cemitério britânico
[caption id="attachment_4927" align="alignleft" width="300"] Ilha da Madeira, 1807.[/caption]
A presença dos comerciantes britânicos (Britânicos; Ingleses) na Madeira começou a ser determinante nos meados do séc. XVII e nos finais do mesmo deveria ser asfixiante, como referem as Instruções para o novo governador D. António Jorge de Melo. Na Madeira, entre 1698 e 1701, esses comerciantes eram, como em tudo, “insolentíssimos” e só pensavam no ganho (BNP, Col. Pombalina, cód. 526). A posição de arrogância, aliás, manteve-se até aos finais do séc. XX, como atesta o trabalho de Desmond Gregory, The Beneficent Usurpers: a History of the British in Madeira (1989).
Numa ilha dominada, no séc. XVII, pela ideologia católica pós-tridentina, não podendo os populares opor-se à prepotência dos comerciantes em vida, faziam-no na morte. Descrevia o reverendo anglicano John Ovington (1653-1731), na sua Voyage to Surat in the Year 1689, que a Igreja Católica, assim como não admitia pensamentos caridosos para com “as almas heréticas, de igual modo exclui os cadáveres de toda a benevolência”, perseguindo os ingleses que morriam na ilha com “um ódio mais implacável” do que o que revelavam para com os animais, que podiam encontrar um lugar de descanso na terra para serem sepultados.
Tudo isso era estritamente proibido aos ingleses, que eram lançados ao mar e entregues às ondas. O reverendo anglicano citou o caso de um comerciante inglês que, falecido na ilha, os seus compatriotas tinham tentado secretamente sepultá-lo numas rochas, mas tendo sido descoberto, os habitantes tinham lançado o cadáver ao mar (ARAGÃO, 1981, 203).
Saliente-se, no entanto, que nem todos os ingleses radicados na ilha eram protestantes; p. ex., o médico Thomas Heberden (1703-1769), membro da Royal Society de Londres, falecido em 1769, foi enterrado segundo os costumes locais, por vontade expressa no seu testamento, em frente ao antigo altar de S. José, na sé do funchal, certamente por interferência da “Ilustríssima Senhora Dona” Guiomar de Vilhena (1705-1789), então juiz dessa confraria. Segundo uma carta enviada pelo comerciante Robert Bisset ao seu correspondente em Filadélfia, datada de 2 de junho de 1769, documento integrado na correspondência Sarah Smith Papers, na Historical Society of Pennsylvania, o corpo do médico inglês foi acompanhado pelos juízes camarários e pela melhor sociedade funchalense, demonstrando assim a alta estima em que era tido (RIBEIRO, 1995, 393).
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Em 1760, já a colónia britânica iniciara diligências em Lisboa para a construção de um cemitério, assunto que seria apresentado pelo próprio ministro e conde de Oeiras ao governador José Correia de Sá, em carta de 3 de janeiro de 1761. Informava então o primeiro que os ingleses residentes na Madeira tinham feito uma petição a D. José para poderem comprar um terreno e fazer um cemitério, súplica que o rei despachara favoravelmente, indicando que se lhes devia dar um pedaço de terra que fosse suficiente, fora da cidade, para lograrem “dar sepultura aos seus naturais” na mesma forma que se praticava na corte de Lisboa (ARM, Governo..., 985, fls. 12-13). Mas a posição da colónia inglesa na Madeira não seria especialmente bem vista por este governador, nem pelo seguinte, João António de Sá Pereira (c. 1719-1804), pelo que o assunto teve de esperar algum tempo.
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As insistências para a edificação de um cemitério inglês devem ter continuado em 1765, data colocada no antigoportão, mas só em 1777, nos limites da cidade e fora das muralhas, conforme indicado em 1761, a colónia conseguiu oficializar a aquisição de um espaço para o efeito. Os terrenos foram comprados a D. Antónia Rosa Tavares, através do seu procurador, o P.e José Joaquim Teixeira, do Estreito de câmara de lobos, e situavam-se junto à capela de S. Paulo, fora das muralhas da cidade, onde ainda hoje se encontra o cemitério britânico, tomando a colónia britânica posse dos mesmos a 2 de setembro de 1777 e tendo a documentação sido registada na Câmara do Funchal a 14 de março de 1778 (ARM, Câmara..., Registo Geral, tombo 11, fls. 113-122v).
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A data mandada colocar no antigo portão, à R. da Carreira, é de 1765, como se disse, por certo o ano em que se retomaram as negociações, sendo tradição na colónia britânica que os enterramentos começaram ali em 1767. Até então, ocorriam no logradouro do palacete da R. do Esmeraldo, levantado pelo capitão Nicolau Geraldo de Freitas Barreto, onde funcionava a firma Gordon, Duff & Co. (COSSART, 1984, 28) e onde está hoje o Tribunal de contas do Funchal. A posse do terreno é mais tardia, de 1777, e a data da mais antiga pedra tumular é de 1806, sendo referente ao comerciante britânico James Murdoch (1744-1806), que recebera na Madeira o comandante James Cook, em 1768, na sua Qt. do Vale Formoso.
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Nos inícios do séc. XIX, concretamente em 1808, o cemitério foi ligeiramente ampliado, com a criação de um talhão militar para enterramento dos militares britânicos da força estacionada na Madeira, presente na ilha desde o final do ano anterior até 1814. A comunidade britânica viria a aumentar bastante nos meados de Oitocentos, dado o incremento do tráfego marítimo e uma nova realidade advinda do turismo terapêutico e, depois, de lazer; assim, em 1852, procedeu-se à ampliação do cemitério. Deve ser aquele primeiro alargamento de 1808, realizado quando o cemitério era já no local que hoje ocupa, que vem referido na planta da baia do Funchal de 1838 (DSIE, GEAEM, 1302-2-22A-109) e, com as dimensões que presentemente possui, na planta do guia Madeira, its Climate and Scenery, de 1885 (WHITE, 1885, 36).
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O último enterramento na parte antiga, correspondente ao atual Lg. ribeiro real, ocorreu nesse ano de 1885, tendo sido sepultado já no novo talhão do cemitério britânico o célebre médico e cientista Paul Wilhem Heinrich Langerhans (1847-1888), que faleceu a 20 de julho de 1888, na Qt. Lambert, atual Qt. Vigia. Entre 1889 e 1890, a comunidade britânica negociou oficialmente com a CMF, de novo presidida pelo morgado João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo (1841-1902), visconde do ribeiro real, a troca do new burial pelo old burial.
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No entanto, como comprovamos pela planta portuguesa de 1838 e pela inglesa de 1885, o terreno em causa para a ampliação do cemitério, estaria já ocupado. O antigo portão passou então, em 1889, para a R. Brito Câmara, nas margens da ribeira de São João, construindo-se o importante portal interior que delimita o largo de entrada do antigo talhão militar, de 1808, da ampliação feita a partir de 1852, e levantando-se também, até 1890, a capela mortuária.
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Bibliog.: manuscrita: ARM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombo 11; ibid., Governo Civil, 985; BNP, Col. Pombalina, cód. 526; DSIE, GEAEM, António Gualdino da Costa, Planta da Bahia do Funchal em 1838 com a Indicação de um Ancoradouro Uzual e Melhor, 1840, 1302-2-22A-109; impressa: ARAGÃO, António (coord. e notas), A Madeira Vista por Estrangeiros: 1455-1700, Funchal, SREC, DRAC, 1981; CARITA, Rui, História da Madeira, vols. 3 e 5, Funchal, SRE, 1992 e 1999; COSSART, Noel, Madeira, the Island Vineyard, London, Christie's Wine Publications, 1984; GREGORY, Desmond, The Beneficent Usurpers: a History of the British in Madeira, London, Associated University Presses, 1989; NEWELL, H. A., The English Church in Madeira: the Church of the Holy and Undivided Trinity, Oxford, University Press, 1931; OVINGTON, John, Voyage to Surat in the Year 1689, London, Jacob Tonson, 1696; RIBEIRO, Jorge Martins, “Alguns Aspetos do comércio da Madeira com a América do Norte”, III Colóquio Internacional de História da Madeira. Actas, Funchal, SRTC, CEHA, 1993, pp. 389-401; SILVA, Fernando Augusto da, e MENEZES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., ed. fac-simile, Funchal, SRTC, 1998; WHITE, Robert, Madeira, its Climate and Scenery, 3.ª ed., London, Dulan, 1885.
Rui Carita
(atualizado a 11.07.2016)