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a obra das mães pela educação nacional na madeira

Na primeira década da vigência do Estado Novo não havia, em Portugal, organizações femininas estatais. As associações femininas existentes, filantrópicas e beneficentes, eram na sua maioria dependentes da Igreja e geridas por senhoras da aristocracia e das classes altas da sociedade. A partir dos anos 30 do séc. XX, das iniciativas da Igreja surgiram muitas associações femininas, dirigidas essencialmente por mulheres católicas e por familiares de governantes do Estado Novo. Em 1936, nasce a primeira organização estatal de mulheres do Estado Novo, Obra das Mães pela Educação Nacional, adiante designada por Obra das Mães. Criada por António Carneiro Pacheco, ao ser nomeado ministro da Instrução Pública, pasta que transformou em Educação Nacional, a Obra das Mães foi oficialmente instituída pelo dec.-lei n.º 26.893, de 15 de agosto de 1936, que aprovou os seus estatutos, nos termos do art. 58.º do dec.-lei n.º 26.611, de 19 de maio do mesmo ano, que publica o Regimento da Junta Nacional da Educação, com fundamento na lei n.º 1941, de 11 de abril de 1936. Em fevereiro de 1936, a imprensa escrita anunciava a sua criação, tendo noticiado que a organização se propunha “congregar as mães portuguesas numa cooperação ativa e generosa”, na campanha “de defesa da família” com o Ministério da Educação Nacional (DM, 12 fev. 1936). De acordo com os seus estatutos, esta associação de utilidade pública tinha como missão “estimular a ação educativa da família” e “assegurar a cooperação entre esta e a escola, nos termos da constituição” (art. 1.º), a ser desenvolvida através de onze linhas de atuação: 1.º – Orientar as mães portuguesas, por uma ativa difusão das noções fundamentais de higiene e de puericultura, para bem criarem os filhos, em colaboração com a organização nacional denominada Defesa da Família, instituída pelo dec.-lei n.º 25935; 2.º – Estimular e dirigir a habilitação das mães para a educação familiar, tendo em conta as diversas circunstâncias de classe e de meio; 3º. – Promover o embelezamento da vida rural e o conforto do lar como ambiente educativo, em relação com os usos locais e as boas tradições portuguesas, defendendo e estimulando as atividades e indústrias caseiras; 4º. – Defender os bons costumes, designadamente no que respeita ao vestuário, à leitura e aos divertimentos; 5º. – Promover e assegurar em todo o país a educação infantil pré-escolar, em complemento da ação da família; 6.º – Dispensar aos filhos dos pobres a assistência necessária para que possam cumprir a obrigação de frequentar a escola, designadamente pela instituição de cantinas, pelo fornecimento de uniformes e outros artigos de vestuários, pela distribuição de livros e pelo fortalecimento das caixas escolares; 7.º – Coadjuvar o professor na organização do recenseamento escolar, na vigilância da compostura, da assiduidade e da aplicação dos alunos, e na instituição de prémios; 8.º – Dar ao professor uma cooperação efetiva na educação moral e cívica dos alunos, no ensino do canto coral, no exercício da ginástica rítmica e nas festas escolares; 9.º – Desenvolver entre os portugueses o gosto pela cultura física, tendo em vista a saúde de cada um e o serviço da Pátria; 10.º – Organizar a secção feminina da Mocidade Portuguesa em harmonia com a base xi da lei n.º 1941 e com o artigo 40.º do regimento da Junta Nacional da Educação; 11.º – De modo geral contribuir por todas as formas para a plena realização da educação nacionalista da juventude portuguesa (art. 2.º do dec.-lei n.º 26.893, de 15 de agosto de 1936). Ao contrário dos propósitos ruralizantes iniciais da Obra das Mães, influenciada, sobretudo, pelos movimentos familiares católicos franceses e belgas, a atuação desta associação, “na luta pela influência política entre os lóbis industrial e agrário no seio do regime, representou os interesses do último” (PIMENTEL, 2001, 151). A viragem da atuação para o meio rural deveu-se ao aumento da industrialização, da urbanização e da emigração, que provocou um decréscimo significativo de uma população “essencialmente agrícola”, fomentando o êxodo rural a partir da década de 60 do séc. XX. Neste sentido, a atuação desta associação passou a centrar-se no ensino de técnicas agrícolas modernas, da formação familiar da classe rural e da manutenção da natalidade alta no seio das famílias rurais. Na primeira reunião da Obra das Mães, realizada a 11 de julho de 1936, no Ministério de Educação Nacional, foi nomeada a Junta Central da organização, constituída por Maria do Carmo Fragoso Carmona, presidente de honra, Laura Diogo da Silva de Melo e Faro (condessa de Monte Real), presidente efetiva, e Eugénia Soares de Oliveira e Isabel d’Albignac Bandeira de Melo (condessa de Rilvas), vice-presidentes, sendo esta última também presidente da direção até 1945, cargo que passou a ser desempenhado por Maria Francisca Frazão, condessa de Penha Garcia (PIMENTEL, 2001, 177). O ministro Carneiro Pacheco, na posse desta direção, anunciou os principais focos sociais de intervenção da Obra das Mães: a reeducação das mães e a assistência materno-infantil através dos centros sociais educativos, das semanas da mãe e dos prémios às famílias numerosas; a antecipação e o prolongamento da escolaridade através da educação infantil, das cantinas escolares e da criação da Mocidade Portuguesa Feminina, para evitar a saída prematura da escola e ajudar os filhos do povo a formarem-se melhor para as lutas da vida (DN, 16 jul. 1936, 1). A direção da Mocidade Portuguesa Feminina, regulamentada pelo dec. n.º 28.262, de 8 de dezembro de 1936, ficou a cargo da Obra das Mães, que, a partir de 24 de dezembro de 1937, delegava a chefia num comissariado nacional à sua escolha, inicialmente composto pelas vice-presidentes da Obra das Mães, Maria dos Santos Guardiola (comissária nacional), Maria Luísa Vanzeller e Fernanda de Almeida d´Orey (comissárias nacionais adjuntas). Contudo, no campo da sua atuação, a Obra das Mães diminui a sua intervenção na plena realização da educação nacionalista da juventude feminina portuguesa quando, em 1950, de acordo com o dec.-lei n.º 38.122, de 9 de dezembro, perde a incumbência de dirigir a Mocidade Portuguesa Feminina. Em 1940, a Obra das Mães, após a abertura do centro do Bairro das Minhocas, em Lisboa, inaugurou, a 3 de maio de 1940, o seu primeiro centro social em Cascais, seguindo-se os de Coimbra, Braga e Guarda, em 1942. “No final da década de quarenta, instalou comissões distritais em Santarém e em Setúbal, e no início dos anos cinquenta, ao mesmo tempo que reforçava a sua organização em Braga, criou secções nos Açores, na Madeira, em Goa e em Macau, e as comissões distritais de Portalegre e de Aveiro” (PIMENTEL, 2001, 151).   [caption id="attachment_1481" align="alignleft" width="300"] Fot. 1 – Ato inaugural do Centro de Formação Familiar dos Canhas, em 1958, pelo governador civil substituto, João de Gouveia. Fonte: Arquivo Regional da Madeira[/caption]  Na Madeira, a primeira secção criada pela Obra das Mães foi na Camacha, em agosto de 1953, primeiramente denominada Centro da Educação Familiar e Artesanato Feminino da Camacha, para depois ser cognominada Centro Rural de Formação Familiar da Camacha. Seguiram-se os centros rurais familiares dos Canhas, em 1958, de Santana e de Boaventura, onde foi instalado um jardim-de-infância, em 1959. Na déc. de 60 inauguraram-se os centros rurais de formação familiar do Porto da Cruz, em 1963, do Caniçal, em 1967, e de São Vicente, em 1968. No Funchal, surgiram os Centros de Formação Familiar da Sagrada Família, em 1965, e o do Convívio do Funchal, situado na Rua da Carreira, São Pedro, em 1967. Na déc. de 70, mais precisamente em 1972, foram criados os centros rurais da Calheta e de Câmara de Lobos. Em 1974, foi criado o último centro rural de formação familiar, em Ponta do Sol. Os edifícios onde eram instalados os centros rurais tinham várias divisões, para responderem às exigências das atividades, a saber: a de enfermagem, puericultura e higiene; a de corte, costura e bordados; a dos teares; a cozinha e a sala de jantar. Os centros também tinham um espaço dedicado à biblioteca, apetrechada com livros facultados pela Campanha Nacional de Educação de Adultos. Durante os primeiros anos de intervenção da Obra das Mães na Madeira, não havia comissão distrital. A Junta Central da Obra das Mães só a elegeu em 1962, composta por Alice Pinto Coelho Homem da Costa (esposa do Cor. Fernando Homem da Costa, presidente da Junta Geral do Distrito do Funchal), que exerceu o cargo de presidente da comissão distrital da Obra das Mães até ao seu encerramento, em 1975, e por Maria Zina Teixeira de Araújo, que na déc. de 60 viria a ser substituída na vice-presidência por Anne Marguerite Correia da Silva. Em 1972, eram vice-presidente e vogal, respetivamente, Maria do Carmo Leite Monteiro Rodrigues e Dalila Pereira. Havia, também, a figura de presidente paroquial da Obra das Mães, cuja incumbência era orientar os respetivos centros rurais. Na Camacha, foi presidente paroquial Fernanda Câmara Vasconcelos, no Porto da Cruz, Maria Dolores Andrade e em São Vicente, Maria do Céu Drummond. Os centros eram dirigidos pelas auxiliares/educadoras familiares. Para formar as educadoras familiares, a 2 de fevereiro de 1958, a Junta Central da Obra das Mães inaugurou a Escola de Agentes de Educação Familiar Rural, denominada Escola de D. Luís de Castro, situada em Tenões, Braga. O curso tinha a duração de dois anos, em regime de internato, incluindo um estágio de seis meses nos centros rurais e nas missões de educação rural da Obra das Mães. Era condição de acesso possuir o 1.º ciclo dos liceus ou o ciclo preparatório do ensino técnico. À semelhança das outras educadoras familiares dos centros rurais familiares da Madeira, a educadora familiar do Centro Rural de Formação Familiar do Porto da Cruz, Maria Dolores de Andrade, informava no relatório das suas atividades que, entre 27 de maio e 7 de junho de 1963, tinha frequentado o curso do Instituto Ancilla Domini, em Coimbra, onde recebera o diploma correspondente. Na Escola da Obra das Mães, em Tenões, Braga, tinha estado em missão de aperfeiçoamento e orientação para desenvolver a sua atividade no Centro Familiar do Porto da Cruz. Em 1964, de 22 de junho a 7 de julho, tinha frequentado um curso de aperfeiçoamento para educadoras rurais no Instituto de Formação Social e Corporativo, em São Pedro de Sintra. Salvo algumas exceções, as educadoras familiares abaixo nomeadas foram as responsáveis pela direção e formação desenvolvida durante a existência dos respetivos centros. Estas tinham por obrigação enviar à Comissão Distrital do Funchal um relatório semestral das atividades desenvolvidas, onde descreviam: as pessoas atendidas na assistência familiar, as famílias visitadas, o programa e a frequência dos cursos de formação familiar, as festas e comemorações, o movimento da biblioteca e os apoios recebidos. Quadro 1 - Educadoras familiares dos centros da Obra das Mães na Madeira Centros/ano de início Educadoras familiares Camacha (1953) Maria Manuela Beatriz de Almeida de Freitas Branco Canhas (1958) Maria dos Anjos Afonso Santana (1959) Cândida Mendonça Pacheco Boaventura (1959) Maria da Neves Cabral (centro)Regina Nunes Gouveia (jardim de infância) Porto da Cruz (1963) Maria Dolores de Andrade Sagrada Família - Funchal (1965) Maria Teresa Gomes Ribeiro Centro de Convívio do Funchal (1967) Rita Maria Gama de OrnelasMaria Teresa Margarida Gomes Rodrigues Caniçal (1967) Juvénia Reis Vieira Dias São Vicente (1968) Maria Celina de AscensãoJovita Faria de Andrade Calheta (1972) Salomé Vieira Freitas Câmara de Lobos (1972) Maria Odília dos Passos Vieira Ponta do Sol (1974) Maria Mercês Gomes da Silva   Com a competência de orientar e formar a família rural, os centros recebiam apoio das Casas do Povo e dos párocos das freguesias, que se encarregavam sobretudo do ensino da moral e da religião e de promover junto da população as atividades dos centros, pela Junta Central da Obra das Mães; mas era a Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal quem financiava a ação desenvolvida na Madeira, com subsídios para a instalação e o apetrechamento dos centros, bem como atribuía bolsas para a formação das auxiliares familiares rurais. Além da educadora familiar, o pessoal do centro era constituído por uma costureira e uma ajudante. Também colaboravam formadores das outras áreas de formação, estes em regime temporário, segundo as atividades lecionadas nos cursos, como é o caso das enfermeiras de Saúde Pública e dos artesãos, entre outros. [caption id="attachment_1484" align="aligncenter" width="300"] Fot. 2 – Exposição de trabalhos de tecelagem e rendas no Centro Familiar de Santana, em 1963. Fonte: Arquivo Regional da Madeira[/caption] Os cursos de formação familiar tinham a duração de dois anos, desenvolvendo, no geral, as seguintes áreas da educação familiar: adorno do lar, formação moral, educação cívica, economia doméstica, enfermagem caseira, higiene, puericultura, corte e confeção, tecelagem, culinária e expediente. Em vários centros, dependendo da atividade económica da localidade, incluíam outras áreas, tais como obra de vime, artesanato regional, entre outras. As alunas submetiam-se a uma prova de avaliação final, essencialmente constituída por quatro áreas: missão da mulher; moral, boas maneiras e deveres sociais. Em cada área eram colocadas três a quatro questões, que espelhavam os valores que se pretendia inculcar nas alunas: serem boas mães e boas esposas. Por exemplo, as da prova de avaliação final do curso de 1966, realizada em julho, no Centro Familiar da Sagrada Família, sobre a missão da mulher, foram as seguintes: “1.ª – Achas que para ser mulher basta ter nascido mulher? 2.ª – Bastará aprender a cozinhar, a ser económica e limpa? 3.ª – O que significa, então, preparar-se para ser mulher? 4.ª – Explica pois, o que entendes por ser uma mulher que saiba as qualidades que deve procurar possuir e quais os defeitos que deve combater para dar a felicidade ao marido, aos filhos e a todos que ao seu lado vivem e que seja também feliz.” Na área da moral, as perguntas versaram sobre o que é ser obediente, ser delicada, dizer sempre a verdade e ser trabalhadora. Na de boas maneira, os quesitos versavam sobre atitudes éticas para com os outros: a quem se deve ceder o lugar em casa, na rua, na igreja; ao atravessar uma porta ou a subir uma escada, quem tem direito a ser a primeiro pessoa a fazê-lo; de que maneira se deve passar uma objeto – faca, tesoura, garfo –, e a quem se deve dizer “muito obrigada”. Sobre os deveres sociais, foi pedido que explicassem a maneira de pôr uma mesa para servir o jantar, contemplando a devida ordem dos objetos: talheres, copos, pratos, guardanapos, etc., e que explicassem de que modo colocariam as flores, escolhidas a gosto. No final do curso, as alunas recebiam um certificado, momento que era solenizado em cada centro com a presença dos membros da Comissão Distrital da Obra das Mães e das autoridades regionais e locais, e culminava com a visita à exposição dos trabalhos realizados pelas alunas e um lanche convívio. Para a socialização entre as jovens promoviam-se passeios, visitas de estudo e a outros centros, recitas e festas; contudo, o ponto alto das festividades dos centros focava-se na Semana da Mãe, que se iniciava a 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição e Dia da Mãe até à déc. de 60, e terminava a 14 de dezembro. A Semana da Mãe foi instituída pela Junta Central da Obra das Mães, ocasião em que eram distribuídos às famílias numerosas e pobres berços, enxovais e peças de adorno para o lar confecionados pelas alunas dos centros, bem como prémios pecuniários, estes concedidos pela Junta Central da Obra das Mães. A primeira Semana das Mães realizou-se em dezembro de 1938, em Lisboa; exaltou-se a família e a maternidade e estigmatizou-se o trabalho feminino extra doméstico, as restrições da natalidade e a mortalidade infantil. A Semana da Mãe era solenizada nos diversos centros da Madeira da mesma maneira que no resto do país: com a missa, especialmente para as famílias das alunas e do pessoal dos centros, récitas, danças, poemas e canto coral, ou com um passeio, que culminava num lanche e em presentes entregues às mães, ambos confecionados pelas alunas. Em 1962, ano em que tomou posse a Comissão Distrital da Obra das Mães, a presidente, Alice Pinto Coelho Homem Costa, mandou rezar uma missa na sé catedral, em homenagem à Padroeira de Portugal e em comemoração da XXV Semana da Mãe. Nesse ano, no Centro de Formação Familiar dos Canhas, o Dia da Mãe foi celebrado com uma missa, a inauguração da exposição dos trabalhos realizados e a “distribuição de 12 enxovais a famílias pobres com grande número de filhos”, feitos pelas 33 raparigas que frequentavam, na altura, o curso de formação familiar (DN, 11 dez. 1962, 1-2). Em alguns centros, quando as alunas estavam para casar, o dote e, em alguns casos, o vestido de noiva eram confecionados no âmbito das atividades de corte e confeção, bordados, rendas e tecelagem, apoiando assim, também, as alunas do centro. A faixa etária das alunas que frequentavam os cursos de formação familiar variava entre os 11 e os 36 anos. A maioria das mais novas possuía a 4.ª classe, mas algumas das mais velhas não tinham sequer concluído a 1.ª classe. Por isso, quando possível, as alunas eram distribuídas em grupos segundo as idades e capacidades académicas, onde lhes eram ministradas as atividades mais adequadas aos seus conhecimentos. Os mapas de movimentos de alunas e os relatórios das educadoras familiares rurais permitem-nos aferir que, no primeiro ano de abertura de cada centro, entre 1953, ano em que foi criado o primeiro centro rural de formação familiar, e 1974, data da criação do último centro, iniciaram o curso de formação familiar 673 raparigas, distribuídas pelos respetivos centros. [caption id="attachment_1487" align="aligncenter" width="300"] Gráfico 1 – Número de raparigas inscritas nos cursos de formação familiar, no ano de abertura de cada centro da Obra das Mães na Madeira.[/caption] O Centro de Convívio do Funchal, situado na Rua da Carreira, n.º 163, foi inaugurado a 28 de maio de 1967. Este centro, aberto das 11h30 horas às 18h00, tinha inscritas no curso de formação familiar cerca de 20 raparigas; mas o movimento deste centro era muito maior, pois não era frequentado apenas pelas raparigas do curso. Aliás, a sua principal finalidade era reunir as raparigas empregadas na cidade do Funchal, dando-lhes oportunidade de ali irem “almoçar, repousar, recrear-se na leitura de bons livros e revistas ou ainda [de] boa música, ou até aprender lavores e cozinhar” (EF, 12 set. 1968, 1). Segundo relatório da educadora familiar do centro, enviado à presidente da comissão distrital em novembro de 1967, algumas raparigas levavam o seu almoço, mas havia outras que o cozinhavam no centro. Havia as que iam para o centro para aprenderem e confecionarem trabalhos de renda, malha e bordados, e as que iam estudar, por estarem a frequentar o curso noturno da Escola Industrial e Comercial do Funchal ou a frequentar a Academia de Línguas da Madeira. Entre as várias áreas em que podiam inscrever-se, estavam o corte e costura, o inglês, a tecelagem, a educação cívica, a culinária, a leitura e o ditado. Estas raparigas também colaboravam no embelezamento do centro nas épocas festivas e comemorativas; por isso, o centro é apelidado de Centro Operário do Funchal em algumas fontes consultadas, o mesmo acontecendo com o Centro de Formação Familiar da Sagrada Família, que também foi apelidado de Centro Operário da Sagrada Família. De salientar que este centro sucedeu ao “Centro de Formação Feminina, pertencente à Paróquia da Sagrada Família, criado pelo pároco João Gouveia da Conceição” (Paróquia da Sagrada Família, II, 20), cuja existência remontava a três anos antes da ação da Obra das Mães, naquele espaço. Em 1970, existiam na Madeira “sete centros rurais de formação familiar, dois operários no Funchal”, o da Sagrada Família e o da Carreira, frequentados por um total de “514 alunas” (PIMENTEL, 2001, 182). De acordo com os testemunhos das educadoras familiares dos centros rurais, expressos nos seus relatórios, havia problemas de assiduidade das alunas, umas por terem de participar nas atividades sazonais agrícolas da localidade e na rega dos seus campos, outras devido a terem de ficar em casa para cuidar dos irmãos. Quanto às desistências, as razões mais apontadas eram o casamento e a emigração. Outro facto que influenciou uma afluência menor aos centros de formação familiar, a partir do final da déc. de 60, foi a criação das escolas do ciclo preparatório e das telescolas em diversos concelhos. No seu relatório de 1972, a educadora familiar do centro da Calheta explicava a situação: “Como vai abrir na vila o 1.º ciclo liceal, algumas alunas só vão frequentar o centro no verão, porque muitas delas efetuaram a sua matrícula no ciclo preparatório”. Em fevereiro de 1973, a Comissão Distrital, revendo o problema da falta de alunas, considerou que seria mais viável abrir uma sala de estudo; inscreveram-se 25 alunas. O programa da sala de estudos, de duas horas e trinta minutos, constava de explicações de português, francês, matemática, ciências, história e moral e religião, acrescidas de 30 minutos para a parte recreativa. Porém, também nas escolas do ciclo preparatório foram criadas salas de estudo, pelo que a alternativa foi abrir a inscrição para a sala de estudo a alunas da 4.ª classe. Um dos objetivos da Obra das Mães era a instituição de cantinas escolares em todo o território português, para “dispensar aos filhos dos pobres a assistência necessária para que possam cumprir a obrigação de frequentar a escola” (ponto 6, do artigo 2.º dos estatutos). Em 1940, foi instalada a primeira cantina escolar no Casal Ventoso, seguindo-se, no mesmo ano, as cantinas do Bairro da Liberdade e de três escolas oficiais de Lisboa. Nos Açores, a primeira cantina criada foi em São Miguel, em 1961, seguindo-se a instalação de sete em Ponta Delgada, em 1963. Em 1970, existiam no país 199 cantinas escolares da responsabilidade da Obra das Mães (Cfr. PIMENTEL, 2001, 171, 185). Na Madeira, embora a presidente da Comissão Distrital tivesse desenvolvido várias diligências no sentido de serem criadas cantinas escolares em todos os concelhos do distrito do Funchal, solicitando insistentemente, através de ofício, às entidades competentes a sua concretização, isso nunca viria a acontecer. Outro dos objetivos da Obra das Mães, que ficou muito aquém de ser concretizado, foi o de promover e assegurar em todo o país a educação infantil pré-escolar, em complemento da ação da família. Na Madeira, o único jardim-de-infância criado pela Obra das Mães de que se tem notícia é o de Boaventura, de 1959. A Obra das Mães foi extinta pelo dec.-lei n.º 698/75, de 15 dezembro, e “todos os bens e valores desta associação são [foram] transmitidos para o Estado, ficando afetos aos Ministérios da Educação e Investigação Científica e dos Assuntos Sociais” (art. 2.º). Ao longo dos seus 22 anos (1953-1975) de atividade na Madeira, a Obra das Mães, em estreita colaboração com a Igreja, orientou milhares de mulheres e jovens (em média, cerca de 520 por ano) na formação doméstica. Bibliog.: manuscrita: ARM, SRE, Obra das Mães pela Educação Nacional, Comissão Distrital do Funchal, cota 288: Correspondência Recebida e Expedida; cota 2883-A: Relatórios de atividades de diversos centros de formação familiar; cota 2886: Fotografias; Obra das Mães pela Educação Nacional, Centro de Formação Familiar do Convívio do Funchal, cota 2891.C: Copiador Correspondência Expedida; cota 2891.F: Mapas de movimento de alunas; Obra das Mães pela Educação Nacional, Centro Operário da Sagrada Família, cota 1893.A: Correspondência Recebida e Expedida; 2893.B: Provas de avaliação; 2893.E: Mapas de movimento de alunos; Obra das Mães pela Educação Nacional, Centro de Formação Familiar Camacha, 2894.A: Correspondência recebida e expedida; 2895: Mapas de movimento de alunos; Obra das Mães pela Educação Nacional, Centro de Formação Familiar dos Canhas, Correspondência recebida e expedida afeta à Secretaria Geral da Obra das Mães pela Educação Nacional, cota 2897; Id., ibid., Certificados de matrícula e frequência, 2897.A; Id., Obra das Mães pela Educação Nacional, Centro de Formação Familiar do Caniçal, Copiador de correspondência expedida, 2899.A; Id., ibid., Mapas de movimento de alunos, 2899.D; Id., Obra das Mães pela Educação Nacional, Centro de Formação Familiar do Porto da Cruz, Correspondência recebida e expedida afeta à Comissão Distrital do Funchal da OMEN, 2901.A; Id., ibid., Mapas de movimento de alunos, 2902.C; Id., Obra das Mães pela Educação Nacional, Centro de Formação Familiar de São Vicente, Correspondência expedida, 2904.A; Id., ibid., Mapas de movimento de alunos, 2904.D; Id., Obra das Mães pela Educação Nacional, Centro de Formação Familiar da Calheta, Correspondência recebida e expedida, 2905.A; Id., ibid., Mapas de movimento de alunos, 2905.D; Id., Obra das Mães pela Educação Nacional, Centro de Formação Familiar de Ponta do Sol, Boletins de inscrição e mapas de movimento de alunos, 2906.A; Id., Obra das Mães pela Educação Nacional, Centro de Formação Familiar Câmara de Lobos, Mapas de movimento de alunos, 2907.D; impressa: Diário da Manhã, 12 fev. 1936, p. 1; Diário de Notícias, 16 jul. 1936, p. 1; Diário de Notícias, 11 dez. 1962, pp. 1-2; Eco do Funchal, 12 set. 1968, p. 1; Paróquia da Sagrada Família, ano II, n.º 20, março 1966, p. 7; PIMENTEL, Irene F., História das organizações femininas do Estado Novo, Lisboa, Temas e Debates - Atividades Editoriais, 2001. Filomena Lume (atualizado a 11.07.2016)

escola primária superior do funchal

A implementação do ensino primário superior, em Portugal, insere-se na política educativa da Primeira República, consagrada na reforma do ensino primário de 29 de março de 1911. A decisão de reformar foi quase imediata, mas as bases para a sua concretização acabaram por ser lançadas já no pós-guerra. Remonta ao ano 1918, quando o ministro Alfredo Magalhães nomeou uma comissão, presidida por Adolfo Lima, com o objetivo de preparar este grau de ensino. Os passos mais decisivos foram dados em 1919, com o dec. n.º 5787-A, de 10 de maio de 1919, que regulamentou o ensino primário superior e com o dec. n.º 5787-B, do mesmo dia e ano, que reorganizou o ensino primário. O regime republicano respondia assim ao ideal de democratização do ensino, promovendo, com a escola primária superior, “uma educação popular mais alargada e a valorização da escola enquanto instrumento de integração social e de inculcação ideológica” (MANIQUE, 2012, 65). Na sua essência, o propósito era facultar uma informação geral e uma preparação técnica aos alunos, cuja idade não poderia ser inferior aos 12 anos, e que acabava por constituir uma condição necessária para a admissão nas fábricas, oficinas, arsenais e quaisquer outros estabelecimentos do Estado, conforme refere o dec. n.º 5787-A, de 10 de maio de 1919. A abertura do ensino primário superior constitui uma das grandes novidades da reforma educativa republicana, uma alternativa ao habitual trajeto rumo ao ensino liceal, bem como uma oportunidade para aqueles que não podiam aspirar a outras saídas académicas, por contingências económicas e sociais. Para os municípios, as escolas primárias superiores passavam a ser o garante de quadros para a administração local e do contingente de professores do ensino primário, atendendo à própria legislação. A conclusão do curso do primário superior permitia efetuar a matrícula nas escolas normais primárias de Lisboa, Porto e Coimbra, que passaram a ser as únicas escolas que habilitavam para o exercício do magistério primário, a partir de 1919, em Portugal. Conforme dispunha o art. 66.º do dec. n.º 5787-B, de 10 de maio desse ano, que reorganizou o ensino primário, “A habilitação dos professores para o exercício do magistério primário em todos os seus graus far-se-á unicamente nas escolas primárias de Lisboa, Porto e Coimbra”. Permitia ainda requerer o exame de saída do curso geral dos liceus; o diploma de aptidões pedagógicas nas escolas normais primárias para o exercício do ensino primário livre; a matrícula nas escolas técnicas correspondentes, na parte já especializada; concorrer a todos os cargos públicos para que fosse exigida a aprovação do curso geral dos liceus; usufruir da condição de preferência para a admissão nas fábricas, oficinas, arsenais e quaisquer outros estabelecimentos do Estado; e, a secção doméstica das escolas, também, constituía condição de preferência para ser provido ao quadro de pessoal menor ou de vigilância das escolas femininas ou de educação (art. 8.º do dec. n.º 5787-A, de 10 de maio de 1919). Neste sentido, e dando cumprimento aos decretos referidos, em 1919, a Escola de Ensino Normal do Funchal deu lugar à Escola Primária Superior do Funchal (EPSF), à semelhança do que aconteceu nos restantes distritos do território português. No espaço onde estava instalada a Escola de Ensino Normal do Funchal, com a mesma direção, professores e funcionários, as mudanças orgânicas efetivaram-se. Contudo, o edifício onde estava instalada aquela – situado na R. dos Aranhas, n.os 31, 33 e 35, São Pedro, Funchal – revelou-se sem condições adequadas, quer físicas, quer pedagógicas, para o desenvolvimento das atividades da EPSF. No sentido de encontrar uma solução, foi constituída uma comissão, a 4 de dezembro de 1919, presidida por Pedro José Lomelino e, a 10 de junho de 1920, a nova escola foi transferida para outro espaço. A CMF arrendou uma casa pelo período de cinco anos, situada na mesma rua, n.os 24 e 26, conhecida por Solar de D. Mécia. [caption id="attachment_1467" align="aligncenter" width="300"] Fig. 1 – Fotografia da fachada principal do Solar de D. Mécia, edificado nos princípios do séc. XVI, que acomodou a EPSF entre 1920 e 1926.Fonte: http://inocente.web.simplesnet.pt/index4.htm[/caption] Aqui funcionou até à sua extinção, determinada pelo dec. n.º 11730, de 15 de junho de 1926, na sequência da mudança política que se fez sentir no país, pondo termo à pretensão de uma integração escolar extensiva ao ensino primário superior e ao esforço republicano no sentido de criar um sistema escolar análogo ao de outros países da Europa. A última reunião do Conselho Escolar da EPSF teve lugar a 30 de junho de 1926, para dar conta da gerência do último ano económico. Pedro José Lomelino, que antes referimos, médico de formação, foi o diretor da EPSF. Nessa qualidade, também acompanhou a criação e evolução da Escola de Ensino Normal do Funchal, com exceção de um curto período (3 de fevereiro a julho de 1919); quando afastado da direção, foi substituído pelo Prof. Constantino Silvano Pereira, que assegurou o cargo interinamente (FLORENÇA & LUME, 2012, 291). Por tal facto, a implementação da EPSF foi efetuada pelo diretor interino, retomando o mandato o diretor efetivo aquando do início das atividades da nova escola. Para formar o conselho administrativo foram eleitos, como vogais, os professores Constantino Silvino Pereira e Jordão Marques Henriques. [caption id="attachment_1470" align="aligncenter" width="270"] Fig. 2 – Fotografia de Pedro José Lomelino, diretor e professor da EPSF (1919-1926).Fonte: Particular.[/caption] Os professores da Escola de Ensino Normal passaram também a fazer parte do corpo docente do novo estabelecimento de instrução, sendo o respetivo quadro completado com outros elementos. A 14 do mês de outubro de 1919, o corpo docente ficou definido, assim como a distribuição das disciplinas relativas aos dois cursos, o de ensino normal e o do ensino primário superior. De salientar que o curso de ensino normal ainda funcionou, em período transitório, nesta escola, até 1921, pelo que algumas disciplinas são específicas do mesmo, nomeadamente, pedagogia. [caption id="attachment_1473" align="aligncenter" width="253"] Fig. 3 – Fotografia de Constantino Silvano Pereira, professor da EPSF. Fonte: Particular.[/caption] Integraram o quadro docente, os professores Pedro José Lomelino (ciências naturais), Constantino Silvano Pereira (matemática e direito), Manuel José Varela (geografia, desenho e direito), Francisco Augusto da Silva (francês), todos da Escola Normal do Funchal, e também Jorge Sílvio Pelico de Oliveira Neto (história e pedagogia), Maria Clara Monte Falco Brito Figueiroa (inglês e lavores), Jordão Maurício Henriques (português e direito), Adolfo de Sousa Brazão (ciências naturais e matemática), Maria Julieta de Brito Figueiroa (desenho, geografia, música e lavores), Manuel José Fonseca (trabalhos manuais, português e desenho), Francisco dos Anjos França (desenho, geografia, matemática). Foram ainda nomeados para o quadro docente, mas sem terem exercido funções: Antero Portugal da Silva, para lecionar canto, música, geografia e ginástica; e Luís António Guerreiro Júnior, para as disciplinas de educação física, ginástica e geografia. Em 1922, o dec. n.º 8491, de 17 de novembro, que remodelou as escolas primárias superiores, reduziu o quadro de pessoal docente estipulando duas categorias: efetivos e adidos. A EPSF tinha então 11 lugares, mas achava-se há muito um cargo vago para cadeira de trabalhos manuais. A direção decidiu que os 10 professores que se encontravam em exercício integrassem o quadro de efetivos e que, no quadro de adidos, ficasse o professor de trabalhos manuais, Jorge Sílvio Pelico de Oliveira Neto, por nunca ter lecionado na escola. O quadro dos funcionários foi também alterado. O decreto extinguiu o lugar de bibliotecário remunerado, continuando a exercer as funções o antigo bibliotecário, o Prof. Francisco dos Anjos França. O número de vogais do conselho administrativo foi reduzido a um elemento, ficando um dos professores já eleitos: Constantino Silvano Pereira. O quadro de “pessoal menor” desta escola, de acordo com o livro de termos de posses, era constituído pelo amanuense Alberto Tiago do Passos Ferreira, servente jardineiro, João Rodrigues e contínuos serventes: Fortunato de Sousa Galvão, Carlota Augusta de Macedo e Joana Amélia Rodrigues. A 3 de julho de 1923, em conselho escolar, segundo a respetiva ata, a distribuição das disciplinas fez-se em harmonia com o disposto no art. 1.º do dec. n.º 8932, de 19 de junho de 1923, que, atendendo à competência de cada professor, estabelecia os grupos de lecionação: “1.º grupo – português, francês, história e geografia; 2.º grupo – higiene, ciências físico-químico-naturais e matemática; 3.º grupo – desenho e modelação e trabalhos manuais educativos; 4.º grupo – música e canto coral; 5.º grupo – educação física; 6.º grupo – inglês”. Ainda estabelecia que “os professores são [eram] obrigados à regência de todas as disciplinas do seu grupo”. No Funchal, integraram o 1.º grupo os professores Manuel José Varela, Francisco Augusto da Silva e Jordão Maurício Henriques, efetivo, e Domingos Augusto dos Reis Costa (adido). No 2.º grupo, Pedro José Lomelino e Constantino Silvano Pereira, como efetivos, e Adolfo de Sousa Brazão, e Arnaldo de Brito Figueiroa, como adidos. No 3.º grupo, Francisco dos Anjos França, e uma vaga. O 4.º e o 5.º grupo estavam vagos, pois não havia docentes para lecionar educação física, canto e trabalhos manuais. O 6.º grupo integrou Maria Clara do Monte Falco Brito Figueiroa. O Prof. Jordão Maurício Henriques, no discurso inaugural da EPSF, que foi incumbido de proferir por decisão da sessão do conselho escolar de 29 de julho de 1919, evidenciou o propósito de o ensino primário superior servir ao desenvolvimento das artes, do comércio e da indústria: “A nossa pátria tem de ser uma língua religiosamente amada com devoções como Castilho, Garrett e João de Deus; tem de ser uma tradição e uma forma de arte, uma indústria e um comércio vivendo de iniciativas próprias, uma vasta oficina, operosa e farta, onde a blusa de mestre suscite mais orgulho do que uma borla de inútil doutor” (apud HENRIQUES, 1924, 16-17). A concluir a sua preleção afirmava: “Abrimos hoje uma nova escola [...] vimos dar ao ensino vivo da nossa língua e da história um interesse e um orgulho conducente à ideia de pátria, fazer amar o património das liberdades públicas [...] Seremos assim beneméritos da pátria e da república porque preparamos os cidadão perfeitos de uma República perfeita” (id.). Em pleno funcionamento da EPSF, verifica-se a tentativa da instituição de implementar as secções técnicas. A 12 de janeiro de 1922, o Prof. Jordão Maurício Henriques propôs, em conselho escolar, que a escola apresentasse superiormente um pedido, no sentido de a escola desempenhar uma função útil e prática. Pretendia a criação das secções técnicas comercial, agrícola e marítima. Conforme definia o ponto 2 do art. 1.º do dec. n.º 5787-A, de 10 de maio de 1919, as escolas podiam criar as seguintes sessões técnicas: comercial, agrícola, doméstica, industrial e marítima. Esta pretensão gerava algumas contradições na finalidade do ensino primário superior, designadamente, entre ser “escola” ou ser “oficina” (MANIQUE, 2012, 66). Da análise da documentação de arquivo consultada, não foi possível concluir se a pretensão daquele docente foi atendida. Permanece a dúvida se de facto existiu alguma secção técnica nesta escola. Aliás, esta situação foi observada na maioria das escolas do grau de ensino em apreço, como foi o caso da Escola Superior de Sintra: “Na Escola Primária Superior de Sintra nunca existiu qualquer secção técnica” (id., 68). As condições de acesso à Escola Primária Superior eram variadas. Os candidatos deviam possuir o diploma de estudos de ensino primário geral ou seu equivalente e terem 12 anos até 31 de dezembro do ano em que efetuavam a matrícula. Eram ainda submetidos a um exame sanitário pelo médico escolar. A matrícula era gratuita e efetuava-se na presença do candidato e do encarregado de educação, entre 6 e 9 de outubro. O curso tinha a duração de três anos. Os alunos do 3.º ano eram submetidos a um exame final, realizado em julho, com base na média aritmética de todas as notas obtidas nos três períodos. O exame constava de provas escritas, que não eram eliminatórias, e orais. De acordo com o dec. n.º 5787, de 10 de maio de 1919, as provas escritas compreendiam um exercício de redação, um em português e outro nas línguas francesa e inglesa, exercícios de física ou química e de matemática. As provas orais eram prestadas em três dias. No primeiro dia realizavam-se as provas de língua portuguesa, de geografia, de ciências física, química e naturais. No segundo, as provas de francês, de inglês, de história, de instrução moral e cívica, e de matemáticas elementares. No último dia, as provas de noções práticas de higiene e interrogatórios acerca dos trabalhos de desenho, trabalhos manuais, educativos e técnicos que tivessem sido realizados pelos alunos durante o curso e que estavam expostos na sala de exame. De acordo com os termos dos exames finais desta escola, os mesmos realizaram-se pela primeira vez em julho de 1922, tendo ficado aprovados 27 alunos: 26 do sexo feminino e um do sexo masculino. Foram estes os primeiros educandos que se formaram no curso de ensino primário superior, 14 naturais do Funchal e 13 de outros concelhos da Madeira.   Alunos Naturalidade(Funchal) Alunos Naturalidade(outros concelhos) Alda da Piedade Fernandes São Pedro Adelina Amália Ferreira Estreito da Calheta - Calheta Algorina Ivone Martins Sé Estela Gualdina Homem de Gouveia Porto Moniz Augusta Regina Pereira Santa Luzia Joséfa Varela Ponta do Sol Bela Ana Marques Sé Maria Amélia Betencourt Calheta Carmina Consuela Câmara Ferreira Santa Maria Maior Maria Carmensita de Faria Ribeira Brava Egídia da Conceição Gomes Santa Maria Maior Maria Gabriela S. Teixeira de Aguiar Machico Ester de Sousa Pereira São Pedro Maria Olimpia de Freitas Ponta Delgada - São Vicente Gabriela da Conceição de Sousa Sé Maria Varela Ponta do Sol Henriqueta Gabriela Gonçalves de Freitas São Pedro Olívia Assunção Gonçalves dos Santos Ribeira Brava Júlia Alice de Gouveia São Pedro Sara Amélia Crispiana Matos Gaula - Santa Cruz Laurinda Benilda da Silva Martins Santo António Juliana da Conceição Fernandes Paiva Porto Moniz Maria Bela Ferreira São Pedro Luísa Cristina Jardim Ribeira Janela/Porto Moniz Maria Carmina Pereira Santos São Pedro Manuel Varela Ponta do Sol Maria Isabel Pimenta Santa Luzia Fig. 4 – Tabela da lista nominal dos primeiros alunos que concluíram o primeiro curso da EPSF e respetivas naturalidades. Fonte: ARM, ICEFUM, liv. 122. Nos anos que se seguiram, a escola formou poucos alunos, atendendo às expetativas criadas em torno do ensino primário superior. No total, a EPSF formou 63 alunos, 56 do sexo feminino e 7 do sexo masculino.   [caption id="attachment_1476" align="aligncenter" width="300"] Fig. 5 – Gráfico do número de alunos que realizaram os exames finais na EPSF, de 1922 a 1926. Fonte: ARM, ICEFUM, liv. 122.[/caption] Como se constata pelos números apresentados, embora sejam interpretados com base nos dados de conclusão do curso, atendendo a que não foi possível consultar os registos de matrícula, a frequência feminina superou sempre a masculina. Outro facto assinalável é o de o decréscimo significativo de alunos a concluir o curso: de 27, no ano 1922, para 8, em 1923, o que, no nosso entender, indicia a diminuição expressiva de matrículas. Embora tenha aumentado o número de alunos a realizar as provas finais em 1926, ano em que a escola é definitivamente encerrada, tal crescimento pode estar associado à situação de que quem ficasse retido na 3.ª classe só pudesse obter um diploma, que lhe garantisse uma ocupação profissional, com a frequência do 3.º ano dos liceus. O art. 6.º do dec. n.º 11730, de 15 de junho de 1926, que extingui estas escolas, em Portugal, definia que “Os alunos das escolas primárias superiores que tenham média de passagem à 2.ª ou 3.ª classe podem matricular-se, respetivamente, na 2.º e 3.º classe dos liceus”. Aliás, esta foi a tendência da maior parte das escolas congéneres espalhadas pelo país; por um lado, apresentaram um impulso inicial de frequência, justificado por vários autores “com a integração no ensino primário superior dos alunos que frequentavam as antigas escolas de habilitação para o magistério primário”, por outro, “a frequência feminina supera todos os anos a masculina”. Uma das exceção foi a Escola Primária Superior de Sintra, que contrariou essas tendências ao apresentar um “diminuto número de alunos matriculados nos primeiros anos de funcionamento da Escola”, “um ciclo de crescimento até ao epílogo definitivo do ensino primário superior” e “a população estudantil masculina é quase sempre superior à feminina” (MANIQUE, 2012, 70). As críticas a este nível de ensino fizeram com que surgissem, na curta vida da instituição, várias alterações legislativas para colmatar a falta de professores devidamente habilitados para a secção geral do curso e a ausência das secções técnicas na maior parte delas. Por tais factos, entre outros, estas escolas, de acordo com o dec. n.º 9354, de 7 janeiro de 1924, foram supridas, sem que se tenha atendido à situação dos alunos, dos professores, dos respetivos arquivos e do material escolar. Contudo, em dezembro do mesmo ano, pelo dec. n.º 10397, de 19 de dezembro, fica suspensa a supressão das mesmas, definindo o art. 2 do diploma que “ as escolas primárias superiores existentes [...] que ainda não estejam a funcionar, [...] deverão abrir imediatamente”. Apesar desta decisão, foram extintas definitivamente pelo dec. n.º 11730, de 15 de junho de 1926. Todo este cenário de instabilidade legal, associado a uma operacionalização que não foi capaz de cativar a sociedade para o projeto escolar primário superior, fez com que os resultados esperados não fossem concretizados, quer na afluência às escolas, quer na evolução social que se pretendia, com a reforma do ensino primário. Contudo, o ensino primário republicano conheceu um conjunto de inovações organizativas, curriculares e pedagógicas que, em termos conceptuais, foram referência em várias reformas educativas, principalmente nas ocorridas na segunda metade do séc. XX, em Portugal. Bibliog.: manuscrita: ARM, Câmara Municipal do Funchal: Notas de Contractos em que a Câmara Municipal do Funchal é Outorgante (1920), CMFUN – 2142, liv. 18, pp. 74-76; Inspecção do Circulo Escolar do Funchal, Escola de Ensino Normal do Funchal, Termos dos Exames Finais da Escola Primária Superior, 1922-1926, ICEFUN, liv. 122; Inspecção do Circulo Escolar do Funchal, Escola de Ensino Normal do Funchal, Actas do Conselho Escolar, 1914-1926, PT-ARM-ICEFUN/R/1, liv. 110; impressa: FLORENÇA, Teresa e LUME, Filomena, “Escolas de Habilitação para o Magistério Primário na Madeira (1900-1982)”, in PINTASSSILGO, Joaquim (coord.), Escolas de Formação de Professores em Portugal, Lisboa, Edições Colibri, 2012, pp. 287-331; HENRIQUES, Jordão, Da Pátria e da Escola, Funchal, s.n., 1924; MANIQUE, Carlos, “O Ensino Primário Superior em Sintra (1919-1926)”, in ADÃO, Áurea, MANIQUE, Carlos da Silva e PINTASSILGO, Joaquim (orgs.), O Homem Vale, sobretudo, pela Educação que Possui: Revisitando a Primeira Reforma Republicana do Ensino Infantil, Primário e Normal, Lisboa, Instituto de Educação da UL, 2012, pp. 63-80; digital: Imagens Antigas do Funchal, “Ilha da Madeira” p. 7: http://inocente.web.simplesnet.pt/index4.htm (acedido a 7 jan. 2012). Filomena Lume (atualizado a 11.07.2016)

literatura novilatina

No caso das línguas, o termo “novilatino” designa uma língua proveniente do latim. O que, transposto para a literatura, irá designar as produções literárias que se expressam na língua latina e sob a forma de géneros caros aos autores latinos. A literatura novilatina é uma expressão literária que, através de textos, usa a língua latina para exponenciar a excelência do assunto relatado. O seu uso advém do movimento da Renascença e da redescoberta da Antiguidade Clássica. Num pretenso abandono das formas literárias do período medievo, os intelectuais do Renascimento viraram-se para as estruturas clássicas e para o uso do latim, como veículos de expansão do movimento humanista. A isto, junta-se o facto de o latim ser a língua da ciência e de, à época, surgir como ligação de toda a comunidade científica. A literatura novilatina conhece, pois, um impulso sem precedentes durante a Renascença. No mundo das letras, há uma grande quantidade de prosadores e poetas, procedentes das mais diferentes culturas e idiomas. Além de nomes conceituados no panorama mundial, tal como Erasmo de Roterdão, o cultivo da literatura novilatina permitiu a emergência de nomes de nações geograficamente marginais, como é o caso de Portugal. Em Portugal, o movimento humanista teve por origem histórica a vinda para o reino do italiano Cataldo Sículo (Palermo, 1455-1517), chamado pelo rei D. João II como precetor de seu filho bastardo, D. Jorge, apesar de se apontarem outros dois nomes de relevo, Estêvão de Nápoles e Mateus de Pisano. O humanista siciliano destacou-se pela sua capacidade oratória e pela sua destreza com a língua latina, o que fez com que rapidamente se tornasse secretário do rei, na redação de correspondência diplomática entre o reino, Roma e as principais cortes europeias. Foi ele o responsável pelo discurso de saudação à princesa Isabel de Castela, noiva do príncipe herdeiro D. Afonso. Após a morte prematura deste, continuou como precetor dos filhos da alta nobreza. Do seu legado bibliográfico destacam-se as seguintes obras: Epistole et orationes quedam Cataldi Siculi (1500, parte I), Epistole et orationes quedam Cataldi Siculi (1513-14, parte II), Poemata (1501-2), Omnia Cataldi Aquillae Siculi, quae extant opera per Antonium de Castro de nuo correcta, ac nunc primum in lucem edita (1509) e Visiones (1513-14). Com a perceção humanista, confirmada com a chegada de indivíduos ligados à Renascença italiana e à operante redescoberta do mundo clássico, a expressão da literatura novilatina retoma a grandeza histórica que a pátria demandava. Era notório o crescimento daqueles que, inflamados pelos feitos épicos da nação, apelavam à recriação da grandeza épica e filosófica de Portugal. Há uma produção intelectual versada em quase todos os géneros dos autores clássicos: historiografia, retórica, epopeia, elegia, lírica e drama. Das personalidades destacadas em Portugal, além do incontornável Luís Vaz de Camões, refira-se o denominado “Cícero Lusitano”, D. Jerónimo Osório (Lisboa, 1506-Tavira, 1580) que publicou várias obras de destaque: De Nobilitate Civile et Christiana (1542), De Gloria (1549), De Justitia Coelesti (1564) e De Vera Sapientia (1578). Outra figura proeminente da literatura novilatina produzida em Portugal e reconhecido humanista é Diogo de Teive (Braga, 1514-1569). Este autor cultivou, num latim notável, quase todos os géneros literários. Foi um notável orador académico, pedagogo de príncipes, doutrinador político-social, hagiógrafo e assinalável poeta, próximo de Horácio, cultivador de um estoicismo cristão. Das suas obras, destacam-se Commentarius de Redus a Lusitanis in India Apud Dium Gestis  (1548), Opuscula Aliquot Salamanticae, Ioannes Princeps Tragoedia (1558) e Epodon sive lambicorum Carminum Libri Tres (1565). Damião de Góis (Alenquer, 1502-1574) integrou cedo a corte do rei D. Manuel I, contactando com Cataldo Sículo. Durante a sua estada na Feitoria da Flandres, tornou-se amigo de Erasmo de Roterdão. Das suas obras destacam-se Deploratio Lappianae gentis (1540) e Urbis Olisiponis descriptio (1554). Fernão de Oliveira (Aveiro 1507-1581), clérigo dominicano, foi um distinto filólogo, diplomata e escritor. Produziu a primeira gramática da língua portuguesa, Grammatica da lingoagem portuguesa (1536) e publicou a Ars nautica (1570). Por fim, será de referir João de Barros (Viseu, 1496-Pombal, 1570), destacadíssimo historiador que escreveu uma obra virada para o contributo humanista luso a partir da descoberta dos novos mundos. Juntamente com Fernão de Oliveira, foi um precursor da norma da gramática portuguesa, com a edição da Grammatica da Lingua Portuguesa com os Mandamentos da Santa Madre Igreja (1540). Da restante produção, há a realçar Rhopicapneuma ou Mercadoria Espiritual (1532), um diálogo moral alegórico que depressa fez parte do índice da Santa Inquisição, além dos quatro volumes das Décadas da Ásia (1552, 1553, 1563 e 1615, ano de edição, respetivamente). Muitos outros nomes se perspetivam como indissociáveis deste período áureo da cultura portuguesa, como é o caso do matemático Pedro Nunes (Alcácer do Sal, 1502-Coimbra, 1578). A Madeira dos séculos XV e XVI vivia o apogeu da vertente expansionista atlântica do reino. Fruto do ciclo do açúcar, o florescimento social e cultural foi notório: a diocese do Funchal foi elevada (31 de janeiro de 1533) a maior arquidiocese metropolitana do mundo de então, tendo como dependentes as dioceses do Império Colonial Português nos Açores, no Brasil, em África e no Oriente. A concentração de habitantes de origem flamenga e italiana, com capital para o desenvolvimento da indústria sacarina, também foi notória, tornando a ilha uma bem-sucedida experiência pré-capitalista. Em maio de 1570, chegam ao arquipélago os primeiros Jesuítas, por carta régia de D. Sebastião de 20 de agosto de 1569, que se vão instalando progressivamente nas imediações da R. dos Ferreiros. Os terrenos para o colégio começaram a ser adquiridos por fins de 1571. As primeiras obras do colégio estavam prontas em 1578, transferindo-se o Santíssimo da capela de S. Bartolomeu para a nova capela de S. João Evangelista, a igreja do colégio. Dadas as condicionantes apresentadas pelo arquipélago da Madeira, o movimento humanista, aliado ao florescimento da literatura novilatina, revelou ao mundo a figura do P.e Manuel Álvares, um dos vultos maiores do Humanismo português, cujo ex-líbris, De Institutione Grammatica Libri Tres (Lisboa, 1572) (Gramáticas), se tornou um marco universal na aprendizagem do latim. Além do jesuíta oriundo da Ribeira Brava, a Madeira foi um ensaio dinâmico para a abertura de outro tipo de obra literária cultivada pelo Humanismo, a literatura de viagens. Reunindo em si o facto de ser a primeira terra do Novo Mundo, de ter sido uma boa experiência económica e de juntar gentes de várias origens (portugueses, italianos e flamengos), a Madeira possuía todas as condições para despertar a curiosidade do visitante. Por isso, não é de estranhar a produção de textos de viagem em latim, com a Madeira como tema. Diogo Gomes de Sintra foi um navegador português com data de nascimento desconhecida e que faleceu em Sintra no ano de 1502. Foi um explorador do círculo do infante D. Henrique e, conjuntamente com o italiano Antonio da Noli, descobriu o arquipélago de Cabo Verde. O seu interesse em relação ao arquipélago da Madeira é que, sendo o único dos navegadores próximos do infante a deixar-nos memórias de viagens, nos legou uma obra, escrita em latim pelo alemão Martin Behaim (embora haja apologistas da autoria escrita de Diogo Gomes), De prima inventione Guinee, dividida em duas partes: De insulis primo inventis in mare Occidentis e De inventione insularum de Açores. Na senda da literatura de viagens, há referência à descoberta da Madeira. Nos primórdios da ilha, a influência italiana foi de um registo assinalável. Os italianos estiveram ligados aos Descobrimentos Portugueses e à ação exercida sobre as populações (colonizadores e/ou nativos) nas novas terras, além da sempre presente influência da Igreja Católica Apostólica Romana. Na Madeira, é evidente a incrementação da cana sacarina, planta trazida da Sicília e o posterior desenvolvimento comercial do negócio do açúcar em que entram, de igual modo, os comerciantes flamengos. A atração pela ilha também se tornou relevante pelas referências feitas em Itália. Uma delas é La Descrittione de l’Isola de la Madera, Già scritta ne la Lingua Latina, dal molto Ill. Signor Conte Giulio Landi, traduzida pelo P.e Alemanio Fini e editado em Piacenza no ano de 1574, conjuntamente, com a versão original de Giulio Landi, Descrittione de l'isola de la Madera… ne la quale si contengono molto belle, e delettevoli narrationi; e massimamente l'agricoltura del zucchero, e li costumi de gli huomini di quel paese, e particolarmente il giuoco di canne e il modo di lottare, e la caccia de li tori a piedi e a cavallo, de que existe um códice na biblioteca universitária de Leida, outro na Biblioteca Ambrosiana de Milão e outro na biblioteca do Museu Cívico de Pádua, Iulii Landi narratio de insula Materia, qua vulgo Madera, ubi diu exul ab aula Romana vixit. O conde Giulio Landi nasceu em Piacenza a 30 de maio de 1498, tendo vivido a sua juventude em Roma, onde se formou em direito. A sua viagem à ilha da Madeira, embora envolta em motivos desconhecidos, deu-se por volta de 1529, quando recolheu as impressões depois publicadas. A La Descrittione é dedicada ao amigo Hipólito de Médici, filho ilegítimo de Juliano de Médici, duque de Nemours, que conheceu em Roma durante o papado de Leão X. O interesse desta referência deve-se à descrição, em latim, da ilha da Madeira feita pelo conde placentino, que fala das caraterísticas naturais da ilha, dos aspetos sociais e económicos (o ciclo do açúcar), da administração civil, das tradições e das festas populares. O trabalho deste viajante vem dar relevância à literatura de viagens que, na confluência do Renascimento e dos Descobrimentos, incrementa uma nova forma de Humanismo com a descrição das novas terras e novos povos. No seguimento desta publicação, surge, pela mão do sacerdote madeirense Manuel Constantino, formado em Salamanca e professor na Sapienza de Roma, outra descrição do arquipélago da Madeira, em língua latina: Insulae Materiae Descriptio (Roma, 1599). Manuel Constantino nasceu na Madeira e faleceu em Roma a 28 de novembro de 1614. Escreveu diversas obras em latim: De profectione Pontificis in Ferraricus (Roma, 1598), Oratio in funere Philippi II (Roma, 1599), Historia de origine et principio atque vita omnium regum Lusitaniae (Roma, 1601), In funere Seraphinae a Portugalia Joannis Brigantiae Ducis filiae (Roma, 1604), Gratulatio de S. Pontif. Paulo V (Roma, 1607) e Votum primum ad S.S. Virginem pro salute Scipionis Cardinalis (Roma, 1610). A controvérsia em torno da obra Insulae Materiae Descriptio foca-se no facto de haver indícios de plágio a partir da obra La Descrittione, reproduzindo, quase sem variações, a obra do conde Giulio Landi. A Insulae Materiae Descriptio é uma raridade bibliográfica, sendo que o industrial Henry Hinton adquiriu um exemplar e promoveu a sua tradução pelo P.e João Baptista de Afonseca. Saliente-se ainda o acompanhamento humanista em relação à pátria feito pelas personalidades intelectuais do arquipélago ou que passaram pela ilha. E refiram-se as duas vertentes do Humanismo ligado à Madeira. Por um lado, o Humanismo ligado às figuras da Igreja que, desde a descoberta da ilha, sempre assumiu um papel de peso na sociedade madeirense; estas figuras, por terem um acesso facilitado ao estudo dos clássicos, quer através do grego, quer através do latim, depressa absorvem o espírito do Renascimento. Por outro lado, naquele que é provavelmente um dos contributos mais válidos dos Descobrimentos Portugueses para o Humanismo europeu, o incremento da literatura de viagens, pela descoberta dos novos mundos e dos novos povos que ficavam para além das Colunas de Hércules, o limite do mundo antigo. Bibliog.: CARDOSO, Luís Miguel Oliveira de Barros, Para a história do humanismo renascentista em Portugal: Pedro Sanches e o sortilégio das musas, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1996, texto policopiado; CARITA, Rui, História da Madeira: Descobrimento e Povoamento (1420-1566), Funchal, SRE/DRAC, 1989; Id., História da Madeira (1566-1600): A Crise da 2.ª Metade do séc. XVI, Funchal, SRE/DRAC, 1991; Id., O Colégio dos Jesuítas do Funchal, vol. I, Funchal, SRE/DRAC, 1987; COSTA, José Pereira da, “Os Livros de Matrícula dos Ordenados em Ordens Menores e Sacras, 1538-1553”, in AHM, vol. X, Funchal, p. 150 e ss.; FREITAS, Eugénio de Andrea da Cunha e, “Alguns madeirenses que receberam ordens em Braga (1501-1544) ”, in CLODE, Luiz Peter (dir.), Das Artes e da História da Madeira, vol. VI, fascículo 36, Funchal, Sociedade de Concertos da Madeira, 1950- 1971, p. 28; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra (ed. fac-símile), Funchal, Funchal 500 Anos, 2007; HIRSCH, Elisabeth, “The Discoveries and The Humanists”, in PARKER, John (ed.), Merchants & Scholars: Essays in the History of Exploration and Trade, Minneapolis, The University of Minnesota Press, 1965, pp. 33-46; HOOYKAAS, Reyer, O Humanismo e os Descobrimentos na Ciência e nas Letras Portuguesas, Lisboa, Gradiva, 1983; PORTO, Nuno Vasconcelos, “Madeirenses na Universidade de Paris (Entre 1520 e 1550)”, in CLODE, Luiz Peter (dir.), Das Artes e da História da Madeira, vol. III, fascículo 16, Funchal, Sociedade de Concertos da Madeira, 1950–1971, p. 15; SOUSA, João de, “Notas para a História da Madeira: Os italianos na ilha, Benoco Amador”, DN, supl. “Cidade Campo”, Funchal, 6 de maio, 1984, p. 6; STEPHAN, Isabel et al., Antologia Literária da Madeira sécs. XV e XVI, Funchal, SRE/DRAC, 1986; VIEIRA, Alberto, “Os italianos na Madeira: séculos XV-XVI”, in Arquipélago: História, 2.ª série, III, Ponta Delgada, UAc, 1999, pp. 11-27; Id., “O Regime de propriedade na Madeira: O caso do Açúcar (1500-1537)”, in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, DRAC, 1989. Paulo Figueira (atualizado a 11.07.2016)

túneis rodoviários (da ilha da madeira)

A orografia muito acidentada da ilha da Madeira, caracterizada por vales profundos e vertentes escarpadas, constituiu desde sempre uma barreira à mobilidade, dificultando a circulação de pessoas e bens entre os diversos pontos da Ilha. Em consequência, o desenvolvimento de uma rede viária adequada à circulação de veículos automóveis, a partir do final da déc. de 40 do séc. XX, representou um enorme desafio, quer ao nível de conceção e de projeto, quer ao nível da construção, pois com um relevo tão irregular e acidentado, impunha-se o recurso a inúmeras obras de engenharia civil, como pontes, pontões e muros de suporte e, inevitavelmente, túneis (conhecidos na Madeira por “furados”). Efetivamente, nessa época começaram a ser construídos os primeiros túneis rodoviários ao longo de toda a ilha, por forma a satisfazer as exigências da circulação rodoviária nas ligações entre povoações. A necessidade de um maior desenvolvimento económico-social e cultural pretendido para a RAM conduziu a um grande desenvolvimento da rede viária a partir do final do séc. XX, no sentido de permitir acessibilidades mais rápidas e mais cómodas, com maiores condicionamentos de traçado (curvas de raios cada vez maiores e inclinações longitudinais cada vez mais reduzidas). Face à morfologia muito acidentada da Ilha, tal apenas foi possível de implementar com recurso à construção de túneis em praticamente todas as vias, por vezes com uma expressão muito significativa, não só no desenvolvimento, como na secção (área transversal). Assim, a construção de túneis rodoviários pode ser dividida em duas fases: a dos que foram concluídos até cerca de 1980, com particular incidência nas décs. de 50 e 60; e a dos que foram concluídos a partir do final do séc. XX, mais precisamente a partir da déc. de 80. Os túneis mais antigos têm um ou dois sentidos de tráfego e estão distribuídos por toda a Ilha, conforme ilustrado na Fig. 1. São em número de 28 e perfazem uma extensão total de aproximadamente 4,8 km.   [caption id="attachment_7990" align="aligncenter" width="1024"] Fig. 1 – Planta de localização dos túneis rodoviários mais antigos (TA1 a TA28) na ilha da Madeira.[/caption] Entre estes túneis destacam-se alguns com particular relevância, por integrarem vias com enorme interesse turístico, por um lado, pois constituem miradouros privilegiados, e, por outro, pelo contexto histórico em que foram construídos, constituindo, por isso, uma memória viva do esforço do desenvolvimento da Região no estabelecimento das primeiras ligações entre algumas localidades da Ilha. Antes da construção da Estrada Regional (ER) 101 (déc. de 40), era pela Estrada Real 23, que não era mais que uma estreita vereda, que se fazia a circulação de pessoas e bens entre povoações da costa norte. Esta situação manteve-se até meados dos anos 50, altura em que houve a necessidade de construir uma via de comunicação com 5 m de largura, que permitisse a circulação de meios de transporte movidos a motor. Esta ligação entre o Arco de São Jorge e Porto Moniz, passando por São Vicente, ficou concluída em 1953, data da inauguração do túnel Eng.º Duarte Pacheco, que liga Boaventura ao Arco de São Jorge. Antes de 1955, a povoação do Caniçal encontrava-se isolada do resto da ilha por um relevo muito acidentado, o qual impossibilitava a ligação terrestre até Machico, a povoação mais próxima do lado sul da Ilha. Desta forma, a circulação entre estas povoações fazia-se preferencialmente por via marítima, mas também pedonalmente por uma estreita vereda construída na zona superior da montanha, constituída por um túnel com 3,6 m2 de secção. Em 1955, este túnel foi alargado para uma secção retangular com cerca de 27 m2 (6 m x 4,5 m), passando a possibilitar a circulação rodoviária. A inauguração deste túnel rodoviário, com 700 m de desenvolvimento, foi um dos acontecimentos mais importantes da época (Fig. 2).   [caption id="attachment_1392" align="alignleft" width="315"] Fig. 2 – Túnel do Caniçal em 1955: inauguração do emboquilhamento Este[/caption] [caption id="attachment_7994" align="alignleft" width="327"] Túnel do Caniçal em 1955: secção posterior.[/caption]                 O túnel do Véu da Noiva, o mais emblemático dos túneis mais antigos da ilha da Madeira, pelo seu enquadramento paisagístico e elevado interesse turístico, colapsou em 2008 (Fig. 3). Localizava-se sob um vale suspenso, por onde a água da ribeira João Delgado caía diretamente para o mar formando uma cascata. O colapso foi devido ao recuo da arriba subjacente pela ação erosiva do mar, envolvendo a parte da ER101 onde se situava o túnel e formando uma fajã na sua base.   [caption id="attachment_1398" align="alignleft" width="330"] Fig. 3.a) – ER 101 e Túnel do Véu da Noiva: 1955[/caption] [caption id="attachment_1401" align="alignleft" width="304"] Fig. 3.b) – ER 101 e Túnel do Véu da Noiva: 2008 após colapso do túnel.[/caption]                   Os túneis mais antigos da ilha da Madeira apresentavam-se, a meados da segunda década do séc. XXI, em grande parte, com um estado de conservação razoável a bom, e em condições de funcionamento aceitáveis, requerendo na sua maioria apenas algumas beneficiações, tendo em vista a continuação da sua utilização. A partir do final da déc. de 80 verificou-se um acentuado crescimento na construção de novos túneis, nomeadamente no que concerne aos acessos entre o Funchal e as restantes cidades da ilha da Madeira. O plano de acessibilidades elaborado assentou na construção de uma via rápida e de sete vias expresso (Fig. 4). A via rápida (VR1), a obra rodoviária mais importante, localizada no sul da Ilha, estabelece a ligação Ribeira Brava‑Funchal-Caniçal, e caracteriza-se por duas faixas de rodagem, uma em cada sentido, assumindo particular importância por permitir a ligação entre a cidade do Funchal, o aeroporto de Santa Cruz e o porto do Caniçal. As vias expresso estabelecem as ligações entre a cidade do Funchal e as demais cidades localizadas a norte e oeste da Ilha, e caracterizam-se por uma faixa de rodagem, com uma via de tráfego em cada sentido, acrescida de uma via de lentos num dos sentidos em situações pontuais.   [caption id="attachment_8000" align="aligncenter" width="1024"] Fig. 4 – Via rápida (VR1) e vias expresso (VE1 a VE7) da ilha da Madeira.[/caption]   Numa primeira fase, até 2000, foram construídos 20 túneis a oeste do Funchal, em direção à Ribeira Brava, e oito túneis a este do Funchal, na direção do aeroporto, todos integrando a via rápida. Destes, destacam-se os túneis duplos da Ribeira Brava e da Quinta Grande, pelo seu desenvolvimento, e o túnel João Gomes e o túnel de Pestana Júnior, por se inserirem no principal nó de ligação entre a via rápida e a cidade do Funchal, os quais representam um marco nas obras de engenharia executadas até àquela data na ilha da Madeira. Note-se que a execução destas obras permitiu a redução de 40 para 15 minutos do tempo de viagem entre o Funchal e o aeroporto. Em 2000, verificou-se um aumento significativo na construção de túneis, num total de 35, destacando-se o túnel da Encumeada e o túnel do Norte, com comprimentos de 3100 m e 2100 m, respetivamente, e o túnel de Santa Cruz, o de maior secção na Ilha, com quatro vias de tráfego. A título de exemplo refira-se que, antes da execução da via rápida e das vias expresso, para se fazer a deslocação entre Funchal e Porto Moniz, povoação localizada a noroeste da Ilha, seriam necessárias três horas. Após a construção destas vias, apenas são necessários cerca de 45 minutos. Em 2004, foi concluída a construção de mais 44 túneis, dos quais se destacam o maior túnel rodoviário de Portugal (Faial-Cortado), com 3170 m de comprimento, e o maior túnel duplo de Portugal (Caniçal), com 2140 m de comprimento. Em 2013, estima-se que a rede viária tenha um comprimento de cerca de 600 km, dos quais aproximadamente 100 km dizem respeito a cerca de 180 túneis. Evolução das soluções construtivas A ilha da Madeira, de origem vulcânica, foi formada em várias etapas, com diferentes intensidades e características litológicas que evoluíram ao longo do tempo, devido às variações do nível do mar e aos agentes erosivos, dando forma ao relevo atual com vales profundos e vertentes escarpadas. Este tipo de relevo resultou, também, da alternância de diferentes litologias com distintas capacidades resistentes: as rochas basálticas, muito resistentes, por um lado, e os materiais piroclásticos (tufos, brechas, cinzas), mais desagregáveis, por outro. A maior dificuldade no planeamento e na execução de uma obra subterrânea em maciços vulcânicos é a elevada probabilidade de encontrar diversos tipos de materiais no decurso da sua escavação, com variações significativas nas suas características resistentes. As regiões vulcânicas, pela sua grande heterogeneidade, pela sua complexidade estrutural e litológica, e pelo seu relevo vigoroso, condicionam fortemente a execução de túneis, fazendo com que seja necessário, em cada caso, adaptar os métodos de escavação e de suporte às condições encontradas na frente de escavação. Os túneis mais antigos foram escavados, na generalidade, em maciços com boas características resistentes, como basaltos e brechas compactas. As secções destes túneis foram condicionadas pelo vão e pelo maciço envolvente, tendo evoluído de uma secção retangular ou quadrada com cerca de 25 m2, para uma secção transversal em arco superior a 50 m2, com contorno irregular (Fig. 5). [caption id="attachment_1407" align="alignnone" width="720"] Fig. 5 – a) Evolução da secção média[/caption]   [caption id="attachment_1410" align="alignleft" width="328"] Fig. 5 – b) Túnel II do Grupo do Curral da Freiras com secção retangular (entrada em serviço em 1959)[/caption] [caption id="attachment_1413" align="alignleft" width="328"] Fig. 5 – c) Túnel Fajã da Areia com secção em arco (entrada em serviço em 1984).[/caption]                   A escavação era manual, com recurso a pás e picaretas. No entanto, em terrenos rochosos eram utilizados martelos pneumáticos e explosivos. O material resultante da escavação era transportado de diferentes formas. Nos primeiros túneis, construídos por volta de 1940, o transporte era efetuado através de carro de mão, evoluindo, posteriormente, para carro de bois, para o transporte sobre carris (sistema decauville) e, finalmente, para os camiões de carga (dumpers) de pequena dimensão. Geralmente a escavação era executada em duas fases. Numa 1ª fase, era escavada uma galeria de avanço (ou galeria piloto) com cerca de 6 m2, o que permitia antever as características do maciço a escavar na abóbada (o teto do túnel). Numa 2ª fase, era escavada a restante secção com a dimensão final pretendida. Em geral, estes túneis não eram revestidos. Quando eram atravessadas zonas de menor resistência (caixas de falha ou grandes afluências de água), houve necessidade de revestir, total ou parcialmente, a secção dos túneis com pedra basáltica ou betão com o auxílio de cimbres e moldes de madeira, conforme ilustrado na Fig. 6.   [caption id="attachment_8005" align="aligncenter" width="445"] Fig. 6 – a) Cimbres e moldes de madeira utilizados nos revestimentos em betão[/caption] [caption id="attachment_1419" align="aligncenter" width="368"] Fig. 6 – b) Construção do revestimento do Túnel II da via Fajã da Ovelha/Paul do Mar (entrada em serviço em 1971)[/caption]   Nestas zonas, verificava-se muitas vezes uma sobreescavação da secção, tanto na abóboda (teto), como nos hasteais (paredes laterais), o que levava a que o revestimento fosse efetuado com um enchimento em pedra e betão (betão ciclópico). No que concerne aos túneis construídos na segunda fase, a evolução da técnica e do conhecimento prévio à construção (fase de estudos e projetos) possibilitou o conhecimento das condições geológicas e a caracterização por zonas (zonamento geotécnico), o que permitiu uma melhor preparação dos métodos de escavação e dos tipos de suporte a utilizar em cada zona. Com este método, a imprevisibilidade foi bastante reduzida, assegurando-se maior controlo executivo e melhor segurança na construção. No que diz respeito à largura dos túneis, estas variam entre hasteais de 9 m e 9,6 m, consoante se trate de túneis unidirecionais, que integram a via rápida, ou de túneis bidirecionais, que integram as vias expresso, ambos os tipos com duas vias de tráfego de 3,5 m e alturas variáveis, sendo garantido sempre uma altura mínima de 5 m. A secção transversal caracteriza-se por um arco semicircular na abóbada que se prolonga na vertical nos hasteais, com áreas de 76 m2 e 83 m2, como se pode observar na Fig. 7a. Todavia, existem algumas exceções, como por exemplo os túneis João Gomes e Jardim Botânico, com abóbada elipsoidal e área na ordem dos 55 m2, e alguns túneis, como o caso do túnel da Pontinha, onde foi adotada uma secção curva com largura máxima de 10,5 m e área de 83 m2. Existem, ainda, alguns casos de túneis onde foram adotadas maiores secções, com largura efetiva de 12 m, no caso de faixas de rodagem com três vias de tráfego, como por exemplo o túnel Pestana Júnior, e largura efetiva de 18,5 m, no caso de duas faixas de rodagem, cada uma com duas vias de tráfego, como por exemplo os túneis de Santa Cruz (Fig. 7b). Nestes casos, as secções variam entre 94 m2 e 180 m2, respetivamente. Em situações pontuais, como no caso de inserção de vias de aceleração e de desaceleração no interior de um túnel, é necessário recorrer a secções com maior largura efetiva, como é o caso, por exemplo, do túnel João Abel Freitas e do túnel Faial-Cortado, com 20,5 m de largura e 189 m2 de área de escavação.     [caption id="attachment_1451" align="aligncenter" width="544"] Fig. 7 – a) Secções dos túneis construídos na 2ª fase: secções correntes[/caption]   [caption id="attachment_1456" align="aligncenter" width="1072"] Fig. 7 – b) Secções dos túneis construídos na 2ª fase: secções especiais.[/caption]   A escavação dos túneis construídos na segunda fase foi executada com recurso a meios mecânicos, nomeadamente martelos pneumáticos, ou com recurso a explosivos, de modo a proporcionar o método de escavação mais económico. O método de execução adotado foi o chamado Novo Método Austríaco de Construção de Túneis, vulgarmente designado por NATM (New Austrian Tunnelling Method). De acordo com este método, o avanço do túnel (escavação e aplicação de revestimento primário) é executado sequencialmente, sendo o esquema de faseamento da escavação determinado por um conjunto de fatores, entre os quais se destacam as dimensões da secção e as condições geológicas, geotécnicas e hidrogeológicas (existência ou não de água) do local. Como regra, é de admitir que quanto maior for a área da secção do túnel e menos resistente e mais deformável for o maciço, maior deverá ser o número das fases de escavação, para conseguir assegurar a estabilidade do túnel durante o avanço. De acordo com este método, imediatamente após a escavação é aplicado um suporte inicial ou provisório, cuja finalidade é assegurar a estabilidade da escavação e a segurança dos operários durante as operações construtivas. Apenas depois de o túnel estar aberto é instalado um suporte final ou definitivo, cujas funções principais são de satisfazer os critérios operacionais e de manutenção do túnel e, a médio e longo prazo, assegurar a estabilidade da cavidade, atendendo à possível degradação do suporte inicial e às modificações posteriores do meio envolvente (degradação do maciço, variações do nível freático, construção de edifícios ou de aterros, escavações subterrâneas vizinhas, etc.). O suporte primário mais frequentemente empregue foi o betão projetado, aplicado com espessuras a variar entre os 5 e os 30 cm, associado a pregagens. Ainda associados a estes materiais, por vezes foram também empregues no suporte inicial cambotas metálicas em maciços com muito fracas características resistentes, com a finalidade de aumentar a rigidez estrutural e de garantir a rápida contenção de blocos instáveis, enquanto o betão não apresentava resistência suficiente (Fig. 8a). Para o suporte secundário ou final, vulgarmente designado por revestimento definitivo, o mais empregue foi o betão moldado in situ (Fig. 8b), com espessuras a variar entre os 25 e os 50 cm. [caption id="attachment_1431" align="alignleft" width="297"] Fig. 8 – a) Suporte primário[/caption] [caption id="attachment_1434" align="alignleft" width="316"] Fig. 8 – b) Revestimento final[/caption]               Com o objetivo de evitar infiltrações de água para dentro do túnel e de proteger o revestimento final de betão contra influências químicas prejudiciais, foi instalado um sistema de drenagem e de impermeabilização entre o suporte primário e o suporte final. Na segunda década do séc. XXI, os túneis construídos na segunda fase encontravam-se em boas condições de funcionamento. Bibliog.: manuscrita: ARM, DOP, Projetos e Processos de Obras, Estrada Nacional n.º 1, 1.ª classe, Ramal para o Caniçal, 1951; ARM, DOP, Projetos e Processos de Obras, Estrada Nacional n.º 101-7 (Fajã da Ovelha), 1963; ARM, DOP, Projetos e Processos de Obras, Estrada Nacional n.º 101, km 86, 1964; impressa: ALVES, Emanuel R., Túneis Rodoviários Antigos da Madeira, Dissertação de Mestrado em Engenharia Civil apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 2012; BRITO, José M., BAIÃO, C., e ROSA, S. P., “Road Tunnel Design and Construction at Madeira Island”, in OLALLA, Claudio et al. (orgs.), Volcanic Rock Mechanics. Rock Mechanics and Geo-Enginering in Volcanic Environments, Boca Raton, CRC Press, 2010, pp. 279-286; REIS, Ricardo, “A Modernização da Rede Viária da Ilha da Madeira: Enquadramento”, Engenharia e Vida, n.º 7, novembro de 2004, pp. 22-32; SIMÕES, Álvaro Vieira et al., Transportes na Madeira, Funchal, DRAC, 1983; digital: “Derrocada junto ao ‘Véu da Noiva’ interdita acesso”, Diário de Noticias, 17 out. 2008: http://www.dnoticias.pt/multimedia/video/156068-derrocada-junto-ao-veu-da-noiva-interdita-acesso (acedido a 05/05/12); audiovisual: PAULINO, Francisco F. e COSTA, Eduardo, História dos Transportes Terrestres na Madeira, Produção Edicarte, 2007. João Paulo Martins José António Mateus de Brito Vitória da Conceição Rodrigues Emanuel Roberto Malho Alves (atualizado a 11.07.2016)

energias renováveis

Quando os descobridores e os primeiros povoadores chegaram ao Arquipélago da Madeira, as necessidades energéticas da humanidade eram asseguradas pela utilização da força animal e humana e mediante o aproveitamento das fontes energéticas renováveis, como o vento, a água e a lenha, para além do Sol, a grande fonte energética da natureza e da vida na Terra. Consequentemente, desde o início do povoamento, o solo madeirense foi abundantemente regado pelo suor de escravos e de homens livres, auxiliados, aqui e acolá, por animais, nas fainas agrícolas e transportes, e pelos elementos naturais para satisfação das necessidades energéticas, nomeadamente lenha e carvão vegetal como combustível, água em azenhas e serras de água, e vento em moinhos, noras e embarcações. A importância da água para rega, mas também como fonte energética, remonta aos inícios do povoamento. É por isso que, entre os privilégios concedidos aos donatários, contava-se o de «(…) somente poderem eles construírem moinhos ou azenhas (…)». No sítio ainda hoje chamado de Moinhos e pela margem direita da Ribeira de Santa Luzia, no Funchal, havia um número considerável de azenhas, que perduraram até ao início do século XX. Chegaram a existir, por toda a ilha, mais de 600 azenhas em permanente laboração para uso do povo que a elas levava o trigo, o milho e a cevada da sua cultura para moagem. Em todas as freguesias havia azenhas que funcionavam dia e noite, conforme as horas que giravam as águas. No Porto Santo não havia azenhas por falta de água. A moenda era feita em moinhos de vento, por ser o processo mais conveniente a uma região onde venta todo o ano. Nos primeiros quatro séculos foram os recursos energéticos renováveis que proveram as necessidades energéticas da Madeira e do Porto Santo. Com a Revolução Industrial, alicerçada na máquina a vapor e no carvão deu-se a grande mutação energética dos últimos séculos no percurso da Humanidade, correspondendo à introdução do aproveitamento das energias fósseis, que se tornaram rapidamente dominantes na cena energética mundial. A máquina a vapor radicou-se no Arquipélago designadamente nos engenhos de cana-de-açúcar e, em 1893, no primeiro troço de caminho de ferro entre o Pombal e a Levada de Santa Luzia. A era da eletricidade iniciou-se na década de 1870, e teve o momento mais marcante a 19 de outubro de 1879, quando, depois de numerosas experiências, Thomas Alva Edison conseguiu que um protótipo de lâmpada elétrica, por si idealizada, permanecesse iluminado durante quarenta horas. Em 1897, surge a primeira iluminação elétrica no Funchal, através da entrada em funcionamento da Central Elétrica do Funchal, para produção de energia elétrica, por via térmica a carvão. Em 1953 foram inauguradas as centrais hidroelétricas da Serra de Água e da Calheta, as primeiras, decorrentes do Decreto-Lei n.º 33 158 de 1943 onde era prevista a construção de várias centrais hidroelétricas, seguindo as orientações estabelecidas no País para a valorização da energia hídrica na vertente da produção de energia elétrica, bem como as recomendações decorrentes do notável trabalho da “Missão Técnica” de 1939 sobre o abastecimento de água potável e para rega conjugando-o com a produção de energia elétrica. O referido Decreto-Lei criou, também, a Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira (CAAHM), que iniciou a sua actividade em 1944. A empresa The Madeira Ligthing Company Limited foi a concessionária da exploração da iluminação e da produção de energia elétrica desde 19 de maio de 1897 até 31 de dezembro de 1948. A municipalização destes serviços verificou-se a 1 de maio de 1949 e, em 1952, foi efectuada a incorporação dos Serviços Municipalizados de Electricidade do Funchal na Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira. O crescimento exponencial do consumo de energia elétrica determinou o concomitante aumento da produção de energia elétrica, a construção de novos empreendimentos hidroelétricos e de mais robustos empreendimentos termoelétricos alimentados a derivados de petróleo, e um recrudescimento da penetração de novas fontes de energias renováveis, a partir da década de 1990, com a energia eólica e uma nova conceção no aproveitamento da energia hídrica mediante a combinação turbinagem/bombagem possibilitando uma melhor gestão integrada da água e da produção de energia elétrica. Por outro lado, sublinhe-se, ainda, a produção de energia elétrica a partir da incineração de lixos e, o surgimento de produção de energia elétrica, através da energia solar em centrais fotovoltaicas e em pequenas unidades privadas para venda à rede elétrica. Têm sido realizados estudos e trabalhos de investigação visando o aproveitamento da biomassa florestal e de energias do mar, para produção de energia elétrica e, eventualmente, de combustíveis e carburantes de substituição dos derivados de petróleo. Energia hídrica e hidroelétrica: O recurso hídrico começou, como se disse, a ser explorado para fins energéticos após o povoamento da ilha da Madeira, através da utilização dos moinhos, azenhas e serras de água, que foram paulatinamente crescendo de forma significativa. No ano de 1863 havia por toda a ilha da Madeira 365 moinhos de água distribuídos por todas as freguesias. O maior número pertencia ao concelho do Funchal com 79, sendo os restantes distribuídos por Câmara de Lobos, 54, Santana, 52, Ponta do Sol, 49, Santa Cruz, 38, Calheta, 37, Porto do Moniz, 21, Machico, 18, e S. Vicente 18. O nome do sítio da Serra de Água no Concelho da Ribeira Brava resultou da existência de engenhos de serração de madeiras, movidos a água. No decurso da primeira metade do século XX, surgem iniciativas privadas de produção de energia elétrica, mediante o aproveitamento de energia hídrica, em pequenas centrais hidroelétricas particulares, designadamente na Ponta do Sol, na Camacha e no Porto Moniz. Visando um novo impulso na valorização do aproveitamento da riqueza hídrica da Madeira, o Governo toma a iniciativa de estudar o aproveitamento das águas da Madeira, incluindo, também, a vertente da energia hidroelétrica tendo, então, constituído a «Missão Técnica de 1939». A Missão Técnica realizou um importante trabalho que se traduziu no plano aprovado pelo decreto-Lei n.º 33158, de outubro de 1943, onde era prevista a construção de várias centrais hidroelétricas, aproveitando a água que corria em abundância desde os mais altos píncaros até ao mar. A ideia básica do plano consistia, basicamente, em: «(…) Conduzir para as terras secas do sul, as águas perdidas ou mal aproveitadas no norte da ilha, sem prejuízo do alargamento do regadio nessa zona; Aproveitar a possibilidade de conjugar perfeitamente a produção de energia com a imperiosa necessidade da irrigação das terras, fazendo turbinar as águas antes de as lançar no regadio». O aproveitamento da energia hídrica para produção de energia elétrica, em complemento às valias primordiais da água - abastecimento às populações e rega – constitui uma etapa marcante na epopeia da água na Ilha da Madeira, cujo início, associado à construção das primeiras levadas remonta, praticamente, à época do povoamento da Ilha. A conceção e construção da expansão do sistema de abastecimento de água existente, integrando a nova vertente da produção de energia elétrica foi notável constituindo um excelente exemplo de aproveitamento das águas para fins múltiplos, e de transvase de águas de zonas excedentárias para áreas com escassez de água. O trabalho desenvolvido na prospeção e levantamento, no terreno, das captações e canais de transporte de água, e na identificação da localização das câmaras de carga e implantação das centrais hidroelétricas, em consonância com as prioridades primeiras de abastecimento de água às populações e ao regadio, é um exemplo de competência técnica e de dedicação à causa pública. A obra realizada pelos operários que rasgaram as levadas, em meados do século passado, constitui um hino ao esforço humano, em condições difíceis e, muitas vezes, em risco extremo. Assim nasceram as diversas centrais hidroelétricas deste plano, as primeiras das quais, a da Serra de Água e a da Calheta, foram inauguradas, respetivamente, em maio e julho de 1953. A estratégia de valorização da água para fins múltiplos, teve, após alguns anos de fraco interesse pelos empreendimentos hidroelétricos, novos e significativos impulsos, designadamente a partir da última década do século XX, com a conceção de sistemas reversíveis de armazenagem de energia hídrica através da turbinagem e bombagem entre reservatórios a montante e a jusante de centrais hidroelétricas, construção do primeiro sistema na Central Hidroeléctrica dos Socorridos, e realização de estudos e projetos para replicar esta nova conceção na parte oeste da Madeira Estes sistemas possibilitam armazenar ou bombear água durante as horas de baixo consumo de eletricidade na Ilha da Madeira, constituindo uma reserva adicional de água e de energia para ser utilizada nos períodos de maiores consumos. A Central de Fins Múltiplos dos Socorridos foi a primeira concretização desta nova abordagem na gestão integrada da água. Com uma potência de 24 MW, implicou a ampliação da câmara de carga à cota 540 m de modo a garantir um volume turbinável de 40 000 m3 e a construção de uma câmara de restituição à cota 80 m, com capacidade acumulação mínima do mesmo volume. Em 2012, a capacidade instalada em energia hidroelétrica, na Madeira, era de 51,09 MW, distribuída por 10 centrais hídricas e mini-hídricas e a energia total produzida foi de 74,59 GWh. Energia eólica: Foi a energia do vento que impulsionou as caravelas de Zarco, que aportaram a Porto Santo e à Madeira no século XV. Esse vento que durante séculos foi importante para a economia regional, na produção de energia para a moagem de cereais através dos moinhos de vento, em particular no Porto Santo, na navegação à vela para o transporte de mercadorias e pessoas, bem como na bombagem mecânica de água. As características muito específicas do Porto Santo, no que concerne a sua dimensão física e populacional, conjugadas com a regularidade de regimes de ventos e orografia relativamente suave que não provoca turbulências significativas nos ventos em grande parte da ilha, determinaram que fosse instalado no Porto Santo o primeiro parque eólico para produção de eletricidade, em Portugal. O parque eólico entrou em funcionamento em 1984, sendo constituído por oito aerogeradores com uma potência unitária de 30 kW cada. No que concerne à ilha da Madeira, há referências históricas à existência de moinhos de vento, em muito pequeno número quando comparado com os existentes no Porto Santo, porque, como se referiu, a Madeira era dotada de bons recursos hídricos aproveitados para fazer mover azenhas para a moagem dos cereais. Nos anos quarenta do século XX, o vento passou também a ser aproveitado, através de aerodínamos para fornecimento de energia aos sistemas de comunicação, via rádio, dos postos de observação das baleias, atividade com uma expressão económica e humana de alguma importância no arquipélago até aos anos 60. Após o projeto de demonstração do Porto Santo para produção de energia elétrica a partir da energia eólica atrás sublinhado, o arquipélago da Madeira continuou, em termos nacionais, a posicionar-se na vanguarda do desenvolvimento da energia eólica. Designadamente em termos da avaliação dos recursos eólicos susceptíveis de aproveitamento e valorização. Neste contexto, surgem em 1992-93 os primeiros parques eólicos industriais, no Paúl da Serra e no Caniçal, com 3 aerogeradores de 130 kW e 30 de 150 kW. Apesar dos constrangimentos técnicos a que as energias renováveis intermitentes para a produção de energia elétrica estão sujeitas, relativamente à sua inserção em redes insulares isoladas e de pequena dimensão, tem-se verificado paulatinamente o seu crescimento. Em finais de 2012 existiam nove parques eólicos na Madeira com uma potência total instalada de 44,45 MW que produziram 82,61 GWh. No Porto Santo, onde as limitações decorrentes do baixo consumo total de energia elétrica são determinantes para a limitação da potência instalada, a potência eólica instalada em 2012 era de 1,11 MW, com uma produção de 0,83 GWh em 2012. Energia solar: Sendo o Sol a grande fonte de energia e da vida na Terra, a energia solar foi naturalmente aproveitada, desde o início do povoamento, pelos habitantes do Arquipélago da Madeira através do diálogo que a sabedoria popular estabelece instintivamente com a sua envolvente climática, designadamente para obter maior conforto térmico nas suas habitações. Energia solar passiva: Designa-se por energia solar passiva o aproveitamento da energia solar para aquecimento de edifícios através de adequada conceção e da utilização de técnicas de construção e de materiais apropriados ao clima para obtenção de maior conforto nas habitações e edifícios. Ao longo dos tempos, no Porto Santo e na Madeira, houve exemplos de construções tradicionais que evidenciam esse diálogo. As antigas casas de “salão” do Porto Santo e algumas casas típicas da Madeira são particularmente ilustrativas. As casas do Porto Santo tinham as coberturas revestidas de “salão”, argila expansiva do tipo bentonite, o que tornava as casas mais frescas no verão e mais quentes no inverno porque este tipo de argila diminui de volume na época quente e seca, e expande-se na época fria e húmida, o que possibilitava o arejamento natural no verão, através das frestas abertas na cobertura, e o isolamento no inverno. Este aproveitamento passivo da energia solar determinava casas que, do ponto de vista térmico, eram mais confortáveis que muitas casas construídas posteriormente. Nos últimos decénios foram desenvolvidos alguns trabalhos de investigação e de demonstração de novas conceções arquitectónicas e novos materiais de construção, tomando em consideração o Sol e a sua energia térmica e luminosa que foram marcos importantes para a divulgação e demonstração das tecnologias solares passivas na Madeira e no Porto Santo. Mas só muito recentemente com a obrigação de aplicar a regulamentação do comportamento térmico dos edifícios se tem testemunhado uma efetiva mudança de comportamentos e de mentalidades dos promotores, projetistas e clientes do mercado da construção com o fito da melhoria do conforto térmico dos edifícios conjugada com mais eficiência energética. Energia solar térmica: O aproveitamento ativo da energia solar, designadamente para o setor residencial e para os serviços tem-se desenvolvido com a crescente instalação de sistemas solares térmicos, constituídos por coletores planos, coletores parabólicos concentradores e tubos de vácuo, para aquecimento de águas sanitárias e piscinas, reforçado com obrigações regulamentares sobre as características do comportamento térmico dos edifícios que obriga, sempre que possível, a instalação de coletores solares. Energia solar fotovoltaica: Nos sistemas fotovoltaicos a radiação solar é convertida em energia elétrica, por intermédio de materiais semicondutores, que são configurados em elementos denominados células fotovoltaicas. Uma vez que cada célula produz uma corrente contínua de intensidade relativamente fraca, para aumentá-la é feita uma associação de células. Após encapsulamento, cada conjunto designa-se por módulo fotovoltaico. O agrupamento de módulos, colocados numa estrutura de suporte, forma um painel fotovoltaico. A energia produzida pelo painel fotovoltaico, é encaminhada para um inversor que transforma a corrente contínua produzida em corrente alternada, para posterior injeção na rede elétrica pública. As unidades de Microprodução fotovoltaica são pequenas instalações fotovoltaicas de baixa potência, até 3,86 kW que permitem a particulares produzir energia elétrica a partir do local de instalação elétrica de utilização. As unidades de miniprodução, com a potência máxima de 250 kW, destinam-se a empresas. Deve sublinhar-se que, em Portugal, o primeiro farol de sinalização alimentado a energia solar fotovoltaica foi o farol da Selvagem Grande, em 1984. Posteriormente foram instaladas, na Madeira, unidades fotovoltaicas de pequena dimensão para abastecimento de eletricidade nalgumas casas isoladas, situadas em locais de difícil acesso e distantes das redes de energia elétrica e, com a abertura à microprodução de eletricidade em casas particulares para venda à rede elétrica, atingiu mais de sete centenas de instalações no setor residencial, em particular em vivendas. A produção de eletricidade por via fotovoltaica ganhou expressão assinalável com a instalação de dois parques fotovoltaicos na Madeira, no Caniçal e no Paúl da Serra, e um no Porto Santo. Na Madeira a potência conjunta instalada é de 16,04 MW e a produção de energia elétrica fotovoltaica atingiu 24,51 GWH, em 2012. As unidades de micro e miniprodução atingiam uma potência total instalada de 2,549 MW que produziram 3,17 GWh em 2012. No Porto Santo o parque fotovoltaico, localizado no Pico Bárbara Gomes, com potência instalada de 2,28 MW que produziu 2,84 GWh em 2012. Nesse ano o número de unidades de mini e microprodução no Poro Santo era 18 com uma potência instalada de 0,336 MW e uma produção de 0,293 GWh. Biomassa: Desde os inícios do povoamento até ao século XX a biomassa florestal, designadamente como lenha, assumiu papel preponderante no balanço energético da Madeira, sendo o recurso energético dominante no que concerne a utilização de energia térmica no setor doméstico e nalgumas indústrias, em particular na panificação. De facto, a biomassa florestal foi o principal recurso energético aproveitado pelos povoadores da ilha da Madeira. No início da colonização enormes áreas de floresta foram derrubadas com o objectivo de produzir lenha para os engenhos de açúcar e para a extração de madeiras. Segundo alguns estudiosos, terão sido os cerca de 150 engenhos de açúcar existentes no final do século XV os principais responsáveis pela destruição da floresta indígena. Com o desenvolvimento da utilização das fontes fósseis, primeiro do carvão e depois do petróleo e seus derivados, e com a melhoria das condições de vida e do acesso a formas mais cómodas de utilização da energia, o consumo da lenha tem diminuído. Mas, apesar desta trajetória, representa um recurso não despiciendo, no balanço energético madeirense, com perspetivas significativas de valorização no futuro. Resíduos: Embora não seja em rigor uma energia renovável podemos associar a incineração dos lixos a uma valorização energética de um subproduto gerado na região, que representa, também, um pouco mais de 3% da produção de energia elétrica na Madeira. A Estação de Tratamento de Resíduos Sólidos Urbanos (ETRSU), localizada na Meia Serra, é a principal infraestrutura do sistema de transferência, triagem, tratamento e valorização de resíduos urbanos da Região Autónoma da Madeira. A valorização energética efetuada na instalação de incineração de resíduos sólidos urbanos da ETRSU, é um processo controlado e automatizado que, para além de tratar os resíduos indiferenciados termicamente, possibilita através da produção de vapor a produção de energia elétrica. A potência instalada é de 8 MW e a produção de energia elétrica foi, em 2012, de 27,72 GWh. A participação das energias renováveis na produção total de energia elétrica na Madeira foi de 24,66% em 2012. No Porto Santo em 2012 a participação das renováveis foi de 13,44%. Apesar da importância relativa de fontes energéticas alternativas aos combustíveis fósseis, com destaque para as energias renováveis, o certo é que a base amplamente maioritária do sistema energético mundial e, também, do nosso pequeno sistema energético regional assenta nos combustíveis fósseis, designadamente no petróleo. De facto, a Revolução Industrial alicerçou-se no carvão, que predominou, durante um século, como fonte energética nas sociedades industrializadas, sobretudo nas indústrias, transportes ferroviários e marítimos, e na produção de energia elétrica por via térmica. O carvão foi, paulatinamente, dando a primazia ao petróleo, e o gás natural tem, também, vindo a assumir um papel de crescente importância na cena energética mundial. O arquétipo de exploração destes três vetores energéticos, traves-mestras do abastecimento energético mundial, apresenta riscos não desprezáveis para a sobrevivência do modelo de sociedade construída e sedimentada. Em primeiro lugar pelos riscos de garantia de abastecimento futuro devido ao progressivo esgotamento dos recursos geológicos de carvão, petróleo e gás natural que podem atingir os seus picos de produção dentro de alguns decénios. Em segundo lugar, assume crescente importância a questão das eventuais alterações climáticas por via do aquecimento global provocado pela queima de combustíveis fósseis, porque todos eles integram na sua composição o carbono, que ao ser queimado produz o dióxido de carbono, CO2, que é a principal causa do chamado «efeito de estufa». Para salvaguardar a garantia de aprovisionamento energético à escala mundial, para uma população em crescimento acentuado e cada vez mais tributária da energia, e cumprir compromissos internacionais assumidos em relação às preocupações ambientais, uma das frentes importantes em termos de alternativas ao modelo atual é o reforço das energias renováveis, designadamente solar, eólica, hídrica, geotérmica e energias dos oceanos. Na maior parte das ilhas isoladas as grandes alternativas ao petróleo, como o carvão e o nuclear, não são equacionáveis, com a tecnologia atual. Acresce que estas regiões, em geral, dispõem de importantes fontes de energias renováveis. As fontes de energia renováveis têm, em geral, uma boa capacidade de modulação para as escalas mais pequenas, comparadas com os rígidos sistemas convencionais de produção de energia elétrica, em que as economias de escala são dominantes. Neste sentido, as tecnologias das energias renováveis adaptam-se melhor às escalas e necessidades insulares. Deve sublinhar-se que as energias renováveis se podem dividir em dois subconjuntos diferentes, de ponto de vista da garantia do seu fornecimento. Por um lado, existem recursos renováveis que garantem esse abastecimento de uma forma constante, como é o caso, por exemplo, da geotermia ou de instalações de queima de lenha ou de outras formas de biomassa. Por outro lado, temos o caso de recursos renováveis cuja disponibilidade flutua em função das condições climatéricas, de que constituem exemplos, entre outros, a energia eólica, a hídrica e a solar, que, por isso, se designam intermitentes. O principal constrangimento para o aproveitamento das potencialidades das energias renováveis intermitentes para a produção de eletricidade, em sistemas energéticos insulares isolados e de pequena dimensão, é o baixo consumo de energia elétrica nas horas de vazio, durante grande parte da noite, particularmente durante a madrugada. O obstáculo referido é devido ao facto de a energia elétrica produzida ter de ser consumida na altura da sua produção, pelo que se a produção for superior ao consumo, ou se consegue armazenar a energia através de vetores intermédios, ou se perde o excesso de energia elétrica produzida em relação ao consumo. Antevê-se que nas formas de energias renováveis, já em exploração, as suas «performances», que têm aumentado bastante, continuem a crescer, por via da utilização de novos materiais em desenvolvimento, e de novas conceções na arquitetura dos sistemas energéticos, em particular dos sistemas eletroprodutores. Também, se antevê que novas fontes energéticas renováveis são passíveis de ser exploradas, nos oceanos. O aproveitamento da energia das ondas e das marés, do gradiente térmico entre profundidades oceânicas, e a valorização energética da biomassa marítima constituem áreas com interesse especial para regiões insulares como a da Madeira. [caption id="attachment_1273" align="alignright" width="300"] Figura 2 – Este bilhete-postal da levada do Caldeirão Verde evidencia o penoso trabalho que, em geral, a orografia da Madeira impunha na construção das levadas. (Colecção do autor)[/caption] Figura 1 – Expressiva imagem do traçado de duas importantes levadas paralelas às margens da ribeira dos Socorridos que, como muitas outras, marcam a paisagem madeirense. (Colecção do autor)   [caption id="attachment_1249" align="alignright" width="300"] Figura 4 – Pormenor do canal de transporte de água da levada do Ribeiro Frio e da plataforma, também muito utilizada para passeios a pé por madeirenses e forasteiros. As caminhadas ao longo dos muitos quilómetros das levadas constituem um dos principais atrativos turísticos da Madeira. (Colecção do autor)[/caption] [caption id="attachment_1252" align="alignleft" width="300"] Figura 3 – Azenha tradicional da Madeira, com a caleira de desvio da água por forma a ganhar altura de queda e consequente potência hidráulica necessária para acionar o rodízio de moagem dos cereais. (Colecção do autor)[/caption]                     [caption id="attachment_1255" align="alignright" width="300"] Figura 6 – Moinhos de vento tradicionais no Porto Santo até os anos 60 do séc. XX. (Colecção do autor)[/caption]   [caption id="attachment_1258" align="alignnone" width="300"] Figura 5 – Com exceção de um pequeno parque eólico no Caniçal, toda a potência eólica na ilha da Madeira está instalada no Paul da Serra. Este planalto de cerca de 24 km2; apesar da menor densidade do ar devido à altitude, conjuga condições orográficas e regimes de ventos com menor turbulência favoráveis à produção de eletricidade por via eólica. (Foto: Filipe Oliveira[/caption]     [caption id="attachment_1261" align="alignright" width="300"] Figura 8 – Outra instalação de aerogeradores no Paúl da Serra. (Foto: Filipe Oliveira)[/caption] [caption id="attachment_1264" align="alignnone" width="300"] Figura 7 – Edifício da Central Hidroelétrica da Calheta, inaugurada em julho de 1953. (Foto: Filipe Oliveira)[/caption]   Bibliog.: SILVA, Fernando Augusto e MENEZES, Carlos Azevedo, Elucidário Madeirense, Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, 1945; Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira, O Aproveitamento da Água na Ilha da Madeira, 1969; Centro de Estudos da Economia da Energia, dos Transportes e do Ambiente (CEEETA), Plano Energético da Região Autónoma da Madeira. 1989; Museu de Eletricidade “Casa da Luz”, Um Século de Electricidade, 1997; MENDES, José Manuel Melim Mendes, Caminhada e o Futuro Energético do Homem. Um Olhar Insular, Islenha, n.º33, 2003, pp. 178-197,; Direção Regional do Comércio, Indústria e Energia, Direção de Serviços de Energia, Relatório 2011 e 2012, 2013. José Manuel Melim Mendes (atualizado a 12.07.2016)

comissão administrativa dos aproveitamentos hidráulicos da madeira

A Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira (CAAHM) aparece, em finais da déc. de 1930, como proposta do regime para resolver diversos problemas relacionados com a agricultura madeirense, associando a isso a solução do problema de abastecimento da eletricidade. Pelo DL n.º 29718, de 26 de junho de 1939, foi criada uma missão técnica, com o objetivo de “proceder ao reconhecimento das possibilidades técnicas e económicas da ilha nos aspectos hidro-eléctrico e hidroagrícola em conjunto”. A missão, chefiada pelo engenheiro Manuel Camossa Pinto, apresentou, a 28 de junho do ano seguinte, o seu relatório. A 31 de outubro de 1943, publicou-se o plano em questão e, para o executar, foi criada a CAAHM. Pelo DL n.º 33158, de 21 de outubro de 1943, surgiu a nova comissão para promover e orientar a execução do plano geral dos aproveitamentos hidroagrícolas e hidroelétricos da ilha da Madeira. No preâmbulo do mesmo, apresenta-se, para esta comissão, um objetivo e projeto ambiciosos: “Com a execução das obras previstas consegue-se a irrigação de uma área de terreno que se eleva a 3111 hectares, isto é, cerca de 30 por cento da atualmente regada, que demonstra bem o grande valor que representam para a economia da Madeira os novos aproveitamentos. Também se consignam neste diploma algumas disposições que permitem a assistência técnica e a fiscalização do Estado nas obras de grande reparação e melhoramento dos aproveitamentos existentes, com o objetivo de evitar alguns inconvenientes que se têm verificado na prática, sem contudo se abandonarem as normas tradicionais da ilha. Quanto aos aproveitamentos para a produção de energia, valiosos resultados se esperam da sua execução, não só pela sua influência que terão na importação de combustíveis, mas também pelo desenvolvimento que hão-de imprimir às indústrias e a outras atividades económicas da Madeira. Para se ajuizar da importância que os aproveitamentos hidroelétricos previstos terão para a economia da Madeira basta observar que a potência permanente, de estiagem, de tais aproveitamentos atinge cerca de 5.830 KW, potência que excede em muito a atualmente instalada em toda a ilha”. De acordo com o art. 19.º do mesmo diploma, esta comissão tinha reservado o papel, “por si ou em colaboração com outros organismos competentes do Estado, as medidas necessárias para conservação e melhoramento do regime hidráulico da Ilha da Madeira, como a exploração de águas subterrâneas, regulamentação do uso das águas das levadas de heréus existentes e seu melhoramento, regulamentação da exploração dos arvoredos pertencentes às autarquias locais e a particulares e a extinção de espécies daninhas e tudo o mais que for conveniente para melhor aproveitamento dos recursos hidráulicos da Ilha”. Ainda no art. 16.º lê-se: “A C.A.A.H.M. promoverá a aquisição ou expropriação dos terrenos e águas particulares e quaisquer direitos preexistentes ao aproveitamento a que houver lugar e bem assim ajustará com os corpos administrativos a aquisição, por cedência gratuita, permuta ou compra, dos terrenos que lhes pertençam e que se tornem necessários à execução das obras aprovadas. Neste último caso as respetivas transações de propriedade efetivam-se nos termos dos decretos n.os 19.666 de 30 de Abril de 1931, e 24.781, de 15 de Dezembro de 1934, pertencendo à CAAHM. as funções e poderes neles atribuídos aos corpos administrativos”. Depois, pelo DL n.º 38722, de 14 de abril de 1952, a exploração e conservação das obras do sistema de regadio passou para a competência da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal (JGDAF,) ficando a CAAHM, desde 1 de maio de 1953, com o encargo da conservação das levadas situadas a montante das centrais hidroelétricas, para além dos serviços públicos de produção, transporte e distribuição de energia elétrica. Isto tendo em conta que, pelo DL n.º 37384, de 25 de abril de 1949, foi antecipado o termo da concessão que havia sido feita à The Madeira Electric Lighting Company, Lda., em 1909. A atividade da comissão iniciou-se em 1944 e, a partir de 1953, esta assumiu a responsabilidade pelo serviço público de produção, transporte e distribuição de energia elétrica na ilha da Madeira. A 7 de julho de 1944, a CAAHM tomou posse, em Lisboa; a 21 de setembro, estava já instalada no Funchal, dando-se início aos trabalhos projetados para a primeira fase que deveriam estar concluídos nos finais de setembro de 1954. João Abel de Freitas, presidente deste organismo e da JGDAF, é uma referência a ter em conta na ação da CAAHM. Em 1939, como presidente da JGDAF, conseguiu sensibilizar o governo para a necessidade de enviar à ilha uma equipa de técnicos especializados para estudar este problema, o que aconteceu em 1942 e fez com que fossem aprovadas as bases do plano hidroelétrico para a Madeira, iniciando-se, assim, a construção de barragens e centrais hidroelétricas em várias localidades da ilha. A CAAHM é considerada uma referência nas obras do Estado Novo para os deputados madeirenses à Assembleia Nacional, como se comprova pelo art. 1.º do DL n.º 33158, de 21 de outubro de 1943: “É criada a Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira (CAAHM), autónoma e de carácter eventual, para promover e orientar a execução do plano geral de novos aproveitamentos hidroagrícolas e hidro-eléctricos na Ilha da Madeira e superintender na administração e direcção das obras”. A CAAHM pretendia gastar, nesta primeira fase, 60 mil contos (sendo 40.330 para os aproveitamentos hidráulicos e 19.844 para a rede elétrica), dependentes de financiamento, que, de acordo com a letra da lei, deveria acontecer em partes iguais para o Estado português e para a JGDAF. No articulado do DL citado, define-se que “1.º o encargo anual com a execução das obras, incluindo todas as despesas gerais de administração, será de 3.000 contos para o Estado e de igual quantia para a Junta Geral. 2.º Para fazer face aos encargos que lhe incumbem, a Junta Geral poderá ser autorizada a contrair um empréstimo em duas séries, cada uma até 15.000 contos, a uma taxa de juro não superior a 4 por cento e amortizáveis em vinte anos e em conta corrente durante o quinquénio da execução das obras de cada fase”. A JGDAF, dada a inexistência de fundos, foi autorizada a contrair um empréstimo, a amortizar em vinte anos, com pagamento de taxa de juro até 4%. Para o período de dez anos, previa-se uma despesa de 60 mil contos na construção de levadas, para alargar a área de irrigação de Machico, Caniçal, Ribeira Brava, Câmara de Lobos, Calheta e Ponta do Pargo, na construção de centrais hidroelétricas da Serra de Água e Calheta, bem como na montagem das linhas de transporte de energia entre estas centrais e as subestações de transformação no Funchal. Todavia, as verbas investidas até 1952 no plano inicial de obras chegaram ao valor de 95.840 contos, valor resultante de obras de levadas (Machico ao Caniçal, Ribeira Brava e Câmara de Lobos; Calheta à Ponta do Pargo; Funchal a Santana; Porto da Cruz ao Alto Machico e Santa Cruz, Ponta do Sol, Cardais de São Vicente, Porto do Moniz) e centrais (Serra de Água e Calheta), havendo necessidade de novo financiamento, autorizado. Pelo DL n.º 37868, de 28 de junho de 1950, “Para fazer face ao excesso de 30.000.000$00 em relação ao financiamento de 60.000.000$00, facultado pelo diploma referido no anterior, é concedido à Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira, através do Fundo de Fomento Nacional, um empréstimo de 30.000.000$00, escalonado como segue: 1950………10.000.000$00 // 1951………12.000.000$00 //1952……… 8.000.000$00. // Este empréstimo será amortizado em vinte e cinco anuidades, à taxa de juro de 3,5 por cento, com início em 1 de Janeiro de 1954”. A comparticipação, reembolsável do Fundo de Fomento Nacional, foi autorizada pelo dec. n.º 37.868, de 28 de junho de 1950. Os resultados positivos da ação da CAAHM estão expressos já no relatório de 1944, onde se realça o seu impacto na economia local. “Quanto aos aproveitamentos para a produção de energia, valiosos resultados se esperam da sua execução, não só pela sua influência que terão na importação de combustíveis, mas também pelo desenvolvimento que hão-de imprimir às indústrias e a outras actividades económicas da Madeira. Para se ajuizar da importância que os aproveitamentos hidro-eléctricos previstos terão para a economia da Madeira basta observar que a potência permanente, de estiagem, de tais aproveitamentos atinge cerca de 5.830 KW, potência que excede em muito a actualmente instalada em toda a Ilha” (DL n.o 33158 e n.º 33159, de 21 de outubro de 1943). Uma vez alargadas as atribuições da CAAHM à eletrificação da ilha, era fácil a complementaridade, porque as levadas serviam para irrigar os solos e também conduziam as águas para as represas que serviam as centrais hidroelétricas, na medida em que “dados os limitados recursos dos aglomerados a electrificar, pelo cometimento à Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira dos serviços públicos de produção, transporte e distribuição de energia” (DL n.º 12/74, de 17 de janeiro). A segunda fase do plano de aproveitamentos hidráulicos, aprovada pelo já citado DL n.º 33158, incluía as obras que haviam ficado por concluir em 31 de dezembro de 1942, a remodelação geral e a ampliação da rede de distribuição de eletricidade da cidade do Funchal. Foi, entretanto, promulgado o DL n.º 41027, de 13 de março de 1957, que concedia à CAAHM as condições financeiras para dar continuidade às obras de eletrificação rural com comparticipações do Estado, de acordo com o DL n.º 40212, de 30 de junho de 1955. Atente-se que a promoção do sistema de regadio e de eletrificação foi um encargo da CAAHM, que, no período de 1944 a 1968, custou 340.152 contos, e que a comparticipação do Estado foi de apenas 29%, sendo 45% de autofinanciamento. Estas verbas representavam muito pouco no global dos investimentos nacionais no setor. Assim, veja-se que, para o orçamento do Estado de 1950, foi estabelecida uma verba de 15 mil contos (0,3%) para a Madeira num global de 460.700 contos. Recorde-se que, desde esta altura, a missão foi enquadrada nos planos de fomento e alargou-se a projetos de eletrificação rural e de remodelação da rede elétrica da cidade. A partir de 1952, a CAAHM assumiu a responsabilidade de exploração, produção, transporte e distribuição de energia elétrica, ficando as obras realizadas e em curso a cargo da JGDAF. Registe-se que, em 1953, com as inaugurações das centrais hidroelétricas Salazar e da Calheta e do aproveitamento hidroagrícola da Calheta e da Ponta Pargo, se concluíram os trabalhos. O financiamento para esta importante obra aconteceu ao abrigo dos planos de fomento, verbas do orçamento do Estado. No plano para 1953-1958, o valor da execução e administração das obras previstas está computado em 60 mil contos. Os planos de fomento foram o instrumento fundamental da política de investimentos do Estado desde a déc. de 50. Para o período de 1959 a 1964, o Estado apontava para um investimento de 1.323.420 contos, cabendo à Madeira 66.210 contos (5%) e aos Açores 257.210 contos (19,4%). O II Plano de Fomento, elaborado nos anos 60, veio dar origem às centrais hidroelétricas da Ribeira da Janela (1965) e da Fajã da Nogueira (1972). A realização destas obras não dependeu de qualquer financiamento ou empréstimo, sendo suportadas através das receitas da CAAHM. No plano intercalar, referente aos anos económicos de 1966 e 1967, a CAAHM recebeu um reforço de verba do Ministério das Obras Públicas. As obras da segunda fase do III Plano de Fomento, que incluíam uma central no Funchal e outra em São Vicente, não tiveram concretização. Nas obras realizadas desde 1968, correspondendo ao III Plano de Fomento, as capacidades de autofinanciamento cobriram a totalidade do investimento realizado, ainda registando um superavit de 12%. Com a publicação do DL n.º 12/74, de 17 de janeiro, a CAAHM passou a empresa pública, com a designação de Empresa de Eletricidade da Madeira, sob a tutela do Ministério das Obras Públicas. O estatuto da empresa foi estabelecido pelo DL n.º 30/79, publicado a 24 de fevereiro de 1979. Nesta data, com o DL n.º 31/79, o GRM assumiu a sua tutela, ficando, pelo DL n.º 91/79, de 19 de abril, com poderes para nomear o conselho de gerência da empresa. Com esta nova gestão, verificou-se a continuidade dos projetos de aumento de capacidade de energia elétrica com a construção da Central Térmica da Vitória (1982) e a conclusão da eletrificação dos núcleos populacionais de mais de 20 habitantes (1984). Bibliog.: CAAHM, Levada e Central da Calheta, Funchal, JGDA, 1953; id., Condições de Venda de Energia Eléctrica e Condições Gerais da Apólice do Contrato, Funchal, CAAHM, 1965; id., Os Aproveitamentos Hidráulicos e a Electrificação da Madeira, Funchal, Oficinas do Jornal da Madeira, 1962; COMISSÃO ADMINISTRATIVA DOS APROVEITAMENTOS HIDRO-ELÉCTRICOS DA MADEIRA, Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira: Breves Elementos, Funchal, Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidro-Eléctricos da Madeira, 1955; EMPRESA DA ELECTRICIDADE DA MADEIRA, Museu de Electricidade “Casa da Luz”: Um Século de Electricidade, Funchal, Empresa de Electricidade da Madeira, 1997; MINISTÉRIO DAS OBRAS PÚBLICAS, Breve Elucidário sobre o Plano dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira, Funchal, Ministério das Obras Públicas, 1948; MINISTÉRIO DAS OBRAS PÚBLICAS e CAAHM, O Aproveitamento da Água na Ilha da Madeira, Lisboa, CAAHM, 1969; NUNES, Eduardo (coord.), Levada do Norte. Ribeira Brava - Câmara de Lobos, Funchal, JGDAF, 1952; PEREIRA, Eduardo, Ilhas de Zargo, vol. 2, 4.ª ed., Funchal, CMF, 1989; SOUSA, José Luís de, “A Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira: Investimentos e Formas de Financiamento”, Anuário, n.º 3, pp. 482-564; VIEIRA, Alberto (coord.), História da Madeira, SRE, 2004. Alberto Vieira (atualizado a 08.07.2016)