sousa Macedo. As atividades deste teatro contam principalmente óperas, representações cómicas, danças e entremezes. (salas de teatro) A Casa da Ópera surgiu por iniciativa de dois negociantes, José Rodrigues Pereira e Miguel dos Santos Coimbra. Ambos haviam tido uma pequena “Casa da Ópera”, a qual sofreu um violento incêndio. Devido à necessidade de divertimento da população funchalense e à falta de tradição teatral “digna de relevo”, os empresários iniciaram este novo projeto na expectativa de lucros imediatos. Apesar de a sua construção ter sido concluída no início de 1777, a Casa da Ópera só esteve em atividade até maio, altura em que foi noticiada a morte de D. José e se entrou num período de luto de um ano. Este espaço de tempo acabou por ter uma história conturbada, com vários problemas financeiros que afetaram o cumprimento de temporadas operáticas com uma periodicidade normal. Por ter sido o primeiro espaço cultural de grande dimensão da Madeira, o Teatro Grande dispôs-se a ser um local de fortes confrontos, nomeadamente no plano dos costumes. Por exemplo, encontram-se várias notícias do primeiro quartel do séc. XIX que discutem a moralidade das récitas ali realizadas, chegando a considerar que a Casa da Ópera era um espaço pouco próprio para levar senhoras; ao longo do séc. XIX, a situação repete-se em outros teatros, havendo designadamente notícias de que o Teatro Concordia era “foco da imoralidade e das ofensas vilãs” (CARITA e MELLO, 1988, 41). Supõe-se que, na transição do séc. XVIII para o séc. XIX, as bandas militares terão começado a ganhar importância na Madeira, à semelhança do que aconteceu em Lisboa. No entanto, as primeiras referências a esse facto datam de 1807, desconhecendo-se qualquer alusão à presença das bandas na região no séc. XVIII. Entre os anos de 1807 e 1824, há menções de pagamentos de pão com o objetivo de municiar os “pífanos e tambores de milícias”, o que indicia existirem músicos nas tropas milicianas da Madeira, pelo menos desde esta época; a referência mais antiga que se conhece é de 6 de junho de 1807 e a despesa paga foi no valor de 430$320 réis. Os salários não eram anuais, podendo ser recebidos várias vezes ao ano, em alturas diversas: sabe-se de ordenados pagos em março, no “dia de Corpo de Deus”, “nos meses de julho e agosto”, não havendo, aparentemente, datas predefinidas e regulares. Entre 1815 e 1819, começa a especificar-se o pagamento dos regimentos de milícias da Calheta e do Funchal, e já não da “Ilha” apenas. A qualidade da banda regimental do Funchal de então não é fácil de aferir. O britânico Robert Steele, tenente da Marinha Real inglesa, resumia, no seu diário de viagem, redigido no verão de 1809, o que considerava ser a fraca qualidade daquele contingente musical: “A parada militar é geralmente frequentada pelos oficiais mais graduados, e a banda, tendo muitos encantos, envergonha as tropas portuguesas, que são más em todas as suas atividades” (MORAIS, 2008, 33). O declínio da música sacra e a era dos clubes, das sociedades e da música doméstica A prolongada série de revoluções e de contrarrevoluções ocorridas no período de 1820 a 1851, no contexto da implantação do regime liberal, teve graves efeitos no domínio musical de cariz religioso. A extinção das ordens religiosas, em 1834, e o confisco dos seus bens provocaram o declínio da estrutura religiosa madeirense, algo que se repercutiu na música sacra. Apesar da situação conturbada, houve neste período um conjunto de músicos sacros, muito influenciado por músicos formados na escola de música do seminário patriarcal de Lisboa (extinta em 1834), que deixou um legado musical relevante. Uma das personalidades influentes deste período foi D. Fr. José Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828) que, ainda antes da instauração do regime liberal, por volta de 1812, foi para a Madeira acompanhado de alguns músicos, entre os quais se destacam José Joaquim de Oliveira Paixão (?-1833) e João Fradesso Belo (1791-1862), discípulo de Fr. José Marques e Silva no seminário patriarcal. Além de ser músico e de proteger a música sacra, José Ataíde compôs algumas obras que foram cantadas em igrejas madeirenses, tais como uma missa de Requiem e o motete Sub Tuum Praesidium, ambas a quatro vozes mistas. José Joaquim de Oliveira Paixão era compositor, organista e violinista. Fez parte da orquestra do Teatro Grande como violetista e foi professor de música no seminário. Segundo o investigador João Rufino da Silva, apesar de ter falecido em 1833, as obras musicais de José de Oliveira Paixão ainda eram cantadas nas igrejas madeirenses quase 150 anos depois da sua morte – ou, pelo menos, até aos anos 70 do séc. XX –, principalmente os responsórios de matinas na Semana Santa. Estas obras eram cantadas a duas e a três vozes masculinas e acompanhadas a órgão, orquestra de cordas – 1.º e 2.º violinos, violoncelo e contrabaixo –, flauta e clarinete em si bemol. João Fradesso Belo foi professor no seminário do Funchal e é apontado como tendo ocupado o cargo de mestre de capela da Sé, apesar de se ignorar os moldes em que esta dignidade era neste período exercida. Sabe-se igualmente pouco sobre a sua produção musical, embora se tenha conhecimento de que compôs uma Ave-Maria “muito cantada na Madeira” (SILVA, 2006, 191). Segundo Platon de Waxel, Fradesso Belo teve um papel importante no plano educativo, visto que deixou dois discípulos de grande valor: Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858) e António de Melo, este último considerado pelo aristocrata russo, em 1869, como “o único compositor de música sacra hoje existente do Funchal” (WAXEL, 1949, 205). Um músico sacro muito importante deste período foi António Maria Frutuoso da Silva, que terá chegado ao Funchal no início de 1837. Num anúncio no periódico A Flor do Oceano, de 8 de janeiro de 1837, Frutuoso da Silva apresenta-se como “professor de música, vindo recentemente da cidade e corte de Lisboa”, propondo-se ensinar “piano, rabeca, e cantoria”. Era antigo cantor na Sé patriarcal de Lisboa, tendo fundado e dirigido no Funchal, entre 1840 a 1848, uma sociedade de concertos (Id., 1948, 36). Entre as suas composições sacras estão uma Missa a Grande Instrumental, um Asperges Me (1848) e um Ò Salutaris (1848). Waxel menciona ainda a existência de outros músicos “que escreveram algumas pequenas composições sacras”: Fr. Manuel Gaspar, o Cón. Libório José Furtado, o P.e Barros, José Justiniano da Silveira (?-1864), o P.e António Francisco Drumond e Vasconcelos (?-1864), o P.e José Maria de Faria e Eduardo Maria Frutuoso da Silva (Id., 1948, 35). Se o ideário liberal oitocentista conduziu, por um lado, ao declínio da música sacra, incentivou, por outro, o espírito associativista, tendo sido criadas várias coletividades em Portugal neste período, entre as quais algumas sociedades de concertos de amadores. Em 1822, um dos músicos mais próximos dos ideais liberais, João Domingos Bomtempo (1775-1842), fundou em Lisboa a Sociedade Philarmonica, seguindo o modelo da sociedade congénere londrina fundada em 1813, tendo a instituição portuguesa sobrevivido até 1828. O novo modelo de sociedades de concertos começado em Inglaterra e copiado por Bomtempo em Lisboa foi igualmente seguido no Funchal: parte da elite madeirense foi influenciada pelo novo ideário, tendo surgido no séc. XIX um significativo conjunto de sociedades e instituições privadas com o propósito de promover a organização de concertos ou de entretenimentos com a participação de músicos (e.g., bailes). Desta forma, após um período de alguma instabilidade política, vivida na déc. de 1820, são constituídos, nos anos 30, pelo menos três clubes e uma sociedade. Tem-se conhecimento da fundação do Clube União – o qual terá tido curta duração, havendo poucos dados sobre a sua atividade –, em 1836, e do Clube Inglês, que existiu durante mais tempo, estando ainda em atividade e organizando bailes na déc. de 1850. Em 1838, surge a Sociedade Harmonia, destinada à prática e à fruição musicais (realiza, nesse ano, uma récita no Teatro do Bom Gosto). No ano seguinte, é fundado um dos clubes madeirenses mais importantes do séc. XIX e o de maior longevidade, o Club Funchalense; esta associação era financiada por algumas das principais famílias nacionais e estrangeiras a residir na Madeira e tinha como um dos seus propósitos principais a promoção de concertos de música vocal e instrumental, embora organizasse sobretudo bailes; de origem anglo-saxónica, o nome desta coletividade acusa a influência de estrangeiros residentes na Madeira, principalmente ingleses. O Club Funchalense e a Sociedade Philarmonica – cujo nome indicia a influência da sociedade homónima de Bomtempo – são as instituições que, durante a déc. de 1840, mais frequentemente publicitam concertos ou bailes nos periódicos madeirenses. Não se encontram referências à organização de concertos musicais por parte do Club Funchalense; de qualquer modo, é provável que neste clube houvesse momentos musicais informais, principalmente em redor do piano, visto que um dos seus primeiros presidentes, Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858), era pianista (as suas composições para piano chegaram a ser editadas em Nova Iorque, em 1830). Por sua vez, a Sociedade Philarmonica era uma autêntica sociedade de concertos de amadores. Esta associação foi fundada por António Maria Frutuoso da Silva em 1840; a sua atividade ter-se-á prolongado até 1848. A criação da Sociedade Philarmonica tinha como objetivos formar novos músicos, por um lado, e promover espetáculos musicais em “serões benefecientes, festejos patrióticos e a acompanhar músicos distintos como o violinista Agostinho Robbio, o machetista Candido Drummond de Vasconcellos, o clarinetista Caetano Domingos Drolha e o pianista Ricardo Porfírio d’Afonseca”, por outro (CARITA e MELLO, 1988, 39). Na segunda metade do séc. XIX, proliferam as sociedades de concertos e os clubes que incentivam a prática musical. Sabe-se da existência, em 1850, da Sociedade Aglaia, que fomentaria a realização de bailes, o que se depreende do facto de o pianista e compositor Duarte Joaquim dos Santos ter produzido uma polca para piano dedicada a esta sociedade, cujo título era o próprio nome da coletividade: Aglaia. Em 1855, há referências à fundação do Clube Recreativo, embora nada se saiba sobre o seu funcionamento. A 30 de março de 1871 é fundada a Sociedade Recreio Literário dos Artistas Funchalenses; esta associação dispunha de uma orquestra que começou a funcionar em finais de abril, princípios de maio, “com instrumentos de fôlego e cordas” (FREITAS, 2008, 413). Um dos músicos mais empreendedores na organização de coletividades deste período foi o violinista e maestro Agostinho Martins (1841-1909). Ao longo da sua carreira musical, este artista funchalense fundou várias instituições, entre as quais a Academia Marcos Portugal, a Sociedade de Concertos Funchalenses e a Filarmónica Restauração de Portugal. A par da criação de sociedades e clubes, desenvolve-se no Funchal um novo modo de sociabilidade: os convívios musicais em salões privados. Este tipo de prática musical doméstica, uma moda importada de França, começa a surgir em Portugal pelo menos na segunda metade do séc. XVIII. A emergência de um grande repertório de modinhas neste período é resultado desta nova forma de convivência urbana; neste âmbito, cabia principalmente à mulher a função de entretenimento doméstico através do canto, do piano e de instrumentos de corda dedilhada. Algumas famílias e personalidades madeirenses ficaram conhecidas pelos serões requintados que organizavam nos seus salões, onde entre “contradances, polcas e as valsas se chegava às tantas da manhã” – exemplo disso são a “ilustre família Gordon” e D. António da Câmara Leme, com um teatro no seu palácio (CARITA e MELLO, Ibid., 42). Nos saraus, a música para canto e piano – principalmente árias de ópera – ocuparia um lugar especial, sendo uma das formas de entretenimento mais habitual. Apesar de a cidade do Funchal ter ficado, na déc. de 1830, sem um teatro lírico de grandes dimensões, a prática do repertório de influência operática ter-se-á mantido ao longo de todo o séc. XIX, sendo vários os testemunhos que comprovam esta afirmação – e.g., em 1835, numa receção ao futuro governador civil das “possessões inglesas na Índia”, faz-se referência à execução de “árias, duetos, e romances” acompanhados ao piano por Duarte dos Santos (A Flor do Oceano, Funchal, 18 out. 1835, 4). Juntamente com a prática da música vocal, verificou-se um aumento da importância do piano, da viola e do machete, existindo diversos documentos que confirmam a presença destes instrumentos no quotidiano doméstico e a sua boa execução por madeirenses. Um dos maiores músicos madeirenses deste período foi o compositor e intérprete de machete Cândido Drummond de Vasconcelos. São escassas as informações sobre este músico, pelo que se torna difícil traçar a sua biografia. Como instrumentista de machete, há notícias da sua atividade no Funchal a partir de 1841; foi autor de uma coleção de música manuscrita, de 1846, editada pelo musicólogo Manuel Morais, a qual é constituída por um repertório de elevada qualidade, composto principalmente por valsas, temas e variações, quadrilhas e polcas. Conhecem-se ainda outros intérpretes de machete e de viola, entre os quais se destacam António José Barbosa (1822-1899) e Manuel Joaquim Monteiro Cabral. Entre os pianistas mais relevantes deste período são de vincar os nomes de João Fradesso Belo (1792-1861), Ricardo Porfírio d’Afonseca (1802-1858), Duarte Joaquim dos Santos (1801-1855) e António José Bernes (?-1880). João Fradesso Belo foi o primeiro compositor para piano na Madeira, tendo produzido música de salão, da qual se conhece uma valsa. Este músico terá ido para a Madeira em 1812, em conjunto com outros músicos, por intermédio do bispo José Joaquim de Meneses e Ataíde, tendo residido no Funchal até ao final da sua vida. Fradesso Belo foi discípulo de Frei José Marques, em Lisboa; Ernesto Vieira refere que o músico terá estudado no seminário patriarcal. Ao longo da sua vida na capital madeirense, João Fradesso Belo tornou-se um músico célebre, sendo mestre de capela da Sé e professor no seminário da cidade. Duarte Joaquim dos Santos foi, igualmente, um dos pianistas mais importantes do Funchal no segundo quartel do séc. XIX, tendo residido nesta cidade desde a déc. de 1840, provavelmente, até à data da sua morte a 24 de maio de 1855. Segundo Rui Magno Pinto, Santos afirmou-se em Londres como compositor prolífico, tendo publicado em editoras como a Payne & Hopkins, a R. Cocks & Co., a Jeffreys & Co.; nos catálogos, estão registadas cerca de 60 peças suas. Entre as suas obras publicadas encontram-se, na British Library, peças para piano a duas e a quatro mãos – quadrilhas, valsas, divertimentos –, transcrições de árias de ópera para piano e uma peça sacra – Alma [Redemptoris Mater] – para coro e órgão. A Biblioteca Nacional dispõe também de algumas quadrilhas da sua autoria, as quais foram publicadas em Portugal na Lithografia Armazem de Musica da Casa Real. O pianista Ricardo Porfírio d’Afonseca é exemplo de um compositor pivô que acompanhou o crescimento da importância das danças de salão no quotidiano madeirense. Assim, se ainda cultivava, no início do séc. XIX, o género sonata, passa progressivamente a dedicar-se a danças de salão, tendo sido um músico pioneiro na composição de valsas e de cotilhões para piano. Finalmente, o pianista António José Bernes foi um conceituado compositor, professor de piano e maestro. Existem poucas referências à sua formação, mas é provável que tenha estudado primeiramente no Funchal, com Ricardo Porfírio d’Afonseca, e mais tarde em Viena e em Nápoles, como nota Platon de Waxel, que o considerava “o único compositor que merecia, até certo ponto, este nome na Madeira” à época (WAXEL, 1948, 35). No Funchal, Bernes foi influente como professor de piano: entre as suas alunas, realce-se Maria Paula K. Rego, uma das pianistas funchalenses mais ativas em saraus de beneficência na segunda metade do séc. XIX. Do seu repertório, chegaram aos nossos dias uma valsa incompleta (Le Diamond) e Il Sogno Amoroso a Nice, com um poema sobre os enganos do amor. Os três instrumentistas compuseram música de salão, seja para piano, seja para viola ou para machete; é possível identificar um repertório destes músicos destinado a saraus musicais privados e constituído tanto por valsas, quadrilhas e polcas, como por temas e variações. Nos saraus musicais no Funchal não atuavam apenas portugueses, mas também visitantes estrangeiros. Em 1853, e.g., a visitante Isabella de França descreve, no seu livro Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal, um convívio organizado por uma família alemã, em que foi “um verdadeiro regalo ouvir” a anfitriã cantar uma ária “com o marido a acompanhá-la ao piano” (FRANÇA, 1970, 170-171). Nesse sarau participaram pessoas de várias nacionalidades, o que demonstra a importância destes encontros para os estrangeiros que ficavam longas temporadas na Madeira. Ao longo do séc. XIX, a disposição do interior das casas acompanhou a mudança de costumes causada por este novo tipo de sociabilidade urbana, e começaram a surgir novas divisões, como salões de música, as quais eram destinadas a festas e saraus dançantes; nestes compartimentos, os tetos em estuque eram decorados com motivos musicais. Alguns dos salões madeirenses tinham excelentes condições para convívios musicais domésticos, estando ao nível das melhores salas privadas europeias, como o testemunham os relatos de visitantes estrangeiros da época: nomeadamente, em meados do séc. XIX, uma das aristocratas que visitou a Madeira, ao descrever um salão de uma casa onde decorria um baile, referia que este “rivalizava com os de Paris e Londres, tendo mesmo uma galeria para a orquestra” (NASCIMENTO, 1933, III, 98). Na Madeira, assiste-se a um ganho de importância da mulher como dinamizadora de salões nobres, sendo costume as senhoras organizarem festas nos seus salões privados, em que, quer as anfitriãs, quer as convidadas demonstravam os seus dotes, cantando ou tocando piano. Apesar de não serem públicos, alguns desses eventos são divulgados na imprensa periódica do Funchal. Enquanto, no plano privado, os saraus domésticos constituíram o tipo de atividade mais comum, no plano público os eventos de cariz musical mais representativos foram, provavelmente, os bailes e saraus de beneficência, os quais eram frequentemente organizados por clubes ou sociedades. No caso dos bailes, é importante referir que se tratava de iniciativas de convívio social de requinte na sociedade funchalense, em que os participantes vestiam a rigor e em que os anfitriões preparavam luxuosamente as salas de dança. Assim, é natural que a música também acompanhasse o primor exigido pelo acontecimento, pelo que os bailes seriam as ocasiões da vida social em que se tocaria a música mais elegante da época, com o maior número e a maior variedade de instrumentos, seguindo a moda então em vigor nos principais centros europeus. Entre as orquestras que tocavam nos bailes no terceiro quartel do séc. XIX, conhecem-se a Orquestra de Augusto Miguéis, da qual existe repertório respeitante ao período compreendido entre 1865 e 1884, e a de Anselmo Serrão (1846-1922), que tocou na Orquestra do Teatro Esperança. As orquestras eram de pequena dimensão. Os arranjos do repertório documentado estavam destinados à seguinte disposição instrumental: cordas (violino 1, violino 2, baixo), sopros de madeira (flauta ou outavino e clarinete) e sopros de metal (cornetim, trompas e barítono). A iniciativa dos saraus de beneficência partia, muitas vezes, de comissões de senhoras que aproveitavam o tempo livre para se dedicarem à caridade. Numa época em que, na Madeira, entretenimentos como o teatro eram considerados moralmente impróprios para mulheres, os saraus de beneficência constituíam uma das poucas oportunidades para aquelas exibirem os seus talentos musicais em público. Encontram-se relatos de espetáculos de beneficência no primeiro periódico madeirense, O Patriota Funchalense. Os motivos de beneficência eram variados: enquanto os primeiros eventos deste tipo da déc. de 1820 são realizados em prol de artistas, a partir da déc. de 1830 há atuações cujas receitas são arrecadadas em proveito do hospital e dos enfermos. Além de exibições musicais para apoio de artistas e de doentes, encontram-se também concertos cujos lucros revertem em favor dos “atormentados pela fome” (CARITA e MELLO, 1988, 40). A importância destes eventos era tal que os estatutos da Sociedade Philarmonica referiam, aquando da sua criação, em 1840, que um dos principais objetivos era o de atuar em serões beneficentes. Deste modo, é normal que, na déc. de 1840, existam diversas notícias, em variados periódicos da época (), a concertos de beneficência no Funchal. Na déc. de 1850, há notícia de vários saraus de beneficência, cujas descrições pormenorizadas permitem saber como decorria um evento deste género. Os saraus organizados no Funchal pela ilustre cantora madeirense Júlia de Atouguia de França Neto, entre 1854 e 1861, foram postos em evidência pela imprensa. Neste período, Júlia de França Neto realizou 10 concertos de beneficência, os quais se destinavam a suprir as necessidades dos pobres e desfavorecidos. Estas iniciativas de maternidade social intensificam-se na déc. de 1860, altura em que uma das principais promotoras destes convívios musicais passa a ser Maria Paula Rego. A participação de estrangeiros nestes saraus deveria ser muito habitual, encontrando-se na imprensa periódica algumas notícias de saraus organizados conjuntamente por senhoras inglesas e portuguesas. Como impulsionadora destes saraus, merece ainda destaque Amélia Augusta de Azevedo. Nascida em 1840, foi uma das mulheres pioneiras no domínio da composição musical na Madeira. Estudou no Conservatório de Música de Lisboa e, segundo Rui Magno Pinto, “possivelmente no Conservatoire National de Musique et de Declamation [Conservatório Nacional de Música e de Declamação] em Paris (ou alguma das suas sucursais)”. Entre as suas composições, contam-se Alma Minha (sobre a poesia de Camões), Le Regret, Paris Russophile e a polca-mazurca Recordações de Cintra (PINTO, 2008, 9). As sociedades, os clubes e as comissões de senhoras tinham salões próprios para o desenvolvimento das suas atividades, os quais se adaptavam a espetáculos de pequenas dimensões e de cariz amador. No entanto, para eventos de maior projeção e com artistas profissionais, foram construídos vários teatros no período pós-revolução liberal, os quais foram os locais privilegiados dos concertos públicos. Entre os muitos espaços existentes no Funchal destacam-se – antes da construção do Teatro D. Maria Pia, que passou a ser a referência no final do séc. XIX – o Teatro do Bom Gosto, a sala da Escola Lancasteriana, o Teatro Prazer Regenerado, o Teatro da Concórdia, o Teatro Tália e Marte e o Teatro Esperança. Entre estas salas de concerto, a sala da Escola Lancasteriana ocupa um lugar de relevo, tendo sido um dos mais importantes pontos de atuação dos virtuosos que visitaram a Madeira. A título de exemplo, mencione-se que o violoncelista César Augusto Cazella, que se apresentava como “violoncelista particular do rei da Sardenha”, atuou na sala da Escola Lancasteriana entre dezembro de 1850 e janeiro de 1851, quase sempre acompanhado ao piano por Duarte Joaquim dos Santos. O violinista Agostinho Robbio – que surgia como “discípulo distinto do imortal Paganini, por quem foi premiado com a sua própria rabeca e medalha de honra” – também atuou neste espaço entre fevereiro e maio de 1850 (CARITA e MELLO, Ibid., 42). Foi igualmente na Escola Lancasteriana que a conceituada intérprete madeirense Júlia de Atouguia de França Neto realizou, a 28 de dezembro de 1854, um concerto em favor dos pobres, o primeiro de uma série de espetáculos de beneficência que decorreram ao longo desta década; a intérprete foi acompanhada ao piano por Duarte Joaquim dos Santos. Até 1873, ano em que deixa de haver notícias sobre a atividade musical nesta sala, vai havendo sempre virtuosos a atuar neste espaço: o flautista Daniel Imbert, o violinista Charles Elliot, o contrabaixista Arthur F. Reimhardt, o pianista brasileiro Hermenegildo Liguori, que tocou como solista, a cantora Nelida Martinon, o violinista Ernesto Mascheck, os irmãos Croner. Todos estes músicos apresentaram repertórios virtuosísticos constituídos por fantasias sobre motivos de óperas, variações, árias com variações, temas e variações, concertos ou duetos brilhantes. Em 1859 é fundado o Teatro Esperança, que passou a ser o local de concertos mais importante do Funchal até ao aparecimento do Teatro D. Maria Pia, em 1888. Este espaço recebeu músicos virtuosos de projeção internacional como a cantora Anna Bishop, que ali realizou alguns concertos acompanhada pelo pianista e vocalista Charles Lescelles, e companhias operáticas como a Companhia Dramática Italiana, que trouxe à Madeira as cantoras Dejean e Sauzin e o tenor Verdini. O diretor de orquestra da Companhia Dramática Italiana era Francisco Vila y Dalmau, que viria mais tarde a instalar-se permanentemente na Madeira e a ser o maestro mais importante do Funchal no último quartel do séc. XIX; esta companhia de cantores terá produzido, na íntegra, várias óperas italianas famosas. Finalmente, é imprescindível salientar a enorme influência das bandas regimentares neste período. Como refere o musicólogo Rui Magno Pinto, a atividade das bandas regimentais incluía atuações em dias festivos régios e exibições em concertos públicos em praças e jardins funchalenses, em festividades e procissões religiosas, no teatro e em bailes. Contudo, o seu trabalho ia para além do exercício de funções próprio a uma banda – na realidade, os regentes e músicos ocuparam também lugares de relevo enquanto solistas, compositores, regentes de agrupamentos musicais diversos e professores. A qualidade das diversas bandas regimentares presentes no Funchal neste período (tais como o Regimento de Infantaria n.º 7, o Batalhão de Infantaria n.º 11 e a Banda de Caçadores n.º 12, a primeira a estar sediada na Madeira, a partir de 1862) levou certamente ao surgimento de filarmónicas civis. A constituição destes grupos musicais foi realizada à imagem das bandas regimentares, normalmente formadas por iniciativa popular, mediante o mecenato de um nobre ou burguês ou como resultado da associação de profissionais de uma mesma atividade. Segundo Rui Magno Pinto, a primeira coletividade deste tipo surgiu na Madeira em 1844, embora se desconheça o seu nome, sendo descrita como uma “banda de curiosos”. A 18 de fevereiro de 1850 foi fundada a Filarmónica Artístico Funchalense, conhecida como Banda Municipal do Funchal. Entre 1859 e 1860 surge a Filarmónica Recreio Artístico Funchalense, ativa até finais do primeiro quartel do séc. XX (PINTO, 2011, 134). A importância das filarmónicas civis crescerá nas décadas seguintes. Até ao primeiro quartel do séc. XX irá surgir um número elevado destes agrupamentos em quase todos os municípios da Madeira, num fenómeno de popularização da música que atingirá o seu cume na déc. de 1930. A popularização da prática musical na transição do século XIX para o século XX Entre 1870 e 1930 assiste-se à emergência de dezenas de grupos musicais amadores de grande dimensão um pouco por toda a Ilha. Este foi um fenómeno incomum, que revolucionou por completo a prática musical na Madeira. A partir da déc. de 1870, com especial impacto a partir de 1880, surgiram na Madeira muitas bandas filarmónicas, tunas de cordofones, grupos corais e orquestras sinfónicas, constituídos maioritariamente por músicos amadores. Alguns agrupamentos teriam perto de 100 elementos, segundo notícias da época. Em poucas décadas, desenvolveu-se na Madeira um extraordinário movimento de democratização musical, em que parte apreciável da população passou a integrar grupos musicais. As causas que estão na origem de uma mudança desta magnitude são várias. No caso das bandas filarmónicas, a sua proliferação deve ter ocorrido principalmente como “fruto do discurso que favorecia a capacidade educacional da música enquanto promotora de progresso e civilização e atribuía mérito e reconhecimento aos detentores de capacidade artística” (PINTO, Ibid., 133). O crescimento do número de bandas também deve ter sido facilitado pelo aumento da produção e a consequente redução dos preços dos instrumentos de sopro ocorridos ao longo do séc. XIX. No que diz respeito às tunas, a influência para a sua fundação terá vindo do meio académico, tendo surgido muitas tunas na Madeira sob inspiração da Tuna Compostellana em Portugal continental, no final do séc. XIX (principalmente a partir de 1888). O facto de haver na Madeira vários construtores de instrumentos de cordas habituais nas tunas – violinos, bandolins, violas, entre outros – facilitou a criação deste tipo de agrupamento musical do ponto de vista económico. Outra causa central para a replicação destes grupos está relacionada com a inexistência ou com a pouca difusão dos meios técnicos que viriam a revolucionar a música na Madeira, principalmente a partir da déc. de 1930: a telefonia, o gramofone e o cinema (a partir desta década, com a emigração e com a diminuição dos preços destes expedientes técnicos, a prática musical amadora reduz-se bastante na Madeira). Finalmente, a valorização do convívio masculino, juntamente com a facilidade de execução das partes instrumentais individuais em grupos grandes, terão contribuído de igual modo para a multiplicação deste tipo de agrupamentos amadores. A grande difusão das bandas filarmónicas na Madeira neste período pode ser atestada na seguinte lista, não exaustiva, na qual se enumera os agrupamentos surgidos na déc. de 1880: em 1881, estava a organizar-se, na vila da Ponta do Sol, uma filarmónica para a elite ponta-solense e uma banda para os operários; em 1883, é fundada a Banda União Fraternal de Santa Cruz; a 18 de fevereiro de 1884, a Filarmónica Recreio dos Lavradores atuou pela primeira vez; em 1886, é fundada a Orquestra Recreio e União; em 1887, é provavelmente criada a Sociedade União e Lealdade na freguesia de São Roque; em 1887, é instituída a Sociedade Recreio Musical, com sede na rua dos Ferreiros; em 1887, funda-se a Filarmónica União Santacruzense; em 1889, cria-se a Banda dos Bombeiros Voluntários Madeirenses; em 1889, estabelece-se a Filarmónica da Ribeira Brava. As tunas de cordofones são outro género de grupo muito na moda neste período. As tunas começam por ter como instrumento melódico principal o violino, mas, progressivamente, o bandolim vai ocupando o lugar de destaque nestes agrupamentos amadores, sendo comum na Madeira designar estes grupos como tunas de bandolins ou orquestras de palheta (esta última denominação é de clara influência italiana – “orquestra de plectro”). Entre 1889 e 1935, são fundadas várias tunas na Madeira, primeiramente com ligações ao meio académico e, posteriormente, de cariz mais popular. Segue-se uma lista, não completa, das tunas: 1889, Tuna Compostellana; 1905, Tuna Académica (Liceu do Funchal); 1906, Grupo de Amadores de Música Passos Freitas; 1913, Grupo Reunião Musical da Mocidade (a ulterior Orquestra de Bandolins da Madeira); 1913, Grupo 6 de Janeiro de 1915 (o posterior Círculo Bandolinístico da Madeira); 1920, Grémio Musical 10 de Junho; 1920, Septeto Dr. Passos Freitas (versão reduzida do grupo original); 1920, Quarteto do Sr. Arsénio (Santa Cruz); 1923, Grupo Musical Faialense; 1930, Núcleo Bandolinístico de Câmara de Lobos; 1934, Grupo Bandolinístico de Santo António; 1935, Grupo Bandolinístico União de Santo António (BUSA); 1935, Grupo Musical Colares Mendes. Apesar de a maioria dos grupos amadores madeirenses ser constituída por bandas e por tunas, são frequentes neste período outros tipos de agrupamento. Entre eles, são de salientar os grupos corais e as orquestras sinfónicas. No caso dos grupos corais, apesar de haver referência à criação de uma escola de canto coral no Funchal em 1885, é principalmente na déc. de 1920 que se encontram grupos corais de grande dimensão. Os três protagonistas deste movimento terão sido o cantor Júlio Câmara (1876-1950), o músico-advogado Manuel dos Passos Freitas (1872-1952) e o capitão Gustavo Coelho (1890-1965). Júlio Câmara dirigia, em 1920, o Orfeon Académico, o qual chegou a ser composto de 85 elementos; Manuel dos Passos Freitas fundou e dirigiu o Orfeão Madeirense, que se apresentou por diversas vezes no teatro e realizou digressões às Canárias; finalmente, o capitão Gustavo Coelho criou um Orfeão Académico, constituído por alunos do Liceu do Funchal e sobre o qual há notícias de estar em atividade em 1925. Gustavo Coelho merece ser posto em evidência, uma vez que foi um dos mais relevantes e conceituados regentes de bandas filarmónicas, orquestras e grupos corais, assim como um prolífico compositor e transcritor de música. Foi chefe da Banda de Música do Comando Militar da Madeira e integrou o corpo docente da Academia de Música, Belas-Artes e Línguas da Madeira. Entre os principais regentes de bandas e orquestras deste período salientam-se ainda os nomes de Nuno Graceliano Lino (1859-1929), “organizador de quase todas as orquestras que se faziam ouvir nos salões aristocráticos e nas grandes solenidades da Diocese” (DN, Funchal, 16 nov. 1929, 3), e de César Rodrigues de Nascimento (1879-1925), compositor, violinista e regente de duas das principais bandas madeirenses, Artistas Funchalenses e Artístico Madeirenses (Guerrilhas). No plano nacional, a transição do séc. XIX para o séc. XX é marcada pela tentativa de criação de uma identidade com a qual os portugueses se identificassem como com algo de próprio e de distinto das outras nações. No caso da Madeira, houve várias ações no âmbito das artes que tiveram nitidamente esse propósito, mas também se deram algumas iniciativas mais específicas, onde, mais do que uma identidade nacional, os autores procuraram criar uma identidade regional madeirense. Uma das primeiras medidas levadas a cabo com este intuito está relacionada com o estudo das tradições do povo rural; em 1880, designadamente, Álvaro Rodrigues de Azevedo faz as primeiras observações e recolhas sobre o folclore regional. Outra das providências estava relacionada com a utilização dos instrumentos considerados típicos da Madeira; nomeadamente, em 1890 há referências à atividade musical da Orquestra Característica Madeirense, dirigida por Agostinho Martins, a qual era constituída por vários tipos de instrumentos, entre os quais se destacam os típicos da Madeira, tais como o machete (vulgo braguinha) – a utilização, em orquestra, deste género de instrumentos parece não deixar dúvidas quanto ao objetivo de criar, ou de executar, música com traços marcadamente regionais. Para além disso, em 1905, o compositor madeirense Filipe Fernandes Madeira (1864-1912) cria uma obra musical intitulada Souvenir de Madere – Rapsodia de Canções Populaire, formada de canções consideradas pelo autor como tradicionais da Madeira, o que constitui outro exemplo da tentativa de reprodução de uma música marcadamente madeirense. À semelhança de Filipe Fernandes Madeira, também o compositor Manuel Ribeiro procura inspiração nas canções populares da Madeira. Provavelmente na déc. de 1910, o então regente da Banda Militar compõe uma rapsódia baseada em alguns cantos típicos madeirenses – charamba, bailinho do Porto Santo, mourisca, etc. –, a qual orquestra para um dispositivo sinfónico. A procura de regionalismos encontra-se também nas produções teatrais com música, nomeadamente na revista musical madeirense, então muito em uso. Neste sentido, Dário Florez (1879-1951), um músico espanhol radicado na Madeira, cria várias peças de teatro de revista com inspiração em elementos regionais, como o exemplifica o título de uma obra sua, Semilha e Alface, de 1917. Além da busca de inspiração na música regional, assistiu-se ao cultivo de géneros nacionalistas. Assim, no primeiro quartel do séc. XX multiplicam-se a composição e a interpretação de fados no Funchal. Uma das referências mais antigas à prática de fados concerne à banda regimental de infantaria n.º 27, que incluía no seu programa de concerto, em 1902, uma versão de um fado de Rey Colaço. Prova da grande difusão do fado, neste período, é o facto de todas as principais salas de espetáculos da Madeira terem artistas que tocam este género musical. No Pavilhão Paris, e.g., é possível ouvir o ator Horácio Campos cantar fados, antes de interpretar um dueto da Viúva Alegre, enquanto no Teatro-Circo Duarte Valério apresenta “canções e fados” (DN, Funchal, 9 fev. 1914, 3); por sua vez, um anúncio do Casino Vitória refere a estreia de Silva Sanches, um “artista distinto” português, que oferece um “repertório fino, de que fazem parte, além de vários números de operetas, lindos fados e canções internacionais” (DN, Funchal, 30 dez. 1919, 1); finalmente, no teatro municipal produz-se uma opereta, da qual se diz ter “imensa graça”, intitulada Tiro ao Alvo, “com as suas canções e fados”(JM, Funchal, 10 jan. 1929, 3). Existem indícios da inclusão do fado em contexto erudito, algo que se verifica no trabalho de vários cantores líricos, que passaram a incluir fados no seu repertório de concerto, juntamente com obras clássicas, de modo regular. Assim, o tenor lírico Ernesto Silva anunciava que iria cantar “novos fados”, a par de uma canção napolitana (Diário da Madeira, Funchal, 9 fev. 1916, 2); a cantora Helena Robini sabia “com mestria interpretar os melhores clássicos” e cantava também “grande número de fados e canções” (DN, Funchal, 27 abr. 1917, 2); Júlio Câmara, tenor lírico que esteve radicado na Madeira durante alguns anos, incluía no seu repertório um “lindo fado sentimental” (DN, Funchal, 5 fev. 1918, 2). No que diz respeito à faixa etária dos fadistas, há notícia de que as crianças eram protagonistas no canto do fado. Assim, no Salão Ideal anunciava-se que, para além da “habitual presença do Quartetto Nascimento, a atriz Luiza Durão de 11 anos, cantará um lindo fado […], com letra e música, original do Sr. Machado Bonança, distinto professor do liceu d’esta cidade” (DN, Funchal, 4 jun. 1911, 1). Esta pequena atriz não foi caso único, encontrando-se uma criança ainda mais jovem, “o menino Fernando Barreto, de 9 anos”, a atuar na Qt. das Cruzes, onde cantou fados e canções portuguesas e do qual se dizia “ser possuidor de uma grande voz” (DN, Funchal, 17 set. 1931, 1). Eng. Luiz Peter Clode.1940 Naturalmente, a intensa atividade relacionada com o fado nos principais locais de espetáculo funchalenses influenciou os músicos madeirenses. Assim, ao longo da primeira metade do séc. XX, sabe-se de vários fados para canto e piano de autores madeirenses ou a residir na Madeira. Entre os autores identificados, além de Dário Florez, com o fado Saudades de Coimbra, conhecem-se, em versões para piano: um fado de Gustavo Coelho (1890-1965), intitulado Oh! Quem Me Dera; o Fado do Desespero, do músico amador Fernando Clairouin (1897-1962); Fado da Feira, Fado “Maria das Dores”, Fado dos Olivais, Fado do Vale e Fado dos Laranjais, da autoria de Luiz Peter Clode (1904-1990); e o “fado slow” Adeus Funchal, do pianista Tony Amaral (1910-1975). Um músico e poeta madeirense que viria a evidenciar-se na história do fado português, mais especificamente do fado de Coimbra, foi Edmundo Bettencourt (1899-1973). Da sua obra ressaltam as gravações de discos pela Columbia, em 1928, com a participação do guitarrista Artur Paredes (pai de Carlos Paredes), que fariam dele um cantor de referência para muitas gerações de músicos do fado e da canção de Coimbra, entre os quais Zeca Afonso. A nível religioso, a execução de música sacra em contexto popular foi muito frequente nesta época. As celebrações religiosas solenizadas com música estavam normalmente associadas “ao calendário litúrgico, destacando-se a Semana Santa, o ‘Mês de Maria’ e o Natal, assim como as cerimónias dos santos populares e dos oragos das freguesias” (CAMACHO, 2010, 19). Um outro aspeto central da música religiosa deste período está relacionado com orientações vindas do papa Pio X. Em 1903, o Papa lança o Motu Proprio, que bane da Igreja a música teatral de estilo florido, “com recitativos, floreados no canto e no acompanhamento […], e melodia das óperas mais conhecidas” (SILVA, 2006, 11). Tendo em consideração que parte significativa da música tocada nas igrejas madeirenses era inspirada em modelos operáticos, esta orientação papal exigiu uma profunda mudança na música religiosa da época. Com certeza, a diretriz vinda de Roma não resultou numa reforma completa e imediata da música na Madeira. Prova disso é o facto de o bispo D. António Pereira Ribeiro ter necessidade de criar, por decreto, uma Comissão Diocesana de Música Sacra, em 1918, com o objetivo de promover “ ‘a escrupulosa observância em toda a Diocese das leis eclesiásticas acerca da música sacra’ ” (SILVA, 2006, 10-11). Considerando que, em 1908, foi publicada na Madeira uma segunda edição de uma coleção de melodias sacras, de acordo com as orientações do Motu Proprio, fica claro que terá havido alguma resistência a retirar, dos templos madeirenses, a música de influência teatral. Apesar disso, existem casos de compositores que criaram um elevado número de obras em consonância com as novas normas emanadas do papa. Um dos casos mais notórios é o do Cón. Fernando Vaz (1884-1954), de quem se conhecem 78 composições, sobretudo cânticos em honra de N.ª Sr.ª e do Sagrado Coração de Jesus. A aludida coleção de melodias sacras compostas para o culto religioso, como alternativa às músicas de inspiração operática, não foi a única solução encontrada para pôr em prática as diretrizes de Roma. De facto, tal como um pouco por todas as dioceses portuguesas, encontram-se nesta época várias referências à tentativa de instituir o canto gregoriano na Madeira. A 15 de outubro de 1909 é anunciado na Quinzena Religiosa da Ilha da Madeira que “todos os alunos do seminário têm aula diária de cantochão ou de música” (SILVA, 2008, 217); entre 1912 e 1915, há notícia de um padre beneditino que realiza um curso de canto gregoriano no Funchal; finalmente, a 1 de março de 1915 são apresentados os princípios elementares do canto gregoriano e da música sacra no Boletim Eclesiástico da Madeira. Neste âmbito, é relevante nomear José Sarmento (1842-1905), que foi convidado pelo bispo D. Manuel Agostinho Barreto para organista da Sé, tendo sido depois mestre de capela e professor do seminário. Sarmento criou e imprimiu vários folhetos intitulados Rudimentos de Música, onde explicou os fundamentos teóricos da música tonal e gregoriana. Promoveu ainda vários concertos de beneficência e audições reservadas na sua Qt. de Santa Luzia, para os quais convidava os músicos que passavam pela Madeira, acompanhando-os ao piano ou ao harmónio. Outro músico que merece relevo na área da música sacra deste período é o compositor Luiz de Freitas Branco (1890-1955). Figura maior da cultura musical portuguesa da primeira metade do séc. XX e considerado o introdutor do modernismo musical em Portugal, foi para a Madeira com a família em 1912, tendo ficado até cerca de 1915. Apesar de ser bastante jovem, aquando da sua estadia na Madeira o compositor já tinha realizado estudos de composição em Berlim (1910) e tido contacto com a estética do Impressionismo em Paris (1911), onde havia conhecido Claude Debussy. No Funchal, compôs três obras de música sacra a pedido do bispo D. António Pereira Ribeiro, as quais se encontram no Arquivo do Seminário Maior: Responsórios de Matinas da Imaculada Conceição; Te Deum, a duas vozes masculinas; Te Deum, a três vozes masculinas. Outra importante mudança ocorrida na transição do séc. XIX para o séc. XX está relacionada com o desenvolvimento de um mercado para os músicos, derivado da criação de um conjunto de espaços de entretenimento que contratava os seus serviços. Enquanto no período de 1820-1880 não há dados sobre a contratação de músicos para atuações regulares em espaços públicos, a partir do final do séc. XIX começam a surgir cafés, teatros, cinemas, casinos, hotéis e outras entidades que necessitam de músicos para entretenimento habitual de madeirenses e de turistas. Passa-se de uma situação em que os músicos eram maioritariamente solicitados para dinamizar bailes esporádicos em clubes ou para atuações pontuais em teatros a uma situação em que existem vários espaços em simultâneo com necessidade, por vezes diária, de atividades musicais. A mudança em questão, aliada à necessidade de regentes para os grupos musicais de amadores então surgidos – bandas, tunas e orfeões –, bem como ao aumento de solicitações de professores de música, alterou profundamente o estatuto dos músicos, criando mais oportunidades de profissionalização para esta classe. Este novo contexto trouxe grandes alterações ao tipo de agrupamentos musicais existentes: enquanto os grupos musicais de amadores eram constituídos por dezenas de elementos, os grupos profissionais eram mais reduzidos. Em poucos anos, surgem vários grupos profissionais de pequena dimensão, normalmente sextetos, quintetos ou quartetos. Assim, principalmente a partir da déc. de 1890, são criados muitos grupos de músicos profissionais, acentuando-se o fenómeno a partir do início do séc. XX: 1895, Café “Águia D’Ouro”; 1905, Quinta Santana; 1906, Monte Stranger Club; 1907, Club dos Estrangeiros; 1909, Casino da Quinta Pavão e Hotel Belo-Monte; 1911, Salão Ideal, Salão Central Cinematographo Gaumont e Pavilhão Paris; 1916, Ateneu Comercial; 1919, Casino “Vitoria” e Teatro Circo; 1920, Novo Club Restauração; 1922, Hotel Savoy. A proliferação de grupos profissionais virá a acentuar-se a partir da déc. de 1940, devido sobretudo ao significativo aumento no número de hotéis e da oferta turística madeirenses. No período de 1890 a 1930 assiste-se a uma primeira fase de profissionalização da classe dos músicos, como está patente na seguinte lista (não exaustiva): 1897, Sexteto de Evaristo Guedes; 1900, Sexteto dos Srs. Nunos; 1905, Sexteto Espanhol da Quinta Santana; 1906, Sexteto Agostinho Martins; 1906, Sexteto António de Aguiar; 1909, Sexteto Espanhol da Quinta Pavão; 1909, Sexteto de Nuno Graciliano Lino (mais tarde, Quarteto); 1909, O Sexteto Nascimento (mais tarde, Quarteto e Quinteto); 1909, Orquestra Belo-Monte; 1911, Quarteto João de Deus; 1916, Sexteto Joaquim Casimiro; 1919, Sexteto Cesar Magliano; 1920, Sexteto Passos Freitas (mais tarde, Septeto, Octeto e Quinteto); 1920, Quarteto Accacio Santos; 1922, Quarteto do Hotel Savoy. O momento mais importante do final do séc. XIX, que influenciaria as artes performativas profissionais ao longo das primeiras três décadas do séc. XX, foi a fundação do Teatro D. Maria Pia, em 1888 (posteriormente Teatro Funchalense, Teatro Manuel Arriaga, teatro municipal Baltazar Dias). As obras de construção terão sido concluídas em 1887, altura em que a Orquestra da Associação Musical 25 de Janeiro deu um concerto para experimentar as condições acústicas da nova sala. A 11 de março de 1888, o teatro é inaugurado oficialmente por uma companhia espanhola contratada pelo negociante espanhol D. José Zamorano, estabelecido no Funchal; a primeira peça a ser representada foi a zarzuela Las dos Princesas. Na sequência da fundação do teatro, experimentou-se um incremento da produção teatral: ao longo de 1888 são apresentados 69 espetáculos (referentes a 34 zarzuelas). De facto, este foi o espaço privilegiado do Funchal para concertos públicos, tendo nele atuado várias companhias de ópera, de revista, de zarzuela e diversos músicos virtuosos. A partir da inauguração do Teatro D. Maria Pia, as representações de teatro lírico de influência italiana começaram a ser mais frequentes – com forte concorrência da zarzuela espanhola –, e o tipo de espetáculo mais comum terá sido o sarau ou a récita com uma mistura de árias das óperas mais famosas de então. Um exemplo deste género de exibição ocorre em 1904, ano em que um conjunto de cantores líricos com formação italiana atua no teatro municipal: o barítono Maurício Bensaúde (teatro alla Scala de Milão), a mezzo soprano Paola Moretti (La Fenice de Veneza) e o tenor Ivo Zaccari (teatro Carlo Felice de Génova), que apresentam um conjunto de êxitos das óperas mais populares. Contudo, no final do séc. XIX as cançonetas ligeiras começam a ganhar a preferência de alguma elite madeirense, ocupando o espaço deixado livre pelos romances (desaparecidos das notícias de imprensa desde a déc. de 1870) e fazendo concorrência às árias de ópera de influência italiana. O termo “cançoneta” começa a aparecer de forma frequente a partir de 1888, coincidindo com o ano de fundação do Teatro D. Maria Pia. As cançonetas eram cantadas maioritariamente por atores e não por cantores líricos; tinham, com frequência, objetivos cómicos: um articulista referia que a cançoneta “De Pernas Para o Ar”, quando interpretada pelo ator Santos, fazia “a gente morrer de riso” (DN, Funchal, 21 out. 1888, 1); outra cançoneta teria o mesmo efeito, sendo descrita como “a engraçadíssima cançoneta: Sol, Lá, Si, Dó que é d’uma pessoa morrer de riso” (DN, Funchal, 13 nov. 1888, 1). Entre as cantoras e compositoras madeirenses, saliente-se Matilde Sauvayre da Câmara (1871-1957), que teve grande influência na vida musical da Ilha na transição do séc. XIX para o séc. XX. Na visita que os reis D. Carlos e D. Amélia fizeram à Madeira em 1901, Matilde Sauvayre da Câmara foi responsável pela organização de uma récita de gala no teatro municipal do Funchal. Sauvayre da Câmara, enquanto artista que alcançou notoriedade a compor e a cantar cançonetas, exemplifica a mudança que se viria a sentir no início do séc. XX, onde a preferência por um estilo musical teatral mais ligeiro, em detrimento das árias de ópera, se veio a confirmar. A cantora madeirense tem sucesso, desde 1893, ao atuar em saraus domésticos realizados em salões nobres de casas de personalidades do Funchal, tais como as do médico Adriano Augusto Larica ou dos Viscondes de Monte Bello; em 1897, surge como protagonista de números dramáticos no Teatro D. Maria Pia, onde também interpreta algumas cançonetas integradas num espetáculo de beneficência. Na área da música para teatro, uma das novidades de maior relevo deste período é a emergência de um repertório original de criação regional de influência lisboeta e espanhola – a revista. A revista madeirense terá provavelmente sofrido o influxo da congénere de Lisboa, por meio dos militares músicos que chegaram à Madeira partidos do continente – como Manuel Ribeiro –, e da zarzuela espanhola, através da ação das várias companhias que estiveram no Funchal neste período. Parece plausível que entre 1909 e a déc. de 1950 tenham sido produzidas no Funchal dezenas de revistas originais, exibidas em espetáculos criativos que misturavam libretistas, compositores e coreógrafos regionais. Ao longo de cerca de 50 anos foi produzido um extenso repertório de revista, mediante o contributo de músicos como Augusto Graça, Manuel Ribeiro, Dário Florez e, no período do Estado Novo, do Cap. Edmundo Conceição Lomelino. No domínio dos libretos, a variedade de autores é maior, destacando-se, entre outros, os nomes de Alberto Artur Sarmento, de Adão Nunes e, na época do Estado Novo, de Teodoro Silva. Nos anos áureos da revista e da opereta regional madeirenses surgiu o tenor lírico Nuno Lomelino Silva (1893-1967), apelidado de “Caruso português”. Nascido no Funchal, no final do séc. XIX, começa a sua atividade de cantor como amador numa opereta na Madeira. Após realizar estudos em Itália, acaba por enveredar por uma carreira internacional, com digressões pela Europa, pela América do Norte, pelo Brasil, pela Ásia, etc. Atuou no Funchal por diversas vezes, acompanhado de excelentes pianistas; entre estes, conhecem-se os nomes de Jacinto C. Baptista Santos, do maestro Jacobs Pierre, de Pedro Guevara e de Regina Cascais. Na área da relação entre a música e o teatro, é ainda de referir João dos Reis Gomes (1869-1950) que, em 1919, publica um esboço filosófico intitulado A Música e o Teatro, o qual ocupa um importante lugar no panorama musicológico madeirense. As novas tecnologias e a emergência do Novo Mundo Os primeiros anos do regime do Estado Novo foram marcados por um conjunto de mudanças tecnológicas que teve um elevado impacto na cultura madeirense. Entre elas encontram-se a telefonia, o cinema e o gramofone, que vieram alterar o modo de recreação dos madeirenses, quer na vida privada, quer na vida social. A telefonia chega à Madeira no verão de 1927, altura em que surgem os primeiros anúncios para venda de material de telefonia da Marconi e Sterling. No entanto, será principalmente a partir da déc. de 1930 que a telefonia se começa a generalizar entre a população madeirense. O cinema ganhou progressivamente a adesão do público, supondo-se que fosse, no segundo quartel do séc. XX, a principal forma de passatempo madeirense. A primeira apresentação do animatógrafo ocorreu no Funchal em 1897; em 1907, ocorreu o lançamento do cinema em termos comerciais. O sucesso obtido por esta arte no Funchal foi de tal ordem que, em 1932, o teatro municipal já funcionava quase exclusivamente como sala de cinema. O gramofone foi outra tecnologia que, na déc. de 1930, marcou de forma indelével o quotidiano e os entretenimentos madeirenses. Pelo menos desde o início da déc. de 1910 que se faz menção desta tecnologia nos periódicos, a qual coincide com o início da decadência da prática musical amadora. É nesta altura que começam a surgir os primeiros anúncios publicitários a vendas de fonógrafos, então designados de “Pathéphone – máquinas falantes” (DN, Funchal, 19 jul. 1910, 3). Estes reclames mantinham-se ao longo de várias semanas, o que indicia que o negócio devia ser rentável. A nova tecnologia era apresentada com grande euforia nos jornais: v.g., afirmava-se que “a descoberta das máquinas falantes para discos sem agulha produziu uma revolução no mundo artístico e musical” (DN, Funchal, 21 nov. 1910, 3) – o que, de facto, veio a confirmar-se nas décadas seguintes. Na déc. de 1930, aparece a denominação “gramofone” num anúncio que informa que “gramofones de origem alemã” podiam ser adquiridos na “rua do Comércio, 166 a 168” (DN, Funchal, 31 jan. 1932, 6). Em espaços comerciais destinados a estrangeiros havia casos de proprietários que preferiam colocar gramofones em vez de pôr música ao vivo: e.g., num anúncio em inglês, a Majestic House informava que todos os dias colocava discos a tocar no seu gramophone, dando especial destaque aos melhores “fados portugueses” (DN, Funchal, 26 jan. 1932, 6). A elevada importância destas tecnologias entre os jovens da déc. de 1930 está bem patente num texto de Luiz Peter Clode, escrito em 1949, onde o autor descreve as motivações para a fundação da Sociedade de Concertos da Madeira, em 1943: “de 1930 a 1943, […] aos rapazes e raparigas dos 15 aos 18 anos pouco interessava a política do espírito. A sua máxima preocupação era o aperfeiçoamento dos gramofones, as atrizes e os atores de cinema, radiotelefonia, o ‘jazz’ e o gosto exagerado pelo futebol” (CLODE, 1949, 1). A difusão destas novas tecnologias na déc. de 1930 contribuiu de forma decisiva para um aumento da influência da música americana na Madeira – tal como no resto da Europa –, em especial através do cinema e dos gramofones. Num anúncio do Jornal da Madeira de 10 de maio de 1924 indica-se existir à venda, na rua da Queimada de Cima, um “grande sortimento de DISCOS entre outros: Fox-trots, Shimmy’s, Boston, Jazz-Band”. Assim, é natural que a música americana começasse a disseminar-se nos entretenimentos madeirenses, principalmente nos diferentes tipos de danças. A influência, não só americana, mas também inglesa chegou à Madeira na déc. de 1920, altura em que se dançava o one step e o fox-trot no Funchal. Entre os compositores madeirenses, encontram-se músicos que criam repertório deste género. O pianista Raul de Abreu compõe, em 1936, uma peça intitulada Kit Cat, Fox-trot, na qual o estilo ragtime é bastante notório. Outro músico madeirense pioneiro nestas novas danças foi Edmundo da Conceição Lomelino, que editou um one-step para piano, intitulado A Little Kiss, Intermezzo Americano, em data incerta (entre 1920 e 1940). A americanização da música de dança e da música em geral continuou no Funchal ao longo da primeira metade do séc. XX, havendo vários indícios dessa aculturação, sobretudo ao longo da déc. de 30, com a difusão de jazz bands. A referência ao jazz é pertinente, principalmente porque é significativa de uma mudança cultural relevante. No Funchal, as notícias sobre jazz bands começaram a surgir sensivelmente a partir de 1927, com menção à prática de jazz habitualmente ligada ao cinema e à dança, confirmando-se assim o paralelismo com a situação em Lisboa. Designadamente, num anúncio a um espetáculo de cinema no Teatro-Circo avisava-se que se estreava “um jazz band, que doravante passa a tocar em todos os espetáculos deste cinema”, acrescentando-se que seria “mais um atrativo para o público” e que esta música estava “muito em uso em todas as partes da Europa” (DN, Funchal, 30 jul. 1927, 2). Poucos meses depois, no Strangers Clube do Casino Victor, anunciava-se que às seis horas haveria “dança com acompanhamento do Jazz-Band do Club” (DN, Funchal, 29 dez. 1927, 3). Durante a déc. de 30, estas referências multiplicam-se, surgindo várias orquestras de jazz que tocam em cafés, hotéis, clubes ou no Casino Vitória: Orquestra Jazz de Manuel Freitas (1932), Orquestra Jazz Café Ritz (1932), Orquestra Jazz Oceânia (1933), Orquestra Jazz Amaral (1933), Abreu’s Dancing Orchestra (1933); Jazz Band de Jacinto Baptista Santos (1935), Orquestra Jazz Senhor Silva (1935), Orquestra de Jazz da Academia Musical Instrução e Recreio (1936), Orquestra Jazz Vanize Meireles (1937), entre outras. Estes grupos incluíam instrumentos como a bateria de jazz, a viola (francesa), o piano, o bandoneon e o saxofone, que em alguns casos continuavam a coexistir com o violino, o clarinete e o trompete. Um dos primeiros músicos madeirenses a ser influenciado pela “nova música” americana e a obter enorme sucesso foi Tony Amaral (1910-1976). No início dos anos 40, o pianista e compositor madeirense criou o Conjunto Tony Amaral e a sua Orquestra, com o qual atuava no hotel Bellavista. Em 1946, muda-se para Lisboa, onde alcança um enorme êxito, inclusivamente junto da crítica. Na capital, sob a designação de Tony Amaral and His Boys, o conjunto atuou em nightclubs, restaurantes, teatros e no Casino Estoril. Em Lisboa, o conjunto era, numa primeira fase, constituído pelos músicos Carlos Menezes (guitarra elétrica), José de Freitas (contrabaixo), Barrinhos (bateria), Tony Amaral (piano) e Max (voz). Em 1949, o conjunto grava um disco com a Valentim de Carvalho, incluindo composições de Tony Amaral e de Max e recriações de canções tradicionais madeirenses, entre as quais o célebre Bailinho da Madeira e a música de influência africano-americana Noites da Madeira. O famoso cantor madeirense atuou no grupo até iniciar uma carreira a solo, na qual atingiria o estatuto de uma das mais populares vedetas da rádio, do teatro e da televisão portuguesa. O agrupamento de Tony Amaral é modelo de um novo tipo de grupo de músicos profissionais, normalmente denominado de “conjunto”, que começa a proliferar de forma mais acentuada na déc. de 1940, principalmente em conexão com o aumento dos hotéis e da oferta turística madeirenses. O termo “conjunto” aplicou-se a vários tipos de formações, mas na Madeira foi sobretudo utilizado, nas décs. de 1940 e de 1950, para designar novos agrupamentos de pequena dimensão e com configurações variadas, que se desenvolveram em torno da bateria de ritmo e com um repertório baseado nas danças em voga. Os conjuntos representam, deste modo, uma nova forma de agrupamento de músicos profissionais ligados ao turismo, a qual vem na sequência dos sextetos, dos quintetos ou dos quartetos que proliferaram no Funchal na transição do séc. XIX para o séc. XX. Os conjuntos distinguem-se dos grupos anteriormente referidos por apresentarem programas de influência anglo-americana e por disporem de um efetivo instrumental que inclui bateria, baixo ou contrabaixo, piano, viola amplificada, habitualmente, e, mais tarde, guitarra elétrica. Alguns conjuntos têm também instrumentos de sopro, como trompete, clarinete ou saxofone. Os conjuntos de Tony Amaral foram os primeiros do género em Portugal que alcançaram um elevado sucesso, tocando música swing, danças latino-americanas e composições de inspiração folclórica em instrumentos elétricos. Assim, é natural que um articulista se referisse ao “quinteto Tony Amaral” como tendo “feito a maior propaganda da Madeira no Continente sendo justamente considerado o primeiro conjunto musical português” (DN, Funchal, 1 jan. 1951, 6). O sucesso alcançado pelo conjunto de Tony Amaral, quer em Portugal continental, quer no estrangeiro, contribuiu certamente para o aparecimento de um grande número de grupos que seguiram o seu modelo, tanto a nível de efetivo instrumental, como de repertório. Assim, ao longo da déc. de 1950, surgem dezenas de grupos musicais que se apresentam sob a designação de “conjuntos” ou de “orquestras”, sem diferenciação substancial entre ambas as denominações, que seguem de perto o modelo do conjunto de Tony Amaral. Entre esses conjuntos, é possível destacar os seguintes, que, de acordo com os periódicos funchalenses, estão em atividade na déc. de 50: Conjunto Blue Moon (1951), Trio “Jess and His Boys” (1952), Conjunto Musical Privativo do Savoy (1954), Conjunto Musical “Tino Cubanos”, Conjunto Musical “Os Rapazes do Ritmo” (1954) – os quais atuam em Luanda em 1957 –, Orquestra “Os Reis do Ritmo” (1954), Orquestra privativa Conjunto “Jorge Brandão” (1954), Conjunto “Flamingo” (1954), Conjunto Irmãos Freitas (1955), Conjunto Académico (1955), Orquestra Zeca da Silva e o seu Conjunto (1955), Conjunto Privativo do Casino (1957), Conjunto Musical “Atlântico Jazz” (1957), Conjunto “Virgílio Cardoso”, (1957), Conjunto Alberto Amaral (1957), Conjunto “Os Amigos da Onça” (1958) – no mesmo ano aparece sob o nome de Orquestra privativa “Os Amigos da Onça” –, Conjunto “Novo Ritmo” (1958), Conjunto Tony Amaral Júnior (1958). Um grupo que merece um destaque especial neste período é o Conjunto de Helder Martins. Em meados dos anos 50, Helder Martins (1929-1978) foi o pianista do Quinteto do Hot e foi pioneiro do jazz em Lisboa, conjuntamente com outros dois madeirenses, o guitarrista Carlos Menezes e o vocalista Max. A partir da déc. de 60, surge uma segunda geração de conjuntos, como o Conjunto Académico João Paulo com Sérgio Borges, Dinâmicos, Demónios Negros, Incríveis, Dancers, entre outros projetos que alcançaram projeção nacional, os quais foram influenciados por grupos como os Shadows ou os Beatles. É também nesta altura que muitos conjuntos começam a acrescentar à sua designação a expressão “ritmos modernos”, a qual se torna comum: Conjunto de Ritmos Modernos “Os Dancer’s” (1965), Conjunto de Ritmos Modernos Tonar’s (1965), Conjunto de Ritmos Modernos “Os Baitas” (1969), grupos musicais de ritmos modernos ou de rock Os Rivais de Câmara de Lobos e os Hamong Band (1970). A título de exemplo, num espetáculo de homenagem à cançonetista Ana Maria, o articulista refere-se à “exibição dos conjuntos de ritmos modernos Vulcânicas e os Dinâmicos” (DN, Funchal, 19 mar. 1965, 7). Entre estes agrupamentos, o Conjunto Académico João Paulo viria a ser o de maior êxito, ocupando o lugar cimeiro da música ligeira regional e nacional, outrora pertencente ao Conjunto de Tony Amaral. A banda nasceu no Liceu Jaime Moniz, no início da déc. de 60, e foi influenciada pela nova vaga de grupos musicais e de cantores dos anos 60, cunhada no estilo dos Beatles. Em 1964, o grupo ganhou um dos concursos de música realizados na Madeira – uma promoção da Rivus, no antigo Cine-Parque – e foi premiado com atuações em Portugal continental, na rádio e na televisão. Na televisão, o grupo participou, com grande sucesso, no programa musical “T.V. Clube”, o que fez catapultar a sua música a nível nacional, de tal modo que os músicos madeirenses acabariam por decidir radicar-se em Lisboa, para dar continuidade ao seu trabalho. Os anos de 1965 e 1966 foram de grande sucesso. Em pouco tempo, o conjunto teve a oportunidade de gravar discos e começou a ser presença assídua em emissões de rádio e de televisão, bem como em espetáculos. Entre as exibições de maior sucesso de início de carreira, salientam-se as realizadas no Teatro Politeama e, depois, no Teatro Monumental. No Politeama, o conjunto tocou para casa cheia durante um mês e meio, num ambiente idêntico ao dos concertos dos Beatles, com uma reação do público inovadora em Portugal, a qual marcaria o início de uma nova era musical. O conjunto participou, por duas vezes, no Festival RTP da Canção, tendo alcançado o 2.º lugar em 1966 e o 1.º lugar em 1970. Da sua extensa discografia salientam-se as seguintes edições, entre 1964 e 1968, sob a designação Conjunto Académico João Paulo: Conjunto João Paulo (EP, Columbia, 1964), De Novo Com João Paulo e o Seu Conjunto Académico (EP, Columbia, 1965), + 1 Disco = 4 Sucessos (EP, Columbia, 1965), Diz-lhe (EP, Columbia, 1966), Eurovisão (EP, Columbia, 1966), Poema De Um Homem Só (EP, Columbia, 1967), L’Amour Est Bleu (EP, Columbia, 1967), Kilimandjaro (EP, Columbia, 1967), O Louco (EP, Columbia, 1967), A Shadow Rounds… (EP, Columbia, 1968). A partir de 1970, os discos são publicados sob a nova denominação de Sérgio Borges e o Conjunto João Paulo: Sérgio Borges com o Conjunto João Paulo (EP, Columbia, 1970), Lavrador (EP, Columbia, 1971), Meu Corpo E Minha Seiva (Single, Columbia, 1970), MAR (Single, Columbia, 1972). A expressão “ritmos modernos” teve tal aceitação na Madeira que, em 1970, é organizado um certame de conjuntos de ritmos modernos, organizado pela Comissão de Festas do Fim do Ano e integrado nas Festas da Cidade do Funchal. Segundo um articulista do Jornal da Madeira, não se podia “esquecer que no tempo eufórico dos conjuntos musicais do género alguns artistas madeirenses nasceram para o music-hall português e até para o internacional”, entre os quais Luís Jardim, que dos “Demónios Negros saltou para o conjunto inglês Bossa Cálida, João Paulo com Sérgio Borges, Valério Silva, o próprio Gabriel Cardoso […], Os Dinâmicos e outros conjuntos de agradável presença” (JM, Funchal, 14 out. 1970, 1 e 7). Depois do desfecho do concurso, a comunicação social noticia que “milhares de pessoas assistiram à final”. O laureado foi o grupo Mud Revolution, que “ultrapassou o Habitat de um ponto e o Comuna Singular de dois”, tendo o júri argumentado que os elementos do conjunto vencedor estavam “industriados naquilo que se denomina música de vanguarda” e que “se realizaram compondo aquilo que apresentaram” (JM, Funchal, 31 dez. 1970, 1 e 3). A introdução de novas tecnologias – fonograma, telefonia e cinema –, bem como a influência da cultura estrangeira (que, por meio daquelas, se tornava acessível), foram acompanhadas de uma reação de resistência cultural com contornos políticos, a qual consistiu na procura da definição da identidade da cultura musical regional. Se, na transição do séc. XIX para o séc. XX, já haviam sido levadas a cabo várias ações de valorização do património musical regional, foi a partir da déc. de 1930 que se realizaram estudos sistemáticos e rigorosos sobre a cultura tradicional madeirense, altura em que as entidades políticas passaram a exercer uma maior intervenção, mais organizada, no âmbito das tradições regionais. De facto, no Estado Novo procurou impulsionar-se as relações entre turismo e folclore, para o que foi criado, em 1933, o Secretariado de Propaganda Nacional (posteriormente Secretariado Nacional de Informação), instituição dirigida por António Ferro entre 1933 e 1950. Este organismo procurou incentivar a perpetuação das tradições folclóricas, em proveito da afirmação nacionalista do regime, através de uma atividade extensível a nível nacional, por meio das diversas repartições e casas do povo (PINTO, 2006, 13). No domínio do folclore e dos estudos sobre as tradições musicais madeirenses, são especialmente relevantes os trabalhos elaborados pelo Visconde do Porto da Cruz (1890-1962) e pelo jornalista e folclorista Carlos Santos (1893-1955). A partir de 1933, aproximadamente, o Visconde do Porto da Cruz (1890-1962) realizou vários trabalhos etnográficos e apresentou conferências sobre as tradições musicais madeirenses (sobre o traje, passando pelas danças, até às trovas e cantigas da Madeira). Salvo raras exceções, estes estudos, usualmente de pequena dimensão (20 a 30 páginas), foram publicados a expensas próprias, destacando-se, na área das tradições musicais, os seguintes: Trovas e Cantigas Madeirenses (1934), Danças Madeirenses (1946), Trovas e Cantigas do Arquipélago da Madeira (1954), Danças e Músicas do Arquipélago da Madeira (1954), O Folclore Madeirense (1955), O Trajo do Arquipélago da Madeira (1955) e As Danças e as Músicas Madeirenses (1959). Carlos Santos realizou igualmente estudos mais aprofundados, com uma argumentação mais sólida, tendo as suas obras alcançado alguma reputação, designadamente as seguintes: Tocares e Cantares da Ilha, Estudo do Folclore da Madeira (1937), Trovas e Bailados da Ilha (1942) e O Traje Regional da Madeira (1952). Estas investigações etnográficas foram acompanhadas de uma componente de prática musical, tendo Carlos Santos dirigido diversos grupos musicais folclóricos, como o Grupo Folclórico dos Louros (1938), o Grupo Folclórico e Cultural Carlos Santos (1939), o Grupo Folclórico da Casa do Povo da Camacha (1949), o Grupo Folclórico da Ponta do Pargo, o Grupo Folclórico da Boaventura, o Grupo Folclórico da Ponta do Sol e o Grupo Folclórico do Livramento-Monte. Segundo Rui Magno Pinto, a partir do final da déc. de 1950 assiste-se a um crescimento do turismo e a uma maior procura por espetáculos de folclore em hotéis e em restaurantes. Assim, em plena déc. de 1960, atuavam nos hotéis do Funchal os seguintes grupos: Grupo Folclórico da Camacha (hotel Savoy, Reid’s hotel), Grupo Folclórico do Livramento (hotel Sheraton), Ilhéus (hotel Monte Carlo, Vila Ramos, Casino Park hotel), Grupo Folclórico do Funchal (hotel Madeira Hilton) e Grupo Folclórico do Porto Santo (hotel do Porto Santo). Além disso, a influência do folclore chega ao teatro. Em 1940, um Grupo Folclórico fundado por Carlos Santos, sediado no Patronato de S. Pedro, apresenta Visão Lírica-Coreográfica da Ilha da Madeira, da autoria do próprio Carlos Santos, no teatro municipal. A peça integrava diversos números musicais de cariz tradicional, tais como canções da ceifa, baile corrido, canção da carga, canção dos borracheiros, canção do berço, canção da sementeira, charamba, mourisca, bailes – da Ponta do Sol, dos Canhas, das Camacheiras –, pesado e bailinho de oito. O hábito do teatro de revista mantém-se no período do Estado Novo, pelo menos até à déc. de 1950. Nesta época, um dos compositores de relevo foi Edmundo da Conceição Lomelino (1886-1962), que criou várias peças de teatro de revista inspiradas na realidade madeirense, as quais alcançaram sucesso entre o público do Funchal. Entre as composições teatrais mais importantes ressaltam Água Benta, A Primavera, A Madeira em Festa (1938) – também representada nos Açores –, Carnaval (1939), Bolas de Sabão (1944) e Flores da Madeira (1945). O enredo das peças de teatro estava maioritariamente ligado a acontecimentos sociais e políticos da altura. Exemplo disso é a peça de teatro de revista Carnaval, em que Teotónio da Silva fez uma paródia à conferência de Munique de 1938. O Capitão Lomelino foi autor da música desta peça, com base num texto de Teotónio da Silva (1900-1976), dramaturgo com quem o compositor colaborou mais frequentemente neste âmbito. A introdução das novas tecnologias contribuiu para o declínio da dedicação à música no espaço doméstico e, em menor escala, para a diminuição da prática instrumental e vocal nos grupos de músicos amadores. O piano, nomeadamente, perdeu o seu lugar central nos entretenimentos familiares, papel que passou a ser ocupado pelo gramofone e pela rádio. As lojas que anteriormente incentivavam a compra de pianos para animação defendiam agora ser mais moderna e mais simples a compra de um gramofone. Desta forma, ao longo da déc. de 1930, os jovens começaram a desinteressar-se da prática musical, como refere Luís Peter Clode. De modo a conservar o que tinham por “música de qualidade” e uma “política do espírito”, os irmãos Luiz Peter Clode (1904-1990) e William Clode (1900-1980) reúnem um conjunto de intelectuais e de artistas e formam, em 1943, a Sociedade de Concertos da Madeira (SCMa) e, três anos depois, a Academia de Música da Madeira (AMM). No seguimento destas instituições, os irmãos Clode fundam, conjuntamente com Herculano Ramos e Arlindo Ramos, a rádio Posto Emissor do Funchal, com o propósito de aumentar o nível cultural da população e de lhe incutir o gosto pela música que consideravam de valor. A SCMa tinha o propósito de fomentar a “arte musical” na Madeira, em proveito de “uma sociedade de elite”. Com esse objetivo, a SCMa deveria organizar concertos, conferências e festas de arte que integrassem artistas madeirenses e continentais de mérito reconhecido. Apesar de a SCMa ter uma índole assumidamente elitista, os seus estatutos referiam que poderiam ser promovidos concertos, com artistas contratados para o efeito, para o público em geral. Nomeadamente, o auditório do jardim municipal do Funchal foi inaugurado num espetáculo da Orquestra de Concertos da Emissora Nacional, organizado pela SCMa, o qual contou com a assistência de milhares de pessoas. Inclusivamente, foram realizados concertos populares ao ar livre em vários locais do Funchal; por norma integrados nos Festivais de Música da Madeira, da responsabilidade da SCMa, estes concertos foram realizados em espaços tais como a Qt. Magnólia e o Lg. do Município, tendo a sua difusão atingido o auge principalmente ao longo da déc. de 50. Luiz Peter Clode deixou um vasto legado de obras, na sua maior parte pequenas peças que imitam o estilo dos compositores do barroco, do classicismo e do romantismo. Obras suas foram tocadas por alguns dos eminentes músicos que atuaram no Funchal sob o patrocínio da SCMa. Entre as suas composições mais importantes, contam-se três peças para piano – Canção de Amor, op. 23, Fantasia N.º 1, op. 12 e Fantasia N.º 2, op. 31 – e uma obra sacra, um Tantum Ergo para duas vozes e órgão. A fundação da AMM teve como primeiro intuito o aproveitamento das vocações no domínio da música. No plano curricular, a AMM procurou seguir, desde a sua criação, o modelo educativo do Conservatório Nacional, o que veio a possibilitar aos alunos da AMM o reconhecimento legal, a nível nacional, das suas habilitações. A oferta da AMM permitiu que crianças, jovens e artistas da Madeira pudessem aceder a um ensino baseado no repertório da tradição erudita europeia, de acordo com padrões educativos de conservatórios e de escolas de música erudita então vigentes no mundo ocidental. Desde o pós-25 de Abril ao início do séc. XXI A revolução de 25 de abril de 1974 trouxe mudanças de fundo na cultura musical madeirense. Com a autonomia da Madeira, em 1976, foram regionalizados vários serviços da administração pública, nomeadamente nas áreas da educação e da cultura, em que foram criadas ou semiprofissionalizadas estruturas culturais e educativas ligadas à música. Os primeiros tempos pós-revolução foram conturbados na Madeira, algo que se refletiu no quotidiano de algumas instituições ligadas ao ensino da música: e.g., a 29 de julho de 1974, a Academia de Música e Belas Artes da Madeira foi ocupada por “um grupo representativo de professores, alunos e de mais pessoas interessadas no desenvolvimento do meio cultural madeirense” (DN, Funchal, 30 jul. 1974, 1). A Orquestra e o Coro de Câmara da Madeira tiveram de adequar o seu discurso e o público-alvo aos novos tempos. Assim, menos de um ano após a revolução, noticiava-se que a “Orquestra e Coro de Câmara da Academia, desde outubro, tem vindo a atuar em diversos pontos da Ilha, contribuindo para uma maior difusão da cultura musical” (DN, Funchal, 26 jan. 1975, 1). Poucos meses depois, num anúncio a um concerto no forte de São João Baptista, informava-se que este era destinado “sobretudo aos pescadores, operários e camponeses da freguesia de Machico” (DN, Funchal, 27 abr. 1975, 3). Finalmente, sobre outro concerto, dirigido a associados e familiares do Sindicato Livre dos Operários da Construção Civil e Ofícios Correlativos do Distrito do Funchal, dizia-se ter “como objetivo principal tornar acessível a boa música às camadas da população habitualmente alheia à realização de concertos” (DN, Funchal, 2 jul. 1975, 6). Durante esta época, realizaram-se, no Funchal, eventos musicais de intervenção política, como concertos de “canto livre”, onde se procurava “lançar para o público canções com uma temática de certo significado político-social”, nas palavras do cançonetista Rui Mingas (DN, Funchal, 12 jul. 1974, 4). Neste âmbito, realizou-se, no Funchal, um espetáculo com cançonetistas de intervenção política, em que participaram músicos como Adriano Correia de Oliveira, Rui Mingas, Jorge Letria, Manuel Freire e Carlos Paredes. Alguns destes concertos eram abertos a qualquer pessoa. A título de exemplo, sobre um evento organizado no então Liceu Nacional do Funchal, informava-se que poderiam inscrever-se nele e “participar como intérpretes todos os que se queiram manifestar adentro do contexto de tal género musical” (DN, Funchal, 2 jul. 1974, 8). No entanto, este tipo de exibições musicais foi desaparecendo com o estabelecimento do regime autonómico, mantendo-se apenas, durante algum tempo, em comícios de partidos de esquerda. A forte tradição musical continuou nos hotéis da Madeira no período pós-25 de abril, não tendo os conjuntos sido diretamente afetados pela revolução (no entanto, a partir da déc. de 1990, assistir-se-á a uma forte precarização dos vínculos laborais dos músicos, bem como a uma redução do valor das remunerações por serviço). Entre os músicos e os novos conjuntos que se destacaram nesta altura nos hotéis, mencionam-se, numa listagem não exaustiva, os seguintes: Celso e o seu conjunto (hotel Madeira Palácio); O Pentágono & Zeca da Silva (Sheraton hotel); Conjunto Habitat (Holiday Inn Madeira); Conjunto Musical “Tap Herperi” e Galáxia (hotel Savoy); Roger Sarbib e os conjuntos Octopus e Ària (Casino Park hotel); Conjunto Pégaso (hotel Atlantis); Conjunto Express Band (hotel Vila Ramos); Conjunto Privativo Fire Work (hotel Savoy); Conjunto The Images (Taste Sheraton hotel); Conjunto “Ritmo 5” (hotel Girassol); Conjunto Contacto (hotel São João); Conjunto Musical Zenith (Casino Park hotel); Tony Cruz (hotel Savoy); Conjunto de Tony Amaral Jr. (Casino Park hotel). Tony Amaral Júnior (1938) merece ser posto em evidência, na qualidade de improvisador e de promotor da música jazz (desde o pós-25 de Abril até à sua partida para Cardiff, em 1989). O pianista teve uma carreira semelhante à do seu pai, Tony Amaral, e notabilizou-se pela sua qualidade técnica como intérprete, bem como pelos conhecimentos musicais superiores de que dispunha, derivados de uma formação musical mais completa. Tocou no hotel Miramar (1958), no Casino da Madeira às datas de 1965 e de 1979 e no hotel Savoy (1973). Em 1986, fundou o Madeira Jazz Club, que durante alguns anos foi o ponto de referência do jazz no Funchal. Atuou em festivais de jazz em Portugal, no Reino Unido e na França, tendo atraído muitos alunos particulares em razão do seu prestígio e do seu talento (quer ao piano, quer na improvisação de jazz); alguns dos seus alunos tornaram-se músicos de relevo no panorama artístico funchalense, como Adler Pereira ou Humberto Fournier. A partir de 1976, o Governo da Região Autónoma da Madeira (RAM) implementou um conjunto de políticas na área da educação, o qual teve um impacto significativo na área da música, quer integrada na educação artística em geral, quer no ensino artístico especializado, bem como no regime de ocupação de tempos livres. Instituições como o Conservatório-Escola Profissional das Artes da Madeira (CEPAM) – instituição sucessora da AMM, que se converteu em Conservatório de Música em 1977 – e o Gabinete Coordenador de Educação Artística – depois Direção de Serviços de Educação Artística e Multimédia (DSEAM), integrada na Direção Regional de Educação – funcionaram como dois pilares educativos que permitiram o incremento do número de praticantes, bem como das competências musicais de todos os envolvidos na cultura musical madeirense. Estas duas instituições foram responsáveis pela formação de um conjunto considerável de recursos humanos de elevada competência musical. O aumento de músicos qualificados, juntamente com a opção das entidades governamentais em apoiar projetos com identidade jurídica, incentivou a criação de novos empreendimentos e associações culturais específicas do domínio musical, bem como o rejuvenescimento de antigos agrupamentos – no que toca à idade dos executantes e ao tipo repertório –, tais como bandas filarmónicas e grupos de bandolins. Assumiram identidade jurídica e transformaram-se em associações culturais, entre outros, os seguintes agrupamentos, bandas, grupos musicais e coros: Banda Recreio Camponês-Associação Cultural e Recreativa do Concelho de Câmara de Lobos; Associação Cultural Coro de Câmara da Madeira; Associação Grupo Cultural Flores de Maio; Grupo Coral do Estreito; Banda Municipal Paulense; Associação Musical e Cultural Xarabanda; Associação Cultural Encontros da Eira; Associação de Amigos do Conservatório de Música da Madeira; Associação de Amigos do Gabinete Coordenador de Educação Artística; Associação Tuna Universitária da Madeira. As diferentes coletividades associativas e agrupamentos de bandolins juntaram-se, tendo surgido a Associação de Bandolins da Madeira a 28 de março de 2000; o mesmo aconteceu no caso das bandas filarmónicas e dos grupos de folclore, tendo sido fundadas a Associação de Bandas Filarmónicas da Região Autónoma da Madeira (2000) e a Associação de Folclore e Etnografia da Região Autónoma da Madeira (2005). A AMM e, posteriormente, o CEPAM formaram centenas de profissionais. Muitas das personalidades que vieram a integrar e a liderar a vida musical no último quartel do séc. XX obtiveram formação na AMM e no CEPAM; nos planos musical e do ensino da música, destacam-se personalidades como o tenor e compositor João Victor Costa (autor do hino da RAM, fundador e maestro de vários coros), Tony Amaral Júnior, a violetista Zita Gomes, o violoncelista Agostinho Henriques, o maestro Fernando Eldoro, o pianista e professor João Atanásio, os flautistas Agostinho Bettencourt e Pedro Camacho, os guitarristas João Paulo Henriques e Pedro Abreu, o maestro João Basílio, o tenor Alberto Sousa, o violinista Norberto Gomes, o clarinetista Francisco Loreto, o bandolinista Norberto Cruz, os compositores Nuno Miguel Henriques, Nuno Jacinto e Pedro Camacho, os violoncelistas Luís Bruno Andrade e César Gonçalves, entre outras; no plano dos estudos de cariz musicológico, realcem-se João Rufino Silva – com um trabalho notável ao nível da recuperação das partituras dos cânticos religiosos do Natal madeirense, bem como de quase toda a música religiosa madeirense do séc. XX –, Vítor Sardinha – com estudos relevantes sobre a música nos hotéis e sobre a história mais recente das bandas filarmónicas – e Rui Magno Pinto – com formação académica especializada em musicologia, tendo realizado trabalhos importantes ao nível da história da música na Madeira; finalmente, no plano de altos quadros da administração pública, salientam-se os nomes de Carlos Gonçalves, José Pereira Júnior, Virgílio Caldeira e Natalina Santos. Por sua vez, a DSEAM complementou o trabalho desenvolvido pelo CEPAM no ensino artístico e vocacional, com um trabalho de base no ensino genérico e em atividades de ocupação de tempos livres. Esta ação dupla do CEPAM e da DSEAM permitiu um acesso facilitado e de qualidade à música por parte das crianças e jovens na RAM, nomeadamente devido à existência de extensões do conservatório em vários concelhos, permitindo a aprendizagem em regime supletivo ou a frequência de atividades artísticas extracurriculares a valores muito reduzidos. No início do séc. XXI, devido à intervenção da DSEAM no ensino genérico, os alunos do pré-escolar e do 1.º ciclo do ensino básico têm aulas com professores especializados de música. Acresce ainda que os alunos estudam instrumentos Orff e flauta de bisel, e, de acordo com as competências dos professores, têm a possibilidade de aprender instrumentos de corda, sopro e teclado em contexto escolar, através do projeto Modalidades Artísticas; neste contexto, existem vários professores que ensinam guitarra clássica e elétrica, instrumentos tradicionais, teclados e instrumentos sopro. Através desta iniciativa foi possível inverter a situação de quase desaparecimento dos instrumentos tradicionais, existindo muitas crianças e jovens a tocar os cordofones madeirenses (braguinha, rajão e viola de arame). No domínio da ocupação de tempos livres, criaram-se dezenas de grupos artísticos, os quais realizaram uma temporada anual com cerca de 240 concertos, disseminados pelos concelhos da RAM. Na sequência da aprendizagem artística (também musical), surgiram projetos de grande impacto turístico, tais como a Semana Regional das Artes, que se associou ao Festival Atlântico. Ainda no âmbito da DSEAM, implementou-se, desde 2004, uma política de apoio à investigação no domínio da educação artística, que teve resultados relevantes ao nível da melhoria do ensino, bem como nos âmbitos da conservação do património musical e do estudo dos artistas madeirenses, os quais são inseridos no currículo escolar da RAM. O incentivo à pesquisa foi acompanhado de atividades de divulgação na comunicação social e na comunidade científica, tendo daí resultado vários programas televisivos, edições com conteúdos originais, comunicações em congressos e artigos em revistas científicas. No âmbito da preservação e da difusão dos instrumentos tradicionais madeirenses, é relevante frisar os seguintes nomes, que contribuíram para o reflorescimento na prática dos cordofones tradicionais (braguinha, rajão e viola de arame): Roberto Moritz e Roberto Moniz, pelo trabalho continuado de ensino dos cordofones tradicionais; Vítor Sardinha, pelo ensino e pela gravação de álbuns discográficos com viola de arame e rajão; Manuel Morais, pelos estudos e pelas edições de repertório do séc. XIX para braguinha; Carlos Gonçalves, por ter possibilitado a aprendizagem dos instrumentos tradicionais nas escolas da RAM; e Rui Camacho, pelas exposições e edições de cariz organológico, as quais visaram a divulgação e defesa daqueles instrumentos – esta proteção foi protagonizada pela Associação Musical e Cultural Xarabanda. O papel da Associação Musical e Cultural Xarabanda foi decisivo na renovação da música do legado madeirense, quer através de trabalhos de recolha, quer por meio dos arranjos musicais efetuados sobre canções tradicionais, os quais levaram novos instrumentos e sonoridades à música tradicional. Neste domínio, é ainda relevante mencionar os grupos de música tradicional Encontros da Eira e Banda D’Além que, a par do grupo Xarabanda, foram os principais dinamizadores da nova música tradicional madeirense. Com a entrada de Portugal na União Europeia, a RAM teve acesso a subsídios que contribuíram para o desenvolvimento regional em vários sectores, nomeadamente na área da cultura e da educação, em que foram construídas e recuperadas diversas infraestruturas um pouco por toda a Ilha (como sedes para coletividades e centros cívicos e culturais com pequenos auditórios), as quais melhoraram as condições do exercício da atividade musical. No que diz respeito às pequenas coletividades culturais, houve pouca capacidade dos agentes desta área em concorrer a fundos europeus, por falta de recursos financeiros próprios e, possivelmente, de apoio técnico dos serviços governamentais na área cultural. Assim, as receitas das associações culturais com maior impacto junto dos turistas, tais como a Associação Recreio Musical e União da Mocidade (Orquestra de Bandolins da Madeira) e o Grupo de Folclore e Etnográfico da Boa Nova, são quase exclusivamente provenientes dos concertos e das animações que realizam. Trata-se de exemplos de sucesso, em termos de sustentabilidade financeira, de agrupamentos que conseguiram aliar o trabalho artístico de qualidade à capacidade de comunicação e ao marketing cultural. Ambos os grupos têm trabalhos discográficos importantes e uma elevada preocupação em conservar o património musical regional. No caso de instituições com capacidade financeira, advinda principalmente de financiamento público regional, os fundos europeus recebidos foram aplicados maioritariamente em formação, através do programa Rumos – como aconteceu no CEPAM –, bem como na criação da marca Festivais Culturais da Madeira – com o programa Intervir+ –, mediante a qual se procurou reunir os quatro festivais organizados pelo Governo Regional da Madeira, através da Direção Regional dos Assuntos Culturais (Encontro Regional de Bandas Filarmónicas da RAM, Festival de Música da Madeira, Festival Raízes do Atlântico e Festival de Órgão da Madeira). Os festivais são o corolário de uma política de animação cultural que visou, desde o início da RAM, a organização de eventos que beneficiassem os madeirenses e os turistas, tendo em consideração a vocação turística da região. Nesse sentido, o Governo Regional teve a preocupação de: organizar concertos e sessões de folclore, concertos de música clássica e espetáculos de música tradicional; produzir concertos com artistas de fora da Ilha; e apoiar acontecimentos culturais com potencial turístico, tais como o Carnaval, a Festa da Flor ou a Festa do Vinho, onde a participação de músicos sempre foi uma constante. Outros festejos musicais de relevo neste período foram: o Festival da Canção do Faial; o Festival Internacional de Música Antiga, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Cine Fórum; o Madeira Bach Festival; o Festival Regional de Folclore (mais tarde Festival Regional de Folclore “24 horas” a Bailar); o Festival da Canção Infantil, (posteriormente Festival da Canção Infanto-Juvenil); o Festival de Coros da Madeira; e o Funchal Jazz Festival. Desde o final da déc. de 1990, havia-se assistido a uma semiprofissionalização da Orquestra Clássica da Madeira (OCM) – instituição que sucedeu à Orquestra de Câmara da Madeira –, mais direcionada para a música instrumental, não se aproveitando o seu potencial para áreas de cariz mais cosmopolita, como a ópera, os musicais ou o bailado. Houve, embora de forma intermitente, alguma articulação entre o ensino artístico especializado e a OCM, o que permitiu o aumento de músicos portugueses, após um período em que os lugares da orquestra eram principalmente preenchidos por músicos estrangeiros, na sua maioria oriundos do Leste Europeu, que tinham ido para a Madeira no período após a queda do muro de Berlim. Os músicos de Leste foram responsáveis pela elevação da qualidade da execução musical, maioritariamente na área das cordas, e contribuíram significativamente para a melhoria da OCM. Nos anos 90, no contexto do jazz, há que realçar o grupo Oficina, que procurou alargar o número de adeptos deste género musical. Uma das cantoras mais relevantes do início do séc. XXI foi Vânia Fernandes, que atuou nos hotéis da Madeira antes de se catapultar para o panorama nacional. A cantora madeirense ganhou renome em 2008, com a participação no programa musical “Operação Triunfo 3”, emitido pela RTP, no qual ficou classificada em 1.º lugar. Em março de 2008, no seguimento desta vitória, participou no Festival RTP da Canção, que venceu com o tema “Senhora do Mar”. Entre finais do séc. XX e inícios do séc. XXI, o turismo madeirense evoluiu significativamente, tendo-se caracterizado tanto pelo constante aumento do fluxo de turistas como pelo consequente aparecimento de novas unidades hoteleiras, as quais empregaram um número elevado de músicos, embora sem qualquer vínculo contratual. As causas desta precariedade laboral são complexas, mas deverão estar relacionadas com o aumento exponencial dos músicos de melhor formação no mercado de trabalho (entre os quais alguns músicos do Leste da Europa, habituados a remunerações mais baixas) e com a concorrência no domínio do entretenimento nos hotéis, designadamente dos disc-jockeys ou DJs (as áreas das danças e da animação eram anteriormente dominadas pelos conjuntos). De facto, encontram-se referências a disc-jockeys no Funchal a partir da déc. de 1990: e.g., no hotel do Mar, em 1992, atua o “popular disc-jockey Britânico Biko Bangs, excelente intérprete de temas anglo-saxónicos” (DN, Funchal, 21 fev. 1992, 13). Juntamente com os disc-jockeys começou a emergir, na déc. de 1990, uma geração de grupos de rock e de subgéneros do rock. Os conjuntos que precederam estes novos grupos tocavam habitualmente na hotelaria madeirense para um público maioritariamente estrangeiro, pertencente a uma faixa etária mais avançada em idade; diferentemente, os novos grupos rock pertencem ao fenómeno das “bandas de garagem” e são influenciados pela música grunge, hard rock, heavy metal, rock alternativo, gothic metal e por outros subgéneros do rock; tocam principalmente para públicos jovens, em bares, em discotecas ou em festivais específicos, como a Festa da Juventude, o Super Rock ou o Antena 3 Rock. Entre os grupos participantes em concursos de rock ou que foram noticiados na comunicação social estão os seguintes: Nostradamus, Requiem, Alma Gesto, Nude, Pilares de Bânger, Cães Abstractos, Quarto Quadrante, Sidewalk, Opium, Insania, Crumbs. Ao contrário do que aconteceu em Portugal continental, na Madeira eram poucas as possibilidades de atuação destes grupos, tal como os próprios agrupamentos por vezes reclamavam. Assim, os vários grupos que surgiram foram quase sempre de curta duração e tiveram pouca ou nenhuma projeção nacional (ao contrário do que havia acontecido na era dos conjuntos); a maioria destes grupos não chegou a gravar qualquer disco. Os empresários promotores do rock reconheciam o problema da falta de oportunidades dos grupos madeirenses, cujo panorama era bastante diferente do lisboeta, onde os orçamentos eram elevados e os promotores privados auferiam lucros. Além disso, a contratação de grupos de referência implicava custos difíceis de suportar, tais como os relacionados com “deslocação, alojamento, alimentação aluguer de sala e de tecnologia”, que, aliados aos cachets altos e fixos dos grupos, estorvaram a produção de concertos com grupos de rock do exterior da Madeira (DN, Funchal, 30 jul. 1993, 3). A dificuldade em conseguir apoios de empresas regionais, à semelhança do que aconteceu a nível nacional, tornou complicada a organização de festivais e concertos; a principal causa de afastamento dos patrocinadores deveu-se à concorrência de outros eventos, como ralis e campeonatos de desportos, quer profissionais, quer de modalidades amadoras. Apesar de tudo, os principais e mais famosos grupos de rock portugueses à época atuaram na Madeira, o que foi viável em virtude de estes garantirem mais facilmente “maiores afluências de público” (DN, Funchal, 30 jul. 1993, 3). Assim, nos anos 90 atuaram no Funchal grupos como os Peste & Sida, os Resistência, o grupo de música moderna Rádio Macau, os Madredeus, os GNR, acompanhados dos espanhóis La Frontera, e os Xutos e Pontapés. Nos primeiros 15 anos do séc. XXI, os problemas da Madeira no domínio musical estão relacionados com questões estruturais, não tanto com a qualidade dos intervenientes. Todavia, existem casos de boas práticas em várias áreas, desde o jazz, passando pela música clássica, até à música tradicional e ao rock. Além disso, vive-se nestes anos o resultado da aplicação de um tipo de ensino musical que formou milhares de jovens com razoáveis competências musicais.     Paulo Esteireiro (atualizado a 01.02.2018)

Artes e Design Sociedade e Comunicação Social

monteiro, josé leite

José Leite Monteiro nasceu no Porto a 27 de setembro de 1841. Foi advogado, professor, escritor e político. Fez o curso de Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em que ingressou em 1859, tendo concluído os estudos em 1864. Estabeleceu-se, em seguida, no Funchal, onde abriu um escritório de advocacia. Diz o Elucidário Madeirense que José Leire Monteiro nutria pela Madeira uma “carinhosa idolatria”, semelhante à que seria possível num filho natural da Ilha (SILVA e MENESES, II, 1998, 227); foi aí que desenvolveu a sua atividade profissional e intelectual. Foi professor no liceu do Funchal, depois de, em 1867, ter alcançado a nota mais elevada no concurso público para professor de Filosofia dos liceus. Passou a sua vida profissional na Ilha, a qual representaria um dos vértices das suas preocupações e dos seus interesses. Na vida pública, desempenhou funções em várias comissões de serviço, como governador civil substituto, como membro do Conselho do Distrito, como presidente da Junta Geral e como presidente da Câmara Municipal do Funchal. De salientar ainda que fez parte do Partido Fusionista e que entrou nas lutas políticas madeirenses de 1868, no âmbito das quais prestou serviços ao Partido Regenerador. José Leite Monteiro colaborou com vários jornais do Funchal, chegando a ser redator do jornal O Direito, órgão da política regeneradora. Também publicou vários livros, entre os quais se destacam O Ultramontanismo na Instrucção Publica de Portugal, de 1863, e Elementos de Direito Civil Portuguez, de 1895. Foi sócio efetivo da Associação de Direito Internacional. Em colaboração com o Cón. Alfredo César de Oliveira, coligiu diversos poemas dispersos de autores madeirenses, que acabariam por ser publicados num volume com o título Flores da Madeira. Morreu no Funchal, a 10 de março de 1920. Obras de José Leite Monteiro: O Ultramontanismo na Instrucção Publica de Portugal (1863); Elementos de Direito Civil Portuguez (1895).   Raquel Gonçalves (atualizado a 01.02.2018)

História da Educação Personalidades

monteiro, joão antónio

Mineralogista e académico de reputação internacional, nasceu no Funchal a 31 maio de 1769. Doutorou-se em Filosofia a 23/10/1791, na Universidade de Coimbra, onde viria a ser docente, tendo ministrado as seguintes cadeiras: Botânica (1793-1794) e Agricultura (1793-1794) como substituto extraordinário; Física Experimental enquanto demonstrador (1795-1796) e como substituto extraordinário (1796-1801); e Metalurgia na função de 4.º substituto (1801-1804), 6.º lente (1804-1813) e 3.º lente (1813-1822). Ocupou ainda o cargo de fiscal da Faculdade de Filosofia (31/07/1794). Traduziu do inglês, a pedido de D. João, o Príncipe Regente, a obra: Indagação sobre as Causas e Efeitos das Bexigas de Vaca […] e Conhecida pelo Nome de Vacina, por Eduardo Jener, M. D. T. R. S., etc. (Lisboa, 1803). Apesar da sua carreira como lente, a sua reputação decorre do seu percurso original de investigação no domínio da mineralogia. O referido percurso teve um grande desenvolvimento quando foi autorizado, por carta régia de 11 de maio de 1804, a empreender uma viagem científica a Paris, viagem que realizou como se estivesse ao serviço da Universidade, pois esta assegurou-lhe a antiguidade, os ordenados e demais prerrogativas. Em outubro de 1815, parte de Paris para Friburgo, na Alemanha, onde se instrui na doutrina de Werner. Várias publicações reputam-no como autor de sucesso nesses países, tendo publicado em vários periódicos internacionais. Em maio de 1814, publica no Journal des Mines um artigo intitulado “Nouvelle Description du Pyroméride Globaire, ou de la Roche Connue sous le Nom de Pophyre Globuleux de Corse”, onde dá conta de uma nova espécie de rocha, que o mineralogista francês René Just Haüy, considerado o pai da cristalografia moderna, adota na sua obra Nouvelle Distribution Minéralogique des Roches. Na sequência das suas investigações, tornou-se sócio correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa e membro da Sociedade de Mineralogia de Jena, da Sociedade Geológica de Londres e da Academia Real de Munique. Morreu em Paris, em 1834. Obras de João António Monteiro: “Mémoire – Sur une Nouvelle Variété de Cuivre Gris”, “Mémoire – Sur le Fer Sulfuré Blanc de Mr. Hauy”, “Tableau du Cours de Minéralogie de Mr. Hauy pour l’Année 1811”; “Apperçu – De l’Analogie du Wernerite avec Leparanthine” (1809); “Mémoire – Sur plusieurs Nouvelles Variétés de Formes Déterminables de Topaze” (1811); “Mémoire – Sur la Chaux Fluatée du Vesuve” (1812); “Mémoire – Sur la Détermination Directe d’Une Nouvelle Variété de Forme Cristalline de Chaux Carbonatée, et sur les Propriétés Remarquables qu’elle Présente” (1813); “Nouvelle Description du Pyroméride Globaire, ou de la Roche Connue sous le Nom de Pophyre Globuleux de Corse” (1814); “Observations et Considérations Analytiques sur la Composition, et sur la Structure du Pyromeride Globaire” (1814).   Rui Gonçalo Maia Rego (atualizado a 01.02.2018)

Personalidades

meneses, rufino augusto

Rufino Augusto Meneses foi um sacerdote católico madeirense, nascido na freguesia da Ponta do Sol, a 27 de abril de 1877. Foi filho de Rufino Augusto de Meneses e de Carolina de Jesus. Quando ainda era criança, partiu para Angola com o pai, que foi para lá como colono, e estudou no Seminário de Huíla, sendo ensinado pelos padres do Espírito Santo. Regressado à Madeira, matriculou-se no Seminário Diocesano do Funchal, seguindo a vida eclesiástica. Foi ordenado sacerdote a 21 de dezembro de 1901 e foi capelão da Sé do Funchal até 1902. A 22 de fevereiro de 1902, foi nomeado pároco do Caniçal, função que exerceu durante os dois anos seguintes, passando a desempenhar, desde 20 de fevereiro de 1904, o múnus de cura de Machico. Em 1905, após o falecimento do P.e Jordão do Espírito Santo, que era vigário na freguesia de Água de Pena, foi nomeado sacerdote daquela paróquia, no dia 4 de julho, ocupando o cargo durante 48 anos. A par da sua vida clerical, Rufino Augusto Meneses foi um homem dedicado às letras, colaborando na imprensa regional e escrevendo textos literários, sobretudo poéticos. Exerceu a sua atividade jornalística no periódico O Jornal, como correspondente em Machico, e assinou, naquele jornal, algumas das suas produções poéticas sob o pseudónimo “C.”. Em 1950, publicou um volume de versos intitulado Visita da Imagem de Nossa Senhora de Fátima (a Virgem Peregrina) à Madeira, em 7 de Abril de 1948: Versos Populares. Neste livro, descreveu em verso a visita da imagem de Nossa Senhora de Fátima à Madeira, no dia 7 de abril de 1948, desde a chegada a bordo do Lima e o desembarque no cais da Pontinha até ao cortejo em direção à Sé do Funchal, onde aquela obra passou a noite. Descreveu as manifestações de regozijo da população, que aguardava a chegada da imagem acenando com lenços, dando vivas e palmas, e evocou os sinos da igreja a tocar e o lançamento de foguetes. Nos seus versos, todo o povo, as autoridades regionais, o clero e outras individualidades madeirenses de diferentes profissões manifestaram o seu contentamento e a sua fé por aquele momento da visita da imagem da Virgem Peregrina. Narrou ainda a visita da imagem a outras freguesias da Madeira, onde, nos dias 8, 9 e 10 de abril, foi sempre aguardada por uma multidão. Depois, mencionou o regresso da imagem ao Funchal, destacando a sua passagem pelas ruas da cidade até chegar à Pontinha, onde embarcaria no Guiné para prosseguir viagem até outras paragens. Estes versos constituem um testemunho de um momento importante da história religiosa da Ilha e oferecem alguns quadros representativos das manifestações de fé do povo madeirense na primeira metade do séc. XX. Rufino Augusto Meneses faleceu em Machico, a 30 de março de 1966. Obras de Rufino Augusto Meneses: Visita da Imagem de Nossa Senhora de Fátima (a Virgem Peregrina) à Madeira, em 7 de Abril de 1948: Versos Populares (1950).   Sílvia Gomes (atualizado a 01.02.2018)

Religiões Personalidades

mendonça, maria

Natural dos Açores, Maria Mendonça (1916-1997), de seu nome completo Maria da Trindade Mendonça, passou 35 anos da sua vida na Madeira. Jornalista e empresária, instala-se no Funchal em 1951 para dirigir, ao longo de 19 anos, o Eco do Funchal. Promove os livros insulares, açorianos e madeirenses, nas ilhas e no continente. Cria a Editorial Eco do Funchal e autores da Madeira terão a satisfação de verem livros seus virem a lume ou serem reeditados nas décs. de 50 e 60. A partir de inícios da déc. de 60, organiza no seu próprio café-restaurante, denominado Pátio, tertúlias e conferências. Em 1972, funda a Sociedade Pátio, Livros & Artes. Em 1978, cria a Edições Ilhatur, lançando até 1982, entre outros títulos, a coleção de livros infanto-juvenis “Canoa”. Entre 1979 e 1981, dirige o histórico jornal humorístico Re-nhau-nhau. Palavras-chave: jornalista; Edições Ilhatur; Editorial Eco do Funchal; Maria Mendonça; Pátio, Livros & Artes; promotora cultural. Natural dos Açores, filha de Manuel Franco de Mendonça e de Maria Raposo, Maria da Trindade de Mendonça (16 de fevereiro de 1916-28 de fevereiro de 1997) passou 35 anos da sua vida na Madeira. Perfila-se como uma pioneira no empreendedorismo cultural. Foi promotora do livro insular, administradora de uma casa editorial, articulista polemista, promotora turística, dirigente associativa e gerente de um espaço cultural e comercial. Sob o lema “Querer é poder”, como patenteia a legenda do ex-líbris que mandou executar em 1956, a sua vida é marcada por encontros e iniciativas culturalmente relevantes. Como adianta Alberto Vieira, a “sua ligação à Madeira estabelece-se a partir de Lisboa, por amigos da Madeira e pela situação de penhora do jornal Eco do Funchal, cujas dívidas aceita cobrir para dar continuidade à sua publicação, assumindo a direção a 25 de março de 1951” (VIEIRA, 2015), cargo que desempenhará até 4 de maio de 1970. Sob a sua direção, esse jornal “de carácter regionalista e independente” (OLIVEIRA, 1969, 17), que era de periodicidade semanal, passa a sair mais vezes por semana (ensaiando-se por uns tempos um trissemanário para depois ficar um bissemanário), e Maria Mendonça introduz-lhe várias secções, em especial “Cultura & Recreio”, a primeira série do suplemento literário “Pedra”, em 1965 (sendo que a segunda série viria a ser publicada no Comércio do Funchal nos anos 1967-1969) e, a 3 de março de 1969, um suplemento quinzenal (com quatro páginas) para crianças, “A Canoa”, organizado por Maria do Carmo Rodrigues. Na página literária “Pedra”, hão de contar-se “vários colaboradores: Duarte Sales Caldeira, Vicente Gomes da Silva, Ana Gouveia, Luís Manuel Angélica, Luciano Nunes, José Manuel Coelho, Leopoldo Gonçalves, Vladimiro Rocha, Luísa Silva, Teresa Macedo, António do Canavial, A. [J.] Vieira de Freitas e José de Sainz-Trueva” (Id., Ibid.). No suplemento infanto-juvenil vão colaborar, entre outros nomes, Alice Gomes, Irene Lucília Andrade, Luíza Helena Clode, Madalena Gomes e Matilde Rosa Araújo. No entanto, por razões económicas, esse suplemento será suspenso meses depois. Decidida a não deixar interromper a dinâmica que o projeto gerara, Maria do Carmo Rodrigues funda então o periódico infanto-juvenil independente A Canoa, que teve grande divulgação a nível nacional entre 1969 e 1971. Fig. 1 – Fotografia tirada provavelmente no restaurante do Casino da Madeira, nos anos de 1960. Em primeiro plano, Horácio Bento de Gouveia e esposa; em segundo plano, ao centro, Maria Mendonça, à direita, Adelaide Félix e, à esquerda, Emília Félix, irmã de Adelaide.Fonte: Colç. de Maria Amélia Bento de Gouveia. Mal se instalou no Funchal, Maria Mendonça começou a participar na dinamização de associações de intercâmbio cultural entre os Açores e a Madeira, designadamente o Clube dos Amigos dos Açores e o Círculo de Amizade Madeira-Açores, chegando a ser dirigente associativa. Como refere Alberto Vieira, “ao abrigo destas estruturas, fizeram-se excursões, intercâmbios de grupos folclóricos, de bandas de música, de clubes desportivos” (VIEIRA, 2015). Em 1951, Rogério Correia promove, durante as festas de fim-de-ano, a Semana do Livro Açoriano, na Academia de Música da Madeira, no Funchal, com a colaboração de Maria Mendonça e J. Silva Júnior. Nos anos sequentes, os mesmos promotores hão de organizar outras semanas do livro, dedicadas às publicações açoriana e madeirense. A chefe de redação do Eco do Funchal vai erguer em Lisboa, em 1954, aquando da 24.ª Feira do Livro, o pavilhão do Livro Insular, que ocupou lugar de destaque. Para esse certame mandou imprimir o Catálogo das Obras Apresentadas no Primeiro Stand Insular da Feira do Livro de Lisboa em 1954, que organizou com o conterrâneo J. Silva Júnior. O público nacional fica assim a saber que a literatura insular é uma realidade tangível. Em 1955, monta o stand do livro insular no Funchal. Realiza a Primeira Semana da Madeira, em Lisboa, no Castelo de S. Jorge, em 1982. De tudo isto fica a ideia de que uma consciência cultural das ilhas se perfilava em Portugal. Por sugestão do poeta Jorge de Freitas, Maria Mendonça funda a primeira casa editora na Madeira, a Editorial Eco do Funchal, apostando assim na afirmação cultural do livro insular e ampliando a ação das duas principais entidades regionais públicas que desempenhavam esse importante papel: a Câmara Municipal do Funchal e a Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. Com a sua chancela, autores da Madeira, tais como Noé Pestana, Baptista Santos, Bernardete Falcão, João Vieira Caetano e Alberto Figueira Jardim, terão a satisfação de verem livros seus vir a lume ou ser reeditados nas décs. de 50 e 60. Sob os mesmos auspícios, os poetas da tertúlia ritziana (assim chamada porque se reuniam no Café-concerto Ritz) publicam em 1952 a coletânea Arquipélago. Meses depois aparece – curioso episódio da história literária madeirense e revelador de um certo espírito irreverente e humorístico – a coletânea Areópago, de tiragem reduzida e destinada aos amigos, uma paródia de Arquipélago, organizada anonimamente por Jorge de Freitas, em colaboração com Alírio Sequeira, Carlos Camacho e Paulo Sá Braz, e impressa nas instalações da referida casa editora. Maria Mendonça vai até correr o risco de editar livros-objeto, de grande porte e requinte. Encomenda a Maria Lamas – uma amiga com quem estreitou laços ao longo da vida – a obra Arquipélago da Madeira – Maravilha Atlântica, publicado em 1956, um volume de quase 400 páginas. O livro apresenta-se como um misto de descrição de lugares do arquipélago da Madeira e de revista ilustrada, sendo enriquecido com fotos a preto e branco, gravuras em extratexto, e capa e vinhetas da autoria de Alírio Sequeira. É também graças a Maria Mendonça que Luís Marino (de seu verdadeiro nome Luís Gomes da Silva) poderá ver concretizada, em 1959, a sua antologia A Musa Insular (Poetas da Madeira). Este monumento-padrão, com capa de Max Römer, reúne os nomes dos poetas insulares desde os tempos do povoamento da Madeira. Com a mesma chancela, saem livros tão importantes para a cultura regional como Falares da Ilha: Pequeno Dicionário Popular Madeirense, de Abel Marques Caldeira e prefácio de Emanuel Paulo Ramos, em 1961, e, em 1968, a sumptuosa reedição a cores de Casas Madeirenses (1.ª ed. de 1937), de João dos Reis Gomes, com colaboração de Edmundo Tavares. Em 1954, Maria Mendonça compila o inquérito “Qual o panorama da Madeira que mais o impressionou?”, levado a cabo junto de personalidades das artes e letras lusas e publicado no Eco do Funchal em 1951-1952, e faz sair do prelo A Ilha da Madeira Vista por Intelectuais e Artistas Portugueses, uma obra que será reeditada em 1969 e em 1985. Não se esquece da terra natal e é com naturalidade que publica Férias nos Açores, em 1955, Os Açores Através da Saudade, em 1957 (reeditado em 1991), e, em 1958, Grupo Folclórico de São Miguel. Lança, também, o guia turístico Isto é a Madeira, em 1960, em português; no ano seguinte, sai uma edição trilingue, que será reeditada em 1963. Coordena outros roteiros: com Luís Jardim, edita Páscoa: Sugestões, em 1965, e, com Osvaldo Pestana, apresenta Natal: Sugestões, em 1966. Editou, ainda, a revista Semana da Madeira, que durou sete anos (1965-1972), em colaboração com António Aragão, Carlos Lélis e Aníbal Trindade, descrita por Américo Lopes de Oliveira como uma “publicação moderna, original, de sentido prático para a utilização do turista nacional e estrangeiro, visto que está redigida nas línguas mais faladas e generalizadas por todo o Mundo”. O mesmo estudioso informa ainda que, da empresa Eco do Funchal, “nasceu [a] agência de publicidade ‘Islena’” (OLIVEIRA, 1969, 17). Em 1957, publica Uma Pequena História (Tema Madeirense), que será reeditada em 1991, e profere palestras sobre os Açores e a Madeira, a convite de agremiações portuguesas, no Rio de Janeiro, em Santos e em São Paulo. A partir dessas experiências, elabora a publicação Presença Madeirense no Brasil, em 1958. Ainda em 1957, Maria Mendonça organiza com confrades da imprensa regional, tais como Manuel Amândio Rodrigues, Manuel G. Abreu, Rui Camacho e Helena Marques, uma confraternização de jornalistas chamada Tertúlia Sem Título, que se reunirá com alguma regularidade. Desses convívios ficará um registo impresso nas oficinas da Editorial Eco do Funchal em 1958: Tertúlia Sem Título. (Jornalistas da Madeira), ilustrado com imagens das reuniões realizadas. A seleção de artigos que publicou no Eco do Funchal, reunida por Ana Isabel de Sousa no livro Eu, Maria, me Confesso (Recordações e Narrativas), de 2001, mostra bem a voz interventiva que Maria Mendonça tinha: o desconhecimento de que os continentais costumavam dar provas relativamente às realidades açoriana e madeirense, a questão dos transportes de bens e pessoas entre as ilhas e o continente, as difíceis condições de vida de muitos insulares e a falta de investimento na educação, o destino das verbas resultantes das taxas e impostos cobrados pelo poder central nas ilhas, a afirmação dos valores culturais insulares eram temas que a articulista não deixava de trazer à liça. Segundo Rui Carita, o assunto da autonomia que Maria Mendonça tocou num seu artigo em 1968 “chegou, mesmo, a ter ampla repercussão no continente, pois foi depois transcrito na Seara Nova, em janeiro do ano seguinte, suscitando várias questões e originando comentários e respostas, depois publicados na mesma revista, no número de maio desse ano de 1969” (CARITA, 2007, 28). Em 1972, retoma com Natália Correia e Vera Lagoa (pseudónimo de Maria Armanda Falcão) o café literário Rés-do-chão: Tertúlia do Livro – Pátio das Artes, à R. da Carreira, estabelecido cerca de 1967-68 por Carlos Lélis, o escultor Anjos Teixeira e o fotógrafo João Pestana; desse café, conta-se que Vera Lagoa terá afirmado que era o primeiro café literário criado no país. Essas três mulheres vão, assim, firmar a Sociedade Pátio, Livros & Artes, cuja atividade incidia na exploração da casa de chá, esplanada, tabacaria, livraria, galeria de arte, e loja de moda e ourivesaria. Essa entidade será, igualmente, “responsável pela aquisição do espólio da antiga Photographia Vicentes” (CARITA, 2007, 28). Dificuldades económicas obrigaram a empreendedora a desfazer-se de algum património da arte fotográfica do acervo. Em 1979, vende ao Governo regional o recheio do estúdio de fotografia: o espaço Photografia-Museu Vicentes será inaugurado em 1982. Nesse “lugar seleto de letras e artes” (HOMEM 1999, 61) chamado Pátio será apresentada, em 1975, pela jornalista Maria Aurora Homem, a coletânea de poemas inéditos Ilha, coordenada por José António Gonçalves. Também não é por acaso que, em 1979, Natália Correia vem a assinar o prefácio da coletânea Ilha 2. Maria Mendonça estreia, em 1978, as edições Ilhatur (1978-1982), com a monografia Vicentes Photographos, de Luís de Sousa Melo. Em 1979, sob os auspícios do Ano Internacional da Criança e ciente do valor dos autores e ilustradores que colaboraram no extinto periódico A Canoa, Maria Mendonça lança a coleção “Canoa”, respondendo assim, mais uma vez, à vontade de constituir organicamente uma projeção literária e artística no meio madeirense. Saem a lume Histórias que o Vento Conta (n.º 1, 1979) de Irene Lucília Andrade; Mimi e os Sapatinhos (n.º 2, 1979) de Luiza Helena (Clode); Camélias Brancas (n.º 3, 1980) e Sebastião, o Índio (n.º 5, 1982), de Maria do Carmo Rodrigues e, finalmente, Os Anjos Descem (n.º 4, 1981), de António Marques da Silva. Tais livros remetem para o mundo das vivências infantis, com narrativas, versos, canções e lengalengas, assentes numa imaginação poética e numa linha de descoberta em liberdade. Entre 1979 e 1981, Maria Mendonça vem a dirigir, após Gonçalves Preto e Gil Gomes, a terceira série do histórico Re-nhau-nhau, criado em dezembro de 1929. Após um interregno, o Re-nhau-nhau renascerá das suas cinzas a 1 de janeiro de 1996, sob os auspícios de António Loja, durante largos meses, até se extinguir. De acordo com familiares e amigos, Maria Mendonça autodefinia-se como “açoriana-madeirense”. Nelson Veríssimo sublinhou “o seu entusiasmo e dinamismo na divulgação dos valores insulares” (VERÍSSIMO, 1995, 13). Num seu ensaio sobre a comunicação social madeirense, Paquete de Oliveira qualificou-a de “batalhadora pelas causas e coisas da Ilha” (OLIVEIRA, 2008, 38). O amigo Luís Marino dedicou-lhe os seguintes versos: “D. Maria Trindade Mendonça/A esta boa amiga da velha guarda./Dona Maria Mendonça/Que não quis ficar pra avó,/Não é amiga da onça/E sabe dar de cipó…/É de meã estatura,/Mas possui uma alma grande/E… de boa catadura,/Com toda a gente se expande…/No Eco e no Re-nhau-nhau,/– Mesmo com riso amarelo –/A tanto e tanto marau,/Vai chegando a roupa ao pelo…/Dona Maria Mendonça,/Muitos amigos conquista,/Por não ser falsa, nem sonsa…/Nem tão pouco vigarista./Deve muito a nossa ilha/A esta ‘grande’ mulher/Que, não sendo dela filha,/Tanto a estima e bem lhe quer!” (SILVA, 1980, 10-11). A título de curiosidade, enquanto empresária, Maria Mendonça introduziu na cafetaria e restauração da Madeira o uso das saquetas de açúcar, chegando a ter o monopólio da sua distribuição no arquipélago, e diz-se que, enquanto figura feminina atípica, disputa com a escultora Manuela Aranha o título de primeira mulher a andar de bicicleta na Ilha. Fig. 2 – Fotografia de uma reunião de O Pátio: um cenáculo de escritores e artistas. Maria da Trindade Mendonça (de costas e de preto, à direita), Maria Aurora Carvalho Homem, Luíza Clode, Margarida Macedo Silva, entre outros.Fonte: Colç. de Ângela Morna. Nos últimos tempos passados na Madeira, Maria Mendonça colaborou com a Direção Regional dos Assuntos Culturais, desempenhando o cargo de responsável pela Inspeção Regional de Espetáculos. Publica nos Açores, em 1984, o livro A Personalidade Multifacetada do Jornalista Manuel Inácio de Melo, que será reeditado em 1990. Há registo de Maria Mendonça ter usado o pseudónimo “Maria Júlia” e “Maria da Ilha” (ANDRADE, 1999, 187). O Governo Regional da Madeira distinguiu-a com o troféu Estrelícia Dourada pelos relevantes serviços prestados à sociedade madeirense. Deixa a Madeira em 1986, mas dela não se desligou, visitando-a regularmente. Os amigos do Funchal recebem-na em casa ou fazem-lhe uma visita quando se deslocam à ilha de São Miguel. Publica em 1988 a entrevista que fez à amiga de longa data, O Concelho de Nordeste Visto por Maria Lamas, reeditada em 1990. Nos últimos anos da sua vida, trabalhou na Direção Regional dos Assuntos Culturais dos Açores. Morre na ilha de São Miguel, aos 81 anos. Obras de Maria Mendonça: Férias nos Açores (1955); Os Açores Através da Saudade (1957); Uma Pequena História Madeirense (1957); Grupo Folclórico de São Miguel (1958); Presença Madeirense no Brasil (1958); Isto é a Madeira (1960); Semana da Madeira (1965-1972); Páscoa: Sugestões (1965); Natal: Sugestões (1966); “Evocação” (1980); A Personalidade Multifacetada do Jornalista Manuel Inácio de Melo (1984); O Concelho de Nordeste Visto por Maria Lamas (1988); Eu, Maria, me Confesso (Recordações e Narrativas) (2001); A Ilha da Madeira Vista por Intelectuais e Artistas Portugueses (s.d.).   Thierry Proença dos Santos (atualizado a 01.02.2018)

Sociedade e Comunicação Social Personalidades

machado, bernardo francisco lobato

Nasceu na Madeira, em 1802. Advogado provisionista e jornalista, em qualquer uma destas facetas Lobato Machado deixou marca e as suas ações geraram tudo menos indiferença. Fernando Augusto da Silva, no seu livro O Arquipélago da Madeira na Legislação Portuguesa, refere-se a ele “como um hábil advogado e deixou alguns escritos, que ao tempo gozaram de merecida reputação, especialmente um bem elaborado formulário acerca de várias questões forenses. Tornou-se muito conhecido como jornalista pela violência com que atacava os seus adversários e pela linguagem injuriosa de que geralmente usava, vendo-se obrigado a homisiar-se para escapar às ameaças de prováveis represálias. Ainda há poucos anos se falava com frequência nos artigos de descomposta verrina, que Lobato Machado publicara no jornal semanal A Vergasta, de que foi o redator principal” (SILVA, 1941, 28) Além de ser redator principal de A Vergasta, colaborou ainda nos jornais Amigo do Povo, Clamor Público e Justiça. Só pelo título, A Vergasta é elucidativa da violência dos textos aí produzidos. O espírito do jornal era explícito numa frase impressa junto ao título que rezava o seguinte: “Este jornal, por enquanto, não tem dia certo de publicação e aparecerá quando menos o esperarem”. Sendo redator principal, supõe-se que muitos dos textos fossem da sua autoria, apesar de os mesmos não serem publicados com assinatura. Os escritos deste jornal deveriam causar mossa e provocar celeuma na sociedade, nomeadamente na classe dirigente. Veja-se este texto, constante no número 37: “Esta folha precisa entrar num caminho novo! Temo-nos convencido de que nada se faz com águas mornas! Estamos em período de resistência e revolução! Temos de ser severos, implacáveis, como a cólera do povo! Esmaga-nos uma reação local, não sabemos se estúpida, se grutesca, se selvagem! A todo o momento aguardamos da misericórdia do governo da metrópole o restabelecimento da ordem, perturbada pelos abusos, e pela corrupção do poder administrativo neste distrito! O governo sacrifica o povo às consequências particulares destas autoridades: Nega-se a praticar, pela ordem, a reabilitação da ordem pública! Pois bem tem de nascer do povo a justiça! Nós, pela nossa parte, vamos renovar todos os meios de defesa!... Não aconselhamos o tumulto material, o derramamento de sangue, porque o irrisório Karlaff de S. Lourenço não vale a pena uma gota de sangue precioso das veias do povo” (MACHADO, A Vergasta, 2 jan. 1875, 1). Homem do seu tempo e empenhado nas questões políticas e sociais, Lobato Machado notabilizou-se ainda pela sua ação enquanto advogado e por outras publicações na sua área profissional, de que é exemplo o Formulário de todos os Autos, Termos, Certidões e Despachos dum Inventário, conforme Decreto de 21 de Maio de 1841. Refira-se que Bernardo Francisco Lobato Machado fazia parte da classe dos advogados provisionais ou provisionistas, os quais preenchiam a falta de bacharéis formados em direito e, mesmo sem as necessárias habilitações legais, ombreavam com os profissionais, destacando-se nessa área pelas suas capacidades intelectuais e pela sua capacidade de trabalho. Faleceu a 20 fevereiro de 1878. Obras de Bernardo Francisco Lobato Machado: Formulário de todos os Autos, Termos, Certidões e Despachos dum Inventário, conforme Decreto de 21 de Maio de 1841.   Raquel Gonçalves (atualizado a 01.02.2018)

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