Mais Recentes

arquitetura senhorial

A designação “arquitetura senhorial” abrange o conjunto de edifícios que, para além da função de residência do proprietário e da sua família, albergava igualmente o pessoal e as instalações relacionadas com as funções diretivas, administrativas e sociais do mesmo. Com a progressiva organização da sociedade madeirense, nos anos seguintes ao povoamento, para além das figuras dos capitães do donatário, relacionadas com a doação de terras e a instituição da figura do proprietário, e da nomeação de oficiais régios para a administração, etc., definia-se toda uma diferenciação dos novos senhores em relação ao povo comum. Tal diferenciação, que se estabelecia pelo uso de determinados atributos, como as armas dos cavaleiros e escudeiros ou as varas dos oficiais de justiça, entre outros, tinha quase que obrigatoriamente de se estender à sua residência, não só pela colocação da mesma em local de destaque, como pelo impacto visual que deveria ter, para ser de imediato reconhecida. A família, no Antigo Regime, tinha um sentido muito mais alargado do que tem hoje, sendo por vezes substituída pelos conceitos de “casa” ou “comensais”, envolvendo os elementos direta e indiretamente ligados ao senhor em questão, indivíduos que comiam com o mesmo, para além da mulher e dos filhos, estendendo-se a pais ou sogros e outros, como funcionários e eclesiásticos, havendo ainda serviçais e escravos, embora esses já não com o estatuto de “comensais”, mas considerados como parte da “casa”. [caption id="attachment_4338" align="alignright" width="216"] Campa de D. Manuel Noronha, Sé do Lamego.[/caption] A progressiva diferenciação ainda se construiu pela instituição dos morgadios (Morgadio/Morgado) e das capelas, tudo vindo assim a ter correspondência na residência e sede da organização de que o senhor em causa era somente o elemento de referência mais visível. A questão do universo alargado dos membros da família e a casa aplicavam-se, na Madeira, aos morgados, mas também aos governadores e aos bispos (TRINDADE, 2012, 56-65), tal como a cónegos, párocos, vigários e outros senhores. [caption id="attachment_4404" align="alignleft" width="225"] Estatuária, Museu Quinta da Cruzes[/caption] Tendo sido a inicial instalação na ilha bastante precária, as primeiras residências senhoriais também o foram, subsistindo das mesmas, essencialmente, apenas as capelas, projetadas para sepultura dos iniciais instituidores e para serviço do povo que trabalhava para os proprietários, mas não, em princípio, para o seu enterramento (Arquitetura religiosa). As mais antigas capelas, dos inícios do séc. XVI, que chegaram aos nossos dias (pois que das do séc. XV quase só chegaram informações documentais), como a capela instituída por Francisco Homem de Gouveia e sua mulher, Isabel Afonso, por volta de 1520, não se articulam hoje com qualquer grande estrutura edificada, que, por certo, teria existido nas suas imediações. O mesmo se passa, quase cem anos depois, com a capela de N. S.ª da Salvação, instituída por Francisco Morais de Aguiar, em 1614, na sua antiga Qt. da Boa Vista do Caniço e assim sucessivamente. A escolha destes dois exemplos, pois outros poderiam ser mencionados, foi feita pelas condições económicas dos seus proprietários, que se mandaram pintar nos retábulos destas capelas. Francisco Homem de Gouveia e sua mulher, Isabel Afonso, encontram-se representados nos volantes do retábulo encomendado em Antuérpia, por volta de 1525, o que indica não só a sua capacidade económica, como também, em princípio, a necessidade de representatividade local. O mesmo aconteceu em relação à capela da Salvação do Caniço, embora não tivessem figurado ali os retratos dos iniciais proprietários, mas os dos seus descendentes, pois que Francisco Morais de Aguiar faleceu em 1634 e o magnífico retrato do casal orante, aos pés de N. S.ª da Salvação, foi pintado por Martim Conrado, em 1646. A residência do primeiro capitão do Funchal, João Gonçalves Zarco (c. 1390-c. 1471) foi, inicialmente, em madeira, nos arrifes de Santa Catarina, de onde terá passado para um lugar mais alto, na área atual do convento de S.ta Clara, que teve por origem a inicial capela da Conceição de Cima, para a diferenciar da Conceição de Baixo, que o povo apelidava de N. S.ª do Calhau. Ligeiramente acima veio a residir também o segundo capitão, João Gonçalves da Câmara (1414-1501), na área hoje ocupada pela Qt. das Cruzes, espelhando o complexo edificado ali existente as profundas alterações por que este tipo de residências senhoriais passou ao longo dos tempos. A residência inicial das Cruzes terá tido por mestre-de-obras, entre os finais do séc. XV e os inícios do XVI, o mesmo mestre pedreiro que iniciou a construção da futura sé do Funchal (Sé) e do convento de S.ta Clara, em princípio, João Gonçalves, que o vedor das obras da “igreja grande”, Bárbaro Gomes (c. 1460-1544), enviou a Lisboa em junho de 1503 (ANTT, Corpo Cronológico, Fragmentos, 1-7). O mestre-de-obras era pago pelo capitão do Funchal, como vedor que era da Alfândega, pelo que, com certeza, trabalhou na residência do mesmo, tal como no convento de S.ta Clara. [caption id="attachment_4347" align="alignleft" width="300"] Fonte de Embrachados, Museu Quinta das Cruzes.[/caption] Desconhecemos as obras do tempo do primeiro e do segundo capitão, pois que as evidências manuelinas patentes no piso térreo parecem posteriores e do tempo do seguinte proprietário, o segundo filho do segundo capitão, Pedro Gonçalves da Câmara (c. 1464-c. 1555), embora quem ali viesse a residir fosse o terceiro filho, Manuel de Noronha (c. 1465-c. 1535). O irmão mais velho, Simão Gonçalves da Câmara (c. 1464-1530), terceiro capitão do Funchal, tinha montado a sua residência no Altinho das Fontes, onde se levantou depois a fortaleza do Funchal (Fortalezas), e já o teria feito em vida do pai, pelo que o mesmo, por codicilo de 1501 ao seu testamento, legou a residência das Cruzes ao filho Pedro, que, no entanto, e pouco tempo depois, fixou residência na corte de Lisboa. [caption id="attachment_4335" align="alignright" width="203"] Planta, Quinta das Cruzes[/caption] A avaliar pela planta de Mateus Fernandes (III), datável de 1570 (BNB, Cartografia, 1090203), a residência, então dada como pertencendo a Luís de Noronha (c. 1515-c. 1575), sobrinho do anterior proprietário, possuía forma em L com um corpo virado a sul, não muito diferente do que ainda possui, e um outro para poente. Para sul, encontrava-se o vasto complexo do convento de S.ta Clara, num espaço maior do que aquele que hoje ocupa e, para norte, o complexo dos moinhos, dependente diretamente da administração dos capitães do Funchal e que constituía uma parte importante dos seus rendimentos. As casas das Cruzes passaram depois a Joana de Noronha (c. 1550-1613), filha de Francisco Gonçalves da Câmara (c. 1510-c. 1586), que fora governador do Funchal e, depois, ao sobrinho António do Carvalhal Esmeraldo. Provavelmente, na posse deste último, por volta de 1660, o edifício terá sido dotado de um novo corpo, adossado à fachada e para entrada de aparato, constituindo um terraço assente sobre arcaria em cantaria vermelha do Cabo Girão, atualmente coberto, com acesso por poente. Por essa altura ou mais tarde, ainda viria a encostar-se ao mesmo um outro corpo, que deveria servir de miradouro sobre o parque ou sobre o caminho, pois que, muito possivelmente, o terreno hoje ocupado pelo parque para sul ainda não fazia parte da propriedade, como se deduz da planta de 1570. [caption id="attachment_4314" align="aligncenter" width="428"] Museu Quinta das Cruzes, Arqui. Rui Carita.[/caption] Nos finais do séc. XVII, o então proprietário, Francisco Esmeraldo Henriques, bisneto de Joana de Noronha, também mandou levantar, designadamente, uma capela, de N. S.ª da Piedade, com acesso público pelo Lg. das Cruzes ou Lg. da Bela Vista; nesta altura, a propriedade terá sido ampliada para sul. Na fachada da capela foi mandada gravar a data de 1692, embora a dotação do templo seja de 25 de maio de 1695 e a vistoria eclesiástica, para efeitos de autorização de culto, de 14 de junho seguinte (SILVA e MENEZES, 1998, III, 464). A capela foi, nessas anos ou seguintes, dotada com um acesso interior lateral e com um pequeno espaço de lazer e miradouro junto à sineira. Interiormente, pouco depois, por volta de 1700, o retábulo de pedra esculpida seria completado com uma tela pintada a óleo representado uma Piedade, assinada por Bento Coelho da Silveira (1617-1708). O andar nobre da residência das Cruzes, tal como o conhecemos hoje, deve ser dos finais desse séc. XVII e, mais provavelmente, dos inícios ou meados do XVIII, época em que o edifício foi ampliado para nascente e dotado de novas instalações de serviço. A fachada apresenta as características gerais dos solares urbanos madeirenses, com um andar térreo para ser utilizado para lojas de arrecadação, atualmente dotado de janelas neomanuelinas correspondentes às portas que possuía nos meados do séc. XX, e de que conhecemos fotografias, a articularem-se com o andar nobre e utilizando como sacada a varanda das janelas superiores, bastante altas e possuindo lintel com cornija de balanço. Ao centro e à face da fachada, apresenta mais um piso, de uma só janela, que funciona como torre de ver o mar, tendo ao lado uma gárgula, que corresponde à divisão das águas. As janelas apresentam portadas de madeira envidraçadas, com as inferiores de guilhotina, protegidas por persianas de ripas de madeira pintadas, que recolhem superiormente em lambrequins. Nos meados e finais do séc. XVIII, foi, ainda, o jardim dotado de cascatas e fontes, parte em embrechados de tufo vulcânico e restos de porcelanas e faianças, sucessivamente melhoradas e ampliadas ao longo do século seguinte. O conjunto que conhecemos hoje foi alterado e melhorado ao longo dos meados do séc. XIX, quando passou a residência dos morgados das Cruzes, Nuno de Freitas Lomelino (1820-1880) e Ana Welsh, duas figuras notáveis da sociedade do seu tempo. Os Lomelino conseguiram reivindicar a propriedade do convento de N. S.ª da Piedade de Santa Cruz, tendo transferido o túmulo do fundador para a capela de N. S.ª da Piedade; existem, pelo menos numa das casinhas de prazer, elementos arquitetónicos que parecem ser dali provenientes. A quinta foi vendida, em 1863, a Tristão Vaz Teixeira de Bettencourt e Câmara (1848-1903), barão do Jardim do Mar. Com o seu falecimento, passou para outros proprietários, sendo arrendada. Assim, funcionou como sede da banda municipal Artistas Funchalenses, como hotel, na déc. de 1930, e, por fim, como residência do ourives e antiquário César Filipe Gomes (1875-c. 1949), vindo a ser adquirida pela JGDAF para a instalação de um museu, cujo património foi em grande parte doado por este antiquário. A intervenção para adaptação a museu iniciou-se em 1950, sendo o museu inaugurado em 1953. Os capitães do Funchal fixaram residência nos inícios do séc. XVI no Altinho das Fontes, como referimos, ainda tendo ali residido o quarto e o quinto capitães. Este último, Simão Gonçalves da Câmara (II) (1512-1580), dado o protagonismo da família, fixou-se na corte, em Lisboa, por volta de 1550, tendo permanecido apenas esporadicamente no Funchal. Com a elevação dos Câmara a condes da Calheta, em 1576, os seus descendentes diretos não voltaram à Madeira. Na fortaleza do Funchal e na antiga residência dos capitães, a partir de 1582, passaram a residir os governadores, primeiro como “encarregados das coisas da guerra”, depois como capitães gerais das duas capitanias, etc., não parando a residência de crescer perante a cidade, numa autêntica afirmação de poder (palácio e fortaleza de São Lourenço). Com base nos primeiros companheiros de Zarco e, depois nos seus genros, como Garcia Homem de Sousa, que teria levantado a Torre do Capitão, a Santo Amaro (NORONHA, 1996, 195), tal como em uma ou outra figura de origem mais obscura, mas entretanto nobilitada, como João Fernandes de Andrada, “o do Arco” (c. 1450-1527), casado com Beatriz de Abreu, e alguns comerciantes de origem italiana e flamenga, famílias que sucessivamente se cruzaram entre si, nasceu a nobreza inicial da ilha, cujos membros seriam nomeados pela corte de Lisboa como “homens bons” ou “gente da governança”. Infelizmente, salvo a residência do comerciante de origem francesa ou flamenga João Esmeraldo (c. 1460-1536), na Lombada da Ponta do Sol, poucas construções civis dos finais do séc. XV a inícios do XVI subsistiram. A propriedade da Lombada da Ponta do Sol foi comprada ou aforada, em 1498, a Rui Gonçalves da Câmara (c. 1420-c-1500), filho de Zarco, que se fixou, entretanto, nos Açores, como capitão da ilha de São Miguel, provavelmente com o dinheiro dessa venda. O importante solar dos Esmeraldos é dos poucos que manteve alguma permanência na família, assumindo de imediato absoluto protagonismo, de tal forma que, enviando a Ordem de Cristo à Madeira, D. João Lobo, bispo de Tânger, para crismar e sagrar as paredes da igreja nova do Funchal, que haveria de ser terminada para sé, o prelado foi à Lombada, a 27 de agosto de 1508 (SILVA, 1933, 39), também sagrar a capela ali construída. A capela, no entanto, não é a que temos hoje, que é uma reconstrução de raiz levantada em 1720, como consta no portal. O solar dos Esmeraldos instala-se, dominante na paisagem, com fachada de três pisos para sul e dois para norte, envolvendo cinco corpos e coberturas múltiplas. A fachada norte é complexa, integrando a monumental torre senhorial dos inícios do séc. XVI, da qual ficou toda a estrutura, com os fortes cunhais embutidos na parede norte, as gárgulas do antigo eirado superior, hoje coberto por telhado e, muito possivelmente, ainda três frestas, antigas seteiras ou canhoneiras, celebrizadas no famoso recontro das forças de António Gonçalves da Câmara (c. 1500-1567) e dos Abreus, filhos de João Gonçalves do Arco, em apoio da irmã, Isabel de Abreu (c. 1500-1545), que ali se refugiara (SOUSA, 1997, 60). No corpo poente, encontra-se a larga porta de aparato de entrada, encimada por cornija, mas separada do arco da moldura e com o brasão de armas do proprietário, o morgado Luís Esmeraldo de Atouguia, datado de 1672. A porta dá acesso ao adro coberto calcetado e ao terraço que fica para sul, com magnífica vista sobre a antiga propriedade. A fachada poente deste corpo apresenta três pisos, reconstruídos em meados do séc. XVII, mantendo o piso inferior da campanha manuelina, e ainda se articula com o terraço frontal, gradeado e com o antigo moinho da propriedade. Não é fácil conjeturar a organização inicial do enorme solar, pois com as sucessivas obras de reconstrução e ampliação, é natural que determinados elementos arquitetónicos tenham sido deslocados e remontados. Tudo leva a crer que, da construção inicial dos inícios do séc. XVI, para além da torre senhorial, restem as ombreiras das portas do andar térreo, virado a sul, com vergas de madeira muito antigas. O conjunto edificado teve obras perto de 1600 e voltou a tê-las, pela mão do morgado Luís Esmeraldo de Atouguia, depois de 1697, em princípio, data em que negociou parte das propriedades do morgado para conseguir fazer a intervenção no edifício, embora o brasão sobre a entrada apresente data anterior: 1672. A reforma geral do conjunto deve ter ocorrido, assim, com as intervenções feitas entre 1697 e 1720, sendo administrador do morgadio, nesta última data, Cristóvão Esmeraldo de Atouguia e Câmara (1665-c. 1730), moço fidalgo da casa real e uma das pessoas mais prestigiadas do meio social madeirense da época. Foi este último morgado que assumiu a reconstrução da capela, em 1720, dotada de painéis de azulejos alusivos aos dons e frutos do Espírito Santo, atribuíveis à oficina de Bartolomeu Antunes e Nicolau de Freitas, da déc. de 1730 a 1740. A fachada virada a sul do solar, constituída por três corpos ao nível das coberturas, reconhecíveis pelas gárgulas na separação das águas, ficou então dotada de altos pisos, com um andar intermédio para serviços, de janelas de molduras boleadas, e um andar nobre superior, com varandas de sacada e remates por cornija relevada com balanço, mas molduras de cantaria igualmente de perfil boleado, ao gosto do séc. XVII. O conjunto ainda teve obras quando era administradora a “Ilustríssima Senhora Dona” Guiomar Madalena de Vilhena (1705-1789), dada a data inscrita no coro da capela do Espírito Santo: 1768. As obras devem ter-se estendido, depois, às salas adjacentes à entrada de aparato, pois está aí registado o ano de 1780. O morgadio passou, em seguida, para o seu sobrinho, João Esmeraldo de Carvalhal Atouguia e Câmara (1733-1790), que, embora sepultado na capela do solar, não parece ter ali feito obras, tal como os seus filhos: o coronel Luís Vicente (c. 1750-1798), falecido sem descendência, e o futuro conde de Carvalhal (1778-1837), que veio a ser sepultado na “sua” capela de S. João Batista, na Qt. do Palheiro Ferreiro. No Funchal, e pouco depois do atribulado caso de António Gonçalves da Câmara e de Isabel de Abreu, ocorrido em 1531, restava o solar de D. Mécia, que deve ter sido um exemplo paradigmático das residências urbanas dos meados do séc. XVI, dado já se encontrar representado na planta de Mateus Fernandes (III), de 1570, e com o desenho aproximado com que chegou aos nossos dias. O inicial proprietário deste solar deve ter sido João de Ornelas Magalhães, que, em 14 de maio de 1555, foi nomeado alcaide da fortaleza do Funchal (ARM, Câmara..., tombo 2, fls. 31-31v), quando saiu para Lisboa o capitão e anterior alcaide Jerónimo Cabreira. Terão sido os seus descendentes, em princípio, que, em 1606, mandaram colocar o brasão sobre o portão de entrada, à R. dos Aranhas, com as armas dos Ornelas e Magalhães, embora também de outras famílias não identificadas. O solar apresenta planta composta por dois corpos, um dos quais quadrado, adossado para sul, confinando com a fachada e onde se situam os acessos por alpendre para o antigo andar nobre. O alpendre é dotado de balcão que se articula com o corrimão das escadas, sendo a entrada feita por arco ogival de cantaria, com moldura interior integrando colunelo ressalvada sem marcação dos capitéis. A importância do solar incidia sobre o conjunto de janelas tardo-góticas de enorme impacto decorativo, com pilastras de mármore importadas do continente, de bases e capitéis esculpidos, rematadas por complexas decorações de argamassa relevada e pintada, exemplares únicos na ilha.   [caption id="attachment_4519" align="aligncenter" width="409"] Planta do Solar D. Mécia[/caption] Apresentava interiormente um largo teto mudéjar, em caixotão, travado aos cantos por tirantes finamente esculpidos e assente em largos arcos ogivais de cantaria; teto que, infelizmente, ardeu após uma festa de carnaval, em fevereiro de 1957, tendo ficado apenas fotografias do mesmo. [caption id="attachment_4522" align="alignleft" width="376"] Alçado a partir de fotografia, 1986.[/caption] [caption id="attachment_4525" align="alignright" width="371"] Alçado Oeste a partir de fotografia 1986[/caption]         [caption id="attachment_4533" align="aligncenter" width="495"] Teto do Solar D. Mécia, 1950[/caption] [caption id="attachment_4536" align="aligncenter" width="423"] Pormenor dos Arcos Ogivais de Cantaria, 1950[/caption] [caption id="attachment_4529" align="alignright" width="501"] Solar D. Mécia após o Incêndio, 1957.[/caption] [caption id="attachment_4539" align="alignnone" width="260"] Teto e Arco Ogival, 1950[/caption] No entanto, parece que, pelos inícios do séc. XX, teria servido este teto de modelo ao da nova sala de jantar revivalista que o visconde da Ribeira Brava (1852-1918) mandou montar na sua casa de família na Madeira, edifício que no séc. XXI alberga a câmara municipal daquela vila. O conjunto do solar ainda estava associado a uma capela, embora não diretamente, pois era um edifício independente e sem acesso imediato ao exterior. A capela era devotada a N. S.ª da Conceição e foi instituída, em 1662, por Rui Dias de Aguiar e sua mulher, Leonor de Ornelas Andrade Magalhães. Igualmente por esses anos, o solar terá tido obras, no final do corpo principal, a nascente, com a porta de moldura boleada no andar térreo articulada com a janela superior através de uma moldura global de cantaria vermelha de Cabo Girão, muito pouco comum na arquitetura regional. Esta janela parece ter sido aquela onde se encontrava D. Mécia, que deu nome ao solar, quando, a 7 de março de 1695, foi atingida por um tiro disparado por um franciscano que, na cerca do convento a par do solar, ao tentar matar um francelho que estava pousado numa árvore, matou a proprietária, como regista o padre-cura da sé, Francisco Bettencourt de Sá (ARM, Sé, Óbitos, 9, fl. 24). Mécia de Vasconcelos, herdeira do solar, casara a 1 de janeiro de 1666 com Manuel Ferreira Drumond, de quem teve larga geração, mas o desastre ocorrido em 1695 foi objeto de inúmeras conjeturas, dando até depois origem a romances. [caption id="attachment_4548" align="alignright" width="300"] Solar de D. Mécia, actualmente, reabilitado para a sede da ACIF.[/caption] O solar, entre 1834 e 1848, foi residência do padre anglicano Richard Thomas Lowe (1802-1874), que, para além de notável botânico, foi capelão da igreja ritualista; por isso, nos anos seguintes, a propriedade foi sede daquela corrente dissidente da igreja anglicana. Mais tarde, de 1984 a 1999, o destino do solar de D. Mécia ocupou muitas páginas na comunicação social regional e nacional, começando naquele último ano a ser reabilitado para sede da ACIF. Nas encostas do Funchal, ainda sobreviveram alguns exemplares de solares similares, do séc. XVII, levantados com base em capelas rurais e propriedades agrícolas (Arquitetura rural), posteriormente transformados em residência pontual dos instituidores e, com o tempo, em residência permanente dos proprietários subsequentes. Um desses casos envolve a propriedade de Duarte Mendes de Vasconcelos (c. 1500-1554), que possuía um moinho de açúcar sobre a ribeira de Santa Luzia (FRUTUOSO, 1968, 110), segundo filho de Joanne Mendes de Vasconcelos e neto de Helena Gonçalves da Câmara, filha de Zarco que, no fim da vida, instituiu o morgadio dos Reis Magos no limite da freguesia do Monte. Duarte Mendes de Vasconcelos já havia construído aí uma residência temporária, provavelmente para, no último ano de vida, em 1554, fundar no local a sede do morgadio que instituiu na freguesia do Monte e na capela dos Santos Reis Magos. A residência anexa foi depois ampliada, nos finais desse século ou inícios do seguinte, com um bloco residencial de três pisos e, muito presumivelmente, terraço sobre a cidade do Funchal, dada a fantástica vista do lugar. A residência ainda veio a ser ampliada, nesse séc. XVII, porventura quando o bloco inicial foi dotado de um complexo de cozinhas e importante chaminé, que, curiosamente, ficaram depois centrais no conjunto do edificado, pois em Setecentos ele cresceu para sul, com mais um corpo, e para norte, com outro, em seguida dotado de latadas e importante jardim. O conjunto impõe-se na paisagem como um quase “castelo roqueiro” (SILVA e MENEZES, 1998, III, 170), tornando-se num dos mais bonitos solares da área do Funchal e que, já nos inícios do séc. XVIII e quando era administrado por Jorge Correia de Vasconcelos, era uma nobre quinta (NORONHA, 1996, 194). Objeto de um muito especial cuidado dos seus proprietários dos sécs. XIX e XX, a família Baltasar Gonçalves, chegou aos nossos dias ainda com todas as janelas ao gosto de Seiscentos e Setecentos, com as vidraças sobrepostas às portadas, pormenor cada vez mais raro na ilha da Madeira. Sobre o bairro de Santa Maria também levantou residência temporária o comerciante italiano Simão Acciauoli (c. 1470-1544). A propriedade, herdada depois pelo seu filho, o “nobre” Zenóbio Acciauoli (c. 1530-1598), como escreveu Gaspar Frutuoso (1968, 110-112, 338, 363 e 383), foi dotada de uma capela de N. S.ª da Natividade ou N. S.ª do Faial, em 1582. O templo, de pequenas dimensões, possui planta centralizada, em cruz grega, única na ilha, sendo coberta por falsas abóbadas e pináculos a rematar os cunhais. A cobertura ainda é interior às empenas, correndo as águas por caleira interior e gárgulas em cerâmica. A entrada é feita por um largo alpendre, por certo muito posterior, existindo inscrição latina sobre a porta com a data da fundação. O chão interior é coberto por azulejos monocromáticos, muito provavelmente portugueses e da época de construção da capela ou dos primeiros anos do séc. XVII. O conjunto de arquitetura residencial vernácula e maneirista é composto por vários corpos articulados, de diferentes épocas, e por uma torre sobrelevada, com fachadas rematadas, na sua quase totalidade, em beiral duplo. A fachada principal apresenta vãos sobrepostos, sendo os do andar nobre com janelas de sacada à face, encimadas por cornija, seguindo a linguagem maneirista, mas possuindo vãos de modinatura oitocentista nessa e noutras fachadas. Apresenta, para poente, um corpo mais recente, correspondente à zona de serviços e cozinha, com monumental chaminé e forno visível exteriormente. O conjunto residência e capela integra-se numa quinta madeirense organizada em socalcos, serpenteada por caminhos empedrados a calhau rolado, formando desenhos geométricos, delimitados por muros, integrando jardins, dentro da tradição romântica insular. Do importante conjunto de arquitetura civil levantado no Funchal por esta época, do qual faz eco as Saudades da Terra, com largas referências a importantes paços, com salas de jogo da péla e amplos jardins, infelizmente e face à pressão urbanística dos séculos seguintes, poucos elementos chegaram aos nossos dias. As residências dos proprietários acima citados, aliás, de parentes seus, situavam-se na cidade, escrevendo Gaspar Frutuoso que na atual R. dos Ferreiros morava o “o generoso e rico” Zenóbio Acciauoli, que casara com a filha de Duarte Mendes de Vasconcelos, numa casa que ocupava todo o quarteirão, entre a atual R. do Bettencourt e a Trav. do Forno, onde tinha, inclusivamente, engenho de açúcar. Mais acima, antes da capela de S. Bartolomeu, onde hoje se levanta o Ateneu, refere o mesmo cronista que morava a viúva de Duarte Mendes de Vasconcelos, embora a denomine “Dona Maria”, quando se chamava Joana Rodrigues Mondragão, tendo falecido em 1598. A viúva vivia em “sumptuosas casas, dentro de uma cerca bem murada”, onde tinha um engenho e casas de purgar açúcar (FRUTUOSO, 1968, 111-113). Na R. do Sabão vivia o alferes-mor e escritor Tristão Gomes de Castro (1539-1611), neto de Bárbaro Gomes (c. 1480-1544), que fora vedor da sé do Funchal, numas casas ricas de dois sobrados, com poço dentro, jardim e portas de serventia; herdara importante fortuna do pai, no Peru, como também refere Frutuoso, sendo inclusivamente a rua também designada por R. do Peru, mas de que nada deve ter chegado até nós. Nessa área, mas com serventia para a outra rua, ficavam as casas de João Esmeraldo, que passaram à história com a fama de terem sido também residência do aventureiro Cristóvão Colombo, mas de que quase só ficaram as fotografias. Todos os elementos da arquitetura civil manuelina e maneirista do centro da cidade foram, pois, sucessivamente reconstruídos. Atribulada foi também a vida e o destino da chamada “Casa dos Cônsules”, uma das poucas construções senhoriais madeirenses que se assume barroca. O enorme edifício, considerando a escala da cidade, deve ter sido mandado levantar pela família do tenente-general Inácio da Câmara Leme (1630-1694), que morava naquela área, perto da déc. de 40 do séc. XVIII, embora mantivesse e inclusivamente tivesse reconstruído a chamada Qt. do Leme, a Santo António. Não possuímos, no entanto, qualquer documento sobre o início desta edificação, datando a primeira referência de cerca de 20 anos depois, quando, por volta de 1760, era sede dos consulados de França e de Inglaterra, daí lhe advindo o nome, sendo hoje Tribunal Administrativo e Tribunal de Primeira Instância do Funchal. A fachada à R. da Conceição apresenta portal simples, maneirista, mas de largo entablamento, com vivo relevado central e grande cornija de remate, sendo ladeado por óculos quadrilobados. O edifício possui três corpos aparentes com três pisos, dois ladeando o portal, de três janelas cada, e outro para sul, somente de duas janelas, que deve ter correspondido a uma área de serviços e onde se situava a capela interior, da qual também não conseguimos localizar documentação. O andar nobre apresenta janelas de molduras de filete exterior relevado, larga varanda de sacada “de barriga”, que entretanto perdeu a grade, sendo as janelas rematadas por frontão triangular, mas de linhas arqueadas e, superiormente, por pelouro. As janelas do andar intermédio de serviços apresentam lintel trilobado e parapeito saliente, com o pormenor interessante de se não articularem diretamente com a sacada superior, como acontece na maioria dos edifícios congéneres desta época. Parece, assim, datar de entre os finais do séc. XVII e os inícios do XVIII a definição dos pisos térreos das principais residências dos proprietários terra-tenentes, incluindo os padres da Companhia de Jesus, especialmente dedicados à arrecadação de géneros e de pipas de vinho, dotados de óculos de arejamento gradeados, muitas vezes de recorte quadrilobado. A particularidade, provavelmente, de servirem de armazenamento ao vinho, definiu uma tipologia muito específica de sistemas de largas arcarias de cantaria, mas nascendo quase ao nível do solo, não assentes em impostas, que também conhecemos pontualmente nos Açores e nas Canárias, mas que quase desconhecemos no continente. [caption id="attachment_4569" align="alignleft" width="296"] Fachada Frontal do Quinta do Leme.[/caption] A configuração do solar urbano barroco e rococó aparenta definir-se nos inícios do séc. XVIII, como teria acontecido na reconstrução da antiga casa senhorial dos Leme, na freguesia de Santo António do Funchal. O morgadio foi instituído por Pedro de Leme, em 1550, com base numa capela dedicada ao mártir S. Filipe, cujo dia comemorativo é o mesmo de Santiago Menor, padroeiro do Funchal: o dia 1.º de maio. A capela já existia em 1536, mandada construir por António de Leme, e foi reedificada em 1654 pelo acima mencionado tenente-general Inácio da Câmara Leme. Todo o conjunto foi reconstruído em 1752, em virtude do estado de grande ruína em que o deixara o terramoto de 1748 (SILVA e MENEZES, 1998, III, 170). O solar da Qt. do Leme implanta-se em terreno sobrelevado, com dois corpos e capela no corpo mais baixo, com dois pisos, as janelas do piso nobre sem varanda de sacada, mas com cornija de balanço, parecendo terem recuperado molduras da construção de 1654, como acontece com o portal colocado a nascente. A capela insere-se a poente deste corpo e apresenta um portal barroco com pequenas aletas laterais e cornija de balanço sobre o qual assenta cartela com as armas dos Leme, articulando-se com a janela superior. [caption id="attachment_4565" align="alignright" width="287"] Pormenor do Portal Barroco, Quinta do Leme.[/caption] O edifício possui um segundo corpo mais elevado e adossado a norte, com a fachada para nascente, com duas altas janelas de sacada no andar nobre e mais um piso com janela à face no corpo posterior. A partir de 1740, em princípio, e mais especificamente de 1750, quando se levanta o novo bloco do paço episcopal do Funchal, definiu-se um “modelo” de solar urbano de fachada de três pisos, com o térreo compreendendo um portal de aparato, embora discreto e quase sempre sem elementos heráldicos, ladeado por óculos quadrilobados. O acesso ao edifício é feito através de átrio, por vezes calcetado com calhau rolado, formando ou não desenhos, sendo o acesso ao andar superior feito por escadas. O piso intermédio é ocupado pelas dependências de serviços e o piso superior, andar nobre, possui janelas de sacada com grades de ferro, mais ou menos trabalhadas, e remate por cornija com balanço; o andar intermédio utiliza a sacada do andar superior como balanço. O interessante deste modelo é a ocupação do piso intermédio com as dependências de serviços, que no espaço nacional ficam geralmente no andar superior, denotando que no continente tal se processou por fases, enquanto no Funchal foi feito de raiz. Este tipo de prédio senhorial pode ser observado em quase todas as principais artérias da baixa da cidade, desde a R. da Carreira até à R. do Surdo, R. de São Pedro, R. do Castanheiro, R. das Mercês, R. dos Ferreiros, etc., com mais ou menos variantes. Algumas estruturas podem ser simplificadas, como a pequena residência senhorial da R. das Mercês, logo antes do atual Colégio da Apresentação, onde, em vez de óculos, aparecem janelas gradeadas, uma delas articulada com a porta de entrada, ou podem também ser mais complexas, como a grande residência hoje ocupada pela Fundação Livraria Esperança, na R. dos Ferreiros, onde viveu Isabel Maria de Sá Acciauoli, mãe do coronel Luís Vicente e do primeiro conde de Carvalhal, propriedade que foi depois domicílio do Cón. Guilherme Allen, nos inícios do séc. XIX. Algumas destas residências quase parecem reproduções do paço episcopal, como duas ou três da R. da Carreira, em escala mais reduzida, claro, indiciando poderem ter seguido projetos do mestre das obras reais, Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781) (Martins, Domingos Rodrigues). Outras, no entanto, assumem projeto independente, como a antiga residência da família Sauvaire da Câmara, na R. da Mouraria, com o corpo central torreado e de janelas totalmente articuladas, entre si e com o portal, sem andar de serviço aparente na fachada. Esta casa senhorial assume também o pormenor das sacadas das varandas do andar nobre não se articularem totalmente com as janelas e portas do piso térreo, mantendo um espelho intermédio de alvenaria pintada. Os solares rurais, pela costa sul da ilha, apresentam-se geralmente com dois pisos, não havendo, assim, andares de serviço intermédios, salvo em raras exceções, como o caso do arruinado solar do Agrela, na praia dos Reis Magos, no Caniço. [caption id="attachment_4461" align="alignleft" width="263"] Ruínas do Solar do Agrela.[/caption] Esta construção, de entre os inícios aos meados do séc. XVIII, apresenta inusitada volumetria e pujança, com o portal e as janelas dos dois andares superiores a articularem-se entre si na fachada sul, mau grado a degradação geral do conjunto, tendo já ruído, inclusivamente, um dos blocos edificados. Estes edifícios rurais incluem, por vezes, capela integrada à face da fachada, como acontece no pequeno solar dos Remédios, no sítio do Moreno, em Santa Cruz, com capela fundada pelo Cón. Manuel Ferreira Teixeira Calado, mas como uma ermida, ou seja, uma construção isolada e num lugar ermo. Pelos sécs. XIX e XX, foi levantado à sua volta o que hoje se denomina solar dos Remédios, integrado nas propriedades da família do Dr. Remígio Spínola Barreto, herdeiro do morgado de São Gil. [caption id="attachment_4458" align="alignright" width="200"] Solar do Agrela[/caption] Não há uma definição concreta, assim, para o solar rural madeirense, embora grande parte apresente uma larga fachada corrida na paisagem, servindo de referência visual, mas, por vezes, tal quase não acontece, passando a edificação mais ou menos despercebida, como sucede com o pequeno solar da Referta, no Porto da Cruz. A construção da capela foi determinada pelo Cap. Manuel Moniz Teles de Meneses, em 1710, integrada no morgadio instituído pelo mesmo capitão, na casa da Alagoa, da mesma freguesia, que depois se chamou morgadio Torresão. A residência é mínima, quase só com um quarto e três janelas, podendo datar da reforma da capela ocorrida em 1770, como consta na sua fachada, altura em que se teria construído o pequeno anexo com forno. [caption id="attachment_4326" align="alignleft" width="300"] Casa das Mudas - BF[/caption] Outras construções, como o solar do Aposento, em Ponta Delgada, construído entre 1750 e 1800, são bem mais complexas, com vários corpos alinhados, um dos quais, mais ou menos central e torreado, num total de quatro, e com anexos de cozinhas em corpo posterior. Ao contrário, a antiga casa das Mudas, na Calheta, sede do vetusto morgadio de Vale dos Amores, situado no sítio da Vargem, Estrela, é uma edificação corrida, com janelas de varanda à face, entrada para o andar nobre por escada de dois lanços, a poente, e a área de serviços com o forno saliente, a nascente. O morgadio pertencia a Duarte de Brito e a Joana Cabral, neta de Zarco, nos finais do séc. XV e inícios do XVI, mas a edificação que chegou aos nossos dias é posterior a 1700. A arquitetura senhorial funchalense é sumariamente descrita pela atenta inglesa Isabella de França (1795-1880), no Journal da sua visita à Madeira, em 1853. Na retribuição das visitas de cumprimentos, a autora relata a maneira de se ser recebido no Funchal, com as expressões então em voga e, de uma forma geral, as habitações senhoriais, quase sempre de pessoas aparentadas com o marido, o morgado José Henrique de França (1802-1886), sete anos mais novo do que ela e já nascido em Londres. A sua apreciação, no entanto, enferma do olhar neoclássico britânico, em princípio, adquirido em casa do pai, o arquiteto Aaron Henry Hurst, de que conhecemos atividade entre 1778 e 1796. Nesse quadro, as melhores casas, se bem que muitas delas fossem bastante grandes, “nada oferecem como arquitetura”; uma ou outra possuíam uma entrada bonita “e pouco mais”. Descreve Isabella que as portas das grandes casas estavam normalmente abertas, deitando para um pátio interior, geralmente calçado, onde havia uma escadaria de pedra para acesso aos andares superiores. Existia, em geral, um batente ou uma campainha, mas também havia casas em que tal não acontecia, sendo então hábito bater com uma bengala ou com uma pedra na porta superior. Descreve a autora que, depois de insistir várias vezes, se ouvia “uma voz vinda de longe, do interior, a perguntar num queixume indescritível: Quem é?”. Antigamente respondia-se “Ave Maria puríssima”, ao que a voz replicava “Sem pecado concebida”, depois começou-se a utilizar como resposta: “Gente de paz”, mas então já se perguntava simplesmente: “A Sr.ª está em casa?”. Refere então que aparecia “quase sempre um exemplar curioso: ou uma mulher horrível […], ou um homem só com camisa e calças, de botas ou descalço, e com a barba por fazer desde o último domingo de manhã” (FRANÇA, 1970, 66). Interiormente, no entanto, tudo mudava de figura. A escadaria de pedra terminava no primeiro patamar, de onde se ramificavam corredores para a cozinha e outras dependências melhores. O segundo lanço era de madeira, quase nunca atapetado e com uma cancela no final. Os melhores quartos situavam-se, geralmente, no segundo andar. Ao chegar ali, entrava-se logo para a sala ou passava-se através de dois e três salões para alcançar a sala de visitas. Estes compartimentos eram altos, com tetos de abóbada lindamente estucados. As janelas e as portas eram largas e havia sempre uma bandeira envidraçada por cima destas últimas, o que facilitava a iluminação. As paredes ora eram forradas de bom papel, ora eram pintadas de cores alegres e suaves, com uma guarnição de fantasia. Alcatifas e cortinas, do melhor que se produzia em Inglaterra. O mobiliário era também muito bonito e, com frequência, de fabrico local. As boas salas de visitas do Funchal não diferiam das salas mais aristocráticas de Londres, exceto em não ter fogão e fazerem um extraordinário contraste com os degraus nus e com os criados semidespidos. Mas, depois deste elogio, Isabella de França não resiste em declarar: “raros serão os quadros, e os que existem são tão maus que mais valia retirá-los” (id., 65-67). Bibliog.: manuscrita: ARM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombo 2, fls. 31-31v; ibid., Sé, Óbitos, 9; ANTT, Corpo Cronológico, Fragmentos, 1-7; BNB, Cartografia, 1090203, Mateus Fernandes, Planta da Cidade do Funchal, 1567-1570; impressa: ARAGÃO, António, Para a História do Funchal: Pequenos Passos da sua Memória, 2.ª ed. revista e aumentada, Funchal, DRAC, 1987; id. (coord. e notas), A Madeira vista por Estrangeiros, Funchal, DRAC, 1982; id., O Museu da Quinta das Cruzes, Funchal, JGDAF, 1970; CARITA, Rui, Colégio dos Jesuítas do Funchal: Memória Histórica, Funchal, Associação Académica da UMa, 2013; id., História do Funchal, Funchal, Associação Académica da UMa, 2013; id., História da Madeira, vol. 1, 2.ª ed. revista e atualizada, Funchal, SRE, reedição, 1999; id., "O Solar de D. Mecia", Islenha, n.º 25, jul.-dez. 1999, pp. 59-65; id., A Arquitectura Militar na Madeira nos Séculos XV a XVII, Lisboa e Funchal, [Oficinas Gráficas do Exército], 1998; id., História da Madeira, vol. 3, Funchal, SRE, 1991; id., A Capela de Nossa Senhora dos Remédios em Santa Cruz da Ilha da Madeira (1690), Câmara Municipal de Santa Cruz, 1990; id., O Regimento de Fortificação de D. Sebastião (1572) e a Carta da Madeira de Bartolomeu João (1654), Funchal, Centro de Apoio Universitário, SRE, 1984; id., Introdução à Arquitectura Militar na Madeira. A Fortaleza-Palácio de São Lourenço, Funchal, DRAC, 1981; COSTA, José Pereira da, Vereações da Câmara Municipal do Funchal. Século XV, CEHA, Funchal, 1995; FRANÇA, Isabella de, Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal, 1853-1854, Funchal, JGDAF, 1970; FRUTUOSO, Gaspar, Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1968; LEITE, Jerónimo Dias, Descobrimento da Ilha da Madeira, Lisboa, Alfa, 1989; id., História do Descobrimento da Ilha da Madeira e Discurso da Vida e Feitos dos Capitães da Dita Ilha, Coimbra, FL, 1949; MESTRE, Victor, Arquitectura Popular da Madeira, Lisboa, Argumentum, 2002; NORONHA, Henrique Henriques de, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do Funchal, 1722, Funchal, CEHA, 1996; SILVA, Fernando Augusto da, A Lombada dos Esmeraldos na Ilha da Madeira, Funchal, F. A. Silva, 1933; SILVA, Fernando Augusto da, e MENEZES, Carlos de Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., ed. fac-simile, Funchal, SRTC, 1998; SOUSA, João José Abreu de, “D. Isabel de Abreu a António Gonçalves da Câmara. Mito, Poesia e História”, Islenha, n.º 21, jul.-dez. 1997, 59-62; TRINDADE, Ana Cristina Machado, ‘Plantar Nova Christandade’: um Desígnio Jacobeu para a Diocese do Funchal. D. Frei Manuel Coutinho, 1725-1741, Funchal, DRAC, 2012; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, SRTC, DRAC, Funchal, 2000; id., “O Palácio da Rua do Esmeraldo: Algumas Achegas para a sua História”, Islenha, n.º 11, 1992, pp. 104-112. Rui Carita (atualizado a 27.02.2016)

almeida, paulo dias de

Filho de Jacinto Dias de Almeida e de Teresa da Fonseca, também referida como Teresa de Gouveia, terá nascido em Vinhó, por volta de 1778, desconhecendo-se a data da sua entrada no exército; faleceu em 1832. Paulo Dias de Almeida chegou ao Funchal nos últimos meses de 1804, reforçando a equipa do brigadeiro de origem francesa Reinaldo Oudinot (c. 1747-1807), que aportara no Funchal a 19 de fevereiro de 1804, acompanhado de um ajudante, o capitão Feliciano António de Matos e Carvalho. A equipa vinha dirigir os trabalhos de encanamento das ribeiras, cujos muros iniciais tinham sido parcialmente destruídos com a aluvião de 9 de outubro de 1803, que provocou, somente na baixa da cidade, o afogamento de cerca de 200 pessoas, calculando-se em 600 o número de vítimas em toda a ilha. A ordem de colocação de Paulo Dias de Almeida na equipa de Oudinot tem a data de 16 de agosto de 1804 (AHU, Madeira, 1526), pelo que aquele deveria estar no Funchal em finais de setembro ou inícios de outubro. Foi então colocado, para efeitos de pagamento, com o posto de 1.º tenente, na 2.ª companhia do corpo de artilharia da ilha da Madeira. O conjunto de trabalhos desenvolvidos por esta equipa, nem sempre em completa sintonia, foi verdadeiramente notável e marcou durante muitos anos a vida da Madeira. O primeiro foi o levantamento da planta do Funchal com os estragos efetuados pela aluvião, a melhor até àquela data executada na Madeira (Cartografia) (IGP, cota 539); foi enviada para Lisboa a 9 de outubro de 1804 e teve depois a sua autoria disputada pelos ajudantes do brigadeiro. O mesmo se passou com a carta seguinte do Funchal, datada de setembro de 1805 (ib., cota 540), acompanhada de “explicações”, com o projeto de encanamento das ribeiras e com as obras já efetuadas. Fora assinada pelo capitão Feliciano António de Matos, como autor, facto que, seis dias depois, Paulo Dias de Almeida contestou, escrevendo diretamente ao secretário de Estado, em Lisboa, a reivindicar a autoria. A partir de então, as principais plantas produzidas foram de Paulo Dias de Almeida, para o que viria a contar com vários ajudantes, primeiro o capitão Francisco Alexandrino e depois Vicente de Paula Teixeira (c. 1790-c. 1850), figura incontornável das obras públicas do Funchal dos meados de Oitocentos. Nesse espaço de tempo e até ao falecimento do brigadeiro Oudinot, em 1807, Paulo Dias de Almeida levantou as fortalezas mais importantes da cidade do Funchal, nomeadamente, S. Lourenço, em abril de 1805, como “Seg.º Tenente de Artilharia com exercício de Ajudante do brigadeiro Oudinot” (DSIE, 1316-2/22/109) e as plantas e perfis de Santiago (ib., 1317-2/22/109) e do castelo do Pico (ib., 133-3/44/4), no mesmo ano. Ainda em 1805, executou as plantas da nova bateria das Fontes (AHU, Madeira, 1580-1582) e, em 1806, dos lugares de Santa Cruz e de Machico, existindo de todos esses trabalhos abundante documentação, mas não as plantas em causa, de que só conhecemos versões posteriores, de 1828. O brigadeiro Oudinot faleceu no Funchal, a 11 de fevereiro de 1807 e, logo no dia seguinte, o governador designou o oficial mais graduado para ocupar o lugar, ou seja, o capitão Feliciano, cuja nomeação foi ratificada pelo príncipe regente, a 14 de abril seguinte, ficando Paulo Dias de Almeida como “ajudante e cooperador” (AHM, Processos..., cx. 182, proc. 659). O tenente Almeida estaria em Machico e nunca perdoaria a situação, não existindo qualquer referência sua ao nome do seu novo superior nos anos seguintes, salvo na escrituração de vencimentos. No final de 1808, a 24 de dezembro, de forma inesperada para os locais, a ilha da Madeira foi ocupada por forças inglesas que determinaram a entrega do governo, arvorando a bandeira inglesa em todas as fortificações do Funchal e determinando aos quadros superiores um juramento de fidelidade a “Sua Majestade Britânica”. O tenente Paulo Dias de Almeida terá sido o único oficial que não quis jurar fidelidade à nação britânica, pedindo a demissão do serviço na ilha e uma licença para se ausentar para o Brasil, para onde tinha seguido a corte portuguesa. A sua saída do Funchal deve ter ocorrido nos finais desse mês de dezembro ou em janeiro do ano seguinte, solicitando depois que tal lhe fosse averbado nos documentos, pois que no Livro Mestre do batalhão, assinado pelo major general William Carr Beresford (Beresford, William Carr), o oficial aparecia somente como estando de “licença” no Rio de Janeiro e não como tendo pedido a demissão (ibid.). Passou, entretanto, por Pernambuco e Olinda, de que levantou a planta, assinando-a como “sargento de mar-e-guerra” (DSIE, 4588-3/88/52), tal como depois levantou a planta do Rio de Janeiro, cuja localização atual desconhecemos. Na corte do Brasil, ofereceu-se para executar a planta geral da ilha da Madeira, devendo ter dado como garantia o trabalho feito em Pernambuco e no Rio de Janeiro. Paulo Dias de Almeida voltou ao Funchal em meados de 1808, promovido a capitão agregado do batalhão de artilharia da Madeira e encarregado da “comissão da carta geral” (AHM, Processos..., cx. 182, proc. 659). As relações com os comandos ingleses foram muito difíceis, uma vez que estes queriam ter acesso permanente aos trabalhos de levantamento efetuados, tentando o capitão Almeida escusar-se a fornecê-los; porém, muitos chegaram às mãos dos ingleses através de outros oficiais. Para a corte do Rio de Janeiro, foi enviando partes dos levantamentos que ia realizando, assim como, localmente, foi desenvolvendo outros trabalhos, p. ex., em setembro de 1813, o projeto de uma estrada desde o Monte até Santana e, no ano seguinte, a nova fonte na área das Angústias e dos Ilhéus. Entre os finais de 1816 e os inícios de 1817, trabalhou no encanamento das águas para o hospital da SCM e elaborou os estudos para o novo cemitério nas Angústias. Em setembro de 1817, fez o projeto do cais para o desembarque da futura imperatriz Leopoldina, quase em frente à fortaleza e Palácio de S. Lourenço, nas décadas seguintes passado a pedra como cais regional do Funchal. No final do ano, perante o pedido de reforma de Feliciano de Matos, deslocou-se ao Rio de Janeiro para entregar pessoalmente ao príncipe regente a carta geral da Madeira, com mais de 6 m de largura (IGP, cota 524), acompanhada de uma pequena brochura encadernada com o título Descrição da Ilha da Madeira (BNP, Res., cód. 6705). A Descrição da Ilha da Madeira, que Paulo Dias de Almeida assinou como sargento-mor do Real Corpo de Engenheiros, que ainda não era, e da qual se conhecem várias versões, é um elemento de importância capital para a história da Madeira, com uma interessante e quase pioneira descrição orográfica da ilha, das cidades, vilas e lugares, da divisão administrativa, das praças militares e respetivas guarnições e da “Estrada Central” que o capitão Almeida planeara. O conjunto é acompanhado da planta do Funchal aquando da aluvião de 1803 e do desenho das principais fortificações e edifícios (p. ex., o hospital da SCM e o cemitério das Angústias), assim como dos uniformes das várias forças militares. Como pormenor, ainda aparecem duas aguarelas de camponeses da Camacha e da Ponta do Pargo, muito semelhantes ao conjunto editado em Londres poucos anos depois (1821), por Rodolfo Ackermann, e cujos desenhos originais são dados como feitos por William Combe, que, embora escritor e viajante, não era desenhador. Existem versões parciais do texto de Almeida no AHM (3.ª Div,. 9.ª Sec., Ex. 104-3), na BUM (ms. 518) e no ARM (Arquivos particulares, doação Rui Carita). Dos desenhos e plantas há também registos no AHM e na DIE. Existia um exemplar completo no comando militar da Madeira, mas encontrava-se perdido desde que fora enviado para Lisboa, na déc. de 50 do séc. XX; todavia, veio a aparecer no final da centúria, em leilão, sendo adquirido por um colecionador madeirense que recentemente o vendeu ao ARM (aquisição de 2010). Na conturbada época das ocupações inglesas ainda se tentou empreender uma série de obras na área do Funchal, geralmente entregues a Vicente de Paula Teixeira. Este técnico apareceu então com o cargo de capitão de engenharia, embora nunca tenha tido qualquer formação nessa área, salvo a que usufruíra ao ter trabalhado com o pai, o entalhador Estêvão Teixeira de Nóbrega (1746-1820), que ocupara, entretanto, o lugar de mestre das obras reais e, igualmente, de capitão dos engenheiros, posto pelo qual era pago. As relações de Vicente de Paula e Paulo Dias de Almeida terão sido bastante estreitas, podendo muitos dos trabalhos do sargento-mor e depois tenente-coronel terem sido executados pelo candidato a capitão de engenharia. Vicente de Paula Teixeira, tal como Paulo Dias de Almeida, era um liberal convicto, tendo sido essa a razão, em princípio, para uma certa animosidade por parte de alguns governadores, membros da antiga aristocracia. O perfil de técnico habilitado que lhe conhecemos, chefiando ao longo de grande parte da primeira metade do século as obras municipais, não se enquadra no papel, inclusivamente, de oportunista e de “paisano”, de que se chegou a informar para Lisboa, quando pediu o lugar de capitão da praça das Fontes. Estavam em causa assuntos de formação militar, que de facto não possuía, embora não os técnicos, e não seria por acaso que o célebre Dr. João Francisco de Oliveira intercederia depois a seu favor, por carta de 31 de julho de 1823 (AHU, Madeira, 7004), mas tal não chegou para que viesse a ocupar efetivamente o lugar. Vicente de Paula Teixeira começou a trabalhar no Funchal com o capitão Paulo Dias de Almeida, que lhe teria uma estima muito especial, chegando a publicar referências elogiosas a seu respeito no Patriota Funchalense. Frequentara, entretanto, a aula de desenho e pintura do pintor Leonardo Joaquim da Rocha, assim como a aula de geometria do tenente André António Gonçalves. Gozaria, igualmente, do apoio dos liberais funchalenses, sendo nomeado, em 1822, pela primeira Câmara Constitucional do Funchal, então presidida pelo futuro conde do Carvalhal, como “arquiteto civil das obras públicas” da cidade. Paulo Dias de Almeida ainda trabalharia em 1823, numa nova planta do Funchal (SGL, 1-D-1) e em 1824, com o brigadeiro Raposo, fazendo levantamentos para o novo porto de acostagem da mesma cidade, a levantar em frente à fortaleza de Santiago (DSIE, 1304-2/22A), onde se gastariam largos contos de réis que o mar levaria, assim como para um novo porto para a baía da Abra, no Caniçal, que nunca passou de projeto. Nos anos seguintes, voltaria a levantar toda a costa, do Caniço a Santa Cruz, propondo melhoramentos nas várias pequenas fortificações, prevendo-se já futuros conflitos advindos do instável período liberal então vivido (ib., 3546-I-3-31-43). As alterações políticas dos anos subsequentes tiveram consequências desastrosas e, com a invasão absolutista das forças de D. Miguel, em agosto de 1828, o tenente-coronel Paulo Dias de Almeida foi preso e enviado para Lisboa na charrua Orestes. Recebeu, a 17 de maio de 1831, a pena de degredo por toda a vida para Moçambique, vindo a falecer aí um ano depois, a 4 de setembro. No Funchal, Vicente de Paula foi colocado em prisão, não voltando a ser referido como “capitão”; porém, foi reabilitado nos anos seguintes e terá ficado até ao fim dos seus dias à frente das obras camarárias da cidade. Sempre que houve reuniões importantes em S. Lourenço, como por ocasião do desastre da aluvião de 1842, Vicente de Paula Teixeira esteve presente, ao lado de engenheiros militares já com outra formação, ainda trabalhando como inspetor de obras públicas no governo de José Silvestre Ribeiro, devendo ter falecido entre os finais de 1849 e os inícios de 1850. Bibliog. manuscrita: AHM, Processos individuais, cx. 182, proc. 659, Paulo Dias de Almeida; ibid., 3.ª Div,. 9.ª Sec., Ex. 104, doc. 3, Descrição da Ilha da Madeira; AHU, Madeira, 1526, 1580-1582; ibid., 7004, 31 jul. 1823; ARM, Arquivos particulares, doação Rui Carita; BNP, Res., cód. 6705, Descrição da Ilha da Madeira, 1817; Biblioteca da UM, ms. 518; DSIE, GEAEM, 1304-2/22A; ibid., 1316-2/22/109; ibid., 1317-2/22/109; ibid., 3546-I-3-31-43; ibid., 4588-3/88/52; IGP, cota 524, Planta da Madeira, 1817; ibid., 539, Reinaldo Oudinot, Matos de Carvalho e Paulo Dias de Almeida, Planta da Cidade do Funchal: Capital da Ilha da Madeira em Que se Representão as Ruinas Causadas pelo Aluvião de 9 de Outubro de 1803; ibid., cota 540, Reinaldo Oudinot, Mattos de Carvalho e Paulo Dias de Almeida, Planta da Cidade do Funchal, 1805; SGL, 1-D-1; impressa: CARITA, Rui, Arquitectura Militar na Madeira dos Século. XVI a XIX, Catálogo da exposição das Comemorações Nacionais do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, Funchal, Zona Militar da Madeira, 1981; id., Arquitectura Militar na Madeira. Séculos XVI a XIX, Lisboa, FCG, 1982; id., Paulo Dias de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira, Funchal, DRAC, 1982; id., História da Madeira, vols. 6 e 7, Funchal, SRE, 2003 e 2008; CARITA, Rui et al., Conhecimento e Definição do Território: Os Engenheiros Militares (Séculos XVII-XIX), Estado Maior do Exército, Lisboa, 2003; MARTINS, Carlos Henrique de Moura Rodrigues, O Programa de Obras Públicas para o Território Continental, 1789-1809, 2 vols., Dissertação de Doutoramento em Arquitetura apresentada à UC, texto policopiado, 2014; O Patriota Funchalense, Funchal, na Typographia do “Patriota”, aditamento ao n.º 22/24, 15 e 22 set. 1821; RODRIGUES, Paulo Miguel, A Política e as Questões Militares na Madeira: O Período das Guerras Napoleónicas, Funchal, CEHA, 1999; SANTOS, Rui, “Um Militar Mais Que Esquecido (Paulo Dias de Almeida)”, Jornal da Madeira, Funchal, 17 maio 1992. Rui Carita (atualizado a 07.07.2016)

alincourt, francisco de

Com a tomada de posse do governador João António de Sá Pereira (1719-1804), nos finais de 1766, iniciou-se de imediato a restruturação da área militar, levada a cabo pelo conde de Lippe, por cuja ordem o engenheiro Francisco de Alincourt foi enviado para o Funchal, conforme dec. de 6 de maio de 1767 (VITERBO, I, 1988, 267). Assim, em finais de 1767, foi para a Madeira como sargento-mor, com exercício de engenheiro, por um período previsto de seis anos e assentamento de praça na lista da 1.ª planta da corte, com 52$000 réis por mês de soldo dobrado. O engenheiro foi pago até agosto desse ano, com patente de capitão de infantaria e com dois meses de soldo adiantados, “a respeito de 52$000 réis por mês” a que, como sargento-mor tinha direito, devendo receber de 1 de novembro em diante (ANTT, Provedoria..., liv. 975, fls. 180v.-181). Francisco de Alincourt era filho de Luís José de Alincourt, natural da Flandres. Nasceu em Calais, em 1733, devendo ter vindo para Portugal com o pai, contratado para trabalhar na barra de Aveiro, em 1758, tendo o irmão Luís de Alincourt nascido já em Condeixa-a-Nova, em 1762. Desconhecemos quando Francisco de Alincourt ingressou no exército, mas sabemos que obteve a alta patente de sargento-mor a partir de Lisboa, a 11 de maio de 1767, dela tomando posse no Funchal a 10 de dezembro, datando o respetivo registo na Fazenda de 28 de janeiro de 1768. A sua principal obra foi a montagem da escola de fortificação do Funchal e os trabalhos para o levantamento da planta geral da ilha da Madeira (Cartografia; Fortes). Para o ajudar, chegou, em meados de 1768, Faustino Salustiano da Costa e Sá (c. 1745-c. 1820) (Costa e Sá, Faustino Salustiano da), discípulo extra numerário da Academia Militar da Corte (antiga Aula de Fortificação e Arquitetura Militar), que chegou ao Funchal com patente de ajudante de infantaria e exercício de engenheiro, com um soldo de 10$000 réis por mês (ibid., fls. 205v-206), o que demonstra a diferença hierárquica entre os dois engenheiros. Um dos primeiros trabalhos de que foram encarregados, curiosamente, foi o do planeamento da levada do Rabaçal. Assim, a 8 de outubro de 1768, receberam ordem para se deslocarem “em direitura” à vila da Calheta, onde deveriam contactar o Dr. Francisco Cristóvão de Ornelas e Vasconcelos, ou, na sua ausência, o juiz ordinário da vila, para os informar sobre a levada em causa, de que deveriam levantar a planta, cabendo-lhes também recolher dados sobre as propriedades dos bardos (ARM, Governo Civil, 526, fl. 41; ibid., 530, fl. 50). O assunto prendia-se com o aumento das terras de regadio na área da Calheta e Ponta do Pargo, tema que preocupava os governadores desde meados do século, mas que só na centúria seguinte seria resolvido pelos engenheiros militares António Pedro de Azevedo (1778-1889) e Manuel José Júlio Guerra (1801-1869). Com o intuito de recolher o material necessário para a montagem da Escola de Geometria e Trigonometria do Funchal, o sargento-mor Francisco de Alincourt deslocou-se a Lisboa, entre abril e julho de 1768, regressando à ilha com “12 jogos da tradução de Belidor” (ARM, Governo Civil, 530, fl. 78). O restante material veio depois com o ajudante Salustiano da Costa, por meio de um navio inglês, conforme se deu conta ao governador. Nessa embarcação inglesa, o Riotte, foram então duas agulhetas de prancheta, 100 picaretas, 100 enxadas, 68 padiolas, uma barraca de cúpula e uma cadeia para medições, com 20 braças, entre outros instrumentos (ibid., 526, fls. 29 e 37; ibid., 530, fl. 36), ainda se pedindo, em outubro desse ano, um teodolito (ibid., 530, fl. 70 v.). Em finais de outubro de 1768, o governador enviou para Lisboa notícia da abertura das aulas, para o que tinha mandado colocar editais, pois entre toda a tropa paga da ilha, tanto de infantaria como de artilharia, não encontrara mais de dois ou três “sujeitos” com aptidão e vontade de entrarem a aprender na “Aula de Engenharia”. Tinham, por isso, recrutado elementos civis, com cerca de 20 anos, que sabiam ler, escrever e contar, abrindo a aula com 14 ou 15 deles, examinados e matriculados na presença do próprio governador, que estava entusiasmado com a experiência (ibid., fls. 45-46). O governador informou depois para Lisboa como tinham decorrido as primeiras aulas, às quais tinha assistido, onde haviam sido dadas complicadas explicações pelo sargento-mor Francisco de Alincourt, que ninguém percebia, motivo por que o fez regressar aos trabalhos da planta da ilha, substituindo-o pelo ajudante Salustiano da Costa (ibid., fls. 7v-71). No dia 2 de novembro do ano seguinte já decorriam exames públicos, “na livraria do Colégio”, aos quais o governador também assistiu, remetendo-os depois para Lisboa e salientando o envio de dois desenhos à pena efetuados por alunos de apenas 13 anos de idade (ibid., fls. 121v-122). Os trabalhos de levantamento da planta da ilha da Madeira devem ter-se iniciado logo nos meados do ano de 1768 e, segundo as diretivas do governador António de Sá Pereira, devem ter começado na igreja de Santiago, no extremo da cidade do Funchal, em direção à ponta leste. Para isso, foi determinado o fornecimento de “aposentaria e víveres” aos engenheiros na forma de casa, cama, luz, sal e lenha (ibid., fls. 43v-46). Por ordem do governador, datada de 7 de junho desse ano e enviada da quinta do Pico, deveriam igualmente ser “satisfeitas cavalgaduras” aos executantes, o que levantou algumas dúvidas (ANTT, Provedoria..., liv. 976, fl. 207v). Foi então alvitrado pelo próprio governador o fornecimento de duas cavalgaduras ao sargento-mor e ao ajudante, as quais deveriam ser garantidas ao longo de todos os dias que durasse a diligência de que foram encarregados; note-se que houve necessidade de reunir a vereação, pois não havia uma taxa determinada pela câmara para aquele efeito. A equipa foi reforçada com dois homens para ajudar na medição dos terrenos, alvitrando o governador o pagamento de 300 réis por dia a cada um (ibid., fls. 215, 221v-222v). Em outubro, estava já concluída a “planta provisional” da serra da Encumeada e “suas pertenças” (ibid., fl. 215). Os trabalhos continuavam, em meados de 1769 e 1770, quando foi solicitado o aumento para 400 réis aos dois homens que acompanhavam o sargento-mor Alincourt no levantamento da carta da ilha e o pagamento de duas cavalgaduras a Salustiano da Costa, uma para ele e outra para os instrumentos que levava (ibid., fls. 221v-222v). Os trabalhos continuaram em 1771, então já só a cargo de Salustiano, dada a prisão do sargento-mor, em dezembro do ano anterior. Alincourt envolvera-se em várias irregularidades, desvio de fundos e falsificações, tentando inclusivamente fugir para Lisboa, pelo que o governador não teve outra hipótese senão mandá-lo prender. A ilha era propícia a certas irregularidades, mas parece que o engenheiro tinha ultrapassado em muito o que lhe fora atribuído. Conforme o governador expôs para Lisboa e de acordo com os autos levantados pelo corregedor Francisco Moreira de Matos, o sargento-mor tinha processado ilegalmente as férias dos jornaleiros que andaram nas obras da fortificação, assunto que não lhe pertencia, como referido, mas sim ao capitão Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781) (Martins, Domingos Rodrigues). No entanto, Alincourt pressionara o tesoureiro e capitão apontador António João Homem del Rei, dizendo ter ordens do governador para assim proceder, o que não era verdade. Instado sobre o seu procedimento, o sargento-mor comprometera-se a repor o que tinha tirado, confirmando assim ter havido desvios, dado que acrescentara dois nomes na lista dos operários das obras, Miguel Ferreira e Francisco Marques, que não existiam, e debitara nas mesmas contas as despesas efetuadas pelo mestre carpinteiro de origem alemã, Matias Guerelink, com uns “trastes que este lhe fez para ornato de sua casa”, cuja avaliação ficou na posse do capitão apontador António João Homem del Rei (ARM, Governo Civil, 526, fls. 67v-68v, 88v-89; ibid., 530, fls. 72-80; AHU, Madeira, 349-351). O sargento-mor Francisco de Alincourt, apesar de tudo, era um técnico altamente habilitado e, repondo as despesas debitadas ilegalmente, o governador ainda o perdoou, enviando ordem para Machico, onde o mesmo se encontrava, em abril de 1769, para se deslocar ao Porto Santo, a fim de desenhar as fortificações e levantar a carta da ilha. Saliente-se que as fortificações, de um modo geral, eram atribuição do engenheiro mestre das obras reais, então Domingos Rodrigues Martins, mas este encontrava-se impedido nas obras do colégio e da antiga igreja dos Jesuítas, pelo que, aliás, recebeu em agosto desse ano o pagamento dos dois anos anteriores de trabalho, embora somente 100.000 réis, quando o seu ordenado por dois anos, deveria ter sido o dobro. O engenheiro fez então, no Porto Santo, um trabalho excecional de inventariação e pesquisa, que apresentou com o título de Dissertação e que assinou como “cavaleiro professo na Ordem de Cristo, diretor das obras da Fortificação e lente da Real Academia”, a 9 de julho de 1769 (AHU, Madeira, 366). O trabalho topográfico do Porto Santo que deveria acompanhar aquela Dissertação foi continuado pelo ajudante, que assinaria a planta da mesma ilha uns anos depois, passando Alincourt para a planta da Madeira. Em março de 1770, o sargento-mor teve ordens para levantar a carta central da ilha; em abril, encontrava-se já levantada a planta da cidade do Funchal, “desde Santiago até à ribeira de São João”. Também em abril, existe referência a um outro trabalho, “a levada nova, que nasce no Pico Ruivo” (ARM, Governo Civil, 526, fls. 136v-137), tudo documentação iconográfica que não chegou aos nossos dias. O sargento-mor Francisco de Alincourt teria, entretanto, “por justos motivos do serviço de Sua Majestade”, ordem de prisão, com data de 1 de dezembro de 1770, por se ter envolvido nas lojas maçónicas do Funchal, sendo enviado para o continente e não voltando à Madeira (ibid., fl. 172; ANTT, Provedoria, liv. 974, fl. 69; ibid., liv. 975, fl. 101; ibid., liv. 976, fl. 69). Todavia, o entendimento dos “justos motivos”, em Lisboa, foi curiosamente diferente, tendo sido aí de imediato libertado por ordem do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras. Passou depois a trabalhar na área de Gibraltar, logo por volta de 1772, e também em Lisboa e Almada, nos anos seguintes. Durante a sua estadia na Madeira, Alincourt, muito provavelmente, terá abordado a possibilidade da continuação das obras do porto do Funchal, de que conhecemos um projeto de união dos dois ilhéus, datado de 1771, que pertenceu aos arquivos da marinha (VITERBO, 1988, I, 267), mas que passou depois para a antiga Junta de Investigação do Ultramar, só vindo a ser efetuado mais de cem anos depois. Dada a data da assinatura do projeto, ele foi, por certo, passado a limpo em Lisboa, pois já aí se encontrava Alincourt, ainda existindo nos arquivos da engenharia militar os desenhos preparatórios do mesmo. Entre outros trabalhos no continente, refira-se que, em 1780, o engenheiro levantava a planta das novas obras a serem feitas na fortaleza da Torre Velha de Almada, por ordem do duque de Lafões e para aprovação do general inspetor Guilherme Luís António de Vallere, projetos em que ainda estava envolvido em 1795. Parece não ter deixado descendência, ao contrário do irmão Luís de Alincourt, cujo filho, homónimo e igualmente engenheiro, deixou obra e descendência no Brasil. Era coronel de engenharia e tinha 81 anos de idade quando, em 9 de março de 1803, se lhe passou “certidão negativa” (ANTT, Registo de Mercês..., 12, fl. 174; ibid., Registo de certidões, 1, 139), vindo a falecer em 1816. Bibliog. manuscrita: AHU, Madeira, 336, 349-351; ANTT, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, livs. 974-976; ibid., Registo de Mercês da Chancelaria D. Maria I, 12; ibid., Registo de certidões, 1; ARM, Arquivos particulares, Coronel Nuno Homem Costa, Francisco de Alincourt e Faustino Salustiano da Costa, Planta da Ilha da Madeira, 1768 a 1771; ibid., Governo Civil, 526 e 530; DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar, Planta e Perfil do Ilheos com Seu Projeito de os Fichar, 1771, n.º 1309, 2-22A-109; IICT, Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, n.º 18, pasta 34, Pranta dos Dois Ilheos com Seu Projeito de os Fichar, 1771; ibid., Ilha do Porto Santo, cópia de 1776; impressa: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Portuguez, 17 vols., Lisboa, Coimbra, Imprensa Nacional, Imprensa da Universidade, 1896-1932; CARITA, Rui, História da Madeira, vols. 4 e 5, Funchal, SRE, 1996 e 1999; id., "A Madeira no Quadro da Restruturação Militar do Conde de Lippe", Nos 250 Anos da Chegada do Conde de Lippe a Portugal: Necessidade, Reformas e Consequências da Presença de Militares Estrangeiros no Exército Português: Actas do XXI Colóquio de História Militar, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2013, pp. 227-236; CARITA, Rui et al., Conhecimento e Definição do Território. Os Engenheiros Militares (Séculos XVII-XIX), [Lisboa], Estado-Maior do Exército, 2003; MARTINS, Carlos Henrique de Moura Rodrigues, O Programa de Obras Públicas para o Território Continental, 1789-1809: Intenção Política e Razão Técnica: O Porto do Douro e a Cidade do Porto, Dissertação de Doutoramento em Arquitetura apresentada à UC, Coimbra, texto policopiado, 2014; SILVA, Fernando Augusto da e MENEZES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., ed. fac-simile, Funchal, SRTC, 1998; VITERBO, Sousa, Diccionário Histórico e Documental dos Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses ou a Serviço de Portugal, 3 vols., Imprensa Nacional, 1899-1922. Rui Carita (atualizado a 07.07.2016)

alcoforado, francisco

O documento mais antigo sobre o “descobrimento” oficial da Madeira, pois que o conhecimento das ilhas atlânticas é muito anterior, deve ser a descrição de Francisco Alcoforado contida na sua Relação, testemunho onde o mesmo se declara “escudeiro do Senhor Infante D. Henrique” e “que foi a tudo presente” (MELO, 1975, 83). Esta Relação foi utilizada por Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593) na História do Descobrimento da Ilha da Madeira e da Descendência Nobilíssima dos Seus Valorosos Capitães, cerca de 1587, trabalho que enviou a Gaspar Frutuoso (c. 1522-c. 1591) para as Saudades da Terra (1590), ainda que Dias Leite tenha afirmado tratar-se de um testemunho deixado por Gonçalo Aires e que fazia parte dos arquivos dos capitães do Funchal. O mesmo texto serviu depois a D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), nascido em Lisboa, mas com família nos Açores, para o “Descobrimento da Ilha da Madeira, Anno de 1420, Epanáfora Amorosa”, publicado em Epanaphoras de Varia Historia Portuguesa, Lisboa, 1666, que é um desenvolvimento dessa fonte, da qual o autor, na qualidade de descendente de João Gonçalves Zarco (c. 1390-1471), teria uma cópia “muito antiga”. Seria depois traduzida para francês, em 1671, e para inglês, em 1675, havendo igualmente edição de cópia existente no British Museum, em tradução inglesa, do ano de 1750. A Relação de Francisco Alcoforado assenta na chegada inopinada à Madeira de um casal inglês: Ana de Arfet e Robert Machim. Refere o texto que, no tempo do rei Duarte de Inglaterra, (1312-1377), avô de D. Filipa de Lencastre (1360-1415), ou seja, entre 1327 e 1377, teria havido um nobre inglês, com fama de bom cavaleiro, cujo nome ou alcunha era Machim, que se enamorou de uma dama da alta nobreza, Ana de Arfet, sendo correspondido. Descoberto o enredo e dada a diferença de estatuto social, os parentes dela, com o consentimento do rei, pretenderam acertar o seu matrimónio com um nobre de Bristol. Perante esta situação, os dois namorados resolveram fugir, tomando uma nau com destino à costa de França, país com o qual Inglaterra se encontrava em guerra. Com medo de serem perseguidos, rumaram para as costas da Gasconha, acabando por passar ao lado da Península Ibérica e por ir parar a “uma terra brava, toda coberta de arvoredo” (MELO, 1975, 89), que era a ilha da Madeira. Ana aportaria já doente, falecendo poucos dias após a chegada; Machim faleceria alguns dias depois, sendo ambos ali enterrados. A informação teria chegado ao conhecimento de Zarco, então em serviço na armada do Algarve, e depois ao do infante D. Henrique (1394-1460), levando à tomada oficial da Ilha para a corte portuguesa. Os escudeiros do infante, Zarco e Tristão, ao chegarem à baía onde se encontrava enterrado o casal inglês, que ficou com a designação de “Machico”, celebraram a primeira missa em terra sobre as suas sepulturas, feitas pelos companheiros antes de abandonarem a ilha. Logo em 1873, o historiador Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825-1898) colocou dúvidas à autenticidade da Relação nas suas anotações às Saudades da Terra. O mesmo fez posteriormente o historiador Ernesto Gonçalves (1898-1982) nas páginas de Das Artes e da História da Madeira, apontando inúmeras incongruências na estrutura do documento – a efabulação do caso de Ana e Roberto Machim, a fundação das igrejas, o posterior incêndio do arvoredo – e salientando a aparente inexatidão dos companheiros do malogrado inglês que, pensando tratar-se de uma terra nova, a foram pedir aos “reis de Espanha”; entende o historiador que “nunca um português os chamaria de Espanha, a não ser demitindo-se do seu pundonor patriótico” (GONÇALVES, 1960, 6). Tal apreciação leva-o a situar o texto em 1580 e em plena crise política provocada pela morte sem descendência do rei e cardeal D. Henrique (1512-1580); coloca então a hipótese de que o autor do texto tenha sido, inclusivamente, Jerónimo Dias Leite. Manuel Pita Ferreira (1912-1963) defende a Relação, também em Das Artes e da História da Madeira, argumentando que foi seguida por quase todos os historiadores anteriores e já se encontrava na posse dos Câmaras nos inícios do séc. XVI; e invalida a questão dos “reis de Espanha”, observando que o uso do plural indica os reis que governassem uma parte da península e fossem senhores da Ilha, ou seja Portugal, Castela ou Aragão. O problema da autenticidade parece resolvido com a posterior descoberta de uma versão datável de cerca de 1500 e que não parece muito provável que tenha sido falsificada; ainda que tal não invalide as inúmeras incongruências de pormenor da Relação, torna-as perfeitamente aceitáveis num vago escudeiro das primeiras décadas do séc. XV, que não seria propriamente um cronista nem um abalizado letrado. O texto não foi, pois, bem aceite entre os historiadores dos finais do séc. XIX até aos meados do século XX, essencialmente por abrir com a lenda de Roberto Machim e Ana de Arfet, dando os ingleses como tendo chegado à Madeira antes dos escudeiros do infante D. Henrique. A dificuldade da articulação das datas também jogava contra a veracidade do documento, pois a viagem dos ingleses terá ocorrido, o mais tardar, em 1377 (último ano do reinado de Eduardo III de Inglaterra), data em que o infante ainda não era vivo. De facto, D. Henrique, nascido em 1395, só se fixou no Algarve depois do descerco de Ceuta, ou seja, em 1419, tendo recebido a nomeação de grão-mestre da Ordem de Cristo apenas em maio de 1420. No entanto, a lenda é mencionada por quase todos os autores que posteriormente escreveram sobre a expansão portuguesa, nomeadamente Valentim Fernandes (1507-1508), Duarte Pacheco Pereira (Esmeraldo de Situ Orbis, 1505/1508), António Galvão (Tratado dos Descobrimentos, 1563) e o italiano Giulio Landi (1574), em texto depois transcrito pelo madeirense Manuel Constantino, na Insulae Materiae Historia (Roma, 1599), embora aqui de forma mais esbatida. Como dissemos, a aceitação do desembarque anterior a Zarco e aos seus companheiros punha em questão a prioridade de descoberta do arquipélago por parte dos portugueses, o que era impensável para os historiadores da primeira metade do séc. XX, desencadeando acesa polémica nacionalista por esses anos. Acresce ainda que, desde os inícios e meados de Oitocentos, o comerciante inglês Robert Page (1775-1829) tinha desenvolvido uma ampla campanha de defesa dos interesses britânicos sobre a Madeira, não se coibindo, inclusivamente, de forjar uma cruz de madeira, supostamente pertencente às velhas sepulturas de Machim e Ana de Arfet; de facto, as condições climatéricas da área, a sequência de aluviões, etc., tornam perfeitamente impensável a sobrevivência de tal objeto, enterrado no leito da ribeira de Machico durante cerca de 500 anos, sobretudo, apresentando inscrições pintadas. De acordo com os dados disponíveis no princípio do séc. XXI, e aceitando-se o conhecimento anterior da existência do arquipélago pelos navegadores portugueses, e não só, não repugna de forma alguma o desembarque de uma qualquer Ana de Arfet e de um Roberto Machim antes do reconhecimento oficial das ilhas da Madeira e do Porto Santo. Aliás, as visitas de navegadores portugueses a estas ilhas eram de tal forma frequentes que, na segunda viagem de Zarco, apareceram no Porto Santo uns frades franciscanos, salvos de um naufrágio que ocorrera algum tempo antes, quando rumavam às Canárias. Colocam-se, naturalmente, dúvidas em relação à possibilidade de os factos terem acontecido no tempo de Eduardo III de Inglaterra e de a notícia chegar tão depressa a Zarco; na verdade, o desembarque dos ingleses deverá ter ocorrido bastante tempo depois, até porque, em 1420 e segundo o escrito de Alcoforado, as suas campas ainda se encontravam junto da ribeira. O argumento de que não há qualquer referência à existência de um Francisco Alcoforado no séc. XV, e no Funchal, também foi superado, pois o apelido não era desconhecido na região nesse tempo. Manuel Pita Ferreira refere mesmo a existência de um Pero Vaz Alcoforado (FERREIRA, 1957, 122), provavelmente seu descendente ou familiar, relacionado com um hospital fundado por sua mulher e de que era procurador João de Canha, mencionado nas vereações da Câmara Municipal do Funchal de 6 de junho de 1471. Portanto, os Alcoforados estiveram na ilha. A cópia da Relação de Francisco Alcoforado existente na Biblioteca do Paço Ducal de Vila Viçosa data, em princípio, de cerca de 1500, e, embora com todas as características de relato oral, organizado internamente por locuções temporais (“no tempo de”, “neste tempo”, “então”, etc.) e algumas incoerências nos pormenores de tempo de viagem, não se afasta de outros documentos coevos, pelo que não parece haver qualquer dúvida em aceitar a sua autenticidade. Em linhas gerais, todos os aspetos respeitantes ao infante D. Henrique e a Zarco, bem como ao reconhecimento e ao povoamento da Madeira, se enquadram perfeitamente na época e correspondem às restantes informações disponíveis, devendo ter servido de base para os cronistas seguintes; se não para todos os nacionais, que terão recorrido também a outras fontes, pelo menos para os regionais, como Dias Leite e Gaspar Frutuoso, entre outros. Obras de Francisco Alcoforado: An Historical Account of the Discovery of the Island of Madeira, Abridged from the Portuguese Original: To Which is Added, An Account of the Present State of the Island in a Letter to a Friend, 1750. Bibliog.: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. 1, Funchal, SRE, 1999; COSTA, José Pereira da, Vereações da Câmara do Funchal, Funchal, CEHA, 1995; FERREIRA, Manuel Juvenal Pita, Notas para a História da Ilha da Madeira, Funchal, s.n., 1957; Id., O Arquipélago da Madeira: Terra do Senhor Infante, Funchal, JGDAF, 1959; Id., “A Relação de Francisco Alcoforado”, Das Artes e da História da Madeira, n.º 31, 1961, pp. 17-40; FONTVIEILLE, Jean, “A Lenda de Machim: Une Découverte Bibliographique à la Bibliothèque-Musée du Palais de Bragance à Vila Viçosa (Portugal)”, in Actas do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, vol. 3, Lisboa, Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1961, pp. 197-238; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra, anotações de Álvaro Rodrigues de Azevedo, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2007; GALVÃO, António, Tratado que Compôs o Nobre & Notauel Capitão Antonio Galuão, dos Diuersos & Desuayrados Caminhos, Por Onde nos Tempos Passados a Pimenta & Especearia Veyo da India às Nossas Partes, & Assi de Todos os Descobrimentos Antigos & Modernos, que São Feitos até a Era de Mil & Quinhentos & Cincoenta, Lisboa, Impressa em casa de Ioam da Barreira, 1563; id., Tratado dos Descobrimentos Antigos e Modernos de António Galvão, Lisboa, Oficina Ferreiriana, 1731; GONÇALVES, Ernesto, “Estudo da ‘Relação de Francisco Alcoforado’”, Das Artes e da História da Madeira, n.º 30, 1960, pp. 1-8 e 60-68; Id.., “Algo mais acerca da ‘Relação de Francisco Alcoforado’”, Ibid., n.º 31, 1961, pp. 10-16 e 57-59; LEITE, Jerónimo Dias, História do Descobrimento da Ilha da Madeira e da Descendência Nobilíssima dos Seus Valorosos Capitães, Coimbra, FLUC, 1949; LEITE, Jerónimo Dias, Descobrimento da Ilha da Madeira, Lisboa, Alfa, 1989; MACHADO, João Franco, A Relação de Francisco Alcoforado, Lisboa, 1936; MELO, Francisco Manuel de, Epanaphoras de Varia Historia Portuguesa, Lisboa, Officina de Henrique Valente de Oliueira, 1666; id., Epanaphoras de Varia Historia Portuguesa, Lisboa, Antonio Craesbeeck de Mello, 1676; id., Epanáfora Amorosa: Descobrimento da Ilha da Madeira: Ano de 1420, [Braga], J. Castro, [1975]; NASCIMENTO, João Cabral do, “O Manuscrito de Gonçalaires”, in Apontamentos de História Insular, Funchal, Tipografia Madeirense Editora, Lda., 1927; PEREIRA, Duarte Pacheco, Esmeraldo de Situ Orbis, Lisboa, Imprensa Nacional, 1892; RODRIGUES, António Gonçalves Rodrigues et al., D. Francisco Manuel de Melo e o Descobrimento da Madeira, Lisboa, Bíblion, 1935; SILVA, Fernando Augusto da, e MENEZES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., ed. fac-simile, Funchal, SRTC, 1998. Rui Carita (atualizado a 10.12.2015)