baleia (caça na madeira)
A primeira referência à presença de baleias nas águas da Madeira é de 1595 e diz respeito a um animal observado no porto do Funchal (RIBEIRO, 1991). Nos séculos seguintes são poucos os registos de baleias na Madeira, com algumas referências de animais que deram à costa ou encontrados mortos a flutuar (RIBEIRO, 1991; SARMENTO, 1936; SARMENTO, 1948).
A caça à baleia parecia ser uma atividade local esporádica, atestada pela quase ausência de referências à captura destes animais até ao século XX, apesar de a sua presença estar confirmada nestas águas, por exemplo através da referência a área de caça à baleia a Oeste da Madeira nos logbooks dos navios baleeiros americanos durante o século XIX, designada por vezes de “Steen ground” (TOWNSEND, 1935). Entretanto, em 1741 Nicolau Soares tentou iniciar a caça à baleia na Madeira, pedido que foi recusado pelo Rei D. João V, pois tinha atribuído o monopólio da baleação no Reino às armações baleeiras do Brasil (RIBEIRO, 1991). A Madeira nunca foi grandemente influenciada pela atividade baleeira desenvolvida por outros países, contrariamente aos Açores que nos séculos XVIII e XIX foram visitados regularmente por navios baleeiros norte-americanos à procura de cachalotes e aí recrutavam tripulantes para as suas caçadas em alto mar. É possível que para tal tenha contribuído uma menor presença de baleias na Madeira, mas também o facto do clima e os primeiros colonizadores (principalmente agricultores) terem propiciado o crescimento da economia do arquipélago assente, sobretudo, na atividade agrícola como atestam os ciclos da cana do açúcar e do vinho. O sucesso da economia terrestre provavelmente não incentivou o aparecimento de atividades alternativas no mar, de maior risco empresarial.
Foi apenas nos anos 30 do séc. XX que voltou a ser considerada a possibilidade de se caçarem baleias na Madeira. Os protagonistas do início da caça à baleia foram Simplício dos Passos Gouveia e Francisco Marcelino dos Reis. O primeiro era oficial a bordo dos navios da Empresa Insulana de Navegação e o segundo negociante de óleo de cachalote e sócio em algumas fábricas de baleias nos Açores; conheceram-se nas viagens que ambos realizavam entre o Continente, a Madeira e os Açores. Em 1935 Simplício dos Passos Gouveia tornou-se piloto de barra do Porto do Funchal e nas conversas tidas com Francisco Marcelino dos Reis quando este passava pela Madeira, questionaram-se do porquê de não existir baleação na Madeira. Na sequência dessas conversas o piloto Gouveia perguntou junto de pescadores e arraís das embarcações de cabotagem se viam com regularidade baleias e assim confirmou a sua presença nas águas da Madeira (registo áudio do testemunho oral de Simplício dos Passos Gouveia, Arquivo do museu da Baleia da Madeira). Mais tarde Francisco Marcelino dos Reis envolveu Pedro Cymbron, sócio-gerente da União das Armações Baleeiras de São Miguel, e despertou o seu interesse ao ponto deste fazer uma viagem exploratória à Madeira em 1938 para avaliar as potencialidades da atividade (registo áudio do testemunho oral de Simplício dos Passos Gouveia, Arquivo do museu da Baleia da Madeira; CYMBRON, 2011).
Em Junho de 1940 iniciou-se na Madeira o empreendimento da baleação, com a vinda do primeiro vigia dos Açores com o apoio local do piloto Gouveia. Foram estabelecidas inicialmente duas vigias, uma no porto moniz e outra em Machico, em pontos altos na costa com boa cobertura do mar para maximizar a localização das baleias. Com a confirmação da presença de cachalotes (a espécie de baleia de interesse para a atividade) ao largo do porto moniz, Pedro Cymbron enviou dos Açores em agosto desse ano as primeiras baleeiras e respetivas tripulações (relatório e contas de 1941 da armação baleeira de Pedro Cymbron - Funchal, Arquivo Geral da Marinha, Lisboa). Estes homens traziam consigo o conhecimento secular das técnicas artesanais da caça à baleia herdadas dos yankees, dos povos indígenas norte-americanos e dos bascos, que engenhosamente adaptaram à realidade das ilhas açorianas. A sua arte e técnica baseavam-se na deteção de baleias, especialmente cachalotes, a partir de pontos altos na costa, seguido da sua perseguição, caça e abate com arpões e lanças utilizando pequenos botes em madeira, propulsionados à vela e a remos.
O atraso da Capitania do Porto do Funchal na concessão das licenças necessárias impediu o começo da caça à baleia em 1940. Em consequência, nesse ano os vigias apenas recolheram dados estatísticos de avistamentos de cachalotes e foram construídas as instalações, designadas pelos baleeiros de “traiól”, para desmanche e derretimento do óleo (relatório e contas de 1941 da armação baleeira de Pedro Cymbron - Funchal, Arquivo Geral da Marinha, Lisboa).
Os dois primeiros cachalotes foram capturados a 2 de fevereiro de 1941 ao largo do porto moniz. Esses animais foram inicialmente desmanchados no calhau das Pedras Vermelhas na Ribeira da Janela, costa norte da Madeira (relatório e contas de 1941 da armação baleeira de Pedro Cymbron - Funchal, Arquivo Geral da Marinha, Lisboa). No entanto as árduas condições de trabalho devidas, sobretudo ao mar agreste, forçaram a construção de novas instalações na costa sul, mais abrigada dos ventos e do mar. Assim, a partir de 1942 a maioria das baleias passaram a ser desmanchadas no calhau do Garajau (relatório e contas de 1942 da armação baleeira de Pedro Cymbron - Funchal, Arquivo Geral da Marinha, Lisboa). Também foi montado em 1944 um traiól no porto santo mas que nunca chegou a operar (relatório e contas de 1942 da armação baleeira de Pedro Cymbron - Funchal, Arquivo Geral da Marinha, Lisboa).
Nos primeiros anos, a atividade foi desenvolvida com um alvará provisório atribuído formalmente pelo Estado Português a Pedro Cymbron (ofício do Ministério da Marinha, Direcção das Pescarias, datado de 27 de novembro de 1940 e enviado à Capitania do Porto do Funchal, Arquivo Geral da Marinha, Lisboa). Pedro Cymbron disponha dos equipamentos e dos homens com a experiência para começar a atividade e contava com o apoio logístico local e o conhecimento das lides do mar do piloto Gouveia. Em 1940 constituiu o seu irmão José Cymbron, funcionário da Alfandega do Funchal, procurador para gerir e administrar a atividade na Madeira (procuração do cartório notarial de Ponta Delgada, Arquivo Geral da Marinha, Lisboa; CYMBRON, 2011).
Três anos após o início da atividade já existiam nove baleeiras a caçar, apoiadas por 4 lanchas (relatório e contas de 1942 da armação baleeira de Pedro Cymbron - Funchal, Arquivo Geral da Marinha, Lisboa). Estas baleeiras operavam a partir do porto moniz, Funchal e Garajau e caçavam cachalotes sob a coordenação de um responsável, chamado de mandador. Nas primeiras duas décadas de atividade o mandador foi Luís Reis, oriundo da freguesia das capelas na ilha de São Miguel (Açores) e substituído, até o fim da atividade, pelo seu filho Eleutério Reis.
O crescimento da baleação na Madeira deveu-se, não apenas à disponibilidade de cachalotes nestas águas, mas também à pronta aprendizagem dos novos vigias e baleeiros - de naturalidade madeirense - que no convívio com os experientes baleeiros do arquipélago vizinho forjaram o seu saber. A rápida adaptação dos homens locais a esta nova faina permitiu que em 1944 todos os vigias e a grande maioria das tripulações das baleeiras fossem madeirenses (relatório e contas de 1943 da armação baleeira de Pedro Cymbron - Funchal, Arquivo Geral da Marinha, Lisboa).
Com o sucesso dos primeiros anos da atividade, foi criada a 2 de Dezembro de 1944, a Empresa Baleeira do Arquipélago da Madeira, Limitada (EBAM). Assinaram a escritura de constituição da empresa Pedro de Chaves Cymbron Borges de Sousa, José de Chaves Cymbron Borges de Sousa, Simplício dos Passos Gouveia e Francisco Marcelino dos Reis, com os segundo e terceiro outorgantes a se tornarem sócios-gerentes da EBAM (escritura de constituição da EBAM, Arquivo Geral da Marinha, Lisboa). A partir de 1946, a concessão exclusiva da atividade baleeira inicialmente atribuída pelo Estado Português a Pedro Cymbron foi entregue à EBAM, que a viu ser renovada sucessivamente até 1981 (correspondência do Grémio dos Armadores de pesca da Baleia, Arquivo da Direção Geral das pescas e Aquicultura, Lisboa).
As primeiras vigias foram construções em madeira com telhado em chapa ondulada de fibrocimento. Estas vigias foram construídas pela armação baleeira de Pedro Cymbron entre 1940 e 1943. Eram um total de 8 na Madeira, designadamente no porto moniz, São Jorge, Caniçal, Machico, Garajau, São Martinho, Ponta do Sol e Ponta do Pargo, e uma no porto santo (relatório e contas de 1943 da armação baleeira de Pedro Cymbron - Funchal, Arquivo Geral da Marinha, Lisboa). Entretanto a Capitania do Porto do Funchal iniciou em 1943, em plena segunda guerra mundial, a construção de uma rede de vigias na Ilha da Madeira, porto santo e Desertas para controlar visualmente o tráfego marítimo e aéreo na costa, especialmente de navios e submarinos dos países beligerantes que pudessem constituir uma ameaça militar ao arquipélago. Estas vigias, em menor número, foram construídas integralmente em betão, e algumas ao lado das vigias das baleias existentes. Com o fim da guerra as vigias da Capitania do Porto do Funchal foram entregues à EBAM, substituindo as vigias em madeira e expandindo a rede que passou a cobrir todas costas do arquipélago.
O sucesso inicial da caça ao cachalote fomentou novos investimentos. Na sequência dos investimentos nos meios de caça, também foram melhorados os meios de comunicação e de extração dos produtos das baleias. Nos primeiros anos, as comunicações entre as vigias e as baleeiras eram rudimentares e pouco eficientes - utilizavam-se lençóis brancos ou sinais de fumo. No entanto a deterioração da visibilidade, provocada por frequentes neblinas, rapidamente afetava essas comunicações visuais, constituindo um problema crucial que limitava o crescimento da atividade. Aproveitando a disponibilidade de excedentes militares norte-americanos da segunda grande guerra, foram comprados pela EBAM rádios-telefones para estabelecer-se uma rede de comunicações sem fio que ligava as vigias entre si e também as embarcações no mar (contas e relatório de 1947 da Empresa Baleeira do Arquipélago da Madeira Limitada - Funchal, Arquivo Geral da Marinha, Lisboa).
Inicialmente o óleo dos cachalotes era extraído recorrendo a caldeiros alimentados a fogo direto, um método rudimentar e pouco eficiente. A partir de 1947 passaram a utilizar-se nas instalações do Garajau autoclaves (contas e relatório de 1947 da Empresa Baleeira do Arquipélago da Madeira Limitada - Funchal, Arquivo Geral da Marinha, Lisboa). Estes equipamentos funcionavam como grandes panelas de pressão, que recorrendo à elevada temperatura e pressão de vapor extraíam com maior eficácia e qualidade o óleo do toucinho dos cachalotes. Com estes equipamentos também foram ensaiadas as primeiras experiências de produção de farinhas de baleia (FIGUEIREDO, 1996). Mas o investimento na capacidade de processamento das baleias não terminou aí. Em 1949 iniciou-se a construção da fábrica de processamento dos produtos da baleia, no Caniçal. A fábrica iniciou o seu funcionamento dois anos mais tarde, coincidindo com o fim do desmanche nos restantes locais. A partir de então o Caniçal tornou-se no centro da caça à baleia na Madeira (SOULAIRE, 2007).
Os anos cinquenta trouxeram inovação e maior dinamismo a esta atividade com avanços no fabrico das baleeiras, que passaram a ser construídas em contraplacado marítimo e onde os motores a gasolina substituíram os remos e as velas como força propulsora (SOULAIRE, 1959; SOULAIRE, 2007).
Além disso, foi nesta época que a EBAM alargou, experimentalmente, a caça às grandes baleias de barbas. A captura destes animais exigia meios diferentes dos utilizados para os cachalotes. Para tal foram contratados dois navios baleeiros o HVAL I, de pavilhão norueguês, e baleeiro Persistência pertencente à Empresa Francisco Marcelino dos Reis, Lda, que operava na costa portuguesa continental (correspondência do Grémio dos Armadores de pesca da Baleia, Arquivo da Direção Geral das pescas e Aquicultura, Lisboa). Mais tarde o baleeiro Persistência foi adquirido pela EBAM para a função de rebocador. Os navios baleeiros eram capazes de dar perseguição a estes velozes animais e estavam equipados com um canhão à proa. No entanto a experiência não foi bem-sucedida, com poucas baleias de barbas caçadas (correspondência do Grémio dos Armadores de pesca da Baleia, Arquivo da Direção Geral das pescas e Aquicultura, Lisboa). Assim, a atividade da caça à baleia acabou por se centrar numa única espécie, o cachalote, dada a sua abundância e facilidade de captura.
A partir de meados dos anos 60 a atividade baleeira foi diminuindo na Madeira, primeiro com a redução da frota baleeira e depois com a sua suspensão temporária em 1968 em virtude da diminuição na procura dos produtos do cachalote, tornou-a economicamente inviável (correspondência do Grémio dos Armadores de pesca da Baleia, Arquivo da Direção Geral das pescas e Aquicultura, Lisboa). A partir dos anos 70 os desafios económicos à baleação na Madeira persistiram e foram ampliados com o aparecimento do movimento cívico internacional para a defesa das baleias que contribuiu decisivamente para a interdição por alguns países ocidentais da comercialização dos produtos destes animais, alguns dos quais tradicionais compradores dos produtos da baleação madeirense. Assim em outubro 1981 a Empresa Baleeira do Arquipélago da Madeira encerrou voluntariamente a sua operação.
Bibliog.: CYMBRON, Albano, A fase industrial da baleação micaelense (1936 – 1970), Horta, Observatório do Mar dos Açores (OMA), 2011, 197 p.; FIGUEIREDO, José Mousinho, Introdução ao estudo da indústria baleeira insular, Lajes do Pico, museu dos Baleeiros, 1996, 284 p.; RIBEIRO, João Adriano, A pesca da baleia na Madeira, História, n.º 139, Abril de 1991, pp. 22-27; SARMENTO, Alberto Artur, Mamíferos do arquipélago da Madeira, Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, 1936, 96 p.; SARMENTO, Alberto Artur, Vertebrados da Madeira, 2.ª ed., 1.º vol, Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, 1948, 317 p.; SOULAIRE, Jacques, A la recherche de Moby Dick, France, Hachette, 1959, 95 p.; SOULAIRE, Jacques, Le Grand Cachalot, tome III – Histoire chronologique de la chase au cachalot, Paris, Editora S.P.M., 2007, 272 p.; TOWNSEND, Charles Haskins, The distribution of certain whales as shown by logbook records of American whaleships. Zoológica, vol. 19, n.º 1, 1935, pp. 1–50.
Luís Freitas
(atualizado a 21.07.2016)