cemitério das angústias
Os enterramentos nas igrejas e capelas da Madeira começaram a ser questionados nos meados do séc. XVIII, quando, após uma série de epidemias, se apurou que as mesmas teriam origem provável nos enterramentos mais recentes dentro das igrejas (Cemitérios). Assim, a partir dos anos de 1770, os enterramentos passaram a ser efetuados progressivamente nos adros e nos terrenos anexos aos templos, ocorrendo só pontualmente no interior dos mesmos. O exemplo inglês, cuja comunidade possuía cemitério próprio desde 1768 (Cemitério britânico), também deve ter ajudado à compreensão da situação e o problema da SCM do Funchal (Misericórdias), em cujo hospital ocorria uma grande parte dos óbitos da cidade, não tendo depois a capela de S.ta Isabel possibilidade de os acolher, acelerou certamente o processo. [caption id="attachment_5011" align="alignright" width="346"] A. G. da Costa, Alferes da 2ª secção do Ext., no ano de 1840: cota 1302-2-22A-109.[/caption] [caption id="attachment_5015" align="alignnone" width="346"] A. G. da Costa, Alferes da 2ª secção do Ext., no ano de 1840: cota 1302-2-22A-109.[/caption] Nos inícios do séc. XIX, assumiu a presidência da mesa da SCM do Funchal o bispo de Meliapor, D. Fr. Joaquim de Meneses e Ataíde (1765-1828), então administrador apostólico da diocese. Data desses anos a reforma geral da misericórdia, com a regulamentação do hospital do Funchal, para o qual foi efetuada uma nova captação de águas a partir da Fundoa. Em setembro de 1813, tinham-se iniciado os trabalhos para a construção de uma fonte pública, por subscrição também pública, na área das Angústias e Ilhéus e que viria a ter o nome de “Fonte Nova do Príncipe D. João”, chegando as manilhas nos inícios de 1815 (AHM, Processos...., processo 659, fl. 14). A ideia era dotar a “nova cidade” das Angústias de uma fonte pública, conforme plano aprovado pelo príncipe e, ao mesmo tempo, facilitar a “condução para a aguada das embarcações” (ibid., fl. 15). [caption id="attachment_5052" align="alignleft" width="300"] Portal do Cemitério das Angústias.[/caption] Os trabalhos foram executados pelo major Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832), encarregado de levantar a planta geral da Madeira, que “no tempo do inverno não podia continuar a sua comissão nas serras desta ilha”, como se escreveu, ficando incumbido desse assunto (ibid.). Com a construção da fonte, hoje na R. Princesa Maria Amélia e com uma data que corresponde à sua reformulação (1844), o bispo administrador apostólico do Funchal aproveitou a empresa para ampliar o encanamento das águas para o hospital da SCM, trabalho que agradeceu a Paulo Dias de Almeida, a 10 de setembro de 1817, pedindo-lhe “a desculpa necessária sobre qualquer falta” que pudesse haver no reconhecimento dos seus serviços (ibid., fl. 16). É nessa sequência que deverá ter-se iniciado a construção do cemitério das Angústias, inicialmente encargo da SCM do Funchal, em terrenos cedidos gratuitamente pelo morgado João de Carvalhal Esmeraldo (1778-1837), futuro 1.º conde de Carvalhal, anexos à antiga propriedade e residência de verão da sua tia-avó, a “Ilustríssima Senhora Dona” Guiomar de Sá Vilhena (1705-1787), empreendimento de certa forma inovador no espaço nacional. O projeto do novo cemitério da SCM faz parte da Descrição da Ilha da Madeira de 1817 (BNP, Reservados, cód. 6705) que Paulo Dias de Almeida foi entregar pessoalmente ao já então rei D. João VI, no Rio de Janeiro, com a carta geral da Madeira, com mais de 6 m de largura (IGP, 524). [caption id="attachment_5022" align="alignright" width="243"] Cemitério das Angustias, Ventura Terra, 1915.[/caption] [caption id="attachment_5018" align="alignleft" width="300"] Cemitério das Angustias, Ventura Terra, 1915.[/caption] As plantas feitas por Paulo Dias de Almeida têm a data de 1817 e a indicação de se tratar do “Cemitério da Misericórdia”, embora só tenhamos dados de ter começado a funcionar no ano seguinte. O portal representado no alçado parece ser o que chegou aos nossos dias através de aguarelas e fotografias, embora o grosso portão de madeira tenha vindo depois do convento de S. Francisco, dando para o então caminho da Pontinha, hoje Av. do Infante. Todavia, a colocação da capela mortuária junto da entrada, tal como previsto no projeto de Paulo Dias de Almeida, não se efetuou, pois foi levantada vinte anos depois, no lado oposto e quase na arriba sobre a baía do Funchal. Assim, o autor de An Historical Sketch, de 1819, referindo, por certo, alguma cerimónia a que assistiu no novo cemitério da SCM do Funchal, iniciado dois anos antes, no sítio das Angústias, mostra “o acompanhamento de frades e mendigos, com tochas” (apud SILVA, 1994, 160). Com a implantação do governo liberal, foram quase de imediato proibidos os enterramentos nas igrejas, recorrendo-se à ampliação do referido cemitério da SCM e pedindo-se ao já então conde de Carvalhal a venda dos terrenos anexos para sul. O conde escreveu à CMF, a 8 de julho de 1836, oferecendo gratuitamente, como havia feito antes, todos os terrenos que fossem necessários. As obras de ampliação do cemitério para servir a freguesia da Sé e de São Pedro estavam concluídas em maio de 1838 e, a 8 de julho, foi lançada a bênção solene pelo vigário capitular e governador do bispado, o Cón. Alfredo de Santa Catarina Braga (c. 1780-c. 1845), cerimónia que se revestiu do maior brilho e imponência (SILVA e MENEZES, 1998, I, 70). [caption id="attachment_5025" align="alignleft" width="185"] Foto do Cemitério das Angustias, 1920.[/caption] [caption id="attachment_5031" align="alignright" width="300"] Cemitério das Angústias, 1935.[/caption] A capela do cemitério só viria a ser levantada na déc. de 40, estando terminada em novembro de 1844 e benzida a 15 de dezembro seguinte pelo bispo D. José Xavier Cerveira e Sousa (1810-1862). Assim o pintou Edwin Augustus Porcher (1824-1878), a 1 de abril de 1842, a caminho da Austrália, onde se encontra a aguarela com esta imagem. O portal parece corresponder ao desenhado por Paulo Dias de Almeida e as árvores da avenida central ainda se encontram a crescer. Pouco depois, foi editada em Londres uma litografia feita a partir de desenho de Frank Dillon (1822-1909) sob o título Portuguese Cemetery – Funchal, com uma pequena procissão fúnebre, mas com o cemitério quase deserto, parecendo datar assim de alguns anos antes da data da edição (DILLON, 1850). O cemitério seria depois herdeiro das ossadas exumadas no convento de S. Francisco do Funchal, quando a igreja e as capelas anexas foram demolidas, em 1865, na ideia de ali levantar os novos paços do concelho, o que nunca veio a acontecer. As ossadas foram depositadas sob a magnífica laje sepulcral de calcário-brecha da Arrábida dos fundadores daquele convento, Luís Álvares da Costa e seu filho Francisco Álvares da Costa, laje que é datável de 1473 a 1520. [caption id="attachment_5055" align="alignright" width="485"] "Anjo Suplicante", Francisco Franco, 1916.[/caption] [caption id="attachment_5045" align="alignnone" width="297"] Torso, Francisco Franco.[/caption] Ao longo do séc. XIX e inícios do XX, o cemitério foi sendo progressivamente melhorado com os jazigos das principais famílias madeirenses e com alguns monumentos funerários importantes ao nível da história da arte. Em 1916, a família Rocha Machado encomendou ao escultor Francisco Franco (1885-1955) um trabalho para o seu jazigo, vindo a ser fundido Anjo Suplicante, uma das mais conseguidas obras deste escultor. Na sequência do bombardeamento de várias embarcações que se encontravam paradas na baía do Funchal e que trabalhavam para a empresa dos cabos submarinos ingleses sediada na cidade, ataque perpetrado por um submarino alemão a 3 de dezembro de 1916, e do qual resultaram mais de uma dezena de mortos, o banqueiro Henrique Vieira de Castro (1869-1926) (Castro, Henrique Vieira de) abriu uma subscrição para um túmulo-monumento, obra de novo entregue a Francisco Franco, solenemente inaugurada um ano depois do bombardeamento. A cerimónia teve início com um serviço religioso na sé do Funchal e prosseguiu com a apresentação do monumento no cemitério das Angústias, decorrendo com “particular brilhantismo, tendo vários oradores proferido eloquentes e patrióticos discursos à homenagem que ali se ia tributar àquelas pobres vítimas da barbária alemã” (SILVA e MENEZES, 1998, I, 71). [caption id="attachment_5035" align="aligncenter" width="335"] Romagem ex-combatentes 9 de Abril de 1927.[/caption] Seis dias depois, a 12 de dezembro de 1917, o Funchal foi novamente alvo de um bombardeamento de um submarino alemão, que deveria, uma vez mais, atingir as instalações da “Casa da Linha”, sede do cabo submarino, situada na Calç. de Santa Clara, mas que veio a acertar na igreja do convento, ferindo o P.e Manuel da Silva Branco, que estava a celebrar missa, o sacristão e duas mulheres, acabando uma delas por falecer. Neste segundo bombardeamento, registaram-se cinco mortos e cerca de 30 feridos. Nos anos seguintes, sempre que navios de guerra franceses visitaram o Funchal, fez-se junto daquele monumento uma cerimónia fúnebre em que compareciam representantes da marinha portuguesa e francesa, um pelotão de infantaria, o cônsul francês e, por vezes, também o inglês, tal como as autoridades superiores do distrito. [caption id="attachment_5048" align="aligncenter" width="363"] S. Miguel das Almas, da autoria de Guilherme Camarinha (1912-1994).[/caption] O cemitério das Angústias manteve-se naquele local até aos meados de 1942, tendo o último enterramento sido feito em 24 de abril desse ano, após o que foi desmanchado e transferido para a freguesia de São Martinho, em terrenos quase anexos à chamada “igreja velha”, permitindo a abertura da Av. do Infante e a construção do parque de Santa Catarina. Para além das ossadas, foram transferidos os jazigos e monumentos principais e, inclusivamente, o portal de cantaria original, dos finais do séc. XIX. Interiormente, veio a ser dotado de uma nova capela mortuária, projeto do Arqt. Raul Chorão Ramalho (1914-2002), datado de 1951, com um monumental retábulo de azulejos representando S. Miguel das Almas, da autoria de Guilherme Camarinha (1912-1994), de 1958, e uma escultura exterior com uma Ressurreição de Querubim Lapa (1925-), de 1956, mas segundo projeto, em princípio, de Lagoa Henriques (1923-2009), pois que o conhecemos no seu atelier. [caption id="attachment_5038" align="aligncenter" width="373"] Cemitério de Nossa Senhora das Angústias.[/caption] Bibliog. manuscrita: AHM, Processos individuais, cx. 182, proc. 659, Paulo Dias de Almeida; BNP, Reservados, cód. 6705, Descrição da Ilha da Madeira, 1817; IGP, 524; DGSIE, GEAEM, cota 748-1A-12A-16, Paulo Dias de Almeida, Planta do Semiterio Publico, c. 1817; NLA, nla.pic-an4102992, Edwin Augustus Porcher, Madeira, the Town of Funchal, and the Eastern End of the Island, 1842; impressa: CALDEIRA, Abel Marques, O Funchal no Primeiro Quartel do Século XX, 1900-1925, 3.ª ed., Funchal, Eco do Funchal, 2007; CARITA, Rui, Madeira: Roteiros Republicanos, Matosinhos, QuidNovi, 2010; id., História da Madeira, vols. 6 e 7, Funchal, SRE, 2003 e 2008; id., Paulo Dias de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira, Funchal, DRAC, 1982; COMBE, William, A History of Madeira: with a Series of Twenty-Seven Coloured Engravings, Illustrative of the Costumes, Manners, and Occupations of the Inhabitants of that Island, London, Rudolph Ackermann 1821; DILLON, Frank e Picken, T., Sketches in the Island of Madeira, London, Paul and Dominic Colnaghi & Company, 1850; SANTOS, Rui, “Um Militar mais que Esquecido (Paulo Dias de Almeida)”, Jornal da Madeira, 17 mai. 1992; SILVA, António Ribeiro Marques da, Apontamentos sobre o Quotidiano Madeirense (1750-1900), Lisboa, Caminho, 1994; SILVA, Fernando Augusto da, e MENEZES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., ed. fac-simile, Funchal, SRTC, 1998. Rui Carita (atualizado a 11.07.2016)
cemitério britânico
[caption id="attachment_4927" align="alignleft" width="300"] Ilha da Madeira, 1807.[/caption] A presença dos comerciantes britânicos (Britânicos; Ingleses) na Madeira começou a ser determinante nos meados do séc. XVII e nos finais do mesmo deveria ser asfixiante, como referem as Instruções para o novo governador D. António Jorge de Melo. Na Madeira, entre 1698 e 1701, esses comerciantes eram, como em tudo, “insolentíssimos” e só pensavam no ganho (BNP, Col. Pombalina, cód. 526). A posição de arrogância, aliás, manteve-se até aos finais do séc. XX, como atesta o trabalho de Desmond Gregory, The Beneficent Usurpers: a History of the British in Madeira (1989). Numa ilha dominada, no séc. XVII, pela ideologia católica pós-tridentina, não podendo os populares opor-se à prepotência dos comerciantes em vida, faziam-no na morte. Descrevia o reverendo anglicano John Ovington (1653-1731), na sua Voyage to Surat in the Year 1689, que a Igreja Católica, assim como não admitia pensamentos caridosos para com “as almas heréticas, de igual modo exclui os cadáveres de toda a benevolência”, perseguindo os ingleses que morriam na ilha com “um ódio mais implacável” do que o que revelavam para com os animais, que podiam encontrar um lugar de descanso na terra para serem sepultados. Tudo isso era estritamente proibido aos ingleses, que eram lançados ao mar e entregues às ondas. O reverendo anglicano citou o caso de um comerciante inglês que, falecido na ilha, os seus compatriotas tinham tentado secretamente sepultá-lo numas rochas, mas tendo sido descoberto, os habitantes tinham lançado o cadáver ao mar (ARAGÃO, 1981, 203). Saliente-se, no entanto, que nem todos os ingleses radicados na ilha eram protestantes; p. ex., o médico Thomas Heberden (1703-1769), membro da Royal Society de Londres, falecido em 1769, foi enterrado segundo os costumes locais, por vontade expressa no seu testamento, em frente ao antigo altar de S. José, na sé do Funchal, certamente por interferência da “Ilustríssima Senhora Dona” Guiomar de Vilhena (1705-1789), então juiz dessa confraria. Segundo uma carta enviada pelo comerciante Robert Bisset ao seu correspondente em Filadélfia, datada de 2 de junho de 1769, documento integrado na correspondência Sarah Smith Papers, na Historical Society of Pennsylvania, o corpo do médico inglês foi acompanhado pelos juízes camarários e pela melhor sociedade funchalense, demonstrando assim a alta estima em que era tido (RIBEIRO, 1995, 393). [caption id="attachment_4913" align="aligncenter" width="300"] Ilustração do Jornal Britânico, "Illustrated London News" c. 1865.[/caption] [caption id="attachment_4907" align="aligncenter" width="300"] Desenho do Portão, 1860.[/caption] Em 1760, já a colónia britânica iniciara diligências em Lisboa para a construção de um cemitério, assunto que seria apresentado pelo próprio ministro e conde de Oeiras ao governador José Correia de Sá, em carta de 3 de janeiro de 1761. Informava então o primeiro que os ingleses residentes na Madeira tinham feito uma petição a D. José para poderem comprar um terreno e fazer um cemitério, súplica que o rei despachara favoravelmente, indicando que se lhes devia dar um pedaço de terra que fosse suficiente, fora da cidade, para lograrem “dar sepultura aos seus naturais” na mesma forma que se praticava na corte de Lisboa (ARM, Governo..., 985, fls. 12-13). Mas a posição da colónia inglesa na Madeira não seria especialmente bem vista por este governador, nem pelo seguinte, João António de Sá Pereira (c. 1719-1804), pelo que o assunto teve de esperar algum tempo. [caption id="attachment_4986" align="alignleft" width="300"] Capela Mortuária, Interior, Cemitério Britânico.[/caption] [caption id="attachment_4971" align="alignright" width="300"] Capela Mortuária, Exterior, Cemitério Britânico.[/caption] [caption id="attachment_4974" align="aligncenter" width="176"] Capela Mortuária, Interior, Pormenor da Fachada, Cemitério Britânico.[/caption] As insistências para a edificação de um cemitério inglês devem ter continuado em 1765, data colocada no antigoportão, mas só em 1777, nos limites da cidade e fora das muralhas, conforme indicado em 1761, a colónia conseguiu oficializar a aquisição de um espaço para o efeito. Os terrenos foram comprados a D. Antónia Rosa Tavares, através do seu procurador, o P.e José Joaquim Teixeira, do Estreito de Câmara de Lobos, e situavam-se junto à capela de S. Paulo, fora das muralhas da cidade, onde ainda hoje se encontra o cemitério britânico, tomando a colónia britânica posse dos mesmos a 2 de setembro de 1777 e tendo a documentação sido registada na Câmara do Funchal a 14 de março de 1778 (ARM, Câmara..., Registo Geral, tombo 11, fls. 113-122v). [caption id="attachment_4918" align="aligncenter" width="205"] Registo de Sepulturas, Cemitério Britânico, Funchal, Madeira.[/caption] [caption id="attachment_4921" align="aligncenter" width="203"] Registo de Baptismo de Joseph Dundas Miller, 1847.[/caption] A data mandada colocar no antigo portão, à R. da Carreira, é de 1765, como se disse, por certo o ano em que se retomaram as negociações, sendo tradição na colónia britânica que os enterramentos começaram ali em 1767. Até então, ocorriam no logradouro do palacete da R. do Esmeraldo, levantado pelo capitão Nicolau Geraldo de Freitas Barreto, onde funcionava a firma Gordon, Duff & Co. (COSSART, 1984, 28) e onde está hoje o Tribunal de Contas do Funchal. A posse do terreno é mais tardia, de 1777, e a data da mais antiga pedra tumular é de 1806, sendo referente ao comerciante britânico James Murdoch (1744-1806), que recebera na Madeira o comandante James Cook, em 1768, na sua Qt. do Vale Formoso. [caption id="attachment_4936" align="alignleft" width="187"] Interior do Cemitério Inglês por Sarah Acland, 1910.[/caption] [caption id="attachment_4939" align="alignright" width="246"] Jardins por Sarah Angelina Acland, séc. XX.[/caption] [caption id="attachment_4990" align="aligncenter" width="259"] Miss Acland com a sua guitarra portuguesa, por Sarah Angelina Acland, inícios do séc. XX.[/caption] Nos inícios do séc. XIX, concretamente em 1808, o cemitério foi ligeiramente ampliado, com a criação de um talhão militar para enterramento dos militares britânicos da força estacionada na Madeira, presente na ilha desde o final do ano anterior até 1814. A comunidade britânica viria a aumentar bastante nos meados de Oitocentos, dado o incremento do tráfego marítimo e uma nova realidade advinda do turismo terapêutico e, depois, de lazer; assim, em 1852, procedeu-se à ampliação do cemitério. Deve ser aquele primeiro alargamento de 1808, realizado quando o cemitério era já no local que hoje ocupa, que vem referido na planta da baia do Funchal de 1838 (DSIE, GEAEM, 1302-2-22A-109) e, com as dimensões que presentemente possui, na planta do guia Madeira, its Climate and Scenery, de 1885 (WHITE, 1885, 36). [caption id="attachment_4942" align="alignright" width="300"] Portão construído em 1765.[/caption] [caption id="attachment_4924" align="alignnone" width="300"] Planta do Funchal em abril de 1839.[/caption] [caption id="attachment_4948" align="aligncenter" width="300"] Portão Rua da carreira 1885.[/caption] [caption id="attachment_4945" align="alignright" width="211"] Porão Interior, 1890.[/caption] [caption id="attachment_4951" align="alignnone" width="195"] Portão, Rua da Carreira, 1890.[/caption] O último enterramento na parte antiga, correspondente ao atual Lg. Ribeiro Real, ocorreu nesse ano de 1885, tendo sido sepultado já no novo talhão do cemitério britânico o célebre médico e cientista Paul Wilhem Heinrich Langerhans (1847-1888), que faleceu a 20 de julho de 1888, na Qt. Lambert, atual Qt. Vigia. Entre 1889 e 1890, a comunidade britânica negociou oficialmente com a CMF, de novo presidida pelo morgado João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo (1841-1902), visconde do Ribeiro Real, a troca do new burial pelo old burial. [caption id="attachment_4957" align="alignleft" width="227"] Lápide de Geoge Pepple, Rei de Bonny.[/caption] [caption id="attachment_4963" align="alignright" width="237"] Foto de Paul Langerhans, 1847-1888.[/caption] [caption id="attachment_4983" align="aligncenter" width="300"] Brasão de James Murdoc, 1744.[/caption] [caption id="attachment_4960" align="aligncenter" width="300"] Jazigo dos Blandy's, Cemitério Inglês.[/caption] No entanto, como comprovamos pela planta portuguesa de 1838 e pela inglesa de 1885, o terreno em causa para a ampliação do cemitério, estaria já ocupado. O antigo portão passou então, em 1889, para a R. Brito Câmara, nas margens da ribeira de São João, construindo-se o importante portal interior que delimita o largo de entrada do antigo talhão militar, de 1808, da ampliação feita a partir de 1852, e levantando-se também, até 1890, a capela mortuária. [caption id="attachment_4980" align="alignright" width="300"] Interior do Cemitério Britânico, 1935.[/caption] [caption id="attachment_4954" align="alignnone" width="300"] Pormenor do Anjo, Cemitério Inglês.[/caption] [caption id="attachment_4993" align="aligncenter" width="300"] Pormenor do Portão, Cemitério Britânicos.[/caption] Bibliog.: manuscrita: ARM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombo 11; ibid., Governo Civil, 985; BNP, Col. Pombalina, cód. 526; DSIE, GEAEM, António Gualdino da Costa, Planta da Bahia do Funchal em 1838 com a Indicação de um Ancoradouro Uzual e Melhor, 1840, 1302-2-22A-109; impressa: ARAGÃO, António (coord. e notas), A Madeira Vista por Estrangeiros: 1455-1700, Funchal, SREC, DRAC, 1981; CARITA, Rui, História da Madeira, vols. 3 e 5, Funchal, SRE, 1992 e 1999; COSSART, Noel, Madeira, the Island Vineyard, London, Christie's Wine Publications, 1984; GREGORY, Desmond, The Beneficent Usurpers: a History of the British in Madeira, London, Associated University Presses, 1989; NEWELL, H. A., The English Church in Madeira: the Church of the Holy and Undivided Trinity, Oxford, University Press, 1931; OVINGTON, John, Voyage to Surat in the Year 1689, London, Jacob Tonson, 1696; RIBEIRO, Jorge Martins, “Alguns Aspetos do Comércio da Madeira com a América do Norte”, III Colóquio Internacional de História da Madeira. Actas, Funchal, SRTC, CEHA, 1993, pp. 389-401; SILVA, Fernando Augusto da, e MENEZES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., ed. fac-simile, Funchal, SRTC, 1998; WHITE, Robert, Madeira, its Climate and Scenery, 3.ª ed., London, Dulan, 1885. Rui Carita (atualizado a 11.07.2016)
carros de bois
O alcantilado da paisagem madeirense não permitiu a fácil utilização de veículos com rodas, salvo em algumas zonas rurais, pelo que houve necessidade de recorrer a outros meios de transporte, designadamente, a carros de bois, cujo barulho, produzido pela pesada estrutura, granjeou ao veículo a designação de “carro chião”. Desde as primeiras décadas do povoamento que temos referências à utilização de animais de carga, em princípio bovinos, chegando-se a proibir, em 1481, a passagem dos habitantes do Funchal sobre as frágeis pontes “em cima de besta ou com besta”, quando as ribeiras não estivessem cheias de água (ARM, Câmara..., Vereações, 1481, fl. 28). Portanto, de verão ou se as ribeiras corriam bonançosas, as bestas só podiam passar a vau, pelo leito, e as pontes guardavam-se apenas para a passagem dos peões. O médico e naturalista inglês Hans Sloane (1660-1753), que visitou a Madeira nos finais do séc. XVII e publicou as suas impressões de viagem em A Voyage to the Islands Madeira, Barbados [...], em Londres, no ano de 1687, descrevia assim os transportes: “transportam tudo numa corsa puxada por bois, sendo este o único meio de transporte pelo facto desta terra ser tão acidentada e íngreme, com ruas estreitas que não permitem outro meio de transporte” (apud ARAGÃO, 1981, 161). Os carros de bois que popularizaram internacionalmente o Funchal, ao longo do séc. XIX, devem ter nascido de simples atrelados, do tipo corsa, aos quais foi sendo adaptada, progressivamente, uma caixa com bancos, de modo a que servissem para o transporte de passageiros. A caixa com bancos duplos colocados frontalmente, dotada de portinholas laterais, coberta por toldo e suspensa em molas, deve ter-se constituído entre as décs. de 30 e 40 do séc. XIX, não tendo sofrido especiais adaptações até à sua extinção, nos inícios da déc. de 80 do séc. XX. Já Maria Banks Woodley Ridell (1772-1808), que visitou pela primeira vez o Funchal em 1778, referiu que não se usavam carruagens na cidade, deslocando-se os habitantes em redes e palanquins, e que, em vez de carroças, usavam corsas puxados por bois (SILVA, 1994, 63). As dificuldades da orografia, em princípio, não permitiam a livre utilização das liteiras, objeto comum na Europa e mesmo no Brasil e de que só temos referência na Madeira com o bispo D. José da Costa Torres (1741-1813), através de uma liteira hoje existente no Museu de Arte Sacra, e com o visconde do Ribeiro Real (1841-1902), através de uma outra que está no Museu Quinta das Cruzes, ainda havendo um terceiro exemplar neste museu que desconhecemos se foi utilizado na Madeira. Ao contrário das liteiras, as redes e palanquins, dado o seu exotismo, vieram a tornar-se o transporte favorito dos turistas até aos meados do séc. XX. As litografias do séc. XIX representam continuamente a utilização de corsas ou zorras, aparecendo mesmo com bastante frequência o transporte de um só homem, de pé, sobre uma tábua puxada pachorrentamente por um bovino (DILLON, 1850). As fotografias, a partir de 1870, registam o mesmo costume, com a utilização da corsa puxada por bois ou, mais raramente, por mulas a transportar os mais diversos materiais, sobretudo pipas de vinho, registando-se mesmo a designação de “corsão” para as maiores. Nos inícios do séc. XX registam-se até praças para este tipo de transporte, uma das quais na antiga R. dos Profetas, perto do antigo mercado e da casa da Luz (CALDEIRA, 1964, 69). Mais tarde, este tipo de transporte com bois terá sido adaptado para deslocar passageiros, na parte baixa do Funchal e recorrendo a carreiros nas descidas mais abruptas, internacionalmente popularizadas pelos carros de cesto do Monte, já representados por Isabella de França (1795-1880) em 1853 (FRANÇA, 1970, 52 e 53, 62 e 63). A análise da Madeira de meados do séc. XIX pode ser feita pelos olhos desta curiosa e perspicaz inglesa, que esteve na ilha entre 1853 e 1854, registando cuidadosamente as suas impressões de viagem, muito provavelmente para as vir a editar, o que só veio a acontecer bastante depois. Casada tardiamente, aos 57 anos, com o morgado e comerciante de origem madeirense José Henrique de França (1802-1886), já nascido em Londres, o casal viajou à Madeira para vender as propriedades que aquele ainda mantinha na ilha. Na sua chegada ao Funchal, a 3 de agosto, descreve o carro de bois em que foram até ao hotel da R. da Carreira, comparando-o aos baloiços usados nas feiras inglesas e montados sobre um trenó, com almofadas e cortinas, e tirado por dois destes “bonitos bois pequeninos da terra”, de pelo castanho-escuro. Os animais não iam mais do que a passo, usavam chocalhos ao pescoço e o condutor fazia-os avançar gritando sempre, repreendendo, lisonjeando, “reproduzindo todo o género de extraordinários ruídos” e dizendo todo o caminho, a curtos intervalos: “Cá para mim, boi”, “Cá para mim, Esperto”, ou “moreno”, ou “bonito”, três adjetivos pelos quais os tratam. Descreve também que um rapaz corria diante dos bois, com um trapo que molhava em cada levada ou poço e atirava para debaixo do carro, a fim de o fazer deslizar melhor, elemento a que se chamava ainda, quase nos finais do séc. XX, “candeeiro”, cuja função era não só a de afastar os transeuntes, mas também a de passar um pano embebido em água ou sebo no empedrado, para facilitar o deslizamento (ibid., 52). Escreve igualmente que “a ideia de adaptar estes trenós ao serviço de pessoas representa um melhoramento moderno, pois o conjunto foi introduzido há quatro ou cinco anos por um major Bulkeley. Anteriormente, o único transporte usado por senhoras e doentes era o palanquim, suportado por dois homens”. Acrescenta ainda que as zorras puxadas por bois empregavam-se desde o início do povoamento da ilha, o que é verdade, dado haver determinações camarárias desde os finais do séc. XV sobre a sua circulação no Funchal, “todavia, ainda não tinham pensado em transformá-las num carro de passageiros” (ibid.). Ora tal não corresponde à verdade, pois o transporte de passageiros em carros de bois já é mencionado em 1778, por Maria Ridell, como aliás anotaram Santos Simões e Cabral do Nascimento, com base, entre outros, no diário do jovem americano Edward Watkinson Wells, A Trip to Madeira, escrito entre dezembro de 1836 e maio de 1837, quando tinha 16 anos de idade, texto de que existia cópia na biblioteca da Associação Comercial do Funchal, na chamada “English Rooms” e hoje na biblioteca do Dr. Frederico de Freitas (ibid., 52 e 81). A informação de Isabella de França deve ter tido origem na leitura do álbum de Edward Vernon Harcourt, A Sketch of Madeira, publicado em Londres, em 1851, onde aparece o desenho de um carro de bois simplificado, e depois nas informações da comunidade britânica com que contactou. A novidade introduzida por Bulkeley terá consistido no dispositivo de molas e nos assentos, na adoção do toldo e das almofadas, mas não na transformação do carro de bois em transporte público, pois essa é muito anterior. No dia 23 de agosto, Isabella descreve ainda a sua primeira saída, motivada pelo convite para jantar na quinta do cônsul inglês George Stoddart (Stoddart, George). A impressão inicialmente registada foi a estranheza “de ir vestida de gala num transporte como o carro de bois” (ibid., 62). No entanto, a paisagem da subida ao Monte deslumbrou-a, como a viriam a deslumbrar as restantes. A divulgação da fotografia nos anos seguintes, acrescida da sua comercialização e divulgação através de bilhetes-postais, difundiram universalmente o exotismo deste transporte típico da ilha, tornando-o quase uma imagem de marca do destino Madeira, a tal ponto que, estendendo-se o mercado turístico britânico às vizinhas ilhas Canárias, o carro de bois madeirense também ali apareceu em bilhetes-postais. Nos inícios do séc. XX, o pintor austríaco Max Römer (1878-1960) também contribuiu para a sua divulgação, juntando o encantador colorido das suas aguarelas à graça do jovem “candeeiro”. Este tipo de transporte, embora com procura turística, não resistiu, no entanto, às necessidades de higienização da cidade do Funchal, incompatíveis com a circulação de bovídeos nas principias artérias da baixa citadina, sendo extinto nos inícios da déc. de 80 do séc. XX. Bibliog.: manuscrita: ARM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações, 1481; impressa: ARAGÃO, António (coord. e notas), A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal, SREC, DRAC, 1981; CALDEIRA, Abel Marques, O Funchal no Primeiro Quartel do Século XX: 1900-1925, Funchal, [Tip. da Emp. Madeirense Editora], 1964; CAMACHO, Rui e PAULINO, Francisco Faria (ed. lit.), O Funchal na Obra de Max Römer: 1922/1960, Funchal, Funchal 500 Anos, 2008; CARITA, Rui, História da Madeira, vol. 7, Funchal, SRE e UMa, 2008; Id., “Os Carros de Bois na Madeira. Um Pouco de História”, Diário de Notícias, Funchal, 25 nov. 1990, p. 9; CARITA, Rui e MELLO, Luís de Sousa, Associação Comercial e Industrial do Funchal: Esboço Histórico (1836-1933), Funchal, Edicarte, 2003; DILLON, Frank e PICKEN, T., Scketches in the Island of Madeira, London, Day and Son Lith, 1850; FRANÇA, Isabella de, Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal, 1853-1854, anot. Cabral do Nascimento e João dos Santos Simões, Funchal, JGDAF, 1970; HARCOURT, Edward Vernon, A Sketch of Madeira, Containing Information for the Traveller, or Invalid Visitor, London, John Murray, 1851; SILVA, António Ribeiro Marques da, Apontamentos sobre o Quotidiano Madeirense (1750-1900), Lisboa, Caminho, 1994; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., ed. fac-simile, Funchal, SRTC, 1998. Rui Carita (atualizado a 11.07.2016)
condes da calheta
A família Câmara gozou de um certo prestígio na corte de Lisboa, nos meados do séc. XVI. Tinha-se ali fixado o terceiro filho do segundo capitão do Funchal, Pedro Gonçalves da Câmara, que casara com D. Joana de Eça, dama da rainha D. Catarina, dando origem à casa do Almotacé-Mor. Com o seu apoio, muito provavelmente, o sobrinho Manuel de Noronha (c. 1491-1569) partiu para Roma, onde terá sido ordenado, sendo depois portador do capelo de cardeal para o infante D. Afonso (1509-1540), enviado pelo papa Leão X, em 1516, de acordo com os cronistas insulares (NORONHA, 1948, 116) (na verdade, segundo parece, tal terá acontecido somente em 1517). D. Manuel de Noronha foi bispo de Lamego em 1547, intitulando-se no final da vida “camareiro secreto” de Leão X e mandando esculpir a sua lápide sepulcral com as armas de arcebispo. [caption id="attachment_5096" align="alignright" width="211"] Carta LGC 4 de Junho de 1559.[/caption] Os filhos de João Gonçalves da Câmara (II) (1489-1536), quarto capitão do Funchal, devem ter usufruído do apoio do tio bispo de Lamego, entrando para a Companhia de Jesus. O P.e Luís Gonçalves da Câmara (1518-1575) tornar-se-ia uma figura notável do seu tempo e, em Roma, foi escolhido pelo geral e futuro santo Inácio de Loyola para confidente, tendo-lhe ditado as suas memórias, assunto há muito solicitadas pelos padres da Companhia, mas sempre adiadas por aquele. Regressado a Portugal, seria indicado para precetor do jovem D. Sebastião pelo geral Diogo Laines, à rainha D. Catarina, em carta de 4 de junho de 1559 (ANTT, Corpo..., 103-94). Por sua indicação, o irmão mais novo, P.e Martim Gonçalves Câmara (c. 1539-1613), que fora o primeiro reitor da UC, seria depois escrivão de puridade do novo rei, função semelhante à de chefe de gabinete de governo na atualidade. O quinto capitão do Funchal, Simão Gonçalves da Câmara (II) (1512-1580), casou com D. Isabel de Mendonça (c. 1512-1561), dama da corte da rainha D. Catarina e que tinha vindo com esta de Castela, num casamento de corte, a 4 de outubro de 1538, tendo sido acompanhado pelo infante D. Luís e pelo arcebispo de Lisboa (FRUTUOSO, 1968, 288), demonstrando a importância da família nessa cidade. O capitão Simão (II) fixou-se definitivamente na corte em 1555, entregando o governo da capitania ao “meio-tio” Francisco Gonçalves da Câmara (c. 1510-c. 1586). Com o saque de corsários franceses ao Funchal, em 1566, que assustou as cortes de Lisboa e de Madrid, levando à intervenção de Filipe II junto do seu embaixador em França, para que os culpados fossem presos, a Madeira usufruiu de uma particular atenção da coroa, recebendo especialistas militares, regimentos e verbas para o levar a cabo. [caption id="attachment_5089" align="alignleft" width="300"] Palácio dos Condes da Calheta.[/caption] O futuro quinto capitão do Funchal tinha já participado em várias expedições ao Norte de África, sendo mesmo aclamado capitão de Santa Cruz de Cabo de Guer, hoje Agadir, em maio de 1533 (CENIVAL, 1934, 80). Tendo acompanhado o rei D. Sebastião na sua primeira jornada a África, em 1575, seria agraciado com o título de conde da Calheta, algo por que os seus irmãos jesuítas se teriam já batido junto do rei. Aliás, este, ao regressar de Marrocos e perante o falecimento do seu precetor, o P.e Luís Gonçalves da Câmara, chorou-o sentidamente, como não havia feito pela avó D. Catarina. [caption id="attachment_5092" align="alignright" width="300"] Palácio dos Condes da Calheta.[/caption] A atribuição do título de conde da Calheta, a 20 de agosto de 1576, e não o de conde do Funchal, indica já uma centralização régia por parte da coroa portuguesa e, inclusivamente, a independência da câmara da cidade do Funchal em relação à futura casa dos condes da Calheta. O conde Simão Gonçalves da Câmara passará a intitular-se como “do Conselho de El-Rei Nosso Senhor, Capitão e Governador da Justiça na ilha da Madeira e na jurisdição do Funchal, vedor da sua fazenda em toda a ilha e na do Porto Santo, Senhor das lhas Desertas, etc.” (NORONHA, 1948, 113), vindo os seus sucessores a incluir também o título de alcaide-mor da fortaleza do Funchal, que em 1576 estaria ainda em reformulação. [caption id="attachment_5100" align="alignleft" width="300"] Azulejos, Palácio dos Condes da Calheta.[/caption] O 1.º conde da Calheta só pontualmente voltou à Madeira, fazendo-o, em princípio, por causa das alterações levadas a cabo pelos padres da Companhia na aquisição dos terrenos para o futuro colégio, vindo a falecer no Funchal. Os seus descendentes, como nobres da corte, não voltariam à Madeira. Alguns anos depois, em 1607, a situação conheceu uma tentativa de alteração, provavelmente procurando-se explorar algum vazio de poder, tendo a Câmara do Funchal, face à conjuntura económica então vivida, pedido o regresso à ilha do capitão Simão Gonçalves da Câmara (III) (1565-c. 1630), 3.º conde da Calheta. O Conselho de Portugal ainda se pronunciou favoravelmente, mas advertiu que o conde não deveria tornar ao Funchal enquanto aí estivessem as tropas castelhanas do presídio de S. Lourenço, opinião que foi secundada pelo vice-rei de Portugal, D. Pedro de Castilho, bispo de Leiria que antes fora bispo de Angra (AGS, Secretarias..., liv. 1476, fls. 241v-244). O assunto voltaria a ser abordado em 1630 (VERÍSSIMO, 2000, 101-102), mas os condes da Calheta não voltariam à Madeira e, poucas décadas depois, o título passava à casa dos condes e depois marqueses de Castelo Melhor. [caption id="attachment_5109" align="alignleft" width="247"] Condessa da Calheta, Mariana Vasconcelos e Câmara, 1904.[/caption] O 1.º conde da Calheta faleceu no Funchal, a 4 de março de 1580 e o filho faleceu em Almeirim, em julho do mesmo ano, deixando um herdeiro de poucos anos de idade, Simão Gonçalves da Câmara (IV) (1565-c. 1630), 3.º conde da Calheta, que, segundo consta, nunca usou o título. Este veio a contrair matrimónio com D. Maria de Vasconcelos e Meneses, filha do 1.º conde de Castelo Melhor, e o seu herdeiro, João Gonçalves da Câmara (V) (1590-1656), usou o título de 4.º conde da Calheta. Depois da sua primeira mulher ter falecido de parto, o 4.º conde da Calheta voltou a casar e teve uma filha, D. Mariana de Lencastre Vasconcelos e Câmara (c. 1610-1698). Esta, por sua vez, casou com o primo João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa (1593-1658), 2.º conde de Castelo Melhor, e usou o título de condessa da Calheta e de Castelo Melhor, e, depois de viúva, como camareira-mor da rainha D. Sofia, usou ainda o título de marquesa de Castelo Melhor, tendo sido uma mulher de grande prestígio, que não recusou assumir pessoalmente a defesa da praça de Monção durante as campanhas da Aclamação. [caption id="attachment_5103" align="alignright" width="300"] Painel de Azulejos, Condes da Calheta.[/caption] Ao longo do séc. XVII e do XVIII, a condessa e marquesa de Castelo Melhor manteve os proventos e as prorrogativas que herdara na capitania do Funchal, pelo que teve de se bater em tribunal com a sua irmã, D. Inês de Noronha, marquesa de Nisa por casamento com D. Vasco Luís da Gama, e depois com outros primos (VERÍSSIMO, 1988, 75-76). A condessa nomeava o ouvidor, tinha o exclusivo da venda de sal, o padroado do convento de S.ta Clara e da mercearia de S.ta Catarina, etc., proveitos que passaram aos seus descendentes até à extinção das capitanias, em 1766. Nos meados do séc. XVII, os condes da Calheta tinham levantado um importante palácio na encosta de Belém, em Lisboa, com uma impressionante arcaria, ainda hoje existente, debruçada sobre um espelho de água. Este palácio veio a ser sucessivamente ocupado por serviços do Estado; nele decorreram os interrogatórios do processo Távora, em 1758, e foram depois instalados os arquivos militares; desde 1906, os serviços do Jardim Museu Agrícola Tropical, sucessor do Museu Agrícola Colonial e hoje o Centro de Documentação e Informação do Instituto de Investigação Científica Tropical. [caption id="attachment_5113" align="alignright" width="271"] Palácio da Rosa.[/caption] [caption id="attachment_5120" align="alignleft" width="201"] Lápide de D. Manuel de Noronha, 1564.[/caption] [caption id="attachment_5126" align="aligncenter" width="300"] Pormenor, Brasão e Armas dos Condes da Calheta, Palácio da Rosa.[/caption] Bibliog.: manuscrita: AGS, Secretarias Provinciales, liv. 1476; ANTT, Corpo Cronológico, parte I, 103-94; impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. 1, 2.ª ed. rev. e atualizada, Funchal, SRE, 1999; id., História da Madeira, vol. 2, Funchal, SRE, 1991; CENIVAL, Pierre de (trad. e anot.), Chronique de Santa-Cruz du Cap de Gué (Agadir), Paris, Paul Geuthner, 1934; FRUTUOSO, Gaspar, Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1968; NORONHA, Henrique Henriques, Nobiliário Genealógico das Famílias que Passarão a Viver a esta Ilha da Madeira depois do seu Descobrimento, que foi no Ano de 1420, [São Paulo], Revista Genealógica Brasileira, 1948; SILVA, Fernando Augusto da, e MENEZES, Carlos de Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., ed. fac-simile, Funchal, SRTC, 1998; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, SRTC, 2000; id., “A Capitoa-Donatária”, Islenha, n.º 3, jul.-dez. 1988, pp. 74-90. Rui Carita (atualizado a 11.07.2016)
arsenal de santiago
[caption id="attachment_13414" align="alignleft" width="492"] Varadouro do arsenal. Arquivo Rui Carita.[/caption] Ao longo da história da Madeira escasseiam as informações sobre a construção e a manutenção dos inúmeros navios (Navios) que demandaram a baía do Funchal. No entanto, sobreviveu através dos Arquivos da Câmara Municipal do Funchal (CMF) o primeiro documento, enviado pelo Rei D. João I (1357-1433), a 11 de maio de 1425, onde se agradece o apoio dispensado na Madeira, em princípio, a um navio real que ali chegou desmantelado. Nas primeiras informações existentes sobre o povoamento, Francisco Alcoforado refere na sua Relação que, com o aproveitamento das madeiras, logo nos primeiros tempos do povoamento, se começaram a construir na Madeira navios de gávea e castelo de proa, que até então “não havia no reino, até porque não tinham para onde navegar”, só existindo caravelas no Algarve e barinéis em Lisboa e Porto (ALCOFORADO, 1975, 94), o que é, certamente, um certo exagero do cronista. As informações existentes a este respeito não são, assim, propriamente sobre a construção de navios, mas sim sobre pequenas embarcações, como refere depois Gaspar Frutuoso (1522-1591) em relação ao Porto Santo, onde havia de início dragoeiros tão grossos, que se fabricavam com o tronco de uma só árvore embarcações para seis e sete homens, utilizadas para a pesca, embora também acrescente que já havia então poucos e que iam faltando. O cronista açoriano, entretanto, volta a citar a informação de Alcoforado sobre a construção de navios de gávea e de castelo de avante, conforme lhe transcreveu Jerónimo Dias Leite (c. 1537-c. 1593). No elogio que fez dos feitos do governador Tristão Vaz da Veiga (1537-1604), por quem nutria uma enorme admiração, Gaspar Frutuoso refere que o mesmo mandou fazer dois navios no Funchal. O primeiro era uma galé, que “saiu uma peça muito bem-feita”, com 17 remos de banda e um esporão de abordagem em bronze, e a segunda uma fragata de 12 remos por banda, para andar vigiando por fora e ajudar a galé. Cita, inclusivamente, que a fragata fora lançada ao mar no dia de S.to António, 13 de junho de 1589, tendo sido paga através do dinheiro da imposição destinado às fortificações (FRUTUOSO, 1968, 205). Claro que não se tratava de navios de longo curso, e, inclusivamente, o termo “fragata” não tinha a significação que depois assumiu, sendo uma embarcação, por certo, de fraco porte. Ao longo dos sécs. XVII e XVIII não há mais informações específicas deste género, limitando-se a ribeira da praia do Funchal (Praias) a proceder a reparações sumárias de navios em trânsito, para o que havia calafates e outros mestres. Construíram-se pequenas embarcações, de que há informação não só no Funchal, mas também em Machico e em Câmara de Lobos, logicamente, para a faina da pesca e cabotagem. Por esses séculos devem ter funcionado zonas de manutenção nos limites da praia de calhau do Funchal, uma das quais foi colocada a descoberto com a aluvião de 20 de fevereiro de 2010 e escavada pelo arqueólogo Daniel Sousa, nos meados de 2013. Estas escavações revelaram a área de um antigo varadouro ou arsenal na foz da ribeira de São João, abaixo do nível do antigo Hospital de São Lázaro, com evidências arqueológicas dos sécs. XVII, XVIII e XIX, conjunto entulhado, provavelmente nos meados do século, com as obras da Estrada da Pontinha e, depois, com a construção do Prq. de Santa Catarina. Para além de uma zona de antigas fornalhas, com tijolo refratário de várias épocas, exumou-se um pilar de um cabrestante de boas dimensões e, mais recuada, a base de um outro. Esta área deveria servir igualmente de apoio ao forno da cal dos meados do séc. XIX existente nos arrifes de São Lázaro e de Santa Catarina, tal como ao pequeno forte existente naquele local, trabalho geral de que sobreviveram algumas fotografias. Neste local deve ter funcionado também, meados do séc. XIX, um pequeno arsenal nos para apoio à manutenção das barcaças e fragatas do carvão da casa Blandy, Bros. & C.ª, cujos empregados residiam num bairro nesta área, pagando rendas económicas, antes de se concentrarem, perto dos finais do séc. XIX no bairro de Santa Maria e do Corpo Santo. Neste bairro, existiam inúmeras pequenas oficinas de calafate, encontrando-se registados em 1847 30 mestres, que consertavam pequenos barcos e canoas para o serviço de pesca e do bomboto no porto, sendo as reparações executadas ao ar livre e na praia do Calhau. Este campo passou por vários nomes: campo das Loucas, de São Tiago e dos Chalons, dado ali se fazerem exercícios militares dos milicianos aquartelados na fortaleza; foi depois Pç. Académica e campo de Carlos, quando do seu arranjo para as exposições por ocasião da visita régia de 1901; e, finalmente, campo Almirante Reis, com a implantação da república. Zona de habitação, trabalho e lazer por excelência dos marítimos da cidade, ali veio a nascer o Club Sport Marítimo (Marítimo) e, depois, o União Football Club (União da Madeira), sendo nos inícios do século quase todos os praticantes destes clubes empregados no bomboto e demais serviços marítimos. O primeiro arsenal digno desse nome foi levantado perto dos finais do séc. XIX, em 1880, provisoriamente e depois de forma definitiva, a leste da Pç. Académica e do Campo de Santiago, pela casa Blandy, Bros. & C.ª e em terrenos inicialmente de serventia militar. Com base na cartografia militar da área, é possível seguir as várias fases de instalação, com os projetos da área ainda desocupada, em 1886 (GEAEM, 5513-1A-12A-16), o projeto geral de instalação da primeira fase do Arsenal de São Tiago, então Arsenal do Blandy, em 1897 (GEAEM, 5519-1A-12A-16), e as aquisições do novo lote para ampliação do arsenal, entre 1921 e 1929 (GEAEM, 5549-1A-12A-16, 10931-2A-24A-111 e 7478-1A-12A-16). O Ministério da Guerra, pelo dec. n.º 1057, de 18 de novembro de 1914, iniciou um processo de venda dos terrenos de serventia militar e, inclusivamente, de fortes e fortalezas desativados, pelo que o arsenal ocupou os dois lotes de terreno entre o pequeno Ribeiro Seco de Santa Maria Maior e a Fortaleza de São Tiago, adjacentes à antiga Muralha do Corpo Santo. O Arsenal de Santiago, ou de São Tiago, transformou-se depois na Madeira Engineering Company (MEC), onde trabalhariam os mais habilitados técnicos madeirenses da área. A 9 de novembro de 1992, a Região Autónoma da Madeira, a CMF, a MEC e a Sociedade Imobiliária do Terreno do Arsenal celebraram um protocolo relativo à transferência da empresa industrial de reparação naval e metalomecânica com equipamentos e estaleiro do Arsenal de São Tiago para o Parque Industrial da Cancela e para o Terminal Marítimo do Caniçal, tendo sido posteriormente construído no antigo arsenal, na zona velha da cidade, o Hotel Porto Santa Maria. Na zona do antigo Mercado D. Pedro V, depois se levantou a Alfândega Nova, também existiu, entre os finais do séc. XIX e os inícios do XX, um estaleiro ou arsenal, propriedade da Cossart Gordon e depois da Empresa do Cabrestante, de que foi impulsionador e gerente João de Araújo. Neste estaleiro se construíram os veleiros Gonçalves Zarco e Fernando, para a firma Baganho Nunes & C.ª Lda., do continente, o vapor São João daquela empresa, e várias lanchas de cabotagem e tráfego do Porto do Funchal. Era nesse estaleiro que se fazia, antes do prolongamento da Muralha da Pontinha, em 1933, o serviço de carga e descarga dos navios surtos na baía, para o que dispunha de um avultado número de embarcações e trabalhadores. Do cabrestante saíam continuamente volumes de mercadorias transportadas por juntas de bois com destino ao portão da Alfândega, na R. da Praia, de que ficaram inúmeras fotografias. Com a abertura da Av. do Mar na déc. de 40 do séc. XX, este estaleiro passou para a Praia Formosa, mas em pouco mais de duas décadas era extinto. Nos arredores do Funchal funcionaram outras empresas semelhantes, como a casa Wilson & Sons, no sítio do Gorgulho, nos arredores da Qt. Calaça, que era utilizada para reparação das diversas embarcações daquela firma fornecedora de carvão de pedra, de que subsistem as paredes dos armazéns. A agência de navegação Cory, Bros. & C.ª também tinha um pequeno estaleiro e arsenal no sítio do Portinho, na freguesia do Caniço, de que subsistiram igualmente as ruínas dos armazéns. Bibliog.: manuscrita: DSIE, GEAEM, Cartografia, 5513-1A-12A-16, Alfredo Augusto de Vasconcellos, Planta do Campo de S. Thiago, Funchal, 1886; Ibid., 5519-1A-12A-16, Planta: Projecto de Melhoramento do Campo de S. Thiago, Funchal, 1897; Ibid., 5549-1A-12A-16, Carlos W. Sardinha, Propriedade Requerida para Venda, Ampliação do Arsenal Blandy, Funchal, 1922; Ibid., 10931-2A-24A-111, Carlos W. F. Sardinha, Planta dos Terrenos Adquiridos ao Ministério da Guerra, ao Sítio de S. Tiago, na Cidade do Funchal, pela Firma Blandy Brothers & C.ª, Funchal, 1922; Ibid., 7478-1A-12A-16, Projecto de Melhoramento do Campo de S. Tiago, Funchal, 1929; impressa: ALCOFORADO, Francisco, Epanáfora Amorosa: Descobrimento da Ilha da Madeira: Ano 1420, ed. lit. de José Manuel de Castro, Braga, J. Castro, [1975]; Arquivo Histórico da Madeira, vol. XV, Funchal, Junta Geral, 1972; CALDEIRA, Abel Marques, O Funchal no Primeiro Quartel do Século XX: 1900-1925, Funchal, Eco do Funchal, 1964; FRUTUOSO, Gaspar, Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1968; LEITE, Jerónimo Dias, História do Descobrimento da Ilha da Madeira e da Descendência Nobilíssima dos Seus Valorosos Capitães, introd. e notas de João Franco Machado, Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1949; SILVA, Fernando Augusto da e MENESES, Carlos de Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998. Rui Carita (atualizado a 12.10.2016)
arquitetura
Muitos autores consideram a arquitetura como a primeira das artes em termos de relevância social, dado o seu alargamento ao urbanismo e à arquitetura paisagista, com todos os trabalhos de remodelação de terrenos e de sistematização da paisagem, etc. Neste caso, teríamos de tratar toda a Madeira e Porto Santo como uma unidade, com a construção das levadas, socalcos, pequenas e grandes construções habitacionais, pequenas e grandes replantações florestais, numa obra grandiosa no seu conjunto, que teria por objeto a obra-prima do trabalho criativo madeirense na modelação da paisagem. [caption id="attachment_4002" align="aligncenter" width="339"] Levada[/caption] Mas consideremos apenas a arquitetura na sua definição mais simples, ou seja, como a construção de um abrigo para o indivíduo, para a coletividade ou para as suas funções e, simultaneamente, como uma expressão da cultura e modo de viver desse indivíduo e dessa coletividade. Nos primeiros tempos de povoamento, logicamente, a arquitetura não se encontrava ligada à ideia de um arquiteto, de um responsável pela tarefa de síntese da obra construída, tal como hoje entendemos, pois tratava-se de uma função perdida no anonimato dos operários e artífices, quando não na própria família que erigia a sua habitação. Aliás, a individualização do artista, do criador intelectual, é recente e desenvolveu-se ao longo do séc. XVI, essencialmente na pintura, numa época em que começou a haver uma responsabilização verdadeira neste sentido, com a consequente assinatura da obra e espírito de paternidade artística, o que não acontecia até então. É na arquitetura popular e primitiva das zonas rurais (Arquitetura rural; Arquitetura tradicional/popular), como Santana e São Jorge, mas não só, que poderemos procurar as primeiras construções madeirenses, quase totalmente desaparecidas dos principais centros urbanos. Estas áreas do norte da ilha, mais pobres e com dificuldades de acesso ao mar, conseguiram preservar as formas iniciais de habitação, o que não foi possível nos outros locais. Santana, p. ex., terra essencialmente de trigo e milho, com dificuldades na obtenção de pedra, preservou mais as habitações de madeira e colmo até aos nossos dias do que as outras freguesias, onde os sucessivos booms económicos do açúcar, do vinho, da banana e do turismo quase as fizeram desaparecer. O próprio Funchal foi, inicialmente, um burgo de madeira, tendo-nos chegado algumas referências às primeiras alterações feitas para erigir construções mais sólidas e seguras. Assim, informa-nos Jerónimo Dias Leite que a primeira casa de pedra que se fez, depois de acabadas as igrejas, foi a de Constança Rodrigues, filha de Diogo Afonso de Aguiar e neta de Zarco, junto à antiga igreja de S. Pedro, depois de S. Paulo. Constança Rodrigues não tinha casado e ficara a viver com os avós, pelo que a construção da casa em questão deve datar de pouco depois de 1471, ano provável da morte de Zarco. Dias Leite também informa que, pouco depois da construção da casa de D. Constança e junto ao denominado campo do Duque, se fez a primeira casa sobradada, obra que terá sido executada em 1475. Mandou-a construir João Manuel, de cedro branco da ilha (cedro lavrado), e terá sido tomada ao tempo por grandiosa e admirável, uma vez que todas as outras casas que havia no local eram térreas e de tabuado, o que deu origem a capítulos ao rei contra o dito João Manuel, acusando-o de que fazia torre, onde parecia que queria fazer um forte e levantar-se contra o Funchal e contra a coroa. Mais acrescenta Jerónimo Dias Leite, adiantando que a dita casa ainda estava de pé em 1574 e que era seu proprietário António de Carvalhal, sendo então essa a residência de sobrado mais baixa que havia naquela área do Funchal. Eram assim estas primeiras casas executadas em madeira de tabuado e cobertas a colmo, provavelmente, muito semelhantes às que ainda hoje existem em Santana, de certo gosto gótico e telhado de duas ou três águas. Mais tarde, com a necessidade de construção do sobrado, ter-se-á evoluído para a obra em pedra não aparelhada, usada inicialmente sem qualquer cimento ou argamassa e somente para apoio do mesmo sobrado. Refere ainda o Cón. Jerónimo Dias Leite que havia muita madeira na ilha, que se serrava com engenhos de água, de que aliás ficaram alguns topónimos, como Serra de Água, em várias freguesias, onde se obtinham grandes traves, mastros, chaprões, etc., que se levavam para muitas partes do continente. Acrescenta o cronista que, da banda do sul, não era tanta a madeira, “porque se queimou muita, e a outra se gastava nos engenhos de açúcar”, que todos usavam desse lado da ilha, como se confirma na documentação camarária (ABM, 1972, 38, 133 e 155). Havia, entretanto, na parte do norte, grande número de engenhos de água sempre a serrar, e as árvores eram aí de tal modo grossas e crescidas que um til, achado no Funchal, se mostrou demasiado largo para 10 homens juntos, com os braços dados, o conseguirem abraçar. A árvore em questão fazia tanta copa, no descrever do cronista, que cobria a área da cadeia velha, indo da ribeira de João Gomes à de Santa Luzia, o que, por certo, será exagero do autor. A construção especificamente em madeira e coberta a colmo provava-se muito perigosa, tendo chegado a arder quarteirões inteiros, como aconteceu no centro da cidade, nos finais do séc. XVI, numa área onde ainda hoje se encontram as ruas da Queimada de Cima e da Queimada de Baixo. Aliás, já em 1470, o duque D. Fernando determinou que se descobrissem de palha e cobrissem de telha todas as casas da R. dos Mercadores, então um troço da atual R. de Santa Maria. Saliente-se que os moradores mostraram, na câmara do Funchal, uma certa resistência a essa determinação, alegando a dificuldade que teriam, nesse inverno de 1470, em transportar as madeiras pelo mar, assim como em obter telha e cal para a reforma determinada. A cal era essencialmente importada do Porto Santo, vindo a telha muitas vezes do continente e até de Castela, como referem testamentos dos finais do séc. XV. Também de Castela vinha material para canalizações, além de olaria diversa. A mais antiga edificação que chegou até nós deve ser uma pequena casa de planta quadrangular, com uma porta de arco ogival e duas seteiras, ao alto de Santo Amaro, conhecida como “Torre do Capitão”, nome que não deve indicar o seu proprietário inicial, mas sim um dos capitães de ordenanças seu descendente ou um novo proprietário (Arquitetura senhorial). Terá pertencido a Garcia Homem de Sousa, genro de Gonçalves Zarco, pois Gaspar Frutuoso, ao referir-se-lhe nas Saudades da Terra, escreveu que, por ter diferenças com seus cunhados, teria feito essa torre, então junto da antiga capela da Madre de Deus que ali existia (FRUTUOSO, 1968, 217-218), tendo passado depois à evocação de S.to Amaro. Apresenta ainda hoje fortes cunhais, sinal provável de ter sido mais alta do que atualmente é, compreendendo agora um único piso. Aliás, as duas cantarias horizontais acima da porta ogival sugerem ter havido ali uma varanda, mas de construção posterior. Além de ser a edificação mais antiga da Madeira, é uma das mais antigas da expansão europeia do séc. XV. [caption id="attachment_3926" align="alignleft" width="199"] Seteira Torre do Capitao[/caption] [caption id="attachment_3923" align="alignleft" width="199"] Seteira Torre do Capitao[/caption] [caption id="attachment_3929" align="alignleft" width="300"] torre do capitao 1940[/caption] [caption id="attachment_3932" align="alignleft" width="300"] Torre do capitao 1980[/caption] [caption id="attachment_3935" align="aligncenter" width="1024"] Torre do Capitao 1989[/caption] [caption id="attachment_3938" align="aligncenter" width="630"] Torre do Capitao 2000[/caption] Tal como os genros de Zarco, outros fidalgos da Madeira terão tido as suas casas fortificadas, nomeadamente os Abreus, na Lombada do Arco, em 1531, onde sabemos terem ocorrido recontros militares, inclusive com peças de artilharia, situação que levou a reparos régios. Também as casas de João Esmeraldo, na Lombada da Ponta do Sol, devem ter sido fortificadas, até porque o fidalgo esteve envolvido nos referidos recontros de 1531, tal como as dos Freitas, em Santa Cruz, e as dos Vaz Teixeira, de Machico, entre outros, num complexo de edificações que não chegou aos nossos dias. [caption id="attachment_3754" align="alignleft" width="280"] Janela dita de Colombo 1495[/caption] Desconhecemos a situação da construção na ilha do Porto Santo durante o séc. XV, embora tenham chegado até nós, no edifício que em meados do séc. XX servia de residência paroquial e onde hoje se encontra instalado o Museu Colombo, duas janelas góticas de alvenaria de tijoleira datáveis da segunda metade de Quatrocentos. Tudo leva a crer que possam ter pertencido à habitação de Bartolomeu Perestrelo nas suas deslocações pontuais à capitania, pois que nunca aí residiu em permanência, devendo datar, no entanto, de algumas décadas após a sua morte. A ideia de poder ter servido como casa a Cristóvão Colombo é dificilmente sustentável, pois quando o navegador casou com Filipa Moniz, filha do primeiro capitão do Porto Santo, em 1479, já Bartolomeu Perestrelo tinha falecido, e a viúva, em 1458, com autorização do infante D. Henrique e do rei D. Afonso V, vendera a capitania a Pedro Correia, capitão do donatário da ilha da Graciosa, nos Açores. Bartolomeu Perestrelo (II), alguns anos mais tarde, haveria de recuperar a capitania, mas então também já Cristóvão Colombo havia falecido. Os biógrafos do almirante, no entanto, dão o filho de Colombo e de Filipa Moniz como tendo nascido em Lisboa ou no Porto Santo, entre 1479 e 1480, mas mais por tradição oral, com certeza, do que por verdade histórica. A ilha do Porto Santo desenvolveu uma arquitetura popular própria, utilizando barro para cobrir as casas de habitação, estábulos e outras construções de apoio, constituindo as denominadas casas de salão. Este tipo de construção não existe no continente nem na vizinha ilha da Madeira, mas é muito comum nas Canárias, especialmente em Tenerife, e em outras ilhas mediterrâneas, como Creta, todas com condições climatéricas semelhantes. As casas de salão integram-se de maneira muito especial na paisagem, aproveitando os suaves declives locais, com o terreno a ser parcialmente escavado para a construção. A cobertura, de uma ou duas águas, fica assim quase ao nível do terreno posterior, podendo-se passar a pé do mesmo para cima dela, facilitando assim a manutenção das coberturas de barro. Com o aumento do povoamento e das estruturas concelhias, principalmente no Funchal, começam a ser os próprios duques, administradores da Ordem de Cristo, primeiro D. Fernando e depois o seu filho D. Manuel, a incentivar as obras nos concelhos, designadamente as acessibilidades, de que são exemplo a construção de pontes e o calcetamento de algumas ruas (Urbanismo). Com a orientação de D. Manuel, foram levantados, no Funchal, os edifícios da câmara e o paço dos tabeliães, prontos em 1492; o convento de S.ta Clara, concluído em 1496; a igreja nova, iniciada em 1493, ainda em obras depois de 1514 (data em que se rematou a torre com coruchéu), vindo a servir de sé (Sé); o hospital da Santa Casa da Misericórdia e a Alfândega nova, mandados levantar em 1508. Estas obras representaram pesados encargos e realizaram-se numa altura de crise açucareira, tendo-se executado tudo por pressão de D. Manuel, principalmente a construção da futura sé do Funchal, estruturante de todo o projeto urbanístico da cidade, o mesmo se tendo passado em Santa Cruz, onde, por volta de 1502, se levantou a igreja matriz do Salvador, seguindo uma estrutura semelhante à da sé e que estaria pronta por volta de 1511, quando ali começaram a funcionar os serviços religiosos, havendo quitações, nos anos seguintes, das despesas efetuadas. Do hospital manuelino do Funchal, mandado levantar em 1508, terão ficado as duas grandes janelas geminadas, hoje remontadas no parque arqueológico do Museu das Cruzes; resta ainda uma outra desse cariz, numa quinta particular, a Qt. da Palmeira, e que pertenceu à chamada “Casa de Colombo”. As construções dessa área tinham sido adquiridas por João Esmeraldo, por volta de 1493, tendo depois ali executado obras o pedreiro Gomes Garcia. Este mestre estava a trabalhar no local a 10 de setembro de 1495, altura em que se comprometeu, com a câmara do Funchal, a executar obras nas fontes de João Dinis, junto às casas do capitão (Fortaleza e palácio de S. Lourenço). [caption id="attachment_3764" align="alignright" width="305"] Casa Colombo de João Esmeraldo[/caption] [caption id="attachment_3942" align="alignnone" width="392"] Casa Colombo Porto Santo[/caption] Das várias câmaras municipais quinhentistas, em princípio, só resta a de Santa Cruz, com o seu muito bonito portal, encimado pelas armas de D. Manuel, mas que não temos a certeza de ser o original, tal como as duas grandes janelas geminadas, demasiado altas para uma construção dos inícios do séc. XVI, devendo ter sido alteadas e reformuladas posteriormente. Da época da reforma urbanística do Funchal determinada por D. Manuel, subsistiu parte da importante obra da Alfândega nova, que se seguiu à construção da sé e para a qual transitou a equipa do mestre das obras reais, Pero Anes. Do importante conjunto de arquitetura civil levantado em toda a Ilha por esta época, do qual faz eco Saudades da Terra, com largas referências a importantes paços, possuidores de salas de jogo da péla e amplos jardins, infelizmente e face à pressão urbanística dos séculos seguintes, poucos elementos chegaram aos nossos dias. Salvo o solar de D. Mécia, que ainda chegou aos finais do séc. XX com parte da estrutura edificada nos meados de Quinhentos, e que foi então substituído por uma cópia revivalista, ou salvo as casas de João Esmeraldo, que passaram à história com a fama de terem sido também residência do aventureiro Cristóvão Colombo, e de que quase só ficaram as fotografias, praticamente tudo foi sendo sucessivamente reconstruído. Mas subsistiram, em particular na costa sul da ilha, alguns elementos arquitetónicos, como as pequenas portas góticas de Machico e de Santa Cruz, e uma ou outra janela ou porta no Funchal, nomeadamente, nas ruas Direita, dos Barreiros, dos Netos, da Conceição e do Esmeraldo. [caption id="attachment_3998" align="alignright" width="189"] Portal lateral Loreto[/caption] [caption id="attachment_3950" align="alignleft" width="234"] Janela Manuelina da Rua dos Netos[/caption] [caption id="attachment_3989" align="aligncenter" width="192"] Porta Manuelina-Loreto[/caption] [caption id="attachment_3992" align="alignright" width="218"] Porta Manuelina de Machico 1520[/caption] [caption id="attachment_3995" align="alignleft" width="176"] Porta Rua dos Barreiros 1520[/caption] A construção civil divulgou, a partir dos meados do séc. XVI, a utilização de ombreiras chanfradas, simplificando progressivamente os lintéis, podendo ter restado elementos desses anos nas edificações da Trav. do Forno, no Funchal, que um desenho de Max Römer da déc. de 40 do séc. XX apresenta com um largo arco gótico. Em Santa Maria Maior, na Trav. das Torres, subsiste uma pequena construção de carácter popular, com janelas geminadas de mainel chanfrado, que poderá ser uma das mais antigas deste bairro, embora tenha sido sucessivamente reconstruída nos tempos seguintes. [caption id="attachment_3946" align="aligncenter" width="331"] Casa da Travessa das Torres[/caption] Na atual R. D. Carlos, na esquina com a R. dos Barreiros, subsiste também uma janela geminada com porta, datável da transição para o séc. XVII, hoje integrada numa complexa construção torreada, sensivelmente dessa época, mas que se articula com uma outra, já bem do séc. XVIII, face à escala, senão mesmo dos inícios do XIX, quando foi reformulada toda a área, na sequência da aluvião de 1803. Interiormente, este conjunto edificado apresenta preexistências mais antigas, com estruturas de madeira que mostram vestígios de pintura, provavelmente dos inícios ou meados de Quinhentos. Na continuação da fachada desta construção, para a R. dos Barreiros, existia uma pequena janela do séc. XVI que recentes obras de reabilitação geral do conjunto substituíram por uma cópia. O bairro de Santa Maria Maior, que desde o início do povoamento acolheu sobretudo artesãos, teve também outro tipo de ocupação, pontual e mais senhorial, como provam alguns edifícios de certo porte, mas datados de épocas mais avançadas, nomeadamente, sécs. XVII e XVIII. Resiste, entretanto, na R. de Santa Maria e na entrada do Lg. do Corpo Santo, uma gárgula em forma de canhão, dos finais do séc. XVI ou inícios do seguinte, que parece ter pertencido a uma residência de certo aparato. [caption id="attachment_4023" align="alignright" width="224"] Gárgula do Corpo Santo[/caption] [caption id="attachment_4017" align="alignleft" width="240"] Fornos do Corpo Santo[/caption] [caption id="attachment_4020" align="aligncenter" width="225"] Fornos do Corpo Santo[/caption] No mesmo largo, subsiste igualmente aquilo que parece terem sido fornos comunitários, neste caso duplos, colocados ao nível do primeiro piso e estranhamente salientes à residência onde hoje estão integrados. Um desenho de Eduard Hildebrandt (1817-1868), viajante dos meados do séc. XIX, regista um forno semelhante, então localizado em “Oriental Street Scene"; um outro existia ainda, por volta de 1980, na R. dos Aranhas. [caption id="attachment_3910" align="alignright" width="317"] Janela da gárgula[/caption] [caption id="attachment_4010" align="alignnone" width="453"] Oriental Street Scene de Eduard Hildebrandt (1850)[/caption] As primeiras grandes alterações urbanísticas e arquitetónicas do Funchal surgiram na segunda [caption id="attachment_4039" align="alignright" width="180"] Torre do colegio 1575[/caption] metade de Quinhentos, em concreto, após o saque de corsários franceses de 1566, quando foi destacado para a Madeira um habilitado mestre das obras reais, Mateus Fernandes (c. 1540-c. 1597), responsável pelo projeto de fortificação da cidade e, depois, pela sua execução, mas que dentro das suas funções estendeu a atividade às restantes obras executadas com dinheiros públicos, designadamente as camarárias e as religiosas. Este mestre acompanhou, p. ex., os vários planeamentos para o Colégio dos Jesuítas, sendo, por certo, o autor da torre; deu parecer sobre obras camarárias; forneceu projetos para várias igrejas e executou inclusivamente desenhos para retábulos, mas os trabalhos que subsistiram devem ser, essencialmente, os militares (Arquitetura militar). Alguns pormenores da ala do Colégio dos Jesuítas que está voltada para a R. do Castanheiro devem ser da sua autoria, assim como o desenho da fachada da igreja, embora dentro dos modelos arquitetónicos divulgados pela Companhia à época e apesar de apenas ter sido iniciada em 1629, tal como a igreja matriz de São Pedro, que, construída na déc. de 90 do séc. XVI, deve ter mantido o desenho por si executado por volta de 1570. Seguiu-se o mestre Jerónimo Jorge (c. 1570-1617), em 1575, que teve uma presença intermitente na ilha, fruto dos inúmeros conflitos em que se viu envolvido na disputa dos dinheiros da imposição, montantes utilizados para as obras públicas que o governador entendia serem para a defesa militar e a câmara para as muralhas das ribeiras. Para além da obra do novo baluarte da fortaleza de S. Lourenço, que deu nome à mesma e que acabou por ter a designação de baluarte do castanheiro, estendeu a sua atividade às obras civis e religiosas, de que a mais identificável na atualidade é o conjunto da loggia maneirista do antigo paço episcopal e a capela de S. Luís de Tolosa, que levantou entre 1600 e 1609. O seu trabalho foi continuado pelo filho Bartolomeu João (c. 1590-1658), ao qual muito poucas obras, para além das militares, se podem atribuir com segurança. Das construções civis urbanas dos sécs. XVI e XVII, ficou, na R. da Carreira, uma interessante varanda de três arcadas de volta perfeita em cantaria rija insular que descarregam em pilastras chanfradas e pequenas bases relevadas, sendo o conjunto rematado por cornija e assente em balcão igualmente relevado. Interiormente, esta arcada parece ter correspondência para poente através de uma porta de moldura de cantaria idêntica, com largo lintel e decoração por arquivolta relevada. Esta varanda encontra-se integrada na antiga Photographia Vicentes, hoje museu, podendo a porta inferior de acesso ao pátio ser mais ou menos contemporânea da varanda, dado apresentar moldura chanfrada; todo o resto do edifício é predominantemente oitocentista, período a que corresponde a sua utilização como estúdio de fotografia. [caption id="attachment_4035" align="alignleft" width="305"] Varanda dos Vicentes[/caption] [caption id="attachment_4032" align="alignright" width="355"] Varanda dos Vicentes[/caption] A partir da déc. de 60 do séc. XVII, a costa sul da ilha, e não só, apresenta um interessante surto construtivo, essencialmente motivado pelo aumento da exportação do vinho e do comércio geral atlântico, onde participaram ativamente os madeirenses. Algumas antigas residências senhoriais rurais foram reformuladas por estes anos, como o solar dos Esmeraldos, na Lombada da Ponta do Sol, praticamente o único que chegou até nós com a designação de solar e que, depois de ter tido obras, por volta de 1600, foi objeto de uma ampla intervenção, em cerca de 1679, e de outra no século seguinte. No entanto, as principais famílias terra-tenentes foram, entretanto, fixando-se, progressivamente, na cidade do Funchal, deixando as antigas residências para temporadas estivais esporádicas. Ao longo do séc. XVII, levantaram-se inúmeras residências senhoriais no Funchal, mas muito poucas terão mantido as estruturas iniciais, salvo provavelmente a da família Ornelas, à R. do Bispo, embora com ampliações posteriores. Uma das residências reformuladas nos meados de Seiscentos terá sido a ocupada pelo estanco do tabaco, onde terá vivido o importante comerciante Mateus da Gama, tal como o intérprete dos navios estrangeiros, o poeta Manuel Tomás (1585-1665), na rua que ficou com essa denominação, a R. do Estanco Velho. [caption id="attachment_3982" align="alignright" width="196"] Janela Estanco Velho[/caption] [caption id="attachment_3976" align="alignleft" width="252"] Estanco velho[/caption] [caption id="attachment_3979" align="aligncenter" width="240"] Estanco Velho[/caption] O conjunto terá reaproveitado estruturas anteriores, possivelmente ainda do séc. XVI, dado o lintel de gosto manuelino de uma das janelas e a utilização de impostas chanfradas, tal como cantarias boleadas, em outras, a que se deu uma aparente uniformidade, entre os meados e os finais de Seiscentos. A leitura do prédio de serviços e habitação do edifício da R. do Estanco Velho, com a utilização de amplos óculos nos pisos superiores, indicia que estes deveriam servir para arejar os armazéns de tabaco. Nos anos seguintes, os óculos, com uma dimensão menor, utilizaram-se para a iluminação de escadas e, de forma mais alargada, quase sempre gradeados, visando o arejamento dos pisos térreos, habitualmente usados como lojas de arrecadação de cereais e de outros víveres e também para armazenar pipas de vinho. O antigo edifício do estanco do tabaco deve ter passado por inúmeras alterações, vindo a ser dotado de torre de ver o mar, aspeto que só deve ter começado a tomar conta da paisagem urbana nos meados desse séc. XVII, tendo o destaque até então sido das torres das igrejas. A utilização de torres nos edifícios dos grandes proprietários e comerciantes era essencial para a visão do movimento marítimo na baía do porto do Funchal, ficando assim os mesmos a saber quais as embarcações que entravam e, por conseguinte, que produtos deviam ultimar para exportação. Será posterior ao séc. XVIII a instalação de postos de vigia nas encostas da baía, quer no Palheiro Ferreiro quer na área de Avista Navios, denominação que prevalece ainda para a Nazaré, na freguesia de São Martinho, de onde se enviava informação aos comerciantes no centro do Funchal, primeiro por estafeta e depois por sinais de bandeira. O sistema de comunicação das entradas dos navios instituiu-se entre os finais do séc. XVIII e os inícios do XIX com a construção do Pilar de Banger. O pilar foi levantado em 1798, pelo comerciante inglês John Light Banger, para servir de cabrestante para as mercadorias das embarcações comerciais fundeadas na baía, mas o aumento exponencial do calado das mesmas nesses anos impossibilitou, então, a utilização inicialmente prevista. Dada a sua monumental altura (30 m) e localização, o pilar passou a ser utilizado para o registo dos navios que entravam na baía, hasteando a bandeira da companhia dos mesmos, uma informação que se recebia do alto do Palheiro ou do alto de Avista Navios. Este pilar haveria de se constituir quase como ex-libris da cidade, pelo que a sua demolição para a construção da futura Av. do Mar, nos anos 30 do séc. XX, foi alvo de enorme contestação. A arquitetura madeirense, como também muita da demais arquitetura portuguesa, não assimilou os parâmetros de gosto do barroco internacional, ficando-se por uma grande contenção exterior, de tradição maneirista austera, embora multiplicada em escala; mas o mesmo não se verifica no interior, de grande exuberância decorativa. A igreja madeirense preservou e acautelou o seu património construído, porém, tal não aconteceu com a sociedade civil, excecionalmente móvel e fluida, dividida entre interesses comerciais por vários continentes e altamente influenciável por todas as modas vindas de fora. O gosto barroco concentrou-se, assim, no empolamento de alguns portais de capelas, com entablamentos complexos e frontões curvos, como mostra a de S.to António da Mouraria, levantada no pátio da Alfândega do Funchal, provavelmente sob projeto do capitão e mestre das obras reais Inácio Gomes Fragoso, em 1715 (Arquitetura religiosa). [caption id="attachment_3956" align="alignleft" width="210"] Portal da residência dos Ornelas, Rua dos Bispo[/caption] [caption id="attachment_3959" align="aligncenter" width="249"] Portal da capela de Stº António da Mouraria 1715[/caption] [caption id="attachment_3953" align="alignleft" width="196"] Portal antiga Misericórdia do Funchal[/caption] [caption id="attachment_3962" align="alignleft" width="393"] Remate do Portal da antiga Misericórdia do Funchal[/caption] [caption id="attachment_3965" align="aligncenter" width="607"] Misericórdia do Funchal 1925[/caption] [caption id="attachment_3968" align="alignleft" width="206"] Portal da antiga capela Sta Isabel[/caption] [caption id="attachment_3972" align="aligncenter" width="221"] Residência da família Ornelas, Rua do Bispo - 1950[/caption] De uma forma geral, a animação do barroco internacional aparece na arquitetura madeirense somente em meados do séc. XVIII e, talvez mais especialmente, nas obras realizadas após o terramoto de 1748, conduzidas pelo capitão e mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins (c. 1710-1781), muitas das quais já anunciando o rococó. Residências de certo aparato, como a casa que pertenceu à família Tomaszewski e depois aos Ornelas e Vasconcelos, edifício que deve datar de 1700 e que é hoje sede do Instituto de Gestão da Água, apresentam-se exteriormente com uma austera fachada maneirista. O gosto barroco aparece timidamente na cachorrada de suporte das varandas do andar nobre desta edificação, já mais complexas, e nas molduras das janelas do mesmo andar, que devem pertencer a uma campanha de obras posterior. O mesmo esquema aparece no palacete do capitão Nicolau Geraldo de Freitas Barreto, levantado por volta de 1740, que foi remodelado em 1989 para servir de sede à Marconi, depois de ter sido pasto das chamas, em 1986, sendo hoje utilizado pelo Tribunal de Contas do Funchal. Apresenta uma longa fachada de 10 janelas altas e com varanda gradeada, e um complexo portal com largo entablamento, sobre o qual assenta um nicho que terá albergado as armas do capitão Nicolau Geraldo, que se repetiam no teto da capela interior. [caption id="attachment_3880" align="alignright" width="271"] Tribunal de Contas_3287[/caption] [caption id="attachment_3874" align="alignleft" width="171"] Casa dos Tomaszewski[/caption] [caption id="attachment_3877" align="aligncenter" width="199"] Casa dos Tomaszewski[/caption] No Funchal, também a casa dos Cônsules se afasta desses pressupostos, sendo das poucas construções senhoriais assumidamente barrocas. O edifício, enorme para a escala da cidade, deve ter sido mandado levantar perto da déc. de 40 do séc. XVIII, pela família do tenente-general Inácio da Câmara Leme, que tinha tido residência naquela área; mas não possuímos qualquer documento sobre o início da edificação, sabendo apenas que, por volta de 1760, era sede dos consulados de França e de Inglaterra, daí lhe advindo o nome. A fachada apresenta um portal simples, maneirista, ladeado por óculos quadrilobados, com dois andares com janelas de molduras de cantaria com lintel trilobado, sendo as do andar nobre dotadas de varanda de sacada de barriga e encimadas por frontão triangular, mas de linhas arqueadas e rematado superiormente por pelouro. Deve datar de entre os finais do séc. XVII e os inícios do XVIII a definição dos pisos térreos das principais residências dos proprietários terra-tenentes, incluindo as dos padres da Companhia de Jesus, especialmente dedicadas à arrecadação de géneros e das pipas de vinho e geralmente dotadas de óculos de arejamento gradeados. A particularidade de servirem de armazenamento ao vinho, provavelmente, definiu uma tipologia muito específica do sistema de suporte dos pisos superiores, caracterizada por largas arcarias de cantaria que nascem quase ao nível do solo, não se encontrando assentes em impostas, um modelo que encontramos também, pontualmente, nos Açores e nas Canárias, mas que quase desconhecemos no continente. A primeira edificação levantada após o tremor de terra de 1748 foi o paço episcopal (Paço episcopal), projetado pelo já referido mestre das obras reais Domingos Rodrigues Martins. O edifício está datado no portal, de 1750, tendo servido de modelo à arquitetura senhorial urbana erigida nos anos seguintes. Nas décs. de 50 e de 60 do séc. XVIII, levantaram-se edifícios semelhantes, com uma ou outra variante, na R. dos Ferreiros e na R. da Carreira, entre outras, definindo assim uma nova arquitetura, de gosto rococó, que ficou igualmente patente na reconstrução da futura igreja matriz de Santa Maria Maior, à época, igreja camarária de Santiago Menor, que serviu de exemplo a outros templos. Até então, os modelos arquitetónicos mantiveram-se presos a um gosto austero, a que não foi estranha a passagem pelo Funchal, entre 1725 e 1741, do bispo jacobeu D. Fr. Manuel Coutinho (1673-1742). Tal estética pode ser observada nos edifícios do cabido e da sacristia nova da sé do Funchal, projetos do mestre das obras reais Diogo Filipe Garcês (c. 1680-c. 1744), de 1732, e na monumental igreja rural de São Jorge, com risco do mesmo mestre e execução de Pedro Fernandes Pimenta, templo cujas obras começaram em 1737, estando a capela-mor levantada e já em serviço no ano de 1743, embora a sagração só viesse a ocorrer em 1761. Os finais do séc. XVIII devem ter definido o modelo das casas torreadas madeirenses que viria já da centúria anterior, um aspeto não muito comum no continente e que na ilha apresenta alguma originalidade, com as torres a serem frequentemente montadas sobre a fachada, dotadas de varanda e com mais um ou dois pisos que o último andar geral do edifício. Em outros casos, as torres surgem recuadas, exibindo quase sempre um enorme volume e impacto visual. Muitas vezes designadas por torres de ver o mar, teriam sido, numa primeira fase, abertas para sul, como ainda acontece no paço episcopal, depois fechadas a madeira e, mais tarde, passadas a alvenaria rebocada de pedra e cal. Refere Isabella de França (1795-1880), em 1853, que as melhores casas tinham uma torre, da altura de três a quatro andares, o último dos quais era um quarto com janelas em toda a volta “para se apreciar o panorama” (FRANÇA, 1970, 65). [caption id="attachment_3815" align="aligncenter" width="256"] Casas Torreadas Rua carreira 1720[/caption] [caption id="attachment_3818" align="alignright" width="360"] Casa Torreada[/caption] [caption id="attachment_4006" align="alignnone" width="336"] Casa Torreada[/caption] Entre os finais do séc. XVIII e os inícios do XIX ter-se-ão configurado as atuais coberturas por telha de canudo, assentes ou não em cornija de cantaria, elementos que anteriormente não ultrapassavam as empenas das fachadas, correndo as águas em caleiras interiores e saindo através de gárgulas mais ou menos esculpidas. A cobertura dos edifícios era, até então, feita por telhados de tesoura, ou seja, por coberturas múltiplas, correspondendo as gárgulas à divisão das águas das mesmas. As novas capacidades técnicas de construção permitiram a uniformização das coberturas, possibilitando também que fosse divulgada a utilização dos beirais em telha, aumentando a proteção das paredes em relação às águas pluviais. O mesmo não aconteceu com as edificações mais simples, segundo conta Isabella de França, afirmando que nestas as telhas estavam seguras com pedras, de forma que o vento não as levantasse, como ainda hoje acontece pontualmente, acrescentando que eram rematadas no topo com uma “panela de barro invertida” (Ibid., 65). Com o tempo, as paredes de fachada, desde que tivessem janelas de sacada, ou seja, varandas, passaram a ter beirais de telha tripla, enquanto as paredes onde os vãos se mostram à face apresentam somente beirais duplos. Já as paredes sem janelas ou até os edifícios de menor altura, mais singelos e populares, têm beirais de uma simples fiada de telha. Deve datar igualmente dos finais de Setecentos, mas mais provavelmente do séc. XIX, o costume de dotar o embasamento das paredes com um aparelho de argamassa mais forte, pintado a vermelho-barro ou cinza, protegendo assim as mesmas paredes dos respingos da chuva. O exemplar mais representativo da arquitetura rococó madeirense deve ser a pequena capela de N. S.ª da Conceição, no final da R. da Carreira, no Funchal, que foi levantada entre 1765 e 1770, tendo sido benzida a 7 de dezembro desse último ano. A capela pertencia ao pequeno solar urbano do capitão Luís Bettencourt de Albuquerque e Freitas, filho de Sebastiana de Albuquerque e de Jacinto de Freitas da Silva, casados no Brasil, que se fixou na Madeira por esses anos, com alguma fortuna pessoal. A diferença de impacto visual da capela em relação ao solar de gosto neoclássico é sintomática do tratamento dado à arquitetura urbana na Madeira, onde se passa, assim, quase diretamente do maneirismo ao neoclássico. Os parâmetros de gosto neoclássico parecem ter sido introduzidos na ilha pelos mestres que trabalharam para a casa de D. Guiomar Madalena de Vilhena (1705-1789), por volta de 1770, quando esta reformulou a antiga Qt. das Angústias, hoje Qt. Vigia, para sua residência, importando as molduras das janelas e portas do continente, das oficinas que se encontravam a trabalhar na reconstrução de Lisboa, tal como fez, também pelos mesmos anos, a Alfândega do Funchal, nas obras de ampliação que efetuou. Por essa altura, provavelmente, D. Guiomar procedeu ainda à reforma da casa dos pais, na esquina da R. do Castanheiro com a R. de S. Pedro, levantando uma monumental residência neoclássica, sem paralelo na cidade, de enorme pé-direito e com o pormenor interessante, em princípio, de não apresentar entrada de aparato, tudo se virando para um jardim interior, que infelizmente veio a ser ocupado por outras construções, estando hoje em ruínas. O gosto neoclássico parece ter sido assumido uns anos depois, com a vigência de João António Vila Vicêncio (c. 1730-1796) como capitão e mestre das obras reais. Natural das Canárias, é o primeiro que aparece oficialmente designado como “arquiteto” na ilha (ANTT, Provedoria..., liv. 799, fl. 2), tendo tomado posse do lugar em 1781. É provável que este arquiteto já tivesse estado envolvido nas obras realizadas na alfândega, em 1770, assessorando o mestre Domingos Rodrigues Martins. Dirigiu, depois, por volta de 1790, a construção do novo bloco do palácio de S. Lourenço, erigido sobre o velho baluarte poente e pelo qual se veio a uniformizar a fachada na frente de mar nos anos seguintes. Os trabalhos de arquitetura de Rodrigues Martins ainda se encontravam muito enfeudados ao barroco e ao rococó, como prova o edifício da Câmara Municipal do Porto Santo, levantado por volta de 1774. Mas tal não se verifica na obra de João António Vila Vicêncio, que reformou, inclusivamente, vários projetos do seu antecessor, tornando-os muito mais depurados. Os inícios do séc. XIX marcaram o recrudescimento da influência britânica na Madeira, facto relacionado com as duas ocupações militares que ocorreram no quadro das guerras napoleónicas. A última ocupação, que durou mais de dez anos, levou depois à instalação de novas famílias de comerciantes ingleses que vieram a liderar quase toda a atividade económica da ilha até muito recentemente. O protagonismo político e económico das décadas indicadas foi assumido pelo comerciante Henry Veitch (1782-1857), que chegou à Madeira em 1804, desempenhando funções administrativas no consulado britânico, de que veio a tomar posse em 1807, chegando a ser o decano dos cônsules do seu país. As suas primeiras instalações comerciais funcionaram na sequência do edifício do consulado, então na R. da Queimada de Baixo. A breve trecho, ampliou-as, ligando-as a outros edifícios, já na R. da Queimada de Cima, onde ainda é patente um outro tipo de arquitetura que não a madeirense. Viria também a levantar instalações comerciais em Câmara de Lobos, assim como uma residência de verão na antiga Qt. Calaça, hoje incorporada no Clube Naval, e uma outra, na sua propriedade do Jardim da Serra, vagamente inspirada nos pequenos castelos do norte de Inglaterra, onde pretendia ser sepultado, encontrando-se aí um monumento funerário que deverá ser somente um cenotáfio, pois, oficialmente, foi sepultado no cemitério anglicano. Do cônsul inglês Henry Veitch ficou, assim, no Funchal e em Câmara de Lobos, uma série de edifícios dentro do estilo que se designa por arquitetura colonial inglesa, quase sempre com uma certa escala e já utilizando estruturas de ferro forjado e largas varandas, predominantemente em alvenaria pintada. Estas estruturas assumiam-se como perenes; quase não recorriam a molduras de cantaria, dada a não fixação em permanência dos comerciantes britânicos, que só muito pontualmente assumiram a nacionalidade dos países onde operavam, mesmo que ali tivessem nascido, o que ainda hoje se mantém. Na sequência da ocupação britânica e equilibradas as relações com a corte portuguesa no Rio de Janeiro, o cônsul Henry Veitch deu corpo a uma antiga aspiração daquela colónia, levantando uma igreja anglicana ou igreja inglesa, situada na R. do Quebra Costas, cujo projeto, de 1820, reivindicou como seu, mas que é igual a inúmeros projetos neoclássicos levantados pela Europa do seu tempo. O edifício mais importante de Veitch, no entanto, foi a sua residência pessoal, levantada sobre a ribeira de Santa Luzia, por volta de 1830, com cinco pisos e águas-furtadas, e que terá conhecido várias fases de construção. Apresenta largas varandas semicirculares sobre a cidade no andar nobre e no balcão sobre a ribeira, tal como no terraço sobre o bloco nascente. O elemento principal da obra é a sua importante e esguia torre central, de mais cinco pisos sobre a cobertura e igualmente dotada de varandas, sendo a do penúltimo piso corrida sobre todas as fachadas. O edifício veio depois a ser adquirido pela Companhia Vinícola da Madeira, passando em seguida à Cossard & Co., fase em que os seus proprietários o designavam por castelo, tendo posteriormente acolhido a sede do Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira. Os meados do séc. XVII tinham determinado uma nova forma de instalação das classes dirigentes e proprietárias, que, tendo as suas residências no centro do Funchal, nos meses de verão e dadas as dificuldades do clima, se retiravam para as antigas propriedades rurais, nas encostas da cidade e seus arredores, quando não mesmo para as vilas rurais. Uma das primeiras medidas dos Jesuítas ao se instalarem no centro do Funchal, mesmo antes de procederem à construção do monumental edifício do colégio, foi adquirirem várias quintas, sendo a dos Frias e a do Cardo para recreio. Assim, ao longo do séc. XVIII e nas encostas do Funchal, nasceram residências secundárias onde antes havia propriedades agrícolas, progressivamente melhoradas, acabando por se definir como residências permanentes e vindo a adquirir, ao longo do séc. XIX, a designação de quintas, em memória da antiga ocupação rural, que, na maioria dos casos, se perdera. Afasta-se, portanto, aos poucos, da designação comum continental, pois deixou de ser para recreio, tornando-se residência permanente, dotada de jardins, etc. Acresce que, dadas as especiais condições climáticas da encosta do Funchal e o exotismo geral da paisagem, mesclado por séculos de aclimatação de novas espécies vegetais, estes espaços impressionaram fortemente muitos visitantes. As quintas madeirenses tornaram-se um paraíso para os naturalistas, que, a partir dos finais do séc. XVII, partiram de vários pontos da Europa para estudar outras floras e faunas, tendo quase todos os grandes nomes dessa centúria e das seguintes passado pela Madeira. A divulgação das suas descrições de viagem, das espécies botânicas encontradas e da qualidade geral do clima, feita depois através da imprensa e da comunicação social, projetou decididamente a Madeira no mundo e criou uma verdadeira lenda romântica em volta da quinta madeirense. Esta lenda da quinta madeirense e a da paisagem geral da ilha foi ainda perpetuada pelos aguarelistas e litógrafos europeus dos meados do séc. XIX, cujos álbuns tiveram grande disseminação. Passaram posteriormente pela região outro tipo de viajantes, como Ella Du Cane (1874-1943) e a sua irmã Florence, que editaram uma obra sobre as quintas e os jardins da Madeira; e depois fotógrafos, nomeadamente lady Sarah Angelina Acland (1849-1930), a primeira mulher a fotografar a cores, divulgando internacionalmente as paisagens e a arquitetura romântica da ilha. No sentido arquitetónico, aquele que aqui nos interessa, a quinta madeirense define-se mais pelo seu coberto vegetal do que pelo edificado propriamente dito, muito variado e continuamente alterado conforme os gostos dos proprietários. Como característica especial, poder-se-á apontar o pormenor, patente em grande parte das residências, de o andar nobre se encontrar ao nível do piso térreo, possibilitando assim a abertura das salas de receção ao jardim, passando a área de habitação privada, como os quartos, para o andar superior ou para um corpo recuado. Sendo um espaço delimitado por muros, a quinta possui quase sempre a chamada casinha de prazer, elemento comum às quintas de recreio da área de Lisboa e da península de Setúbal, onde aparece a mesma designação ou, por vezes, casa do fresco. No entanto, na Madeira, localizam-se quase sempre em zonas limítrofes e mais altas do espaço geral da propriedade, sendo implantadas nos muros da quinta e servindo de mirante; no continente, são geralmente interiores e vêm mais na tradição dos antigos pavilhões de caça. As casinhas de prazer são, na generalidade, construções mais precárias, em fasquiados de madeira pintada, na tradição dos muxarabis, onde se pode estar a ver sem ser visto e onde alguns dos fasquiados, inclusivamente, são dotados de bilhardeiras, pequenas pegas verticais que alteram a inclinação dos fasquiados, melhorando a visão de dentro para fora. Colocadas sobre os muros gerais da propriedade, possuem muitas vezes acesso independente, mais ou menos discreto, ao exterior. A circulação dos modelos internacionais e, inclusivamente, dos arquitetos, em especial após os surtos construtivos motivados pelo boom do turismo terapêutico e do turismo de lazer, não permitiu a criação de novas formas arquitetónicas específicas na Madeira, onde a prática se passou a limitar à adaptação local de tipos importados, sendo a diferença feita sobretudo pela riqueza e diversidade do coberto vegetal e, pontualmente, pela utilização de materiais de construção local. Ao longo do séc. XIX, assiste-se mesmo à edificação de conjuntos românticos de gosto internacional, como o solar ou chalé Zino, no Lugar de Baixo, nos Canhas, ou a casa de chá do Santo da Serra, atribuída ao arquiteto inglês George Somers Clarke (1841-1926), que, em 1890, procedeu à construção do Reid’s Palace Hotel e fez o projeto da nova residência da Qt. do Palheiro Ferreiro para a família Blandy, podendo também ser o autor da reformulação da fachada de aparato da Casa da Calçada, hoje Casa-Museu Frederico de Freitas. Em relação à arquitetura popular, no entanto, pontualmente e a partir do retorno de muitos emigrantes com outras capacidades económicas, gostos e conhecimentos, entre os meados do séc. XIX e as primeiras décadas do XX, podemos identificar uma nova tipologia, com características de certa forma específicas e que se encontra, infelizmente, em acelerada via de extinção. Os modelos, em linhas gerais, são os tradicionais e locais anteriores, mas todo o tratamento e materiais utilizados são outros, obrigando assim a encontrar uma nova síntese. Esta nova arquitetura popular, se assim a podemos designar, graças à utilização de materiais de construção recentes, de carácter pré-industrial e industrial, como moldes de argamassa de cimento e materiais cerâmicos, deu origem a um outro tipo de habitação rural, geralmente designado por casas modernas ou “demerarista” (MESTRE, 2002, 152) pela sua propagação junto dos emigrantes madeirenses regressados de Demerara. São habitações que apresentam geralmente dois pisos, sendo o inferior para arrumações e outros serviços, e o superior para habitação, podendo apresentar ainda anexos adossados, utilizados, p. ex., para estábulos. As paredes são de alvenaria mista de cimento rebocada e pintada, e as molduras das portas e das janelas são em madeira pintada ou em argamassa ressalvada e igualmente pintada, podendo apresentar os panos rematados, lateralmente, também em argamassa, relembrando os antigos cunhais, superiormente, são rematados por cornija. Os telhados assentam em estrutura de madeira sobre a cornija, sendo cobertos a telha marselha ou a cimento e rematados por cabeças de menino ou pombas, marcas de uma tradição ancestral que por esses anos se tipificou e industrializou. Muitas destas coberturas apresentam o contrafeito quase plano nas últimas duas a três fiadas de telha, o que, associado aos remates figurativos, lhes dá um aspeto quase oriental. Estas habitações são, na generalidade, envolvidas por grades ou balaustradas, também de moldes de cimento pintado, que acompanham, por vezes, as escadas exteriores, para o piso de habitação, mas podendo definir um terraço entre os dois pisos ou ao nível do superior, utilizado para lazer da família. Bibliog.: manuscrita: ANTT, Cabido da sé do Funchal, liv. 6; Ibid., Chancelaria de D. Afonso V, liv. 36; Ibid., Chancelaria de D. Filipe I, Doações, liv. 28; Ibid., Chancelaria de D. 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