estrangeiros
Pelo facto de ter sido o primeiro espaço de ocupação atlântica com sucesso, pela sua posição estratégica e o valor comercial das suas produções, a Madeira despertou, desde muito cedo, o interesse dos estrangeiros, que apareceram sob a forma de aventureiros, navegadores, mercadores, cientistas, doentes ou turistas. De entre os últimos grupos, ficaram registados testemunhos e estudos sobre a botânica, a geologia e a biologia do arquipélago, assim como imagens e registos do quotidiano vivido com os madeirenses, assinados, na sua maioria, por Ingleses. A comunidade estrangeira teve desde sempre um papel destacado na história da Madeira. Os estrangeiros surgem, desde o princípio, como mercadores, estabelecendo, primeiro, laços comerciais com as principais cidades europeias. Foram eles que criaram a rede de negócios que enlaçou a Ilha aos principais mercados europeus, e para lá levaram as suas práticas comerciais. Muitos lançaram raízes, fixando-se, primeiro, de forma temporária, passando depois a um assentamento definitivo, por carta de naturalização régia. O primeiro grupo, atraído pelo comércio do açúcar – o ouro branco –, foi dominado por Italianos, Flamengos e Franceses; os Italianos, em especial Florentinos e Genoveses, conseguiram, desde meados do séc. XV, implantar-se na Madeira como os principais agentes do comércio do açúcar, alargando depois a sua atuação ao domínio fundiário, por meio da compra e de laços matrimoniais. Seguiram-se os Ingleses, à procura do vinho, e, finalmente, os Sírios e os Alemães, à procura do bordado. Desde os primórdios da ocupação que se alimentou o xenofobismo dos locais contra estas comunidades, que acabaram, mesmo assim, por persistir na Ilha enquanto os seus negócios e interesses comerciais foram importantes. Assim, o problema dos estrangeiros foi levado às cortes de Lisboa (1459), de Coimbra (1472-1473) e de Évora (1481), reclamando a burguesia do reino contra o efetivo monopólio dos mercadores genoveses e judeus no comércio do açúcar, e propondo a exploração de tal comércio a partir de Lisboa e nas mesmas condições. D. Afonso V, comprometido com a posição vantajosa dos estrangeiros, mercê dos privilégios que lhes concedera, atuou de modo ambíguo, procurando salvaguardar compromissos e ao mesmo tempo atender às solicitações que lhe eram dirigidas, estabelecendo nesse sentido limitações à residência dos estrangeiros no reino, que fez depender de licenças especiais. Assim, a Coroa definiu a impossibilidade da sua vizinhança sem licença régia, ao mesmo tempo que lhes interditava a revenda no mercado local. A Câmara, por seu turno, baseada nestas ordenações e no desejo dos seus moradores, ordenou a sua saída até setembro de 1480, a qual foi impedida pelo senhorio. No ano de 1481, haviam já sido apresentadas reclamações contra os “Florentinos e Genoveses [...] a estes reinos nunca fizeram proveito, salvo roubá-lo de moeda de ouro e prata e descobrir seus segredos de minas e ilhas” (VIEIRA, 1987, 79). Somente em 1489 se reconhece a utilidade da presença de estrangeiros na Ilha, ordenando D. João II a D. Manuel, então duque de Beja, que os estrangeiros fossem considerados “naturais e vizinhos de nossos reinos” (Id., Ibid., 80). A naturalização dos estrangeiros não foi considerada muito favorável para os madeirenses, que, em 12 de outubro de 1496, reclamavam desta forma: “Snnor achamos que em esta Ilha avia quatro ou cinco casas destrangeiros hos quaees sempre tinha dinheiro e mantymentos em que supriamos hos lavradores e hora Snnor estes estrangeyros sam tornados lavradores e teem grandes arrendamentos em que fasem quantos açuquares querem e fasem suas carregações por ali e pilas casas de quem sam feytores e nam trasem nehua cousa pera a terra pedimos a Vosa alteza que nehum estrangeiro nam seya rendeyro nem tenha nehum arrendamento posto que tenha carta de vezinhamça nem seja rendeiro de Vosa alteza”, pois tinham firmado com aqueles um concerto para do “Jmverno em diante vijr pam que he cousa majs necesaria pera esta terra e asy outros mátimentos necesarios e acustumados e ora avedo se eles estrágeiros asy de ir [...] os agrauos que eles estrágeiros dizê e apomtam que recebe recebendo a terra e moradores dela muito mayores”. Acrescentam que “asy estariam todos risco de necesidade como ja forom os moradores e a major parte desta Jlha ê tempo que aquy esteue Bras Afonso Corea ouujdor por sua alteza no qual/ tempo foy a estrelidade tamta do pã e a terra tá necesitada que muitos parecerá a fame” (MELO, 1973, 354). Refira-se a propósito que o mencionado ouvidor foi enviado à Ilha em 1485. Como consequência desta reclamação, D. Manuel determinou, em 1498, que os estrangeiros pudessem estar e manter atividade comercial na Ilha como dantes. Os problemas do mercado açucareiro, na déc. de 90 do mesmo século, conduziram ao ressurgimento dessa política xenófoba. Os estrangeiros passaram a dispor de três ou quatro meses, entre abril e meados de setembro, para comerciar os seus produtos, não podendo ter loja nem feitor. Apenas em 1493 D. Manuel reconheceu o prejuízo que as referidas medidas causavam à economia madeirense, afugentando os mercadores, pelo que revogou as interdições anteriormente impostas. As facilidades então concedidas à estada destes agentes forasteiros conduziriam à assiduidade da sua frequência nesta praça, bem como à sua fixação e intervenção de modo acentuado na estrutura fundiária e administrativa. A atividade comercial, principal móbil da fixação dos estrangeiros, não absorveu por completo a sua intervenção, pois estes subdividiam a sua vida quotidiana entre o comércio, o transporte, a banca, a produção e as administrações local e central. As primeiras atividades complementavam-se e garantiam-lhes um pecúlio vantajoso, enquanto a última lhes assegurava as condições e os meios preferenciais para a sua ação. A par disso, os relacionamentos matrimoniais com as principais famílias da Ilha reforçaram a sua posição na sociedade madeirense. Foi a partir da mescla dos primeiros povoadores europeus, oriundos de vários regimes e estratos sociais, que se definiu a estrutura social das ilhas. A presença destes cidadãos das repúblicas de Itália deriva, não só da sua implantação na Península Ibérica e do manifesto empenho na revelação do Novo Mundo, mas também do facto de a Ilha ser uma importante área de produção e comércio do açúcar. Assentaram morada nos portos ribeirinhos de maior animação comercial, evidenciando-se como mercadores, mareantes e banqueiros. Os de Génova e de Florença, cidades de grande animação comercial e marítima, abriram, nos locais de fixação, novas vias para o comércio com o mercado mediterrânico. Os Genoveses acompanharam o périplo da cana-de-açúcar para Ocidente e, depois, para além-Atlântico. O empenho genovês no mercado atlântico resulta da sua perda de posição no mercado mediterrânico, mercê da rivalidade com Veneza e das ameaças propiciadas com o avanço turco. Esta perda de influência no mercado açucareiro cipriota é compensada com a intervenção privilegiada nas ilhas atlânticas. Os mercadores-banqueiros de Florença destacaram-se nas transações comerciais e financeiras do açúcar madeirense no mercado europeu. A partir de Lisboa, onde usufruíam de uma posição privilegiada junto da Coroa, controlaram uma extensa rede de negócios abrangendo a Madeira e as principais praças europeias: primeiro, conseguiram da Fazenda Real o quase exclusivo do comércio do açúcar, resultante dos direitos reais por contrato direto, a que se seguiu o exclusivo dos contingentes estabelecidos pela Coroa, em 1498. A manutenção desta rede de negócios foi assegurada pela ação direta dos mercadores, dos seus procuradores ou agentes substabelecidos. Não obstante os obstáculos colocados pelos madeirenses, podemos considerar a sua presença na Ilha como benéfica. Para além de propiciarem o desenvolvimento das relações de troca em torno do açúcar, os mercadores das cidades-estado italianas foram portadores de novas técnicas e meios de comércio, imprescindíveis para as dimensões que o trato assumiu. Destacam-se os florentinos, que promoveram as companhias e sociedades comerciais e o uso das letras de câmbio nas vultuosas operações comerciais. O negócio do açúcar foi promovido pelos mercadores estrangeiros que, através de familiares e amigos, lançaram uma rede que atingiu as principais praças europeias. A ligação dos Italianos ao açúcar é manifesta quando procuramos indagar a sua presença em momentos de crise de produção e comércio da cultura. A partir da déc. de 30 da centúria quinhentista, é difícil encontrar o seu rasto na Ilha, encontrando-se apenas os que nela criaram raízes familiares; os demais debandaram rumo aos novos e mais promissores mercados. As evidências desta realidade são notórias. Na déc. de 70, mediante o contrato estabelecido com o senhorio da Ilha para o comércio do açúcar, detinham uma posição maioritária na sociedade criada para o efeito, sendo representados por Baptista Lomellini, Francisco Calvo e Micer Leão. A exemplo dos Italianos, e como já se referiu, também os Franceses e Flamengos surgiram na Ilha, desde finais do séc. XV, atraídos pelo rendoso comércio do açúcar. No entanto, ao contrário daqueles, não se enraizaram na sociedade insular, mantendo uma condição errante. O seu interesse era única e exclusivamente a aquisição do açúcar, a troco dos seus artefactos, alheando-se da realidade produtiva e administrativa. O caso de João Esmeraldo, mercador de origem flamenga que terá chegado à Ilha em 1480 e em 1511 recebe carta régia de naturalização, é a exceção. Os Franceses afirmaram-se pelas operações de troca em torno do açúcar, enquanto os Flamengos mantiveram uma posição subalterna e mesmo como grupo interveniente no mercado madeirense. Com uma presença muito ativa no comércio do açúcar na primeira metade do séc. XVI, os Franceses surgem com frequência nas comarcas do Funchal, Ponta do Sol, Ribeira Brava e Calheta, onde adquiriam grandes quantidades de açúcar que transportavam para os portos franceses nas suas embarcações. Em finais de Seiscentos, era bastante visível a presença de estrangeiros, nomeadamente cônsules flamengos, franceses, ingleses, holandeses e espanhóis, apesar de os ingleses constituírem o grupo estrangeiro mais influente e predominante. O Funchal tornou-se assim, de acordo com Frédéric Mauro, num pequeno centro cosmopolita. De todos os estrangeiros, os que adquiriram maior importância e perduraram no tempo foram os Ingleses, que surgem já no séc. XVI, contudo é na centúria seguinte, com a Revolução de 1640, que a Coroa lhes abre as portas e recompensa a ajuda com privilégios. Os Ingleses persistiram no arquipélago e foram a comunidade que adquiriu maior dimensão, graças aos privilégios concedidos pela Coroa portuguesa e ao espírito de coesão que marcou a feitoria, nomeadamente no séc. XVIII. Temos testemunhos muito claros da presença da comunidade e feitoria britânicas no quotidiano dos madeirenses, que lhes copiaram os hábitos, comportamentos e práticas comerciais, que persistiram no tempo. Em 1873, Álvaro Rodrigues de Azevedo chamava a atenção para a posição assumida pelos ingleses na Madeira. O cosmopolitismo britânico era um facto e coroava todo o impacto da sua histórica presença. Os ingleses foram os últimos a deixar envolver-se pelo fascínio da Ilha, mas os que mais deixaram marcas visíveis da sua presença. A eles se deve a descoberta das qualidades terapêuticas, as espécies botânicas e a fruição das belezas do interior, em passeios a pé, a cavalo ou em rede. A afirmação da hegemonia britânica no Atlântico e no Índico, a partir do séc. XVII, fez com que a Madeira se transformasse num dos pilares deste vasto império, uma base imprescindível para o corso marítimo e porto obrigatório de abastecimento das embarcações do comércio de vinho. No séc. XVIII, ficou reforçada a sua vocação atlântica, contribuindo para isso o facto de os ingleses não dispensarem o porto do Funchal e o vinho madeirense na sua estratégia colonial. Os Atos de Navegação (1660 e 1665), corroborados pelos tratados de amizade, como o de Methuen (1703), abriram o caminho para que a Ilha entrasse na área de influência do mundo inglês. A presença e a importância da feitoria inglesa no séc. XVIII são uma realidade. A Madeira funcionava, assim, para os ingleses como uma colónia com um papel fundamental nas ligações entre a metrópole e as possessões americanas e das Índias ocidentais e orientais. A presença de armadas inglesas no Funchal era constante e o relacionamento com as autoridades locais sempre foi amistoso, pois os britânicos eram recebidos pelo governador com toda a hospitalidade. Dessa presença, salientam-se as de 1799 e 1805, compostas, respetivamente, de 108 e 112 embarcações. Era também assídua a presença de uma esquadra inglesa a patrulhar o mar madeirense. Os britânicos concretizaram uma velha ambição, fazendo da Ilha mais um recanto de Sua Majestade. O primeiro indício desta apetência surgiu, em 1660, com as negociações para o dote do casamento da infanta portuguesa D. Catarina com o rei inglês Carlos II, em que a parte inglesa terá reivindicado a inclusão da ilha da Madeira. A situação baseava-se no facto de a infanta ser detentora de uma doação de 1656. A conjuntura política decorrente das ambições imperiais de Napoleão Bonaparte repercutiu-se, de forma evidente, no espaço atlântico, provocando uma alteração no movimento comercial. O mútuo bloqueio continental entre a França e a Inglaterra lançou as bases para uma nova era na economia atlântica. Os tradicionais circuitos comerciais que se iniciavam e finalizavam nos portos europeus pararam. O bloqueio não foi assumido e fiscalizado na totalidade, significando, apenas, a alteração de algumas rotas comerciais. A Madeira perdeu os portos do reino e do norte da Europa, mas, em contrapartida, ganhou nos contactos com os Açores e com as colónias inglesas do Índico. Perante tudo isto, só faltava hastear a bandeira no torreão do palácio de S. Lourenço, proclamar a soberania britânica na Ilha e reclamar, do madeirense, o juramento de fidelidade a Sua Majestade. Esta situação persistiu até 1814. Note-se que, anos antes (entre 24 de julho de 1801 e 25 de janeiro de 1802), a conturbada conjuntura europeia e os pactos estabelecidos pela velha aliança levaram a que os ingleses se limitassem a ocupar a Ilha, mantendo-se a soberania portuguesa. Fiéis às ordens de Sua Majestade, os ingleses acataram as determinações régias de 16 de maio de 1806, favorecendo, inevitavelmente, a Madeira. A partir daqui, todas, ou quase todas, as embarcações que se dirigiam aos portos franceses e castelhanos foram desviadas para a Madeira. As principais casas comerciais reforçaram a sua posição, acabando por dominar o mercado da exportação do vinho e de importação de artefactos e alimentos. A posição privilegiada dos Ingleses está expressa no estabelecimento, a partir de 1765, da feitoria britânica. De acordo com os tratados, estes usufruíam de regalias especiais, sendo isentos dos direitos de exportação do vinho, e dispunham de conservatória e juiz privativo. O séc. XIX marcou o fim desta situação, primeiro, com a perda do juiz, em 1812, e, depois, com a definitiva extinção da feitoria, em 1842. A feitoria, através das cotizações dos mercadores, construiu o cemitério britânico, em 1808, e a capela da Sagrada e Indivisa Trindade, em 1822. A mesma manteve, no hospital da Misericórdia, uma enfermaria para uso exclusivo da comunidade. Ao mesmo tempo que se serviam da Ilha para a afirmação da estratégia colonial, os Ingleses procuraram fruir da riqueza, controlando o comércio do vinho e desfrutando das belezas e do clima ameno, fazendo do Funchal uma das mais importantes estâncias de inverno e de cura da tísica pulmonar. Foram eles que definiram o mercado do vinho nos sécs. XVII e XVIII, lançaram as bases do turismo madeirense e divulgaram, em estudos científicos, a fauna e flora do arquipélago. Tudo isto porque a Coroa portuguesa preferiu entregar o controlo da Ilha aos súbditos de Sua Majestade, através das cedências expressas nos inúmeros tratados luso-britânicos. A par disso, a presença de estrangeiros dava outro colorido e animação à cidade, o que acontecia aquando da escala de embarcações ou na época invernal. São muitos os transeuntes a insistir nesta ideia, de que apenas damos uma amostra, primeiro com Allan Lethbridge a dizer, em 1924, que “A Madeira vive absolutamente dos seus visitantes [...]. A Madeira perderia metade dos seus entretimentos sem os sempre presentes vapores de correio transportando excursionistas” (SILVA, 2008, 182). Depois, na mesma data, temos um outro testemunho e retrato do Funchal ribeirinho, pela pena do português Raul Brandão: “Sentado à porta do Golden Gate, ouço o apito do vapor, e já sei o que se vai passar: muda a armação como um cenário de mágica. Surgem homens com grandes chapéus de palha para vender bordados, colares falsos de coral, cestos de fruta; iluminam de repente as lojas, e segue o desfile de tipos – pretas de Cabo Verde com foulards vermelhos na cabeça, mulheres planturosas, alemães maciços, portugueses esverdeados e febris que regressam das colónias, velhas inglesas horríveis que vêm não sei donde e partem não sei para onde, desaparecendo para sempre no mistério insondável do mar; criaturas inverosímeis que rodam, a toda a força, nos automóveis num frenesim que dura momentos e se passa na única rua onde há um café que transborda de luz. Mas as máquinas de bordo dão o sinal e uma hora depois esta vida fictícia desapareceu e tudo reentra no isolamento e no silêncio. Apagam-se as luzes, correm-se os taipais e os vendedores mergulham na pacatez da vida quotidiana” (BRANDÃO, s.d., 191). A presença destes estrangeiros está testemunhada em escritos e gravuras e a informação sobre o quotidiano da ilha a partir do séc. XVIII é devedora desta situação. Há textos e gravuras que ilustram de forma clara a vida e o meio madeirense nos seus múltiplos aspetos. A riqueza pictórica da ilha é devedora desta situação, existindo valiosas coleções, separadas ou em livro. De entre a coleção de gravuras inglesas podemos destacar as de Andrew Picken (1840), de James Bulwer (1927), de P. H. Springett (1843), de J. Selleny, de Susan V. Harcourt (1851), de Frank Dillon (1856), de R. Innes e de Joahn F. Eckersberg. Bibliog.: ARAGÃO, António, A Madeira Vista por Estrangeiros: 1455-1700, Funchal, Secretaria Regional de Educação e Cultura, 1981; BRANDÃO, Raul, As Ilhas Desconhecidas: Notas e Paisagens, Lisboa, Perspectivas e Realidades, s.d.; FRANÇA, Isabella de, Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal 1853-1854, Funchal, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, 1970; GOMES, Alberto F., “Autores Estrangeiros que Escreveram sobre a Madeira”, Ocidente, n.º 356, vol. 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Alberto Vieira (atualizado a 15.09.2016)
ensino das artes
Entre os sécs. XVI e XVIII, o ensino das artes visuais fez-se de um modo informal e essencialmente prático. Consubstanciado na aprendizagem direta com os mestres, os aprendizes trabalhavam em oficinas para as encomendas que chegaram até aos nossos dias. Estas oficinas locais, como acontecia também no país, tinham um caráter artesanal e familiar, facto verificável na documentação existente, que atesta a continuidade dos ensinamentos passados de pais para filhos. Por outro lado, a parceria entre mestres naturais de Lisboa e alguns pintores, escultores e gravadores locais, assim como as relações de camaradagem com artistas estrangeiros, permitiu a troca e aprendizagem de técnicas e procedimentos nesta área. Nalguns casos, a formação também foi feita no estrangeiro, como é exemplo o pintor Domingos Nunes Teixeira (at.1606-1615/1617), que foi discípulo de Juan de Roelas, pintor flamengo estabelecido em Espanha. Só em finais do séc. XVIII seria instituído em Portugal, por decreto régio, um ensino mais sistematizado e académico das artes visuais, através das reais aulas de Desenho e Pintura, nomeadamente a Aula Régia de Desenho de Figura e de Arquitetura, criada em Lisboa em 1781. Já no séc. XIX, assistiu-se à sistematização curricular do ensino artístico, mediante a criação das Academias de Belas Artes de Lisboa e do Porto, em 1836. Neste contexto, foi criada no Funchal, em 1807, uma Aula Régia de Desenho e Pintura, a cargo do pintor Joaquim Leonardo da Rocha. Esta formação, de contornos académicos, constituiu a primeira iniciativa deste tipo fora dos grandes centros de Lisboa e Porto. Joaquim L. da Rocha reproduziu na Ilha o ensino que o seu pai, Joaquim Manuel da Rocha, já ministrara na Aula Régia de Lisboa, antes mencionada. Já instalado no Funchal, o pintor propôs a criação da dita aula ao governo local, que por sua vez enviou uma carta a Lisboa pedindo a autorização régia para o seu funcionamento. A aula foi assim criada pela Carta Régia de 7 de julho de 1809, começando a funcionar em abril de 1810, não tendo chegado até nós notícia acerca do local onde teria funcionado. Regulava-se por uma lei promulgada pelo então governador da Madeira, Pedro Fagundes, na qual se previa a existência de alunos efetivos e extraordinários, assim como a criação de um concurso anual de desenho, aberto apenas aos alunos efetivos, contudo, não há registos que provem a realização do concurso previsto nesta lei. O art. 6.º, que aqui se transcreve, estipulava as regras e procedimentos desse concurso: “Serão três os prémios, o primeiro de 30$ —; o segundo de 20$ —; e o terceiro de 10$ — distribuindo-se estes segundo o merecimento dos Desenhos que se observar no fim do concurso (para que o professor prescreverá tempo certo, e determinado) durante o qual haverão todas as precauções e vigilância para que nos ditos desenhos não entre alguma mão mais hábil que os retoque, e que por esse motivo venham a conferir-se os tais prémios a quem os não mereça, tirando-se aos que deles se fizeram acredores. Os Sujeitos que se houverem de copiar deverão, o primeiro conter várias figuras; o segundo, menos figuras; e o terceiro, uma só figura” (NASCIMENTO, 1951, 210). Para apoiar o ensino do desenho, Joaquim L. da Rocha elaborou um rudimentar folheto didático, de 14 páginas, intitulado Medidas Gerais do Corpo Humano Arranjadas em Diálogo, e Método Fácil, para Uso da Real Aula de Desenho e Pintura da Ilha da Madeira, que foi publicado em Lisboa, em 1813. Ao que parece, a aula manteve-se ativa até 1825, ano em que o pintor faleceu. Dois dos seus alunos, Felipe Cardoso da Costa e Melo e João José de Nascimento, concorreram para ocupar o seu lugar, mas não há notícia sobre a continuidade da aula. De João José de Nascimento (1784-c.1850) são conhecidas algumas obras, hoje existentes em coleções públicas e privadas, e sabe-se que organizou uma exposição em 1846, no n.º 11 da Pç. da Constituição, no Funchal. Nesta exposição, anunciada no jornal O Defensor (18/04/1846, n.º 329), apresentou telas da sua autoria e também das suas discípulas, confirmando assim a continuidade que deu ao ensino do Desenho e Pintura, embora já sem o carácter oficial da aula régia do seu mestre. Para além desta curiosa e esporádica iniciativa de ensino das belas-artes, o séc. XIX foi pontuado pela presença de artistas estrangeiros que visitaram a Ilha, sobretudo ingleses e alemães, muitos dos quais aí fixaram residência. De alguns se sabe que mantiveram aulas particulares de desenho e pintura, o que influenciou consideravelmente o gosto regional ao longo de Oitocentos e na primeira metade de Novecentos. Por outro lado, no Funchal do séc. XIX também se assistiu, assim como aconteceu a nível nacional, às primeiras reformas pedagógicas que viriam criar o ensino liceal e o ensino industrial, este último centrado na formação de quadros para a nascente indústria portuguesa. Em 1837, é fundado o Liceu do Funchal, hoje Escola Secundária Jaime Moniz, não existindo nos seus currículos, porém, aulas de Desenho, Gravura ou Pintura. Esta falta seria colmatada em 1877, com a criação de um curso de Desenho rudimentar que funcionaria até 1892. Contudo, apenas em 1889 foi criada a primeira Escola de Desenho Industrial na Madeira, por diploma de 10 de janeiro do mesmo ano, que em homenagem à pintora portuguesa Josefa de Óbidos levou o seu nome. A Escola de Desenho Industrial Josefa de Óbidos seguiu o modelo das suas congéneres continentais fundadas em 1884 em Lisboa, Porto, Coimbra e Caldas da Rainha. Esta primeira Escola Industrial do Funchal mudou o seu nome em 1891 para Escola de Desenho Industrial António Augusto de Aguiar, em homenagem a este professor e político português. Três disciplinas de desenho compunham o currículo nesta área: a de Desenho Elementar, que, como o nome indica, era de caráter introdutório; a de Desenho Arquitetónico, onde se ensinava desenho artístico, técnico e de modelação; e a de Desenho Ornamental, que abordava o desenho de ornato, de modelação e a composição ornamental. Para além do desenho, abriram-se oficinas de marcenaria, carpintaria e lavores femininos. Em 1911, com a publicação do dec. n.º 11.061, o estabelecimento passa a integrar cursos elementares e comerciais, mantendo no entanto a vocação oficinal que já o caracterizava. Assim, passou a denominar-se Escola Industrial e Comercial António Augusto de Aguiar e oferecia as especializações de marceneiro, embutidor, debuxador de bordados, de costura, corte e bordados, assim como o novo curso das escolas comerciais. Importa aqui destacar que, ao longo do primeiro quartel do séc. XX, esta Escola Industrial é o polo de convergência das aprendizagens e experiências técnico-artísticas no Funchal, onde irão lecionar, entre outros, o escultor Francisco Franco e os pintores Adolfo Rodrigues, Henrique Franco, Abel Manta, Alfredo Miguéis e Maria Ornelas (madeirense e primeira mulher a lecionar naquela Escola). Francisco Franco, pai de Henrique e de Francisco, foi mestre de talha e carpintaria, tendo contribuído para o desenvolvimento do gosto pela talha, pela escultura e pela arte em geral, marcando uma geração de jovens estudantes, para além dos seus filhos, como Alfredo Miguéis, Luís António Bernes e João Firmino Fernandes. Em 1926, com o dec. n.º 12.147 de 13 de agosto, dão-se os primeiros passos para a exigência formativa dos professores no que diz respeito ao recrutamento de docentes para as escolas industriais, como o demonstra o art. 1.º: “O Governo nomeará, para diretores das Escolas Técnicas Elementares indivíduos diplomados com um curso técnico superior, industrial ou comercial, ou um curso completo de Belas Artes, consoante a natureza dessas escolas” (LOJA, 2000, 25). Desta forma, o ensino de Desenho Geral e de Desenho Ornamental passou a exigir um professor formado pelas Academias de Belas Artes, embora se registem muitos casos em que tal exigência não fora cumprida, por falta de docentes com essa formação na Ilha. Ao longo da primeira metade do séc. XX, esta Escola manteve o seu figurino e denominação, reafirmando com o passar do tempo a sua forte vocação para o ensino artístico. Passaram pela sua direção individualidades madeirenses de reconhecido mérito histórico, como é o caso de João Reis dos Gomes, escritor e político, que foi diretor do estabelecimento na déc. de 30. A Escola funcionou em diversos locais até 1958, ano em que se instalou no atual edifício, na R. João de Deus, o único construído para o efeito. Antes disso, ocupou prédios adaptados na R. de Santa Maria (1889-1891), no palácio de São Pedro (1891-1896), na R. de João Tavira (1896-1938) e na R. das Hortas/Trav. do Nogueira (1938-1958). Deve ser mencionada, apesar de efémera, uma curiosa iniciativa privada que, em 1913, promoveu a criação da Escola de Utilidades e Belas Artes, que viria a ser extinta por decisão oficial em 1919. Esta Escola foi instalada no antigo convento da Encarnação e funcionava segundo o modelo de ginásio feminino, onde as disciplinas de Pintura e Desenho faziam parte de um currículo artístico que as raparigas deveriam dominar junto com assuntos como a higiene, lavores, jardinagem e cozinha. Criada por deliberação da Junta Geral do Funchal, sob proposta de alguns intelectuais e políticos, funcionou apenas durante cinco anos. Foi encerrada, ao que se sabe, porque a Junta Geral considerou que as despesas não eram cobertas pelas receitas, mas outra razão plausível diz respeito à pretensão da Junta em ocupar o edifício com as suas repartições. Por outro lado, e ainda na primeira metade do séc. XX, a contínua presença de artistas estrangeiros que fixavam residência na Madeira foi mantendo a tradição oitocentista de um ensino baseado em aulas particulares. São paradigmáticos os casos dos alemães Walther Boesser e Max Römer. Contam-se, entre os discípulos deste último, os artistas Pedro Ferraz, António Marques da Silva, Jorge Marques da Silva, Ângela Aragão, Luiza Clode e Patricia Morris. O pintor madeirense Alfredo Miguéis, também professor na Escola Industrial, oferecia também aulas particulares de Desenho e Pintura, das quais foram alunos Pedro Ferraz, Matilde Ferraz e Gabriela Leónidas, entre outros. Os anos 50 foram marcados pela construção do novo edifício para a Escola Industrial e Comercial do Funchal, que, por dec.-lei datado de 21/05/1951, deixou de usar o nome de seu patrono, António Augusto de Aguiar. Após abertura de concurso para a sua construção, as novas instalações foram inauguradas em 1958. Também na déc. de 50 foi dado um grande salto no ensino das artes visuais na Região, com a criação da Academia de Música e Belas Artes da Madeira, primeira do seu género fora de Lisboa e Porto, por iniciativa da Sociedade de Concertos da Madeira (SCM). A SCM foi constituída em 1943 graças à ideia e diligências dos irmãos Luiz Peter Clode e William Clode e de Alberto Artur Sarmento. Tinha por missão incentivar o gosto pela música, assim como a dinamização da vida cultural na Madeira. Dois anos após a sua constituição, a SCM apresentou ao ministro da Educação Nacional a proposta de criação de uma academia, que possibilitaria ministrar no Funchal cursos de música equiparados aos do Conservatório Nacional. A Academia de Música da Madeira, instituição privada, abriu portas oficialmente em 1946, na Av. Arriaga, n.º 13. Contudo, foi em 1955 que Luiz Peter Clode propôs à Comissão Administrativa da Academia a criação dos cursos de Pintura e Escultura, com currículos equiparados às Escolas de Belas Artes de Lisboa e Porto. Assim, em 1956, foi aberta a Secção de Belas Artes, Pintura e Escultura, com 22 alunos matriculados. Nesse ano, a Academia mudaria então a sua designação para Academia de Música e Belas Artes da Madeira (AMBAM). A partir de 1957, e tendo por base as reformas oficiais no ensino em Portugal, a Secção de Belas Artes irá pautar-se pelo dec.-lei n.º 41.362, de 14 de novembro de 1957, lecionando cursos que serão considerados de nível superior e cabalmente equiparados às Escolas Superiores de Belas Artes de Lisboa e do Porto, a ESBAL e a ESBAP, respetivamente. Eram ministrados o Curso Geral de Pintura e o Curso Geral de Escultura, ambos com a duração de quatro anos. Os Cursos Complementares, tanto de Pintura como de Escultura, que consistiam na frequência do 5º ano, seriam lecionados na Madeira só a partir de 1974. O primeiro diretor da Secção de Belas Artes foi o pintor Vasco de Lucena, na altura já destacado no Funchal como professor na Escola Industrial. Sucederam-lhe o pintor Louro de Almeida, o escultor Anjos Teixeira e o pintor Justino Alves. Vasco de Lucena lecionou as cadeiras de Pintura, Escultura e Desenho; o historiador António Aragão, cadeiras teóricas; o Eng.º Hugo Amaral, Geometria Descritiva; e o Arqt. Rui Góes Ferreira, a cadeira de Desenho Arquitetónico. Alguns nomes importantes da produção artística local contam-se entre os primeiros alunos da AMBAM, como o foram os escultores Franco Fernandes e Amândio de Sousa e os pintores Patricia Morris e Danilo Gouveia. A validação das aulas ministradas era feita através de exames, no fim de cada ano letivo, com júri vindo alternadamente da ESBAP e da ESBAL. Contudo, os cursos complementares, bem como os respetivos exames de aptidão e finais, eram realizados apenas em Lisboa ou no Porto. A partir de 1972, passou a ser apenas necessária a vinda do presidente do júri, sendo os restantes membros professores locais. Só em 1974 estes passaram a realizar os exames finais sem auxílio de júris externos, permitindo a muitos alunos a conclusão integral dos cursos sem terem que se deslocar ao continente. As parcas condições de espaço e de material foram sendo superadas com o passar dos anos, graças ao interesse do corpo docente e aos subsídios que a Academia, apesar de privada, recebia das entidades oficiais. A AMBAM teve o mérito de formar docentes qualificados para os diferentes graus de ensino, onde a maioria não tinha formação superior. Grande parte dos professores de quadro das escolas preparatórias e secundárias da Região, nos anos 70, pertencia à área das artes visuais e era formada pela AMBAM. Para além destes, a Academia também formou pintores e escultores que protagonizariam as primeiras exposições locais de renovado gosto e de linguagem tendencialmente contemporânea e que seriam, mais tarde, professores do ensino superior artístico. Jorge Marques da Silva e Élia Pimenta, por exemplo, contam-se entre os antigos alunos que integrariam o corpo docente da AMBAM. As exposições escolares fizeram-se, nos primeiros anos, na sede da Academia, e foram sendo ensaiadas algumas parcerias com as escolas continentais, que se traduziram, por exemplo, na realização da 1.ª Exposição da Escola Superior de Belas Artes do Porto nos salões da AMBAM, em setembro de 1962. Nela participaram os então jovens artistas Júlio Resende, Armando Alves, Lagoa Henriques, Charters D’Almeida e os madeirenses Martha Telles, Amândio de Sousa e Rui Góes Ferreira. Em 1970, seria a vez de inaugurar a I Exposição Colectiva de Professores e Alunos da AMBAM, mostra inteiramente local que esteve aberta ao público fora do recinto académico, de 30 de abril a 10 de maio, no Teatro Municipal do Funchal. Os docentes Justino Alves, Anjos Teixeira, Luiza Clode, Jorge Marques da Silva e Margarida Lemos Gomes, juntamente com 27 alunos, expuseram um total de 97 trabalhos. Estudos de figura e natureza morta, assim como composições abstratas, dominaram o panorama da mostra. Os trabalhos apresentados revelavam uma tímida mas já assumida atualização metodológica que incidia mais na experimentação do que na cópia de modelos. Justino Alves, diretor da Academia, evidencia no texto do catálogo essa pretensão. A II Exposição Colectiva de Alunos e Professores da AMBAM foi realizada em 1973, nos mesmos moldes da primeira. Destaque-se a participação do escultor Anjos Teixeira e dos alunos Evangelina Sirgado de Sousa, Maurício Fernandes e Ricardo Veloza, que mais tarde seriam também docentes do ensino superior artístico na Região. Ao longo da sua existência, a SCM, através da Secção de Belas Artes da AMBAM, pretendeu organizar um evento maior de arte contemporânea, que incluísse um concurso a nível nacional e que permitisse criar um espólio para um futuro museu, ideia que nunca chegaria a ver a luz, pelo menos durante o tempo de vida da AMBAM. No período do pós- 25 de abril, a SCM foi extinta por uma conjuntura que lhe era adversa e para a qual contribuíram as dificuldades económicas e a reestruturação política e social em curso. A AMBAM seria também dissolvida e divididas as suas Secções de Música, de Belas Artes e de Línguas (esta última criada em 1963), dando origem, em 1977, a três instituições independentes. A Academia de Línguas da Madeira e o Conservatório de Música da Madeira continuaram com estatuto privado, enquanto as Belas Artes transformar-se-iam no primeiro estabelecimento público de ensino superior na Região: o Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira. A autonomia conquistada pela Madeira, após o 25 de abril, trouxe consigo a criação de uma Secretaria Regional de Educação e Cultura (SREC), dependente do novo Governo Regional. Foi por iniciativa regional, e em concreto da SREC, que, por exemplo, a Escola Industrial e Comercial do Funchal passou, em 1979, a ser oficialmente designada por Escola Secundária de Francisco Franco, relembrando assim o escultor madeirense, importante representante da escultura portuguesa do séc. XX. A criação do Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira (ISAPM) foi resultado de um trabalho levado a cabo pelos órgãos de gestão da antiga Secção de Belas Artes da AMBAM, a partir da qual se formaram as comissões instaladoras que garantiram, nesta transição, os recursos de pessoal docente e não-docente, assim como de estruturas, edifícios e equipamentos. Neste contexto, foi elaborado, em fevereiro de 1976, um Anteprojecto de Reestruturação do Ensino Superior Artístico na Madeira, da autoria de António F. Coutinho Gorjão, diplomado pela AMBAM. Com base neste anteprojeto, aprovado pelo Prof. Jorge Marques da Silva e por uma comissão de alunos, foi criado oficialmente, pelo dec.-lei n.º 450/77, o Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira. O ISAPM teve a sua sede no n.º 56 da R. da Carreira, onde já vinha funcionando a AMBAM desde 1971, tendo aí funcionado até 1998. Neste edifício, curiosamente, tinha residido antes o pintor Alfredo Miguéis, na déc. de 40. A primeira comissão instaladora foi constituída por Jorge Marques da Silva, António Gorjão e Isabel Santa Clara Gomes. Os cursos até então ministrados na AMBAM sofreram uma profunda alteração, tanto na sua designação como na sua estrutura curricular e metodologias de ensino, tendo sido criadas três licenciaturas: Artes Plásticas/Pintura, Artes Plásticas/Escultura e Design/Projetação Gráfica. A esta alteração curricular juntou-se um conjunto de novos projetos, tais como os laboratórios de fotografia e vídeo, este último equipado com tecnologia de vídeo a cores, pioneira a nível nacional. Ao corpo docente já existente juntaram-se, temporariamente, no início da déc. de 80, Paulo Maria Bastos da Silva Dias, na qualidade de designer gráfico, e o pintor Filipe Rocha da Silva. Até 1992, ano em que o ISAPM foi integrado na recém-criada Universidade da Madeira (UMa), fizeram parte do corpo docente os Profs. António Gorjão, Celso Caires, Élia Pimenta, Evangelina de Sousa, Guilhermina da Luz, Isabel Santa Clara Gomes, José Manuel Gomes, Jorge Marques da Silva, Maurício Fernandes, Idalina Sardinha e Ricardo Veloza. Deu também o seu contributo, como convidado, o Arqt. Marcelo Costa e foram ainda contratados como assistentes Abel Rodrigues, Carlos Valente, Gonçalo Gouveia e Roberto Gorjão. Para além das funções didáticas e de investigação, o ISAPM promoveu a dinamização cultural e a prestação de serviços à comunidade. A inédita abertura de um atelier infantil, que funcionou de modo experimental e associado à disciplina de Educação Visual Básica, permitiu oferecer à comunidade um espaço de aprendizagem artística sem precedentes no Funchal, possibilitando ao mesmo tempo que alunos das licenciaturas tomassem contacto com a expressão plástica infantil. No campo da extensão e dinamização cultural, o ISAPM encetou diversas iniciativas culturais em colaboração com organismos ligados à cultura, como a SREC e o Cine-Forum do Funchal. Uma iniciativa fundamental foi a criação de uma pequena galeria de exposições, aberta ao público, nas novas instalações da R. da Carreira e que foi palco de inúmeras mostras escolares, assim como espaço de acolhimento de muitos artistas visitantes e convidados, que ali expuseram. Em 1978, outra iniciativa pioneira que constitui importante incentivo à investigação e consequente divulgação foi, sem dúvida, a publicação do boletim anual Espaço-Arte, sendo na altura a única publicação sobre artes visuais na Madeira. Por outro lado, os docentes do ISAPM colaboraram frequentemente na imprensa local com artigos críticos e de divulgação. Ainda no campo da investigação, destaque-se o ensaio Consciência Estética, conjunto de cinco tomos de intenção didática que António Gorjão publicou entre 1978 e 1981, constituindo-se na época como uma das obras de teoria estética mais exaustivas em Portugal. Entre as diversas atividades deste Instituto, conta-se a realização de cursos intensivos com convidados de nível nacional, de seminários e palestras, de happenings e performances artísticas integradas no espaço urbano, assim como debates sobre as exposições em curso no Funchal. Esta contínua e inovadora dinamização, ao longo das décs. de 70, 80 e 90, criou uma sólida reputação do ISAPM enquanto instituição atuante no meio. Dois exemplos de atividades pioneiras aconteceram em 1981: A Mágica e Misteriosa Viagem, atividade que integrou um estúdio experimental de desenho e uma exposição de desenhos de Lagoa Henriques; e a Conferência e uma Intervenção Orfotímica, uma espécie de anticonferência protagonizada por António Aragão. A partir de 1986, foram realizadas as Jornadas Anuais do ISAPM, encontros temáticos que serão mantidos até finais dos anos 90 com periodicidade anual. As primeiras jornadas visaram o tema “Arte e Ensino Artístico/Hoje” e no ano seguinte foram integradas no Congresso de Arte Contemporânea que fez parte das atividades da feira de arte MARCA/Madeira 87. As III Jornadas Anuais do ISAPM, realizadas em 1988, trataram do futuro da cultura no “Decénio Mundial de Desenvolvimento Cultural”, e em 1989 voltou a ser tratado o tema do ensino superior artístico. Ao longo da déc. de 90, temáticas como o futurismo, o expressionismo e o design reuniram no Funchal convidados das Escolas de Belas Artes de Lisboa e Porto e professores e alunos do ISAPM. As Jornadas proporcionaram aos participantes uma série de debates, palestras e atividades paralelas, tais como visitas de estudo, workshops e atividades de criação artística coletiva, que contribuíram para o enriquecimento e aprofundamento das atividades de ensino e aprendizagem das artes visuais. Ao longo dos anos 80 e 90, foram organizadas numerosas exposições escolares com os trabalhos realizados pelos finalistas. Os alunos expuseram pela primeira vez fora de portas em 1979, na I Colectiva de Alunos do ISAPM, apresentada no Museu de Arte Sacra no mês de julho. Por convite do ISAPM, o crítico de arte portuguesa Rui Mário Gonçalves esteve presente nesta inauguração. Novidade também foi a constituição de uma Associação de Estudantes, que ajudou a desenvolver um espírito de grupo e a apoiar iniciativas de diversa índole, quer no ISAPM, quer fora dele. Por sua vez, os artistas locais, na sua maioria ex-alunos e docentes do ISAPM, irão reunir esforços para romper com as condicionantes do meio insular. A organização estatutária dos artistas regionais permitiria resolver em conjunto o acesso a espaços para expor, a materiais e novas tecnologias, a apoios logísticos à montagem de exposições, bem como concertar estratégias de divulgação. Dois projetos constituíram aquilo que mais tarde viria a ser uma associação dos artistas plásticos residentes na Madeira. Logo em 1974, ainda na AMBAM, tinha nascido a ideia de se criar um atelier de artes plásticas, por iniciativa de Gil Martins e António Gorjão, na altura finalista do curso de Pintura. Contudo, as dificuldades de concretização levaram a adiar o projeto até 1977, aquando da criação do ISAPM, em cujas instalações passou a funcionar um atelier livre, aberto a artistas externos ao Instituto, mediante inscrição. Neste espaço, a troca de experiências possibilitou um clima motivador para a prática dos artistas locais, na sua maior parte ex-alunos do ISAPM. Da responsabilidade dos docentes do ISAPM, o Atelier Livre chamou até si diversos artistas não formados pelo Instituto, como Eduardo Freitas e Alice de Sousa, num inusitado convívio que iria acelerar a concretização do projeto de associação. A CIRCUL’ARTE Associação de Artistas Plásticos da Madeira, oficialmente criada em julho de 1986, foi o resultado daquelas ideias e projetos, amplamente discutidos por alunos, ex-alunos e docentes do ISAPM ligados ao Atelier Livre, até então adstrito àquele Instituto. O seu primeiro presidente, José Júlio C. Fernandes, licenciado em Farmácia e formado depois em Escultura e Design pelo ISAPM, foi o principal impulsionador e reconhecido fundador da Associação. A partir da sua criação, a CIRCUL’ARTE passou a gerir o Atelier Livre, mas tinha como objetivo fundamental a promoção e valorização das artes plásticas em todos os quadrantes. Nos primeiros anos, a sua intensa atividade consubstanciou-se em desenvolver projetos em conjunto, promover intercâmbios de informação, colaborações e oferecer aos seus associados cursos, visitas de estudo e exposições. A Associação, em conjunto com o ISAPM, foi responsável pela versão regional da copiosa dinâmica artística da déc. de 80 em Portugal. Para tal, também contribuíram, nesses anos, a presença da Galeria Quetzal e a subsequente organização do Festival MARCA/Madeira, que marcaram definitivamente uma geração de artistas e instalaram no Funchal uma movimentação artística e cultural nunca antes vista. Neste contexto, a CIRCUL’ARTE organizou a sua I Mostra de Artes Plásticas, integrada no Festival MARCA/Madeira, em 1987. Reflexo desta movimentação foi a criação do Atelier de Artes Plásticas de Machico, primeiro caso de descentralização deste tipo de atividade. Inaugurado em abril de 1988, teve como responsáveis o escultor Luís Paixão e Jorge Moreira, que dirigiu o atelier até à cessação da sua atividade, em meados dos anos 90. Em 1992, e após alguns anos de conversações, longas negociações e diligências várias, o ISAPM consolida a sua integração na UMa enquanto estabelecimento autónomo, alterando então a sua designação para Instituto Superior de Arte e Design da Universidade da Madeira (ISAD/UMa). O protocolo de integração foi assinado a 30 de setembro de 1992 e publicado no Diário da República n.º 280, II série, de 4 de dezembro do mesmo ano. Contudo, alguns anos volvidos, as novas diretivas da UMa fizeram extinguir o ISAD como órgão com autonomia administrativa e financeira, passando a constituir-se como a Secção Autónoma de Arte e Design a partir de 1997, por deliberação do Senado. Por esta ocasião, os planos de curso, vigentes desde 1978, foram reestruturados pela Resolução n.º 77/ 97 (2.ª série), publicada no Diário da República n.º 187, de 14 de agosto de 1997, mantendo-se no entanto as designações existentes. Em 1998, o edifício da R. da Carreira, casa do extinto ISAD e que fora antes ISAPM, fecha as suas portas, e os cursos de Artes Plásticas e de Design passam a funcionar nas novas instalações da UMa, no Campus Universitário da Penteada. No geral, os novos espaços trouxeram uma melhoria das condições de habitabilidade (edifício novo) e outros recursos essenciais (instalações de apoio), assim como equipamentos escolares renovados (carteiras, mesas, armários). Contudo, algumas condições necessárias para a lecionação de cursos de índole artística perderam-se: o pé-direito das salas muito baixo não permitiu o desenvolvimento de trabalhos de grande escala e a distribuição dos espaços motivou a dispersão de alunos e docentes pelo edifício, perdendo o intenso e salutar convívio que existiu nas antigas instalações, bem como a ligação mais direta com a cidade. A partir do ano letivo 2002/2003, os cursos de Pintura e Escultura fundiram-se num único, designado de Artes Plásticas, continuando o curso de Design/Projetação com o mesmo nome. Os cursos restruturados passaram a durar quatro anos, em vez dos cinco anteriores, tendo desaparecido também o grau de bacharel. Estas alterações foram aprovadas no Senado, em janeiro de 2002, conforme a deliberação n.º 1159/2002, publicada no Diário da República n.º 159, II série, de 12 de julho de 2002. Por outro lado, a integração dos docentes do ensino superior artístico na carreira universitária, como acontecera com as Escolas de Belas Artes de Lisboa e Porto, não se fez de forma pacífica nem atempada para os docentes do ISAPM, tendo-se prolongado no tempo e resolvida apenas no séc. XXI. Neste contexto, em 2004, a Secção Autónoma de Arte e Design passa a Departamento de Arte e Design (DAD), por possuir o número mínimo de três doutorados: Idalina Sardinha, Isabel Santa Clara e Rui Carita, que assumiria a direção do DAD até 2008. Entretanto, as reformas de fundo, impostas pelo Tratado de Bolonha, nomeadamente a redução da duração curricular das licenciaturas para três anos, implicaram também uma restruturação, talvez a mais profunda, dos objetivos, natureza e organização curricular dos cursos. Deste modo, e a partir do ano letivo 2007/2008, o curso de Artes Plásticas foi transformado no novo curso de 1.º Ciclo em Arte e Multimédia (registado na Direção-Geral do Ensino Superior com o n.º R/B-AD-575/2007), enquanto o curso de Design/Projetação passou a denominar-se apenas 1.º Ciclo em Design (registado na Direção-Geral do Ensino Superior com o n.º R/B-AD-935/2007). A partir de 2008, os diretores dos cursos de Artes Plásticas e de Design, Isabel Santa Clara Gomes e Celso Caires, respetivamente, dão lugar a novas chefias. O novo curso de Arte e Multimédia passou a ser dirigido por Vítor Magalhães e o curso de Design por Carlos Valente, que se mantiveram em funções até ao ano letivo 2013/2014. Para além da renovação dos currículos e da atualização dos equipamentos, o Departamento de Arte e Design (DAD) apostou na formação pós-graduada, tendo sido aberto o primeiro curso de mestrado adequado aos critérios de Bolonha, o 2.º ciclo em Arte e Património, no Contemporâneo e Actual, que funcionou nos anos letivos de 2006-2007 e 2007-2008 (registado na Direcção-Geral do Ensino Superior com o n.º R/B-Cr-99/2006, ao abrigo do dec. n.º 74/2006 de 24 de março). Posteriormente, será criado um 2.º ciclo em Ensino das Artes Visuais no 3.º Ciclo do Ensino Básico e no Secundário, vocacionado para a formação de docentes (registado na Direcção-Geral do Ensino Superior com o n.º R/B-Cr-444/2007, ao abrigo do dec. n.º 74/2006 de 24 de março) e que funcionou com duas edições entre 2008 e 2012. Pretendendo oferecer novas formações pós-graduadas, foi aberta no ano letivo 2012/2013 uma pós-graduação em Arte e Design no Espaço Público, a qual funcionou com 15 inscritos e foi lecionada pelos professores doutorados: Carlos Valente, Duarte Encarnação, Vítor Magalhães e Susana Gonzaga, contando ainda, como convidado, com o Arqt. Paulo David. A partir de 2008, com a implementação da reforma dos estatutos da UMa, os departamentos foram extintos e foram reagrupados as suas respetivas áreas científicas e docentes em novas unidades, que foram então designadas de Centros de Competências. Os cursos e docentes do DAD passaram a fazer parte do Centro de Competências de Artes e Humanidades (CCAH). Contudo, em 2015, uma nova reforma dos estatutos alterou de novo a designação destes centros para faculdades, passando os cursos de Arte e de Design a ser integrados na Faculdade de Artes e Humanidades (FAH). Neste momento, os cursos de Arte e Multimédia e de Design são lecionados por um grupo de docentes com formação avançada e especializada em arte, multimédia e design. Fazem parte do atual grupo: três assistentes; um professor agregado das belas-artes, José Manuel Gomes; e oito docentes doutorados, a saber: Carlos Valente, Duarte Encarnação e Vítor Magalhães (doutorados em Estudos de Arte), Hugo Olim e Pau Pascual Galbis (doutorados em Audiovisuais e Multimédia) e os doutorados em Design Susana Gonzaga, Valentina Vezzani e Shujoy Chakraborty. As atuais licenciaturas de Arte e Multimédia e de Design recebem, no seu conjunto, uma média anual aproximada de 50 alunos e têm convénios com universidades europeias no que diz respeito ao programa de intercâmbios Erasmus, tanto de docentes como de alunos. A UMa continua, assim, a garantir hoje uma formação superior em artes visuais na Madeira que já constitui uma tradição, iniciada que foi 60 anos atrás pela Secção de Belas Artes, Pintura e Escultura da AMBAM. A Escola Secundária Francisco Franco, fiel à reputação que construiu como primeira e mais apta escola das artes na Região, possuía no início do séc. XXI um laboratório de artes gráficas, um laboratório de fotografia, um laboratório de vídeo e uma galeria de arte. Para além desta Escola, atualmente outros estabelecimentos de ensino secundário da Madeira têm na sua oferta formativa o curso de artes visuais: a Escola Padre Manuel Álvares, na Ribeira Brava, a Escola Básica e Secundária de Machico, a APEL e a Escola Secundária Jaime Moniz, no Funchal. Para finalizar, cabe ainda referir o papel desempenhado ao longo de 35 anos pelo Gabinete Coordenador de Educação Artística, hoje integrado na Direção de Serviços de Educação Artística e Multimédia (DSEAM). Este Gabinete, fundado em 1980 por Carlos Gonçalves, professor no Conservatório de Música da Madeira, desenvolveu uma extensa dinamização da educação artística nos ensinos pré-escolar, básico e secundário, através de atividades de complemento curricular e extracurricular nas áreas da música, dança, teatro e também da expressão plástica, que aqui importa destacar. Atualmente, uma especial ênfase é dada por esta entidade à produção audiovisual de conteúdos, de claro interesse cultural, e ao apoio técnico no âmbito do multimédia, área incontornável no ensino atual das artes visuais. Bibliog.: 50 Anos do Ensino Superior Artístico (documentação da palestra e debate na Universidade da Madeira), Funchal, Associação de Estudantes de Arte e Design, 2007; Arte e Ensino Artístico Hoje: I Jornadas do ISAPM, Funchal, Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira, 1986; ABREU, Fátima “A Instalação do Ensino Técnico e Profissional no Funchal”, Leia S.F.F., n.º 26, abr.-jun. 2008, pp. 35-38; ALVES, Justino, Catálogo da I Exposição Escolar de Professores e Alunos da Academia de Música e Belas Artes da Madeira, Funchal, Academia de Música e Belas Artes da Madeira, 1970; GONÇALVES, Maria Alexandra de Sousa, Joaquim Leonardo da Rocha, Primeiro Professor da Aula de Desenho e Pintura do Funchal, Dissertação de Mestrado em História e Cultura das Regiões apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 2007; GORJÃO, António F. Coutinho, Anteprojecto de Reestruturação do Ensino Superior Artístico na Madeira, Funchal, AMBAM, 1976; Id., “ISAPM, um Novo Estabelecimento de Ensino Superior”, Espaço-Arte, n.os 1-2, maio 1979, pp. 9-16; Id., “O ISAPM e a Região”, Espaço-Arte, n.º 8, maio 1984, pp. 17-27; Id., “Ateliers Livres e Associação de Artistas Plásticos da Madeira”, Espaço-Arte, n.º 11, ago. 1986, pp. 37-41; Id., “Os 10 Anos do ISAPM”, Espaço-Arte, n.º 14, jan. 1988, pp. 11-14; Id., “Artes Plásticas e Ensino Artístico – Uma Escola Madeirense?…”, Espaço-Arte, n.ºs 20-21, jan. 1992, pp. 53-60; JESUS, Júlio, Joaquim Manuel da Rocha e Joaquim Leonardo da Rocha. Subsídios para as Suas Biografias e Alguns Elementos para o Estudo das Suas Obras, Lisboa, Tip. Gonçalves, 1932; LOJA, António, Notas para a História da Escola Secundária Francisco Franco, Funchal, Ed. da Escola Secundária Francisco Franco, 2000; LUCENA, Vasco de, “Ensino da Pintura e da Escultura na Madeira”, Das Artes e da História da Madeira, vol. iv, n.º 21, 1956, pp. 29-30; NASCIMENTO, João Cabral do, “Criação e Funcionamento da Aula de Desenho e Pintura no Funchal”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. IX, 1951, pp. 209-212 (1.ª ed. em 1933, vol. i, pp. 36-47); SANTA CLARA, Isabel e VALENTE, Carlos, “(Re)Visões acerca do Ensino artístico na Madeira”, Arte Ibérica, n.º 38, ago. 2000, pp. 44-46; SILVA, Fernando Augusto da e MENEZES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, vol. I, Funchal, DRAC, 1984; TEIXEIRA, Pedro Anjos, “Os Cursos de Belas Artes na Madeira: História e Números”, Espaço-Arte, n.os 1-2, maio 1979, pp. 17-19. Carlos Valente (atualizado 21.03.2016)
elites madeirenses e a sua reprodução
Dos inícios aos finais do século XV Quando João Gonçalves Zarco e Tristão Teixeira foram para a Madeira com o desígnio de povoar a Ilha, fizeram-se acompanhar das suas famílias e de um conjunto de companheiros cuja situação social era, à partida, diferenciada. Assim, no seio dos primitivos povoadores, era possível identificar alguns escudeiros, à volta de 14, sendo as restantes pessoas de “condição modesta”, a quem estariam destinadas as ocupações “mais humildes e mais ingratas” (SERRÃO, 1961, XXXI, 2). Nos inícios do séc. XV, um escudeiro era um homem que pertencia à pequena nobreza do reino, normalmente instruído no manejo das armas e que, a seu tempo, podia almejar ao estatuto de cavaleiro. Apresentando-se, porém, a participação em empresas dos descobrimentos como uma oportunidade de galgarem mais rapidamente os degraus da escada social e obterem um estatuto mais relevante, alguns não hesitavam em partir à aventura, o que configura a situação quer de Zarco, quer de Tristão Teixeira. Na tomada de Ceuta, em 1415, Zarco tornou-se cavaleiro, alcançando, assim, um estatuto acima do de escudeiro, porque implicava já a posse de cavalo e um correspondente lugar no seio de uma elite militar e económica. Armado, pois, Zarco pelas mãos do infante D. Henrique, o mesmo aconteceu a Teixeira no cerco de Tânger, e, em 1418, no descerco da primeira praça, os dois futuros capitães do donatário solicitaram ao infante que os enviasse a desbravar a costa africana. Foi no decurso da viagem de demanda das partes da Guiné que, oficialmente, se achou o arquipélago da Madeira, e o facto de a expedição estar confiada aos cuidados daqueles dois navegadores é a situação que explica o caráter preponderante que ambos haveriam de assumir no governo da Ilha, condição que se estendeu a Bartolomeu Perestrelo, ao qual havia de ser confiado o Porto Santo. No conjunto de escudeiros que acompanharam Zarco e Teixeira, pontificavam nomes como Gonçalo Aires Ferreira, Francisco Carvalhal, João Lourenço, Rui Pais, João Afonso, António Gago, Lourenço Gomes, Francisco Alcoforado, Vasco Delgado, Álvaro Afonso, Aires Lordelo, Vasco Esteves, Manuel Afonso de Sanha e João do Prado, alguns dos quais se voltarão a encontrar, e.g., no círculo dos homens bons do concelho do Funchal, em 1471. Os restantes, oriundos do povo, continham até alguns criminosos, embora Frutuoso afirme que Zarco se recusara a trazer “os culpados por causa da fé, da traição ou por ladrão” (FRUTUOSO, 2008, 43). Ainda que, segundo afirma o P.e Fernando Silva, seja difícil, se não impossível, determinar a proporção em que se encontrariam os elementos dos diversos grupos sociais no povoamento da Madeira, é, pelo contrário, fácil perceber o escalonamento desses grupos, à partida confirmado pelo próprio rei D. João I, quando, por carta de mercê, atribuiu a João Gonçalves Zarco a distribuição das terras que lhe tinham sido doadas forras “sem pensão alguma àqueles de maior qualidade e outros que posses tiverem para as aproveitarem e aos de menor que vivam de seu trabalho e de cortar e talhar madeiras e das criações” (AZEVEDO, 2008, 673). Estipulado, pois, o modo de alienar as terras em regime de sesmaria, por períodos que começaram por ser de 10 anos, passando, depois, a cinco, procedeu o capitão a essa distribuição, da qual resultou a detenção, provisória, de grandes extensões de terra por parte dos mais poderosos, que para elas se deslocaram com o propósito de as tornar produtivas e, assim, garantir no futuro a posse plena, dando-se, deste modo, origem ao que a história registou com a designação de fazendas povoadas. De entre os companheiros de Zarco que largamente beneficiaram deste sistema, encontram-se, e.g., Gonçalo Aires Ferreira, o qual foi tronco de ampla descendência conhecida por “casta grande” e dono de vasta propriedade, estendida desde a ribeira que tem o seu nome até à margem da ribeira de S.ta Luzia, confrontando, a norte, com a serra, ou João Afonso Correia, senhor de muitas terras de sesmaria em Câmara de Lobos, que se tornou almoxarife do infante e foi “tronco da ilustre família Torre Bela” (SILVA, s.d., 37, 44). Segundo Cadamosto, em 1455, além de outras povoações, haveria já Machico, Santa Cruz, Funchal e Câmara de Lobos, sendo ainda possível que na Ribeira Brava já estivesse Maciot de Bettencourt, enquanto no Arco da Calheta se encontraria Fernão Domingos e, no Caniço, Mem Rodrigues. O facto de nesta última lista já se encontrar um estrangeiro aponta na direção que permitiu a constituição de um novo segmento daquela que veio a ser a aristocracia insular. Com efeito, a introdução, por determinação do infante D. Henrique, da cana-de-açúcar na Madeira e a elevada rendibilidade que, de imediato, o produto veio a oferecer, tornou-se chamariz para muitos europeus que, sendo, em muitos casos, filhos segundos de boas famílias, viram na deslocação para a Ilha a possibilidade de construírem para si próprios um estatuto social e uma riqueza que a pátria lhes não proporcionaria. Noutros casos, porém, tratava-se simplesmente de negociantes originários, quase todos da Europa Mediterrânica, conhecedores do “trauto” do açúcar, e que vinham atraídos pelas possibilidades de enriquecer. Assim se explica que ao longo do séc. XV se começassem a radicar na Madeira os Lomelinos, genoveses que se fixaram em Santa Cruz, os Acciaiolli, donos de engenho no Funchal, os Leme, família de mercadores de origem flamenga que depois se tornou proprietária de terras, os Esmeraldo, cujo primeiro representante, João Esmeraldo, começou por se estabelecer no Funchal, onde deixou uma rua com o seu nome, adquirindo depois larga propriedade na Ponta de Sol, ou o próprio Bettencourt, acima referenciado, descendente de franceses radicados nas Canárias, para se darem, apenas, alguns breves exemplos. Através de casamentos apropriados, estes estrangeiros rapidamente entroncaram nas principais famílias da Ilha, fundindo-se com elas e radicando-se tão duradouramente que, no séc. XXI, ainda se encontram descendentes seus na Madeira. Na déc. de 50 do séc. XV, em data imprecisa, um Funchal em acelerado crescimento foi elevado à categoria de município, o que implicava a constituição de uma estrutura administrativa afeta à sua gestão. Os primeiros dados conhecidos dessa estrutura reportam-se aos homens bons que, em 1471, foram chamados à governação do concelho, os quais, de acordo com as determinações vigentes, tinham de ser recrutados de entre os mais poderosos e mais aptos a poder servir os ofícios municipais que, por não serem remunerados, implicavam um certo desafogo material por parte dos escolhidos. De acordo com Ernesto Gonçalves, esses primeiros senadores poderiam encontrar-se “à beira dos seus trapiches, de suas alçapremas, de seus engenhos e serras de água, […] junto das suas eiras e dos seus canaviais e de suas searas, em seus lugares e suas terras”, o que permite indexar o desempenho das funções camarárias a senhores fundiários (GONÇALVES, 1958, 5). Esta “aristocratização interna” do elenco camarário (RODRIGUES, 1998, 226) é facilmente percetível a partir da análise da lista dos homens bons que, em 1471, eram chamados ao exercício do poder municipal, e nos quais se encontram cerca de 23 escudeiros e cavaleiros, alguns deles filhos e genros de Zarco. Os que não entram nesta categoria poderiam, no entanto, ser igualmente considerados parte desta nobreza emergente por derivarem, possivelmente, dos incluídos no rol dos “outros que posses tiveram para as [terras] aproveitarem” (AZEVEDO, 2008, 683), referidos na mercê de D. João I que habilitava Zarco a proceder à atribuição de sesmarias, a que atrás se aludiu. Estaria nestas circunstâncias, e.g., Pedro Gonçalves de Clara (ou de Crara), que teve terras no Campanário e instituiu a capela do Santíssimo, na Sé. Outra forma de se ter acesso a esta lista de privilegiados era a do desempenho de funções públicas, casos de “recebedor do senhor duque” (Álvaro de Poiares), juiz (Gonçalo Esteves), “estimador dos açúcares” (João de Canha), ou “almoxarife” (Manuel Afonso) (GONÇALVES, 1958, 5-8, 73-77). A destoar deste grupo da heterogénea elite madeirense, surgem dois homens que partilham o nome – João do Porto, tio e sobrinho, um sapateiro e outro barbeiro, que depois evoluiu para cirurgião. Segundo Ernesto Gonçalves, a inclusão destes nomes na lista dos homens bons deveria ser um erro, uma vez que o seu perfil socioeconómico não era compatível com os cargos a exercer, mas o facto é que vêm nomeados e que, ao contrário de muitos dos mais credenciados, se mostram assíduos no cumprimento dos seus deveres. A questão da ausência de muitos dos indicados às sessões da Câmara é outro assunto que permite o levantar de algumas dúvidas, a que Gonçalves procura responder alvitrando, para o caso de alguns, o exercício de funções não compatíveis com as ocupações concelhias, ou, para outros, a distância da residência em relação ao Funchal. Já Joel Serrão postula que a explicação para o facto poderá estar nos “atavismos aristocráticos (atavismos que se desenvolveram ante as condições primitivas do povoamento) da maioria dos homens bons locais”. Chama, ainda, e por outro lado, a atenção para o não ser, com certeza, “por acaso que o barbeiro João do Porto (repare-se: do Porto)” desempenhou papel de relevo nestes inícios da vida municipal (SERRÃO, 1961, 4). Sabendo-se, com efeito, que “os cargos de governança, os ofícios de escrivania ou de tabelionato foram de todos os tempos um meio de adquirir e conservar a nobreza” (ALCOCHETE, 1966, 9), não deixa de ser estranhável a displicência revelada por estes “principais” no tocante à comparência às sessões municipais. As explicações, que há que procurar, podem ser várias: os camaristas moravam efetivamente longe da vila e, como ainda se encontravam muito comprometidos com o processo de produção, não estavam na disposição de se ausentar da propriedade para comparecer às sessões camarárias; ou proviriam de localidades em que os lugares do Senado eram ocupados por lavradores e homens de negócio, razão pela qual dificilmente entenderiam os ofícios municipais como nobilitantes. A dar-se este último caso, fácil se torna entender a posição dos dois João do Porto, que, provindos da câmara municipal que mais fidalgos da Casa Real possuía – a do Porto –, veriam no acesso ao Senado, eles sim, uma verdadeira promoção social. O Antigo Regime – do século XVI ao século XVIII Depois de 1508, ano em que o Funchal passa a cidade, a situação atrás referida rapidamente se modificaria, pois, a partir daquela data, sucedem-se as petições ao rei por parte da nobreza madeirense para que os seus elementos figurassem no rol dos elegíveis para a Câmara, considerando-se os excluídos “desonrados e vexados”, pedido a que o rei acedeu, elevando o número dos elegíveis para o Senado (SILVA, 1995, II, 684). Por outro lado, ainda em 1508, a 17 de agosto, o rei respondia a uns agravos dos “fidalgos” insulares que reclamavam por causa da inclusão nos oficiais da Câmara de pessoas de “baixa qualidade”, e assegurava que, daí em diante, os lugares do Senado se não deviam prover senão “nos fidalgos [da terra], pois aí há tantos e tais que muito bem [o] poderão fazer” (Arquivo Histórico da Madeira, XVIII, 1974, 505-506). As razões para esta mudança de posição prendem-se com diversos fatores. Por um lado, o progressivo fim do regime de sesmaria que, por ter visto cumpridos os seus desígnios – assegurar a produtividade das terras –, permitiu aos sesmeiros passar a proprietários definitivos dos solos. A sesmaria veio a ser substituída por um regime fundiário típico da Madeira, a colonia, que permitia aos donos dos terrenos fazê-los explorar por colonos, dividindo a meio os frutos, ao mesmo tempo que as despesas com benfeitorias corriam por conta dos cultivadores. O facto de esses mesmos lavradores serem donos das benfeitorias levou a que este regime fosse extraordinariamente difícil de abolir, o que apenas se conseguiu depois da revolução de 25 de abril de 1974. Por outro, a elevação do Funchal a cidade tornou o assento na Câmara bem mais apetecível, pelo que a partir de então se passa a disputar a posse de um lugar no Senado da urbe. A circunstância de a presença dos donos já não ser decisiva para a produtividade muito contribuiu para que os senhores deixassem de residir nas suas propriedades e as trocassem por moradias apalaçadas construídas no Funchal, doravante seu lugar de eleição para viver. A capilaridade social que se verificou nos primeiros tempos do povoamento, e que permitiu a ascensão a lugares da governança a pessoas que, no futuro, a eles deixariam de poder aspirar, acabou por ser limitada por sucessivas alterações no modo de proceder à eleição dos oficiais camarários. Assim, se antes de 1471 a designação dos vereadores e outros camaristas se fazia “às mais das vozes”, passou depois a operar-se pelo sistema de “pelouros”, onde se encerravam os nomes dos potenciais candidatos, escolhidos por uma pequena comissão que os designava (GONÇALVES, 1958, 4). Este novo sistema, em que a decisão sobre os ocupantes dos pelouros passa a competir ao rei, a quem eram enviadas as listas dos elegíveis, vai agir no sentido de uma cada vez maior “elitização” da posse dos ofícios camarários, o que se comprova pela alteração do estatuto dos que passaram a ocupar tais posições. Em 1471 estavam arrolados 38 indivíduos capazes de servir no Senado, o que representava 7,6 % das famílias residentes, e entre os quais se contavam 5 fidalgos, 5 cavaleiros e 13 escudeiros, que, no seu conjunto, significavam 60,5 % de elementos da nobreza, por oposição aos restantes 39,5 % oriundos da burguesia mercantil. Em 1508, porém, o número de elegíveis era já de 50, o que, só por si, é demonstrativo de um novo interesse em representar a Câmara. Ainda que num primeiro momento só estivessem indicados 48, passou a exercer-se pressão sobre o rei no sentido de permitir o aumento do número dos elegíveis e a sua qualidade: 11 fidalgos, 4 cavaleiros e 5 escudeiros são dados que claramente autorizam a conclusão de que os ofícios municipais se tinham tornado não só apetecíveis, mas ainda um indicador seguro de que a presença na Câmara Municipal se tornou forma de monitorizar a elite insular. Esta tendência acentuar-se-á à medida que se for produzindo nova legislação que rege o ingresso nos ofícios municipais. Com efeito, se, em 1507, se determina que os mecanismos de liderança local pertençam “às pessoas principais das terras”, em 1603 estipula-se que sejam afectos aos “melhores dos lugares”, em 1618 destinam-se aos “melhores do lugar” e, em 1709, “às pessoas da melhor nobreza”, o que vem contribuir para que o rastreio da presença dos vereadores e outros oficiais nos senados seja, igualmente, um excelente processo para monitorizar a elite socioeconómica e política das localidades (MONTEIRO, 1996, 60). À semelhança do que Fernanda Bicalho conclui para Pernambuco, no Brasil, também na Madeira se assistiu à transformação da “açucarocracia em nobreza da terra” (BICALHO, 2005, 24), embora a posse de terras para produção, primeiro de açúcar e depois de vinho, não fosse o único critério para promoção das elites locais. Com efeito, para esse fim igualmente concorriam a prestação de serviços ao rei, quer fosse em missões de descoberta e conquista, quer fosse pelo exercício de outros cargos da administração pública. Para se demonstrarem casos que ilustram a primeira situação, refira-se, como exemplo, a participação de Zarco e Teixeira em expedições à costa africana, o primeiro apenas como financiador e o segundo como navegante, ou, num período posterior, o pedido de João Favila para poder integrar o rol dos elegíveis para a Câmara do Funchal com base nos serviços prestados em Safim e Azamor. No séc. XVII, esta estratégia continua a ser prosseguida, conforme se pode verificar pelas várias situações apontadas por Nelson Veríssimo, de que se podem sublinhar as nobilitações alcançadas por Manuel Martins Medina, que recebeu mercê do foro de cavaleiro fidalgo por serviços em Itamaracá e a concessão da Ordem de S. Tiago e pensão, devidas pelos feitos em Angola e no Brasil, entre outros muitos exemplos. O uso destes recursos de nobilitação justifica-se, também, pelo facto de alguns fidalgos madeirenses provirem de famílias humildes, como bem sublinhava o P.e Severim de Faria, reitor do colégio dos Jesuítas, que, a propósito de um seu escrivão da visita das naus que era “mecânico de nascimento, ainda que não vil”, acrescentava que esta situação na Madeira não era rara, pois na terra “tudo são fumos de fidalguia”, aludindo às aparências de nobreza de alguns dos principais (FARINHA, 1989, 720), que podiam ter na origem “famílias com bens vinculados, cujos troncos foram simples operários” (SILVA, s.d., 44). Outro caminho para a integração nas elites era o do exercício de cargos administrativos, cuja posse era mesmo, por vezes, adquirida, passando a pertencer ao património da família. Foi o que aconteceu com os Andradas (Manuel Dias de Andrade, Francisco de Andrade, Ambrósio Vieira de Andrade e Jorge Vieira de Andrade), que detinham o lugar de provedor da Fazenda Real, concedido em recompensa de feitos realizados na Flandres e no Brasil, os quais lhes renderam, ainda, o hábito de Cristo e uma comenda. A engrandecer ainda mais o estatuto desta família, vinha juntar-se o padroado do convento da Encarnação, fundado, em 1650, pelo Cón. Henrique Calaça, que lhes garantia sepultura em lugar prestigiado – a capela-mor do referido convento. Um caso semelhante aconteceu com a família Valdevesso que, originária de mercadores, alcançou lugar de relevo na sociedade madeirense graças à propriedade do ofício de juiz dos órfãos do Funchal e da Ponta de Sol, que passou das mãos de Manuel de Carvalho Valdevesso para as de seu filho, o Dr. Pedro Carvalho Valdevesso, e deste para as do neto, outro Pedro de Carvalho Valdevesso. O primeiro dos Pedros reforçou a sua posição, e, ao mesmo tempo, a da sua família, graças à frequência de estudos universitários e ao casamento com uma rica herdeira, D. Maria de Gondim. Estes Valdevessos constituem uma boa amostra das componentes que se reuniam para firmar os créditos necessários à integração nas elites insulares quando se não era descendente da chamada “nobreza de sangue”. Assim, Manuel de Carvalho foi, para além de juiz dos órfãos, como já referido, capitão de ordenanças do Campanário, vereador e procurador da Câmara do Funchal, o que configura o percurso desejável para a consolidação de uma posição social cimeira. O filho, Pedro, acrescentou a estes predicados um título académico, reforçando, assim, o caminho que vinha a ser trilhado pela família na rota da ascensão social. Com efeito, o grau de bacharel ou doutor obtido na universidade era um outro fator a ser considerado no estatuto social do seu possuidor, pois a sua habilitação determinava o ingresso na nobreza, ainda que nem sempre os rendimentos auferidos permitissem ao graduado um estilo de vida compatível com aquele que se esperava dos “principais”. A terminar o périplo das instituições a cuja pertença se associava o conceito de principalidade, falta falar do caso da Misericórdia que, estatuariamente, obrigava os membros de “primeira condição” a serem “nobres, oficiais generais ou prelados” (JARDIM, 1996, 21). A demonstrar isto mesmo pode dar-se o exemplo da família Brito de Oliveira, que, alcandorada à situação de fidalga por foro alcançado por Nicolau Brito de Oliveira (1615), o viu servir na Câmara do Funchal e ser capitão de ordenanças na mesma cidade, vindo o seu filho, Mendo, a repetir os desempenhos no Senado e nas ordenanças, acrescidos, ainda, do lugar de provedor da Santa Casa de Misericórdia, no ano de 1663. Uma última estratégia, muito utilizada pela nobreza madeirense, ainda que não seu apanágio exclusivo, encontra-se na prática da vinculação de parcelas de terras e rendimentos do património da família, a morgadios ou capelas, entregues ao cuidado de um ou mais testamenteiros. Segundo João Cabral do Nascimento, “É sabido que esta ilha foi uma das terras portuguesas onde em maior número se estabeleceram e se desenvolveram os vínculos” (NASCIMENTO, 1935, 65), os quais se podiam dividir, como se viu, em duas modalidades: os morgados e as capelas. Aquilo que essencialmente distinguia uma da outra era a forma de usufruto do rendimento: no caso dos morgados ia quase tudo para o administrador, enquanto no das capelas se destinava, sobretudo, à realização de serviços religiosos, ainda que o remanescente revertesse para o responsável pelo vínculo. Estes vínculos que não eram apenas instituídos por nobres, mas também por uma larga quantidade de “rústicos” ou “mecânicos”, nem por isso deixavam de ser bons indicadores da opulência de determinadas casas, que faziam questão de os transmitir com base na lei da primogenitura, o que, muitas vezes, acabava por conduzir a situação de acúmulo de propriedades nas mãos de um único detentor. Foi isso que aconteceu, e.g., com o 2.º conde de Carvalhal que, em meados do séc. XIX, detinha 79 vínculos, ou, dito de outro modo, um quinto da ilha da Madeira. Casos menos extremos, mas ainda assim muito significativos, são, também, os de Diogo Ornelas Frazão ou de Aires de Ornelas Vasconcelos, morgado do Caniço, que acumulavam, cada um, 22 vínculos. Muitas vezes anexas aos morgadios encontravam-se capelas, materializadas pela construção de ermidas ou em altares no interior de igrejas já construídas, normalmente administradas pelos morgados e de que se encontram registos bastante antigos, como acontece com a de João Rodrigues de Freitas, na Madalena do Mar, gerida pelos morgados das Cruzes, ou a de N.ª Sr.ª do Faial, construída por Zenóbio Acciolli (Capelas). Se a posse de um simples morgadio não chega para se identificar com segurança um estatuto de nobreza, já a existência de uma capela, acompanhada da determinação de ofícios divinos “enquanto o mundo for mundo” ou “enquanto o mundo durar”, pressupõe a presença de um desafogo financeiro que não estava ao alcance dos mais humildes instituidores de propriedades vinculadas, sendo, portanto, um mais fiável instrumento de deteção de um estatuto social destacado. À semelhança do que José Damião Rodrigues refere para o séc. XVIII nos Açores, também na Madeira se pode falar de “morgadocracia” no sentido em que os morgados mais abonados vieram, ao longo dos tempo, a cimentar uma posição social que lhes dava uma clara supremacia, consolidada pela propriedade da terra e pela instituição vincular. Com efeito, e no dizer de Nuno Monteiro, “a identificação de alguém numa pauta pela posse de um vínculo constituía quase sempre um indicador de nobreza antiga” (MONTEIRO, 1997, 350). Se tudo quanto até agora se referiu diz respeito, sobretudo, à capitania do Funchal, a situação em Machico não era substancialmente diferente. O seu primeiro capitão do donatário, Tristão Teixeira, procedeu, tal como João Gonçalves Zarco, à divisão das terras da capitania, que entregou em regime de sesmaria a vários indivíduos, dos mais poderosos que se encontravam naquele território, entre os quais se contavam alguns dos seus filhos. De acordo com os “Anais de Machico”, “assim, em breve tempo se povoou e enobreceu a capitania de Machico” (A Flor do Oceano, 1865-1866, s.p.). Os filhos de Teixeira que foram distinguidos pelo regime sesmeiro são vários, dos quais o primeiro foi Henrique Teixeira, por cognome o Agricultor, a quem o pai doou a freguesia de Água de Pena e que veio a tornar-se “grande lavrador […], foi bem rico e enobreceu a vila de Machico” (LEITE, 1947, 54). Por seu lado, Lançarote Teixeira recebeu a Penha d’Águia, de que fez morgadio, com o Ribeiro Frio, e ainda alguns lotes no Porto da Cruz. Era este Lançarote muito bom cavaleiro, e tanto promoveu a arte da cavalaria que à vila “de toda a ilha concorriam homens principais a aprender com ele” (A Flor do Oceano, 1865-1866, s.p.). Além disto, organizava “correrias” realizadas no campo de S.ta Catarina, entre Machico e Santa Cruz, de modo que a terra “mais parecia uma nobre corte, que vila de tão poucos vizinhos” (LEITE, 1947, 54); ao terceiro descendente, João Teixeira, foi entregue o Caniçal, que ele transformou em coutada. Este pendor algo medieval que Tristão Teixeira imprimiu à capitania é, também, observável na freguesia de Gaula, onde se regista o uso de nomes com “sabor a heróis de cavalaria, tais como Galaaz, Tristão, Isoa, Lançarote e Grismunda” (NASCIMENTO, 1937, 149). Apesar de algum aparato inicial, esta capitania não conseguiu ultrapassar, por via varonil, o quarto representante da “dinastia” dos Teixeiras, encontrando-se, no início do séc. XV, a “monarquia” em estado de pobreza: “e foi um sonho o passado para os trabalhos que ora padecem toda a gente desta nobre geração”, segundo afirmava Jerónimo Dias Leite em finais do mesmo século (LEITE, 1947, 56). Estas desventuras não chegaram, no entanto, para impedir Gaspar Frutuoso de considerar Machico como “primeiro tronco e princípio” da capitania, havendo “nela muitos fidalgos de geração e muita gente nobre, e ainda eles tem entre si que Machico é a gema da fidalguia de toda a ilha” (FRUTUOSO, 2008, 77). Esta era, portanto, a forma como a gente de Machico era vista no dealbar do séc. XVI. Já o caso do Porto Santo se apresenta dotado de alguma singularidade. Com efeito, a ilha fora povoada por “gente fidalga e nobre, cujos apelidos são Perestrelos […], Calaças, Pinas, Rabaçais, [Vas]Concellos, Mendes, Vieiras, Castros, Nunes, Pestanas, e de muitas outras nobres gerações” (Id., Ibid., 50), e de tal modo ali se fazia sentir a presença de famílias tão importantes que Cabral do Nascimento chegou a afirmar que no Porto Santo “nunca existiu plebe. Os povoadores daquela ilha consideravam-se pertencentes a famílias fidalgas e os seus descendentes mantiveram-se sempre no conhecimento desse facto e das respetivas responsabilidades”, o que serve para explicar porque nunca se concretizou a existência de um traje popular naquele território: pura e simplesmente, não haveria quem o usasse (NASCIMENTO, 1937, 156). Os “fumos de fidalguia” que pairavam sobre a ilha levaram a uma quase total recusa do trabalho manual, o que, por sua vez, determinou que D. José I afirmasse que os “moradores cuidam em alegar genealogias para fugirem ao trabalho” (CARITA, 1996, 177). Esta situação acabou por gerar uma condição de pobreza a tal ponto catastrófica que se chegou a pôr a hipótese de se transferir parte da população para a ilha vizinha, chegando o governador António Sá Pereira a escolher, nos finais de 1777, uns quantos rapazes “pobres e miseráveis” para trazer para o Funchal, a fim de serem instruídos em alguns ofícios que se já não praticavam no Porto Santo – sapateiro, oleiro, alfaiate, carpinteiro, ferreiro, cirurgião e sangrador (Id., Ibid., 178). O governador seguinte, D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, foi ainda mais longe ao proibir o uso de “Dom” nos registos eclesiásticos. Segundo ele, a baixíssima produtividade da Ilha ficava a dever-se “à vaidosa imaginação de fidalguia de que é preocupada a maior parte dos moradores”, o que levava a que mulheres de pescadores se intitulassem “Donas”, o mesmo se passando com os homens que se julgavam livres de trabalho a coberto do “Dom” (Id., Ibid., 178). A tal ponto se encontrava interiorizado o habitus de nobreza por parte dos porto-santenses que, em 1828, a aclamação de D. Miguel como rei absoluto apenas no Porto Santo registou adesão, o que é, com certeza, indicação segura da identificação daquele povo com os ideais da supremacia aristocrática postulados pelo absolutismo. Alcançada, de um modo geral, por parte das elites madeirenses a situação social pretendida, havia que continuar a fazer esforços para manter o estatuto, o que se obtinha por recurso a diversas estratégias de ostentação e de reprodução desse mesmo estatuto. Considerando, com Bourdieu, que as sociedades tendem a “perseverar no ser”, para o que dispõem de dois mecanismos, um dos quais relativo às estruturas objetivas, sobretudo à que diz respeito à distribuição do capital, e o outro que assenta nos próprios modos de reprodução (BOURDIEU, 1994, 3), importa verificar de que modo essa tendência para replicar o estatuto se verificava no seio das elites madeirenses. Em primeiro lugar, surge o casamento como grande meio de assegurar a perpetuação do nome e da propriedade. As estratégias matrimoniais, entendendo-se aqui o termo estratégia como um conjunto de ações, coletivamente empreendidas, que têm em vista objetivos a longo prazo, são, de facto, um recurso permanentemente utilizado pela elite madeirense, tendo como primeira consequência a prática de uma endogamia apertada. Uma análise, mesmo que superficial, a qualquer nobiliário insular permite, de imediato, concluir que grande número dos casamentos dos membros dos estratos superiores se dava entre primos coirmãos, tios e sobrinhas, ou parentes um pouco mais afastados, mas relacionados entre si. Este relacionamento era ainda favorecido pelo sistema de parentesco então em vigor, que considerava, para além da consanguinidade, as vias da afinidade e da espiritualidade (padrinhos e madrinhas) como válidas para o estabelecimento de relações familiares. Fora deste universo de “recrutamento” dos pares possíveis, havia ainda outro que era consubstanciado pelas pessoas que, não pertencendo à família, integravam, contudo, o grupo dos “iguais” através da condição social, o que acabou por dar origem a um grupo de “principais” intrincadamente unidos entre si, que dividia os lugares de prestígio na Câmara, na Misericórdia e nas ordenanças. Vejam-se alguns exemplos dos resultados práticos destes mecanismos: em 1599 os cargos da vereação do Funchal recaíram em Álvaro Vaz Corte e Henrique Bettencourt Vasconcelos, ligados pelo quarto grau de parentesco, enquanto os juízes Manuel de Vasconcelos e Martim Gonçalves de Andrade eram “parentes muito chegados”. Como, por determinação régia, se devesse evitar a ocupação de lugares na edilidade por pessoas muito aparentadas, o desembargador André Lobo viu-se na obrigação de informar o monarca da impossibilidade de respeitar o preceituado, uma vez que, na terra, e no tocante à gente da governança, “eram todos parentes” (SILVA, 1995, 688). Um outro caso, desfasado no tempo, que agora passa a ser o da primeira metade do séc. XVIII comprova que a tendência permanecia inalterada. Na vereação que governava o município funchalense entre 1725 e 1730 pontificavam três membros da família Correia, Jorge Correia de Vasconcelos, morgado da Qt. dos Reis, Jorge Correia Bettencourt, com terras na ribeira de João Gomes, e António Correia Bettencourt, morgado em S. Brás, no Arco da Calheta. Cunhado deste último era Jacinto de Freitas da Silva, por sua vez primo de João de Freitas da Silva, outro elemento do Senado camarário. Da linha dos Carvalhais, figuravam ainda António de Carvalhal Esmeraldo, vereador e tio de António Lomelino, procurador do concelho e morgado da Qt. de S. João. A endogamia que era a regra no seio dos principais madeirenses podia, porém, em casos excecionais, deixar de ser cumprida. Assim aconteceu com João Gonçalves Zarco, que optou por fazer vir do reino cavaleiros para consorciar as suas filhas, uma vez que considerava não haver na Ilha pretendentes ao seu nível. Outra situação de excecionalidade ocorria quando alguns descendentes de famílias poderosas, por não abdicarem de afectos normalmente não convocados para os processos matrimoniais, casavam fora da norma. Estes casos estão representados em Noronha, que no seu Nobiliário assinala, de quando em vez, que fulano “casou à sua vontade”, o que é, de per si, ilustrativo da raridade da ocorrência, a qual justificava registo. Um outo caso ilustrativo de um amor que pretendia ultrapassar as regras é o do fidalgo Manuel de Meneses Telo, de Machico, que, em 1740, requer ao vigário-geral que impeça o matrimónio da sua filha, D. Francisca Isabel, com Pedro Mendes, “oleiro, carreteiro de barro e descendente de preto mariola” (SARMENTO, 1950, 7). Segundo o pai, tal consórcio constituiria “uma afronta, enorme traição e aleivosia a toda a nobreza”, pois era ele suplicante descendente de “6 ou mais avós aforados nos livros d’El Rei, de foros antigos e não comprados” (Id., Ibid.). Para legitimar a sua posição, passava depois a enumerar a lista dos ascendentes, nos quais figuravam Vasco Martim Moniz e Lançarote Teixeira, e.g.. Esta preocupação com a genealogia percorria toda a principalidade madeirense que, ciosa dos seus pergaminhos, tinha de garantir a qualidade dos pretendentes, assim se explicando a existência do famoso Rol dos Judeus, onde se compendiavam as ascendências dos principais, que tinha como principal objetivo evitar que a linha se maculasse com sangues impuros, como era o caso do dos cristãos-novos. Acresce, ainda, que este Rol procurava, igualmente, branquear a efetiva ligação a “gente de nação” que agora, solidamente implantada no melhor tecido social da Ilha, pretendia conservar esse estatuto e se esforçava por disfarçar a proveniência. Esta abordagem de cariz genealógico da história da Madeira está, de resto, bastante bem representada nas obras de Jerónimo Dias leite e de Gaspar Frutuoso, onde surgem capítulos com as designações “Do Princípio e Fundamento, Genealogia e Fidalguia do Primeiro Capitão do Funchal” (FRUTUOSO, 2008, 21) ou “Dos Capitães, Seus Filhos e Netos e Mais Possuidores e Governadores da Jurisdição de Machico […]” (Id., Ibid., 113). De entre as “estratégias sucessorais que visavam assegurar a transmissão do património entre gerações com o mínimo de perdas possível” (BOURDIEU, 1994, 5), destaca-se o estabelecimento de vínculos que, associados ao direito de primogenitura, contribuíam para evitar a dispersão da propriedade, e que foram instituídos desde os primórdios do povoamento. O muito inicial recurso à vinculação está patente, e.g., nas situações dos filhos de Tristão Teixeira, com o morgadio da Penha d’Águia, ou entre os descendentes de Zarco que vincularam terras na Ponta de Sol, como aconteceu com Rui Gonçalves da Câmara, que antes de se tornar capitão da ilha Terceira, nos Açores, vendeu aquela parte dos bens a João Esmeraldo. Um caso que ilustra esta intenção de proteger a indivisibilidade da propriedade está claramente vertido no testamento de Misser João Baptista, provável membro dos Spínolas, que, sendo dono de terras que lhe dera Lançarote Teixeira, vinculou a sua terça, encarregando do cumprimento dos encargos o seu filho João Baptista, o qual, por sua vez, deveria zelar para que, após a sua morte, fosse nomeado outro responsável “contanto que não saia de sua geração por linha direita, e assim irá por linha direita de herdeiro em herdeiro até ao fim do mundo” (NASCIMENTO, 1932, 23). Consequência lógica desta política de proteção dos direitos de primogenitura era a situação delicada em que ficavam os filhos segundos e até as filhas para cujo casamento não era possível arranjar dote adequado. Para resolver o problema dos secundogénitos, apresentavam-se, normalmente, duas soluções: ou o ingresso na carreira eclesiástica, suscetível de granjear bons rendimentos e igualmente destacada a nível social, já que o clero era a primeira das três ordens, ou o envio para combater em partes distantes do Império, em África, na Índia ou no Brasil. Às filhas que não conseguiam casar dentro dos parâmetros pretendidos estava reservado o convento, saída também nobilitante, uma vez que a entrada na instituição estava, muitas vezes, ela própria, condicionada a um prévio estatuto de nobreza. Quando João Gonçalves da Câmara, 2.º capitão do Funchal, funda o convento de S.ta Clara, fá-lo com o propósito de a ele se acolherem freiras “não estrangeiras, mas filhas e parentes dos principais da terra”, conforme se pode ler em carta de D. Manuel dirigida aos fidalgos da Madeira, datada de junho de 1488 (Arquivo Histórico da Madeira, 1973, XVI, 212-213). A testemunhar a importância da fundação está o facto de os Câmaras conservarem o padroado do convento, transmissível por direito de primogenitura, e de, apesar de o padroado não lhes dar direito à indicação da abadessa, as primeiras cinco titulares do cargo pertencerem todas à descendência do capitão. Estabelecidos os mecanismos que promoviam a perpetuação do capital económico e social detido pelos mais elevados representantes da população insular, importa igualmente salientar os meios utilizados por esses sectores privilegiados para exibirem o seu estatuto, lembrando, assim, permanentemente, o lugar que ocupavam. Na área do capital simbólico, as formas de exibir marcas de posição percorrem situações tão variadas quanto a forma de vestir, os arrolamentos de bens, as moradias, a ausência de ocupações mecânicas ou as determinações para as cerimónias mortuárias. Segundo o testemunho de Antoine Biet, a meados do séc. XVII a nobreza madeirense trajava com longos mantos, uma espada e uma adaga, enquanto para períodos mais recentes os testemunhos de visitantes estrangeiros de passagem pela Ilha indicam que as senhoras se vestiam mais “com brilho e riqueza que com bom gosto” (SILVA, 2008, 93). Sendo este último comentário produzido por um inglês, pode questionar-se a apreciação do “gosto”, mas continua a existir a nota da exibição de riqueza como apanágio das classes possidentes. Dentro do mesmo grupo social podem, ainda, localizar-se outros adereços que cumpriam o mesmo fim de ostentação através de uma pesquisa nas listas de bens elencados em testamentos e inventários. Nestas fontes é, pois, possível localizar um conjunto de objetos cuja posse indiciava riqueza e aparato, entre os quais se contam, no caso da fidalga D. Inácia da Câmara Vasconcelos, falecida em 1720, várias peças em ouro, nomeadamente dois cordões no valor de 80.000 réis e um anel com uma esmeralda, para além de pérolas em joias diversas. As casas de habitação dos senhores fundiários, que haviam trocado as residências rurais por moradias na cidade, constituíam outro sinal exterior de nobreza/riqueza, dado que, pela sua imponência em relação às dos restantes moradores, facilmente se destacavam. Encontram-se neste grupo o palacete dos Ornelas, na R. do Bispo, a Qt. das Cruzes ou o palácio do conde de Carvalhal, na R. da Mouraria, para citar apenas alguns exemplares. Já em meados do séc. XVIII, em 1768, o capitão Cook observava que “as casas dos principais habitantes são grandes, as do povo pequenas”, e, com o correr do tempo, em 1819, um outro britânico constatava que “a maioria das casas das pessoas nobres são estucadas no interior e muitas são elegantes” (SILVA, 1994, 68). Ser nobre, ou, no mínimo, “viver à moda da nobreza”, era um desígnio perseguido por todos os que tinham alcançado alto estatuto social, e uma das fontes onde isto melhor se demonstra encontra-se nos processos de habilitação a familiar do Santo Ofício, categoria que, por passar nos apertados crivos da Inquisição, mais garantias dava de posição social. A dificuldade em se obter este título obrigava a uma cuidadosa prospeção dos ancestrais, bem como à declaração das posses de cada candidato, o que torna estes registos excelentes repositórios de informação. Assim, no tocante a Nuno de Freitas da Silva, as testemunhas afirmam que os pais “pertenciam à principal nobreza da terra”, “à governança dela” e “viviam nobremente de seus morgados”, enquanto uma outra acrescenta que os antepassados eram todos nobres “e como tais se tratavam”. Um caseiro da propriedade afirma mesmo que quer o habilitante quer os seus ascendentes eram “como trigo escolhido enquanto à nobreza e limpeza de sangue”. Quando se procede à descrição do património do candidato, mencionam-se “criados, mochilas, carruagens e bestas”, sendo de relevar, neste caso, que o uso de carruagem no Funchal era muito mais afirmação de riqueza do que verdadeira comodidade, dado que, sendo as ruas da cidade, em geral, demasiado íngremes e mal calcetadas, poucos seriam os troços onde poderia circular semelhante tipo de veículo (ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Nuno, mç. 1, proc. 25). No caso de Jorge Correia Bettencourt, o habilitante era solteiro, vivia “limpa e abastadamente” e tinha como única ocupação “passear e assistir em casa de seu pai”. Quando questionada sobre as competências literárias do pretendente, uma testemunha declarava ignorar se Jorge Bettencourt saberia ler, mas opinava que “pela criação que seu pai lhe deu não lhe haveria de faltar com este ensino”. O facto de se querer casar obrigava a idênticas averiguações relativas à família da mulher, D. Antónia Josefa Berenguer e Castelo Branco, descendente de Gaspar Berenguer, fundador do convento de N.ª Sr.ª das Mercês. A respeito da senhora se afirmava, igualmente, que os pais habitavam no Funchal, embora tivessem terras na Calheta, e que na cidade “viviam à lei da nobreza e se sustentavam de suas fazendas” (Ibid., Jorge, mç. 3, proc. 60). Este último processo permite evidenciar duas circunstâncias que concorriam para a definição do estatuto de principalidade: não ter nenhuma ocupação “mecânica” e possuir alguma educação formal, que, ainda que nesta época histórica pudesse não ir além da escolaridade básica, constituía, assim mesmo, fator de diferenciação, na medida em que procurava produzir indivíduos capazes de receber a herança do grupo, transmitindo-a, por sua vez, e de novo, ao grupo. Esta circunstância está, de resto, também patente no processo de habilitação de Jorge Bettencourt, e demonstra-se quando o Cón. Manuel Ferreira Teixeira afirmava ter sido mestre do pai do habilitando, quando aquele andava na “escola, sendo menino”. Assim se explica que a testemunha que anteriormente depusera opinasse não poder Jorge Bettencourt ser analfabeto, tendo em vista a qualidade do progenitor. Ainda dentro da exibição do capital simbólico que oferecia à nobreza mais uma ocasião de evidenciar a sua elevação estatutária, encontram-se as diferentes ocasiões em que se podia mostrar a heráldica da família, que podia ser vislumbrada quer em capelas instituídas, onde figuravam os brasões dos instituidores, quer em tetos armoriados, quer, ainda, em louça e mobiliário timbrados e personalizados. A ilustrar o primeiro caso, pode, e.g., falar-se da capela de S. João Batista na matriz de Machico, onde Tristão Teixeira, filho do primeiro donatário, fizera esculpir “no arco” da capela as suas armas, onde se juntavam atributos do pai e da mãe. O mesmo acontecia na Sé e no convento de S. Francisco, onde variadas capelas instituídas por outras tantas famílias importantes utilizavam as sepulturas dos fundadores e parentes para confirmar a categoria dos defuntos. A heráldica surge, de resto, em outros contextos igualmente propiciadores de visibilidade, como sejam frontarias de palácios (conde de Carvalhal, Ornelas e Vasconcelos, Torre Bela, e.g.), tetos e baixelas, como acontecia com D. Maria Brandão, viúva de António Carvalhal Esmeraldo que em testamento legou louça com as armas dos Câmaras, que figuravam igualmente no faustuosíssimo túmulo mandado construir na igreja do Carmo, e às quais não se percebe, sequer, como poderia aquela família aspirar. As cerimónias fúnebres, com os rituais que se lhes associavam, eram outro dos modos de claramente distinguir a gente do povo da dos estratos superiores da sociedade. Se o povo, com efeito, lutava até com dificuldades em fazer acompanhar os seus funerais, a ponto de os bispos disporem em provimentos a obrigatoriedade de a gente da freguesia acompanhar o corpo do falecido até à sepultura, no caso da morte dos membros das elites esta situação estava longe de verificar-se. Preocupados com o seu destino no outro mundo, a grande maioria dos nobres fazia atempadamente testamento, onde deixava exaradas as disposições a haver após o falecimento. Veja-se, como testemunho, o que estipulava Jorge Correia Bettencourt, já referido a propósito da habilitação a familiar do Santo Ofício. Determinava ele, então, que queria ser sepultado na capela-mor do convento de S. Francisco, vestido com o hábito da Ordem de Cristo, de que era cavaleiro, sobre o qual deveria, ainda, pôr-se o hábito de S. Francisco. A acompanhar o féretro compareceriam os religiosos da cidade e das colegiadas, bem como os clérigos extravagantes da cidade, além de todos os pobres mendicantes “que costumam acompanhar os enterros, a quem se dará de esmola um vintém” (ARM, Juízo dos Resíduos e Capelas, mç. D, proc. 3580). No cortejo funerário deviam também incluir-se o provedor da Misericórdia, e os mais irmãos, a que se juntariam os irmãos das confrarias a que pertencera o defunto. Por esta descrição se pode ver que até a morte se usava para afirmação de estatuto, reservando ao cadáver pompas semelhantes às que desfrutara em vida. A generosidade constituía, também, uma forma de pública demonstração de superioridade, pelo que não espanta que as elites insulares a praticassem com frequência. Mesmo tendo em conta que a intenção final de D. Constança Rodrigues quando instituiu a mercearia (aqui entendida como instituição que recolhia desprotegidos) de Santa Catarina (Mercearia de Santa Catarina) para cinco mulheres pobres era a de que elas rezassem pela salvação da sua alma, a verdade é que a viúva de Zarco doou parte dos seus bens para sustentação das recolhidas. António Carvalhal, fidalgo residente em Ponta Delgada, onde era senhor de vastas propriedades, fazia de sua casa “hospital e acolheita de todo o pobre, hospedagem dos caminhantes e refúgio finalmente de necessitados” (FRUTUOSO, 2008, 101). A prática de distribuição de esmolas aos pobres que acompanhassem os funerais era comum, e, num peditório levado a cabo pela Câmara do Funchal para a construção de uma gafaria, em 1738, o estatuto social dos que contribuíam é facilmente indexável ao quantitativo entregue. Os séculos XIX e XX O advento do séc. XIX produzirá grandes transformações a nível europeu, como consequência das guerras napoleónicas e do cortejo de alterações ideológicas, e depois políticas, que as tropas franceses disseminaram um pouco por todo o continente. Essas consequências começaram a fazer-se sentir na Madeira logo a partir de 1801, ano em que, pela primeira vez, a Ilha será ocupada por tropas inglesas, que nela se instalaram com o propósito de garantir a liberdade de circulação atlântica, decisiva para a sua economia. A presença do contingente britânico, cuja primeira estadia se verificou em 1801-1802 e a segunda entre 1807 e 1814, veio alterar substantivamente alguns aspetos da vivência insular, nomeadamente no que toca a atividades comerciais e a enquadramento social. Se não deixa de ser um facto que os mercadores ingleses já antes do séc. XIX haviam demandado a Ilha para fazer negócios, a verdade é que essas estadias eram normalmente breves, pois a norma para os britânicos era a de regressarem a casa depois de concluídas a diligências que os moviam. Para este comportamento contribuía, certamente, a circunstância de, até aos fins do séc. XVIII, não haver cemitério onde pudessem ser sepultados, uma vez que o facto de serem protestantes inviabilizava o enterro em cemitério católico. A presença dos contingentes militares, no início do séc. XIX, e as próprias transformações políticas operadas em Portugal a partir da revolução liberal acabaram por transformar a perspetiva de residência dos ingleses, que se instalaram na terra e nela rapidamente se transformaram em comerciantes prósperos, sobretudo de vinho, ainda que normalmente declinassem a propriedade das terras produtoras. A comunidade britânica viveu, de certo modo, alheada da sociedade madeirense, conservando a sua língua e as suas tradições e refugiando-se em quintas que entretanto fora adquirindo na periferia do Funchal, o que não impediu, contudo, que em breve se transformasse numa poderosa força económica. Do seu seio emergem os Blandy, cujo interesse se vai centrar no vinho e até na imprensa local, como se comprova pela compra do Diário de Notícias, e os Hinton, responsáveis pela implantação de um moderno engenho para a moagem da cana-de-açúcar. Aos olhos destes estrangeiros, oriundos de um país onde a nobreza desempenhava um papel essencial na governação e era senhora de propriedades de grandeza inconcebível à escala regional, a Madeira e as suas elites apareciam como uma “espécie de petite noblesse, a que chamaríamos ‘aristocracia rural’, cujo orgulho genealógico as torna insociáveis e ignorantes, determinando arrogarem-se uma importância ridícula” (SILVA, 2008, 62). Ricos, poderosos e bem instalados, os ingleses observavam a sociedade local, registando com agrado que “Embora lentamente, os naturais têm adquirido, de certo modo, não apenas o vestuário, mas também o modo de ser dos ingleses”, ao que ainda acrescia o facto de as classes mais elevadas falarem frequentemente a língua inglesa (SILVA, 2008, 71-72). Esta apreciação foi, de resto, subscrita por Álvaro Rodrigues de Azevedo, que, em 1873, afirmava estar a Madeira “em grande parte anglicizada, na raça, nos costumes, na propriedade, no comércio, na moeda; e a língua inglesa é aqui a mais falada depois da nacional. Só o brio português nos mantém portugueses” (CARITA, 2008, 533). Que um português tenha produzido uma tal análise, contemporânea, dos efeitos da presença inglesa na Madeira, é o bastante para atestar a proeminência daquela comunidade, pois só consegue exercer aquele impacto sobre os locais quem se lhes impôs de maneira inequívoca. Em termos nacionais, a revolução de 1820, rapidamente sancionada pelos madeirenses, vai começar a permitir uma alteração com algum significado nos quadros das elites regionais. De acordo com a constituição de 1822, os portugueses eram todos iguais perante a lei, devendo, pois, o sistema pugnar pela eleição dos mais aptos dos cidadãos. A Carta Constitucional de 1826, contudo, engendrará nova alteração nos critérios para a elegibilidade dos novos quadros dirigentes, que de ora em diante privilegiará uma base censitária para recrutamento designadamente dos autarcas, processo que mudou a representatividade dos diversos grupos sociais, passando a facilitar o acesso das franjas mais ricas da burguesia a cargos municipais, e não só. O regresso ao absolutismo, ocorrido entre 1828 e 1834, que determinou o exílio de grande parte das famílias possidentes do Antigo Regime, inequivocamente posicionadas do lado liberal, veio, paradoxalmente, a agravar a tendência para a mudança social, pois as elites madeirenses, muito influenciadas pela comunidade britânica e comprometidas com a recém-chegada maçonaria, dificilmente poderiam continuar a residir em solo insular. Das famílias tradicionais na Madeira, só os Torre Bela se mantiveram fiéis a D. Miguel, pelo que o grosso dos morgados, ao retirar-se, criou espaço para a ascensão de uma nova classe social que passará a ocupar os lugares determinantes na governança local. Os critérios censitários, a que se vieram juntar exigências de literacia para o exercício de funções governativas, contrariando aquilo que eram os princípios revolucionários da igualdade, liberdade e fraternidade, acabaram, pois, por determinar a constituição de uma nova elite, que continuava, no entanto, a ser bastante restritiva, ainda que agora regida por pressupostos de idoneidade radicados na detenção de riqueza, formação escolar e redes familiares e políticas (SOUSA, 2009, 530). Ou seja, os factores definidos por Bourdieu como essenciais à caracterização dos grupos sociais de topo mantêm-se, pois que a posse de capitais económicos – traduzidos em propriedade fundiária, ou outra; sociais – resultantes da pertença a famílias de renome; culturais - patenteada pelas qualificações académicas; e simbólicos – outorgados pelo respeito inspirado pelos detentores, continuava a fazer-se sentir. Assim, nos quadros que integrarão o Senado do Funchal durante o século XIX, podem encontrar-se membros oriundos da antiga nobreza insular, parte da qual regressada, a que se acrescem indivíduos de profissões liberais – médicos, farmacêuticos, advogados e professores, e.g., e ainda grandes negociantes, para além de alguns elementos atípicos. A ilustrar o primeiro grupo, pode falar-se de Aires de Ornelas Vasconcelos, 13.º morgado do Caniço, António Bettencourt da Silva Favila, ligado ao morgadio dos Piornais, ou António de Carvalhal Esmeraldo, detentor de um título nobiliárquico. No sector das profissões liberais, contam-se Domingos Olavo Correia de Azevedo, advogado, ou Sérvulo Drumond de Meneses, que, além de causídico, foi ainda autor de uma obra importante, relativa à administração do governador José Silvestre Ribeiro – Uma Época Administrativa na Madeira e no Porto Santo. António Machado Costa e Ricardo Augusto Figueira, ambos farmacêuticos, ocuparam lugares na vereação e fundaram a farmácia Dois Amigos. No grupo dos professores pontificam Júlio da Silva Carvalho e Marceliano de Mendonça, este último também reitor do então recente liceu do Funchal. A ilustrar o elenco dos grandes negociantes, encontra-se Joaquim Monteiro da Fonseca, membro daquela que João Cabral do Nascimento considerou “Uma família de grande relevo social” (NASCIMENTO, 1950, 212-219). Com menor peso constata-se ainda a presença de elementos um pouco discrepantes, como são os casos de um alfaiate, três lojistas e outros tantos caixeiros, indivíduos cujos rendimentos, sujeitos ao censo, se revelaram suficientes para os tornar eleitos e cuja existência é, em si mesma, demonstrativa do quanto se alterara a configuração do elenco municipal. A verdade, porém, é que a integração de indivíduos com aquelas características não é o bastante para invalidar o caráter elitista das municipalidades, que se mantiveram, à semelhança do que acontecia no Antigo Regime, bons instrumentos para aferir a qualificação social dos seus membros. O estudo de Ana Madalena T. Sousa (SOUSA, 2009) que se tem vindo a seguir contempla uma análise comparativa dos municípios do Funchal, Ponta de Sol e Porto Santo, pelo que, continuando na sua senda, se pode afirmar que a situação na Ponta de Sol é distinta da do Funchal, na medida em que, por ser uma vila inscrita num meio rural, a grande maioria dos titulares dos cargos municipais é composta por proprietários, lavradores e comerciantes, censitariamente habilitados. Atendendo a que os grandes terratenentes da vila não são nela residentes, os lugares do Senado são assegurados por gente natural da própria sede do concelho, ou, em alternativa, da Ribeira Brava e Canhas, sobretudo. A introdução do modelo censitário não trouxe, contudo, grandes alterações às famílias importantes do concelho, uma vez que os nomes que integram as vereações se mantêm os mesmos durante gerações. Um quadro semelhante se desenha no Porto Santo, ilha com uma única câmara municipal, cujos cargos são maioritariamente ocupados por proprietários, uma vez que a posse das terras era a grande fonte de poder, neste caso traduzido no pagamento de impostos. Em segundo lugar surgem os lavradores, o que corresponde, de resto, à estrutura social da Ilha que os estudos de Sérvulo Drumond mostram dominada por um pequeno grupo de donos de terras, seguido de uma maior quantidade de lavradores e uma ainda maior fatia de jornaleiros. O comércio é quase inexistente. Está-se aqui, portanto, em presença de uma estrutura social que em pouco se distingue da do Antigo Regime. Em conclusão: as elites sociopolítico-económicas da Madeira começaram a construir-se desde a época do povoamento do Arquipélago, tendo vindo a ser dominadas por uma oligarquia de proprietários fundiários, com raízes mergulhadas numa nobreza secundária em relação à do reino, mas de grande preponderância à escala regional. A pertença a este grupo de topo foi prosseguida e alcançada quer por alguns negociantes de grosso trato, ligados ao açúcar e ao vinho, quer por estrangeiros que demandaram a Ilha para comerciar, que nela se radicaram e fizeram casar os elementos das suas famílias com membros da principalidade regional. Como apanágio do seu estatuto social, esta gente exibia o desempenho de cargos nas câmaras, nas ordenanças e nas Misericórdias, transformava-se em familiar do Santo Ofício e não desdenhava vários palcos para exibição da sua heráldica e pergaminhos. Com a mudança de regime político ocorrida com o liberalismo, a transformação foi mais aparente que real, pois os recém-chegados ao topo da sociedade, oriundos como eram do seio da burguesia, rapidamente adotaram uma postura nobilizada. Veja-se, e.g., o que aconteceu com a proliferação de títulos de nobreza (nunca a Madeira teve tantos condes, viscondes e barões como durante o séc. XIX), assumidos numa altura em que, precisamente, o seu significado se resumia ao simbólico. Com a chegada do séc. XX, três novos momentos de viragem política se verificam. O primeiro dá-se com a República, o segundo com o Estado Novo e o terceiro com a revolução do 25 de Abril. No entanto, e apesar das profundas transformações políticas que todos engendram, as alterações sociais não são tão marcantes quanto se poderia crer. Com efeito, de acordo com o que foi possível constatar, as elites madeirenses manter-se-ão relativamente inalteradas, assentes sobretudo nas famílias ligadas ao empreendedorismo económico, cada vez mais sustentado, porém, num valor que o séc. XIX promoveu – a educação. Com efeito, a partir da implementação de políticas públicas tendentes a uma escolarização cada vez mais universal, o valor da formação académica veio a impor-se cada vez mais como fator distintivo, e pode dizer-se que se tornou praticamente indissociável da obtenção de lugares cimeiros na administração, quer dos negócios, quer da vida pública. Assente nos pressupostos de que a obtenção de um grau académico implica um tempo necessário à sua aquisição e de que esse tempo investido pelas famílias resulta da sua capacidade económica, está-se, portanto, perante um quadro de progressiva qualificação das elites, suportada, porém, por mais ou menos sempre os mesmos agregados familiares. Um indicador alternativo para deteção de grupos privilegiados pode, e.g., ser o dos nomes de casas bancárias e bancos que se encontram abertos nestes alvores do séc. XX – Rocha Machado & C.ª, Sardinha & C.ª e Henrique Figueira da Silva. Os descendentes destes proprietários continuarão a pontificar mesmo no Estado Novo, onde assumem funções de destaque como acontece, e.g., com a família Rocha Machado, proprietária da quinta que acolheu o exilado imperador da Áustria e que terá elementos seus a presidir à Câmara do Funchal. A par destas elites emergentes, mantêm-se, contudo, as famílias tituladas, que continuam a habitar os seus palacetes citadinos e a pontificar na vida da Ilha. Estão entre elas a do Barão da Nora, dos Teles de Meneses, a dos condes da Calçada, dos Ornelas de França Carvalhal Frazão Figueiroa, com moradia na calçada de Santa Clara, do conde de Canavial e dos Câmara Leme, que possuiu uma fábrica de aguardente e um teatro, para dar apenas alguns apontamentos de agregados familiares que mergulham as suas raízes na antiga nobreza insular e que atravessam os tempos mantendo um inviolado estatuto de superioridade social, ainda identificável nas personalidades que continuam a ostentar aqueles nomes de família. Com o derrube da Primeira República e a paulatina implantação do Estado Novo, o protagonismo passa agora para os próximos do regime, representados por algumas figuras do integralismo lusitano, como Ernesto Gonçalves ou o visconde do Porto da Cruz, ou por famílias já conhecidas, mas que não se costumam afastar dos centros de decisão política que a cada momento se vão criando. É o caso dos Favilas, que foram senhores do grande morgado dos Piornais e que, no contexto do Estado Novo, têm em Fernão Favila Vieira um representante madeirense na União Nacional. Foi este político filho de Manuel José Perestrelo Favila Vieira e de Maria Gomes Henriques, representados nas genealogias pelos títulos de Perestrelos, Favilas e Bianchis. Esta família desde sempre foi alfobre de indivíduos com cargos importantes, tendo produzido, em tempo de Salazar, figuras de relevo no desempenho de diversos cargos da administração pública, designadamente na diplomacia, pertencendo ainda, no séc. XXI, aos círculos mais seletos da sociedade madeirense. Outra personalidade que deve destacar-se no contexto do Estado Novo é a de Agostinho Cardoso, representante regional da União Nacional e médico distinto. Quando se procuram os seus antecedentes, fica a saber-se que era filho de Domingos Cardoso, em título dos Cardosos dos Açores, tendo contraído matrimónio com D. Maria Almada, cuja família provém dos títulos de Cardosos de Gaula e Gonçalves do Campanário, estando assim, tanto num caso como noutro, claramente representado um fio condutor que guia as sucessivas gerações de famílias de destaque ao longo dos tempos, sem que se percam os atributos essenciais à conservação do estatuto social elevado e a pertença inequívoca às elites regionais. A revolução do 25 de Abril, com a profunda subversão da ordem política até então vigente, não afetou, no entanto, profundamente a existência das antigas famílias possidentes. A emersão de um novo regime, agora dominado pelos partidos, possibilitou, contudo, o levantamento de uma nova geração que, cada vez mais qualificada, se encarregará da gestão da coisa pública, entregue sobretudo a um partido político – o PPD-PSD –, cuja ação se notabilizou pelo facto de nunca ter perdido umas eleições nos 40 anos de autonomia da Madeira. A fim de melhor se marcarem as diferenças entre o “antes” e o “depois”, entraram no discurso político as expressões “Madeira Nova” e “Madeira Velha”, sem que a primeira implique o desaparecimento da segunda, pois que ela, embora em plano menos óbvio, permanece radicada e atuante na Ilha. Efetivamente, na Madeira do início do séc. XXI coexistem os Meneses, os Cardosos, os Favilas, os Blandys, os Welshs e os Monteiros, os quais, ainda que mais ou menos perto dos centros de decisão política, não deixaram, por isso, de conservar lugares de supremacia no tecido social insular. Elites eclesiásticas O simples facto de pertencer ao clero significava, de per si, a integração numa elite, pois que o eclesiástico foi, durante a Idade Média e a Moderna, o mais proeminente dos três estados. Os clérigos, graças ao desempenho de uma função central na vida das populações, designadamente a de promover a ligação entre este mundo e o além, tornavam-se elementos respeitáveis e respeitados no seio das comunidades que integravam, e esse respeito era, em si mesmo, fator de diferenciação. Este grupo social estava, porém, longe de ser homogéneo, registando-se no seu interior fronteiras significativas que distinguiam o que alguns apelidam de “proletariado clerical” (TERRICABRAS, 2005, 24) de um outro grupo, de topo, onde pontificam filhos de famílias importantes, ao lado de outros cuja ascensão se fazia, sobretudo, graças à formação académica. O ingresso no estado eclesiástico representava, para a nobreza, uma forma de preservar a sua capacidade económica, pois, ao impedir que um ou mais filhos se reproduzissem legitimamente, salvaguardava-se o património, cumprindo-se assim um dos mais importantes desígnios das famílias dos principais. Para além de se alcançar este objetivo, a existência de clérigos em agregados familiares importantes permitia-lhes administrar as capelas instituídas em vínculo, retirando daí os rendimentos necessários à sua subsistência e conservando no seio da família um recurso que poderia, posteriormente, ser passado a um outro membro. Por outras palavras, a vinculação de capelas e a sua entrega a um eclesiástico membro da família configurava uma estratégia de reprodução familiar, que foi, de resto, abundantemente utilizada. Veja-se, a ilustrar, um exemplo retirado do testamento de Misser João Baptista que, em 1512, deixava expressa a vontade de que as missas a rezar na sua capela fossem da responsabilidade de seu neto, Francisco, quando se tornasse clérigo de missa, serviço pelo qual devia haver “seu prémio” (NASCIMENTO, 1932, 23). Por outro lado, para o terceiro estado, o ingresso de um dos seus elementos no clero representava um mecanismo não despiciendo de promoção social. Há que registar contudo, que, na maioria dos casos, e qualquer que fosse a origem social do candidato, a entrada para o estado eclesiástico pressupunha a existência de um património cujo rendimento se revelasse suficiente para o pretendente nunca vir a ter que se ocupar com afazeres mecânicos, sendo que esta exigência limitava bastante as possibilidades de acesso ao clero por parte dos escalões mais baixos da sociedade. Formulada por Trento e replicada pelas Constituições Sinodais, em geral, mas também pelas do Funchal, a proibição do trabalho manual destinava-se a impedir a contaminação da figura do clérigo por um tipo de afazeres que não dignificavam o grupo, à semelhança, de resto, do que também acontecia com a nobreza. As Constituições Sinodais do Funchal referem-se àquela obrigação quando determinam que “Ninguém há de ser promovido […] a ordens sacras sem ter ou possuir benefício que baste a sua côngrua sustentação”. Em caso de falta de benefício, exigiam que apresentasse “pensão ou património de que [o candidato] se pudesse comodamente sustentar”, o qual não poderia ser inferior a 10.000 réis de renda anual (BARRETO, 1585, 45), valor que o tempo foi atualizando. Assim, não admira que os processos de habilitação de genere, documentos que acompanhavam o habilitante ao longo do caminho para a obtenção de ordens sacras, contenham evidências da dotação, como acontece, e.g., com Baltasar Fernandes, cujos pais, em 1596, lhe entregam umas casas sobradadas no valor de 100.000 réis, de cujo rendimento se poderia o filho convenientemente sustentar. Quando a capacidade de dotar dos pais do habilitando se revelasse insuficiente, o desejo de a família ver um dos seus membros promovido ao estado eclesiástico podia mobilizar outros parentes a contribuir, como acontece com Filipe de Gouveia a quem uma tia legou uma casa sobradada na vila de Santa Cruz, bem como uma fazenda na mesma localidade, sendo, porém, a doadora devidamente advertida de que “em nenhum tempo tornasse a pedir o património que tinha dotado a seu sobrinho”, garantindo, assim, e para sempre, a subsistência do parente (ACDF, Habilitações de Genere, cx. 2, mç. 3, proc. 32). Os casos que se excetuavam desta obrigação, já acima identificados, como os de posse de benefício ou pensão, aplicam-se àqueles clérigos que à partida podiam contar com um lugar colado, e portanto remunerado, numa igreja, ou com pensões afetas ao rendimento das capelas, conforme referido. A possibilidade de se alcançar um benefício era, de resto, tão cobiçada que as elites madeirenses envidaram todos os esforços para garantir que o provimento fosse realizado preferencialmente em naturais da Ilha. Esta questão, legislada por alvarás de vários monarcas, era considerada tão importante que esteve na raiz de diversos conflitos registados entre bispos e Senado camarário, pois quando os prelados, por alguma razão, pretendiam colar benefícios e pessoas de fora, logo os camaristas se insurgiam, uma vez que aquela medida lesava os interesses dos seus familiares ou das suas clientelas. A obtenção de um lugar relativamente bem remunerado e estável transformou, portanto, os seus detentores numa outra fração da elite do clero madeirense, que claramente a distinguia da multidão de clérigos extravagantes que ganhavam a vida mais à mercê das circunstâncias. A obtenção de graus académicos era outra das estratégias ao serviço da criação de elites religiosas, a ela recorrendo os mais bem posicionados em termos sociais, quer pelo sangue, quer pela fortuna. A dificuldade e morosidade desse processo fazia dele um bem raro, pelo que muito facilmente se tornava um fator mais a diferenciar as elites. A necessidade de formação era, não obstante, uma qualificação extensível a todo o clero, porque mesmo para receber ordens menores exigia-se o conhecimento de alguns rudimentos de latim. Quando se ultrapassava este patamar e se atingia o das ordens de epístola, os requisitos passavam a ser entender competentemente a língua sacra, que devia ser bem lida, acentuada e pronunciada, saber “bem cantar per arte” e reger bem o breviário (BARRETO, 1585, 47). Para o caso das ordens de evangelho, eram acrescentados o conhecimento dos sacramentos, a sua administração e o domínio do canto. A qualificação necessária para este nível de desempenho podia obter-se na Madeira, no seminário e no colégio da Companhia de Jesus, mas, se a lotação destes estabelecimentos impedisse o acesso de todos os pretendentes, eles poderiam aprender com o pároco da freguesia e sujeitar-se, depois, a exame. Há, contudo, que ter em conta que, na Ilha, havia famílias com posses suficientes para suportar os custos a uma formação universitária dos seus filhos, pelo que, logo desde o séc. XVI, se encontram estudantes madeirenses espalhados por diversos estabelecimentos de ensino superior, em Coimbra, Bolonha, Salamanca e Paris. Dos que frequentaram esta última universidade, deixou notícia Nuno Porto, que elencou 21 madeirenses alunos em Paris no período que decorre entre 1520 e 1540. Ainda que nem todos se dedicassem ao estudo de Teologia ou Direito, pois alguns cursaram medicina, do grupo dos clérigos fazem parte vultos ilustres como Luís Gonçalves da Câmara, confessor e mestre de D. Sebastião, e Leão Henriques, que haveria de ser provincial dos Jesuítas em Portugal, entre outros nomes, que em comum têm o facto de não terem feito reverter as suas habilitações em prol da ilha que os viu nascer, porquanto se comprometeram com o desempenho de funções no reino ou no estrangeiro. Por seu lado, João Cabral do Nascimento fez publicar uma longa lista de estudantes insulares que se deslocaram para Coimbra. Cobrindo o período que vai de 1573 a 1730, identificam-se 274 alunos, muitos dos quais pertencentes às boas famílias madeirenses, como acontece com Pedro Bettencourt Henriques ou Pedro Correia de Albuquerque, filho de Nuno Freitas da Silva de quem já se falou a propósito da vereação do Funchal. A par destes filhos da nobreza madeirense surgem, contudo, outros, cujos nomes não remetem para mais longe que o povo, embora um povo pertencente àquele segmento mais enriquecido que conseguia suportar os custos de uma longa estadia fora da terra. Em Salamanca também há notícia de alunos da ilha da Madeira que, entre 1580 e 1640 – período do domínio filipino –, escolheram Espanha para iniciar ou completar o seu ciclo de estudos. De entre estes podem salientar-se Valentim Fernandes, que depois de se graduar veio para a Madeira paroquiar, e Manuel Veloso de Lira, que também regressou ao arquipélago conseguindo alcançar a posição de cónego magistral. O percurso deste último clérigo serve para documentar uma das principais potencialidades proporcionadas por um diploma de estudos superiores – o fazer-se uma carreira eclesiástica bastante mais preenchida pela ocupação de lugares de topo na hierarquia da Igreja, ou seja, o integrar o escalão superior da elite clerical. Com efeito, quando se atenta nas personalidades que desempenhavam funções no cabido, ou eram visitadores, promotores, vigários gerais e comissários do Santo Ofício, constata-se que uma boa parte delas era portadora de uma habilitação superior, o que vem comprovar que o investimento realizado pela família era compensado pelo posterior percurso profissional do bacharel ou licenciado. Em determinadas circunstâncias podiam, mesmo, protagonizar carreiras meteóricas, como aconteceu com Bartolomeu de Mondragão, filho de António Rodrigues de Mondragão, que estudou em Paris onde foi grande professor de “letras humanas” (NORONHA, 1996, 383). O filho seguiu-lhe as pisadas, e, depois de se graduar em Cânones, em Coimbra, onde esteve entre 1591 e 1594, veio para a Madeira para receber as duas primeiras ordens menores a 19 de janeiro de 1603, a terceira e quarta em 26 do mesmo mês e ano e a ordem de epístola a 28 de março de 1604. Tornou-se cónego da Sé do Funchal, cujo cabido também secretariou em 1613, ano da sua morte. Ao já referido Valentim Fernandes aconteceu o mesmo no que toca à velocidade com que ultrapassou os degraus do processo de ordenação, pois consegue promover-se às três últimas ordens menores a 27 de março de 1613, e a 4 de abril alcançava o diaconato, logo acompanhado da posse de um benefício em Santa Cruz. A consciência de que as habilitações alavancavam carreiras está, de resto, bem expressa por Henrique Henriques de Noronha que, nas suas Memórias Seculares e Eclesiásticas, consagra um capítulo aos “varões ilustres em letras, pelas quais ocuparam lugares eminentes”, onde elenca um conjunto de indivíduos que aos estudos ficaram a dever bons percursos profissionais, entre os quais se contam, e.g., um outro Mondragão, Francisco, irmão de Bartolomeu, que, depois de graduado em cânones por Coimbra, veio a ser cónego magistral da Sé de Leiria, onde “faleceu moço” (Id., Ibid., 385), ou Lucas da Silva, filho de Nuno Freitas da Silva, morgado na Madalena do Mar, que, depois de se doutorar em Cânones, em Coimbra, se tornou “pessoa de grande autoridade” e foi cónego da Sé de Lisboa (Id., Ibid., 389). A meados do séc. XVIII, a legislação pombalina e a influência das Luzes tiveram impacto significativo na diminuição da demanda da vida religiosa por parte dos secundogénitos das classes nobres, dando-se aí o “início da desqualificação das carreiras eclesiásticas no mundo das elites” (OLIVAL e MONTEIRO, 2003, 1236), mas o séc. XIX traria novas possibilidades para os clérigos ascenderem a posições que lhes conferiam notoriedade e importância na vida social. Trata-se do advento da imprensa que, na Madeira, ofereceu a diversos padres palco para afirmação de princípios religiosos e políticos que as instáveis condições da governação iam tornando pertinentes. Com efeito, no diversificado conjunto de órgãos de informação que então proliferaram, é possível descortinar a presença de sacerdotes que se distinguiram ou por serem diretores dos jornais, ou por frequentemente os utilizarem para fazer conhecidas as suas posições. Estão neste caso, e.g., O Pregador Imparcial da Verdade, da Justiça e da Lei, dirigido pelo P.e João Crisóstomo Espínola de Macedo e publicado entre 1823 e 1824, A Verdade, que veio à luz em 1858, ou, ainda, O Popular: Órgão do Partido “Refractario Contra a Fusão”, dirigido pelo P.e Filipe José Nunes, que se publicou em 1869. A capacidade de influenciar a emergente opinião pública pode, pois, e também, considerar-se um modo de afirmação de uma determinada elite religiosa que, pelos meios disponíveis, fazia chegar mais longe a sua voz. A fechar, uma palavra para os bispos que, não sendo, na sua esmagadora maioria, naturais da Ilha, nela desempenharam papel de relevo. Dada a falta de limites temporais para o exercício do seu cargo que lhes permitia a presença na Madeira por um número variável de anos, os prelados, fruto do seu lugar cimeiro na hierarquia regional da Igreja, foram determinantes para ajudar a definir, a cada momento, a constituição da elite eclesiástica local, pois que das escolhas das pessoas que integravam o seu círculo mais próximo resultava, igualmente, a definição do conjunto de clérigos que mais influência tinha na governação da Diocese. Elites culturais Do volumoso conjunto de notas com que Álvaro Rodrigues de Azevedo enriqueceu a obra de Frutuoso, a que tem o número XXXII é dedicada à instrução pública e à literatura e compendia as mais notáveis realizações havidas, naqueles campos, na Madeira, desde o povoamento até finais do séc. XIX. O autor debruça-se, com algum vagar, sobre as figuras mais ilustres do panorama das letras insulares, começando por destacar as dos filhos dos dois primeiros capitães do donatário, do Funchal e de Machico, Tristão Teixeira, o das Damas, e João Gonçalves da Câmara, o Porrinha, assim chamado pelo costume que tinha de trazer um pão na mão. Fala-se, ainda de Pêro Correia e Manuel de Noronha, quarto filho de João Gonçalves da Câmara, lembrando que todos figuram no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Os textos destes autores, de cariz poético, eram inspirados pela poesia aragonesa que abrilhantava os serões na corte do reino, e o seu conhecimento na Ilha só pode ficar a dever-se aos ascendentes que para a Madeira a trouxeram. A filiação estrangeira da corrente em que se integram as suas obras não invalida, porém, que “aquele muito notável grupo deixe de ser título bastante a que a ilha da Madeira tenha quinhão honroso na história anteclássica da literatura nacional”, como bem sublinhou Teófilo de Braga na obra consagrada aos poetas palacianos (AZEVEDO, 2008, 774). Em paralelo a estas incursões na poesia, deve ainda destacar-se a produção de carácter histórico, consubstanciada nas obras de Gonçalo Aires, sobre o descobrimento da Ilha e a Relação de Francisco Alcoforado. Segundo Álvaro R. Azevedo, não é, também, de descartar a possibilidade de logo nestes tempos primitivos do povoamento se terem começado a elaborar nobiliários que vão, mais tarde, permitir aos genealogistas do séc. XVIII, como Henrique Henriques de Noronha ou João Agostinho Pereira de Agrela, produzirem os seus compêndios, que remontam a períodos muito recuados e para os quais seria, naturalmente, preciso o recurso a informação de que os autores não dispunham em primeira mão. Estavam, portanto, lançadas as bases para aquela que viria a ser uma continuada produção literária madeirense realizada, em parte, por autores nascidos, criados e residentes na Ilha, mas, por outro lado, também por escritores e estudiosos que, não obstante o seu nascimento insular, cedo abandonaram a terra, e a ela não fizeram reverter o produto dos seus esforços, como aconteceu, e.g., com o famoso P.e Manuel Álvares, autor da célebre Gramática Latina, ou com o P.e Luís Gonçalves da Câmara. Podem, além destes, citar-se as figuras de João Gomes, o Trovador, de Afonso da Costa, ou da Ilha, de Jerónimo Dias Leite, de António Veloso de Lira, de Manuel Thomaz, com a Insulana, de Baltasar Dias, o teatrólogo cego, de Troilo de Vasconcelos ou de João Pedro de Freitas Drumond, para referir alguns dos mais significativos. Especificamente sobre o séc. XVI escreveu José Pereira da Costa, em artigo sobre o ambiente cultural na Madeira, considerar aquela centúria como o “período áureo das letras madeirenses”, na medida em que defendia que a relação dos autores que naquele tempo escreveram, acrescida das listas de estudantes madeirenses que demandavam universidades no país ou no estrangeiro, seria a medida “do apreço em que eram tidas as letras nesta Ilha” (COSTA, 1958, 150). Em abono desta opinião, Costa refere o caso de Gaspar de Teive que, da Madeira, escreve à rainha D. Catarina, rogando que a soberana ocupasse “nas letras” um seu irmão, Baltasar de Teive “porque meu pai muito gastou com ele, nos estudos, em Paris e Salamanca, onde se fez doutor em Leis e Cânones” (Id., Ibid., 150). A formulação deste pedido não deixa, porém, de levantar uma questão curiosa, pois que o apelo se destina a que o graduado Baltasar se conservasse no reino. Significaria isto que a Madeira não tinha ocupação para um tão eminente letrado? E, se assim for, fará sentido considerar a Ilha como local onde a cultura era altamente apreciada? É incontroverso o volume de jovens oriundos de famílias abonadas que demandou o exterior em busca da formação que a terra não prodigalizava. Já não é, no entanto, tão pacífico concluir daí que essa demanda se devesse a um intrínseco interesse pela formação enquanto cultura, na medida em que a procura de habilitações poderia ligar-se igualmente à obtenção de posições bem remuneradas na hierarquia do Estado e da Igreja. Se também está fora de dúvida que a Madeira produziu bons autores ao longo dos tempos, é menos fácil, porém, afirmar em consonância com José Pereira da Costa que “Havia um indiscutível desejo de cultura e esse desejo não poderia existir se o ambiente não lhe fosse propício” (Id., Ibid., 151). Quando se procuram indícios desse ambiente consumidor de produtos culturais, os vestígios escasseiam. Os registos que ficaram das ocupações recreativas da nobreza de sangue, de património ou de toga da Madeira apontam-na como entretida com “coutadas e faustosas caçadas”, ou com “cavalgatas, jogos de canas e escaramuças aparatosas” como as que prodigalizava Lançarote Teixeira, em Machico (AZEVEDO, 2008, 766). É possível, ainda, entrevê-la a jogar à péla, em casa de Martim Vaz de Caires, que para isso reservava expressamente uma sala, ou a desfilar, garbosa, nas festas que a Igreja promoveu em honra da canonização de Inácio de Loyola e S. Francisco Xavier. Descrições de serões com música mais erudita ou recitação de poesia é que não foi possível encontrar, o que não é, porém, o mesmo que concluir pela sua inexistência. Quando, no entanto, se pesquisa em testamentos, torna-se evidente que nos bens legados não figuram nem livros nem instrumentos, que, como objetos de valor que eram, seriam certamente passíveis de referência. A abordagem da cultura da Madeira nos sécs. XV e XVI torna incontornável a menção à valiosa coleção de pintura flamenga que se encontra na Ilha, e cujo valor é por todos reconhecido. Mas aqui, e uma vez mais, cumpre questionar se a aquisição de tão preciosa coleção se deveria a um genuíno apreço pela pintura ou se outros fatores, igualmente importantes, não estariam também ligados ao processo de aquisição do espólio. Segundo um historiador belga, Goemaere, os portugueses eram particulares apreciadores da pintura flamenga e, no seio destes entusiastas lusitanos, contavam-se alguns “madeirenses que vinham trocar o açúcar pelas telas”, que eles preferiam ao ouro (CLODE, 1985, 214). Mas logo adiante, Luísa Clode, a partir de quem se cita, equaciona a hipótese de, dada a riqueza da Ilha, a importação de obras de arte se ficar também a dever a uma necessidade de competir com a concorrência “em qualidade e tamanho”, demostrando ostentação e “vaidade dos doadores de figurarem à sombra dos santos padroeiros nos trípticos das suas capelas” (Id., Ibid., 214), como acontece no Tríptico de Santiago Menor e São Filipe que ostenta, na lateral esquerda, os retratos de Simão Gonçalves da Câmara, o Magnífico, e de seu filho e sucessor, João. Este tipo de bens permitia que se operasse a “alquimia social” pela qual “o capital económico se transforma em capital simbólico”, ou, dito de outro modo, autorizavam que o “ter” se convertesse em “ser” (BOURDIEU, 1979, 4), o que não era, nunca, desdenhado pelos grupos senhoriais. As opiniões de governantes, oriundos do reino, ou de estrangeiros de passagem pela Madeira não são, também, muito abonatórias das qualificações da elite cultural da Ilha. Em 1686, queixava-se o P.e Severim de Faria, reitor do colégio dos Jesuítas no Funchal, de que os estudantes eram “livres e indomáveis comummente” e nem o bispo os conseguia refrear, pois as suas forças não chegavam para tudo, numa terra onde se vivia “muito potentadamente” (FARINHA, 1989, 719). Jonh Ovington, um clérigo protestante inglês mal-humorado, e cuja opinião deve ser lida com reservas, considerava nunca ter encontrado jesuítas tão mal preparados, pois, “apenas um em três com quem conversei compreendia o latim” (ARAGÃO, 1981, 204). O ministro de Estado Martinho Melo e Castro, numas instruções que entregou ao governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho em 1781, advertia-o de que a Ilha tinha “um corpo de nobreza digno de muita atenção pelos seus distintos nascimentos”, mas que trazia consigo a infelicidade de “ser na maior parte criado desde a infância sem educação alguma vivendo em uma profunda inação e ociosidade” (VERÍSSIMO, 1994, 192). Cumpre notar que estas observações podem ser resultado de um colonialismo mal disfarçado, até porque é possível encontrar opiniões não coincidentes, como a que formula Hans Sloane, que, de passagem pela Ilha em 1707, encontrou os “cavalheiros mais educados e dotados de todo o civismo que se poderia desejar. Em grande maioria, quer educados para as letras, quer não, são enviados a Portugal para fazerem os seus estudos” (SILVA, 2008, 25). No entanto, há que sublinhar que quem formula os pareceres desfavoráveis é gente de variadas origens, formações e interesses, o que contribui para tornar mais consistente a possibilidade de a nobreza madeirense não reunir amplo consenso no que toca às suas competências culturais. Nos finais do séc. XVIII, porém, já é possível reunir alguns dados que apontam na direção de que algo estava a mudar, pois a partir desse momento é possível identificar com mais firmeza a existência de uma elite cultural que estudou, que leu e que se deixou influenciar pelas Luzes que iluminavam a Europa do tempo. A presença de militares franceses na Ilha, encarregados de trabalhos de engenharia, como Francisco d’Alincourt, ou Bartolomeu Andrieux, acrescida da de madeirenses que, depois de se ausentarem da terra, a estudar ou a negociar, a ela retornavam com informações recentes dos movimentos intelectuais que agitavam a Europa, vai ser determinante para que na Madeira se inaugure a primeira loja maçónica do país, facto que o governador José de Sá Pereira se apressa a comunicar ao reino. Na carta em que dava conta deste acontecimento, Sá Pereira indicava que os maçons de que falava provinham de “alguns dos principais desta ilha”, o que contribuía para o seu receio em agir “sendo todos eles como são, parentes uns dos outros” (LOJA, 1986, 254). Apesar dos temores, o governador agiu e, em novembro de 1770, mandava prender Aires de Ornelas Frazão, bem como ordenava a apreensão de todos os livros e manuscritos que se encontrassem em casa do prisioneiro. Ao primeiro detido seguiram-se outros, de nomes igualmente sonantes, como Mendo de Brito Oliveira, Bernardino Escórcio Lomelino ou Francisco Xavier de Ornelas e Vasconcelos, acusado ainda da leitura de obras proibidas, entre as quais figuravam livros de Voltaire e do Marquês d’Argent. Num arrolamento de madeirenses acusados de pertencer à maçonaria, indiciados quer em 1772, quer em 1779, é, de facto, possível constatar-se a presença de um escol intelectual insular, onde pontificam fidalgos, capitães, sacerdotes, professores e advogados, que, segundo Jean d’ Orquigny, outro mação francês também detido, constituíam a “gente mais instruída e bem morigerada do país” (Id., Ibid., 339). Nestes finais do séc. XVIII, a elite insular que Guerra considera “sem dúvida alguma, culturalmente limitada” (GUERRA, 1992, 117) está, no entanto, suficientemente desenvolvida para justificar a abertura de uma casa da ópera, que, inaugurada em 1777, apresenta, porém, problemas de insolvência logo em 1781. Outros teatros se lhe seguem, que, em conjunto com um programa de bailes, são outras tantas ocasiões de exibição pública dos modos de diversão das classes mais abastadas da Madeira, nos últimos tempos do séc. XVIII e ao longo do séc. XIX. A entrada neste último século, acompanhada pelo concomitante advento do liberalismo, vai prosseguir na senda da mudança e, ao longo dessa centúria, a Madeira assistirá a um alargamento das condições de acesso à instrução básica e à disponibilização de diversos estabelecimentos de ensino secundário e superior, de que são exemplo o liceu do Funchal, inaugurado em 1836, ou a escola médico-cirúrgica, que abriu portas em 1838. Assiste-se a um enorme desenvolvimento da imprensa escrita e ao surgimento de diversas agremiações, como acontece com a Sociedade Funchalense dos Amigos das Ciências e das Artes, que abriu portas em 1822, a Associação Comercial do Funchal (1837), que disponibilizava uma biblioteca, ou o Grémio Recreativo dos Artistas, onde também se criava um embrião de outro acervo literário. O séc. XX, por seu turno, viverá dois momentos distintos no que toca à fruição de bens culturais. Um primeiro, que acompanha o Estado Novo, cuja política educativa procurava replicar elites através de um modelo que dividia os alunos entre os liceus e as escolas industriais, verá surgir, na Madeira, alguns meios de agremiar uma determinada elite que se opõe ao regime, no seio da qual se podem referir a publicação do Comércio do Funchal e a criação do Cine Forum. Depois da revolução de abril, e pela primeira vez, o Governo Regional, produto da autonomia, consagrará um departamento à promoção da cultura – a Direção Regional dos Assuntos Culturais – que, se bem que atenta à produção de eventos para a população em geral, não deixará, contudo, de atender igualmente às necessidades de um sector distinto de consumidores para o qual se propõem concertos de órgão e festivais de música de pendor mais clássico, e.g.. Sobre as cúpulas sociais da Madeira ao longo do tempo, pode-se, pois, afirmar que eram originárias da nobreza primeva, à qual se juntaram elementos vindos de outros grupos, mas que, mercê sobretudo dos rendimentos económicos de que desfrutavam, cedo se ligaram à aristocracia. A reprodução deste grupo social ao longo do tempo valeu-se, basicamente, sempre das mesmas estratégias: proximidade do poder, exercício de cargos ao serviço desse mesmo poder, conservação de estatutos e propriedades com recurso a práticas matrimoniais cuidadosamente pensadas, acesso a uma educação diferenciadora, exibição simbólica de atributos de referência: as casas, os meios de transporte, as festas, os clubes, as viagens. Do seio deste conjunto, heterogéneo mas coeso, sairia também parte dos elementos que integravam as elites eclesiásticas, acrescentadas estas, todavia, por indivíduos que a elas ascendiam em resultado de formação realizada. De notar, porém, que em períodos mais recentes a vocação para a carreira eclesiástica tem vindo a tornar-se um critério muito mais evidente para o ingresso, ainda que não seja de descurar que, até antes da revolução democrática, a entrada no seminário se fazia, muitas vezes, por ser esse o único recurso ao serviço das famílias rurais que pretendiam que os seus filhos prosseguissem estudos impossíveis de alcançar nos seus meios de origem. As elites culturais têm na base a mesma composição das outras duas – as socioeconómicas e políticas e as eclesiásticas. Se, durante muito tempo, não foi possível vislumbrar a presença local de uma elite cultural ativa, marcante e destacada, pois os seus grandes vultos à Madeira quase apenas devem o lugar de nascimento, esta conseguiu, contudo, a partir do séc. XIX, alcançar uma visibilidade de que não tinha beneficiado até então. Em resumo, siga-se João Cabral do Nascimento, que, a propósito de nomes e apelidos da Madeira, escrevia, em 1937, e referindo-se ao tempo longo da história, que “onde havia Ornelas, Meneses, Spínolas, Betancores, Drumonds e Câmaras, os outros cediam-lhes o lugar reverentemente” (NASCIMENTO, 1937, 151). A análise da realidade social da Madeira nas primeiras décadas do séc. XXI revela que esta prática continuou em vigor e muitos dos nomes que então se reverenciavam continuaram a receber idêntico tratamento. E se é um facto que a afirmação não se aplica a todas as famílias que já não beneficiam de esplendores passados, não é menos verdade que os lugares deixados vagos foram prontamente ocupados por um novo conjunto de famílias que, à semelhança do que antes acontecia, continuam a dever o seu protagonismo à proximidade do poder, a um folgado estado financeiro e a um acesso privilegiado à educação que continuou a passar, em muitos casos, pela frequência de universidades estrangeiras. 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portugal, martinho de (arcebispo do funchal)
Martinho de Portugal nasceu em Évora, por volta de 1485; era o segundo filho de D. Afonso, bispo de Évora, e de Dona Filipa de Macedo e, pelo lado paterno, neto de Afonso Marques de Valença e bisneto de D. Afonso, primeiro duque de Bragança. Como irmão mais velho tinha o primeiro conde de Vimioso, D. Francisco de Portugal, homem que teve um papel importante na condução dos destinos do reino, primeiro como conselheiro de D. Manuel I e depois de D. João III. Este enquadramento familiar aristocrático, apesar de marcado pela ilegitimidade, haveria de ser decisivo para a carreira do jovem Martinho, a qual se iniciou com a realização de um sólido programa de estudos teológicos, começado em Lisboa e continuado em Valladolid e Paris, na sequência do qual se relacionou com figuras importantes do humanismo europeu, com destaque para Erasmo, a quem foi apresentado em 1520. De regresso a Portugal, em 1522, viu-se provido numa conezia e no chantrado da Sé eborense, liderada por seu pai, benefícios que acumulava com o priorado da igreja de Barcelos e a comenda do Mosteiro de S. Jorge, em Coimbra, iniciando, assim, uma carreira favorecida por práticas de um nepotismo habitual ao tempo, mas também pela proximidade ao rei, de quem era “criatura” (PAIVA, 2006, 303). A prová-lo está a nomeação como embaixador de D. João III em Roma, para onde foi em 1525 e de onde regressou dois anos depois, investido por Clemente VII das funções de núncio apostólico. O cumprimento desta missão diplomática acabou por gerar algum descontentamento do monarca português em relação a D. Martinho, mas, uma vez ultrapassado o diferendo, D. Martinho foi reenviado à corte pontifícia, em 1532, desta vez encarregado de abrir negociações com o objetivo de conseguir o estabelecimento da Inquisição em Portugal. A 10 de fevereiro de 1533, enquanto se encontrava em Roma, ocorreu o seu provimento no cargo de arcebispo do Funchal, no seguimento da concessão de categoria de metropolita àquela circunscrição eclesiástica, obtida de Clemente VII a 31 de janeiro do mesmo ano. Apesar destas diligências, as bulas que oficializariam a situação de D. Martinho não foram expedidas, o que se pode ter ficado a dever, por um lado, à sua condição de filho ilegítimo e, por outro, a alguma indisponibilidade de D. João III em honrar os encargos financeiros a que se obrigara aquando da indicação de D. Martinho para o cargo. Com efeito, para obter a elevação da circunscrição eclesiástica do Funchal a metrópole, o rei comprometera-se a aumentar a renda do arcebispo em 200.000 réis, ou seja, a elevar para o dobro a remuneração até então atribuída ao titular da mitra funchalense, o que, naturalmente, gerava novas despesas para a coroa, em consequência das obrigações inerentes ao padroado. Desta omissão das bulas se queixava, em 1535, D. Martinho, e por causa dela se chega questionar a efetiva existência da arquidiocese do Funchal. Independentemente de argumentos documentais, a verdade é que D. Martinho passou a intitular-se Arcebispo do Funchal, Primaz das Índias e de todas as terras novas descobertas e a descobrir, assumindo a sua condição de titular da maior circunscrição eclesiástica que até então havia existido. As razões da criação de uma estrutura cuja dimensão permitia prever graves dificuldades de governo não ficaram nunca cabalmente esclarecidas. Segundo Fortunato de Almeida, o rei de Portugal procurava, desde o falecimento de D. Diogo Pinheiro, nomear D. Martinho para o lugar vago, o qual pretendia ver, ao mesmo tempo, promovido à condição de sé metropolitana (ALMEIDA, 1968, II, 696). As circunstâncias subjacentes à vontade do monarca prender-se-iam, por um lado, com o desejo de recompensar serviços anteriormente prestados por D. Martinho, e talvez, por outro, com o de favorecer a predisposição do agraciado para agir na estrita defesa dos interesses régios no tocante ao estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício em Portugal. Se este último era, de facto, um desígnio do rei, não se pode afirmar que a indigitação tenha surtido o efeito desejado, porque a ação de D. Martinho em Roma foi, aparentemente, mais orientada para procura de uma legitimação de nascimento que lhe permitisse a promoção ao cardinalato, do que centrada na missão que o monarca lhe confiara. A atribuição a D. Martinho do lugar de arcebispo, e não do de simples prelado, radicaria, por outro lado, na necessidade de se arranjar uma estrutura que, sem melindrar a posição de nenhum dos outros dois metropolitas nacionais, o de Braga e o de Lisboa, autorizasse a instituição de diversas dioceses ultramarinas, promovendo uma descentralização eclesiástica nos novos territórios do império. Este desígnio foi, de imediato, concretizado, e entre 1533 e 1534 foram criadas as dioceses de Cabo Verde, S. Tomé, Goa e Angra . Apesar de nunca se ter deslocado pessoalmente à Ilha, D. Martinho foi tomando várias medidas, enquanto arcebispo do Funchal, as quais comprovam que, embora distante, não enjeitava algumas das responsabilidades que o lugar acarretava. Assim, no tocante aos recursos humanos afetos à sé, o arcebispo diligenciou a criação de duas novas conezias de meia prebenda, quatro lugares de capelão e um de sacristão, e procurou melhorar as condições de vida do cabido e da clerezia insulares. Consciente de que a ausência lhe impedia a realização de funções que só a um prelado incumbem, como crismar e atribuir ordens menores e sacras, D. Martinho enviou à Madeira, em 1538, em seu lugar, o bispo de Rociona, D. Ambrósio Brandão, acompanhado por dois visitadores, o licenciado Jordão Jorge e Álvaro Dias, “capelão, familiar e contínuo comensal do Mui Ilustre e Reverendíssimo Senhor D. Martinho de Portugal” (ARM, Paroquiais, liv. 1147, fl. 54). D. Ambrósio foi-se desincumbindo das tarefas que lhe estavam destinadas, conferindo ordens um pouco por toda a Ilha na segunda metade do ano e, terminadas as funções, regressou ao reino. O mesmo não aconteceu com os visitadores, que permaneceram até ao ano seguinte, também eles percorrendo as paróquias e exarando providências destinadas a corrigir as desconformidades com que deparavam. A atuação destes dois eclesiásticos não foi bem recebida pelos fiéis madeirenses, o que levou Frutuoso a afirmar que eles “executaram em toda a ilha seu ofício, não com aquele mimo em que o Bispado estava criado, mas antes com muito rigor e aspereza”, razão pela qual “estavam malquistos” pela população (FRUTUOSO, 2008, 222). Em documentos recentemente descobertos num livro de registo paroquial da freguesia da Madalena do Mar, encontra-se uma cópia dos provimentos deixados pelos enviados episcopais na visita que realizaram àquela localidade no ano de 1539. A partir desse registo se constata que a visita se iniciou com inspeção à sacristia e inventário da prata e dos ornamentos, fornecido pelo capelão, após o que se passou à indagação do comportamento dos fregueses. Nesse âmbito, determinou-se, então, que os fregueses assistissem calados aos ofícios divinos, se abstivessem de cantar, bailar e dormir na casa de Deus e fossem assíduos à missa, acarretando o incumprimento destas determinações a pena de excomunhão. Para o capelão e o cura estatuía-se que perseverassem no ensino da doutrina aos fiéis, que fossem vigilantes em relação aos casais amancebados e aos que se casavam clandestinamente, que tangessem o sino três vezes ao dia, que se preocupassem com a limpeza dos altares e dos paramentos e, por fim, que publicassem os provimentos na estação da missa. Se se comparar o teor destas determinações com o de outros provimentos mais tardios, nada se encontra de tão gravoso que possa justificar a animosidade que moveu as populações insulares contra a ação visitacional, pelo que o referido estado de espírito será, porventura, de atribuir à raridade destas intervenções inspetivas, as quais se tornarão mais habituais e causarão menos estranheza depois do Concílio de Trento. Desta mesma visita há, ainda, um outro registo que dá conta da forma como os visitadores olharam para a realidade insular e das conclusões que tiraram dessa análise. Trata-se de uma carta, presumivelmente de Álvaro Dias, para o reino, em que consta uma descrição dos atropelos que se depararam aos olhos, por vezes incrédulos, dos dois enviados. Assim, o redator constatava terem-lhe sido requeridas coisas vergonhosas no exame das ordens, às quais não anuíra, o que o fizera ganhar muitos inimigos. Mais adiante, comunicava ter percebido que nem a décima parte dos habitantes sabia rezar o Credo, e considerava não haver gente com menos consciência que esta, independentemente de serem leigos ou clérigos. Todos os homens de posses da Ilha tinham ermidas próprias, com capelães privativos, pelo que não frequentavam a igreja paroquial e nunca recebiam as informações que se davam na estação da missa. Até os membros do cabido se podiam reprovar porque, em dia de festa e sermão, não se mantinham na igreja a ouvir, antes palravam ou saíam da igreja e se passeavam pela cidade, com escândalo de Deus e do mundo. O próprio prelado que os acompanhava, D. Ambrósio, era visado, na medida em que fazia a vontade a todos os poderosos, escusando-se a assumir uma posição crítica perante tanto desmando. O tom fortemente crítico da missiva explica a insatisfação insular, cujos ecos terão, eventualmente, sido comunicados a D. Martinho, que, em 1541, voltou a enviar um visitador, Diogo Dias, bacharel em cânones, capelão do arcebispo e seu ouvidor geral, a fazer correição em todo o território. Chegado à Madalena do Mar, Diogo Dias declarava ser portador de uma provisão “que trouxe de Sua Senhoria”, onde se estipulava que nenhuma provisão ou alvará fossem válidos sem ter passado pela chancelaria episcopal. Diogo Dias vinha suavizar algumas decisões tomadas pelos seus antecessores. Assim, a propósito da proibição de se dormir dentro da igreja, determinava-se que isso seria, afinal, possível, desde que se tratasse de um homem casado, acompanhado da mulher, ou de pessoa honesta, que poderiam pernoitar no templo, na condição de não cantarem nem bailarem. Em relação aos clérigos afetos à capela da Madalena, o visitador mandava ter atenção ao vestuário autorizado e ordenava que não excomungassem os faltosos à missa no caso de viverem longe, situação que justificaria a assistência dividida entre marido e mulher em domingos alternados. Quanto aos pecadores que fossem responsáveis por trabalhar em dias santos, ou por não jejuar em dias de preceito, não lhes seria negada a absolvição, mas antes imposta uma pena pecuniária (ARM, Paroquiais, liv. 1147, fls. 55-57v.). O texto dos provimentos de Jordão Jorge e Álvaro Dias fazia ainda, várias vezes, menção das Constituições do prelado, as quais serviam de referência para o modo de tratar e punir muitas das infrações detetadas, o que permite confirmar aquilo que muitos autores já assinalaram no tocante ao cuidado de D. Martinho em prover a sua arquidiocese de um texto constitucional que permitisse estruturar de um modo mais consistente a vida religiosa das populações. Para além desse documento, a diocese teria também ficado a dever ao arcebispo o envio de umas relíquias sagradas que se guardavam no altar-mor da sé – este facto constituía mais uma evidência de que, apesar de afastado e ocupado com assuntos de grande importância para o reino, D. Martinho não descurou por completo os seus deveres enquanto responsável pela cátedra funchalense. Numa análise à sua atuação, Frutuoso afirmava que “todo o tempo que o Arcebispo governou foi o Arcebispado mui feliz” (FRUTUOSO, 2008, 221), mas este ponto de vista não era subscrito pela câmara municipal da cidade que, em 16 de agosto de 1546, dava conta ao rei da desolação em que se encontrava a arquidiocese, cujo cabido, sem deão, via os canonicatos ocupados por “mancebos”, não havendo, igualmente, pregadores. O Santíssimo Sacramento era indevidamente transportado por leigos, e as procissões eram pobres e pouco participadas, chegando a mais importante de todas, a de Corpus Christi, a parecer a de uma pobre aldeia, o que muito repugnava ao senado funchalense, naturalmente orgulhoso da importância do seu burgo, já então em época áurea sustentada pelos rendimentos do açúcar (BRAGA, 1993, 561). Esta visão da cidade e da Ilha não seria, no entanto, partilhada por D. Martinho que, tendo regressado ao reino em 1535, nele se conservara, ainda que procurando sair e regressar ao convívio dos humanistas com quem já privara. A isto se opôs o rei que, no entanto, parece ter anuído à pretensão manifestada pelo arcebispo de ser provido na diocese de Silves, entretanto vaga. A última pretensão do prelado acabou por não se concretizar, uma vez que, a 15 de novembro de 1547, faleceu, sem que os procedimentos necessários ao provimento na nova cátedra estivessem concluídos. Com ele desapareceu igualmente a arquidiocese madeirense que, já em 1539, se vira amputada da tutela sobre o Oriente, cujas terras, a partir do cabo da Boa Esperança, passaram a estar sob o controlo direto da diocese de Goa, e se viu formalmente extinta em 1551. Bibliog. manuscrita: ARM, Registos Paroquiais Paróquia da Madalena do Mar, liv. 1147, Mistos, 1589; impressa: ALMEIDA, Fortunato de, História da Igreja em Portugal, 2.ª ed., 4 vols., Coimbra, Livraria Civilização, 1968; BRAGA, Paulo Dumond, “A actividade diocesana de D. Martinho de Portugal na arquidiocese funchalense”, Actas do III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1993, pp. 557-562; COSTA, José Pereira da, “Dominicanos Bispos do Funchal e de Angra (Na esteira de Frei Luís de Sousa)”, Separata das Actas do II Encontro sobre História Dominicana, vol. II, Porto, 1987; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra. História das ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, manuscrito do século XVI, anotado por Álvaro Rodrigues de Azevedo, Funchal, Funchal-500 Anos, 2008; PAIVA, José Pedro, Os Bispos de Portugal e do Império, 1495-1777, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006; PEREIRA, Fernando Jasmins, “Funchal”, in ANDRADE, António Alberto Banha (dir.), Dicionário de História da Igreja em Portugal, Lisboa, Resistência, 1983, pp. 527-549; NORONHA, Henrique Henriques, Memorias seculares e ecclesiasticas para a composição da Historia da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, CEHA, 1993; SILVA, Fernando Augusto, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, Funchal, s.l., 1946; VIEIRA, Alberto, “Funchal, diocese do”, in AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.), Dicionário de História Religiosa de Portugal, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, pp. 281-288; digital: Geneall, Portal de Genealogia (http://www.geneall.net/P/per_page.php?id=2455, acedido a 8 set. 2013). Ana Cristina Machado Trindade Rui Carita (atualizado a 17.02.2016)
porto, nuno alberto queirol de vasconcelos e
Nuno Alberto Queirol de Vasconcelos e Porto nasceu em Lisboa, a 1 de abril de 1886, filho de Nuno António Coelho de Vasconcelos e de Rosa Queirol. Casou-se com Eugénia Machado de Lemos (1889-1973) e foi pai de duas filhas: Maria de Lurdes Machado de Lemos Vasconcelos Porto e Maria Eugénia Machado de Lemos Vasconcelos Porto. Foi médico, exercendo a sua atividade no Funchal, tendo assistido Carlos I, último imperador da Áustria, que viveu os seus derradeiros anos de vida na Madeira; Carlos de Áustria ofereceu-lhe um relógio de bolso de ouro com diamantes, que foi posteriormente depositado no Museu da Quinta das Cruzes, no Funchal. Foi galardoado com as medalhas dos Aliados da Campanha de França e do 9 de Abril. Morreu no Funchal, a 26 de abril de 1974. Bibliog.: PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas e Comentários para a História Literária da Madeira, vol. 1, Funchal, CMF, 1949. Isabel Drumond Braga (atualizado a 17.02.2016)
fonte, césar teixeira da
O P.e César Teixeira da Fonte foi um sacerdote católico que se tornou uma figura ímpar da história da Madeira pelo papel que desempenhou na Revolta do Leite, movimentação que, em 1936, opôs parte da população da Madeira ao regime salazarista. [caption id="attachment_8302" align="alignleft" width="180"] Padre César Teixeira da Fonte.[/caption] César Teixeira da Fonte nasceu no Estreito da Calheta, a 29 de setembro de 1902, e enveredou pela carreira eclesiástica, tendo frequentado o seminário do Funchal, cujo curso concluiu em 1927. Enviado a paroquiar, ocupou sucessivamente lugares em Câmara de Lobos, como coadjutor, entre setembro e dezembro de 1927, após o que foi transferido para o Porto Santo, onde permaneceu até outubro de 1928. Daí partiu para ocupar o lugar de vigário da Calheta, tendo, finalmente, em 1930, assumindo responsabilidades paroquiais no Faial. De 1934 em diante, passou a acumular esta freguesia com a de S. Roque do Faial. Nas paróquias em que foi cumprindo o seu múnus ficou conhecido por ser bom orador e por se preocupar genuinamente com o seu rebanho, a quem prodigalizava informação significativa, procurando descodificar acontecimentos de natureza política e social, no sentido de fazer entender às pessoas as circunstâncias que as rodeavam. Esta sua postura pedagógica cedo lhe acarretou problemas. As opiniões que ia exprimindo nem sempre eram do agrado do regime e acabou por ter dissabores, como aconteceu quando foi multado pela Comissão de Censura, por causa de um artigo publicado na imprensa local; ou quando foi alvo de um abaixo-assinado em que alguns paroquianos se insurgiram contra ele. Em 1936, deixou-se impressionar por um problema que veio a afetar a vida dos seus paroquianos e das populações rurais do arquipélago, episódio que a história da Madeira registou com o nome de Revolta do Leite. A polémica foi levantada pela promulgação do Decreto de 4 de junho de 1936, fundador da Junta de Laticínios da Madeira, instituição que pretendia monopolizar a indústria do leite, e que esteve na origem de uma forte reação popular, por se ter entendido que a sua ação iria prejudicar muitos dos pequenos produtores, tal como já se tinha verificado em relação às farinhas. Na déc. de 30, na Madeira, o leite e a manteiga ocupavam um lugar central na economia insular, ultrapassando em importância o vinho e o açúcar. Sobretudo nas encostas norte da Ilha, os pequenos produtores entregavam a sua produção a um dos cerca de 1100 postos de recolha do leite com vista ao fabrico da manteiga, e o facto de a procura ser superior à oferta contribuía para elevar os preços e equilibrar os orçamentos familiares. A intenção de Salazar, de extinguir boa parte dos pontos de desnatação e entregar a gestão dos laticínios a uma Junta, agitou as gentes, e muito em breve a revolta rebentava, congregando insurretos sobretudo no Faial, na Ribeira Brava e no Machico. O P.e Teixeira da Fonte, contrariando os poderes que se fiavam na habitual passividade do clero face às sublevações populares, colocou-se ao lado do povo, em consequência do que viria a ser preso, a 11 de setembro de 1936, conjuntamente com muitos dos seus paroquianos, nos calabouços da polícia, de onde saiu para ser interrogado a 14 desse mesmo mês. Depois deste interrogatório foi transferido para a cadeia subterrânea apelidada de Forno do Lazareto, onde permaneceu durante 11 meses, sem que nunca tivesse conseguido ser ouvido pelo governador. Todos os seus movimentos eram observados e estava privado de aceder a qualquer meio de distração ou orientação espiritual. Após este período de detenção, seguiu para Caxias. Em meados de janeiro de 1938, foi restituído à liberdade e regressou à freguesia do Faial, onde continuou a paroquiar. No fim desse ano partiu novamente para Lisboa onde, a partir de 5 de dezembro de 1938, passou a exercer o seu múnus sacerdotal na paróquia de São Sebastião da Pedreira. Por esta altura, matriculou-se também em Direito, curso que concluiu a 21 de julho de 1943. Concluída a licenciatura, exerceu advocacia a par das suas funções eclesiásticas, interessando-se pelas causas dos pobres e por assuntos jurídicos relacionados com a vida eclesiástica das paróquias do Patriarcado. Faleceu em Lisboa, a 18 de junho de 1989. João Abel de Freitas, que em 2011 publicou uma obra sobre a Revolta do Leite, considerou que o P.e Teixeira da Fonte foi “a personalidade de maior destaque na Revolta do Leite, quer por caraterísticas próprias, quer porque as autoridades políticas da Madeira a isso o empurraram” (FREITAS, 2011, 117). Obras de César Teixeira da Fonte: Todos Cantam (1934); A Prisão de Um Padre Católico. Um Brado de Justiça (1937); O Estado de Necessidade em Direito Criminal (1943). Bibliog. impressa: FREITAS, João Abel de, A Revolta do Leite, Madeira 1936, Lisboa, Edições Colibri, 2011; digital: DUARTE, Raul, “Personalidades da Freguesia”, A Freguesia do Faial (Madeira), 22 mar. 2006: http://juntafreguesiafaialmadeira.blogspot.pt/ (acedido a 28 out. 2015); “Padre Dr. Cesar Teixeira Fonte” Câmara de Lobos – Dicionário Corográfico: www.concelhodecamaradelobos.com/dicionario/fonte_padre_cesar_teixeira.html (acedido a 28 out. 2015). José Luís Rodrigues Cristina Trindade (atualizado a 06.09.2016)