túneis rodoviários (da ilha da madeira)
A orografia muito acidentada da ilha da Madeira, caracterizada por vales profundos e vertentes escarpadas, constituiu desde sempre uma barreira à mobilidade, dificultando a circulação de pessoas e bens entre os diversos pontos da Ilha. Em consequência, o desenvolvimento de uma rede viária adequada à circulação de veículos automóveis, a partir do final da déc. de 40 do séc. XX, representou um enorme desafio, quer ao nível de conceção e de projeto, quer ao nível da construção, pois com um relevo tão irregular e acidentado, impunha-se o recurso a inúmeras obras de engenharia civil, como pontes, pontões e muros de suporte e, inevitavelmente, túneis (conhecidos na Madeira por “furados”). Efetivamente, nessa época começaram a ser construídos os primeiros túneis rodoviários ao longo de toda a ilha, por forma a satisfazer as exigências da circulação rodoviária nas ligações entre povoações.
A necessidade de um maior desenvolvimento económico-social e cultural pretendido para a ram conduziu a um grande desenvolvimento da rede viária a partir do final do séc. XX, no sentido de permitir acessibilidades mais rápidas e mais cómodas, com maiores condicionamentos de traçado (curvas de raios cada vez maiores e inclinações longitudinais cada vez mais reduzidas). Face à morfologia muito acidentada da Ilha, tal apenas foi possível de implementar com recurso à construção de túneis em praticamente todas as vias, por vezes com uma expressão muito significativa, não só no desenvolvimento, como na secção (área transversal).
Assim, a construção de túneis rodoviários pode ser dividida em duas fases: a dos que foram concluídos até cerca de 1980, com particular incidência nas décs. de 50 e 60; e a dos que foram concluídos a partir do final do séc. XX, mais precisamente a partir da déc. de 80.
Os túneis mais antigos têm um ou dois sentidos de tráfego e estão distribuídos por toda a Ilha, conforme ilustrado na Fig. 1. São em número de 28 e perfazem uma extensão total de aproximadamente 4,8 km.
[caption id="attachment_7990" align="aligncenter" width="1024"]
Entre estes túneis destacam-se alguns com particular relevância, por integrarem vias com enorme interesse turístico, por um lado, pois constituem miradouros privilegiados, e, por outro, pelo contexto histórico em que foram construídos, constituindo, por isso, uma memória viva do esforço do desenvolvimento da Região no estabelecimento das primeiras ligações entre algumas localidades da Ilha.
Antes da construção da Estrada Regional (ER) 101 (déc. de 40), era pela Estrada Real 23, que não era mais que uma estreita vereda, que se fazia a circulação de pessoas e bens entre povoações da costa norte. Esta situação manteve-se até meados dos anos 50, altura em que houve a necessidade de construir uma via de comunicação com 5 m de largura, que permitisse a circulação de meios de transporte movidos a motor. Esta ligação entre o Arco de São Jorge e porto moniz, passando por São Vicente, ficou concluída em 1953, data da inauguração do túnel Eng.º Duarte Pacheco, que liga Boaventura ao Arco de São Jorge.
Antes de 1955, a povoação do Caniçal encontrava-se isolada do resto da ilha por um relevo muito acidentado, o qual impossibilitava a ligação terrestre até Machico, a povoação mais próxima do lado sul da Ilha. Desta forma, a circulação entre estas povoações fazia-se preferencialmente por via marítima, mas também pedonalmente por uma estreita vereda construída na zona superior da montanha, constituída por um túnel com 3,6 m2 de secção. Em 1955, este túnel foi alargado para uma secção retangular com cerca de 27 m2 (6 m x 4,5 m), passando a possibilitar a circulação rodoviária. A inauguração deste túnel rodoviário, com 700 m de desenvolvimento, foi um dos acontecimentos mais importantes da época (Fig. 2).
[caption id="attachment_1392" align="alignleft" width="315"]

O túnel do Véu da Noiva, o mais emblemático dos túneis mais antigos da ilha da Madeira, pelo seu enquadramento paisagístico e elevado interesse turístico, colapsou em 2008 (Fig. 3). Localizava-se sob um vale suspenso, por onde a água da ribeira João Delgado caía diretamente para o mar formando uma cascata. O colapso foi devido ao recuo da arriba subjacente pela ação erosiva do mar, envolvendo a parte da ER101 onde se situava o túnel e formando uma fajã na sua base.
[caption id="attachment_1398" align="alignleft" width="330"]

Os túneis mais antigos da ilha da Madeira apresentavam-se, a meados da segunda década do séc. XXI, em grande parte, com um estado de conservação razoável a bom, e em condições de funcionamento aceitáveis, requerendo na sua maioria apenas algumas beneficiações, tendo em vista a continuação da sua utilização.
A partir do final da déc. de 80 verificou-se um acentuado crescimento na construção de novos túneis, nomeadamente no que concerne aos acessos entre o Funchal e as restantes cidades da ilha da Madeira. O plano de acessibilidades elaborado assentou na construção de uma via rápida e de sete vias expresso (Fig. 4). A via rápida (VR1), a obra rodoviária mais importante, localizada no sul da Ilha, estabelece a ligação Ribeira Brava‑Funchal-Caniçal, e caracteriza-se por duas faixas de rodagem, uma em cada sentido, assumindo particular importância por permitir a ligação entre a cidade do Funchal, o aeroporto de Santa Cruz e o porto do Caniçal. As vias expresso estabelecem as ligações entre a cidade do Funchal e as demais cidades localizadas a norte e oeste da Ilha, e caracterizam-se por uma faixa de rodagem, com uma via de tráfego em cada sentido, acrescida de uma via de lentos num dos sentidos em situações pontuais.
[caption id="attachment_8000" align="aligncenter" width="1024"]
Numa primeira fase, até 2000, foram construídos 20 túneis a oeste do Funchal, em direção à Ribeira Brava, e oito túneis a este do Funchal, na direção do aeroporto, todos integrando a via rápida. Destes, destacam-se os túneis duplos da Ribeira Brava e da Quinta Grande, pelo seu desenvolvimento, e o túnel João Gomes e o túnel de Pestana Júnior, por se inserirem no principal nó de ligação entre a via rápida e a cidade do Funchal, os quais representam um marco nas obras de engenharia executadas até àquela data na ilha da Madeira. Note-se que a execução destas obras permitiu a redução de 40 para 15 minutos do tempo de viagem entre o Funchal e o aeroporto.
Em 2000, verificou-se um aumento significativo na construção de túneis, num total de 35, destacando-se o túnel da Encumeada e o túnel do Norte, com comprimentos de 3100 m e 2100 m, respetivamente, e o túnel de Santa Cruz, o de maior secção na Ilha, com quatro vias de tráfego. A título de exemplo refira-se que, antes da execução da via rápida e das vias expresso, para se fazer a deslocação entre Funchal e porto moniz, povoação localizada a noroeste da Ilha, seriam necessárias três horas. Após a construção destas vias, apenas são necessários cerca de 45 minutos.
Em 2004, foi concluída a construção de mais 44 túneis, dos quais se destacam o maior túnel rodoviário de Portugal (Faial-Cortado), com 3170 m de comprimento, e o maior túnel duplo de Portugal (Caniçal), com 2140 m de comprimento.
Em 2013, estima-se que a rede viária tenha um comprimento de cerca de 600 km, dos quais aproximadamente 100 km dizem respeito a cerca de 180 túneis.
Evolução das soluções construtivas
A ilha da Madeira, de origem vulcânica, foi formada em várias etapas, com diferentes intensidades e características litológicas que evoluíram ao longo do tempo, devido às variações do nível do mar e aos agentes erosivos, dando forma ao relevo atual com vales profundos e vertentes escarpadas.
Este tipo de relevo resultou, também, da alternância de diferentes litologias com distintas capacidades resistentes: as rochas basálticas, muito resistentes, por um lado, e os materiais piroclásticos (tufos, brechas, cinzas), mais desagregáveis, por outro.
A maior dificuldade no planeamento e na execução de uma obra subterrânea em maciços vulcânicos é a elevada probabilidade de encontrar diversos tipos de materiais no decurso da sua escavação, com variações significativas nas suas características resistentes. As regiões vulcânicas, pela sua grande heterogeneidade, pela sua complexidade estrutural e litológica, e pelo seu relevo vigoroso, condicionam fortemente a execução de túneis, fazendo com que seja necessário, em cada caso, adaptar os métodos de escavação e de suporte às condições encontradas na frente de escavação.
Os túneis mais antigos foram escavados, na generalidade, em maciços com boas características resistentes, como basaltos e brechas compactas. As secções destes túneis foram condicionadas pelo vão e pelo maciço envolvente, tendo evoluído de uma secção retangular ou quadrada com cerca de 25 m2, para uma secção transversal em arco superior a 50 m2, com contorno irregular (Fig. 5).
[caption id="attachment_1407" align="alignnone" width="720"]


A escavação era manual, com recurso a pás e picaretas. No entanto, em terrenos rochosos eram utilizados martelos pneumáticos e explosivos. O material resultante da escavação era transportado de diferentes formas. Nos primeiros túneis, construídos por volta de 1940, o transporte era efetuado através de carro de mão, evoluindo, posteriormente, para carro de bois, para o transporte sobre carris (sistema decauville) e, finalmente, para os camiões de carga (dumpers) de pequena dimensão.
Geralmente a escavação era executada em duas fases. Numa 1ª fase, era escavada uma galeria de avanço (ou galeria piloto) com cerca de 6 m2, o que permitia antever as características do maciço a escavar na abóbada (o teto do túnel). Numa 2ª fase, era escavada a restante secção com a dimensão final pretendida.
Em geral, estes túneis não eram revestidos. Quando eram atravessadas zonas de menor resistência (caixas de falha ou grandes afluências de água), houve necessidade de revestir, total ou parcialmente, a secção dos túneis com pedra basáltica ou betão com o auxílio de cimbres e moldes de madeira, conforme ilustrado na Fig. 6.
[caption id="attachment_8005" align="aligncenter" width="445"]

Nestas zonas, verificava-se muitas vezes uma sobreescavação da secção, tanto na abóboda (teto), como nos hasteais (paredes laterais), o que levava a que o revestimento fosse efetuado com um enchimento em pedra e betão (betão ciclópico).
No que concerne aos túneis construídos na segunda fase, a evolução da técnica e do conhecimento prévio à construção (fase de estudos e projetos) possibilitou o conhecimento das condições geológicas e a caracterização por zonas (zonamento geotécnico), o que permitiu uma melhor preparação dos métodos de escavação e dos tipos de suporte a utilizar em cada zona. Com este método, a imprevisibilidade foi bastante reduzida, assegurando-se maior controlo executivo e melhor segurança na construção.
No que diz respeito à largura dos túneis, estas variam entre hasteais de 9 m e 9,6 m, consoante se trate de túneis unidirecionais, que integram a via rápida, ou de túneis bidirecionais, que integram as vias expresso, ambos os tipos com duas vias de tráfego de 3,5 m e alturas variáveis, sendo garantido sempre uma altura mínima de 5 m. A secção transversal caracteriza-se por um arco semicircular na abóbada que se prolonga na vertical nos hasteais, com áreas de 76 m2 e 83 m2, como se pode observar na Fig. 7a. Todavia, existem algumas exceções, como por exemplo os túneis João Gomes e Jardim Botânico, com abóbada elipsoidal e área na ordem dos 55 m2, e alguns túneis, como o caso do túnel da Pontinha, onde foi adotada uma secção curva com largura máxima de 10,5 m e área de 83 m2.
Existem, ainda, alguns casos de túneis onde foram adotadas maiores secções, com largura efetiva de 12 m, no caso de faixas de rodagem com três vias de tráfego, como por exemplo o túnel Pestana Júnior, e largura efetiva de 18,5 m, no caso de duas faixas de rodagem, cada uma com duas vias de tráfego, como por exemplo os túneis de Santa Cruz (Fig. 7b). Nestes casos, as secções variam entre 94 m2 e 180 m2, respetivamente. Em situações pontuais, como no caso de inserção de vias de aceleração e de desaceleração no interior de um túnel, é necessário recorrer a secções com maior largura efetiva, como é o caso, por exemplo, do túnel João Abel Freitas e do túnel Faial-Cortado, com 20,5 m de largura e 189 m2 de área de escavação.
[caption id="attachment_1451" align="aligncenter" width="544"]

A escavação dos túneis construídos na segunda fase foi executada com recurso a meios mecânicos, nomeadamente martelos pneumáticos, ou com recurso a explosivos, de modo a proporcionar o método de escavação mais económico.
O método de execução adotado foi o chamado Novo Método Austríaco de Construção de Túneis, vulgarmente designado por NATM (New Austrian Tunnelling Method). De acordo com este método, o avanço do túnel (escavação e aplicação de revestimento primário) é executado sequencialmente, sendo o esquema de faseamento da escavação determinado por um conjunto de fatores, entre os quais se destacam as dimensões da secção e as condições geológicas, geotécnicas e hidrogeológicas (existência ou não de água) do local. Como regra, é de admitir que quanto maior for a área da secção do túnel e menos resistente e mais deformável for o maciço, maior deverá ser o número das fases de escavação, para conseguir assegurar a estabilidade do túnel durante o avanço.
De acordo com este método, imediatamente após a escavação é aplicado um suporte inicial ou provisório, cuja finalidade é assegurar a estabilidade da escavação e a segurança dos operários durante as operações construtivas. Apenas depois de o túnel estar aberto é instalado um suporte final ou definitivo, cujas funções principais são de satisfazer os critérios operacionais e de manutenção do túnel e, a médio e longo prazo, assegurar a estabilidade da cavidade, atendendo à possível degradação do suporte inicial e às modificações posteriores do meio envolvente (degradação do maciço, variações do nível freático, construção de edifícios ou de aterros, escavações subterrâneas vizinhas, etc.).
O suporte primário mais frequentemente empregue foi o betão projetado, aplicado com espessuras a variar entre os 5 e os 30 cm, associado a pregagens. Ainda associados a estes materiais, por vezes foram também empregues no suporte inicial cambotas metálicas em maciços com muito fracas características resistentes, com a finalidade de aumentar a rigidez estrutural e de garantir a rápida contenção de blocos instáveis, enquanto o betão não apresentava resistência suficiente (Fig. 8a). Para o suporte secundário ou final, vulgarmente designado por revestimento definitivo, o mais empregue foi o betão moldado in situ (Fig. 8b), com espessuras a variar entre os 25 e os 50 cm.
[caption id="attachment_1431" align="alignleft" width="297"]

Com o objetivo de evitar infiltrações de água para dentro do túnel e de proteger o revestimento final de betão contra influências químicas prejudiciais, foi instalado um sistema de drenagem e de impermeabilização entre o suporte primário e o suporte final.
Na segunda década do séc. XXI, os túneis construídos na segunda fase encontravam-se em boas condições de funcionamento.
Bibliog.: manuscrita: ARM, DOP, Projetos e Processos de Obras, Estrada Nacional n.º 1, 1.ª classe, Ramal para o Caniçal, 1951; ARM, DOP, Projetos e Processos de Obras, Estrada Nacional n.º 101-7 (Fajã da Ovelha), 1963; ARM, DOP, Projetos e Processos de Obras, Estrada Nacional n.º 101, km 86, 1964; impressa: ALVES, Emanuel R., Túneis Rodoviários Antigos da Madeira, Dissertação de Mestrado em Engenharia Civil apresentada à universidade da madeira, Funchal, texto policopiado, 2012; BRITO, José M., BAIÃO, C., e ROSA, S. P., “Road Tunnel Design and Construction at Madeira Island”, in OLALLA, Claudio et al. (orgs.), Volcanic Rock Mechanics. Rock Mechanics and Geo-Enginering in Volcanic Environments, Boca Raton, CRC Press, 2010, pp. 279-286; REIS, Ricardo, “A Modernização da Rede Viária da Ilha da Madeira: Enquadramento”, Engenharia e Vida, n.º 7, novembro de 2004, pp. 22-32; SIMÕES, Álvaro Vieira et al., transportes na Madeira, Funchal, DRAC, 1983; digital: “Derrocada junto ao ‘Véu da Noiva’ interdita acesso”, Diário de Noticias, 17 out. 2008: http://www.dnoticias.pt/multimedia/video/156068-derrocada-junto-ao-veu-da-noiva-interdita-acesso (acedido a 05/05/12); audiovisual: PAULINO, Francisco F. e COSTA, Eduardo, História dos transportes Terrestres na Madeira, Produção Edicarte, 2007.
João Paulo Martins
José António Mateus de Brito
Vitória da Conceição Rodrigues
Emanuel Roberto Malho Alves
(atualizado a 11.07.2016)